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Beato Francisco de Fátima, um contemplativo da ordem sacral do

universo

Repórter: Jonathan Monteiro | Data de envio: 06-06-2008

Em maio de 1946, a Irmã Lúcia, então freira dorotéia, esteve em Fátima para identificar
os lugares históricos das aparições do anjo (1916) e de Nossa Senhora (1917). No sítio
dos Valinhos (onde se deu a quarta aparição de Nossa Senhora, em agosto) havia um
grupo de pessoas esperando-a, entre elas o seu tio Marto, pai de Francisco e Jacinta.
Este, ao vê-la, disse com muito contentamento:

— Que bela moça tu estás! Tu, sim, que valeu a pena vires a este mundo! Lembras-te da
minha Jacinta e do meu Francisco?

— Então, tio, não me hei de lembrar?!

— Se fossem vivos, seriam como tu!

— Seriam como eu?!… Seriam melhores do que eu! Nosso Senhor, desta vez,
enganou-se. Devia ter deixado cá um deles, e deixou-me a mim!… (cfr. Sebastião
Martins dos Reis, A vidente de Fátima dialoga e responde pelas aparições, Editorial
Franciscana, Braga, 1970, p. 123).

É difícil a comparação entre as graças

A Irmã Lúcia sempre tributou grande reconhecimento pelas virtudes dos primos
Francisco e Jacinta, que Nossa Senhora levou para o Céu, respectivamente em 4 de abril
de 1919 e 20 de fevereiro de 1920. A principal vidente somente iria comparecer diante
de Deus no dia 13 de fevereiro de 2005, quando seus primos já tinham sido beatificados
por João Paulo II durante sua terceira peregrinação a Fátima, em 13 de maio do ano
2000.

Ocorrendo no dia 11 de junho deste ano de 2008 o centenário do nascimento do Beato


Francisco de Fátima, nada mais justo que Catolicismo consagre um artigo ressaltando as
qualidades de alma e as graças especialíssimas com que foi favorecido esse privilegiado
do Céu, de quem a Irmã Lúcia mostrava ter levado inteiramente a sério a Mensagem de
Nossa Senhora, e que teria sido melhor do que ela!

Não nos cabe deslindar qual das graças concedidas a um e a outro dos videntes foi
maior; e menos ainda se a correspondência à graça foi maior em um que em outro;
cumpre-nos apenas descrevê-las, para que tomemos os bem-aventurados videntes como
referência, e assim nossa correspondência pessoal à Mensagem de Fátima seja a maior
possível, segundo os desígnios da Providência para cada um de nós.
Vidente imerecidamente olvidado

As pessoas que têm conhecimento da história das aparições de Fátima — e supomos que
o leitor esteja nessas condições — sabe que a Irmã Lúcia via, ouvia e falava com Nossa
Senhora; Jacinta via e ouvia; Francisco via, porém não ouvia nem falava. Por isso,
tomava conhecimento do que Nossa Senhora dizia através dos dois outros videntes.

Aqui se nota desde logo que Nossa Senhora estabeleceu uma hierarquia entre eles. Esse
fato levou a que muitos colocassem a figura de Francisco um tanto de lado, como o
menos favorecido dos videntes. Mas esse olvido é imerecido, pois não considera que o
favor de estar ali e ver Nossa Senhora já indica um privilégio altíssimo, ao qual
Francisco correspondeu admiravelmente, como veremos em seguida.

Contemplação sacral das obras de Deus

O Pe. Fernando Leite SJ escreveu um belo livro sobre o Beato Francisco (Francisco de
Fátima, Editorial Apostolado da Oração, Braga, 4ª ed., 1986, 168 pp.). Nele diz o
sacerdote jesuíta:

“Esta pequenina alma de poeta [Francisco], este caráter bondoso, este coração
sensível, este contemplativo em embrião amava todas as coisas. Compreendia que
todas são obras de Deus, que depois de as criar as fitou com olhar complacente e viu
que ‘todas eram muito boas’ (Gen. 1,31). Ele vivia o pensamento expresso por Cristo a
Santa Catarina de Siena: ‘Eu quero que tu sejas enamorada de todas as coisas, porque
todas são boas, perfeitas e dignas de ser amadas, pois todas, exceto o pecado, brotam
da fonte da minha bondade’ (Carta de Santa Catarina de Siena a uma abadessa, apud
Enrique Fernandez OP, Una Madre Santa de Nuestro Tiempo, Editorial Fides,
Salamanca, 2ª ed., p. 218)” (op. cit., pp. 17-18).

Numerosos são os mestres da doutrina católica que mostram como a contemplação das
coisas criadas eleva até Deus, porque todas elas contêm em si um reflexo das perfeições
divinas, que o olhar humano percebe e a alma admira, e assim é conduzida a Deus.
Pode-se falar aqui de uma contemplação sacral da ordem do universo.

Assim, por exemplo, os videntes referiam-se às estrelas como candeias dos anjos, à Lua
como candeia de Nossa Senhora, e ao Sol como candeia de Nosso Senhor. Em suas
Memórias, a Irmã Lúcia menciona o fato:

O Francisco “lá ia conosco para a velha eira a brincar enquanto esperávamos que
Nossa Senhora e os anjos acendessem as suas candeias. Animava-se também a contá-
las, mas nada o encantava tanto como o lindo nascer e pôr-do-sol. Enquanto deste se
avistasse algum raio, não investigava se já havia alguma candeia acesa.

— Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor — dizia ele à Jacinta, que
gostava mais da de Nossa Senhora; porque, dizia ela, ‘não faz doer a vista’.

E, entusiasmado, seguia com a vista todos os raios que, dardejando nos vidros das
casas das aldeias vizinhas, ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da
serra, os fazia brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que
as dos anjos” (IV Memória, p. 248 — nossas citações das Memórias da Irmã Lúcia são
extraídas da edição fac-similar produzida pelo Pe. Antonio Maria Martins SJ, Porto,
1973).

Por isso, o retrato espiritual que dele traça o Pe. Fernando Leite é perfeito:

“O Francisco afigura-se-nos uma dessas almas interiores, muito sensíveis, de feição


contemplativa, que não gostam do bulício, mais amigas de pensar do que de falar, mais
propensas a ouvir do que a manifestar-se, mais propensas a estar quietas do que a
mexer-se. Em casa e dentro de um círculo restrito sentem-se à vontade e são mesmo
expansivas. Fora dos seus amigos ou do ambiente familiar, fecham-se discretamente a
tudo que não lhes interessa, aborrecendo os grandes ajuntamentos e as exterioridades.
Mais tarde [depois que começaram as aparições de Nossa Senhora], veremos o
Francisco isolar-se nos montes para meditar e contemplar sossegadamente ou fugir
para a Igreja a fim de estar sozinho com Jesus” (op. cit., p. 21).

Nesta última frase, o Pe. Leite se refere ao tempo — depois das aparições — em que
Francisco acompanhava Lúcia até a escola, aonde esta ia aprender a escrever, conforme
a ordem de Nossa Senhora. Dizia ele à sua prima: “Olha, tu vais à escola. Eu fico aqui,
na Igreja, junto de Jesus escondido. Não me vale a pena aprender a ler; daqui a pouco
vou para o Céu. Quando voltares, vem por cá chamar-me” (IV Memória, p. 286).

Graças místicas do mais elevado grau

O Pe. Joaquín María Alonso CMF –– sacerdote cordimariano que, por designação do
Bispo de Leiria, trabalhou desde 1966, até sua morte em dezembro de 1981, na edição
crítica dos documentos referentes às aparições de Fátima –– concorda
fundamentalmente com o Pe. Leite. E vai além.

Procurando remediar o olvido imerecido a que foi relegado Francisco, consagra-lhe um


capítulo especial em sua obra póstuma pouco divulgada, mas preciosa, intitulada
Doctrina y espiritualidad del mensaje de Fátima (Arias Montano, Madrid, 1990). O
título do capítulo já diz tudo: Francisco, o extático contemplativo (pp. 113-129).

O Pe. Alonso opina que a percepção mística de Francisco era do mais alto grau e, por
isso, “a própria visão do inferno não o impressionou tanto, certamente porque
contemplou o mistério da iniqüidade à luz superior da contemplação mística” (op. cit.,
p. 122).

Continua o Pe. Alonso: “A percepção mística de Francisco estava toda subordinada ao


fenômeno que Lúcia chama o reflexo” (op. cit., p. 123), que se dava durante as
aparições, no qual os videntes se viam como que submergidos em Deus, e que provocou
o seguinte comentário de Francisco: “Essa gente fica tão contente por a gente lhe dizer
que Nossa Senhora mandou rezar o terço, e que aprendêssemos a ler! O que seria se
soubessem o que Ela nos mostrou em Deus, nessa luz tão grande! Mas isso é segredo,
não se lhes diz. É melhor que ninguém o saiba” (IV Memória, p. 262). A Irmã Lúcia
explica: “O que mais o impressionava ou absorvia era Deus, a Santíssima Trindade,
nessa luz imensa que nos penetrava no mais íntimo da alma” (IV Memória, p. 266).

Assim, “tudo nos leva à conclusão — comenta o Pe. Alonso — de que a percepção
mística de Francisco era da qualidade mais alta entre as graças místicas. Os efeitos,
que Lúcia chamava íntimos, produzidos nos videntes pelas aparições, no Francisco se
produziam por simples visão intelectual. Daí sua inefabilidade” (op. cit., p. 121).

De onde a afirmação ousada do Pe. Alonso, de que as “visões intelectuais altíssimas”,


concedidas a Francisco, foram “muito mais perfeitas misticamente do que as que
experimentaram Jacinta e Lúcia” (op. cit., p. 127).

Se bem que não precisemos necessariamente concordar com essa valoração das graças
concedidas aos videntes, ela em todo caso indica que Francisco não foi um participante
apagado do affaire Fátima, mas um figurante com um papel todo especial, que o Pe.
Alonso se compraz em esmiuçar em seguida.

Prioridade de Francisco: consolar a Nosso Senhor

Observa o Pe. Alonso (op. cit., p. 126): “Lúcia ressaltou bem as diferenças entre a
espiritualidade de Francisco e a de Jacinta, no que se refere à compreensão mística,
inteligência, caráter, etc., e sobretudo no que diz respeito à prática da reparação,
dizendo: ‘Enquanto a Jacinta parecia preocupada com o único pensamento de
converter pecadores e livrar almas do Inferno, ele parecia só pensar em consolar a
Nosso Senhor e a Nossa Senhora, que lhe tinha parecido estarem tão tristes’” (IV
Memória, p. 288).

A Irmã Lúcia narra também a seguinte conversa:

“Um dia perguntei-lhe:

— Francisco, tu de que gostas mais: de consolar a Nosso Senhor, ou de converter os


pecadores para que não fossem mais almas para o inferno?

— Gostava mais de consolar a Nosso Senhor. Não reparaste como Nossa Senhora,
ainda no último mês, se pôs tão triste, quando disse que não ofendessem a Deus Nosso
Senhor, que já está muito ofendido? Eu queria consolar a Nosso Senhor e, depois,
converter os pecadores, para que não O ofendessem mais” (IV Memória, pp. 284-286).

Era-lhe tão clara essa prioridade espiritual de consolar a Deus, que a todo propósito a
explicitava. A Irmã Lúcia conta que, estando ele já doente, “ao entrar um dia, com a
Jacinta, no seu quarto, disse-nos:

— Hoje falem pouco, que me dói muito a cabeça.

— Não te esqueças de oferecer pelos pecadores — disse-lhe a Jacinta.

— Sim, mas primeiro ofereço para consolar a Nosso Senhor, a Nossa Senhora; e
depois, então, é que ofereço pelos pecadores e pelo Santo Padre” (IV Memória, p. 288).

Ainda nas vésperas de morrer, Francisco disse a Lúcia:

“— Olha! Estou muito mal; já me falta pouco para ir para o Céu.


— Então vê lá: não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre,
por mim e pela Jacinta.

— Sim, eu peço; mas olha: essas coisas pede-as antes à Jacinta, que eu tenho medo de
me esquecer quando vir a Nosso Senhor! E, depois, antes O quero consolar” (IV
Memória, p. 304).

De onde conclui o Pe. Alonso:

“A contribuição de Francisco à Mensagem de Fátima não se dá principalmente na


ordem apologética. [...] Sua importância advém de sua experiência inefável da
consolação de Deus, do caráter absolutamente original de sua espiritualidade
‘teocêntrica’; isto é, dirigida primeiro e antes de tudo a restituir a Deus a glória
perdida pelo pecado, e só depois à salvação das almas. Esta lição é importante em
tempos em que uma atitude horizontalista está fazendo perder o equilíbrio, em favor de
um antropocentrismo fora de órbita. E aí está a verdadeira contribuição espiritual de
Francisco. Será necessário, portanto, não apenas tirá-lo do olvido em que foi mantido,
mas também dar-lhe a importância primordial que tem, no interior da Mensagem de
Fátima” (op. cit., pp. 128-129).

“Que luz tão bonita, ali, junto da nossa janela”

Por isso certamente foi premiado com uma visão celeste pouco antes de morrer. Narra o
Pe. Fernando Leite SJ:

“Nesse dia 4 de abril de 1919, a certa altura exclamou:

— Ó minha mãe, que luz tão bonita, ali, junto da nossa janela!

E depois de alguns minutos de doce enleio:

— Agora já não vejo (Inquérito Paroquial de 28 de setembro de 1923).

Passado pouco tempo, o seu rosto iluminou-se com um sorriso angélico e, pelas 10
horas da manhã, sem agonia, sem uma contração, sem um gemido, expirou docemente”
(op. cit., p. 154).

É lícito supor que foi o próprio Deus — que é luz infinitamente bela — que assim se
manifestou no derradeiro momento ao confidente da Virgem.

Os santos são especiais intercessores das graças afins à sua escola espiritual: peçamos
ao Beato Francisco de Fátima que nos obtenha uma participação de seu desejo jamais
desmentido, de consolar a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Consolação essa que
daremos a Deus aceitando valorosamente todos os sofrimentos e dissabores que advêm
de nossa oposição desassombrada a esse mundo de nossos dias, que se levanta
orgulhosamente — mas, ao final, em vão — contra todos os Mandamentos da Lei de
Deus!

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