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OS PRETOS NOVOS QUE NÃO CHEGARAM A VELHOS - Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Revista Nossa História, ano 1, nº 33, julho de 2006
Observando-se o livro de óbitos de 1824 a 1830 do Cemitério dos Pretos Novos, lavrado pela Igreja de
Santa Rita, pode-se notar que, dos 3.128 registros, cerca de 30% eram de escravos provenientes do porto de
Angola, 30% de Benguela, 10% de Luanda, 10% de Moçambique e uns 20% de outros portos; quase todos porém
da África central ou participantes da cultura banto, que tinha uma forma diferenciada de entender e de se com-
portar diante da morte. Para os bantos, o mundo era dividido em duas dimensões que se completavam. Uma, a do
mundo das ‘coisas invisíveis’, no qual viviam os ancestrais de cada tribo, como intermediários entre o Ser
Supremo e os vivos, onde os mortos iam se encontrar com seus guerreiros antepassados após atravessarem a
Kallunga (a separação entre esta vida e o Além), que para eles era o próprio mar. A outra dimensão era a do
mundo “perceptível” ou físico onde habitavam. Neste, os homens poderiam impedir que a desgraça se abatesse
sobre a aldeia, trazer o sucesso nas colheitas, e a manutenção da própria vida, desde que conseguissem agradar a
seus ancestrais. Assim, o culto aos antepassados ocupava lugar central na religiosidade banto e deveria ser
mantido como garantia de vida para cada linhagem. O conhecimento da cultura africana e de seu modo de encarar
a morte permite entender por que os escravos buscavam se filiar a irmandades, como a do Rosário. Eles temiam
que seus corpos fossem enterrados sem nenhum tipo de ritual, o que para eles representava, antes de tudo,
morrer longe de seus antepassados. Ser sepultado no Cemitério dos Pretos Novos significava um corte definitivo
na linhagem e a impossibilidade de “reviver” junto aos seus antepassados do outro lado do Atlântico, no
continente africano.
Cortejo fúnebre de uma negra católica chegando à Igreja da Lampadosa, aquarela de Debret (1826)