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Manuel Castells A SOCIEDADE EM REDE Volume I 4° EDICAO Tradugao; Roneide Venancio Majer com a colaboragiio de Klauss Brandini Gerhardt @ PAZ E TERRA A Revolugao da Tecnologia da Informagao Que revolugio? O “gradualismo”, escreveu 0 paleontdlogo Stephen J. Gould, “o conceito de que toda mudanga deve ser suave, lenta e firme, nunca foi lido nas rochas. Representava uma tendéncia cultural comum, em parte uma resposta do libera- lismo do século XIX a um mundo em revolugio. Porém, ele continua a colorir a nossa leitura supostamente objetiva da histéria da vida... A historia da vida, como a vejo, € uma série de situagdes estaveis, pontuadas em intervalos raros por eventos importantes que ocorrem com grande rapidez e ajudam a estabele- cer a proxima era estivel”.! Meu ponto de partida, ¢ nio estou sozinho nesta conjetura? é que no final do século XX estamos vivendo um desses raros inter valos na histéria. Um intervalo cuja caracteristica ¢ a transformagio de nossa “cultura material” pelos mecanismos de um novo paradigma tecnolgico que se organiza em torno da tecnologia da informagio. ., Como tecnologia, entendo, em linha direta com Harvey Brooks ¢ Daniel Bell, “o uso de conhecimentos cientificos para especificar as vias de se fazerem as coisas de uma maneira reproduzivel”. Entre as tecnologias da informagio, incluo, como todos, 0 conjunto convergente de tecnologias em microeletrénica, computagio (sofiware © hardware), telecomunicagdes/radiodifusio, ¢ optocle- tronica* Além disso, diferentemente de alguns analistas, também incluo nos do- minios da tecnologia da informagao a engenharia genética e seu crescente con- junto de desenvolvimentos e aplicagdes.° Em primeiro lugar, isso se deve ao fato de a engenharia genética concentrar-se na decodificagio, manipulacao e con- seqiiente reprogramagao dos cédigos de informago da matéria viva. E também a0 fato de, nos anos 90, a biologia, a eletrénica e a informética parecerem estar convergindo ¢ interagindo em suas aplicagdes e materiais e, mais fundamental- mente, na abordagem conccitual, topico merecedor de maior atengdo ainda neste capitulo.” Ao redor deste niicleo de tecnologias da informagao, definido em um sentido mais amplo, uma constelagdo de grandes avangos tecnolégicos vem ocor- 50 A Revolugio da Tecnologia da Informagiio rendo, nas duas tiltimas décadas do século XX, no que se refere a materiais avangados, fontes de energia, aplicagdes na medicina, técnicas de produgao (ja existentes ou potenciais, tais como a nanotecnologia) e tecnologia de transpor- tes, entre outros.* Além disso, 0 processo atual:de transformagao tecnolégica expande-se exponencialmente em raziio de sua capacidade de criar uma inter- face entre campos tecnolégicos mediante uma linguagem digital comum na qual a informagao é gerada, armazenada, recuperada, processada e transmitida. Vi- vemos em um mundo que, segundo Nicholas Negroponte, se tornou digital. | ~~ O exagero profético ¢ a manipulagio ideolégica que caracteriza a maior parte dos discursos sobre a revolugio da tecnologia da informagiio nao deveria levar-nos a cometer 0 erro de subestimar sua importancia verdadciramente fun- damental. Esse é, como este livro tentard mostrar, no minimo, um evento his- torico da mesma importancia da Revolugao Industrial do século XVIII, induzin- do um padrao de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e | cultura. O registro histérico das revolugdes tecnoldgicas, conforme foi com- pilado por Melvin Kranzberg e Carroll Pursell,! mostra que todas sio caracteri- zadas por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetragiio em todos os do- minios da atividade humana, nao como fonte exdgena de impacto, mas como o tecido em que essa atividade € exercida. Em outras palavras, sao voltadas para o processo, além de induzir novos produtos. Por outro lado, diferentemente de qualquer outra revolugio, 0 cerne da transformagiio que estamos vivendo na revolugdo atual refere-se as tecnologias da informagao, processamento e comu- | nicacéo.''*A tecnologia da informagio & para esta revolugo 0 que as novas | fontes de energia foram para as Revolugdes Industriais sucessivas, do motor a vapor a eletricidade, aos combustiveis fosscis e até mesmo a energia nuclear, visto que a geragio e distribuigao de energia foi o elemento principal na base da sociedade industrial. Porém, essa afirmagao sobre o papel preeminente da tec- nologia da informagio muitas vezes & confundida com a racterizagao da re Volugio atual como sendo essencialmente dependente de novos conhecimentos ¢ informagao. Isso é verdade no caso do atual processo de transformagao tecno- logica, mas foi assim também com as revolugdes tecnoldgicas anteriores, con- forme mostraram os principais historiadores de tecnologia, como Melvin Kran. berg ¢ Joel Mokyr.'? A primeira Revolugio Industrial, apesar de nao se basear em ciéncia, apoiava-se em um amplo uso de informagées, aplicando e desenvol- vendo os conhecimentos preexistentes. E a segunda Revolugao Industrial, de- pois de 1850, foi caracterizada pelo papel decisivo da ciéneia ao promover a inovagiio. De fato, laboratorios de P&D apareceram pela primeira ver, na in- distria quimica alemi nas tiltimas décadas do século XIX," g O que caracteriza a atual revolugio tecnoldgica nao é a centralidade de \ Conhecimentos ¢ informagio, mas a aplicagdo desses conhecimentos ¢ dessa infor- A Revolugao da Tecnologia da Informagao 51 magiio para a geragio de conhecimentos © de dispositivos de processamen- to/comunicagao da informagao, em um ciclo de realimentagio cumulativo entre a inovagio ¢ seu uso.'* Uma ilustragao pode esclarecer esta anilise. Os usos das hovas tecnologias de telecomunicagées nas duas iiltimas décadas passaram por trés estagios distintos: a automagao de tarefas, as experiéncias de usos e a recon- figuragiio das aplicagbes.'° Nos dois primeiros estigios, o progresso da inovagiio tecnolégica baseou-se em aprender usando, de acordo com a terminologia de Resenberg."’ No terceiro estigio, os usuarios aprenderam a tecnologia fazendo, © que acabou resultando na reconfiguragio das redes e na descoberta de novas cus USOS € seus desenvolvimentos em novos dominios torna-se muito mais ra- pido no novo paradigma tecnolégico. Conseqiientemente, a difustio da tecnolo- gia amplifica seu poder de forma infinita, a medida que os usuirios apropriam-se dela ea redefinem.”As novas teenologias da informagdo néio séo simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuarios e criadores podem tornar-se a mesma coisa. Dessa forma, o§ usudrios podem assumir © controle da tecnologia como no caso da Internet (ver capitulo 5). Segue-se uma relaco muito proxima entre os processos sociais de criagéio manipulagio de sim- bolos (a cultura da sociedade) ¢ a capacidade de produzir e distribuir bens ¢ ser- vicos (as forgas produtivas). Pela primeira vez na histéria, a mente humana é uma forca direta de produgiio, nao apenas um elemento decisivo no sistema produtivo. Assim, computadores, sistemas de comunicagiio, decodificagao e progra- magilo genética so todos amplificadores ¢ extensdes da mente humana. O que pensamos © como pensamos é expresso em bens, servigos, produgio material ¢ intelectual, sejam alimentos, moradia, sistemas de transporte e comunicagao, misseis, satide, educagao ou imagens. A integragio crescente entre mentes ¢ maquinas, inclusive a maquina de DNA, esté anulando o que Bruce Mazlish chama de a “quarta descontinuidade”” (aquela entre seres humanos e miqui- nas), alterando fundamentalmente 6 modo pelo qual nascemos, vivemos, apren- demos, trabalhamos, produzimos, consumimos, sonhamos, lutamos ou morremos. Com certeza, os contextos, culturais/institucionais € a ag%o social intencional interagem de forma decisiva com o novo sistema tecnolégico, mas esse sistema tem sua propria ldgica embutida, caracterizada pela capacidade de transformar todas as informagdes em um sistema comum de informagio, processando-as em. velocidade ¢ capacidade cada vez maiores e com custo cada vez mais reduzido em uma rede de recuperagio e distribuigao potencialmente ubiqua. Ha um aspecto adicional que caracteriza a revolugio da tecnologia da in- formagdo quando comparada a seus antecessores histéricos. Mokyr'® demons- trou que as revolugdes tecnolégicas ocorreram apenas em algumas sociedades e ) foram difundidas em uma area geografica relativamente limitada, muitas vezes aplicagées. O ciclo de realimentagao entre a introdugio de uma nova ‘ceolgi, 52 A Revolugo da Tecnologia da Informagiio ocupando espago ¢ tempo isolados em comparagao a outras regiées do planeta. Assim, embora os curopeus tomassem emprestadas algumas descobertas feitas na China, por muitos séculos a China e 0 Japio adotaram pouca tecnologia curopéia, restrita principalmente a aplicages militares. O contato entre civili zagbes de niveis tecnolégicos diferentes freqiientemente provocava a destruigao da menos desenvolvida ou daquelas que quase nao aplicavam seus conhecimen- tos d tecnologia bélica, como no caso das eivilizagdes americanas, aniquiladas pelos conquistadores espanhdis, as vezes mediante guerras biologicas eventuais.” De sua origem na Europa Ocidental, a Revolugao Industrial estendeu-se para a maior parte do globo durante os dois séculos seguintes. Mas sua expansiio foi muito seletiva seu ritmo bastante lento pelos padrdes atuais de difusio tecnolégica. Na verdade, até na Ingiaterra em meados do século XIX, os setores que repre- sentavam a maioria da forga de trabalho ¢, pelo menos, metade do PNB nao foram afetados pelas novas tecnologias industriais.” Além disso, seu alcance planetario nas décadas seguintes teve, com bastante freqiiéncia, um carter de dominagio colonial, seja na india sob o Império Britanico, na América Latina sob a dependéncia comercial/industrial da Inglaterra ¢ dos EUA, no desmembra- mento da Africa mediante o tratado de Berlim, ou na abertura do Japio ¢ da China para 0 comércio exterior pelas armas dos navios ocidentais. Ao contrario, as novas tecnologias da informagio difundiram-se pelo globo com a velocidade da luz em menos de duas décadas, entre meados dos anos 70 e 90, por meio de uma légica que, a meu ver, é a caracteristica dessa revolugio tecnolégica: a aplicago imediata no proprio desenvolvimento da tecnologia gerada, conec- tando 0 mundo através da tecnologia da informagio2! Na verdade, ha grandes reas do mundo e consideraveis segmentos da populagao que esto desconec- tados do novo sistema tecnolégico: essa é precisamente uma das discussées cen- trais deste livro. Além disso, a velocidade da difustio tecnolégica é seletiva tanto social quanto funcionalmente. O fato de paises ¢ regides apresentarem diferen- gas quanto ao momento oportuno de dotarem seu povo do ace: ao poder da tecnologia representa fonte crucial de desigualdade em nossa sociedade, As areas desconectadas sio cultural ¢ espacialmente descontinuas interior dos EUA ou nos subirbios da Franga, assim como nas favelas africanas © nas dreas rurais carentes chinesas ¢ indianas. Mas atividades, grupos sociais e territérios dominantes por todo 0 globo esto conectados, em meados dos anos 90, em um novo sistema tecnoldgico que, como tal, comegou a tomar forma somente na década de 70. estio nas cidades do Como ocorreu essa transformagio fundamental em um periodo que repre- senta apenas um instante histérico? Por que essa transformagiio est se difundin- do por todo o mundo em ritmo tio intenso, ainda que irregular? Por que & uma “revolugiio”? Como nossa experiéneia sobre 0 novo esta baseada em passado A Revolugao da Tecnologia da Informay recente, penso que as respostas a essas questées basicas podem ser encontradas com a ajuda de uma rapida revisao histérica da Revolugao Industrial, ainda pre- sente em nossas instituigdes e, portanto, em nossa mente. Ligdes da Revolucao Industrial Segundo os historiadores, houve pelo menos duas Revolugdes Industriais: a primeira comegou pouco antes dos tiltimos trinta anos do século XVIII, carac- terizada por novas tecnologias como a maquina a vapor, a fiadeira, 0 processo Cort em metalurgia e, de forma mais geral, a substituigio das ferramentas ma- nuais pelas méquinas; a segunda, aproximadamente 100 anos depois, destacou- se pelo desenvolvimento da eletricidade, do motor de combustio interna, de produtos quimicos com base cientifica, da fundigio eficiente de ago e pelo ini- cio das tecnologias de comunicagio, com a difusio do telégrafo e a invengao do telefone. Entre as duas hé continuidades fundamentais, assim como algumas diferengas cruciais. A principal é a importancia decisiva de conhecimentos cien- tificos para sustentar ¢ guiar o desenvolvimento tecnolégico apos 1850.2 E pre- cisamente por causa das diferengas que os aspectos comuns a ambas podem oferecer subsidios preciosos para se entender a légica das revolugdes tecnolégica Primeiramente, em ambos os casos, testemunhamos 0 que Mokyr descreve como um periodo de “transformagio tecnolégica em aceleragdo e sem prece- dentes””> em comparagio com os padrées histéricos. Um conjunto de macroin- vengdes preparou o terreno para o surgimento de microinvengdes nos campos da agropecudria, indiistria ¢ comunicagées. A descontinuidade historica fundamen- tal irreversivel foi introduzida na base material da espécie humana em um pro- cesso dependente do percurso, cuja légica interna e seqiiencial foi pesquisada por Paul David ¢ teorizada por Brian Arthur.* Foram, de fato, “revolugdes” no sentido de que um grande aumento repentino e inesperado de aplicagdes tecnolégi- cas transformou os processos de produgio e distribuigdo, criou uma enxurrada de novos produtos e mudou de maneira decisiva a localizagao das riquezas e do poder no mundo, que, de repente, ficaram ao alcance dos paises ¢ elites capazes de comandar © novo sistema tecnolégico. O lado escuro dessa aventura tec- nolégica & que cla estava irremediavelmente ligada a ambigdes imperialistas ¢ conflitos interimperialistas. Todavia, essa € precisamente a confirmagio do carater revolucionario das novas tecnologias industriais. A ascensio histérica do chamado Ocidente, limi- tando-se de fato a Inglaterra e a alguns paises da Europa Ocidental, bem como & América do Norte © a Austrilia, est fundamentalmente associada & superio- 54 A Revolugio da Tecnologia da Informagio ridade tecnolgica alcangada durante as duas Revolugdes Industriais.25 Nada na hist6ria universal cultural, cientifica, politica ou militar antes da Revolugiio In- dustrial poderia explicar a indiscutivel supremacia (anglo-saxdnica/alema com um toque francés) do “Ocidente” entre 1750 ¢ 1950. A China mostrou-se uma cultura muito superior durante a maior parte da histéria pré-renascentista; a civi- lizago mugulmana (tomando a liberdade de usar esse termo) dominou a maior parte do Mediterraneo e exerceu grande influéncia na Africa ¢ na Asia durante toda a Idade Moderna; no geral, a Africa ¢ a Asia mantiveram-se organizadas em tomo de centros politicos ¢ culturais auténomos; a Riissia reinou com ex- tremo isolamento em uma vasta area da Europa Oriental e Asia; ¢ 0 Império Espanhol, a retardatéria cultura curopéia da Revolugio Industrial, foi a maior poténcia mundial por mais de dois séculos depois de 1492. A tecnologia, ex- pressando condigées sociais especificas, introduziu nova trajetoria histérica na segunda metade do século XVIII. Essa trajetoria originou-se na Inglaterra, apesar de suas raizes intelectuais poderem ser encontradas por toda a Europa ¢ no espirito renascentista das des- cobertas.”* Na yerdade, alguns historiadores insistem que os conhecimentos cien- tificos necessirios & primeira Revolugiio Industrial ja estavam disponiveis cem anos antes, prontos para ser usados sob condigdes sociais maduras; ou, como afirmam outros, aguardando a engenhosidade técnica de inventores autodidatas, como Newcomen, Watts, Crompton ou Arkwright, capazes de transformar a tec- nologia disponivel, combinada com a experiéncia artesanal, em novas e decisi- vas tecnologias industriais.?” Porém, a segunda Revolugio Industrial, mais de- pendente de novos conhecimentos cientificos, mudou scu centro de gravidade para os EUA e a Alemanha, onde ocorreu a maior parte dos desenvolvimentos em produtos quimicos, cletricidade ¢ telefonia® Historiadores tém feito uma andlise meticulosa das condigées sociais associadas as mudangas geogrificas das inovagdes técnicas, muitas vezes enfocando as caracteristicas dos sistemas educacionais ¢ cientificos ou a institucionalizagao dos direitos de propriedade, Porém, a explicagao contextual para a trajetéria irregular da inovagio tecnold- gica parece ser muito ampla ¢ aberta a interpretagdes alternativas. Hall ¢ Peston, a0 analisarem a mudanga geogrifica da inovagio tecnolégica entre 1846 © 2003, mostram a importincia de fontes locais de inovagio, das quais Betlim, Nova York ¢ Boston sio coroadas como “centros mundiais de alta tecnologia indus trial” entre 1880 ¢ 1914, enquanto “Londres no mesmo periodo era uma sombra pilida de Berlim”” O motivo disso encontra-se na base territorial para a in- teracio dos sistemas de descobertas ¢ aplicagbes tecnoldgicas, isto 6, nas pro- pricdades sinérgicas do que é conhecido na literatura como “meios de inovagio”° Na verdade, as descobertas tecnolégicas ocorreram em agrupamentos, in- teragindo entre si num processo de retornos cada vez maiores, Sejam quais fo- A Revolugao da Tecnologia da Informagiio 55 rem as condigdes que determinaram esses agrupamentos, a principal ligdo que permanece é que a inovagao tecnoldgica néo é uma ocorréncia isolada®' Ela reflete um determinado estagio de conhecimento; um ambiente institucional e industrial especifico; uma certa disponibilidade de talentos para definir um pro- blema técnico e resolvé-lo; uma mentalidade econdmica para dar a essa apli- cago uma boa relagio custo/beneficio; ¢ uma rede de fabricantes e usuarios capazes de comunicar suas experiéncias de modo cumulativo ¢ aprender usando e fazendo. As elites aprendem fazendo ¢ com isso modificam as aplicagdes da | tecnologia, enquanto a maior parte das pessoas aprende usando e, assim, per- manecem dentro dos limites do pacote da tecnologia. A interatividade dos siste- | mas de inovagio tecnolégica ¢ sua dependéncia de certos “ambientes” propicios para trocas de idéias, problemas e solugdes sao aspectos importantissimos que podem ser estendidos da experiéncia de revoluges passadas para a atual.? Os efeitos positivos, a longo prazo, das novas tecnologias industriais no crescimento econdmico, na qualidade de vida e na conquista humana da Na- tureza hostil (refletidos no aumento impressionante da expectativa de vida, que nao tivera uma melhoria constante antes do século XVIII) sao indiscutiveis nos registros histéricos. Porém nao vieram cedo, apesar da difusio da maquina a vapor e das novas maquinas ¢ equipamentos. Mokyr relembra que “no inicio, 0 consumo per capita ¢ a qualidade de vida aumentaram pouco [no fim do séc. XVII], mas as tecnologias de produgdo mudaram drasticamente varias indis- trias e setores, preparando 0 caminho para 0 crescimento sustentado schumpete- riano na segunda metade do século XIX, quando o progresso tecnolégico penetrou em indistrias nao afetadas anteriormente”.”” Essa estimativa crucial forga-nos a avaliar os verdadeiros efeitos de grandes transformagées tecnologicas A luz de uma defasagem no tempo em fung&io das condigées especificas de cada socie- dade. Todavia, os registros histéricos parecem indicar que, em termos gerais, quanto mais préxima for a relago entre os locais de inovagao, produgio e utili zagio das novas tecnologias, mais rapida serd a transformagao das soci maior sera 0 retorno positivo das condigdes sociais sobre as condigées gerais para favorecer futuras inovagdes, Assim, na Espanha, a Revolugao Industrial difundiu-se de forma répida na Catalunha, ja no fim do século XVIII, mas al- cangou uma velocidade bem menor no resto do pais, particularmente em Madri € no Sul; apenas o Pais Basco e Asturias tinham aderido ao processo de indus- trializagao no final. do século XIX.™ As fronteiras da inovagdo industrial eram coincidentes em grande parte com areas onde foi proibido comercializar com as colénias da América espanhola por cerca de dois séculos: embora as elites an- daluzas ¢ castelhanas, bem como a Coroa, pudessem viver de suas rendas nort americanas, 0s catalies tinham de prover o proprio sustento através do comércio ¢ da engenhosidade, enquanto cram submetidos a pressdio de um Estado cen- 56 ‘A Revolugo da Tecnologia da Informagiio tralizador. Em parte como resultado dessa trajetéria historica, até a década de 1950 a Catalunha ¢ 0 Pais Basco eram as tinicas regiées totalmente industriali- zadas, até a década de 1950, ¢ as principais fontes de espiritos empreendedores € de inovagiio, em profundo contraste com as tendéncias do resto da Espanha Assim, condigdes sociais especificas favorecem a inovagiio tecnolégica, que ali- menta a trilha do desenvolvimento econdmico ¢ as demais inovagdes. Contudo, a reprodugiio dessas condiges é tio cultural ¢ institucional quanto econémica e tecnol6gica. A transformagio de ambientes sociais ¢ institucionais pode alterar © ritmo e a geografia do desenvolvimento tecnolégico (por exemplo, o Japao depois da Restauragdo Meiji ou a Riissia durante um breve periodo sob o regime Stolypin), embora a historia passada ostente uma inércia consideravel. Uma iiltima ligdo importante das Revolugdes Industriais, que considero pertinente a esta anilise, gera controvérsia: apesar de ambas terem causado 0 surgimento de novas tecnologias que na verdade formaram e transformaram um sistema industrial em estigios sucessivos, no Amago dessas revolugdes havia | uma inovagio fundamental em geragio e distribuigao de’ energia. R. J. Forbes, | famoso historiador de tecnologia, afirma que “a invengio da maquina a vapor & © fator central na revolugio industrial”, seguida pela introdugio de novos mo- tores primirios e motores primarios méveis, com os quais “a forga da maquina a vapor podia ser levada aonde fosse necessaria e na extensiio desejada”.° E, embora insista no carter multifacetado da Revolugio Industrial, Mokyr também acha que “nao obstante os protestos de alguns historiadores econdmicos, a maquina a vapor é ainda amplamente considerada a inveng&o mais requintada da Revo- lugdo Industrial”. A eletricidade foi a forga central da segunda revolugao, ape- sar de outros avangos extraordindrios como produtos quimicos, ago, motor de _combustio interna, telégrafo e telefonia Isso porque, apenas mediante geragiio e distribuigéo de eletricidade, os outros campos puderam desenvolver suas apli- cages e ser conectados entre si. Um caso em especial foi o do telégrafo elétrico que, utilizado experimentalmente de 1790-99 © em pleno uso desde 1837, sd conseguiu desenvolver-se em uma rede de comunicagao, conectando 0 mundo em larga escala, quando pode contar com a difusio da eletricidade. O uso di- fundido da cletricidade a partir de 1870 mudou os transportes, telégrafos, ilumi nagdo e, no menos importante, o trabalho nas fabricas mediante a difusio de energia na forma de motores elétricos, Na verdade, embora as fibricas sejam associadas a primeira Revolugio Industrial, por quase um século clas nao foram concomitantes com o uso da maquina a vapor, bastante utilizada em pequenas oficinas artesanais, enquanto muitas fabricas grandes continuavam a usar fontes. melhoradas de energia hidrdulica (dai a razio de, por muito tempo, terem sido conhecidas como moinhos). Foi o motor elétrico que tanto tornou possivel quanto A Revolugio da Tecnologia da Informagio 37 induziu a organizagiio do trabalho em larga escala nas fabricas industriais.’” Nas palavras de R. J. Forbes (em 1958): Durante os iiltimos 250 anos, cinco novos motores primarios importantes geraram aquilo que é freqiientemente chamado de a Era das Maquinas, No século XVIII foi a miquina a vapor; no sée. XIX a turbina hidréulica, motor de combustio interna ¢ a turbina a vapor; no sée. XX a turbina de combustio. Historiadores sempre inventaram Jemas que denotassem mo- vimentos ou correntes histéricas. Assim ¢ com a “Revolugio Industrial” titulo para um processo de desenvolvimento freqiientemente descrito como tendo seu inicio no comego do século XVIII ¢ estendendo-se por quase todo o século XIX. Foi um movimento lento, mas forjou mudangas tio profundas ‘em sua combinagio entre progresso material e deslocamento social que, no conjunto, talvez, possam ser deseritas como revoluciondrias se considerad: no periodo de tempo abrangido por essas datas.** Portanto, atuando no processo central de todos os processos — ou seja, a energia necesséria para produzir, distribuir e comunicar — as duas Revolugies Industriais difundiram-se por todo o sistema econémico e permearam todo o tecido social. Fontes méveis de energia barata ¢ acessivel expandiram e aumen- taram a forga do corpo humano, criando a base material para a continuagio histérica de um movimento semelhante rumo a expansao da mente humana. A seqiiéncia histérica da Revolugao da Tecnologia da Informagao A breve, porém intensa, histéria da Revolugao da Tecnologia da Infor- magio foi contada tantas vezes nos tltimos anos, que & desnecessirio dar ao leitor um outro relato completo.” Além disso, devido ao ritmo acelerado de: revolugio, qualquer outro relato tornar-se-ia obsoleto, tanto que, entre 0 mo- mento em que este livro esti sendo escrito e o de sua leitura (digamos 18 me- ses), microchips terio dobrado seu desempenho a um determinado prego, de acordo com a geralmente aceita “lei de Moore”."” Todavia, considero «til para a analise nos lembrarmos dos principais eixos da transforma: io tecnolégica em siio da informagao, colocando-os na seqiiéncia a ” ene que se deslocou rumo & formagiio de um novo paradigma sociotécnico." Este breve resumo me autorizara, posteriormente, a omitir referéncias sobre aspectos, técnicos ao discutir sua interag’o especifica com a economia, cultura ¢ socic- 58 A Revolugio da Tecnologia da Informagio dade por todo 0 itinerdrio intelectual deste livro, exceto quando novos elementos de informagao forem necessarios. Macromudang: da microengenharia: eletrénica e informagdo Apesar de os antecessores industriais ¢ cientificos das tecnologias da in- formagao com base em microeletrénica jé poderem ser observados anos antes da década de 40” (no menosprezando a invengao do telefone por Bell, em 1876, do radio por Marconi, em 1898, e da valvula a vacuo por De Forest, em 1906), foi durante a Segunda Guerra Mundial e no periodo seguinte que se deram as prineipais descobertas tecnologicas em eletrénica; o primeiro compu- tador programavel ¢ o transistor, fonte da microeletronica, 0 verdadeiro cere da Revolugiio da Tecnologia da Informagao no século XX." Porém, defendo que, de fato, s6 na década de 70 as novas tecnologias da informagio difundiram-se amplamente, acelerando seu desenvolvimento sinérgico ¢ convergindo em um ovo paradigma. Vamos reconstituir os estigios da inovagiio em trés principais campos da tecnologia que, intimamente inter-relacionados, constituiram a his- toria das tecnologias baseadas em cletronica: microeletrénica, computadores e telecomunicagies. O transistor, inventado em 1947 na empresa Bell Laboratories em Murray Hill, no estado de Nova Jersey, pelos fisicos Bardeen, Brattain ¢ Shockley (ga- nhadores do Prémio Nobel pela descoberta), possibilitou o processamento de impulsos elétricos em velocidade ripida e em modo binério de interrupgaio ¢ amplificagio, permitindo a codificagao da légica e da comunicagao com e entre as maquinas: esses dispositivos tém 0 nome de semicondutores, mas as pessoas costumam chama-los de chips (na verdade, agora constituidos de miles de transistores). O primeiro passo na difusao do transistor foi dado em 1951, coma invencdo do transistor de jungio por Shockley. Porém, sua fabricagiio ¢ utili- zagao em ampla escala exigiam novas tecnologias de produgio ¢ uso de material apropriado. A mudanga para o silicio, construindo, literalmente, a nova revo- lugao na areia, foi pionciramente realizada pela Texas Instruments (em Dallas) env 1954 (um feito facilitado pela contratagio de Gordon ‘Teal, em 1953, outro impor tante cientista da Bell Laboratories). A invengio do processo plano em 1959 pela empresa Fairchild Semiconductors (localizada no Vale do Silicio) abriu a possibili- dade de integragio de componentes miniaturizados com preciso de fabricaciio. Contudo, o passo decisivo da microcletronica foi dado em 1957: 0 circuito integrado foi inventado por Jack Kilby, engenheiro da Texas Instruments (que Patenteou) em parceria com Bob Noyce, um dos fundadores da Fairchild, Mas foi Noyce que fabricou Cis pela primeira vez, usando © processo plano. Essa A Revolugiio da Tecnologi 59 iniciativa acionou uma explosio tecnolégica: em apenas trés anos, entre 1959 ¢ 1962, os pregos dos semicondutores cairam 85%, © nos dez anos seguintes a produgdo aumentou vinte vezes, sendo que 50% dela foi destinada a usos mili- tares."' A titulo de comparagao histérica, levou setenta anos (1780 — 1850) para que 0 prego do tecido de algodio caisse 85% na Inglaterra durante a Revolugiio Industrial.” Entéo, o movimento acelerou-se na década de 60: 4 medida que a tecnologia de fabricagdo progredia ¢ se conseguia melhorar o design dos chips com 0 auxilio de computadores, usando dispositivos microcletrénicos mais rapi- dos ¢ mais avangados, 0 prego médio de um circuito integrado caiu de US$ 50 em 1962 para US$ | em 1971. O avango gigantesco na difuséo da microeletrénica em todas as maquinas ocorreu em 1971 quando o engenheiro da Intel, Ted Hoff (também no Vale do Silicio), inventou © microprocessador, que é 0 computador em um tinico chip. Assim, a capacidade de processar informagao poderia ser instalada em todos os lugares. Comegava a disputa pela capacidade de integragiio cada vez maior dés circuitos contidos em apenas um chip, ¢ a tecnologia de produgio e design sem- pre excedia os limites da integragao antes considerada fisicamente impossivel sem abandonar o uso do-silicio. Em meados dos anos 90, as avaliagdes técnicas ainda prevéem entre dez ¢ vinte anos de emprego satisfat6rio para os circuitos a base de silicio, embora j4 se tenham intensificado as pesquisas sobre materiais alternativos. O nivel de integragdo tem progredido em ritmo bastante rapido nos ultimos vinte anos. Embora detalhes técnicos nao tenham vez neste livro, é perti- nente a andlise indicar a velocidade e a extenstio da transformagio tecnolégica. Como se sabe, a capacidade dos chips pode ser avaliada por uma combi- nagiio de trés caracteristicas: sua capacidade de integragao, indicada pela menor Jargura das linhas de condugaio no interior do chip medida em microns (1 micron = a milionésima parte de uma polegada); sua capacidade de memoria, medida em bytes: milhares (kbytes) e milhées (megabytes); ¢ a velocidade do microproces- ador medida em megahertz. Assim, o primeiro processador de 1971 foi produ- zido com linhas de aproximadamente 6,5 microns; em 1980 alcangou 4 microns; em 1987, | micron; em 1995, o Pentium da Intel tinha um tamanho na faixa de 0,35 micron; ¢ enquanto este livro era escrito, as projegdes ja estavam em 0,25 micron para 1999. Assim, enquanto em 1971 cabiam 2.300 transistores em um chip do tamanho de uma unha, em 1993 cabiam 35 milhdes. Em 1971, a capaci- dade de memoria, indicada como meméria DRAM (memoria dindmica de aces- so aleatério), era de 1.024 bytes; em 1980, 64.000; em 1987, 1.024.000; em 1993, 16.384.000; e, segundo as projegées, sera de 256.000.000 bytes em 1999, No tocante a velocidade, os atuais ‘microprocessadores de 64 bits sio 550 vezes mais rapidos que o primeiro chip da Intel em 1972; ¢ o ntimero de MPUs dobra a cada 18 meses, As projegdes para 2002 prevéem uma aceleragao da tecnologia 60 A Revolugio da Tecnologia da Informagiio de microeletrdnica na integragio (chips de 0,18 micron), na capacidade da me- méria DRAM (1.024 megabytes) & na velocidade dos microprocessadores (até mais de 500 megahertz, comparados aos 150 de 1993). Ao combinar os sur- preendentes desenvolvimentos em processamento paralelo, usando microproces sadores miiltiplos (inclusive, no futuro, unindo-se microprocessadores miiltiplos em apenas um chip), parece que 0 poder da microeletrénica ainda esta sendo liberado, aumentando continuamente a capacidade da computagio. Além disso, a miniaturizagio, a maior especializagzio e a queda dos pregos dos chips de capacidade cada vez maior possibilitaram sua utilizagio em maquinas usadas em nossa rotina didria, de lava-lougas e fornos de microondas a automéveis, cujos instrumentos eletronicos, nos modelos basicos dos anos 90, alcangaram um valor mais alto que o préprio ago utilizado em sua fabricagao. Os computadores também foram concebidos pela mie de todas as tecnolo- gias, a Segunda Guerra Mundial, mas nasceram somente em 1946 na Filadélfia, se considerarmos as ferramentas desenvolvidas com objetivos bélicos, como. © Colossus briténico (1943) para decifrar cédigos inimigos ¢ 0 Z-3 alemio que, como dizem, foi criado em 1941 para auxiliar os calculos das aeronaves."® To- davia, os Aliados concentravam a maior parte de seus esforgos em eletronica hos programas de pesquisa do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), ea verdadeira experiéncia da capacidade das calculadoras ocorreu na universi- dade da Pensilvania com o patrocinio do exército norte-americano, onde Mauchly ¢ Eckert desenvolveram 0 primeiro computador para uso geral, em 1946, o ENIAC (computador ¢ integrador numérico eletrénico). Os historiadores lembram que o primeiro computador eletronico pesava 30 toneladas, foi construido sobre estru- turas metilicas com 2,75 m de altura, tinha 70 mil resistores e 18 mil valvula vacuo ¢ ocupava a drea de um ginasio esportivo. Quando ele foi acionado, seu consumo de energia foi tio alto que as luzes de Filadélfia piscaram.” Porém, a primeira versio comercial dessa méquina primitiva, o UNIVAC-1, desenvolvido em 1951 pela mesma equipe e depois com a marca Remington Rand, aleangou tremendo sucesso no Pprocessamento dos dados do Censo norte- americano de 1950. A IBM, também patrocinada por contratos militares ¢, em parte, contando com as pesquisas do MIT, superou suas restrigdes iniciais em re. lacdo a era do computador ¢ entrou na disputa em 1953 com uma mriquina de 701 valvulas. Em 1558, quando Sperry Rand introduziu um computador de grande Porte (mainframe) de segunda geragio, a IBM logo deu seqiiéneia com seu mo- delo 7090. Mas foi apenas em 1964. que a IBM, com seu mainframe 360/370, conseguiu dominar a inditstria de computadores, povoada por noyas (Control Data, Digital) e antigas (Sperry, Honeywell, Burroughs, NCR) empresas fabri- cantes de maquinas comerciais. A maior parte dessas empresas estava decadente ou desaparecera na década de 90; esta & a velocidade da “destruigao criativa”

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