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Revista Brasileira de

Sexualidade Humana 23

OPINATIVOS E DE REVISÃO

A PSICOTERAPIA EMDR COM ADULTOS TRAUMATIZADOS POR ABUSOS


SEXUAIS INTRAFAMILIARES

Ana Maria Fonseca Zampieri1

EMDR PSYCHOTHERAPY WITH ADULTS TRAUMATIZED BY INTRAFAMILY SEXUAL ABUSE

Resumo: Neste artigo a autora mostra o tratamento com psicoterapia Eye Movement Desen-
sitization and Reprocessing (EMDR) do fenômeno sistêmico do abuso sexual intrafamiliar em
pessoas que apresentam disfunções sexuais na vida adulta, tais como: anorgasmia e ejaculação
prematura secundárias. Discorre sobre a invisibilidade ainda presente nas relações familiares
coabusivas, da importância da contextualização e da legitimidade da subjetividade de todos os
atores desse cenário traumatogênico. É apresentada sua prática clínica dos últimos quarenta
anos com pessoas adultas sexualmente abusadas na infância e adolescência, de níveis socioeco-
nômicos altos, com idades entre 14 a 58 anos, com a psicoterapia Eye Movement Desensitization
and Reprocessing (EMDR). São ilustrados alguns conceitos e práticas terapêuticas. Os nomes dos
adultos atendidos foram preservados. A autora ressalta a possibilidade de a psicoterapia EMDR
ser uma abordagem que promove a saúde sexual de adultos traumatizados em suas famílias de
origem. Pode ser realizada entre 20 e 40 sessões, dependendo da complexidade dos casos.
Palavras-chave: EMDR; trauma; abuso; sexualidade; sexo.

Abstract: In this article, the authoress shows the treatment of the systemic phenomenon of intrafamily
sexual abuse, in people who present sexual dysfunctions related to the subject in their adult life, such as
anorgasmia and premature ejaculation, with Eye Movement Desensitization and Reprocessing Therapy
(EMDR). She discusses the invisibility that stills present in co-abusive family relationships, the importance
of contextualization and the legitimacy of the subjectivity of all the authors of this traumatogenic scena-
rio. The author presents her clinical practice with adults abused in childhood and adolescence, from high
socioeconomic levels, aged 14 to 58 years, with EMDR Therapy in the last twelve years. She illustrates
some concepts and practices with fictitious names of adults attended and highlights the possibility of a
psychotherapy that promotes the sexual health of traumatized adults in their families of origin. Depending
on the complexity of the cases, this kind of therapy performed with 20 to 40 session’s shows affectivity.
Keywords: EMDR; trauma; abuse; sexuality; sex.

Psicóloga (USP). Psicoterapeuta sexual (SBRASH). Psicotraumatóloga (SaPsi). Psicoterapeuta de EMDR. Pós Doutorada,
1

Doutorada e Mestre em Psicologia Clínica. PUC – SP. USAL – Argentina. Autora de livros e artigos da área. E-mail: ana-
mfzampieri@uol.com.br.

2017 SBRASH - Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana RBSH 2017, 28(2); 23 - 34
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Introdução

“Minha crença é de que o sangue começar a ter muita culpa após os 11 anos de
e a carne sejam mais sábios do que o in- idade, quando percebeu que essas “cosquinhas”
telecto. O inconsciente do corpo é o lu-
eram atos perversos por parte de seu avô.
gar onde a vida borbulha em nós. É como
Como ampliar em nossos pacientes os vá-
nós sabemos que estamos vivos; vivos nas
rios significados dos “prazeres” corporais, mes-
profundezas de nossas almas, e em con-
tato com as vívidas extensões do cosmo.” mo em uma situação de abuso? E como a psico-
(LAWRENCE, 1999). terapia EMDR pode auxiliar as disfunções sexuais
de adultos, que estão ligadas a abusos sexuais
No Brasil o Disque Direitos Humanos (ou intrafamiliar?
seja, o disque 100) recebeu, entre 2015 e 2016, A psicoterapia EMDR tem sido indicada,
37 mil denúncias de abuso sexual de pessoas até nos últimos anos, como tratamento para proble-
18 anos. A maioria delas (67,7%) eram meninas mas de ansiedade, fobias e traumas, incluindo
na faixa etária entre 0 a 18 anos. Os meninos TEPT. Desenvolvida em 1989 por Francine Sha-
representavam 16,52% das vítimas. Os casos em piro, a psicoterapia EMDR é considerada atu-
que o sexo da criança não foi informado totali- almente um tratamento eficaz para situações
zaram 15,79%. Certamente estes são números traumáticas por algumas organizações, como a
subnotificados. Há mais abusos sexuais dentro American Psychiatric Association (2004) e o Na-
dos lares do que estes informes anunciam. tional Institute for Health and Clinical Excellence
Em 18 de maio é celebrado o Dia Nacional (2006). As mais recentes avaliações por parte da
de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de International Society for Traumatic Stress (FOA;
Crianças e Adolescentes. A data remete ao dia KEANE; FRIEDMAN; COHEN, 2009) e do Depart-
18 de maio de 1973, quando Araceli Crespo, de ment of Veterans Affairs and Department of
8 anos, foi raptada, estuprada e morta por jo- Defense dos Estados Unidos (2010), designam
vens de classe média alta em Vitória (ES). a psicoterapia EMDR como um tratamento de
No consultório, Maria (nome fictício) trou- nível excelente. É uma recomendação no nível
xe-nos a queixa de anorgasmia secundária. Ela interventivo que podemos oferecer para pacien-
é médica, tem 42 anos, é casada há 10 anos e tes traumatizados em diversos níveis, incluindo
sem filhos. Revelou angústia ligada ao fato de os traumas sexuais (ZAMPIERI, 2014).
ter um bom casamento, porém durante todo o Em suas pesquisas, Van der Kolk et al.
relacionamento finge orgasmo para o marido, (2007) provou que a psicoterapia EMDR é a mais
que é uma pessoa colaboradora afetivamente e bem-sucedida para alcançar melhorias significa-
ótimo parceiro, de acordo com ela. Consegui- tivas no TEPT e nos sintomas depressivos em so-
ram desenvolver vários projetos comuns de vida. breviventes de traumas. Algumas meta-análises
Um deles é que ambos decidiram não ter filhos (BISSON et al., 2007; ETTEN; TAYLOR, 2008) indi-
e congelaram óvulos caso venham a mudar de cam que a psicoterapia EMDR consegue efeitos
ideia algum dia. Têm um relacionamento de 12 terapêuticos equivalentes e duradouros como os
anos, sendo 2 anos de namoro e 10 de casa- dos métodos da abordagem cognitivo-compor-
mento. A paciente apresenta nível socioeconô- tamentais.
mico alto, com uma família de origem do mes-
mo padrão, todos são universitários, trabalham O caleidoscópio do abuso sexual nas famílias
na área da saúde e, inclusive, o avô paterno é
Durante séculos, o humanismo tem
médico como ela. Em uma sessão de psicotera-
nos convencido de que nós é que somos a
pia EMDR (Eye Movement Desensitization and
fonte suprema de significado e que nosso
Reprocessing – Dessensibilização e Reprocessa- livre-arbítrio é a mais alta de todas as au-
mento através dos Movimentos Oculares) sur- toridades. Em vez de esperar que alguma
giu uma cena do avô paterno “fazendo cosqui- entidade exterior nos diga o que é o quê,
nhas” em sua vagina embaixo da mesa da sala somos capazes de nos basear em nossos
do jantar, o mesmo local onde ele iniciou o sexo sentimentos e desejos. (HARARI, 2016)
oral em outra ocasião. Em outras sessões apare-
ceram cenas em que ela visualizava os avanços Jacques Rousseau (1995) afirmou que, ao
desse avô no abuso sexual e lembrou de gostar buscar as regras de conduta na vida, ele as en-
dessas “cosquinhas” quando era criança, mas de controu nas profundezas do seu coração, tra-

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çadas pela natureza e em caracteres que não res, com exceções de portadores de deficiências
podem ser apagados. E que é preciso que con- mentais e sociais diversas, são pessoas integra-
sultemos a nós mesmos sobre o que é bom ou das à sociedade e à família e frequentemente
ruim sentir. O terapeuta sexual, portanto, precisa têm a confiança daqueles que abusam.
ter seus valores revisitados constantemente para Outro mito é o de que as crianças pro-
evitar reducionismos e não patologizar excessi- vocam os adultos e, assim, são culpadas pelos
vamente, legitimando a pluralidade do sentir e abusos. Sabemos que uma das consequências
as universalidades da subjetividade. do abuso sexual intrafamiliar é haver condutas
A psicoterapia EMDR trata traumas em ge- hipersexualizadas e erotizadas por parte dos
ral; neste artigo são enfatizados os sexuais e dis- abusados. Ema (nome fictício), 53 anos e farma-
corridos sobre essa abordagem aplicada a esses cêutica, narrou, em uma sessão de psicoterapia
casos. EMDR, em que acessou memórias infantis de
O abuso sexual de crianças e adolescentes abusos sexuais de seu tio materno, quando re-
é um problema universal que está presente, de velou, com 12 anos, para sua mãe, que lhe disse:
uma forma ou outra, em todas as culturas e so- “Se ele faz isso com você é porque você se com-
ciedades e constitui um fenômeno complexo, re- porta como uma prostituta. Eu me envergonho
sultando da combinação de fatores individuais, de ser sua mãe!”. Essas vivências podem ser, in-
familiares e sociais. Os vastos campos incluídos clusive, retraumatizantes.
estão na trama de interinfluências biológicas, Como acreditar que pais e tios biológicos
psicológicas, sociais e espirituais. É possível pen- cuidadosos podem ser abusadores sexuais?
sar que o abuso sexual intrafamiliar cresce atual- Bernardo (nome fictício) tem 51 anos e é
mente como consequência da perda da coesão engenheiro. Em sua quinta sessão de psicotera-
familiar e como interesse crescente das mídias e pia EMDR relatou:
das redes sociais? Ou apenas os casos de abuso
apresentam visibilidade maior? Eu levava minha sobrinha com mi-
Ainda que se tenha conhecimento de cifras nha filha para o clube; íamos nadar. Eu
sobre este tema diariamente, paradoxalmente é as banhava e ficava muito excitado e an-
possível crer que sua visibilidade apresenta um gustiado. Na volta, elas adormeciam no
banco de trás e eu, dirigindo, com a outra
aspecto positivo, que é o de criação de diversos
mão tocava-as. Primeiro sobre as calci-
mecanismos de proteção a estas pessoas, bem
nhas, depois diretamente na vagina. Elas
como de programas de intervenção preventiva.
nem percebiam! Eu ficava fora de mim. A
Embora os índices apontem para uma inci- excitação me dominava.
dência de vitimas do gênero feminino, é impor-
tante ressaltar que o abuso sexual intrafamiliar Na décima nona sessão de psicoterapia
também acomete meninos. Talvez os meninos EMDR, Bernardo já se colocava de forma dife-
apresentem maior dificuldade em revelar estes rente:
ocorridos, em função de temerem e/ou alimen- Eu tenho que respeitar os meus li-
tarem ideias e preconceitos de que isto colocaria mites. Não posso ficar sozinho com crian-
sua orientação sexual em questionamento. Ou- ças porque a situação dispara a ansiedade
tro mito é o de que estes abusos ocorrem com da minha criança machucada e abusiva.
pessoas desconhecidas. Ao contrário, infeliz- Não sou um monstro! Mas preciso ficar
mente, a maior frequência é encontrada no seio em estado de abstinência. Não vejo mais
da família, por parentes de primeiro e segundo pornografia. Sou capaz de me controlar
graus. O fato de acontecer com tantas dissimula- agora! Sei que para sempre tenho que me
ções faz com que sua revelação seja dificultada, cuidar. É chato. Mas é isso!
desacreditada e, ainda, que o sistema familiar,
por diversos motivos, proteja o agressor de ser Quando essa temática é abordada, fre-
denunciado (ECHEBURUA; GUERRICA; CHEVA- quentemente consideram-se crianças e adoles-
RIA, 2007). Em uma cultura heteronormativa e centes. Deve-se incluir, também, adultos e ido-
sexista ainda são encontradas, em diversas famí- sos que também protagonizam estes cenários.
lias, crenças de que elas são sistemas privados, Em nossa prática clínica, inclusive, há pessoas
alimentados pela ideologia de que a mulher é abusadas sexualmente por seus cônjuges no lar
propriedade do marido e os filhos são patrimô- em relações tóxicas, química e afetivamente. Há
nios dos pais. Abusadores sexuais intrafamilia- avós abusadas por netos em estados de toxicida-

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de ou enfermidade mentais. a casos em que a mãe é dependente química e/


Considera-se que a criança, o adolescente, ou tem um histórico de abuso sexual na infância
o cônjuge ou o idoso são vulneráveis ao abuso (LAWSON, 2013).
sexual nas relações protetoras e amorosas. Não Geralmente o processo abusivo se inicia
se percebe o improvável e o impossível. com carícias até evoluir para a masturbação e o
Mauro (nome fictício), 14 anos, por exem- contato bucogenital. Em alguns casos há evolu-
plo, apresenta quadro de deficiência mental ção para a relação sexual vaginal e/ou o intercur-
leve; mora com a mãe que trabalha no mercado so anal. Na ausência de vestígios pouco identi-
financeiro e com a avó materna. Em sua sexta ficáveis, o abuso sexual em crianças geralmente
sessão de psicoterapia EMDR ele relatou: fica impune (ECHEBURÚA et al., 2015).
Com relação à situação de alto risco, não
Achei que era normal as vovós la- há relação direta de causa e efeito, mas associa-
varem os “pintos” da gente com a boca. ções probabilísticas. É mais provável, portanto,
Mas quando contei para um amigo na es- uma criança que está em uma situação de alto
cola, ele disse que minha vovó é tarada risco social se torna mais vulnerável (FINKELHOR;
e louca. Eu achava gostoso, mas ele me ASDIGIAN, 2006).
ensinou a “bater punheta” e não deixar
mais a minha vovó fazer isso. Daí eu con-
Eu fui abusada pelo meu tio, meu
tei para minha mãe! padrinho e meu primo, dos 8 até os 16
anos. Todo mundo sabia. Eu era o lixo
Na décima terceira sessão de psicoterapia da “porra” deles. Ninguém ligava. Eu era
EMDR, Mauro relatou: feia, sem pai, com mãe bêbada. Eu era um
Aprendi o que são as partes íntimas, nada. (Relato de Mônica –nome fictício –,
né? E a dizer não. A minha vovó é doente 23 anos, faxineira, em sua terceira sessão
da cabeça, minha mãe explicou. Fico bra- de psicoterapia EMDR.)
vo se a vovó quer papo, pedir desculpas.
Eu hein? Ela não pode mais me tocar, nem Já em sua décima sessão de psicoterapia,
ficar sozinha comigo. Eu já entendi. Mônica relatou:

No caso de Mauro, é possível verificar Já consigo me imaginar sendo mãe


como também é importante a psicoeducação um dia. Eu posso escolher melhor meus
sexual. parceiros né? Eu que posso fazer que me
Há diversas estratégias de abuso, inclusi- respeitem. Sou eu que digo se quero ou
ve de confiança. As condutas abusivas também não “trepar” com eles. Posso ser gente de
apresentam um espectro amplo, desde contatos valor.
físicos – diretos ou não –, bucovaginais, penia-
nos, vaginais, anais, de exibicionismo, voyeu- Crianças que vivem em ambiente de alto
rismo e utilização de força para produção de risco, privadas de carinho na família, inicialmen-
pornografia, entre outros. Relações de desigual- te se sentem lisonjeadas com a atenção que re-
dades de maturidade, de idades, de saúde men- cebem, porém esse prazer, ao longo do tempo,
tal, de poder e de explorações de diversos níveis produzirá nelas um profundo sentimento de
devem ser consideradas. Falsas crenças, mitos, culpa. As que são vítimas de maus-tratos, sob
tabus, estigmas sociais e informações inadequa- qualquer forma, são mais propensas a se tornar
das fazem com que pesquisas de prevalência vítimas de abuso sexual, provavelmente devido
destes abusos sejam de difíceis detecções. a sua baixa auto-estima e vulnerabilidade aos
Embora 20% dos casos relatados de inces- enfrentamentos com limites adequados. Neste
to refiram-se a contatos pai-filha, eles são consi- artigo, abordam-se abusos em que não necessa-
derados os mais traumáticos, pois podem levar riamente há violências e coerções físicas.
à dissolução dos laços familiares mais básicos É fato afirmar que crianças e adolescen-
(HERMAN; RUSSELL; TROCKI, 2006). O incesto tes abusados sexualmente por familiares e que
entre padrasto e filha é responsável por 15% dos pertencem à classe social alta são mais invisíveis
casos. Os 65% restantes envolvem irmãos, tios, para as autoridades e terapeutas que outras
irmãos, avós e namorados que vivem na mesma crianças. Apesar de apresentarem melhor qua-
casa (MCCARTHY, 2002). O incesto mãe-filho é lidade de vida, seus pedidos de socorro são ra-
menos frequentemente revelado e está limitado ramente ouvidos, talvez por serem socialmente

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mais “protegidas” e distantes de serviços sociais. a “lamber” a vagina dela e dizia que era
Pessoas dessas classes sociais queixam-se fre- para eu aprender a ser homem. Foi dos
quentemente de, ao revelar seus abusos, serem 4 aos 10 anos assim. Com meus irmãos
desacreditadas. também.
As repercussões psicopatológicas do abu-
so sexual intrafamiliar com efeitos negativos Esta é uma narrativa da quinta sessão de
psicológicos a curto, médio e longo prazo terão psicoterapia EMDR de Antônio (nome fictício),
impactos maiores ou menores dependendo de com 40 anos e executivo; que veio para a psi-
vários fatores, entre eles as diferenças individu- coterapia com queixa de ejaculação prematura
ais, apoios recebidos durante as revelações e secundária. Na sua vigésima sessão de psicote-
após elas. rapia EMDR, Antônio relatou:
Dentre os fatores de vulnerabilidade é
preciso considerar o tipo de abuso – agudo ou Eu fiz um caminho difícil. Também
tive vício em pornografia e masturbação.
crônico –, os tipos de ameaças e os tipos de
Era muito intenso. Não duvido que sou
contatos físicos – diretos ou não. Igualmente é
homem. Mas tenho que me controlar. Se
preciso avaliar o nível de relacionamento com o não, a ansiedade me pega. Agora posso
abusador, as reações das famílias e os graus de focalizar as sensações, estar com a pessoa
ambientes disfuncionais. que está comigo, que me ama, me res-
Estudos sobre adultos abusados na in- peita. Posso controlar a minha ejaculação
fância (INTEBI; OCHOTORENA, 2008), relatam bem melhor.
encontrar prostitutas que fugiram de casa por
abusos sexuais intrafamiliares, assim como ado- Sempre que possível recomendam-se tra-
lescentes dependentes químicos que também tamentos psicoterapêuticos e/ou médicos aos
fugiram de casa para viver nas ruas por motivos indivíduos abusados e a suas famílias. Obvia-
similares. Este tema exige múltiplos olhares nas mente os abusadores devem ser igualmente tra-
complexidades sóciopsicológicas. tados, além das medidas legais a que poderão
Assim, observa-se como há múltiplas e ca- ser submetidos. Não se pode pensar em tratar
leidoscópicas visões, bem como inúmeros e ines- um problema complexo com soluções simples,
perados personagens no tema do abuso sexual de causalidades lineares e terapêuticas reducio-
intrafamiliar. nistas.
Não são abusivas apenas relações com di-
Adultos sexualmente disfuncionais e suas crian- ferenças de cinco anos de idade, lembrando que
ças traumatizadas pessoas com mais idade poderão sofrer abusos
de outras, com menor idade, como em situações
Sofremos os efeitos duradouros de de abuso sexual de idosos familiares.
exigências genitais ativas e passivas “obri- Os comportamentos abusivos sexuais in-
gatórias” impostas a crianças pequenas...
trafamiliares tendem a ser mantidos em segre-
a menina pergunta: o mundo é perverso
do. Por diferentes razões: por parte da vítima,
ou sou eu que estou errada? os meninos
pelo fato de obter algumas vantagens adicio-
tomam para si tarefas super humanas.
(FERENCZI, 2008.) nais como presentes, dinheiro, entre outros; ou
o medo de não ser acreditado ou ser acusado
Muitas vezes é apenas na idade adulta que de sedução, juntamente com o receio de des-
estes segredos são finalmente revelados, com truir a família ou de represálias do agressor. É
traumas e sequelas ligadas a sensações de de- importante garantir uma relação terapêutica
samparo, de impotência e apresentando emo- sem julgamentos, para que os pacientes possam
cionalidades infantis. É importante que o tera- ser entendidos nesse processo de aparentes “ga-
peuta sexual pesquise traumas desta ordem em nhos secundários” na relação secreta com seus
pessoas com queixas de disfunções sexuais. abusadores. Por parte destes, pela perda de ati-
vidade sexual que pode tornar-se aditiva, bem
Meu pai mudava muito de cidade como a possível quebra do casamento e a rejei-
por causa do emprego. Fomos morar em ção familiar e social, até mesmo acompanhada
muitos países. As empregadas ficavam por sanções legais.
com a gente, porque minha mãe viajava A mãe (co-abusadora), muitas vezes, sabe
muito com ele. Uma delas me ensinava o que acontece, mas também não denuncia por

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ter medo do marido ou de perder ou desestru- Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais


turar a família e, em outras vezes, pelo estigma (DSMV) para o diagnóstico de Transtorno de Es-
social negativo gerado pelo abuso sexual. tresse Pós-Traumático (TEPT), que pode se apre-
Alexandre (nome fictício), 58 anos e advo- sentar com sintomas dissociativos; e/ou com
gado, que veio à psicoterapia com queixa de eja- expressão tardia de acordo com a Associação Psi-
culação prematura, relatou em uma sessão de quiátrica Americana (2014) e gera, pelo menos
psicoterapia EMDR: na maioria dos abusadores, os sintomas carac-
terísticos desta doença: pensamentos intrusivos,
Eu vejo o meu treinador de fute- evasão de estímulos relacionados à agressão, al-
bol no acampamento. Ele era meu ídolo, terações do sono, irritabilidade e dificuldade de
mas eu já ficava com o coração acelera- concentração. A desordem também inclui medo,
do quando ele me olhava. Sabia que viria ansiedade, depressão e sentimentos de culpa. Ao
aquilo. Ele me penetrava. Eu tinha dor e contrário dos adultos, nas crianças este quadro
sufocava. Para quem eu ia contar? Ia ser clínico pode assumir a forma de comportamen-
o “viadinho” da turma? Ninguém iria to não estruturado ou agitado e apresentar sin-
acreditar! Ele era adorado por todos! tomas físicos como dores de estômago e enxa-
Uma vez contei para minha mãe, ela me quecas entre outros, ou sob a forma de sonhos
deu uma bronca, disse que eu era louco. aterrorizantes (ECHEBURÚA et al., 2015). Se esse
Eu tinha 9 anos! quadro clínico se manifestar e se os mecanismos
cognitivos adequados para superá-lo não forem
O abuso sexual pode ser levado à tona de usados (HARTMAN; BURGESS, 1993), o trauma
forma acidental quando a vítima decide reve- permanece na memória ativa da criança devido
lar ou, às vezes, conta para outra criança, um ao processamento inadequado da informação.
professor ou quando o comportamento sexual Depressão, culpa – referente à desunião familiar
é descoberto. gerada pela divulgação do sigilo –, problemas
A descoberta de abuso geralmente ocor- sexuais, estado de confusão e distorções nas
re muitos meses ou anos depois dos primeiros crenças sobre si mesma e outros sintomas são
incidentes. O processo de revelação por parte as sequelas que aparecem mais frequentemente
da criança ou do adolescente geralmente segue em adultos abusados.
quatro fases progressivas: a negação, a revela- A perda de confiança pode se concentrar
ção, a retirada da revelação e a reafirmação, na na relação com o abusador e também gene-
qual, após uma distância temporária, a criança e ralizar na relação com o restante da família. A
o adolescente novamente sustentam a declara- estigmatização é sentida como culpa, vergo-
ção anterior sobre o abuso experimentado. Esse nha e perda de valor. Essa série de conotações
processo relativamente frequente, no entanto, negativas são incorporadas à autoimagem da
é meramente indicativo e não está presente em criança e do adolescente e exerce uma profun-
todos os casos. Há pacientes adultos que temem da influência na autoestima, o que pode levar à
revelar o segredo do abuso sexual intrafamiliar identificação com outros níveis estigmatizados
temendo “trair” a memória do abusador. da sociedade, como toxicodependência e pros-
Finkelhor (1988) propõe o modelo trauma- tituição. A manutenção secreta do abuso sexual
togênico, segundo o qual os motivos explicativos pode reforçar a ideia de ser diferente e, assim,
do impacto psicológico são os seguintes: sexua- aumentar o sentimento de estigmatização (COR-
lização traumática, perda de confiança, indefesa TÉS; CANTÓN, 2007).
e estigmatização. Essas quatro variáveis são as O sentimento de desamparo traduz-se na
principais causas do trauma, distorcendo o au- criança e no adolescente em uma crença de não
toconceito, a visão do mundo e as capacidades saber como reagir às várias situações na vida
emocionais dos abusados. Esses fatores estão re- real e em ter pouco controle sobre si mesmo
lacionados, por sua vez, ao desenvolvimento da e o que acontece com ele(a). Tudo isso cria na
criança, do estilo de enfrentamento inadequado pessoa abusada uma sensação de desproteção,
e do surgimento de problemas comportamen- abandono e medo do que pode acontecer no fu-
tais na fase adulta como anorgasmia, ejaculação turo, provocando atitudes passivas e não asser-
prematura secundária, entre outras. tivas. Muito frequentemente isso se refere nas
O abuso sexual na infância cumpre os re- escolhas inconscientes de parceiros e cônjugues
quisitos de trauma exigidos pelo Manual de abusivos na vida adulta.

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Nem todas as pessoas reagem da mesma aspectos relativamente frequentes também não
maneira às experiências de abuso sexual intra- constituem um fenômeno universal (NOGUE-
familiar e nem todas as experiências traumáti- ROL, 1997). Fernando, com 43 anos e dentista
cas compartilham as mesmas características. Há em uma sessão de psicoterapia EMDR, relatou:
pelo menos quatro grupos de variáveis: o perfil
da pessoa abusada quanto à idade, ao sexo e ao Eu esqueci de que aquilo podia fa-
contexto familiar; as características do ato abu- zer sofrer. Ficava hipnotizado. Ficar a sós
sivo como: frequência, gravidade, existência de com a minha sobrinha já me excitava.
violência ou ameaças e cronicidade; o relaciona- Quando eu me masturbava nas perninhas
dela, sentia um alívio no peito. É uma lou-
mento existente com o abusador; e as consequên-
cura isso, eu sei.
cias associadas à descoberta de abuso.
Em relação às características do ato abu-
sivo, a gravidade das sequelas depende da fre- Como incluir todas as crenças no trabalho
quência e duração da experiência, bem como psicoterápico com pessoas abusadas sexualmen-
do uso da força e ameaças ou a existência de te por seus familiares? O DSM não é escritura
alguma violação como: penetração vaginal, anal sagrada; diagnostica os transtornos da vida,
ou bucal. Dessa forma, quanto mais crônico e não o seu significado. O humanismo nos ensi-
intenso é o abuso sexual, maior é o desenvol- nou a pensar que algo só pode ser ruim se le-
vimento de um sentimento de desamparo e var alguém a se sentir mal. Nossos sentimentos
vulnerabilidade; assim os sintomas mais prová- proveem significado não somente a nossa vida
veis aparecem. Quanto à relação da vítima com o privada, mas também a processos sociais e polí-
agressor, o que importa não é tanto o grau de pa- ticos. Sugerimos essas reflexões quando alguns
rentesco entre ambos, mas o nível de intimidade pacientes trouxeram seus sentimentos comple-
emocional entre eles. Quanto maior a privacidade, xos na busca de uma psicoterapia sexual. Tra-
maior o impacto psicológico, o que pode ser agra- tar somente com técnicas sexuais um paciente
vado se a pessoa abusada não receber apoio da traumatizado por abusos, portanto, poderá ser
família ou for forçada a deixar o lar. ineficaz.
A evolução psicológica da pessoa abusada Em resumo: é muito importante conhecer
afeta especialmente sua autoestima e dependerá as crianças sexualmente abusadas e traumatiza-
de algumas variáveis: as dúvidas levantadas pelo das em seus egos adultos para sugerir o trata-
testemunho; o significado afetivo das pessoas in- mento mais adequado a elas.
crédulas e a falta de apoio emocional e social. Sen-
timentos de vergonha, culpa, raiva, tristeza, medo Psicoterapia EMDR para o âmbito sexual
e ansiedade podem afetar os pais de tal forma que
O abuso sexual é um evento trau-
são incapazes de proteger a criança corretamente
matogênico que, como no caso de outros
e, nos casos mais sérios, podem até culpá-la pelo
eventos negativos que uma criança ou
que aconteceu. A possível ruptura do casal, a saída adolescente pode sofrer, pode produzir
do abusador ou da vítima do lar e o envolvimento disfunções sexuais na vida adulta a curto
em um processo judicial são exemplos dessas situ- e longo prazo. (FINKELHOR, 1988)
ações. Julgamentos longos e testemunhos repeti-
dos é uma possibilidade de vitimização secundária Os seres humanos têm distintos sentimen-
e oferecem pior prognóstico. tos, gostos e peculiaridades, e deveríam ser li-
O fenômeno observado mais regularmen- vres para expressá-los e explorá-los, contando
te em adultos sexualmente abusados na infância que com isso não fira os de outrem. Os traumas
em relações intrafamiliares são: alterações na ligados a abusos sexuais intrafamiliares podem
inibição sexual erótica, disfunção sexual, me- dificultar sobremaneira a expressão destes senti-
nor prazer, depressão, o conjunto de sintomas mentos. A psicoterapia EMDR busca reprocessar
característicos do TEPT, bem como um contro- experiências vividas traumáticas.
le inadequado da raiva Em alguns casos, uma Uma experiência é um fenômeno subjeti-
atitude obsessiva e hipervigilante em relação às vo que inclui três fatores: sensações, emoções
crianças foi detectada no longo prazo quando se e pensamentos. Sensibilidade é prestar atenção
tornam pais ou, pelo contrário, a adoção de atos às nossas sensações, às nossas emoções e aos
de abuso ou, pelo menos, consentimento (SE- nossos pensamentos e permitir que exerçam in-
PÚLVEDA; SEPÚLVEDA, 1999). No entanto, esses fluência sobre nós. Experiências e sensibilidade

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incrementam-se reciprocamente num ciclo inter- É um processo semelhante ao que se passa quan-
minável. do sonhamos na chamada fase Rapid Eye Move-
A psicoterapia EMDR tem sido usada para ment (REM) do sono, durante a qual os rápidos
melhorar a regulação afetiva e alterar caracte- movimentos oculares facilitam o processamento
rísticas de personalidade (BROWN; SHAPIRO, do material inconsciente. Quando surge uma situ-
2006), diminuir a dor do membro fantasma ação traumática, essa fase pode ficar bloqueada
(SCHNEIDER; HOFMANN; ROST; SHAPIRO, 2008) e no sistema nervoso com a recordação original, os
queixas somáticas (GUPTA; GUPTA, 2002); melho- sons, os pensamentos, as emoções do passado e
rar a depressão em adolescentes (BAE; KIM; PARK, as sensações físicas. A psicoterapia EMDR permite
2008) e tratar de problemas de ansiedade, fobias, que a pessoa identifique e separe as sensações afe-
perturbação de pânico e perturbação de ansie- tivas do trauma das suas interpretações cognitivas,
dade generalizada (DE JONGH; VAN DEN OORD; ajudando-a a dessensibilizar as memórias traumá-
TEN BROEKE, 2002; FERNANDEZ; FARETTA, 2007; ticas (ZAMPIERI, 2016).
GAUVREAU; BOUCHARD, 2008). A principal vanta- É uma abordagem de oito etapas específicas
gem desta abordagem terapêutica sobre a clássica desde a história clínica do paciente, a preparação
terapia cognitivo-comportamental é a rapidez da para o protocolo, a avaliação, a dessensibilização e
sua ação e menor número de sessões envolvidas o reprocessamento da memória traumática, fecha-
(DE JONGH; TEN BROEKE, 2007; DE JONGH ET AL., mento e follow-up (WESSELMANN et al., 2012). Ao
2002; ROOS; DE JONGH, 2008). longo desse processo são trabalhados os eventos
Usamos o modelo do Sistema de Proces- passados que estabelecem as bases para a patolo-
samento Adaptativo de Informação, como base gia, as situações atuais que causam perturbação e
teórica da psicoterapia EMDR, que se baseia no futuros modelos para a ação apropriada ou ade-
conhecimento de que existe um sistema fisiológi- quada (SHAPIRO, 2005).
co de processamento de informações mediante o Baseando-se no protocolo da psicoterapia
qual as novas experiências e informações se pro- EMDR, as situações emocionalmente difíceis do
cessam para obter um estado adaptativo. Essas passado são reprocessadas, bem como os estímu-
informações se armazenam em redes de memória los disparadores atuais, que provocavam dificul-
com pensamentos, imagens, emoções e sensações dades para que a pessoas consiga estar perante
vinculadas entre si (ZAMPIERI, 2016). As redes de os objetos indutores de ansiedade. A instalação
memória se organizam em torno do conhecimen- de recursos de autoestabilização e os entrelaça-
to mais precoce vinculado a esse grupo (HENSLEY, mentos cognitivos usados são técnicas poderosas
2010). As experiências traumáticas e as necessida- que proporcionam avanços no processo terapêu-
des interpessoais insatisfeitas, de forma persisten- tico. Quando esses entrelaçamentos são aplica-
te, podem produzir bloqueios na capacidade do dos, abre-se a possibilidade de introduzir novas
sistema de processamento adaptativo da informa- perspectivas ao sistema de processamento na
ção, para resolver eventos traumáticos, gerando busca de facilitar um reprocessamento satisfató-
reações disfuncionais, como por exemplo, anor- rio ao se cruzarem com outras redes de memó-
gasmia e ejaculação prematura secundárias. Os ria e associações mais adaptativas do paciente.
procedimentos da psicoterapia EMDR promovem Um exemplo de entrelaçamento cognitivo, seria
a redução da intensidade de memórias perturba- perguntar à paciente Maria (nome fictício), com
doras e seus afetos vinculados, o que facilita o 42 anos, que se sente bloqueada sexualmente
acesso a informações mais adaptativas, bem como por associar relação sexual com seu marido com
novas associações dentro das redes de memória abusos sexuais sofridos na infância: “Imagine-se
(SHAPIRO, 2001). olhando agora para essa cena em que se sente
A psicoterapia EMDR ajuda a desbloquear o culpada pelo abuso de seu avô. O que, com a sua
sistema nervoso, permitindo que o cérebro proces- idade atual, você poderia fazer para defender-
se a experiência traumática. O terapeuta executa -se?”. O terapeuta auxiliaria a paciente a recupe-
a estimulação bilateral que favorece a comunica- rar o presente, que está em seu ego adulto.
ção entre os dois hemisférios cerebrais através de As sessões podem ter periodicidade sema-
movimentos laterais oculares, sons alternados, ou nal, tendo cada uma a duração de 60 a 90 mi-
toques nas mãos ou nos joelhos; enquanto o pa- nutos. O uso dessa psicoterapia com disfunções
ciente acede simultaneamente à memória traumá- sexuais ligadas a abusos sexuais intrafamiliares
tica armazenada mediante as imagens, cognições, mostrou-se eficaz em cerca de 20 a 40 sessões,
emoções e sensações (WESSELMANN et al., 2012). 16 indo ao encontro de várias pesquisas que

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conseguiram tais resultados eficazes (DE JON- meu marido, e vinham as sensações da
GH; TEN BROEKE, 1998; DE JONGH ET AL., 2002; minha infância embaixo da mesa na sala
ROOS; DE JONGH, 2008). de jantar; brincando de “cosquinhas”
Os pacientes cronicamente abusados po- com o meu avô. (Maria, em uma sessão
dem apresentar o que chama-se de trauma com- de psicoterapia EMDR).
plexo. Quando isso ocorre, é importante identifi-
car e tratar as três áreas: recordações-chaves do Nessa psicoterapia é importante que os
passado, estímulos disparadores do presente e eventos de memórias mais precoces, ligadas ao
possibilidades comportamentais do futuro. abuso sexual intrafamiliar, sejam tratados. Eles
Veja-se, como ilustração, uma das sessões podem surgir esporadicamente ou com técnicas
de psicoterapia EMDR de Maria, a paciente cita- de checagem de emoções e de sensações físicas.
da anteriormente. Em uma das lembranças do É possível pesquisar quando foi a primeira vez
abuso sexual do avô paterno, ela trouxe a cena: que a paciente se lembra, por exemplo, de ter
sentido aquelas emoções. Maria disse se lembrar
Vejo meu avô me levando para o da cena mais remota, a ocasião em que tinha
escritório da minha casa de infância. Eu 8 anos de idade quando o avô a estimulava e
devia ter uns oito anos. Ele está sentado a manipulava enquanto tomava banho e lava-
comigo em um sofá marrom. Na televisão va seus órgãos genitais com o chuveirinho. Esse
passa um programa de esportes. Lembro evento trouxe à tona a crença negativa de que
da música. Ele está com o pênis para fora ela era culpada, com a referente emoção de im-
da calça e me coloca no colo dele e faz potência.
“cavalinho”. Lembro do cheiro dele. Com Maria, o tratamento psicoterápico
sexual, que durou 36 sessões, teve a meta atin-
A paciente relata ter a crença negativa so- gida; usando-se também a psicoterapia sexual
bre esse evento quando afirma: “Eu sou culpa- clássica (LEIBLUM, 2012) e psicoeducação sexu-
da”. E apresenta um grau de perturbação nível 10 al. As memórias do passado não mais invadiam
Subjective Units of Distress Scale (SUDS), em uma suas experiências sexuais presentes e ela deixou
escala de 0 a 10 (ZAMPIERI, 2016). de apresentar ansiedade antecipatória quando
Com relação aos estímulos disparadores no pensava na possibilidade de ter relação erótica e
presente, em outra sessão de psicoterapia EMDR, sexual com seu marido.
a paciente trouxe a cena de estar com seu marido É importante lembrar que o terapeuta que
em uma situação de intimidade sexual quando ele se utiliza da psicoterapia EMDR deve estar aten-
pediu que ela o masturbasse. Ela relatou: “Sinto to à possibilidade de o paciente manter a aten-
a mesma raiva que desenvolvi por meu avô. E me ção dual, passado e presente, durante as aplica-
sinto culpada. Se estou ali, por que ele precisa da ções do protocolo EMDR.
masturbação?”. Relata emoção de impotência, As melhorias com a psicoterapia EMDR vão
com sensações físicas de desconforto na região além dos sintomas evidentes provocados pela si-
do diafragma. tuação traumática. A instalação de recursos de
No que se refere a situações futuras, Maria autocontrole revela-se muito útil, pois empode-
trouxe uma cena imaginária em que o marido a ra os pacientes após o processamento da EMDR,
estimulava no clitóris e onde pudesse “presentifi- fornecendo-lhe ferramentas para lidar com me-
car” essa sensação, sem misturar com as cenas de mórias traumáticas e adquirir novas aprendi-
estimulação do avô abusivo. Trabalhou-se a cena zagens, indo ao encontro das constatações de
como ela gostaria de se ver lidando com a situa- Shapiro e Luber (2009). Dessa forma a terapia
ção em um futuro breve. EMDR pode ser uma alternativa eficaz para o
Trauma complexo por abuso sexual intrafa- tratamento de disfunções sexuais, com etiologia
miliar crônico é caracterizado por uma complexi- traumática por abusos sexuais intrafamiliares.
dade de abusos vivenciados por um período pro-
longado e, às vezes, com dissociações. Reflexões finais
No exemplo de Maria, muitas vezes ela re-
vivia as relações abusivas com o avô e sentia-se “Aqui estão as raízes do trauma.
como se “uma máquina do tempo” a levasse para A desconexão de nossa sensopercepção
o passado. de pertencer faz com que nossas emo-
ções flutuem num vácuo de solidão. Ela
Eu me esquecia que estava com faz com que nossa mente racional crie

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fantasias baseadas na desconexão e não Quando adultos finalmente revelam os


na conexão. Essas fantasias nos levam a abusos sexuais a que foram submetidos e iden-
competir, guerrear, desconfiar dos outros, tificam e reprocessam essas vivências traumáti-
e sabotam nosso respeito natural pela cas, poderão ser empoderados para a chance de
vida. Os seres humanos são naturalmen- uma vida sexual ativa, saudável e prazerosa e,
te cooperativos e amorosos. Entretanto,
ainda, podem quebrar o ciclo da traumatização
sem o cérebro plenamente integrado, não
transgeracional, quando abusados tornam-se
podemos nos reconhecer quanto a isto.”
(LEVINE, 1999)
abusadores.
A psicoterapia EMDR é, portanto, eficaz e
Acredita-se que o maior desafio e respon- comprovadamente indicada. Como fenômeno
sabilidade dos profissionais de saúde mental é sistêmico, essa indicação deve ser oferecida a to-
promover psicoeducação preventiva do abuso dos os personagens do cenário do abuso sexual
sexual intrafamiliar para pais, mães, filhos, pro- intrafamiliar: abusadores, coabusadores, abusa-
fessores e educadores da saúde em geral. dos e todas as pessoas direta e indiretamente
A psicoterapia EMDR favorece as elabora- ligadas a essa trama traumatogênica.
ções psíquicas, que chamamos de funções co- Para resolver o trauma é preciso aprender
metabolizadoras (ZAMPIERI, 2016). Quando se a nos mover fluidamente entre o instinto, a emo-
trata de pessoas traumatizadas por abusos sexu- ção e o pensamento racional. Quando essas três
ais intrafamiliares, podemos é possível, contex- fontes estão em harmonia, comunicando sensa-
tualizadamente, ajudá-las a transformar emo- ção, sentimento e cognição, nosso organismo
ções e sensações físicas, especialmente de medo, funciona mais harmonicamente. A psicoterapia
desespero, incapacidade, insegurança, injustiça, EMDR está aqui referendada para a clínica do
indefesa e falta de ar, com base em crenças ne- terapeuta sexual que lida com traumas por abu-
gativas e limitantes; em emoções de alívio, paz, sos sexuais intrafamiliares, muitas vezes pano de
calma, confiança e com as crenças de ser capaz e fundo de disfunções sexuais.
poder lidar com a vida, mais abertos aos suportes
familiares, sociais e espirituais (ZAMPIERI, 2016). Referências
Assim, essas pessoas terão chances, por meio
do processo adaptativo de informação (SHAPI- AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Prac-
RO, 2012), de retomar a capacidade psíquica de tice guideline for the treatment of patients
associar afeto com representação (BENYAKAR, with acute stress disorder and post-traumatic
2005). Essa psicoterapia permite um acesso ao stress disorder. Arlington: American Psychiatric
psiquismo que possibilita relacionar recordações Association Practice Guidelines, 2004.
de abusos sexuais intrafamiliares e vida sexual
da vida adulta, com novas articulações entre afe- AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Refe-
to e representação (ZAMPIERI, 2016). rência rápida aos diagnósticos do DSM-V. Por-
Como exemplo, Maria, em uma de suas úl- to Alegre: Artmed, 2014.
timas sessões de EMDR, narrou:
BAE, H.; KIM, D.; PARK, Y. C. Eye movement de-
Meu corpo sente prazer em ter pra- sensitization and reprocessing for adolescent
zer espontâneo e respeitado por mim. depression. Psychiatry Investigation, n. 5, p. 60-
Sou uma mulher que posso lutar e dizer 65, 2008.
não, se eu for invadida ou abusada. Isso
ficou no passado. Eu posso me entregar BENYAKAR, M. Lo Traumático Clínica e Parado-
e experimentar sem culpas ou fantasmas. ja – Tomo 1: El proceso traumático. Bueno Aires:
Eu posso cuidar de mim... Editorial Biblos, 2005.

Nessa afirmação é possível constatar como BISSON, J.; EHLERS, A.; MATTEWS, R.; PILLING,
a terapia EMDR possibilitou associação entre S.; RICHARDS, D.; TURNER, S. Psychological tre-
memórias corporais, sensuais e eróticas com a atments for chronic post-traumatic stress disor-
diminuição de crenças negativas autorreferentes der: systematic review and meta-analysis. The
e valorização das positivas, o que impacta a re- British Journal of Psychiatry, n. 190, p. 97-104,
articulação afeto com representação (ZAMPIERI, 2007.
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