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Jogos de linguagem e efeitos de

sentido da comunicação jornalística


Luiz Gonzaga Motta*

Resumo: Abstract
O artigo analisa os jogos de linguagem que se reali- This article analyzes language games in journalism. It
zam na comunicação jornalística. Discute as oscilações discusses the language variation between objectivity
de linguagem entre o nível referencial (objetivo) e o and subjectivity that happens on one hand to benefit
nível poético (subjetivo) que ocorrem entre a intenção efficiency and information economics and, on the other
de eficiência e economia informativa, por um lado, e hand, to benefit the whole communication experience.
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a experiência comunicativa integral, por outro. À luz The text explores dimensions such as pragmatism,
da filosofia da linguagem e das teorias pragmáticas, cognition and symbolism in journalism communica-
o artigo discute as dimensões pragmática, cognitiva e tion.
simbólica da comunicação jornalística. Argumenta que
a análise da comunicação jornalística deve observar os
jogos de linguagem entre os interlocutores em contexto
(a pragmática), partindo da informação referencial.
Mas, deve igualmente descortinar as dimensões cogni-
tivas e simbólicas.

Palavras-chave: Key words


Comunicação jornalística, jogos de linguagem, pragmática, Journalism communication, language games, pragmatism,
efeitos de sentido meaning effects.
1. Introdução ce dos interlocutores, podendo variar desde

Autores de filosofia da linguagem cos- as funções representativas referenciais e

tumam dizer que existe uma dicotomia objetivas até as funções cognitivas ou sim-

funcional básica na linguagem: ela serve bólicas de caráter mais subjetivo. Nos di-

para transmitir informações sobre o mun- versos discursos humanos, essas funções

do ou para repassar sentimentos, emoções costumam ocorrer simultânea e concomi-

ou atitudes do sujeito falante. Essas duas tantemente. Os jogos de linguagem ficam

funções básicas da linguagem recebem di- dependentes da oscilação entre as intenções

ferentes denominações na literatura sobre e os reconhecimentos dos sujeitos interlo-

o assunto: função representativa e função cutores em contexto, só justificando distin-

expressiva (K. Bühler); referencial e emo- gui-los no caso de uma análise.

tiva (R. Jakobson); ideativa e interpessoal Na comunicação jornalística, que me in-

(M. A K. Halliday). A função ideativa (re- teressa discutir neste artigo, há um pacto

presentativa, referencial) serve para a ex- implícito entre os interlocutores que pro-

pressão de conteúdos que provêm de nos- duz uma estabilidade e torna possível uma

sas representações sobre o mundo enquan- comunicação eficiente. O objetivo do texto


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to a interpessoal (expressiva ou emotiva) (verbal ou não verbal) da notícia ou repor-

permite a expressão de atitudes pessoais tagem é transmitir informações de forma

e a configuração das relações entre os su- efetiva e econômica (no sentido lingüístico

jeitos falantes. A lingüística e a filosofia desses termos). Esse desejo é compactuado

da linguagem dão maior atenção à função pela comunidade de leitores (ouvintes ou

ideativa, considerada a função básica da telespectadores). Predomina uma intenção

linguagem, enquanto a pragmática se pre- de objetividade (busca da verdade) de am-

ocupa mais com a função expressiva, com bas as partes. As notícias e reportagens são

a relação entre os interlocutores. 1 produzidas para causar sempre um efeito 1


Ver Graciela Reyes (1994), La Prag-
de real (transmitir a verdade tal como ela mática Lingüística, Montesinos, Bar-
Na prática, essas funções não são exclu- celona, p. 93-94. Não concordo intei-
dentes, podem se apresentar ou se reali- existe no mundo físico e social) e a audiên- ramente com essa divisão das funções
da linguagem. Penso que a linguagem
zar de maneira superposta e inter-depen- cia está predisposta a acreditar no que lê,
expressiva ou emotiva é também
dente. Na maioria dos atos comunicativos vê ou ouve. Esse é o “contrato” prévio im- referencial tanto quanto representati-
va, como já observou P. Ricoeur. Mas,
ocorrem jogos de linguagem onde essas plícito no qual a comunicação jornalística não posso realizar essa discussão no
se realiza e o qual lhe dá estabilidade. contexto deste artigo.
funções ficam dependentes da performan-

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Mas, o ato de transmitir notícias, en- Todo ato comunicativo é um processo di-
quanto experiência criadora libera as nâmico, um jogo dialético de co-criação de
determinações e produz fenômenos di- sentidos entre um sujeito emissor e um
nâmicos de interpretações cognitivas e sujeito destinatário. Um princípio de con-
simbólicas onde intervêm processos in- trários, um jogo entre efeitos pretendidos e
tersubjetivos de natureza lingüística e resultados alcançados. Um jogo entre aqui-
extralingüística. O texto jornalístico es- lo que o emissor diz explicitamente, ou as
tabelece uma relação entre a capacidade intencionalidades implícitas no seu ato de
de o enunciador ativo oferecer instruções fala por um lado, e, por outro lado, as inter-
de “leitura” e a de o receptor reconhecer pretações lineares ou criativas que o recep-
essas instruções e confirma-las (ou não). tor destinatário leva a cabo no seu ato de
É do delicado equilíbrio entre o que o leitura. Em todo ato comunicativo, o emis-
jornalista pretende como sentido (sua in- sor transmite parte do seu conteúdo de for-
tenção) em sua notícia ou reportagem e o ma explícita, parte de forma implícita. Da
que o seu receptor confirma (ou não) que mesma maneira, o destinatário interpreta
as significações se realizam. Essas dimen- a mensagem, parcialmente, através de seus
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sões só podem ser apreendidas através de conteúdos literais, e, parcialmente, atra-
uma análise pragmática das notícias, que vés de estímulos implícitos, sugeridos pelo
É do delicado
começa com a compreensão das intenções enunciado. Mas, o destinatário acrescenta,
equilíbrio entre o
comunicativas. Neste artigo discutimos a recria a partir de suas próprias perspecti-
análise dos jogos de sentido na comunica- que o jornalista vas. Há em todo ato comunicativo uma con-
ção jornalística, sua estabi-lidade e suas pretende como frontação entre a estrutura de sentido pro-
transgressões. Sugerimos que esta análi- sentido (sua duzida pelo emissor em sua manifestação
se pode revelar as violações das máximas intenção) em e os modelos de mundo do leitor (mundos
“conversacionais” (máxi-mas de eficácia sua notícia ou possíveis).
comunicativa) na relação entre os interlo- Particularmente, o processo de comu-
reportagem e o
cutores e descortinar forças ilocucionárias ni-cação jornalística traz, de maneira ma-
que o seu receptor
diversas evocadas nos atos de comunica- nifesta ou latente, elementos desses dois
confirma (ou não)
ção jornalística. níveis do processo comunicativo, embora
que as significações na prática eles sejam muito difíceis de se
2. O que se diz e o que se comunica se realizam. diferenciar porque estão demasiado inter-
dependentes e superpos-tos. Só se justifi- vras, com as implicaturas e as inferências
ca separá-los para efeito de uma análise. que decorrem da força ilocutiva dos enun-
O nível de transmissão do explícito se re- ciados. Tradicionalmente, o jorna-lismo
fere ao ato de informar, de repassar infor- procura aumentar a eficiência informativa
mações específicas e concretas. Concerne ao máximo, objetivando a forma de suas
mais propriamente ao conteúdo manifesto mensagens e preservando-as de emoções ou
que está sendo repassado e que está liga- de valores. Mas isto não impede a sua per-
do à transmis-são objetiva de informações cepção pragmática nem a sua interpretação
de um emissor para um destinatário, e subjetivada ou poética. Assim, todo jorna-
por isso é mais facilmente quantificável. lismo é comunicação, embora nem toda co-
2
Tanto nos momentos de emissão
Sua análise concerne mais propriamente municação seja jornalismo, obviamente.2 como naqueles de recepção, é difícil
ao emissor, embora possa incidir também Grande parte do que significamos ou in- dizer quando predomina a linguagem
informativa (ideativa) ou a subjetiva
sobre o destinatário. terpretamos durante uma conversação não (expressiva) em certos enunciados. É
Outro nível, concomitante com o ante- está nas palavras que utilizamos, mas fora claro que a linguagem telegráfica dos
títulos dos jornais, por exemplo, tende
rior, refere-se ao processo de comunicação da linguagem propriamente dita. Os atos a ser muito mais objetiva, enquanto a
de uma poesia tende a ser muito mais
propriamente dito, e concerne aos vários de comunicação são regidos por acordos
120 subjetiva. Entretanto, nenhuma das
mecanismos de percepção simultânea das implícitos entre os interlocutores (inclusi- duas formas elimina a presença da
outra. Ver, a esse respeito, a interes-
diversas interpretações por parte dos in- ve o ato de comunicação jorna-lística), que sante discussão que faz Jorge Pedro
terlocutores que tomam parte no ato co- tornam possível não apenas compreender o Sousa na sua apostila As Notícias,
Universidade Fernando Pessoa, Porto,
municativo. Tem a ver, portanto, com uma significado literal das pala-vras, mas tam- 1994, Parte I. Diz o autor que pode
haver comunicação sem troca de infor-
troca de experiências onde intervêm inú- bém inferir outras signi-ficações a partir da mação quando há experiências com-
meros fatores objetivos, mas, princi-pal- força do enunciado. Esse acordo não é, ob- partilhadas sem qualquer lógica. Por
exemplo, um grupo de amigos calado
mente, aqueles fatores subjetivos e inter- viamente, de etiqueta nem de ordem moral em volta de uma fogueira repassa
subjetivos (memória , emoções, senti-men- ou ética, mas sim um acordo de ordem con- significados, mas não informações.
Assim, só há comunicação quando
tos, paixões etc.). A ação principal concen- versacional. Revela as intenções de quem a mensagem penetra nos valores
do receptor, pelo menos em parte.
tra-se no destinatário porque é ele quem fala e sugere, cooperativamente, interpreta- Por outro lado, informação é lógica
torna possível a performance da experi- ções para quem lê, vê ou ouve. Reajustamos – existirá uma troca mais eficiente de
informações se esta for liberada das
ência comunicativa integral. Tem muito a esses acordos permanentemente em nossas emoções e de outros conteúdos simi-
ver também com o comporta-mento “con- relações cotidianas com os nossos diversos lares, pois a informação é mais eficaz
quando é liberada dos seus elementos
versacional” dos interlocutores, isto é, com interlocutores, adaptando conti-nuamente “supérfluos”.
os significados que estão “fora” das pala- as expectativas, de maneira que cada co-

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municação seja um jogo diferente de pro- nome de implica-tura. As implicaturas de-
dução de sentidos em cada circunstância. vem definir-se e explicar-se de acordo com
Com facilidade, em nossas rotinas de vida os princípios que organizam a conversação.
entramos e saímos, rápida e inconsciente- São os efeitos de sentido que se insinuam
3
Como nos diz G. Reyes, nenhum ser mente, em inúmeros acordos conversacio- no ato comunicativo, que derivam tanto dos
humano é monolítico, somos seres
ambivalentes e contraditórios, sujeitos nais implícitos, adaptando-nos a cada cir- significados das palavras e sinais do texto
a variações ligeiras e profundas e não
cunstância sem nos darmos conta destes como de princípios estéticos, morais ou so-
podemos esperar que nossos atos de
fala sejam o que não somos. Usar a movimentos. Com-partilhamos automati- ciais subentendidos no ato comuni-cativo.4
linguagem significa usar palavras de
outros com sentidos e conotações que camente contextos cognitivos diversos, de As implicaturas surgem e são aciona-
nem sempre queríamos, mas dizemos. acordo com a relevância de cada um deles das pelas palavras e sinais utilizados pelo
Na medida em que a linguagem é um
fato social, pertence a todos e a nin- para nós em cada momento. É isto que enunciador, mas são independentes das
guém, ela é essencialmente multívoca.
torna possível a nossa contínua comuni- estruturas lingüísticas, não podem ser en-
A linguagem é plural por natureza.
Nossos entornos lingüísticos só coinci- cação diária com inúmeros interlocutores contradas no dicionário e dependem muito
dem parcialmente e de maneira im-
previsível. No entanto, comunicamos. em cir-cunstân-cias bastante diferentes. 3
mais do contexto do ato comunicativo do
Como é possível tal milagre diante de Os autores que se dedicam a estudar a que da linguagem ou palavras em si mes-
tanta variação e multiplicidade de sig-
nificados? Ora, nós comunicamos por- comunicação pragmática observam uma mas. Refere-se, portanto, à língua em fun-
que temos fé na linguagem que utiliza- 121
distinção fundamental: aquela que se cionamento, à performance comunicati-va
mos e nos princípios da comunicação.
Somos capazes de nos entender porque estabelece entre o que se diz (no jorna- na sua totalidade, como ato que objetiva
entramos em relação de cooperação
para comunicar. Reyes, Graciela, La lismo, a informação objetiva de cada no- produzir significados. Esses significados
Pragmática Lingüística, Montesinos, tícia) e o que se comunica. O que se diz vão além dos significados literais do relato
Barcelona, 1994, pags. 84-85
corresponde basicamente ao conteúdo da notícia, estão presentes na dêixis, nas
4
Ver Grice, H.Paul., Lógica y Conver-
proposicional do enunciado, aos fatos re- intertextualidades, na alternância de ênfa-
sación, in Luís M. Valdés Villanueva,
La búsqueda del significado, Tecnos, latados pela história descrita na notícia, ses, na retórica (hipérboles e outra figuras
Madrid, 2000, pág.529-531. Apesar
de algumas críticas ao idealismo de tal como se entende desde um ponto de de linguagem, uso de certos verbos etc.),
suas formulações, a teoria causal do vista lógico, sendo possível ser avaliado a nas motivações que guiam a diagramação
significado de Paul Grice continua
tendo muita influência entre os estu- partir de uma lógica verossímil-condicio- e a apresentação da notícia, sua titulação
diosos da pragmática. Os interessados
nal. De outra parte, o que se comunica é e texto, e em outros recursos lingüísticos e
poderão consultar os três artigos de
Grice incluídos na coletânea de Valdés toda a informação que se transmite com extralingüísticos utilizados na enunciação
Villanueva acima indicado, capítulo
VII (Significado y Intención). o enunciado, mas que é diferente de seu jornalística.
conteúdo proposicional. Trata-se, portan- O que se pretende comunicar é transmi-
to, de um conteúdo implícito, que recebe o tido em parte pelo que dizemos (o conteúdo
proposicional) e, em parte (muitas vezes H. Paul Grice, acima mencionado. Ele ana-
decisiva), pelo que não dizemos, mas que lisou a construção do significado realçando
está subentendido no que dissemos. As que emitir signos não-naturais (signos que
implicaturas não formam parte do senti- expressam significados não-literais, dife-
do literal de um enunciado, mas se pro- rentes dos significados convencionais) é re-
duzem na combinação do sentido literal alizar certo tipo de ações lingüísticas guia-
e do contexto. O uso lingüístico, como diz das ou causadas por determinadas inten-
Reyes, está regulado de tal maneira que ções do agente, que são o resultado de seus
torna possível que os falantes não só de- desejos ou crenças. Emitir um signo não-
codifiquem orações, mas que infiram a for- natural é levar a cabo uma ação guiada por
ça dos enunciados onde aparecem as ora- uma intenção comunicativa cujo objetivo é
ções. Tais inferências são possíveis porque produzir certos estados mentais numa au-
o uso da linguagem pressupõe acordos diência mediante procedimentos específicos
de colaboração prévia entre os falantes. 5
que requerem reconhecimento desta inten-
Esse acordo não está nas regras gramati- ção por parte da audiência.
cais nem nos compor-tamentos ideais ou Para Grice, todo ato comunicativo orien-
122
nas boas maneiras, mas no motor que faz ta-se por algumas máximas de eficácia,
funcionar a máquina lingüística. Quase princípios de cooperação ou esforços de co-
tudo o que queremos dizer e não dizemos operação conversacional aceitos por todos,
explicitamente depende deste princípio mas que estão sujeitos a algumas violações
geral de cooperação, que nos permite dar dependentes do contexto dos interlocutores.
conta de significados não presentes nas Essas máximas, embora possam parecer
palavras. Normalmente, a conversação assim, não são prescritivas. Simplesmente,
comporta um esforço de colaboração com espera-se que os participantes do ato comu-
nosso interlocutor: os falantes têm algum nicativo observem, cooperativa-mente, suas
propósito comum e tratam de alcançá-lo, condições preparatórias ou de racionali-
esteja ele definido ou não. dade. Essas máximas podem ser de quan-
tidade (ao comunicar, seja infor-mativo e
3. A dimensão pragmática da notícia conciso), de qualidade (diga verdades, não
A maioria dos autores da moderna prag- diga algo sem provas), de relação (seja re-
mática parte das teorias do filósofo inglês levante) e de modalidade (seja claro, orde- 5
Reyes, G., op.cit., pag. 60-65

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nado, não seja ambíguo). A violação des- As notícias fazem algo além de informar,
sas máximas gera as implicaturas ou os quase sempre enunciados realizativos, pois
efeitos de sentido que vão produzir certos ao informar repassam também instruções
estados mentais na audiência. de uso.6
Seguindo estes pressupostos concei-tu- Estou seguindo aqui as trilhas abertas
ais da moderna pragmática e da filosofia por John Austin, um autor que não trata di-
da linguagem, entendo que as notícias retamente da pragmática da comuni-cação
não apenas descrevem ocorrên-cias, mas e sim da filosofia da linguagem, mas cujas
ativam outras realizações além daquelas reflexões influíram decisivamente no desen-
geradas pelos relatos descritivos, na me- volvimento da pragmática moderna, abrin-
dida em que a linguagem jornalística se do as portas para o estudo das variáveis
manifesta como ato comunicativo em si situacionais dos atos de fala. Para Austin,
mesmo, realizado em determinadas cir- não basta avaliar a veracidade de um enun-
cunstâncias e sobre determinadas con- ciado, conferindo a correspondência entre o
dições. A linguagem jornalística, como que ela anuncia e o que pretende refletir,
Searle propõe cinco categorias prin- quaisquer outros usos da linguagem hu- pois é preciso também considerar o pro-
123
6

cipais de atos de fala ilocutivos: atos


mana, possui força ilocutiva e realiza um pósito com que o enunciado descreve algo.
assertivos (dizemos como as coisas
são); atos diretivos (tratamos de conse- ato ao enunciar-se, além de emitir pala- Não é suficiente caracterizar um enuncia-
guir que se façam coisas); atos compro-
missivos (nos comprometemos a fazer vras e além do significado de seus con- do dizendo que ele é verdadeiro ou falso, é
coisas); atos expressivos (expressamos teúdo proposicionais. Além de descrever necessário avaliar o seu grau de adequação
nossos sentimentos e atitudes); atos
declarativos (produzimos mudanças que algo ocorre no mundo, as notícias às circunstâncias em que foi emitido. A lin-
através de nossas emissões). J. Searle,
seduzem, afirmam ou negam alguma coi- guagem não é exclusivamente des-critiva
Una taxonomia de los actos de habla,
in Valdés Villanueva, op. Cit. Acredi- sa, podem nomear, esclarecer, analisar, nem mesmo em suas sentenças declara-
tamos que os atos de fala jornalísticos
encontram-se em sua maioria sob a comparar, atribuir funções e prioridades, tivas, diz Austin. A descrição dos estados
primeira categoria de atos assertivos dar ênfases, convocar, amea-çar, preve- das coisas existentes no mundo e a trans-
(também chamados representativos),
categoria que Searle considera espe- nir, ironizar, debochar, fazer rir, criticar, missão de informações não são as únicas
cial em termos de força ilocutiva. Mas,
julgar e realizar muitas outras tarefas, funções da linguagem, pois um enunciado
as sentenças jornalísticas não deixam
de realizar simultaneamente outras que se cumprem no ato de comu-nicação pode desempenhar funções muito diferen-
funções enumeradas pelo autor, seja
de forma consciente ou inconsciente, jornalística. Realizam algo que pode es- ciadas e realizar atos variados. Um falante
implícita ou explícita. tar expresso ou implícito nos enun-ciados, não está meramente registrando um esta-
7
Austin, John L.: Emisiones realiza- constituindo a sua dimensão pragmática. do de coisas, transmitindo uma informação
tivas, in Valdez, op.cit., Pág. 419-434.
ou descre-vendo uma ação: está fazendo do sujeito enun-ciador e das interpretações
algo, reali-zando algo (daí sua expressão do sujeito interpretante, isto é, do ato ilocu-
“enun-ciados realizativos”). Um enuncia- tivo e do ato perlocutivo.8 Como sugere H.P.
do se faz, e ao se fazer torna-se um evento Grice, cujo trabalho se concentra no estudo
histórico, continua Austin: a emissão por dos princípios que regulam a interpretação
parte de um determinado falante ou escri- de enunciados, o emissor produz algo por
tor, com determinadas palavras (uma ora- meio de x com a intenção de que a audiên-
ção), a uma audiência específica, com refe- cia reconheça esta intenção num contexto
rência a uma situação ou evento concreto, específico, no qual a audiência possa iden-
é uma ação histórica e o seu significado tificar tais efeitos desejados. As diferentes
não pode ser determinado apenas por fa- interpretações do significado decorrem de
tores gramaticais, pois depende de fatores intervenções de fatores extralingüísticos
extralingüísticos, de natureza externa à de tipo conver-sacional, de mecanismos que
linguagem. 7
regulam o intercâmbio comunicativo e que
As “instruções de uso” fornecidas pelas são responsáveis por “significados acrescen-
notícias de que falávamos acima estão pre- tados”.9
124 Também Cómo hacer cosas con pa-
sentes nos enunciados jornalísticos porque A retórica jornalística, como qualquer
labras, Piados, Barcelona, 1998.(há
todos eles contêm o que os filósofos da lin- outra linguagem, é uma atividade verbal tradução ao portugués).

guagem chamam de “força ilocucionária”, dinâmica entre interlocutores. Caracteriza- Uma síntese didática sobre a impor-
isto é, uma força expressiva que provem se pelos mesmos aspectos que regem toda tância das idéias de Austin para a
pragmática está em M. V. Escandell
não apenas do que as palavras significam atividade humana: tem uma motivação psi- Vidal, Introducción a la pragmática,
Ariel, Barcelona, 2002, cap. 3, que nos
(significados do dicionário), mas também cossocial, uma finalidade semântica e uma
serviu de guia para o resumo acima.
do que elas evocam enquanto atos de fala realização lingüística textual. Isto signifi- Voltaremos às idéias de Austin mais
adiante neste estudo.8 A respeito de
em si mesmos. Usar a linguagem não é ca que o jornalista, enquanto interlocutor, estas afirmações ver Graciela Reyes,
apenas colocar palavras e sintaxes em está motivado por interesses profissionais op. cit., Caps. 2 e 3.

movimento. É também ativar uma série imediatos, mas também por interesses sub-
de conhecimentos que as palavras evocam jetivos que refletem motivações, necessida-
para os participantes do ato comunicativo des e desejos nem sempre explícitos, claros
e que não necessitam fazer-se explícitas. ou sob seu controle. Ao produzir um relato
No uso da linguagem, surgem significados na forma de notícia, a sua intenção é pro-
virtuais decorrentes das intencionalidades duzir o efeito de real, mas o ato de trans-

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mitir uma notícia, enquanto experiência entre os interlocutores assumem um signi-
criadora, gera liberação das determina- ficativo caráter dinâmico. “O ato de escre-
ções e produz fenômenos interpretativos ver”, afirma ela, “quando dialogicamente
dinâmicos de compreensão cognitiva onde concebido in presentia torna-se uma rela-
intervêm processos intersubjetivos de na- ção bilateral (na medida em que o produtor
tureza lingüística e extralingüística. Que- do texto pode desempenhar dois papéis) e
ro frisar com isso que o texto (verbal ou reversível: o escritor torna-se ao mesmo
não verbal) é uma atividade de natureza tempo um escritor ativo e um leitor inter-
criativa e pragmática que envolve dois in- no. É essa propriedade dialógica do ato de
terlocutores sujeitos-indivíduos, mas en- escrever que permite que o texto produzido
volve também dois interlocutores suben- seja o resultado de uma réplica produtiva,
tendidos, o enunciador e o destinatário, que faz com que a informação transmitida
tanto no momento de sua produção como progrida, transforme-se, satisfazendo uma
no momento de sua leitura. Como unida- integridade semântica ideal do texto”.10
de pragmática, o texto manifesta suas ca- Considerando o texto escrito como uma
racterísticas mais intrínsecas, eviden-cia- unidade lingüística, semântico-formal e
125
se pelas intenções do produtor, pela auto- pragmática, proveni-ente da possibilidade
imagem de cada um dos interlo-cutores, de considerar o ato de escrever como um
pela relação dos signos lingüísticos com diálogo simultâneo, diz a autora que neste
seus intérpretes. diálogo detecta-se a presença ativa de dois
Sobre o texto escrito como unidade interlocutores em junção de tempo e espa-
pragmática, diz I. Sautchuk: “o texto es- ço, trocando alternativamente respostas a
crito exige sempre uma articulação entre respeito de um tema, preocupados ambos
a capacidade de o escritor-ativo oferecer com a forma lingüística em que se revelam
instruções de leitura (com base nos ele- essas respostas.
mentos e mecanismos de coesão e coe- Sautchuk observa que é do delicado equi-
rência) e a de o leitor interno reconhe-cer líbrio entre o que o indivíduo-escritor pre-
9
Grice, H. Paul: Significado, in Luis essas instruções e confirmá-las como ade- tende como sentido (e intenção) do texto e o
M. Valdés Villanueva, op. Cit., pág.
quadas e eficientes para o objetivo que é que confirma (ou não) seu leitor coadjuvan-
481-494
a comunicação.” No texto escrito (assim te que nascerá o texto considerado coerente
11
Sautchuck, I, op. cit., pag. 32 como em outros tipos de texto) as relações pelo leitor externo. “Nessa atividade comu-
nicativa, engen-drada como um verdadei- da linguagem jornalística, convencio-nal-
ro jogo discursivo com o qual o indivíduo- mente aceita pelos profissionais e pela co-
escritor quer apenas que seja realizada munidade de leitores, familiarizada e acos-
sua intenção inicial, o texto assume, em tumada com tais convenções. Os manuais
todas as suas propriedades, a sua verda- de redação jornalística, assim como os li-
deira impor-tância: ser o instrumento des- vros de técnica do jornalismo, insistem que
se objetivo e realizá-lo da melhor maneira o jornalismo é o lugar da racionalidade e da
possível.” 11 objetividade, onde deve evitar-se não ape-
Para a autora, o objetivo (as intenções nas a opinião e os pontos de vista de quem
do autor do texto) e a realização (o reco- escreve, mas também toda implicatura e
nhecimentos das instruções de uso por qualquer insinuação poética ou metafórica.
parte do leitor) são os dois extremos de As máximas do jornalismo orientam o texto
uma atividade comunicativa que tem o para que ele repasse ao destinatário apenas
texto como elemento intermediário e os os conteúdos proposicionais. Em princípio,
usuários da língua como origem do pro- as notícias não deveriam conter elementos
cesso. Na atividade escrita, observa ela, que insinuem quaisquer implicaturas além
126
sob uma perspectiva que é ao mesmo tem- daqueles significados estritamente propo-
po descritiva e pedagógica, privilegia-se a sicionais, não deve-riam sugerir nenhum
realização verbal. É preciso identificar na “efeito de sentido” além dos conteúdos ma-
atividade escrita todos os aspectos do pro- nifestos, deveriam reduzir o ato comunica-
cesso em si e aqueles que vão caracterizar tivo ao simples repasse de informações con-
a relação cooperativa entre os interlocuto- cretas.
res. Sabendo-se que o texto será coerente Produz-se, assim, um pacto coope-rativo
para alguém e em dada situação de comu- no sentido griceano, em que a informação a
nicação específica, o diálogo da comunica- ser repassada pelas notícias deve: 1) ser tão
ção começa com o escritor ativo em seu ato informativa quanto necessária; 2) ser não
de interação com o leitor interno. mais do que necessária; 3) expressar ape-
Os enunciados das notícias costumam nas a verdade; 4) não mencionar o que não 10
Sautchuk, I.: A produção dialógica
do texto escrito, Martins Fontes, S.
ser predominantemente relatos objetivos, se puder comprovar; ser expressa de forma Paulo, 2003, pág. 21.
escritos em textos descritivos, claros, or- clara; 5) evitar ambigüidades; 6) expressar-
denados e coerentes, seguindo os cânones se de forma breve (não prolixa); 7) expres- 12
. Garcia Fernández, J. L.: La Comu-

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sar-se de forma direta. relevantes, relatadas com clareza, concisão,
É sobre estes pressupostos griceanos precisão e isenção resultadas de um traba-
que as máximas profissionais do texto lho profissional capaz de corresponder a es-
jornalístico foram estruturadas, ainda sas expectativas dos destinatários.
que, historicamente, ao que se sabe, em Esse pacto previamente estabelecido gera
nenhum momento tenha havido um diá- uma estabilidade, um “acordo acertado” en-
logo entre as redações e os princípios da tre o emissor (o jornalista ou o jornal) e o
filosofia da linguagem. Resumindo, como leitor, que torna possível a “eficiente” comu-
nas máximas griceanas, o objetivo central nicação jornalística na forma em que ela se
das regras de redação do texto jornalísti- realiza quoti-dianamente. Somente a partir
co é intercambiar as informações com os desse pres-suposto, desse acordo convencio-
leitores, ouvintes ou telespectadores de nal aceito e legitimado, é possível interpre-
forma radicalmente efetiva e econômica tar as violações lingüísticas ou conversacio-
(no sentido lingüístico dos termos). É pro- nais que ocorrem nas máximas que regem
vocar o efeito de real. a relação entre os jornalistas e os leitores.
Esse é o desejo do profissional do jor- Esse pacto entre os interlocutores é do tipo
127
nalismo na sua máxima operatividade, convencional, semelhante, portanto, ao pac-
O objetivo central
desejo que parece ser compactuado pela to comunitário universalmente aceito de
das regras de
comunidade de leitores, ouvintes e teles- que todos os motoristas devem dirigir pela
redação do texto
pectadores dos noticiosos como válido e direita, que se tornam naturais.
verdadeiro. Reproduz-se na comunidade
jornalístico é
jornalistas-leitores uma convenção em intercambiar as 4. A dimensão cognitiva da notícia
que emissores e destinatários dão por informações com os É preciso observar com mais cautela o
conven-cionado que o jornalismo é o lugar leitores, ouvintes ou que ocorre no ato de comunicação jornalís-
natural da objetividade e da verdade, o telespectadores de tica, entretanto. As notícias são conteúdos
lugar do texto claro, conciso, direto, sem manifestos, mas são também produtos de
forma radicalmente
rodeios literários, sem implicaturas, sem um ato criativo e fragmen-tário cujos sen-
efetiva e econômica
alusões ou pressuposições, sem quaisquer tidos inacabados convidam o leitor a com-
(no sentido
insinu-ações. Ao comprar o jornal ou sin- plementar cooperativamente as significa-
tonizar o noticioso de uma emissora o lei-
lingüístico dos ções, como em qualquer processo literário.
tor espera ler, ver ou ouvir informações termos). Mesmo aquelas notícias com significações
precisas, “desconta-minadas” ao máximo Esse pacto resultam em um determinado comporta-
de conteúdos simbólicos, e que mantêm previamente mento expressivo e comunicativo. Trata-
vínculo com as determinações históricas, se, pois, de alterações significativas, ainda
estabelecido gera
costumam ativar estados de ânimo, ati- que transitórias, da vida afetiva causada
uma estabilidade,
tudes e respostas diversas, estimular in- por um determinado estímulo, em virtude
terpretações fabu-ladas do real, ativar a
um “acordo do qual a sensibilidade parece projetar-se
imaginação do leitor, ampliando o que se acertado” entre para fora de si mesma. Costuma ser acom-
comunica para muito além do que dizem. o emissor (o panhada de um alto grau de atenção, que
As análises da linguagem jornalística não jornalista ou o concentra toda a atividade do indivíduo,
podem descartar as informações referen- jornal) e o leitor, assim como uma série de signos e manifes-
ci-ais, mas precisam identificar a comuni- que torna possível tações externas do organismo. Podem ser
ca-ção das emoções implícitas nos relatos positivas, quando favorecem a auto-afirma-
a “eficiente”
informativos. Precisam identificar os indí- ção (amor, compreensão etc.), ou negativas,
comunicação
cios e marcas do texto que provocam, por quando desfavorecem essa auto-afirmação
exemplo, a surpresa, a ironia, o espanto
jornalística na (ira, medo, inveja etc.).
ou o riso, efeitos subentendidos pelos rela- forma em que Esse pathos é o modo em que nos encon-
128
tos das notícias. ela se realiza tramos: bem ou mal, tristes ou alegres, se-
A ativação de estados de ânimo no leitor quotidianamente. guros ou temerosos, mas não depende de
requer uma breve reflexão sobre a ques- nós, nos é dado, somos nós que nos encon-
tão da comunicação das emoções, particu- tramos com ele e nele. Tudo isto comprova,
larmente sobre as condições do texto que segundo Garcia Fernández, que em todos
estimulam reações emocionais nos leito- esses estados de emoção aparece alguma
res. Essa reflexão é importante porque a referência ao “estado de ânimo”. Ou seja,
comunicação das emoções é um aspecto toda emoção pressupõe uma atividade,
inerente às análises pragmáticas. A ques- energia ou força, a ação de um ser vivo que
tão do estímulo desencadeador das emo- reage a um estímulo procedente do exterior
ções está colocada de maneira interessan- ou de um processo interno de pensamento
te na tese doutoral de Garcia Fernández reflexivo.12 É claro que estas observações
sobre este tema. Este autor define como têm muito a ver com a análise pragmática
emoções as vivências da personalidade tal como estamos propondo neste estudo.
acompanhadas de reações fisiológicas que Outros autores, como Marina e López,

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sustentam que os sentimentos são algo leitor. O ato de comunicação jornalística
que ocorre na intimidade do sujeito, redu- é um ato que informa um conteúdo, mas
to mais profundo da pessoa. Sentir, dizem igualmente ativa reações emocionais e efei-
eles, é um modo básico de ser consciente, tos de sentido: pode provocar o medo, o es-
não claramente qualificado como cogniti- panto ou o riso, por exemplo. Neste sentido,
vo nem como afetivo, “é a capacidade de trata-se de um ato realizativo mais amplo
perceber as sensações ou as alterações do que aquele estritamente informativo que
do próprio organismo; mas é também a originalmente se preten-dia. O relato da no-
capacidade de emocionar-se, ou de dese- tícia ativa processos cognitivos quando, por
jar, e o ato de ser afetado por estímulos exemplo, nomeia, designa, aponta. Além de
espirituais”. Afirmam eles que, num pri- repassar informações, os enunciados das
meiro nível, “a aparição de um estímulo notícias podem ironizar, debochar, enalte-
ativa o reflexo de orientação e focaliza a cer, referendar, legitimar coisas e pessoas.
atenção. Experimenta-se então emoções Além de informar, os relatos das notícias
pouco diferenciadas, como a surpresa”. 13
confirmam a confiança de quem ouve em
Para os autores, que estudaram a comu- quem fala, legitimam papéis, realizam ou-
129
nicação das emoções, existe, portanto, um tros atos simultâneos desencadeados por
estímulo externo que resulta na modifica- efeitos de sentido não necessariamente lin-
ção transitória da vida afetiva, algo que güísticos.
nicación de las Emociones, Ed. Univer-
sidad Complutense, Madrid, 1991 inicialmente atrai a atenção e que, por
sua vez, produz algum comportamento 5. A dimensão simbólica da notícia
13
Marina, José Antonio e Marisa Ló-
pez Penas, Dicionário de Sentimintos, expressivo no indivíduo (a surpresa, o es- Existe ainda uma outra dimensão, além
Anagrama, Barcelona, 2001, p. 45-51.
Utilizando-se de uma linguagem que
panto, a angústia, a ansiedade, um sorri- da pragmática e dos efeitos cognitivos das
pretende ser engraçada, a nosso ver so, o riso, a gargalhada etc., cada um de- emoções e dos sentimentos que permite ex-
estes autores perdem a oportunidade
de realizar uma necessária taxonomia les acompanhado por movimentos muscu- pandir a análise até os seus aspectos sim-
de manifestações das emoções na li- lares faciais diferentes e característicos). bólicos. Trata-se de uma dimensão ainda
teratura. O livro que organizaram é
descritivo e repetitivo com relação a As análises da comunicação jornalística mais sutil e subjetiva. Se considerarmos as
outros dicionários, pouco acrescentan-
do ao vazio existente sobre a sistema-
podem partir da informação referencial, notícias como um sistema simbólico, como
tização das emoções na literatura. como já dissemos, mas precisam também tenho defendido, veremos que os relatos
identificar a presença de estímulos que noticiosos são, por um lado, razão (logos),
causam estados de ânimo emocionais no transmitem fatos históricos; mas, por ou-
tro, são também mythos, encerram subje-
tividades que dotam os acontecimentos de as intenções e interpretações da comunica-
sentidos de passado e de futuro, do bem e ção jornalística.
do mal, do bonito e do feio, do que pode e Recorro ao antropólogo catalão Lluís
do que não pode, sugerem difusas ideolo- Duch para nos auxiliar a explorar breve-
gias, estimulam desejos e utopias. Ainda mente o amplo campo do simbólico. Argu-
que o jornalista faça todo o esforço para menta este autor que o mito é parte inalie-
escrever um relato objetivo e manter o seu nável e indestrutível de nossas biografias,
texto o mais próximo possível do referen- pois as nossas histórias são as nossas fabu-
te empírico, aquilo que ele transmite não lações. Nossas biografias, diz ele, contêm
se restringe jamais apenas à informação. uma mescla de elementos míticos e de ele-
Seu texto sempre poderá ser interpretado mentos lógicos muito difíceis de distinguir.
de outras formas, poderá até ser entendi- As interpretações simbólicas podem tam-
do como fábula ou mythos. 14
bém surgir na leitura das descrições pre-
Evidentemente, ao penetrar na dimen- tensamente objetivas dos relatos das notí-
são simbólica a análise se afasta das im- cias, independentemente das intenções do
plicaturas conversacionais, dos efeitos texto.
130
pragmáticos e cognitivos imediatos e do Para Lluís Duch, não é suficiente um in-
campo da filosofia da linguagem. Penetra divíduo ou uma sociedade inteira policiar a
em dimensões interpretativas mais pro- sua natureza mítica para desfazer sua for-
fundas que as meramente lingüísticas e ma expressiva, pois o mito habita o reino
conversacio-nais. Penso, entretanto, que do implícito e costuma fazer-se presente de 14
Em trabalhos anteriores, tenho
insistido na necessidade de as notícias
todas essas dimensões fazem parte de maneira contraditória em diversas mani- serem entendidas e analisadas como
uma pragmática jornalística expandida, festações humanas. Nossa biografia, diz ele, sistemas simbólicos, como narrativas
sobre a realidade. As notícias não são
ou de uma antropologia da notícia. Ao re- não é e não será nunca uma construção as- pura invenção nem são ficções, obvia-
velar os aspectos simbólicos da notícia, a séptica e objetiva, mas uma narração onde mente, estão mais próximas da descri-
ção. Tenho argumentado, porém, que
análise despe as máscaras do racional e o desejo, as ilusões, os sonhos e a realida- as notícias podem ser narrativamente
recompostas e interpretadas porque
revela a face oculta do mythos, mostra as de se confundem em proposições sempre são configuradas por categorias mito-
contaminações literárias ou poéticas do impossíveis de se discernir. A experiência lógicas ou arquetípicas e estão presas,
como na literatura, por matrizes
texto objetivo. É nessa dimensão da análi- humana imediata, continua o autor, é asse- mitológicas que as conformam. Ver
se que o mistério da linguagem revela, em diada por um sem-fim de princípios contrá- meu artigo “Para uma antropologia
da notícia”, in Revista Brasileira de
última instância, o fascinante jogo entre rios entre si, por forças, manifestações, ten- Comunicação, Intercom, Dez. 2002.

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Lluís Duch argumenta que a
dências e obsessões difíceis de conciliar. criativo imerso em um sistema simbólico,
A irrupção do mito, justamente no centro e, portanto cultural, é interessante deixar
das épocas e sociedades que se autoquali- surgir a presença do mythos, se isto vier
ficam de antimíticas, se deve à necessida- a ocorrer. A análise que estamos propondo
de que tem o ser humano de retornar às não se esgota, portanto, nos aspectos lite-
fontes psicossomáticas mais profundas da rais nem imanentes da linguagem, nem
sua experiência existencial. Entretanto, mesmo nas relações pragmáticas, e propõe
finali-za, todo discurso humano, inclusive estender-se até o contexto cultural em que
aquele que se pretende neutro e objetivo, a notícia se realiza enquanto experiência
é dirigi-do por vontades implícitas, carên- comunicativa integral.
cias e interrogações que têm muito pouco Recorrer às idéias apresentadas por Llu-
a ver com a materialidade gramatical do ís Duch contribui para ampliar e fechar
discurso lógico.
15 essa proposta e colocar as nossas interro-
Neste sentido, entendo que as análi- gações no interior de outras compreensões
ses da comunicação jornalística devem de maior poder explicativo da comunica-
expandir-se até a dimensão simbólica da ção jornalística. Vejamos o que diz este au-
Palavra costuma dispersar-se em 131
“palavras” supostamente lógicas, que notícia. Podem se concentrar na procura tor. Para Duch, existir equivale para o ser
abandonando o contexto querem fi-
xar-se quase obsessivamente em um de pistas que acionam estados cognitivos, humano a criar símbolos e mover-se (in-
texto que se apresenta presunçosa- terpretar) no âmbito do pensamento, dos
mas não devem furtar-se em observar,
mente como puro. Nestes momentos,
a Palavra autêntica, criadora de vida onde isto for necessário, significações sim- sentimentos e das ações simbolicamente
e de sonhos se encontra no exílio. No
entanto, o mito está lá, em recônditos bólicas que as complementem a dimensão configurados, pois o homem é um ser ca-
longínquos, mas no coração mesmo da pragmática e cognitiva. Pressupõe essa pax symbolorum, um ser substancialmente
realidade, nas profundidades da poli-
fônica palavra humana. E se constitui busca uma crença de que a notícia, en- simbólico. Ou seja, a simbolização não é o
na manifestação mais eloqüente do ato essencial do pensamento, mas um ato
quanto ato criativo, desperta difusas ex-
polifacetismo (polimorfismo) radical do
ser humano, que se mostra de formas periências iniciáticas e transcendentais, essencial para o pensamento, anterior a
expressivas no âmbito do pensamento,
da ação e dos sentimentos, uma ex- ainda que superficiais e fugazes. É pre- ele. Graça à sua capacidade simbólica, o ho-
pressão que a tradição designa como ciso ir além da pragmática e dos efeitos mem não se vê constrangido a um presente
complexio oppositorum. Ver Lluís
Duch, Símbolo, Interpretación y Cul- cognitivos, procurar identificar conteúdos fechado sobre si mesmo. Ele se projeta em
tura, Herder, Barcelona, 1999, p. 25- relação ao passado ou ao futuro, é capaz de
implícitos ou explícitos que contribuem
42. Recorreremos a este autor outras
vezes neste trabalho. para uma percepção mitopoética das no- rememorar e de antecipar, de fazer presen-
tícias. Entendendo a notícia como um ato te o ausente. Entretanto, como nos chama
a atenção o autor, o homem é um aprendiz leque de interpretações, de descobri-mentos
que necessita refazer esta ação pedagógica de seus múltiplos possíveis: “O enigma, a
permanentemente, na variabilidade dos imagem e o símbolo não bloqueiam a inteli-
espaços e tempos, porque jamais se encon- gência e os sentimentos dos humanos, mas,
tra definitivamente acolhido e reconheci- ao contrário, os empurram a arriscar-se na
do. Na vida é preciso dominar sempre no- aventura de descobrir o sentido escondido do
vas contingências, que se renovam. O ser kosmos e do anthropos, de trazer a plena luz
humano é, e será sempre, um ser contin- os implícitos nas expressões aparentes, de
gente e um ser capaz de simbolizar. 16 rastrear as intencionalidades dissimu-ladas
O símbolo, continua Duch, não é apenas nas imagens mudas até que não mais recu-
uma manifestação da capacidade configu- bram a palavra por mediação da capacidade
radora e criadora do ser humano, mas re- interpretativa, sempre repleta de uma in-
vela a sua radical finitude e inacabamento. tensa carga desidera-tiva do ser humano.”17
Somos obrigados a usar símbolos porque Como afirma Duch com muita proprieda-
nunca dispomos de acessos imediatos à re- de mais adiante, “os materiais simbólicos
alidade. Sempre nos encontramos frente a são expressões tangíveis que se põem em
132
ela (mesmo nas relações de alguém consigo movimento por mediações das estratégias
mesmo) na iniludível situação de mediatez. dos desejos humanos. Não só dos desejos
Isto revela as nossas deficiências naturais concretos e delimitados (por exemplo, os
e a nossa necessidade de captação da rea- artificialmente criados pela propaganda de
lidade através da interposição de artefatos todo tipo), mas, sobretudo por aquele Dese-
simbólicos, que respondem a uma neces- jo que permanece sempre Desejo, isto é, pela
sidade estrutural de todo homem ou mu- radical insuficiência de todos os objetos de-
lher, sejam quais forem as suas situações sejados para satisfazer ao ser humano como
pessoais ou históricas concretas. Nós, nem desejante... Há símbolo porque tudo é muito
os outros, nem o mundo somos totalmente mais do que parece, tudo possui um pano de
transparentes e sim opacos, necessitando fundo não diretamente perceptível, um plus 16
Duch, Lluiz, Antropología de la
de maneira inexorável do “trabalho do sím- de significação que, como uma espécie de ca- Vida Cotidiana, Trota, Madrid, 2002.
Para este autor, resulta muito mais
bolo”. Por isso, a interpretação não é algo leidoscópio, vai mostrando incessan-temente decisiva a construção simbólica do que
novas facetas e alusões inéditas. Ou para a construção social da realidade, pois
sobreacrescentado ao símbolo, mas todo
a segunda só é possível através da
símbolo desencadeia inevitavelmente um expressar de outra maneira: constantemen- primeira.

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te nos movemos num mundo dotado de Referêndcias bibliográficas
referências infinitas; tudo e todos somos AUSTIN, John (1961): Emisiones realizativas,

referências de referências ad infinitum. O in Valdés Villanueva (2000)


DUCH, Lluís (1999): Mito, interpretación y cul-
mundo tal como se apresenta resulta sem-
tura, Herder, Barcelona
pre incoerente, insuficiente, quase sempre
DUCH, Lluís (2002): Antropologia de la vida co-
inaceitável para o ser humano... O mun-
tidiana, Trotta, Madrid
do, e o homem nele, sobretudo graças ao
ECANDELL VIDAL, M. V.(2002): Introducción a
inacabado trabalho da memória, são obra la pragmática, Ariel, Barcelona
aberta, alusões equívocas de uma unidade GARCIA FERNANDES, J. L. (1991) A comunica-
talvez pressentida, na realidade nunca al- ción de lãs emociones, Complutense, Madrid
cançada”. 18 GRICE, H. P. (1975): Lógica y conversación, in
A análise sugerida neste breve artigo Valdés Villanueva (2000), Tecnos, Madrid

não descarta os conteúdos informativos GRICE, H. P. (1957): Significados, in Valdés


Villanueva, Tecnos, Madrid
nem nega o caráter ideológico notícias.
MARINA, José A. y M. Lopes Pena (2001): Dic-
Mas, propõe considerar como ponto de
cionário de los sentimientos, Anagrama, Barce-
partida as intenções e estratégias textu-
lona 133
ais (verbais e não verbais) da comunicação MOTTA, Luiz Gonzaga (2002): Para uma antro-
jornalística. Compreender a sua natureza pologia da notícia, Revista Brasileira de Ciên-
objetiva (linguagem eficaz e econômica), cias da Comunicação, Vol. XXV, no. 2, julho-de-
suas dimensões pragmática e cognitiva, e, zembro, 2002
se possível e necessário, avançar até a sua REYES, Graciela (1994): La pragmática lingüís-

dimensão simbólica (subjetiva e inter-sub- tica, Montesinos, Barcelona


SEARLE, John (2001): Expressão e significado,
jetiva).
M. Fontes, S. Paulo
* Luiz Gonzaga Motta SEARLE John (1975): Uma taxonomia de los ac-

O autor é jornalista, doutor em comu- tos ilocucionários, in Villanueva (2000)


SOUSA, Jorge Pedro (1994): As notícias, Univ.
nicação pela Wisconsin University, pós-
Fernando Pessoa, Porto
doutor pela Universidade Autônoma de
SAUTSCHUCK, Inês (2003): A produção dialógi-
Barcelona e professor da Universidade de
ca do texto escrito, M. Fontes, S. Paulo
17
Duch, 2002, op. Cit, p. 39-40 Brasília (UnB)
VILLANUEVA, Luis M. Valdés (2000): La bús-
18
Duch, op. Cit., p. 226-227 queda del significado, Tecnos, Madrid

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