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INCENDIOS UMA CONSOLAGAO IMPLACAVEL A nacureza gosta de eesconden Hexactro Incéndios 60 segundo painel de uma tetralogiainiciada com a escrita © a encenacio de Litoral, em 1997. Sem constituir vuma sequéncia narrativa, Incéndios retoma a reflexio em torno da questio das origens, Mesmo ignorando ainda em que direceio iré 0 seguimento, ou quando ele iré ser nova- mente abordado, sei que, desde ha pouco, existe uma palavea que no me sai da cabega, talvez.seja um titulo, ou um cend- rio, mas intuo que essa palavra é 0 sonbo premonitério de ‘uma terceira parte. Essa palavra é Floresta. Tal como Litoral, Incéndios nunea teria visto a luz do dia sem a participagio dos actores. Nessa perspectiva, o modo como a peca foi escrita e encenada constitui também uma continuagio de Litoral, visto que, também ai, 0 texto foi escrito & medida que os ensaios se iam sucedendo, por um periodo de dez. meses. Nio quero deixar de referir 0 quanto foi crucial o empenho dos actores, Simon munca seria pugilista se Reda Guerinik bar io tivesse participado no projecto. Sawda também nio ge mostraria cheia de c6lera sem Marie-Claude Langlois, ¢ Nihed provavelmente nio teria eantado se ev no tivesse abalhado com Eric Bernier. Tratava-se de revelar 0 actor avés da personagem e de revelar a personagem através do actor, para que deixasse de haver espago psicolégico que os pudesse separar. O tnico espago que podia permitic ao actor £4 personagem no se confundirem totalmente era 0 da fic~ ‘qlo, do fazer de conta, da imaginagio. Entio, antes mesmo de escrever uma linha, falamos de consolo. O paleo como tum lugar de consolo implacavel. Para mim, era jé um passo no tinel, Um motivo. Uma sensagio. Comegaram a surgir palavras. Com as vores dos actores a guiar-me. ‘Um dia, suegiu esta questio: «O que € que vos apetece fazer sum paleo? O que € que vos apetece dizer? Que acgio, {que famasma gostariam de materializar? Tudo era per~ mitido. Do mais lidico 20 mais sério, do mais grotesco 20 convencional, Nio era earo, Assim, Reda falou-me de pugilismo, Marie-Claude, de desempenhar o papel de uma ‘melhor amiga. Annick Bergeron, que fard o papel de uma das trés Naval, gostaria de dancar sapateado, e Richard Thé- riaule, que dari corpo a Hermile Lebel, gostaria de cantar mes. Era engragado e comovente ver cada um con- fessar os seus fantasmas de infancia ou de adoleseéncia, mas todo o desejo traz em si uma verdade incontestével ¢ todo 0 desejo, tio simplesmente expresso daquele modo mum dia do ‘més de Maio, 4 volta de uma mesa, tornava-se para mim uma pista a que eu nunca teria chegado sozinho, Nem tudo foi ‘em consideragio, mas muitas vezes consegui encontrar solugGes para a trama narrativa. O exemplo mais espantoso ‘edo nariz do palhago. Isabelle Roy, que ia interpretar a mais a jovem das Nawal, confessa que sonha interpretar 0 papel de ‘um palhago sem graga, mas essa ideia de palhaco vai adquirir ‘um aspecto surpreendente ¢ tornar-se um dos pontos cegos dda historia. Para além dos fantasmas infantis, havia também a8 idelas e o discurso de eada um. Falou-se de terrtério, de reconstrugio, da guerra do Libano, de Noé ¢ do Al Falou-se de divércios, de casamentos, de teatro e de Deus; ¢ também do mundo de hoje, guerra no Traque, e também do undo de ontem: a descoberca da América. ‘A escrita pés-se entio em marcha ¢ 0 trabslho dos ensaios prosseguiu. O trabalho de cenografia teve também que adaptar-se 20 facto de o texto se ir escrevendo aos poucos «, durante todo esse periodo, tive a sensagio de que ali se ‘ratava sobretudo de um geupo de teatro, com os seus téc= rnicos ¢ 0s seus actores, que teabalhavam para abrir caminho 4 eserta, Sem essa escuta, sem c55a participacio, sem esse empenho activo por parte de cada membro da equipa, eu nio teria podido eserever. E importante dizer, importante que se ppereeba: Incéndios nasceu desse grupo, a sua escrita passou através de mim. Passo a passo, até ltima palavra, ‘Wapyt Mouawan, 23 de Margo de 2003 Para Nayla Mouatoad e Netalie Sultan, sim dab, ontrajudia, samba minbas irs de sangue PERSONAGENS ew ine me hecat Sa ie INCENDIO DE NAWAL 1. NOTARIO Dia. Vero. Gabinete do Novhnto. Henaite Less Pois é, pois é, prefiro observar 0 voo das aves. Mas, deixemo-nos de no havendo aves, daqui vé-se os automé quando eu estava do outro lado do edificio, 0 meu gabi- rete dava para a auto-estrada, Nio se via o mar, mas seabel por afixar um cartaz na janela: Hermile Lebel, notério. A hora de ponta, dava-me uma publicidade fantistica. Agora estou deste lado, e tenho vista para 0 centro comercial. Um centro comercial nio é uma ave. Dantes, eu dizia umave, Foi a vossa mie que me expli- cou que devia dizer-se uma ave. Desculpe. Nio quero falar da vossa mic por causa da desgraca que aconteccu, mas vai ser preciso reagir. Continuar a viver, como se diz, E assim, Entrem, entrem, no fiquem na passagem. £ 0 meu novo gabinete, Estou a mudar-me, Os outros notirios foram-se embora. Estou sozinho neste bloco. Aqui é muito mais agradavel porque hé menos barulho, a auto-estrada fica do outro lado. Deixei de poder fazer publicidade 3 hora de ponta, mas ao menos posso olhar a7 agus através da janela aberta c, como ainda nio tenho ar con- dicionado, até calha bem. Pois. Bom... E isso, nao ¢ fécil. Entrem, entrem! Nao fiquem na passagem, enfim, é uma passagem... . Eu percebo, até percebo, que nio se queira entrar. Eu cé nfo entrava, Pois, Bor Nio ha ‘cunstincias mais favoriveis, mas 0 circunstincias favoréveis, entio rio se prevé. A morte nio tem suas promessas. Pensa-se que ela s6 chega mais tarde, ¢ depois cla chega quando Ihe apetece. Bu gostava da vossa inde. Digo isto assim mesmo, sem rodeios: eu gostava da ‘vossa mie, Ela falava-me muitas vezes de vocés. Muitas aque eu preferia csr convosco em cir veo cao nar ie Ean os gémeos. Dizia« gémea, ¢ também 0 gémeo. Sabem como cls era, nunca dia nada a ninguém, Quer diet, ites de ela ter passado a nfo falar absolutamente ‘la nao me dizia nada sobre vocés, Ela cra assim. Quando mozreu, chovia, Nao sei, mas fex-me muita pena | gue ves chovido,na era dlt ues chow eno wen testamente, nem vos conto a Boras que ito epre= | senta, Nao é como as aves, um testamento, claro. E outra i | I coisa. E estranho e esquisito, mas é necessério, Descul- pem. Desata a chorar 2. ULTIMAS VONTADES Allguens minutos depois. Norinro. Gésto, Géstea, ‘Henaite Least, Testamento da senhors Nawal Marwan. As testemunhas que assistiram 3 leitura do testamento por ocasiio do set registo sio o senbor Trinh Xiao Feng, Proprictirio do restaurante Les Burgers du Vietcong, e 4 senhora Suzanne Lamontagne, empregada do restaurante Les Burgers du Vietcong. Era o restaurante que ficava li em baixo. Naqucla époce, sempre que eu precisava deduas tesvemunhas, ia If abaixo procurar o senhor Trinh Xiao Feng, Hui Huo Xiao Feng ficava a tomar conta do res. taurante, Entretanto 0 restaurante fechou. Foi encerrado, ‘rink morreu. Hui Huo Xiao Feng voltou a casas, com Réal Bouchard, que era empregado aqui, no escrit6rio do doutor Yvon Vachon, meu colega, E assim a vida, Enfim, A abertura do testamento far-se-4 na presenga dos seus dois filhos: Jeanne Marwan ¢ Simon Marwan, ambos com vinte e dois anos e nascidos ambos a 20 de Agosto de 1980, no Hospital Saint Frangois em Ville-Emard, nio muito longe daqui. Segundo a vontade do testador, ¢ em conformidade com 4s disposigdes ¢ os diteitos da senhora Nawal Marwan, 0 notirio Hermile Lebel é nomeado executor testamentiro, Fago questio de vos dizer que essa foi a decisio da vossa mie, Pessoalmente, eu era contra, desaconselhei-a, mas cla insisiu, Eu teria podido recusar, mas nao fui eapaz. ONorkx10 abre 0 envelope, ‘Todos os meus bens serio repartidos equitativamente entre Jeanne e Simon Marwan, flhos gémeos nascidos do ‘meu ventre, O dinheiro sera legado equitativamente a um € 2 outro, e 0s meus méveis serio distribuidos consoante a vontade deles ¢ as suas preferéncias. Em caso de ltigio ‘ou desentendimento, o executor testamentirio deverd vender os méveis eo dinheiro deverd ser repattido equi- tativamente entre o gémeo e a gémea. As minhas roupas| serio entregues a uma obra de caridade escolhida pelo executor testamentirio. Ao meu amigo, 0 notério Hermile Lebel, lego a minha ‘caneta preta de tinta permanente, { ‘A Jeanne Marwan lego 0 casaco de sarja verde com ains- | crigio 72 no interior. | ‘A Simon Marwan lego o caderno vermelho. O Noranio apresenta os tris objectos. E de rosto voltado para o chio. Deponhamn-me no fundo de uma cova, Testa-de-ponte contrs 0 mundo. Alaia de despedida, Lancem sobre mim Cada um de vés Um balde de iguafresca. Em seguida lancem a terra ¢ selem o meu timulo, Lipide e epitafio. ‘Ao notirio Hermile Lebel ae Notirio e amigo, Nenhuma lfpide devers ser colocada ‘Nemo meu nome gravado. Nio hé epitifio para aqueles que no cumprem as suas promessas. promessa que nio foi cumprida, fio para aqueles que se calain ‘Nao hi epitifio para um nome ausente numa Lipide ausente, Nio hé nome. “eens A Jeanne e Simon, Simon e Jeanne. ‘A linfancia é uma faca cravada na garganta, Nao é facil retii-te, Jeanne, (© notirio Lebel entregar-te-d um envelope. Esse envelope ndo é para ti, E para o teu pi, ‘Tou pai ede Simon ‘Vai procuri-lo e entrega-Ihe esse envelope. Simon, notério Lebel entregar-te-d um envelope. Esse envelope nao & para ti E para o teu irmio, ‘Tes irmio e de Jeanne. ‘Vai procuré-lo e entrega-the esse envelope, Quando esses envelopes forem entregues a0 seu destina~ Urio Ser-vos-d entregue uma carta. ar Osiléncio seré quebrado E poderi entio ser posta uma pedra no meu timulo Eo meu nome gravado na lipide 20 sol. Longo siléncio, Simon Bla tinha que vir chatear-nos até ao fim! A sacana! ‘A puta velha! Sacana de merda! Filha da puta! Cabra! Velha de merdat Velhaca! Tinha que vir chatear-nos até acabou! Puta de merdat Por esta é que eu nfo esperavat ‘Nio esperava mesmo! Preparou bem o seu golpe, pla~ rneou bem as coisas, essa grande puta! Vou dar cabo do seu cadaver! Enterrada de cara volteda para o chao! Pois sim! Vamos € cuspirthe na cara! Silencio, Eu, pelo menos, vou cuspit! Silencio, Morreu, mas antes de morrer pés-se a pensar como € que nos havia de lixar ainda mais a vida! Sentou-se, pds-se rmatutar, e descobriu! Fazer o seu testamento! A merda do seu testamento! Herre Leet. Els redigin-o hi cinco anos! Smaow Quero li saber quando é que ela o redigiu, Ok? Horan Lenet. Ougam! Ela morreu! A vossa mae mor- eu! Quero dizer que éalguénr que morreu. Alguém que rndo conhecemos muito bem mas que, mestno assim, foi alguém. Que foi jovem, que foi adulta, que foi velha ¢ que depois morreu! Entio, hé certamente uma Gio no meio disto tudo! E uma coisa importante! Quer dizes, essa mulher viveu uma vida, caramba, deve ter 0 seu valor! f i Suto Nio vou chorar. Juro que néo vou chorar! Ela mor- eu, sim, e depois?! Que se lixe! Que se lixe, merda! Nao devo nada a essa mulher. Nem uma légrima, nada! Que digamo que quiserem! Que nio chorei a morte da minha mie! E eu respondo que mio era a minha mie! Nao era nada! Que se lixe, earagas, que sc lixe! Nao vou pér-me a fingir! Nem desatar a chorar! E ela, chorou por mim? Ou pela Jeanne? Nao era um coragio que ela tinha no peito, cra um tjolo! Nao se chora por um tijolo, nio, nao se chora! Que coragio? Um tjolo, merda, um Nao quero ouvir falar mais sobre isso! Nao quero saber disso para nada! Hoenn: Lepet Mas ela manifestou uma vontade em rela- «io a vocts. Os vossos nomes sio referidos, nas suas tti~ mas vontades... Simox Grande coisa! Somos seus filhos e o senhor sabe mais sobre ela do que nds! Grande coisa que 0s nossos nomes sejam referidos! Grande coisa! Herons Lest. Os envelopes, o caderno, 0 dinheiro... Siow io quero o dinheiro dela, nfo quero o caderno. Se ela julga que me comove com a merda do caderno! imas vontades! Procura o teu pai Porque é que nio procurow cla, jé que isso era tio importante? Merda! Porque é que ela nio se importou connosco, se precisava tanto de um Porque é que na merda do testamento nao diz uma énica ‘vez os meus filbos para falar de nés? A palavea fitho, « palavra filha! Eu no sou parvo! Porque é que ela diz os ‘gémeos?! «A gémea, o gémeo, as criangas safdas do meu ventre>, como se se tratasse de vomitado, de um monte de merda que ela foi obrigada a eagar! Porqué?! Heras Less Ougam, eu compreendo! 333 Stow _O que & que m podes compreendes, imb SIMON Como é que pode levi-la 2 séxio? Quer dizer! Hermie Lens Compreendo muito bem que depois de ‘Durante dez anos ela passa os dias no Pelicio da Justiga se ter ouvido o que acabaram de ouvir se fique assara~ 4 assistir a julgamentos incrivelmente complicados de pantado a perguntar o que é que se passa, quem somos inos de toda a espécie e depois, de um dia ngs € porque é que isto est4 a acontecer! Eu compreendo, sala-se nunca mais diz uma palavra! Cinco compreendo perfeitamente! Nio é todos os dias que s¢ sarambal Nem uma palavra, nem um som, fica a saber que um pai que se julgava morto afinal zinda ica marada, marada de todo, ¢ esta vivo, e que se tem um irmdo algures, nalguma parte inventa umn marido ainda vivo, que ji morreu ha que tem- do mundo! (POs, ¢ um outro filho que munca existu, perfeita efabula- Siwox Nao hé pai nenhum, no hé irmfo, isso é tudo um so do filko que ela teria sido capaz de amar essa sacana,¢ disparate! agora quer que eu vi procurs-lo! Se depois disto 0 senhor ‘Heaxre Lenrt, Disparate, no! Num testamento no hi ainda & capaz de me falar de tltimas vontades... disparates! Heroite Luss Cal Simon O senhor no a conhece! Simow Se depois disto conseguir convencer-me de que se HeRMiLe LeweL, Conhego-a de uma maneira diferente! rimas vontades de alguém que ainda nio pe Siow Scja como for, nio me interessa discutir consigo! Hemme Lene. Hi que confiar nela! Heras Leet Cali Simon Nao me interes... | Stow Merda! Porra Herons Leset Ela tinha as suas razdes. | Silencio. Simon Nio me interessa discutir consigo! Tenho um Hrste Live. Pois é pois é mas confesse que também combate de boxe daqui a dez. dias, e por isso no quero std a exagerar um pouco... Nao se, nfo tenho nada com saber! Vamos enterré-la, pro isso, tem razao, ela esteve calada durante mujto tempo, ¢ funeréria, compramos um c de facto a primeira vista parece um acto tresloucado, mas pomos 0 caixio na cova, detamos terra na cova, pomos talvez nifo sea! Quer dizer, talvez seja outea coisa. Nao ‘uma lpide em cima da terra ¢ 0 nome dela na lépide e ‘quero ofendé-f, mas se se trata de um acto de loucua despachamos isto! cla Zo voltaria falar nisso. E mesmo assim, nowtro dia, Henwie Lesst E impossivel! Nao sfo essas as vontades ‘ow melhor: na outra noite, como sabe, néo pode negi- «da vossa mie, eu no permitirei que se vi contra as von- clo, cla lembrou-se de vocés. E nio vena dizer-me que tades delat se tratou de uma coineidéncia, uma obra do acaso! Eu ei Simon E quem és tu para te opores? ‘io acredito nisso! Quer dizer, ea um presente que ela Herarie Lent. Sou, infelizmente, 0 seu executor testa~ vos dava. © melhor presente que ela poderia oferecer ‘mentério, endo tenho a mesma opiniao sobre essa mulher! -vos! Acho que isso tem a sua importancia! No dia e na Be 335 hora do vosso aniversirio, cla volta falar! Eo que foi que cla disse? Disse: «Agora que estamos juntos, € melhor» “, entio cu vou esquecer. Esquecerei a aldeia, as a6 tanhas © o campo € 9 rosto da devastados do meu pai mie e os olhas Nawat Nao se esquece, Sawds, guranto-te, Mesmo ass Elas parce 14, IRMAO E IRMA Staton diante de Jeanne, Siow A universidade anda & tua procura. Os teus colegas andam 4 tua procu \-me, toda a no sabem 0 que fazer.» Eu procuro-t io atendes Jeanwe © que que tu queres, Simon? Porque vens a , v Simon Porque toda a gente pensa que morrest. Juans Eu estou bem. Podes ir eimbora Suson Nio, tu nio est Jeanne Nao grites, Sion Estas fazer o mesmo que ela. ANNE _O que eu fago s6a mim diz respeito, Simon, oN Nao! Também me diz respeito! Tu s6 me tens a sm e eu nao me vou embora nu fazes como ela, s-te. Jé no dizes nada. Como ela, Ela un chega 2 easa e fecha-st to. Fica sentada, U Dois dias. Trés dias. Nao come. Nao bebe. Desapa- rece, Uma ver, Duas vezes. Trés vezes. Quatro vezes. Regressa. Cala-se. Vende os méveis. Jé nio tens méve O telefone tocava e ela nio atendia, O teu telefone toca ‘tu nfo atendes, Ela fechava-se em casa, Tu fechas-te em casa. Ecalas-t. Jeanne Simon, senta-te aqui ao péde mim e escuta. Escuta ‘um pouco, Jeane passa um dos auviculares do sex auscultador a Snaon, ue 0 encosta ao onvido, JEANNE encosta 0 oxtro csuricular ao ouvido dela, Ambos escutam 0 silncio. Jeane Ouve-sea respi Snwow Estisa escutaro si Jeanne Bo seu siléncio. Nawan Dil, diay re, Sion Estés a enlouquecer, Jeanne, Jeanne Que sabes tu de mim? E dela? Nada. Nao sabes nada. Como € que fazemos agora para viver? Simon Deltas fora as cassetes. Regressas 3 universidade. Continua a dar as tuas aulas ¢ concluis o teu doutora- Jeanne Estou-me nas tintas para o doutoramento, Simon Estis-tenas tintas para tudo! Jeanne Néo vale a pena explicarte, ndo ias entender. 1 ¢1 so 2, nem isso tu entendes! Simon Contigo s6 se pode falar em mtimeros! Se 0 teu pro~ fessor de matemitica te dissesse que estavas a enlougue- cer, tu davas-lhe ouvidos. Mas ao teu imo, nio. Ele & demasiado escipido, demasiado bronco! ast Juanne Jé disse que me estou nas tintas para © dovtora~ ‘mento! Ha qualquer coisa no siléncio da minha mae que x quero entender, que EU quero entender! Stow EEU digo-te que nio ha nada para entender! Jeanne Esum chato. Simon Eu és uma chata. Jeanne Vai-te embora, Simon! Nao devemos nada um a0 outro! Sou tua irmé, nao sou tua mae, tu és meu emo, ano és meu p Simon Ea mesma Jeanne Nao, nao éa mesma coisa! Jeanne Deixa-me em paz, Simon. Smrox O notirio espera-nos daqui a ts dias para asinar 0 papéis. Tu vais 2... Vais li Jeanne... Jeanne... Res- ponde, vais? Jeanne Sim, Agora vai-te embora. SIMON vai-se embora. Nawat Sawa caminham lado a lado. jim, ha, kha, dl, dl, re, Nawat Outra vez desde o prineipi Jeanne Porque nao disseste nada? Diz qualquer coisa, fala comigo. Estés sozinha. Antoine nio esta contigo. Sabes ue ele esté a gravar-te. Sabes que cle nfo escutard nada. Sabes que ele nos entregard as cassetes. Tu sabes. Perce- beste tudo. Entao fala! Porque nao me dizes nada? Por- que nao me dizes nada? Jeanne lige 0 seu walkman, 15. O ALFABETO Nawat (19 anos) ¢ SawDa numa estrada com o sola pino. Sawpa Aleph, Aleph, bé, 1, s2a, jim, hi kha, dl, dal 8, 24, sin, shin, sid, ddd, ci, 284, ainn, rainn, fa, kia kal, Jim, mime, notin, hah, lamaleph, wav, ya. Nawan E isso, o alfabeto. Hi vinte e nove sons. Vinte ¢ nove letras. Séo as tuas munigdes, Os teus cartuchos. Deves conhecé-las sempre. Quando as colocas umas 40 lado das outras, formam-se palavras, Sawpa Ola. Chegimos i primeira aldeia do Sul. E a aldeia dde Nabatiyé. Aqui hié um primeiro orfanato. Vamos ver, Elas eruzam-se com Jeanne. Jeans escuta o silencio, 16, POR ONDE COMEGAR Jean chega ao paleo do teatro. ‘Miisica tonitruante. Jeane (cbamando) Antoine... Antoine... Antoine! —_ Antowse chega. A mitsica etd demasiado alta para que consigam conversar, Awrowne faz-the umm sinal para espe- tar. A mitsca par Awrone Eo téenico de som do teatro. Estéa fazer testes de som. Jeaxne Antoine, ajude-me ‘Awromve Que quer que faa? Ieanwe Nido sei por onde comegar. ‘Antone E preciso comecar pelo pr Jzaxwve Nao ha nenhuma logica. Antoine Quando é que a sua mic deixou de falar? Jeanne No Verio de 97. No més de Agosto, No dia 20.No dia do nosso aniversirio, Entra em casa ¢ cala-se. Ponto final. Anois O que é que aconteceu nesse dia? Jeanne Nessa época, cla estava a acompanhar uma série de julgamentos no Tribunal Penal Internacional. Antorne Porqué? Jeanne Por causa da guerra que assolou o pais onde nasceu. ‘ANTOINE Mas... enesse dia? Jeaxne Nada, Nada, Lie volte ler os autos mais de eem veves para tentar perceber. Awroie E nio descobriu mais nada? Jeanne Nad. Sé uma pequena fotografia. Ela jé ma tinhe mostrado, Ela, com 5 anos, na companhia de uma das suas amigas. Veja Mosera-the « fotografia. ANTOINE examina a fotografia. Nawat (19 anos) eSawpa no orfanato deserto. Nawat Que aconteceu? Sawpa Nao sei. Nawat, Eas criangas, onde estio? Sawpa Ji nio ha ctiangas. Vamos ver em Kfar Rayat, Eli que fea 0 orfanato mais importante. Awrowne guarda a fotografia. Awrore Empreste-me esta fotografia. Vou mandé-la ampliar. Observé-la-ei por si, Estou habituado a prestar tengo 20s pequenos pormenores. E preciso comecar Por ai, Sinto a falta da sua mie, Parece que estou a vé-ls, ipio. 36 Sentada.Silencioss. Nio tinha um olhar louco. Nzo tiaha um olhar vago. Lucida e decidida, Jeanne Que é que estés a ver, mama, que é que estés aver? 17, ORFANATO DE KFAR RAYAT Nawat. (19 anos) ¢ Sawoa no orfanato de Kfar Rayat. NawaL No orfanato de Nabatiyé nao havia ninguém. Entio viemos aqui. A Kfar Rayat. Méo1co_ Nio deviam ter vindo. Aqui também jé nio hi criangas. Nawat Porqué? Méprco Ea guerra, Sawn Que guerra? Mépico “Quem sabe? Ninguém entende, Os irmios dis- pparam contra os irmaos e os pais contra os pais. Uma guerra. Mas que guerra? Um dia chegeram quinhentos mil refugiados do outro lado da fronteira. Disseram: «Nio quero morter!» Ea frase mais imbecil que ou © Howe Por favor, deixe-me ir embora! fo. Chamo-me Nihad. Fo. ‘égrafo de guerra. Ola. Fui eu que fotografi tudo isto. Nitta mostra-the uma serie de fotografia. OHO: pessoas a d matei! Juro, OHlomen Acredito, do fordgrafo maquina fotografica de temporizador aitom. disparador dgil. Nusa oll disparos fotografando 0 homer. Tirs do seu saco wma grande fia adesiva e amarra a maquina fotogrifica 3 do cano de espingarda © que é que estéa fazer... A méquina fotogrifica esté bem expingarda. omen. Nutap Kirk, [am very happy 10 behereat «Star TV Show»... ‘Thank to you, Nihad. So Nibad, what is your next song? My next song will be a love song Iis new on your artiere, Nihad You know, wel, wrote this song when Twas war: War Ye Tewill bea plazer to he No problema, Kurk Nurap toma a levantarse e faz pos a servir de Sonoriza as 32 batidas de bateria de Roxane, dos The Police, fazendo nin, nin, nin, nin... e depois canta a can- sii, desurpanda a ltrs. 32, DESERTO Horasite Lepet e Simon no meio do deserto. Staton Nao hé nada aqui Herwie Levet Mas o miliciano disse-nos que fossemos por aqui! Smton Também nos podia ter mandado & merda. Herwate Lesez Porque é que cle fata isso? Simon Porque nio? Hersie Lever, Ele foi muito correcto! Disse-nos que fossemos procurar um certo Chamseddine, 0 chefe espi- rieual de toda a resisténcia da regio Sul. Disse-nos que seguissemos por aqui e nds vamos seguir por aqui. Swson Eselhedisserem para disparar uma bala na cabeca... Hees Lesgt io vejo porque é que alguém me diria ‘que fizesse uma coisa dessas! Sion Bom, entio o que é que fauzemos? Hoerwiue Less. O que quer fazer? Sion Abrimos o envelope que eu devo entregar 20 meu irmio! Paramos de brincar aos segredos! Hoxsate Lest Nem pensar! Simon © que é que me impede? Henvate Leset Ouve bem, meu menino, porque cu nto vou repetir isto daqui até Matusalém! Este envelope nio te pertence. Pertence so tew irmio! 40 Simon Sim, e depois? Heraate Leper Olhs-me bem na menina dos olhos! Fazer isso € 0 mesmo que cometer uma viol Simon Ola, até calha bem. Tenho antecedentes! © meu pai é violador. Horas Last Nio foi isso que eu quis dizer. Simon Ok. Esté certo! Nao se abre a merda do envelope. Mas, caragas, assim no vamos encontré-lo! Heraite Lenat Ao senhor Chamseddine? Simon Nio! Ao meu irmio! Henan Lens Porque’ Simon Porque ele morreu! Ca disse- ram-nos que nessa época as milicias raptavam as criangas para as fazer explodir nos campos de refugiados. Por- tanto, ele morreu. Fomos aos campos de refugiados © lé falaram-nos dos massacres de 1978. Mais uma razio para le estar morto, Mesmo assim, fomos falar com um mili- iano que veio do mesmo orfanato, e ee disse-nos que embra de muita coisa, a nfo ser de um rapaz que nio tinha pai nem mie, que um dia partiu e que deve ter sido morto. Entio, se nio estou em erro, ele morreu 20 fazer-se explodir como uma bomba, ou mor rreu degolado, ou morreu, foi dado como desaparecido. ‘io muitas mortes. Portanto, acho que podemos esque- eer 0 Cheik Chamseddine, Henaate Least, Pois 6 pois é! Mas se quisermos ter a cer- iano mandou-nos procurar o senhor Cham- seddine, que era o chefe espiritual de toda a resistncia durante a guerra contra o exército que invadiu o Sul. Ele deve ter os seus contactos. Sio pessoas altamente coloca- das. Politicos. Sabem dessas coisas. Estéo a par de tudo. Porque nio? Talvez.o seu irmio esteja vivo, no sabemos! gor Descobrimos o seu nome, 0 que éjé qualquer coisa: Nihad Harmannit Simon Nihad Harmanni, Hernate Lesst, Harmanni, bem, hi guase tantos Har- mani como Tremblay na lista telef6nica, mas sempre descobrimos qualquer coisa. O senhor Chamseddine vai dizer-nos! Snow E onde vamos desencantar 0 senhor Chamseddine? Henamr Lenet. Nao sei, talvez... poral Simon Aliéo deser HeRMILe Lenet. Pois 6! Justamente! # um bom esconde- rijo! Essa gente deve estar escondida! Quer dizer, esse senhor Chamseddine néo deve estar inscrito no clube de video da esquina, nem telefona 2 encomendar pizas havaianas! Nao! Ele esconde-se! Talver esteja a observar- ~nos, por isso prossigamos, tavezele venha ter connosco a perguntar-nos o que fazemos no seu teritério! Sion Que raio de filme é esse? Henaate Leset Nio, ¢ sério, Simon! Sarwane! Vamos! ‘Vamos ver, ¢talvez encontremos 0 sabe! Talvez.o seu irmao seja um not remos discutir mimutas e actos notariais. Ou entfo um vendedor de hortaliga, um dono de restaur ‘vejao caso de Trinh Xiao Feng, ele era general no exército vietnamita ¢ acabou a vender hambuirgueres na avenida ‘Cure-Labelle,¢ depois Hui Huo Xiao Feng voltow a caser com Réal Bouchard! Nunca se sabe! Talvez o seu irmio tenha casado com uma americana rica de San Diego, ver. tenham tido oito filhos e vocé seja oito vezes «tion. Nio sabemos. Prossigamos! Prosseguem o seu caminho. 33, OS PRINC[PIOS DE UM FRANCO-ATIRADOR Nittap de espingarda com a maquina fotogrifica presa a0 cano, dispara. Surge wma primeira fotografia de um homem a correr. Ninian desloca-se e volta a dsparar. Surge uma fotografia do mesmo bomem mortalmente atingido jab. Nuxap You know, Kirk, sniper job is fant can you talk about this? Yeah! It is an artistic job. Because a good sniper do qualquer maneira, no, no! I have alot of principles, Kick! First: When you shoot, you have to for not fazer sofrer a person. Sure! Segundo: You shoot all che pessoas! Is equitable com tods a gente! But for me, Kiek, my gun is like my life You know, Kirk, Every bala que coloco na espingarda Is like a poera. | | And I shoot a poema to the people and it is the preci- sZo of my poema que mata as pessoas ¢ é por isso que as ‘minhas forografias sio fantésticas. ‘And tell me, Nihad, you shoot everybody. No, Kirk, not everybody. imagine that you don't shoot children. Yes, yes, I kill children. No problem. Is like pigeon, you know. |, imediacamente, 43 So? 1 don’t shoot women like Elizabeth Taylor. Eliza- beth Taylor isa strong actriz. T don’t want to kill Elizabeth Taylor. So, when I see 2 woman like her, [don’t shoot her. You don't shoot Elizabeth Taylor. No, Kirk, sure not! Thank you, Nihad. Welcome, Kirk. Nunap levanta-se, pie a espingarda ao ombro e volta a disparar 34. CHAMSEDDINE Stow e Heme Lever diante de Cuawsepine, Nawat (45 anos) Horace Less Lé que procurimos, procurdmos! A es- querda e direita! Senhor Chamseddine, para aqui, senhor ‘Chamseddine para ali, e nada! O senhor é conhecido por Caracas Ardente, mas nio é ficil de encontrar. Cramseopine Tw 6s 0 Sarwane SmM0N Sou, Cuamseppine Quando soube que a tua irmi estava aqui hha zona, pensei: «Se Jannaane no vier procurar-me, Sar= wane vir.» Quando soube que o filho da mulher que canta me procurava, compreendi que ela tinha morrido. Nawaz Quando voltares a ouvir falar de mim, jé nfo esta- reineste mundo, Siow Procuro o filho que ela teve antes de mim. Cuauseponve Antes de ela sair do pais, eu perguntei-the: Eo teu filho?> Nawat. Esti vivo e perdido, Wahab est vivo e perdido. Eu e perdida CHamseppine Nao posso. StmON Disseram-me que conhecia toda a gente. Cuasepine Esse nao conheco. Sm4oN Chamava-se Nibad Harmanni. Cuansepoive Porque falas de Nihad Hermaani? Simow Um miliciano conheccu-o em criange. Entraram juntos para a mila, e depois ele perdeu-lhe o rasto. Ele dissc-nos: «Chamseddine deve t2-lo levado e matado» Disse-nos que 0 senhor esfolava cada miliciano e soldado estrangeiro que os seus homens apanhavam. CtawsepDine Ele disse-te que Nihad ere o filho da mulher que canta, aquele que nasceu da ligagio dela com Wahab falar da mulher que canta. Disse-me apenas que Nihad Harmanni tinha estado em sua casa, Cuaseppine Entio como podes afirmar que ele € o filho Lebel, notirio, executor testamentério da mulher que canta. Senhor Chamseddine, eu posso explicar facil- ‘mente: tudo bate Cuamsepoine Explica HerMite Lear Um quebra-cabecas tramado! Fomos pri- rmeiro 8 aldeia natal da senhora Marwan. Isso conduziu- -nos a Kfar Rayat. Ai, seguimos vérias pistas em fungio 425 das datas da chegada 20 orfanato de alguns rapazes. Toni ‘Mubarak, nio, nfo é ele, encontrou os pais quando a guerra acabou, tipo desagradivel e absolutamente nada ‘meigo. Toufic Hallabi, mas também no éele, fz uns cre- pes excelentes no Norte, ao ado das ruinas romanas, nio € da regio, 0s pais dele morreram, foi a irmi que 0 pos no otfanato de Kfar Rayat. Seguimos outras duas pistas falsas e depois acabamos por encontrar uma mais consis- tente, Essa pista conduzit-nos a uma familia Harmanni, cujos elementos jé morreram. O mereeeiro falou-nos do filho adoptivo dessa familia. Disse-nos o seu nome. Eu fui consultar um colega, 0 notario Halabi, bastante simpético, que tratou dos assuntos da familia Harman. Ele contou que Roger ¢ Souhayla Harmanni, que nio podiam ter filhos, ao passar por Kfar Rayattinham adop- ‘ado um rapaz 2 quem deram o nome de Nikad. A idade do rapaz.¢ a sua entrada no-orfanato coincidiam - mente com o que nés sabiamos sobre a senhora Nawal Mas, sobretudo, esse rapaz era o tinico dos nossos can- dlidatos ater sido levado para o orfanato pela parteira da aldeia da senhora Nawal. Uma certa Elhame Abdeliah, Perante isto, compreende, senhor Chamseddine,ficémos convencidos de estar na pista certa. Ciausepoive Se a mulher que cant decidiu confiar em ti, € porque és nobre e digno. Mas sai E deixa-nos a sos Heraie Lene sai Cuiamseppine Sarwane, chega aqui e escuta. Escuta com atengio. 35. A VOZ DOS SECULOS PASSADOS Herrvite Leste e JEANNE. Horo Lest Ainda nao disse uma palavra. Ficou com Chamseddine e quando saiu, Jeanne, 0 seu irmio tinba © mesmo olhar da sua mie. No disse uma palavra 0 dia inteizo, Nem no dia seguinte, nem no outro. no hotel. Eu sabia que voce estava em Kfar Rayat. Nao {queria arrancé-Ia 4 sua solidio, mas Simon ficou calado, Jeanne, ¢ eu tenho medo. Talvez tenhamos exagerado um pouco para conhecer a verdade. Jeanne e Simon sentados um em frente do onro. Siion Jeanne. Jeanne. jzanne "Simon! a Sempre me disseste que um mais um sio dois. Isso éverdade? Jeanne Sim... Bverdade... Simon’ Nao me mentiste? Jeanne Claro que nio! Um e um sio dois! Simon Nunca podem ser um? Jeanne O que é que tu descobriste, Simon? Simon Um mais um podem ser um? Jeanne Sim. Simon Como? Jeanne Simon, Smion Explica-me! - Jeanne Merda, alo é altura para matemitica, diz Id 0 que & que descobriste! Sion Explica-me como é que um mais um sio-um, sem- pre me disseste que eu nio compreendia nada, entio agora é a aleura cerca! Explica-me! “7 Jeanne Esti bem! Hi uma conjectura muito estranha em rmatemnitica. Uma probabilidade que nunca foi demions- tuada, Dizes um nuimero ao acaso, um mimero qualquer. Se o mimero for par, divide-se por dois. Se for impar, smultipica-se ports eaerescenta-se wm. Faz-sea mesma coisa com o mimero que se obtém. Essa conjecturaafirma ‘que pouco importa o niimero de partida, o resultado & sempre um. Diz. um niimero. Smiox Sete. Jeanne Bom. Sete é fmpar. Multiplica-se por tes e acres- centa-se um, 0 que dé... Simon Vite © Jeanne Vinte edois é par, divide-se por dois. Sreon Onze : Jean Onze é impas, multiplicase por tr8s acrescenta- Snow Teinta e quatro. Juans Trinta ¢ quatzo é par. Dividesse por dois, 17. Dezassete & impar, mulkiplica-se por trés, acrescentarse ‘um: 52, Cinquenta e dois € par, divide-se por dois: 26. Vinte seis é par, divide-se por doi impar. Multiplica-se por tr85, acrescenta-se um: 40. Quarenta é par. Divide-se por dois: 20. Vinte € pat, dese por Cinco é fmpar, Dezasscis dois: 10. Dez. & pas divide-se por doi ‘mulkiplica-se por ts, acrescenta-se um: & pas, divide-se por doi ito 6 par, divi dois: quatros quatro é par, divide-se por dois: ar, divide-se por dois: um. Pouco importa o ntimero de partida, chega-se sempre 2... Nao! Simo Calas-te. Como eu me calei quando compreendi. Eu estava na tenda de Chamseddine, ena tenda vi o siléncio engolir tudo, Hermile Lebel saiu. Chamseddine ot aproximou-se de mim, Crramseopine Sarwanc, nlo foi o acaso que te guiow até nim. Hi 0 espirito da tua mie, © espirito de Sawda, 'h amizade das mulheres como uma estrela no céu, Um dia, um homem veio ter comigo. Era jovem e orgulhioso. Estés a vé-lo? E 0 teu irmio. Nihad. Procurava um sen- tido para a vida, Disse-the que combatesse por mim. Ele oeitou, Aprendeu a manejar as armas. Um grande atira~ dor. Temivel. Um dia, foi-se embora, Onde vais? pergun- teilhe eu, Nimap Vou parao Norte! Ciiamseppine E a causa da gente daqui? Os refugiados? Eo teu sentido para a vida? Niap io hi causa, no ha sentido. Cannseopnee Partiv, Ajudei-o um pouco, Mandei que © vigiassem. Acabei por compreender que ele tentava encontrar amie, Procurou-a durante anos, sem a encon tear Entio comecou a rit por tudo e por nada, Sem casa, Som sentido para vida, tornou-se franco-atirador. Colec- Gionava fotografias. Nibad Harmanni. Com fama de ser fom avténtico artista. Ouviarm-no cantar, Uma méquina de matar, Depois houve a invasio do pats pelo exército testrangeiro, Foram até20 Norte, Usa mank, prenderam- no. Ele matara sete dos seus atiradores, Visaraos olhos. A bala na mira tlescpica. Nio o mataram. Aproveitaram- no, formaram-no, deram-Lhe trabalho. Siwior’ Que trabalho? Caauseppixe Numa prisio que cles tinham acabado de construir, no Sul, em Kfar Rayat. Procuravam um hhomem que se ocupasse dos interrogatdrio. Snow Entio ele trabalhou com Abou Tarek, o meu pai? Cranseppine Néo, teu irmio nfo trabalhou com 0 teu 49 pai, O teu irmio € 0 teu pai, Mudou de nome. Esque- ceu Nikad. Passou a ser Abou Tarek. Procurou a mie, encontrou-a, mas aio a reconheceu. Ela procurou 0 filho, encontrou-o e nio o reconheceu, Ele nio a matou porque ela cantava e ele gostava da vor dela. O céu cai, Sarwane. torturow a tua mie € a seu filho € 0 filho vio iro e da sua irma, voz. E as estrelas calaram-se em mim por um segundo, las guardaram silencio quando hé pouco promunciaste 0 nome de Nihad Harmanni.E vejo que as estrelas também se calaram dentro de ti. Denteo de tio siléncio, Sarwane, Nutap Nao contesto nada do que foi dito no meu julga- mento sobre esses anos. As pessoas que disseram que eu as torturei, & verdade, torturei. E aqueles que me acusam de ter matado, matei. Aliés, quero agradecer- -lhes, pois eles permitiram-me fazer fotogeafias de uma grande beleza, Aqueles que esbofeteei ¢ aquelas que violei tinham sempre um rosto mais comovente depois da bofetada e depois da violacio do que antes de ev ter feito isso. Mas 0 essencial, o que eu quero dizer, é que o processo que me moveram foi chato, aborrecido, mor- tal. Nao havia mésica suficiente, Entio vou cantar-vos uma eangio. Digo isto porque & preciso salvaguardar a dignidade. Nao sou eu que o digo, é uma mulher, aqucla a quem chamavam a mulher que canta. Ontem, ela veio falar-me de dignidade, cara a cara. Salvaguardar 0 que nos restava de dignidade. Bu reflect, eachei que ela tink razio. Que este julgamento era uma chatice! Sem ritmo e 40 sem nenhum sentido do espectéculo, Para mim, o espec~ téoulo é a minha dignidade. Desde sempre. Nasci com ele. Creio que 0 encontraram no balde onde me colo- fearam quando nasci. As pessoas que me viram crescer Sempre me disseram que esse objecto era um vestigio das rminhas origens, de cera forma da minha dignidade, visto ‘que, segundo a historia, cle me foi dado pela minha mae. ‘Um pequeno nariz vermelho. Um nariz de palhago. O que significa isto? A minha digaidade é uma careta dei- yada por aquela que me deu a vida, Essa careta nunca me largou. EntZo deixem-me assumi-la e cantar-vos uma angio que eu compus, para salvaguardar a dignidade do terrivel contratempo. Coloca 0 nariz de palbaco. Canta, Nowa. (15 anos) dé élnz Nuian. Nowa (45 anos) dé a luz Jeanne ¢ SIMON. Nawat (6o anos) reconbece 0 PALM. Jeanne, Siow e Nisan esto todos juntos na mesma sala 36, CARTA AO PAL Jeanne entrega 0 envelope a Nisan, Nisan abre 0 envelope NawaL (65 anos) Nawat Escrevor 7 "As palavras, gostava de Ihas espetar no seu coragio de ceartasco. Carrego no ‘Tendo na meméria os nomes de todos aqueles que mor- teram is suas mios. ‘A minha carta nio o surpreenderd Ela serve apenas para Ihe dizer: aqui tem, Avsua filha € 0 seu filho estio diante d s filhos que tivemos estdo diante desi. © que vai dizer-Ihes? Vai cantar-hes uma cangio? Eles sabem quem voed é. Jeanne e Sarwane, ‘Ambos filho ¢ filha do carrasco e nascidos do horror. lhe bem para eles. A carta foi-lhe entregue pela sua filha, Atsavés dela, quero dizer-lhe que voce ainda esta vivo. Em breve ir calarse Eusei. Para todos, o siléncio esti diante da verdade. A mulher que eanta, Puran 72, Celan?7, Na prisio de Kfar Rayat Niviap acabe de ler a carta, Ota para Jeanne Simo. Rasga a carta 37, CARTA AO FILHO Simon entrega o sen envelope a Numan, que 0 abre. Navas Procurei-te por toda a parte, ‘Aqui, ali, onde quer que Fosse. Procurei-te sob a chuva, Procurei-te sob 0 sol, No fundo dos bosques No fundo dos vales No cimo das montanhas [Nas cidades mais sombrias Procurei-tea Sul ANorte, ALeste A Oeste Procurci-te eseavando sob a terra para af enterrar os mevs amigos mortos, Procurei-te olhando o eéu, Procurei-te no meio dos bandos de pissaros Pois tu eras um passaro. Eo que ha de mais belo do que um péssaro, ‘Um pissato cheio de uma irradiagio solar? Que hé de mais s6 do que um passaro Um pissaro s6 no meio das tempestades Levando até aos confins do dia o seu estranho destino? ‘Num instant, eras o horror ‘Num instante tornaste-te felicidad. Horror efelicidade. O siléneio na minha gargants Duvidas? Deixa-me dizerte Levantaste-te E enibiste esse nariz de palhaco. Ea minha memériaexplodia Nao tremas. No apanhes fro, Sio palavras an meméria Palavras que muitas vezes te se Na minha ecla Falava-te do teu pai Descrevia-te 0 seu rost. Falava-te da promessa que iz.no dia em que nasceste, Acontecesse 0 que acontecesse, amar-te-ia sempre, Acontecesse o que acontecesse, amat-te-ia sempre Sem saber que no mesmo instante estavamios, tu eeu, na nossa derrota, Visto que eu te odiava com toda a minha alma ‘Mas onde hé amor no pode haver édio E para preservar 0 amor escolhi cegamente calar-me. Uma loba defende sempre as suas crias. ‘Tens a tua frente Jeanne e Simon, Tua irma e teu irmio. E visto que nasceste do amor, Eles sio irmio e irma do amor. Escura. Eserevo esta carta com a frescura da noite, e-{ que a mulher que canta era a tua mie Talver também curecales, ‘ Hi a felicidade de estarmos juntos. Nirman acaba de ler a carta. Levanta-se. JEANNE ¢ SIMON levantam-se e enfrentam-no. Jeane rasga todas as péginas do seu caderno de aponta- ‘mentos. 38. CARTA AOS GEMEOS Heros Lear. abre o terceiro envelope destinado aos gémeos. Hensate Lee, © eéu esté a encobrir-se. Vai chover, pela certa, Nio querem ir para dentro? Notem, eu com- preendo. No vosso lugar, eu também nio queria. Isto aqui é um belo parque. No seu testamento, a vossa mae deixava-vos uma carta caso executassem 0 que ela vos peda. Vocés executaram-no brilhantemente. Vai cho- ‘ver. No pais dela munca chove, relrescar-nos, Ci estéa carta, Simon abre o envelope. Nawat Simon, Estas a chora Se chorares, nfo seques as tuas légrimas Pois eu nao seco as minha, ‘A Infancia € uma faca cravada na garganta Eu soubeste retiré-h, Agora, é preciso reaprender a engolir saliva. Por vezes, € um gesto muito eorajoso, Engoli a salva, Consolar cada pedago Lentamente Restaurar cada meméria Lentamente Embalar cada imagem. Jeanne, Estis a sorrir? Se estas, no refreies 0 teu riso, Pois eu nio refreio o meu, Bo riso da célera, das mulheres que caminham lado a lado. Podia ter-te chamado Sawda Mas esse nome, 20 ser soletrado, Em cada uma das suas letras E uma ferida aberta no fundo do meu coragio. Sort, Jeanne, sort Annossa familia, As mulheres da nossa familia, Estio todas cheias de e6lera. Eu estava cheia de e6lera contra a minha mie, Tal como tu estés cheia de e6lera contra Tal como a minha mae estava cheia de célera contra a mie dela, E preciso quebrar 0 fo, Jeanne, Simon, ‘Onde comega a vossahist6ria? No vosso nascimento? Entio eomega no horror No nascimento do vosso pai? Entio é uma grande histéria de amor. Mas recuando mai ‘Talvea se descul © sanguinério eviolador ‘Tem a sua origem no amor. Endo, Quando vos perguntarem a vossa Digam que a vosse histéria, a sua origem, Remonta ao dia em que uma rapariga Regressou 3 sua aldeia natal para gravar o nome Da sua avé Nazira no seu tmulo. Bal que comoga a hitéria, Jeanne, Simon, Porque nio vos fai disto? Hi verdades que s6 podem ser reveladas se forem desco- bertas. ‘Vocés abriram 0 envelope e quebraram 0 siléncio. Gravem o meu nome na pedra E coloquem a pedra no meu ti A.vossa mie Simon Jeanne, faz-me ouvir outra vez o seu siléncio. Jeane e Staton escutam o silencio da sua mite Chuva torrencial

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