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Niterói – RJ
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS
Niterói - RJ
2017
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FICHA CATALOGRÁFICA
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ARTHUR ARANTES SOUZA
BANCA EXAMINADORA
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Agradecimentos e uma dedicatória
Dedico este trabalho e todos os outros ao meu amigo Matheus Liberato que sempre estará
comigo. Sua felicidade e positividade foram um incentivo para continuar em frente.
Agradeço ao meu pai Admilson, minha mãe Sandra e ao meu irmão André, que foram minhas
montanhas em minha aventura no mar.
Agradeço também a minhas tias Maria e Astride, que desde sempre ofereceram toda ajuda
necessária.
Agradeço ao Professor Luis Fridman por suas contribuições na qualificação e por aceitar
compor a banca. Agradeço ao Professor Antônio Brasil pelas suas considerações na
qualificação. Agradeço ao professor Frederico Coelho por aceitar estar na banca de defesa.
Agradeço a todos os amigos e amigas que foram responsáveis por tornar tudo mais leve e
divertido: à Gente da Gente, aos Etílicos, 10-4, Conas, e às pessoas especiais que convivi e
conheci no Rio de Janeiro, em especial Mariane, Raul, Kênia, Pedro, Felipe, Rudolph,
Marccela, Camilla, Fernanda e Henrique.
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RESUMO
Este trabalho trata das teses e dissertações produzidas entre 2006 e 2015 e que têm como objeto
de pesquisa o cineasta baiano Glauber Rocha. O primeiro capítulo localiza as teses e
dissertações quanto as disciplinas de estudo, instituições e estados em que são produzidas, além
de discutir a forma como alguns trabalhos justificam sua escolha como objeto de pesquisa. No
segundo capítulo uma pesquisa exploratória demonstra as especificidades de cada uma das
disciplinas com o maior número de estudos sobre o cineasta quanto ao trado de seu objeto. É
discutido a importância da relação entre cinema e política nas pesquisas, bem como a forma
como cada área trata a questão. No terceiro capítulo há a discussão das representações sociais
sobre o diretor que são mobilizadas pelos pesquisadores. Argumento que a limitação no número
de representações sociais é causado pela existência de um campo de estudos estabelecidos sobre
o diretor que legitima certas categorias, conceitos e ideias.
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SUMÁRIO
Introdução--------------------------------------------------------------------------------------------------8
1. Glauber Rocha: um objeto científico-----------------------------------------------------------13
1.1 A geografia dos estudos sobre Glauber Rocha-------------------------------------------17
1.2 A construção de Glauber Rocha como objeto de pesquisa-----------------------------30
1.2.1 Análise das justificativas-----------------------------------------------------------32
2. Um cineasta visto pela ciência------------------------------------------------------------------40
2.1.1 Letras---------------------------------------------------------------------------------41
2.1.2 História-------------------------------------------------------------------------------47
2.1.3 Ciências Sociais---------------------------------------------------------------------52
2.1.4 Comunicação Social----------------------------------------------------------------55
2.1.5 Outras áreas--------------------------------------------------------------------------57
Conclusões------------------------------------------------------------------------------------------------93
Referências Bibliográficas------------------------------------------------------------------------------99
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INTRODUÇÃO
A vida de certos indivíduos proeminentes exerce fascínio sobre as pessoas “comuns”.
Muitas vezes suas histórias se tornam narrativas fantásticas, seja pelos biógrafos, por si
próprios, ou através dos meios de comunicação de massa, como revistas, televisão e jornais. É
certo que o culto aos “olimpianos”, como descreve Morin (2002), está impresso no nosso
imaginário, alimentando nossos sonhos. Esta pesquisa nasceu de um desses interesses
descompromissados pela vida de uma figura pública que eu admirava e considerava importante.
O cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981) foi um indivíduo que me interessou pois
o considerava possuidor de uma postura combativa no que diz respeito à composição de sua
obra e de seu lugar entre os cineastas do Brasil e do mundo. Meu primeiro contato com ele foi
através de seu filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) que assisti ainda
no começo da graduação. Ali tive a impressão de que muitas coisas daquilo que lemos e
ouvimos nos cursos de Sociologia e Antropologia podem ser representadas através da arte com
tanto ou mais qualidade. A relação entre aquelas imagens sublimes e o problema do interior do
Brasil me cativou instantaneamente, o que me levou a procurar histórias, relatos e notícias sobre
sua vida. Quando botei as mãos no livro A Primavera do Dragão (2011), de Nelson Motta, tive
a certeza que gostaria de prosseguir meus estudos na área de Ciências Sociais através de sua
vida e seu cinema, apesar de todas as críticas que este livro possa merecer. Seu engajamento
político, a disposição criativa e energia, como descrita pelo autor, me atraiu para o que completo
com este trabalho. Ao me engajar mais nas leituras, me interessei pelo auge da sua atividade
intelectual, política e artística, que acontece justamente em um dos períodos mais marcantes de
nossa história, a Ditadura Militar, fato que transformou profundamente uma série de estruturas
sociais e trajetórias de indivíduos como o diretor. Glauber foi um artista com um projeto político
e social que buscava intervir na realidade, como apontado por Ismail Xavier,
sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas daquela época, trazia
consigo o imperativo da participação no processo político-social, assumindo
inteiramente o caráter ideológico de seu trabalho – ideológico em sentido
forte, de pensamento interessado e vinculado à luta de classes. Afirmava então
o desejo de conscientizar o povo, a intenção de revelar os mecanismos de
exploração do trabalho inerentes à estrutura do país e a vontade de contribuir
para a construção de uma cultura nacional-popular (XAVIER, 2007, p.15).
Deste modo, seus filmes carregam uma visão de mundo, um posicionamento perante a
realidade. Eles seriam a interpretação do concreto a partir da prática artística e produziria uma
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explicação do mundo, recorrendo aos recursos que tinha à sua disposição para lançar luz sobre
as questões que se dispunha a debater. Neste sentido, sempre foi clara para mim uma
aproximação da arte de Glauber Rocha com a sociologia. Se seriam diferentes pelos
procedimentos e pelo grau de liberdade ao tratar as questões, ambas pretendem ser dimensões
do entendimento.
Na altura em que iniciei a pesquisa, o meu objetivo era identificar a visão de mundo
criada por Glauber Rocha a partir dos seus filmes: os seus personagens, cenários e sua narrativa
representavam o quê? Unia a isso um estudo de trajetória: afinal, parte da literatura sociológica,
como Pierre Bourdieu (2008b), aponta a importância de se observar a experiência social, as
afiliações, os afastamentos e as potências exercidas pelos artistas, além do contexto histórico,
para entender o que suas obras projetam na realidade, e de que forma isso se dá.
Assim, a partir dessas reuniões um novo problema de pesquisa começou a tomar forma,
e começamos a nos perguntar o que unia estes trabalhos, metodológica e discursivamente. De
maneira mais bem acabada, a pergunta que motiva a realização desta investigação é: quais
representações sociais – mobilizadas pelos pesquisadores em diversos campos – fortalecem
uma percepção sobre Glauber Rocha? Desta forma, este trabalho deixa de lado os aspectos
artísticos e de trajetória para uma pesquisa sobre a forma como as ciências humanas tratam
Glauber Rocha como objeto. Tal questionamento coloca os referenciais da sociologia da arte e
da cultura de lado, para transformar a dissertação em um trabalho de Sociologia do
conhecimento, focado em entender a forma como outros pesquisadores constroem seu objeto e
mobilizam ideias.
Com um novo objetivo, um novo recorte foi necessário. Não mais me preocupei em
analisar dados biográficos e trabalhar com a análise fílmica. Estabeleci como objeto teses e
dissertações que tivessem o diretor como foco dos seus esforços científicos. Em primeiro lugar,
este recorte se dá por reconhecimento: por ser um pesquisador em formação, imaginei que meus
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interlocutores passaram em diversos momentos pelos mesmos desafios que encontrei durante
minha trajetória. Em segundo lugar, a pós-graduação é uma das instâncias que conferem
legitimidade, tanto a um pesquisador, quanto aos objetos, e também a certas referências
bibliográficas que se tornam canônicas. Manuel Palacios da Cunha e Melo (1999) faz um
caminho semelhante, apesar de infinitamente mais árduo: a partir de dados de teses,
dissertações, currículos disciplinares e revistas especializadas, observa quais são os autores
chave para entender as Ciências Sociais brasileiras. Dentre as várias justificativas para seu
trabalho
Assim, parto da ideia de que a pós-graduação pode fornecer evidências de que, no pensamento
contemporâneo sobre Glauber Rocha, há o estabelecimento de certas representações sociais e
certos autores, de modo que grande parte do que é dito e pesquisado sobre o diretor é consagrado
por um grupo restrito de autoridades sobre o assunto que compõem um campo de estudos.
As teses e dissertações escolhidas foram as publicadas entre 2006 e 2015. Fiz este
recorte motivado pela determinação da CAPES de que as universidades deveriam manter uma
cópia online dos textos defendidos a partir do ano de 2006. Assim, minha pesquisa foi feita nas
bases das universidades federais e estaduais, além da base do Instituto Brasileiro de Informação
em Ciência e Tecnologia – IBICT – que reúne publicações de diversas universidades brasileiras.
Meu parâmetro de busca foi “Glauber Rocha” nos títulos, resumos e palavras-chave. A partir
desta pesquisa, identifiquei 44 obras sobre o diretor, sendo 14 teses e 30 dissertações, que
compõem o universo desta pesquisa e que são utilizadas para testar as hipóteses que foram
levantadas.
Minha investigação se pauta em duas hipóteses: minha primeira hipótese afirma que as
teses e dissertações mobilizam um número limitado de representações sociais sobre Glauber
Rocha, fazendo com que haja uma semelhança argumentativa entre elas. A segunda explica que
este fenômeno é causado por existir um campo estabelecido de estudos sobre Glauber Rocha
no qual poucos autores possuem legitimidade da produção destas representações sociais.
A inspiração teórica para estas hipóteses vem de Pierre Bourdieu. O autor defende que
existem representações mentais, ou seja, percepções arraigadas na realidade que dão sentido
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objetivo a certas construções sociais. Para ele, estas representações mentais se estabelecem a
partir do embate entre atores, dentre os quais alguns são autorizados a produzir tais percepções
(BOURDIEU, 2008a). Tomando a ciência como objeto, Bourdieu utiliza a sua teoria do campo
social, que são espaços sociais de disputa por legitimidade, para explicar que neste campo existe
um embate de forças entre seus atores e instituições, nos quais os vencedores possuem o
domínio na produção das regras e dos conhecimentos intrínsecos a este mesmo campo
(BOURDIEU, 2004). Assim, há uma clara relação entre a adesão a certas ideias e a quantidade
de poder relativo de quem as produz.
Para apresentar o material que levantei, as análises que fiz buscando complexificar a
discussão e verificar minhas hipóteses, organizei a dissertação em três capítulos. No capítulo 1,
Glauber Rocha: um objeto científico, trago informações relativas às dissertações e teses
encontradas sobre o diretor. O objetivo deste capítulo é contextualizar o leitor com relação ao
meu objeto. Demonstro em qual área das ciências o diretor é mais estudado, levando em
consideração o total de defesas em cada uma delas no mesmo período. Trago, além, dados sobre
quais universidades e estados do Brasil mais o estudaram, bem como quais anos se concentram
a maior parte da produção. Faço uma comparação do número de estudos sobre Glauber Rocha
e outros nomes do Cinema Novo, movimento cinematográfico ao qual o cineasta era afiliado,
para demonstrar a sua importância enquanto objeto científico. Neste capítulo também trabalho
a forma como alguns autores justificam a escolha do diretor como objeto de pesquisa.
O capítulo 2, Um cineasta visto pela ciência, trata a forma como cada uma das quatro
áreas com o maior número de teses e dissertações – Letras, História, Ciências Sociais e
Comunicação Social – organizam o conhecimento sobre Glauber Rocha. Este capítulo é um
capítulo descritivo, no qual demonstro que cada área possui diálogos e afastamentos entre si,
mas, sobretudo, resguardam especificidades, de acordo com suas próprias agendas de pesquisa.
Para tal, recorro aos resumos apresentados em cada tese e dissertação, bem como às palavras-
chave utilizadas em cada área para observar se há a recorrência temáticas.
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análise é a análise de conteúdo. A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas que podem
ser utilizadas pelo sociólogos na pesquisa de elementos comunicativos e textuais, possibilitando
maior margem para generalizações (BARDIN, 1979). Para auxiliar a pesquisa, utilizei o
software de análise qualitativa Nvivo 11.
Sociólogos como Bourdieu (2004) acreditam que as ciências fazem parte de uma série
de relações sociais, ou seja, são construídas socialmente – não possuem uma existência
autônoma daqueles que estão envolvidos na sua produção, quer sejam cientistas ou instituições.
Dito isto, meu trabalho se justifica por trazer ferramentas que possibilitam o entendimento da
produção científica. Busco fugir da armadilha de considerar que a ciência seleciona os melhores
conteúdos e colhe os melhores resultados. Há, seguindo esta linha, uma cadeia de influências
políticas e sociais que serão articuladas pelos pesquisadores e estarão presentes no produto final
de seus trabalhos. Espero que, de maneira tímida, esta dissertação possa entabular um diálogo
com outras investigações da sociologia do conhecimento e fornecer algumas soluções para
problemas que possam surgir.
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CAPÍTULO 1: GLAUBER ROCHA: UM OBJETO CIENTÍFICO
João Carlos Teixeira Gomes (1997) reúne algumas das alcunhas pelas quais o cineasta
Glauber Rocha foi chamado durante a sua carreira: “exótico”, “louco”, “demente”, “esotérico”,
“barroco” e “frágil tirano” são apenas amostras da personalidade multifacetada do diretor visto
pelos seus interlocutores, aliados e adversários. Para além do pitoresco e do folclórico, Glauber
Rocha foi um artista respeitado no Brasil e internacionalmente. Seu debute internacional se deu
com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), filme aclamado no festival de Cannes (GOMES,
1997). Em 1969 confirma-se como um dos grandes cineastas com o prêmio de melhor diretor
no mesmo festival (GOMES, 1997). Em 2015 a Associação Brasileira de Críticos de Cinema
(ABRACCINE) elegeu os cem maiores filmes nacionais com Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Idade
da Terra (1980) e Di (1977) na lista. Por outro lado, em 1980, Glauber Rocha, de maneira
intempestiva, parte precocemente do festival de Veneza, denunciando o júri, acusando a crítica
europeia de fazer mal julgo de seu último filme Idade da Terra (1980). Morre pouco tempo
depois, em 1981, e seu velório vira filme: Glauber o filme, Labirinto do Brasil (2004), de Sílvio
Tendler, assim como ele tinha feito com Di Cavalcanti, em Di (1977), laureado como melhor
curta em Cannes. Talvez, por si só, esses feitos pudessem justificar uma pesquisa, mas eles se
acumulam.
Ao reunir as cartas de Glauber Rocha no volume Cartas ao Mundo, Ivana Bentes (1997)
afirma: “já é hora de tirar Glauber do ‘gueto’ do cinema e inseri-lo na história da cultura e do
pensamento contemporâneos, da qual seu cinema faz parte” (BENTES, 1997, p.9). Esta ideia
mostra como o diretor também é considerado um intérprete social, disputando uma visão do
que é o Brasil. Ele foca, sobretudo, na imagem do sertanejo nordestino, passando pelo lugar do
intelectual no jogo de forças estabelecido – cangaceiros contra latifundiários, políticos
conservadores contra políticos populistas – no Brasil em que viveu e criou, a partir dos seus
filmes e dos seus escritos, uma versão dos fatos que influenciou artistas como Caetano Veloso
(VELOSO, 1997). O poder de Glauber Rocha em transmitir ideias e de fazer com que elas se
tornassem representativas para a intelectualidade é um dos elementos centrais que motivam esta
pesquisa. Se há quarenta anos ele influenciava seus contemporâneos, hoje ele continua presente,
seja como a imagem de cinema nacional de determinada época, seja como objeto de pesquisas,
estudos e ensaios que tentam desvendar a mística construída em torno dele e como adquiriu a
capacidade de ditar preceitos sobre um modo específico de se fazer cinema.
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Ainda na apresentação, Gomes conclama uma revisão da obra de Glauber sobre diversas
lentes, da Sociologia, da Antropologia, da Literatura, para se somar aos estudos feitos pela
crítica e pela teoria do cinema. Imagino que parte desta chamada tenha a ver com a diversidade
de disciplinas com as quais Glauber Rocha flertou, mas, sobretudo, por considerar a obra
deixada de imensa importância. Como veremos a seguir, outros cineastas, como Nelson Pereira
dos Santos e Carlos Diegues, apesar de se tornarem objetos de estudo, estão longe do prestígio
de Glauber Rocha. Isto seria prova de que o baiano é o “maior de todos”, pelo menos dos
cinemanovistas? Ou talvez tenha a ver com o trânsito de Glauber Rocha por diversas áreas das
artes? São algumas perguntas que podem ser levantadas.
Não é possível precisar se os apelos de Gomes e Bentes para que Glauber Rocha se
tornasse centro da análise científica tiveram alguma influência, mas diversas áreas do
conhecimento, da Sociologia ao Design, elegeram-no objeto de pesquisa, mesmo que
tangencialmente. Neste capítulo farei uma apresentação quantitativa dos dados que foram
levantados – as teses e dissertações. Com isso, pretendo fazer uma geografia dos trabalhos
acerca de Glauber, tanto em sentido físico, mapeando os principais centros nos quais ele é
abordado, quanto do saber, destacando as áreas do conhecimento que se interessaram sobre o
tema, numa tentativa de compreender a extensão da influência da obra do diretor. Após
apresentar os dados, farei uma breve análise qualitativa, observando as motivações que parecem
ter levado alguns pesquisadores a tomá-lo como objeto, uma vez que Glauber Rocha é um dos
artistas brasileiros mais estudados pela academia e que goza de maior prestígio dentro do seu
próprio campo. Ainda que coloquem duas questões distintas, elas estão intimamente ligadas.
Apesar de não buscar discutir profundamente o caminho percorrido pelo cineasta na sua
consagração enquanto um dos porta-vozes do cinema nacional e o que o teria legitimado
enquanto “gênio” (GOMES, 1997), creio que, por ser um dos artistas brasileiros mais
respeitados e consagrados, importante agente cultural brasileiro, fazem com que ele se torne
um problema de pesquisa viável (BENTES, 1997).
Antes disto, vamos tratar de algumas questões relativas a Glauber Rocha como objeto
de pesquisa e a relação entre arte e ciência. Os estudos sobre artistas e obras de arte não são
incomuns nas diversas áreas, inclusive na Sociologia.
Bourdieu (2007) fala desta relação. Para ele, existe uma oposição comum quando há a
tentativa de se pensar as produções culturais como a ciência, a arte e a filosofia para além dos
próprios textos. De um lado estão aqueles que defendem que a compreensão de uma obra está
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circunscrita dentro da própria obra, não sendo necessário nenhum entendimento complementar,
o texto se basta. De outro lado, estão os historiadores da arte, historiadores da história, da
filosofia e da ciência que tentam relacionar a obra ao contexto social do qual fazem parte seus
produtores. Este conflito pode ser tanto mais tenso quanto mais protetora for a área em questão.
Bourdieu (1996) faz um diálogo com a teoria literária e a maneira como ela reage aos
estudos de obras feitas pela sociologia. Segundo o autor, existe uma má vontade entre os que
defendem a unicidade da literatura e da arte para com as análises científicas. Analisar a arte
cientificamente seria uma espécie de reducionismo.
Ele se pergunta de onde vem o afã dos filósofos e escritores em rebaixar o conhecimento
racional e de decretar a transcendência da obra de arte. A motivação não é outra senão defender
o lugar “distinto” daqueles que produzem a experiência artística e daqueles que compartilham
dela no momento da fruição, bem como da de lançar em descrédito o trabalho daqueles que se
esforçam para compreendê-la à luz da ciência.
Tanto na ciência quanto na arte, segundo o modelo proposto por Bourdieu, seriam as
entidades e indivíduos disputando no campo que teriam a capacidade de dar a uma obra ou a
uma pesquisa a condição de legitimidade necessária para que fosse considerada relevante ou
adequada aos padrões estabelecidos por este mesmo campo. Isto significa que o julgamento que
importa para o cientista é o dos seus pares, das revistas de prestígio e das universidades. A
consagração artística também obedece a mesma regra, são os atores do campo que irão legitimar
ou não um artista e sua obra. Estes atores podem ser outros artistas, galeristas, críticos ou até
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mesmo a universidade. É importante para a teoria do campo de Bourdieu que existam estes
múltiplos agentes, bem como que haja entre eles a disputa por posições dominantes, ou seja,
pela capacidade de legitimação e de definição das regras próprias do campo.
É irônico, por outro lado, observar que vez ou outra o próprio Bourdieu, a quem recorro
para explicar a relação entre arte e ciência, faz uma defesa apaixonada da autonomia do campo
científico com relação a outros campos. Ao acusar o campo jornalístico de se sujeitar as regras
do índice de audiência e do mercado, ele denuncia a extensão desta regra pela influência deste
campo sobre outros:
Podemos ver que o autor tem uma grande preocupação com a influência jornalística com relação
àquilo que ele considera as grandes criações humanas. Ele, assim como os artistas e os cientistas
que rejeitam a influência externa, está em defesa das regras criadas em cada campo de maneira
específica.
Dito isto, as pesquisas que estudo se situam no limiar entre estes dois campos.
Primeiramente porque se inscrevem no campo científico. Isto implica que a construção dos
objetos, as teorias e os procedimentos utilizados devem ser validados ali. Em segundo lugar, a
investigação trata um assunto caro ao campo da arte. Significa dizer que, ao tomar para si
elementos específicos deste outro campo, estão sujeitas a críticas e defesas relativas a suas
práticas que poderiam ser vistas como usurpação ou interferência. Desta forma, as teses e
dissertações podem ser tomadas como sendo fronteiriças e sujeitas à aprovação ou à
desaprovação de uma multiplicidade de agentes.
Minha pesquisa não é tão diferente assim. Por estar, de certa maneira, avaliando a
construção de um objeto científico, me abro a críticas dos meus próprios pares, inclusive dos
autores destes textos, que podem tomar minhas análises como invasivas e me acusarem de não
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conseguir compreender a natureza daquilo que fazem. É um risco que pretendo correr para,
assim como meus objetos, contribuir um pouco para enriquecer os estudos do meu próprio
campo.
O objeto desta pesquisa são as teses e dissertações sobre o cineasta baiano Glauber
Rocha produzidas no Brasil entre os anos de 2006 e 2015. Minha escolha por este tipo de
produção cientifica e não por outro se dá por alguns motivos. Em primeiro lugar, programas de
mestrado e doutorado, apesar de terem um alto nível de especialização, são espaços de formação
acadêmica. Teses e dissertações são produtos de pesquisas, que por mais que sejam bem
acabadas e relevantes, envolvem uma rede de relações entre estudantes, orientadores e tradições
de ensino. Há, desta maneira, diversas rodadas de negociação. De certa forma, a escolha da
bibliografia por parte dos futuros mestres e doutores passa pelo crivo dos orientadores e
orientadoras, o que dá sustentação ao argumento de que estes ambientes acadêmicos são esferas
importantes de legitimação do conhecimento científico (MELO, 1999).
Por causa disto, utilizei como fonte de pesquisa a base do IBICT – Instituto Brasileiro
de Informação em Científica e Tecnológica –, que centraliza a informação de diversas
universidades brasileiras, além de ter buscado em sites de 82 faculdades e universidades
públicas, entre estaduais e federais, no Brasil1. Utilizei, quando possível, como parâmetro de
busca “Glauber Rocha” no título, resumo, assunto ou palavras-chave. Nesta pesquisa cheguei
ao total de 44 trabalhos, sendo 14 teses e 30 dissertações, listadas nos quadros I e II:
1
As universidades pesquisadas foram: UNEB, UEFS, UESB, UESC, UFBA, UFRB, UFOB, UNILAB,
UFSB, UFC, UFCA, UEMG, UNIMONTES, UNIFAL, UNIFEI, UFJF, UFLA, UFMG, UFOP, UFSJ,
UFU, UFV, UFTM, UFVJM, FAIBI, FAMEMA, FAMERP, FATEC, FMJ, UFABC, UFSCar, UNESP,
UNICAMP, UNIFESP, UNITAU, USCS, USP, UNIVESP, UFRJ, UFF, UERJ, UNIRIO, UFRRJ,
UENF, UEZO, UFAL, UFPB, UFCG, UFRN, UFERSA, UFMA, UFPI, UFS, UNIOESTE, UEL,
UFPR, UFCSPA, UFSM, UFRGS, UFPEL, UFFS, UFSC, UFPA, UNIFAP, UFAM, UFRR, UFT,
UFAC, UNIR, UFGD, UFMS, UFMT, UnB.
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Quadro I: Dissertações de mestrado abordando Glauber Rocha e/ou sua filmografia
Título Autor Universida Área Ano Palavras-Chave
de/Estado
Reconstruindo a Garcia, UFBA/BA Música 2011 Trilha Sonora Original,
passeata dos 50 mil: Rodrigo Teoria Pós-
aplicação das funções Tonal, Glauber Rocha,
da música de cinema e Aná
da teoria pós-tonal
para a criação da
trilha musical do
documentário 1968,
de Glauber Rocha
Barravento(s): uma Nunes, Raquel PUC/RJ História 2011 Ciclo De Cinema Baiano,
análise comparativa Pereira Cultura Popular,
de roteiros Alberto Identidade Nacional
A estética teatral no Silva, Adeilton UNB/DF Letras 2007 Cinema, Teatro, Glauber
cinema de Glauber Lima Da Rocha, 1939-1981
18
Rocha (Artaud e
Brecht)
Utopia Selvagem, de Ricardo, Pablo UFMG/M Literatura 2007 Darcy Ribeiro; Glauber
Darcy Ribeiro e A Alexandre G Rocha; Interlocução;
Idade da Terra, de Gobira De Utopia Selvagem
Glauber Rocha: o Souza
visível, as vozes e a
antropofagia
19
Entre o western e o Neves, UFU/MG História 2013 História, Cinema,
nerdestern: possíveis Anderson Western, Cinema Novo,
diálogos de lima Rodrigo Nordestern, Vera Cruz,
Barreto e Glauber Historiografia
rocha no cinema de
cangaço
Invenção em Ferreira, UFSC/SC Literatura 2013 Glauber Rocha, Hélio
trânsito/transe: Bruna Oiticica, Tropicália
Glauber Rocha, Hélio Machado
Oiticica e Tropicália
20
Sertões em Silva, Leandro UEFS/BA Literatura 2015 Deus e o Diabo, Baile
movimento: o de Jesus da Perfumado, Árido Movie,
nacional popular e o Sertão, Cinema
contemporâneo em
Deus
e o diabo, Árido
movie e Baile
perfumado
TROPICACOSMOS: Araújo, UFMG/M Música 2014 Tropicália, MPB, Bossa
Interseções estéticas a Marcos G Nova, Antropofagia,
partir da música de Sarieddine Cinema
Caetano Veloso e do
cinema de
Glauber Rocha
Quadro II: Teses de doutorado abordando Glauber Rocha e/ou sua filmografia
Título Autor Universidade/Estado Área Ano Palavras-Chave
Ideologia, identidade e Oliveira, UFBA/BA Sociologia 2011 Glauber Rocha,
unidade latino- Augusto Crítica. Cinema.
americanas na obra de Souza de Cultura, América
Glauber Rocha Sa. Latina
É que Glauber acha feio Lima, UFU/MG História 2012 Glauber Rocha,
o que não é espelho: a Frederico Experimentalismo
invenção do cinema Osanan Fílmico
brasileiro moderno e a Amorim
configuração do debate
sobre o ser cinema
nacional
O quadro III apresenta as teses e dissertações divididas por áreas. Há uma separação em
disciplinas, teses e dissertações. Nela demonstro a frequência por tipo de texto em cada uma e
o total de trabalhos, tanto por campo do conhecimento, quanto o número final:
22
História 9 2 11
Letras/Literatura 9 5 14
Sociologia/Ciências 2 4 6
Sociais
Comunicação Social 4 2 6
Artes/Multimeios 1 1 2
Música 2 - 2
Filosofia 1 - 1
Planejamento Urbano e 1 - 1
Local
Design 1 - 1
Total 30 14 44
Ano Título Mestre Doutor Mestre Doutor Mestre Doutor Mestre Doutor
23
2011 2086 632 901 274 551 286 540 128
Total 20468 6900 8511 3347 5790 2876 5357 1543 54792
Como podemos ver, a área da Letras é responsável por aproximadamente 50% dos titulados
entre os anos de 2006 e 2015 nas quatro áreas mais recorrentes, a História por 21,64%, a
Sociologia por 15,8% e a Comunicação por 12,5%. A maior relação entre o número de
dissertações e teses defendidas e trabalhos sobre Glauber Rocha é a da História, responsável
por 25% dos estudos, sendo a única disciplina com mais participação nos trabalhos do que no
número de mestres e doutores. Mais do que das outras áreas das Ciências Humanas, Glauber
Rocha é um assunto recorrente na História.
No quadro V, com relação aos anos, temos a seguinte configuração: em 2006 foram 0
teses e 1 dissertação, 2007, 2 tese e 3 dissertações, em 2008, 2 tese e 3 dissertações, 2009, 0
teses e 2 dissertação, em 2010, 2 teses e 2 dissertação, 2011, 3 teses e 4 dissertações, 2012, 2
teses e 5 dissertações, 2013, 0 teses e 4 dissertações e 2014, 3 teses e 4 dissertações e em 2015,
0 teses e 2 dissertações. É possível ver que há um aumento de estudos sobre Glauber Rocha:
entre 2006 e 2010 foram 17 trabalhos sobre o diretor baiano, enquanto a partir de 2011 este
número subiu para 27. Entretanto, parte desta explicação pode ter a ver com o aumento do
número de matriculados em pós-graduações no país, já que, em 2006, 79050 alunos estavam
matriculados no mestrado e 46572 no doutorado, enquanto em 2014 este número saltou para
115552 e 95315, respectivamente, segundo dados da CAPES encontrados no portal Geocapes2.
2
http://geocapes.capes.gov.br/geocapes2/
24
Quadro V: Teses e Dissertações sobre Glauber Rocha por ano
Ano/Total Tese Dissertação Total
2006 - 1 1
2007 2 3 5
2008 2 3 5
2009 - 2 2
2010 2 2 3
2011 3 4 7
2012 2 5 7
2013 - 4 4
2014 3 4 6
2015 - 2 2
Total 14 30 44
São Paulo 6 6 12
Rio de Janeiro 2 9 11
Minas Gerais 1 4 5
Bahia 2 4 6
Santa Catarina 1 1 2
25
Ceará 1 1 2
Distrito federal - 2 2
Goiás 1 1 2
Pernambuco - 1 1
Maranhão - 1 1
Total 14 30 44
26
aparentemente, Glauber teve menor contato, é possível considerar que ele alcançou
reconhecimento e gerou influência no Brasil todo.
A seguir, trarei dados sobre outros diretores do Cinema Novo para demonstrar o quanto
Glauber Rocha é importante como objeto científico. Nenhum dos cinco cineastas que
apresentarei a seguir se aproxima do número de trabalhos apresentados sobre o diretor baiano.
Os nomes escolhidos foram aqueles apontados por Glauber Rocha (1981) em seu livro
Revolução do Cinema Novo, no qual ele narra o nascimento do movimento. Todos os nomes
foram considerados por ele relevantes para a criação e desenvolvimento do movimento. São
eles: Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues e
Paulo César Saraceni. As tabelas de cada um apresentarão o número de teses e dissertações
produzidas sobre eles distribuídos por anos e em quais universidades elas foram defendidas.
O segundo mais estudado no período foi Leon Hirszman, diretor de Eles não usam
black-tie (1981), com 11 dissertações e 5 teses, totalizando 16 trabalhos:
2006 1 Mackenzie
2007
2008
2009
2013
Total 11 5 16
Assim como Glauber Rocha, houve um aumento no número de estudos sobre ele entre
2011 e 2015, com 11 defesas. Como colocado, o aumento no interesse destes cineastas pode ser
creditado ao aumento do número de alunos cursando pós-graduação. Contudo, como o próprio
Glauber (1981) assinala, Leon Hirszman e Nelson Pereira dos Santos também estariam em
27
posições de liderança dentro do movimento, o que explicaria a grande diferença de estudos
entre eles e os outros.
O precursor do movimento Cinema Novo com o aclamado filmes Rio 40º (1955), Nelson
Pereira dos Santos é o terceiro com o maior número de pesquisas:
2006 1 UNESP
2007 1 UNESP
2008 1 UNESP
2009
2010 1 UFU
2012
Total 10 5 15
Foram encontradas 10 dissertações e 5 teses escritas sobre ele, com uma maior concentração
nos anos entre 2011 e 2015, totalizando 11 trabalhos.
2006 1 UFSC
2007
2008
2009
2011 1 PUC-SP
28
2012 1 2 UFMG, USP, FGV-RJ
2013 1 PUC-SP
2014
2015 1 UNESP
Total 6 3 9
Em quinto lugar, temos Carlos Diegues. O Diretor de Bye, Bye Brasil (1980) tem o total
de 7 estudos distribuídos entre 6 universidades, sendo 4 dissertações e 3 teses, uma de cada
entre 2011 e 2015.
2006
2008 1 UNICAMP
2009 1 UERJ
2010
2011
2012
2013 1 USP
2014 1 UFMG
2015
Total 4 3 7
Por último, Paulo César Saraceni, de Porto das Caixas (1962), foi estudado três vezes
no período, 2 teses e 1 dissertação, sendo que apenas uma tese foi feita sobre ele após 2011:
2006
29
2007 1 UFAL
2008 1 USP
2009
2010
2011
2012 1 UFPB
2013
2014
2015
Total 1 2 3
É possível afirmar, visto a comparação entre os números levantados que, pelo menos
para o campo acadêmico, Glauber Rocha é o principal diretor do Cinema Novo. A diferença
entre o número de teses e dissertações escritas sobre Glauber Rocha e Leon Hirsman é uma
evidência o seu destaque. Na verdade, nem se somarmos os estudos feitos sobre Hirszman,
Joaquim Pedro e Nelson Pereira chegamos à quantidade de trabalhos sobre ele.
Neste subcapítulo farei uma análise qualitativa das introduções de algumas teses e
dissertações com o objetivo de entender a construção de Glauber Rocha como objeto científico.
A ciência, como indicado anteriormente, possui regras na sua construção, não é um produto
simples e direto da imaginação de indivíduos que mobilizam seus saberes sem verificar
determinadas regras. Pelo contrário, existe toda uma série de procedimentos padronizados que
dão uniformidade e legitimidade para este tipo de saber.
Popper (2001) trata das regras metodológicas da ciências como convenções. Elas são
formas aceitas pelos cientistas e que fazem com que o saber que constroem possa ser acessível
e verificável por outros cientistas. São as regras próprias à ciência que conferem suas
características, ou seja, a elaboração de procedimentos padronizados para o exercício científico
que garante sua existência enquanto ciência. Ao definir a ciência empírica, Popper indica uma
regra metodológica superior a todas as outras: o princípio da falseabilidade. Para ele, teorias e
esquemas científicos que não estejam abertos a verificação dos pares e sejam passíveis de
falseabilidade não seriam científicos, mas dogmáticos. O autor declara que
30
cabe proceder ao estabelecimento dessas regras de maneira sistemática.
Coloca-se, de início, uma regra suprema, que serve como uma espécie de
norma para decidir a propósito das demais regras e que é, por isso, uma regra
de tipo superior. É a regra que afirma que as demais regras do processo
científico devem ser elaboradas de maneira a não proteger contra o
falseamento qualquer enunciado científico (POPPER, 2001, p.56).
Apesar de poder-se questionar a validade das próprias regras de validade criadas por Popper, é
verificável na ciência o respeito a certos procedimentos através dos quais o pesquisador pode
iniciar sua análise.
Outro ponto importante relacionado à ciência diz respeito a sua construção. A ciência
se origina na pergunta. O procedimento passa pelo abandono das opiniões, a sua negação, pois
a ciência é, na verdade, a negação da opinião, mesmo que muitas vezes ela possa ser utilizada
para baseá-la (BACHELARD, 2005). Todo conhecimento adquirido se origina de um problema
e a habilidade de criar e colocar um problema é essencial para um pesquisador. Por outro lado,
a formulação de um problema nunca é fruto apenas da intuição espontânea. O problema e
consequentemente o conhecimento científico é construído. Significa dizer que nos é vetada a
opinião sobre questões que desconhecemos ou problemas que não conseguimos colocar com
clareza (BACHELARD, 2005). Não digo por acreditar que o conhecimento científico é
desinteressado, neutro e apolítico. A ciência sofre influências políticas, seus usos dependem de
uma série de relações sociais e de poder nas quais estão imersos cientistas, professores,
instituições de pesquisas e universidade (BOURDIEU, 2004). Contudo, esta é outra regra
comumente aceita na construção da ciência.
31
a explicação da importância do estudo do objeto (GOLDENBERG, 2004). Ela tem como função
convencer os pares, universidades e agências de fomento que o tempo e recursos gastos na
pesquisa se justificam. Por isto, minha análise irá utilizar as justificativas dadas pelos
pesquisadores na construção de Glauber Rocha como objeto de pesquisa para compreender as
motivações que mobilizam para tanto.
A análise que farei neste subcapítulo não utilizará todos os textos apresentados no
subcapítulo 1.1. Ao invés disto, fiz uma seleção aleatória de uma tese e uma dissertação de cada
disciplina com o maior número de trabalhos sobre Glauber Rocha. A aleatoriedade na escolha
me ajudará a diminuir minha influência na pesquisa, já que o nível de subjetividade na escolha
dos textos expostos será minimizada. De outra forma poderia ser tentado a utilizar trabalhos
com maiores semelhanças entre si visando à confirmação das minhas hipóteses, mesmo que
inconscientemente.
Apresentarei um resumo geral dos trabalhos que serão utilizados nesta análise. A partir
deles já iremos retirar algumas pistas dos elementos temáticos que puderam ser inferidos das
teses e dissertações estudadas.
32
sua habilidade em criar simbologias e na maneira como ele trata o cangaço enquanto dimensão
alegórica de uma realidade mais ampla, que está relacionado ao terceiro ponto que é o
engajamento político e ideológico de sua obra, que une narrativa e inovação estética para tratar
de tais assuntos, que, apesar de reservar semelhanças com o gênero americano do western, cria
rompimentos e avanços, principalmente por não se tratar de uma importação, mas uma
reinvenção à brasileira.
Frederico Osaman Amorim Lima (2008) escreveu a tese de História: É que Glauber
acha feio o que não é espelho: a invenção do cinema brasileiro moderno e a configuração do
debate sobre o ser cinema nacional, defendida na Universidade Federal de Uberlândia. O autor
busca investigar como a ação de certos críticos, pensadores e cineastas construíram uma
narrativa sobre o que é o Cinema Brasileiro Moderno que, na percepção dele, é menos um
cinema realmente nacional do que um cinema do sudeste sedimentado no nosso imaginário
como representativo do cinema Brasileiro. Tais narrativas teriam comprometido e invisibilizado
a consagração de outros cinemas produzidos em outros locais, tendo sido considerados menores
ou então marginais com relação àquilo que ficou como o centro. Glauber Rocha entra nesta
pesquisa como um dos principais nomes a serem considerados, pois ele foi não apenas um
daqueles que mais se esforçou em construir esta história, mas também porque é o seu maior
beneficiário. É o seu cinema, e de seus companheiros, que é elevado à condição de
representativo. Isto acontece, pois, na percepção do pesquisador, Glauber Rocha influenciava
com sua atividade crítica, sua produção cinematográfica e suas qualidades pessoais toda uma
formação de ideias que se articularam com as de outros nomes, como Paulo Emílio Sales Gomes
33
e Ismail Xavier. O diretor baiano estaria, segundo ele, envolvido em uma rede de sensibilidades
e teria mobilizado uma série de discursos e práticas produtoras de legitimidade, que com o
tempo ganharam o contorno de verdade.
Glauber em crítica e autocrítica, tese defendida na área de Letras por Ana Lígia Leite
e Aguiar (2010) na Universidade Federal da Bahia, faz alguns apontamentos que justificam a
escolha do diretor como objeto de pesquisa. O foco da pesquisadora são as biografias e os
documentários biográficos feitos sobre ele. Ela considera que há um grande número de relatos
e, devido a sua importância para o campo do cinema e sua existência conturbada e polêmica,
estudar estas obras nos dá a condição de entender a maneira como a crítica atualiza sua
importância para a cultura brasileira, focando principalmente na sua proposta político-
cinematográfica. Tal recorte se justifica pois ela considera que há uma radicalização na obra do
diretor, em um sentido “revolucionário”, visando despertar uma consciência do povo
subdesenvolvido.
O trabalho dá uma atenção especial ao fato de Glauber Rocha ter, nos dez anos finais de
sua vida, se aproximado do governo militar, dando diversas declarações que apontam neste
sentido e que, de uma maneira ou de outra, geraram certos contratempos para a já peculiar
imagem do cineasta. Para ela, há um grande “silêncio” dos biógrafos com relação a este fato, já
que não busca articular de uma maneira mais profunda as declarações dadas por ele e o seu
pensamento como um todo, construído no decorrer de pelo menos duas décadas.
Além desta importância histórica, o cinema de Glauber Rocha trata o tempo de uma
maneira especial, rompendo a fronteira entre velhas e novas temporalidades, colocando o
espectador em contato com novas formas de percepção da história. Seus filmes fariam com que
passado e presente não estivessem mais separados e se formaria de maneira aberta, sem
categorias fixas e rigorosas.
Para Martins (2013), Glauber seria um dos principais artífices do Cinema Novo e dos
ideais que circunscrevem o movimento. A discussão do conceito de cultura nacional feita pelo
grupo teria uma grande influência na maneira de se pensar as expressões culturais nacionais,
voltadas principalmente para uma prática de libertação nacional da influência colonizadora do
cinema norte-americano. Ele justifica seu estudo dizendo que há uma insuficiência de pesquisas
sobre a obra cinematográfica do diretor baiano, o que para ele seria uma lástima.
Numa cama, numa festa, numa greve, numa revolução: o cinema se bifurca, o tempo se
abre, Érico Oliveira de Araújo Lima (2014), dissertação da Comunicação Social da
Universidade Federal do Ceará, tenta observar como a obra de Glauber Rocha rompe com a
temporalidade. O foco se deslocaria do contexto de sua criação e das explicações que o diretor
mobilizava para entender a cultura nacional para os efeitos e o lastro que tais obras produziriam
no presente.
Ele parte da sua experiência com o filme Câncer (1968-1972), gravado em quatro dias
e que demorou quatro anos para ser montado e que, segundo sua percepção, rompe com diversos
35
esquemas cinematográficos, principalmente ao flutuar entre o documentário e a ficção, bem
como em se adequar à noção de bifurcação, ou seja, que o cinema de Glauber Rocha não teria
apenas um caminho ou se enquadraria em dualidades, mas pelo contrário, abriria um infinito de
possibilidades, principalmente no que diz respeito à relação entre estética e política. A escolha
de Glauber Rocha e de três dos seus filmes se justificaria exatamente por isto, a busca por diluir
as fronteiras entre política e estética, bem como a forma como as narrativas formulariam seus
discursos não pelo texto, mas pelas sensações criadas a partir das imagens.
Existe uma temática presente em todas as teses e dissertações apresentadas aqui, que é
a dimensão política envolvendo a obra e a trajetória de Glauber Rocha. Como veremos no
Capítulo 2, quando farei uma exploração dos resumos, esta relação está presente em
praticamente todos os textos. Mais adiante, no Capítulo 3, nos aprofundaremos nas teses para
entender o que os pesquisadores mobilizam sobre o tema, não apenas para justificar a escolha
do seu objeto, mas também como uma percepção estabelecida sobre o diretor. Veremos que a
política é central.
Devo fazer um pequeno parêntese para explicar a minha escolha pela categoria política.
Como ficará claro a seguir, o uso que dou ao termo é alargado, não designando fenômenos da
mesma ordem, apesar de resguardarem algumas semelhanças. Primeiramente, me refiro à
política quando os próprios autores dos textos fazem uso. Os usos são imprecisos. Um exemplo
é no texto Glauber Rocha em Crítica e Autocrítica. As palavra política/político são utilizadas
178 vezes pela autora, ora acompanhadas de estética, ora falando sobre o contexto político
nacional, ora da “política nas obras”. São usos pouco definidos, o que faz com que se torne um
termo impreciso. Vejamos os fragmentos a seguir para termos uma melhor compreensão deste
argumento:
Estes dois fragmentos fazem uso das palavras política/político de maneira diferente. O primeiro
fala da natureza do cinema de Glauber Rocha. O cinema político, de acordo com estes autores,
é um cinema de disputa de imaginários, de reivindicação, de resistência e de denúncia. O
político também aparece como uma artimanha estética, pois dela não se dissocia. No segundo
caso, política diz respeito ao contexto amplo, a Política, dos grandes sistemas, da composição
do Estado, da ideologia em um sentido amplo.
Darei, também, um uso próprio de política: quando trato das interações sociais feitas
por Glauber Rocha a fim de disputar espaços tanto para seu cinema, quanto para si enquanto
agente determinante. Baseio este uso em Bourdieu (1996, 1997, 2004, 2007), pois vejo que
estas relações são de disputa no interior do campo artístico, tanto pelas regras da produção
artística, tanto pela definição do bom e do mau cinema. A disputa por posições dominantes em
um campo é uma disputa tão política quanto a disputa na esfera eleitoral.
Dito isto, divido em dois os usos de política enquanto tema nas justificativas das teses e
dissertações. Em primeiro lugar, por ser um uso comum dos autores, a política da e nas obras.
Ou seja, Glauber Rocha enquanto um artista engajado a partir de seus filmes, seja utilizando-
os como ferramenta de disputa de representações sociais construídas sobre o Brasil, América
Latina e “Terceiro-Mundo”, seja pela desconstrução estética que visa modificar ou incomodar
conceitos estabelecidos pelos espectadores. Em segundo lugar, falarei sobre Glauber Rocha
enquanto liderança do cinema nacional, suas lutas e disputas tanto no país quanto fora dele, seja
pelo reconhecimento individual ou coletivo do cinema nacional, seja pela sua consagração
intelectual. Sobre os filmes políticos ou a política nos filmes, vamos observar os seguintes
fragmentos:
37
americana) em suas obras. Nesse sentido, ambos são lidos como
“intelligentsias artísticas” empenhadas em projetos de produção cultural que
promovem reflexões sobre identidades nacionais (ALTMANN, 2008, p.9).
O primeiro trecho fala da ligação entre o cinema e a crítica cinematográfica do diretor, tratando
da radicalização da sua prática fílmica, sobretudo em um sentido “revolucionário”, ou seja, uma
busca pela transformação estrutural pela via cultural. O segundo faz uma ligação entre os filmes
de Glauber Rocha – e Walter Salles – e a disputa das representações socialmente produzidas.
Seria um cinema que visa levar à reflexão, principalmente em temas relativos à identidade
nacional. O último fala como o diretor manipulava esteticamente seus filmes a fim de conseguir
um determinado efeito sobre sua plateia: em um filme que veicula um discurso político, ele
opõe a imagem e o som ao texto, levando a uma desconstrução.
A prática política de Glauber Rocha no campo artístico é outro assunto que se faz
justificativa das pesquisa. Os pesquisadores constroem o diretor como a liderança do Cinema
Novo, ou do cinema nacional em geral, alguém com a capacidade de organizar em torno de si
ideias que dariam legitimidade a certas práticas. Além disto, é tratado como um intelectual de
alcance internacional. As passagens a seguir ilustram estas afirmações:
não é sobre o moderno enquanto categoria que eu desejo falar, mas como, no
discurso historiográfico e na crítica cinematográfica, as narrativas sobre o
cinema nacional foram se articulando para dar vazão a um conjunto de
inquietações capazes de gerar uma ideia de projeto cinematográfico chamado
de Cinema Brasileiro Moderno e como este projeto esteve – e está em muitos
casos – intimamente articulado a um nome: Glauber Rocha (LIMA, 2012,
p.15).
38
diretores do nosso cinema, por outro, registra significativos momentos da
história da cinematografia brasileira (SILVA, 2007, p.6)
Como vimos e como vamos ver em todo este trabalho, Glauber Rocha político e a
política dos filmes de Glauber Rocha são as principais temáticas verificadas por mim nas
pesquisas estudadas aqui, seja para justificar a validade de suas pesquisas, seja como
representação social que se estabelece e se firma nas percepções destes pesquisadores.
39
CAPITULO 2: UM CINEASTA VISTO PELA CIÊNCIA
Neste capítulo irei trabalhar com as palavras-chave e os resumos das teses e dissertações
sobre Glauber Rocha com o objetivo de observar a maneira como cada uma destas áreas estuda
o diretor. Realizarei uma pesquisa exploratória a fim de descrever as especificidades de cada
uma.
Uma pesquisa exploratória pode ser utilizada para diversos fins, como por exemplo,
gerar conhecimento sobre um tema que o pesquisador não possui tanta familiaridade. Isto pode
auxiliar na formulação de hipóteses e na definição dos objetivos de pesquisa mais bem
acabados. Como definido por Gil (1999),
Com isto pretendo descobrir 1) se há algum tipo de regularidade no tratamento do objeto nas
disciplinas e 2) se há o diálogo entre as áreas.
O que Morin diz sobre a “individualização” das disciplinas tem um efeito sobre esta
pesquisa. Esta dissertação trata sobre um objeto que é estudado por diversos campos das
ciências humanas. Temos quatro disciplinas com maior números de estudos, como visto no
capítulo anterior: Letras, História, Ciências Sociais e Comunicação Social, além de outras,
como a Filosofia. Se as áreas são diferentes, mas compartilham o mesmo objeto, há algum tipo
de interação entre elas?
Outro aspecto importante diz respeito a origem deste objeto. Glauber Rocha foi um
artista de renome que atuou como cineasta e escritor, sobretudo publicando ensaios sobre teoria
cinematográfica. Se levarmos em consideração Morin (2005), é possível supor que disciplinas
40
mais próximas do cinema e das artes, como a Comunicação Social, seriam dominantes. Vimos,
por outro lado, que há um grande número de estudos feitos por áreas que não possuem uma
afinidade direta com o assunto, como as Ciências Sociais e a História. Apesar de resolver
melhor este problema no próximo capítulo, quando farei uma investigação das bibliografias a
fim de descobrir quais são os principais autores mobilizados nas pesquisas, este capítulo pode
fornecer evidências para discutir esta questão, e é por isto que me atentarei à existência ou não
de diálogo entre as disciplinas, não apenas no interior de cada uma delas.
2.1.1 Letras
Para além de um cineasta, Glauber Rocha foi um escritor prolífero. Foram editados três
volumes com textos escritos sobre cinema: Revolução do Cinema Novo (1981), Revisão Crítica
do Cinema Brasileiro (1963) e O Século do Cinema (1981), um romance: Riverão Sussuarana
(1978), além de ter tido uma longa carreira como articulista em revistas e jornais, escrito
roteiros de filmes, peças de teatro e poesia, com grande parte do conteúdo inédito. Isto faz com
que o interesse da Letras pelo diretor não seja surpreendente.
41
Quadro XII:
Conceitos/Categorias
Discurso
Identidade
Poder
Sujeito
Anti-imperialismo
Guerrilha
Interdisciplinaridade
Campo Intelectual
Campo Literário
Subjetividade
O segundo grupo, no quadro XIII, também com dez palavras, foi denominado de
Elementos Literários. Neste grupo reuni palavras e expressões que fizessem menções a estilos
literários ou questões relativas à escrita. O alto número de palavras que remetem a questões
literárias em teses e dissertações da área de Letras confirma a ideia de que cada disciplina trata
o fenômeno de maneira própria:
Quadro XIII:
Elementos Literários
Teatro
Roteiro
Literatura
Teatro Épico
Poesia
Ensaísmo
Biografia
Relações Entre
Literatura
Ficção
Narratividade
O terceiro grupo, no quadro XIV, com o maior número de palavras, seis, foi denominado
de Nomes próprios. Todos os nomes são de escritores, incluso aí Glauber Rocha. Isto demonstra
que as teses e dissertações de Letras estão tratando, ao estudar Glauber Rocha, de questões que
ultrapassam o cinema em si:
42
Quadro XIV:
Nomes de Escritores
Glauber Rocha
Bertolt Brecht
Darcy Ribeiro
Euclides Da Cunha
Xenofonte
Deleuze
O quarto e último grupo, Espaços Geográficos, dizem respeito a locais importantes para
o diretor. Como veremos mais adiante, existe uma forte relação entre ele e os espaços
(geográficos) e políticos utilizados como palavras-chave, sobretudo o Sertão e a América
Latina:
Quadro XV:Espaços
Geográficos
América Latina
Terceiro Mundo
Espaço Sertanejo
Sertão
A partir do uso dessas palavras-chave podemos dizer algo sobre as teses e dissertações
da área de Letras. Em primeiro lugar, é uma área com estudos bem característicos. Somando o
grupo de Elementos Literários e Nomes Próprios, teremos 16 palavras-chave com abordagem
mais ou menos esperada para a área como os escritores, teatro, poesia, dentre outros. Glauber
Rocha é tratado com relação a estudos que são tradicionais neste campo. Outro aspecto
importante são as categorias e conceitos, o que demonstra uma preocupação de delimitação e
definição, ou seja, de uma prática de análise científica. A seguir, vamos aos resumos para
observar o que eles dizem, se há um diálogo entre eles e se eles estão coerentes com as palavras-
chave.
43
Diversos autores de teses e dissertações indicam que há uma interlocução entre Glauber
Rocha e alguns escritores influenciam a obra do diretor. Os resumos discutem a forma como
ele se apropria do teatro e da literatura na composição política e estética de seus filmes. Os
seguintes fragmentos são representativos desta avaliação feita pelos pesquisadores:
Esta pesquisa teve por objetivo verificar, nos filmes e na obra escrita de
Glauber Rocha, a presença de elementos da estética de Bertolt Brecht. Foram
selecionadas seqüências de O dragão da maldade contra o santo guerreiro e de
Der leone have sept cabezas para análises mais detidas, passando-se em
seguida a uma observação mais geral dos procedimentos e conceitos
brechtianos na obra de Glauber Rocha (GUTIERREZ, 2008, p.5).
O primeiro trecho trata da influência de Euclides da Cunha e sua construção de sertão na obra
do cineasta baiano. Além da influência do escritor, os pesquisadores identificam que há uma
relevante contribuição do dramaturgo alemão Brecht, além de Antonin Artaud na construção
narrativa e política do cinema de Glauber Rocha. Como é possível visualizar, há uma
apropriação e influência de aspectos literários na sua produção cinematográfica.
O segundo ponto trata da comparação de Glauber Rocha com escritores. Estas pesquisas
afirmam haver uma articulação entre a obra do diretor e a de alguns escritores. Eles
compartilhariam temas, aspirações políticas e mobilizariam representações sociais semelhantes.
Vamos nos atentar para os seguintes exemplos:
Essa dissertação tem por objetivo estudar a interlocução entre Glauber Rocha
e Darcy Ribeiro, a partir do visível, das vozes, da antropofagia em Utopia
Selvagem: saudades da inocência perdida, uma fábula, do roteiro de Idade da
Terra e o respectivo filme (RICARDO, 2007, p.7).
Estes três fragmentos demonstram a perspectiva dos autores sobre a relação do diretor e dos
escritores escolhidos como interlocutores. O primeiro faz um diálogo entre os filmes de Glauber
Rocha e dos livros de José Lins do Rego, demonstrando que a sua representação do sertão
resguarda afinidades políticas e temáticas, principalmente com relação à modernização
brasileira. O segundo trata da relação entre a estética do filme e a estética da poesia a partir da
comparação da obra do cineasta e de Manoel de Barros, afirmando a existência de um trânsito
entre estas duas formas de arte distinta, sem que haja a subordinação entre elas. O último trata
do diálogo entre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, afirmando que há, dentro de Utopia Selvagem,
elementos que serão mobilizados por Idade da Terra (1980), último filme do diretor.
Outro tema recorrente nas teses e dissertações diz respeito à estética e política dos filmes
de Glauber Rocha. Os resumos expõem a preocupação do diretor em atualizar a estética do
filme, trazendo um rompimento da dualidade política/estética, fazendo com que uma seja parte
45
da outra e vice-versa. Além disto, demonstram quais os principais elementos políticos de sua
obra, como veremos nas seguintes passagens:
Adotamos o filme Claro (Itália, 1975) de Glauber Rocha como corpus, em sua
materialidade complexa de linguagem verbal e visual, a fim de depreender
como são produzidas identidades sociopolíticas. Claro é organizado em
pequenas narrativas marcadas por questões políticas do contexto histórico e
pela presença constante da atriz francesa Juliet Berto, numa mescla de ficção
e documentário. Tivemos o objetivo de descrever, analisar e interpretar a
construção de identidades, que trazem à luz discursos sociopolíticos da
modernidade e sua efemeridade no cotidiano. Partimos da hipótese de que os
discursos em Claro apontam para um imbricamento entre a materialidade
verbal e visual e dessas com a memória na constituição de identidades
sociopolíticas (SANTOS, 2011, p.9).
Como dito, os autores preocupam entender os aspectos políticos e estéticos da obra do diretor.
O primeiro fragmento explora a forma como Glauber Rocha liga o “terceiro-mundo”, fazendo
uma ponte entre Brasil, América Latina e África, buscando mesclar a história destas localidades,
além de alertar para as especificidades políticas existentes nestes espaços. Em adição, trata da
46
instrumentalização do cinema ao se aproximar da estética teatral, fazendo com que os
espectadores interajam com o filme, não apenas como uma peça de entretenimento, mas de
reflexão, discussão retomada no segundo resumo. A construção das imagens, a mescla entre
documentário e ficção e a narrativa contextualizada politicamente é utilizada como forma de
construção de identidade sociopolítica. A última seção fala do resgate da memória popular
brasileira e da discussão sobre o povo e do sertanejo pelos filmes do diretor. Ele indica que
Glauber Rocha está em uma disputa pela versão dos fatos trazidos pela história, buscando
valorizar e ressignificar estes elementos com relação às versões oficiais.
Vimos, portanto, que a área de Letras possui dois tipos de pesquisa em destaque. A
primeira é a relação de Glauber Rocha com a literatura e o teatro, seja como fonte de inspiração,
seja como interlocutores que travam possíveis diálogos políticos e estéticos. Além disto, há uma
preocupação deste campo em discutir os aspectos estéticos e políticos, demonstrando uma
articulação entre forma e conteúdo dos filmes do diretor. Se levarmos em consideração os três
grupos mais importantes de palavras-chave e o que é mobilizado pelos autores nos resumos, é
possível observar uma leve correspondência, sendo que o segundo grupo, Nomes próprios, é o
mais representado nos textos, enquanto os demais aparecem diluídos em relação a outras
questões.
2.1.2 História
Agrupei as palavras de acordo com a afinidade entre elas. Diferente da área de Letras,
há uma maior fragmentação, sendo possível identificar apenas um grupo relevante,
Conceitos/Categorias. Utilizei a mesma denominação por tratar de um grupo com as mesmas
características já observadas.
Quadro XVI:
Conceitos/Categorias
Ética
Intelectuais
Diáspora
47
Cultura Popular
Identidade Nacional
Cultura Brasileira
Política
Civilizado
Bárbaro
Tricontinental
Alegoria
Memória
Sertão
Experimentalismo
Fílmico
Terceiro Mundo
Western
Nordestern
A partir dos resumos foi possível identificar dois temas recorrentes nas pesquisas sobre
Glauber Rocha e que perpassam todos os trabalhos da área. O tema com maior
representatividade são os aspectos políticos relacionados ao diretor e sua obra, enquanto o
segundo são os aspectos temporais e históricos do seu cinema.
Apesar de haver uma unidade temática, os autores partem de pontos diferentes para a
análise. Com relação aos aspectos políticos, há os pesquisadores preocupados com a atuação de
Glauber Rocha enquanto intelectual, enquanto outros dão maior atenção aos elementos das
obras do diretor. Os seguintes fragmentos lidam especificamente com a atividade política do
cineasta:
48
pela crítica social e por seus fins político-didáticos. Sua atuação como crítico
de cinema e sua participação nos debates em torno das políticas públicas de
fomento à indústria cinematográfica no Brasil lhe renderiam o título de 'líder'
do movimento cinemanovista e o afirmaram, ao longo dos anos sessenta e
setenta, como um dos artistas-intelectuais de maior expressão política do país
(SILVA, 2012, p.7).
As três passagens reproduzidas aqui têm três dados em comum: 1) tratam Glauber Rocha como
um agente político em relação ao exterior, 2) falam da sua preocupação enquanto cineasta
engajado que reproduz em seus filmes um projeto político e 3) descrevem o diretor como
alguém datado de prestígio, uma liderança. São três características constantemente atribuídas a
ele e que ajudam entender a forma como os pesquisadores o entendem com relação ao mundo
social, além de fornecer subsídios para compreender seus projetos políticos e estéticos.
Esta tese tem por objetivo analisar três filmes do cineasta brasileiro Glauber
Rocha realizados no exterior: O leão de sete cabeças (Congo/Itália/França,
1970), Cabeças cortadas (Espanha, 1970) e História do Brasil (Cuba/Itália,
1972-74, co-dirigido por Marcos Medeiros). (...) Acreditamos que os filmes
analisados constituem o núcleo dinamizador de um projeto formulado por
Glauber Rocha de integração política e estética das cinematografias dos países
49
pobres dos três continentes (América Latina, África e Ásia) (CARDOSO,
2007)
A noção de ferramenta fica evidente no primeiro excerto. Os filmes do diretor seriam utilizados
para botar em prática um projeto de integração política e estética do cinema do “terceiro-
mundo”. O segundo, já tratando da temporalidade no cinema de Glauber Rocha, fala sobre a
crítica do autor ao olhar dos europeus com relação aos países subdesenvolvidos, além de tratar
do diálogo político pretendido pelo cineasta com seus interlocutores do terceiro-mundo. O
último fragmento trata do conteúdo político de forma a ilustrar que sua obra dialoga com a
conjuntura brasileira, denunciando a condição precária do país.
Esta passagem trata exatamente do primeiro ponto. Seu autor afirma que a pesquisa
parte de um pressuposto: que o tempo histórico e a vivência social de Glauber Rocha vão
interferir na construção de seus filmes e nas representações sociais e lutas que eles trazem. Os
50
próximos dois trechos ilustrarão o que as teses e dissertações de história falam sobre a
historicidade e temporalidade nos filmes do diretor:
Os filmes analisados aqui serão Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra
em Transe (1967) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969).
Apesar das peculiaridades de cada um, podemos perceber que, neles existe a
afirmação de uma historicidade na qual se articulam eventos de natureza
econômica, política, cultural, devido ao caráter específico do tempo histórico.
Para Deleuze, o cinema de Glauber Rocha se liga à ideia de transe. Entende-
se que esse elemento se relaciona com a temporalidade histórica dos filmes,
constituindo um estado no qual o tempo cronológico perde sua lógica e sua
concretude ((BUENO, 2010, p.7).
Como podemos ver, ambos os autores discutem os elementos temporais e históricos dos filmes
de Glauber Rocha. O primeiro fala do resgate que o autor faz do passado, para relembrar dos
oprimidos em diferentes tempos históricos. Neste sentido, o diretor condensaria nas suas
narrativas distintos períodos de maneira “anacrônica”, os filmes criticam o presente lembrando
de um passado que nem sempre é bem definido. O segundo trata da alusão à ideia de transe. O
transe seria a suspensão do tempo histórico, ou seja, não há uma definição clara a época em que
está inscrita a ficção do diretor, mesmo que haja uma crítica histórica e social.
Retomando o primeiro tema, há uma associação da crítica social dos filmes de Glauber
Rocha a este elemento histórico. Muito da percepção que os pesquisadores têm de Glauber
Rocha enquanto um artista e, sobretudo, um intelectual engajado com a mudança social, parte
da relação que fazem dos seus filmes com a crítica colonial. Parcela relevante de sua obra é
dedicada em capturar sua ideia do homem do “terceiro-mundo” frente aos seus colonizadores.
Outro aspecto importante levantado pelos historiadores é sua relação com a crítica do presente,
no que emerge o segundo tema mais discutido dentro das teses e dissertações aqui estudados: a
representação histórica e a temporalidade dentro dos filmes. Isto não quer dizer que os
51
historiadores estariam preocupados com os valores históricos nas películas, eles não afirmam
que Glauber teve o interesse de retratar um período, ou reproduzir um tempo histórico
específicos. Eles identificam sim, uma relação com o passado, em um “mapeamento” histórico
das opressões sofridas pelo povo; contudo, a dimensão mais importante da análise se dá na
suspensão da história dentro dos filmes. É recorrente a ideia de que os filmes do baiano estão
“fora” da história, num sentido de que os seus registros não estão inseridos na temporalidade
tradicional da historiografia.
As Ciências Sociais possuem seis trabalhos defendidos sobre Glauber Rocha. Neste
subcapítulo iremos demonstrar qual a especificidade desta disciplina no estudo deste objeto.
Assim como nos outros subcapítulo, vamos usar as palavras-chave e os resumos das teses e
dissertações.
Esta área possui um número menor de palavras-chave, 19, e assim como acontece nas
outras, há pouca repetição: Glauber Rocha é utilizada em três trabalhos, América Latina e
Cinema em dois. O único grupo de palavras que pode ser formado quanto à afinidade é o de
Conceitos/Categorias, como visto no subcapítulo anterior.
Quadro XVII:
Conceitos/Categorias
Identidade nacional
Habitus
Transmissão De
Conhecimento
Estética
Semiótica
Crítica
Cultura
América Latina
Revolução Brasileira
Ética Revolucionária
Como conceitos e categorias, estas palavras-chave não são apenas o assunto de cada
trabalho, mas demonstram o fazer e o recorte das pesquisas. Eles nos dão pistas da abordagem
que será utilizada pelas teses e dissertações, além de demonstrar que há uma preocupação
científica nos estudos, como nas outras disciplinas. Por exemplo, Revolução Brasileira e Ética
Revolucionária sugerem um recorte político, questão importante, como veremos a seguir.
52
Ao observar os resumos, veremos que há dois assuntos que se destacam com relação
aos demais tratados pelas teses e dissertações. Fora as especificidades de cada pesquisa, há duas
questões que se repetem: 1) a estética política dos filmes do cineasta, bem como o seu conteúdo
e sua mensagem política e 2) Glauber Rocha com relação à América Latina.
Há dois elementos importantes nas análises sobre Glauber Rocha que tratam da noção
de política relativos ao cineasta. O primeiro e mais recorrente é com relação ao conteúdo
político das obras. Os dois resumos a seguir tratam disto:
É interessante notar que estes autores traçam caminhos diferentes em suas pesquisas. O primeiro
privilegia a música utilizada pelo diretor em seus filmes, enquanto o segundo trata de um filme
específico para discutir uma questão – no caso, a crítica do cineasta ao ideal revolucionário
brasileiro. Por outro lado, vemos que há um interesse em discutir como ele aborda alguns
assuntos. No primeiro resumo, discute-se a presença de uma questão política específica: o
nacionalismo, enquanto o segundo trata da percepção de Glauber Rocha, traduzida no filme,
dos ideias revolucionários no país.
O segundo ponto tratado nos resumos é a forma como o filme se insere em na relação
política. O seguinte fragmento serve de ilustração para este caso:
53
A pesquisa abordará como o espectador pode cooperar esteticamente na
produção de sentidos, a partir da percepção do questionamento proposto pelo
autor sobre as formas de representação do poder (MARTINS, 2013, p.6).
Já vimos em outras pesquisas da área de Letras que Glauber Rocha teria uma preocupação em
fazer com que seus filmes criassem um diálogo com os espectadores, levando a um incomodo
que pudesse modificar suas percepções. Esta abordagem também é trazida pelas Ciências
Sociais. O cineasta, com sua obra, faria com que o público colocasse suas ideias com relação
ao que é sugerido no filme, buscando uma modificação no sentido dado à realidade.
Nosso objetivo é realizar uma investigação para detectar se, quando e como,
aparece na obra do cineasta a "ideia" de América Latina. A nossa principal
hipótese de trabalho é que o crítico e diretor de cinema foi o primeiro cineasta
a ser dotado de uma reflexão de natureza efetivamente latino-americana
(OLIVEIRA, 2011).
Como podemos ver, o primeiro excerto fala justamente da preocupação de Glauber Rocha em
tratar a América Latina, em refletir o que significa viver e ser deste continente. A palavra “ideia”
demonstra que há uma construção por sua parte do que é a América Latina, para além do
geográfico. O segundo trata da relação dos filmes do diretor com países latino-americanos e a
forma como eles contribuem para certas construções que se fazem a partir destas obras. Esta
construção não é apenas de criação de um imaginário, mas diz respeito à influência do diretor
sobre sua recepção. Desta forma, há uma interação entre Glauber Rocha e estes países, assim
como há a relação entre eles quando o cineasta busca trazer para o centro da sua reflexão a ideia
de América Latina.
54
Não muito diferente das outras áreas, as Ciências Sociais centram sua análise nos
elementos políticos da obra de Glauber Rocha. Para estas pesquisas, o diretor preocupa-se em
transmitir ideias e conceitos, além de fazer com que seus filmes sirvam como ferramenta de
reflexão. Além disto, os pesquisadores identificam uma relação especial do cineasta com a
América Latina, como ponto de reflexão e influência.
Como dito, apenas dois pares de dois trabalhos dialogam entre si. O primeiro par trata
da relação entre a estética de alguns filmes do diretor e as artes-plásticas. Para estes autores,
Glauber Rocha teria semelhanças com outros artistas da época, e Câncer (1972), um dos seus
filmes menos estudados, seria o que mais enseja esta relação. Vejamos os fragmentos a seguir:
A primeira questão que pode ser inferida destes dois fragmentos é a forma como a estética
fílmica de Câncer se relaciona com a estética das artes contemporâneas. Ambos os autores
tratam da relação deste filme com artistas de vanguarda da arte brasileira, principalmente do
período tropicalista, como Hélio Oiticica. Segundo eles, a estética experimental do filme
estabelece um diálogo com a arte de performance. Podemos, fazendo uma segunda inferência,
dizer que o diretor tanto sofre influência deste movimento artístico, como gera sua influência.
Isto ocorreria, segundo os fragmentos, a partir de uma vivência comum, em um dado momento
histórico quando certas questões, como a autoria, estariam colocadas para todos estes artistas
que viveram neste período.
O segundo par fala da arte política do diretor. Estes autores trabalham a sua obra
enquanto meio de resistência de grupos minoritários. Para eles, há nas imagens construídas pelo
cineasta um desejo de apresentar e estabelecer os anseios de certos setores sociais,
invisibilizados, desprovidos de representatividade, como veremos a seguir:
Somos capazes de visualizar nestas passagens a dimensão da resistência. O primeiro fala sobre
como os filmes ativam potências de minorias, produzindo fugas do que é estabelecido
hegemonicamente. No segundo, há a exemplificação da resistência possível, construindo
narrativas com as quais os grupos subalternos possam se identificar, possibilitando a construção
de um certo imaginário, de uma percepção diferente que não seja a dominante.
Como dito, a Comunicação Social não é uma área que possui um tema que predomina,
uma abordagem centrada em um aspecto mais destacado da obra ou da trajetória de Glauber
Rocha. Considero isto um dado importante, já que se afasta da organização disciplinar que
vemos até agora. Uma pergunta que fica é se a Comunicação Social possui uma característica
mais difusa do que as outras áreas, ou seja, seja uma disciplina mais aberta, com menor
estabelecimento temático e teórico do que as outras.
Além das quatro disciplinas que possuem mais de um trabalho, outras pós-graduações
tiveram estudos sobre Glauber Rocha: filosofia, música e planejamento urbano e regional.
Apesar da diversidade, os temas abordados nestas dissertações estão em diálogo com os trazidos
pelas outras disciplinas.
O sertão, abordado sobretudo na área de Letras, mesmo não sendo um tema dominante,
é trabalhado em Nordeste: razão e sensibilidade de Carla Torres Cavalcanti do Nascimento, da
área do Planejamento Urbano. Seu estudo foca, sobretudo, na construção do sertão feito pelo
filme de Glauber, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) e por um semanário do Partido
Comunista Brasileiro:
57
tempos – a região Nordeste. Constroem Nordestes e nordestinos a partir de
práticas sociais que os inventam, moldam e sustentam dentro de campos
político, econômico e cultural (NASCIMENTO, 2009, p.4).
Em Quatro dias para filmar e quatro anos para montar e sincronizar: o problema da
temporalidade em Câncer de Glauber Rocha, de Paulo Yasha Guedes da Fonseca, da área de
Filosofia, há um retorno de um tema caro à História que é a temporalidade no filme. Aqui,
contudo, há uma diferença: a temporalidade também é expressa na realidade objetiva, já que é
o próprio tempo de construção do filme que se torna interesse:
58
maioria das áreas estudadas. Além disto, buscarei articular estas descobertas com as hipóteses
que serão testadas no próximo capítulo.
O primeiro ponto da relação entre arte e política tratado nesta dissertação foi o levantado
pela Letras. Ele discute a forma como Glauber Rocha articula seus filmes a fim de fazer uma
ligação entre a história dos países do dito “terceiro-mundo”. Este assunto é resgatado pela
História ao discutir a posição de liderança do diretor enquanto intelectual preocupado em
divulgar e batalhar pelo lugar do cinema subdesenvolvido no cenário mundial. As Ciências
Sociais também fazem uma relação do diretor com a América Latina, principalmente da sua
preocupação em construir uma reflexão sobre o continente, criar uma ideia do que é ser latino
americano, ser “subdesenvolvido”.
59
formulação de novas imagens que devem ser pintadas do continente. Acusa os artistas e
revolucionários, mesmo os mais engajados de serem reacionários, de negarem as vanguardas
artísticas, excetuando-se os cinemanovistas. Do ponto de vista estético o diretor escreve:
Podridão mental, cultural, decadência que está presente tanto na direita quanto
na esquerda. Porque nosso subdesenvolvimento, além das febres ideológicas,
é de civilização, provocado por uma opressão econômica enorme (ROCHA,
1981, p.140).
Podemos ver que esta percepção não é simplesmente compartilhada pelos pesquisadores, mas
que é uma preocupação de escrita do próprio cineasta que dedicou grande parte de sua atividade
intelectual a produzir textos discutindo as condições do país, do cinema e do “terceiro-mundo”.
A segunda ideia importante encontrada nas pesquisas destas áreas é a do uso que
Glauber Rocha faz do cinema enquanto ferramenta de reflexão e discussão da realidade. Por
exemplo, a Letras pensa sobre como o cinema glauberiano se beneficia de uma influência
brechtiana, de induzir em seu público a reflexão, produzir o espanto, o incômodo. As Ciências
Sociais também dão respaldo a esta análise, aceita que os filmes do diretor têm um objetivo de
transformação a partir de uma interação com os espectadores. Na História há a mobilização da
ideia de que os filmes dele seriam ferramentas utilizadas como forma de efetivar um projeto
político e cultural. Letras e História concordam neste ponto, principalmente quando se pensa
em uma construção do Brasil, da história e de suas representações. Outro elemento importante
do engajamento artístico de Glauber Rocha diz respeito à forma como ele produz imaginário
sobre as minorias. Este tema aparece com força na Comunicação Social. Nesta área, o seu
cinema possuiria um potencial de criação de resistência, de produzir ruptura social,
principalmente com relação à realidade “oficial”.
60
Para Glauber Rocha, o cinema, a arte no mundo subdesenvolvido só é desejável se
anticolonial. Há a necessidade de romper com o colonialismo, onde o colono informa ao
colonizado sua condição. Para isto, o artista deve criar levando em consideração o princípio de
didática, de informar, mas também da épica, de criar o sentimento revolucionário. É por isto
que seus filmes tornam-se também ferramentas. A partir deles, o indivíduo colonizado pode
refletir sua própria condição, buscar se libertar da realidade imposta e produzir a sua própria.
Neste sentido
Estes ideais de Glauber Rocha, sua teoria e sua prática se materializam nas pesquisas. Os
autores das teses e dissertações conseguem notar no seu cinema, em sua trajetória a efetivação
daquilo que tencionou, daquilo que previu para si, o que considerava correto. A recorrência
temática do artista engajado, do cinema político faz com que esta inferência seja possível. Para
além do próprio cineasta, há escritores e pesquisadores, como Ismail Xavier e João Carlos
Teixeira Gomes, que ajudam a embasar estas afirmações e a elas dar legitimidade.
Gomes (1997) enxerga Glauber Rocha como artista engajado, suas obras não se
prestavam ao mero exercício estético. O cinema deveria ser uma ferramenta de denúncia, uma
maneira de expor ao brasileiro sua condição de explorado, pois, para ele, Glauber Rocha
desejava no cinema uma prática revolucionária, visto que tenciona a revolução. Deste modo,
seus filmes carregam uma visão de mundo, um posicionamento perante a realidade. Gomes
afirma que para o diretor o cinema latino americano
61
Ismail Xavier (2007), reafirma este caráter da obra do cineasta. Segundo o crítico, assim
como diversos outros artistas de sua época, Glauber Rocha estava envolvido em uma série de
relações e projetos que visavam a transformação social, com um viés político e didático. Os
filmes serviriam como meio de construção de uma nova realidade voltada para o popular,
desafiando as instâncias instituídas do poder.
Nesta mesma linha de pensamento, Ridenti (2001) afirma a existência, nos anos de 1960,
mais do que em qualquer outro momento da história brasileira, de uma adesão dos intelectuais
àquilo que ele chama de romantismo revolucionário. Estes indivíduos desejavam contribuir
com a formação de um novo homem, que agisse no sentido de modificar a história. Entre estes
artistas e intelectuais estaria Glauber Rocha, com destaque para seu filme Deus e o Diabo na
Terra do Sol (1963). O autor aponta uma questão importante, discutida em obras de Letras,
História, Comunicação e de outras áreas do conhecimento estudadas: a valorização da
identidade nacional, do brasileiro subalterno e dilapidado, nos termos da resistência descritos
aqui. Segundo ele, a afiliação do diretor fazia com que este novo homem fosse buscado
Gostaria de fazer uma breve discussão sobre Glauber Rocha e seu engajamento na arte
política. Bourdieu (1996), ao pesquisar a relação dos artistas e suas obras com o mundo
objetivo, afirma que somos obrigados a prestar atenção na maneira como o mundo social
objetivo age sobre estes indivíduos e como estes indivíduos reagem a esta influência. Para esta
compreensão é necessário observar a maneira como as relações de classe estão desenhadas, a
forma como a classe artística se coloca no jogo de posições de classe no espaço social e no
campo do poder, que envolve sua autonomia em relação à influência de outras classes,
principalmente da classe dominante, na produção e circulação de suas obras e a maneira como
os artistas se inserem dentro do campo intelectual, ou seja, no espaço de concorrência e
cooperação onde eles estabelecem uma série de apostas para seu estabelecimento dentro do
jogo próprio relativo à produção artística e intelectual.
Uma das questões mais importantes a serem discutidas é a relação entre os artistas e um
campo do poder mais amplo. Segundo Bourdieu, artistas geralmente fazem parte da classe
62
dominante, mas são dominados no interior da sua própria classe. Para esclarecer esta questão,
temos que observar a configuração do campo intelectual e artístico. Nele existem três posições
principais: “arte burguesa”, “arte social” e “arte pela arte”. A primeira, mais identificada com
as frações dominantes das classes dominantes (portanto DOMINANTES-dominados), a
segunda, hostil à classe dominante e aos intelectuais correspondentes (dominantes-
DOMINADOS), e a terceira ocupa uma posição estrutural ambígua dentro de uma fração de
classe já ambígua, sentindo duplamente a ambivalência desta posição, produzindo imagens
distorcidas de si e das outras posições de classe (tanto dominadas quanto as dominantes),
negando tanto os valores artísticos burgueses e o engajamento existente na arte social. O
discurso da arte pela arte, ou arte para o artista, visa exclusivamente o grupo de artistas e visa
excluir a obra de conteúdo, seja burguês ou social, se tornando um culto da forma, exercício
simplesmente estético. Ocorre disto uma constante busca pelo rompimento e recriação estética.
O mito do artista maldito é uma tradução ideológica de uma forma nova de circulação dos bens
simbólicos, o do “pagamento adiado”, já que os praticantes da arte pela arte instituem seu
próprio mercado, negando, por exemplo, o mercado burguês, que é abastecido pelos artistas
burgueses.
63
de sua época. Em grande medida, Glauber Rocha foi formado por estas estruturas, como
também ajudou a transformá-las ou mantê-las.
64
CAPÍTULO 3: REPRESENTAÇÕES MENTAIS SOBRE GLAUBER ROCHA
Neste capítulo irei discutir duas hipóteses centrais para o desenvolvimento deste
trabalho. A primeira hipótese trabalhada é a de que há a confluência de representações sociais,
ou representações mentais (BOURDIEU, 2008a), sobre Glauber Rocha. Quero dizer com isto
que, independente da temática das pesquisas e a maneira como os e as pesquisadoras articulam
seu referencial teórico e base de dados, há formas estabelecidas de se perceber e se referenciar
ao cineasta. A segunda hipótese supõe que este número restrito de representações mentais é
causado pelo pequeno número de autores considerados essenciais para o estudo do cineasta
baiano. Ou seja, há um grupo de intelectuais que possuem a legitimação da produção de
representações sociais sobre o diretor. Dentre estes autores, há um lugar de destaque para o
próprio Glauber Rocha. Neste ponto, um desdobramento da segunda hipótese, buscarei explicar
que Glauber se legitima não apenas como escritor e intelectual, mas também pela sua intensa
atividade em favor da construção de uma imagem própria, o que chamarei de representação.
65
em resumo, a ciência social deve englobar na teoria do mundo social uma
teoria do efeito de teoria que, ao contribuir para impor uma maneira mais ou
menos autorizada de ver o mundo social, contribui para fazer a realidade desse
mundo (BOURDIEU, 2008a, p.82).
Sempre que me referir a esta ideia utilizarei representações mentais ou representação social.
Representação, sozinha e sempre no singular será utilizada com outro objetivo, que veremos a
seguir.
Bourdieu também se atenta para a forma como a ação do indivíduo se relaciona com a
forma como ele quer transmitir certa informação sobre si mesmo:
66
menos importante numérica e socialmente, quer transmitir a alguém o
significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo
cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com a essência
social que lhe é assim atribuída (BOURDIEU, 2008a, p.82).
Recorri a estes a estas duas definições porque ambas podem ajudar a compreender a
apropriação de Glauber Rocha pelas pesquisas e sua constituição como objeto científico. A
primeira definição, de caráter coletivo, diz respeito à forma como se cria uma imagem do
cineasta “de fora”, ou seja, a forma como o diretor é percebido pelos outros. Como veremos
adiante, há um grupo de estudiosos que circulam em quase todos os trabalhos levantados, seja
como contraponto da análise dos pesquisadores, seja para retificar ou validar certas hipóteses.
Neste sentido, há um grupo que possui a legitimidade na construção de Glauber Rocha e dos
quais busca se afastar ou se aproximar.
A segunda definição, de caráter individual, diz respeito à forma como o próprio cineasta
estabeleceu sua imagem. Como esta pesquisa diz respeito a um indivíduo específico, tal
conceituação nos serve para entender como ele, de maneira deliberada ou não, influenciou a
existência do interesse científico em sua vida e em sua obra. É importante salientar que, como
veremos a seguir, a obra escrita de Glauber está presente em todos os trabalhos estudados. Desta
forma, sua performance está relacionada com sua atividade como teórico e crítico. Buscarei
provar que esta performance está intimamente ligada a percepção que os pesquisadores trazem
em seus trabalhos.
67
Neste levantamento foi possível o acesso a 12 teses escritas entre 2006 e 2007, segundo
critérios explicados no Capítulo 1, e a introdução dessas teses foi a principal fonte da
investigação. Escolhi as introduções por conta de suas características, visto que nelas o
pesquisador faz um balanço de sua pesquisa. Ele apresenta o tema, faz uma breve discussão da
metodologia, bem como contextualiza o leitor com relação às suas hipóteses e como elas foram
abordadas. Miriam Goldenberg, ao redigir um manual de pesquisa, explica a importância da
introdução para um relatório final:
Por ser um panorama da pesquisa, a introdução nos dá uma ideia geral do que é tratado na tese
e, sobretudo, é onde o autor articula suas principais impressões sobre seu objeto, já que grande
parte dos projetos possui um elemento subjetivo, como a curiosidade e o desejo de conhecer
(GIL, 2002).
Para atingir meu objetivo, recorrerei a técnicas da análise de conteúdo. Segundo Bardin
,
De forma geral, o uso da análise de conteúdo ajuda a evitar a queda em uma armadilha comum
neste tipo de pesquisa qualitativa: a evidência do saber subjetivo. Como cientista social, a
proximidade com o objeto e o ímpeto de impor percepções pessoais é sempre um risco, como
discutido pelos primeiros sociólogos, como Weber e Durkheim. Esta metodologia confere
legitimidade às construções dos sociólogos, oferecendo maior rigor para as respostas colocadas.
O emprego desta
68
atitude de “vigilância crítica”, exige o rodeio metodológico e o emprego de
“técnicas de ruptura” e afigura-se tanto mais útil para o especialista das
ciências humanas, quanto mais ele tenha sempre a impressão de familiaridade
face ao seu objeto de análise (BARDIN, 1979, p.28).
Bardin (1979) descreve que existem três passos para a análise do discurso: 1) a pré-
análise, 2) a exploração do conteúdo e 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a
interpretação. A pré-análise é a fase na qual se organiza a pesquisa, faz-se o levantamento dos
documentos estudados e onde se formula as hipóteses que nortearão a investigação. A pré-
análise foi realizada sobretudo no Capítulo 1, enquanto as hipóteses foram sendo discutidas
em cada um dos capítulos. As duas fases posteriores serão desenvolvidas a seguir. A exploração
do conteúdo compreende principalmente a codificação dos documentos estudados. Por meu
estudo buscar descobrir representações mentais estabelecidas, o tratamento dos resultados irá
acompanhar a codificação, uma vez que, através da leitura dos textos, observarei quais ideias
sobre Glauber Rocha os autores mobilizam. Apesar de fugir do procedimento padrão da análise
de conteúdo, esta licença possibilitará uma maior amplitude de resultados, uma vez que,
normalmente, há uma preocupação estatística com as fontes, o que não é o meu objetivo
principal.
A codificação
69
expressão, susceptível de esclarecer o analista acerca das características do
texto, que podem servir de índices (BARDIN, 1979, 103).
Nesta pesquisa utilizarei o software de análise qualitativa Nvivo 11. Este programa, a
partir da criação de nós, que são categorias recorrentes em um texto, possibilita a organização
do conteúdo analisado de maneira prática, além de fornecer índices estatísticos, quadros
comparativos e outras funções. No próximo subcapítulo farei uma breve descrição das teses
estudadas.
70
3.1.1 Uma breve descrição das teses
Para a contextualização do leitor com relação ao objeto de pesquisa, farei uma descrição
das teses estudadas. Após a descrição do tema, apontarei a área do conhecimento que pertence
a cada uma delas, a natureza da pesquisa, como por exemplo, análise fílmica, análise de
trajetória e análise da obra escrita. Dentro destes elementos, farei um apontamento sobre qual
o recorte do pesquisador sobre Glauber Rocha, sobretudo com relação aos filmes estudados,
período da vida abordado ou outras obras e produções investigadas. Utilizei teses em detrimento
das dissertações por uma questão numérica e operacional: há um número muito maior de
dissertações do que de teses, o que poderia inviabilizar a realização da pesquisa dentro do tempo
disponível. Além disto, como vimos no Capítulo 2, há um número limitado de temas tratados,
o que possibilita sua cobertura pelos trabalhos escolhidos.
3
No caso, contemporâneos se refere à época que ficou conhecida como Retomada, logo após o impeachment de
Fernando Collor, momento do cinema nacional onde o Estado volta a investir no cinema e há um grande aumento
de produções nacionais.
71
pesquisadora é a análise de fílmica, apesar de tratar tangencialmente da circulação do diretor
no contexto internacional e sua relação com a América Latina.
Ana Lígia Leite e Aguiar (2010) escreveu Glauber em crítica e autocrítica, tese
defendida pela Universidade Federal da Bahia, na área de Letras, na qual faz um estudo sobre
os posicionamentos políticos e cinematográficos de Glauber Rocha e a maneira como suas
relações sociais interferiram no processo e influenciaram um projeto de cinema brasileiro. A
pesquisadora faz uma análise da trajetória do diretor levando em consideração sua atividade
enquanto teórico do cinema.
72
Na tese defendida na Universidade de São Paulo pela Comunicação Social Paulo Emílio
e a emergência do Cinema novo: débito, prudência e desajuste no diálogo com Glauber Rocha
e David Neves, de Pedro Plaza Pinto, o tema principal é a forma como Paulo Emílio Sales
Gomes influenciou o Cinema Novo a partir de sua atividade intelectual, principalmente na
maneira como interagia com Glauber e David Neves, dois jovens cineastas e críticos. Apesar
da tese não ser especificamente sobre Glauber Rocha, o autor dedica um espaço relevante ao
diretor, principalmente na sua relação com o crítico paulista, um dos seus interlocutores mais
relevantes. Considerarei esta tese um estudo de trajetória.
Na tese, É que Glauber acha feio o que não é espelho: a invenção do cinema brasileiro
moderno e a configuração do debate sobre o ser cinema nacional, defendida pela Universidade
Federal de Uberlândia na área de História, Frederico Osaman Amorim Lima, discute a
importância de Glauber e seus interlocutores para o estabelecimento de uma visão hegemônica
sobre o que é o cinema brasileiro moderno. Esta tese é um estudo da trajetória crítica e atividade
política de Glauber Rocha.
Arlindo Rebechi Junior faz um grande estudo sobre a atividade escrita de Glauber
Rocha, analisando sua trajetória de crítico e teórico de cinema para entender sua atuação no
campo do cinema em Glauber Rocha, ensaísta do Brasil, tese de Letras defendida na
Universidade de São Paulo. Seu estudo se estende desde as primeiras experiências do diretor
em periódicos até o fim de sua vida. Este estudo se caracteriza como uma análise de trajetória.
As teses estão distribuídas da seguinte maneira, quanto à área: quatro de Letras, três de
Ciências Sociais/Sociologia, duas de História, duas de Comunicação Social e uma de Artes. A
grande diferença com relação ao total de teses e dissertações levantadas é que há uma
concentração da área de Sociologia na produção de teses, enquanto a História, com um maior
número de trabalhos, concentra-se nas dissertações.
Cinco teses utilizam a análise fílmica de maneira mais destacada, enquanto a análise de
trajetória é feita por seis trabalhos. Isto não quer dizer que há a exclusão de um método pelo
outro, mas que estes estudos estão mais focados nestas técnicas.
74
Como vimos, há algumas semelhanças entre os estudos, seja nos filmes e períodos
estudados, sejam as temáticas. Isto será discutido com mais propriedade no próximo
subcapítulo, no qual buscarei analisar as representações sociais que podem ser retiradas destes
textos.
É importante fazer uma ressalva sobre o que quero com minha pesquisa e sua relação
com as outras. Em primeiro lugar, não discuto o mérito da validade científica da afirmação a
ou da afirmação b, por me faltar recursos e negar tal tipo de avaliação. Meu estudo é, antes de
tudo, um panorama sobre como um objeto é tratado em diversas áreas e a forma como existem
elementos que se repetem. Certos temas são mais consagrados que outros e formas de pensar
eventualmente estão estabelecidas, o que não quer dizer que novos elementos não possam ser
adicionados e novas descobertas não possam ser feitas sem que haja um rompimento total com
a tradição. Isto significa que não é uma avaliação do tipo inovação versus reprodução. Thomas
Kuhn (1998) descreve a existência de um estado de normalidade na ciência onde certos
paradigmas são aceitos, enquanto outros são rejeitados. Existem, de tempos em tempos, crises
que causam uma ruptura com a ciência normal e que leva ao surgimento de novos paradigmas
e a negação dos antigos, praticamente em um sistema de tese-antítese-síntese. As ciências,
mesmo os paradigmas mais bem aceitos, passam por um escrutínio diário e as soluções
provisórias propostas pelas cientistas são alvo constante da crítica (POPPER, 2004), o que é
importante para o desenvolvimento das disciplinas e do próprio fazer científico.
75
Trabalhar com o conceito de representação social tem algumas implicações para esta
pesquisa. Primeiramente, assumo uma posição perante a individualidade do pesquisador. Esta
pesquisa e todas as outras que aqui estão na condição de objeto são resultados do trabalho de
um pesquisador ou pesquisadora e das pessoas que os orientam. Contudo, por estar inserido em
uma rede de relações pessoais e acadêmicas, certas escolhas dos pesquisadores são limitadas.
Chalmers (1994) conta uma interessante anedota de sua infância para explicar como a escolha
dos indivíduos não é livre:
Um dos seus deveres [do pai do autor] era comprar um presente para mim, e
ele orquestrou esta compra da seguinte maneira: levou-me até um determinado
balcão de brinquedo na Woolworth, onde estava exposta uma meia dúzia de
artigos, todos com preço de dois xelins, e me convidou a escolher. Com certa
consternação, vi-me diante daquelas opções sem graça até que, pressionado
para tomar uma decisão, acabei escolhendo um trenzinho de brinquedo meio
bobo. Voltamos para casa, cumprida a missão de meu pai (...). Uma das
diversas perguntas levantadas por minha mãe a respeito da sensatez das
diversas compras concentrava-se na satisfação que eu teria com meu presente.
“Foi ele que escolheu”, respondeu prontamente meu pai. Minhas faculdades
racionais não estavam suficientemente desenvolvidas para que eu pudesse
articular a maneira como havia sido logrado, mas é claro que eu sabia que
realmente isso acontecera. Talvez naquele momento tenha entrado em jogo
algum impulso edipiano que me empurrou na direção de uma carreira na
filosofia. De qualquer maneira, eu gostaria de apresentar a moral que tirei da
história: quando as pessoas têm de fazer escolhas, todos os determinantes mais
importantes já ocorreram (CHALMERS, 1994, 152-153).
Apesar do autor estar lidando diretamente com a escolha de teorias científicas e a contribuição
dos cientistas para o desenvolvimento deste conhecimento, o que ele quer dizer com isto é que
os pesquisadores não possuem todo o controle das suas decisões, mais ainda, que grande parte
destas decisões não é feita de maneira racional, ou o que ele chama de “escolha racional da
teoria”. De maneira análoga, quando um pesquisador utilizar uma representação social sobre
um objeto, ele não está necessariamente aderindo racionalmente a uma visão de mundo. Existe
toda uma rede de relações entre indivíduos e estruturas que irão validar ou não certas
formulações sobre o mundo e as nossas escolhas, aproximações ou afastamentos são
dependentes deste processo. Dito isto, podemos retomar à análise propriamente dita.
76
O primeiro passo do estudo foi a codificação a partir de temas. Pude chegar à divisão
que veremos a seguir por ter identificado certas recorrências nas construções dos argumentos
dos textos. Isto se deve ao olhar que trouxe da minha hipótese: se supus que há a mobilização
de representações sociais em comum, procurei pela semelhança que unia os trabalhos. A leitura
das 12 teses me levou a organizar o conteúdo em três grandes grupos de assuntos:
Dos três grupos, o que possui um número menor de referências e é menos discutido nas
investigações é trânsito e atuação internacional do diretor. Cinco dos 12 trabalhos falam sobre
sua carreira e relações internacionais. A atuação social de Glauber surge em nove teses e o seu
cinema é referenciado em 11. A partir destes grupos de assunto buscarei extrair as
representações sociais mobilizadas pelos pesquisadores sobre o diretor.
As teses demonstram que Glauber Rocha possuiu uma agitada vida internacional. Desde
seu primeiro filme, Barravento (1961), o diretor circulou em diversos festivais, deu palestras e
escreveu em revista, colaborando com outros cineastas e críticos. Além disto, durante a maior
parte dos anos 70 o diretor viveu em exílio em diversos países, eventualmente voltando ao
Brasil. Na tese O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-
1974), Maurício Cardoso fornece dados interessantes sobre esta experiência:
77
embora sua participação se limitasse a uma única cena, Glauber fazia o papel
de um cineasta que apontava o caminho da estética do Terceiro Mundo, em
oposição, ao velho cinema político europeu.26 Em 1972, oficialmente exilado
em Cuba, ele iniciou a organização de um filme de montagem, História do
Brasil que só seria concluído em 1974, na Itália. Exilado na Europa, escreveu
um roteiro (não-filmado) para a televisão italiana, denominado O Nascimento
dos Deuses, dirigiu um episódio de As Armas e o povo, filme coletivo sobre
a Revolução dos Cravos, em Portugal e, finalmente, realizou Claro (1975), sua
última obra antes de retornar ao Brasil, em junho de 1976 (CARDOSO, 2007,
p.19).
Ele estabeleceu as bases deste programa que, embora não chegasse a ser
efetivado, conseguiu esboçar o que estaria em jogo. Inspirado numa
perspectiva que definiu como “cinema tricontinental”, Glauber pretendeu
liderar uma revolução cultural que tomaria de assalto o campo
cinematográfico mundial (CARDOSO, 2007, p.15).
O título do artigo é Glauber Rocha par cœur, de tête et dans un corps e a sua
fatura se dirige para essa enumeração conclusiva após explicar o desejo do
cineasta de um cinema livre, “verdadeiro” e “descolonizado”, um cinema
empenhado, enfim, na “autêntica expressão de um povo” – através de um
cinema “artisticamente e economicamente adulto”. Tais vetores articulados,
entretanto, na mesma circunvolução de um projeto de cinema cuja energia se
investe de uma reflexão de alcance global, sobre a totalidade do problema
78
cultural e sócio político do brasileiro, terceiro-mundista, latino-americano,
universal (PINTO, 2008, p.85).
O que esses quatro excertos retirados de diferentes obras possuem em comum? Todos trabalham
com a ideia de que Glauber estava preocupado em vincular os filmes dos países
subdesenvolvidos com suas problemáticas, a partir desta visão de integração e dos laços
ideológicos que uniriam tais países. A imagem de Glauber Rocha como um militante do cinema
latino-americano e “terceiro-mundista” é forte nestas teses, que pese o seguinte contraponto:
efetivamente, como as próprias teses indicam, o projeto de Glauber Rocha se realiza apenas
parcialmente. Excetuando-se História do Brasil (1972-1974), montado durante os anos de
Cuba, todos os filmes internacionais de Glauber Rocha foram produzidos na Europa ou
produzidos por europeus, no caso de O Leão tem Sete Cabeças (1970).
A representação social que se destaca nas teses sobre a relação de Glauber Rocha com
o hemisfério norte é a de defensor e divulgador da cultura brasileira e latino-americana. Porém,
esta representação tem duas dimensões particulares: a primeira é a de um cineasta de prestígio
internacional que circula junto a críticos, cineastas e revistas, a segunda é a de um voraz
guerreiro contra o não colonizador da arte europeia e norte-americana.
79
às diversas experiências e circunstâncias que ele enfrentava, seus escritos
refletem os passos dessas transformações (REBECHI, 2011, p.30).
Nestes trechos podemos ver um Glauber Rocha ativo no cenário europeu, dialogando com
outros cineastas ao utilizar atores consagrados por outros diretores, além de solidificar-se
enquanto agente de alcance internacional, fazendo com que a causa do intelectual
subdesenvolvido tenha espaço em locais anteriormente inacessíveis.
Cabezas cortadas (1970) foi realizado por Glauber Rocha na Espanha, logo
após Der leone have sept cabezas (Brasil/Itália/França, 1970), rodado na
África. Nestes dois filmes, que não foram bem recebidos pela crítica europeia,
Glauber entabula um diálogo com o pensamento cinematográfico que
circulava então, principalmente na Europa (GUTIERREZ, 2014, p.58).
80
produzido pela Gaumont, uma multinacional imperialista”. Na sua cabeça,
“Malle é um cineasta de segunda classe”, e tal como os outros dois premiados
- Cassavetes e Angelopoulos -, não faziam jus ao prêmio (REBECHI, 2011,
p.22).
A ambiguidade desta relação entre o diretor baiano e os artistas e crítica dos países
desenvolvidos fica mais nítida nessas passagens. Se por um lado ele colaborava com diversos
deles e os admirava, por outro atacava a interferência e a forma como as culturas dominantes
interagiam com as culturas de países como o Brasil. Além disto, a própria crítica europeia
começa a se distanciar do diretor. O último fragmento, o ato final de Glauber Rocha na Europa,
pouco mais de um ano antes de morrer é a síntese desta relação de expectativa e ressentimento.
Apesar da imposição destas duas visões, gostaria de retornar ao seguinte ponto: estas
passagens apontam mais para uma ambiguidade do que para uma unidade com relação ao que
foi a experiência internacional de Glauber Rocha, por mais que os autores das teses insistam
nas representações sociais que foram descritas por mim, sobretudo com relação à sua atuação
junto à América Latina e os demais continentes do “terceiro-mundo”. Faço a seguinte pergunta:
as evidências apresentadas pelos pesquisadores não indicam que o cinema e o pensamento de
Glauber Rocha é referido aos seus pares europeus? Alguns textos tangenciam esta questão,
mesmo que não ofereçam uma resposta satisfatória para tal problema.
O próximo assunto que irei tratar é a forma como o cinema de Glauber Rocha é descrito
nas teses e quais as representações que os pesquisadores e pesquisadoras fazem dele.
Os relatos sobre a vida de Glauber Rocha são extensos, com livros biográficos, como
Glauber Rocha, esse Vulcão (1997), A Primavera do Dragão (2011), além de diversos filmes,
como Rocha que voa (2002), Glauber Rocha o filme, Labirinto do Brasil (2004). Esses registros
trazem extensos relatos sobre a experiência social do diretor, seus afetos e conflitos e discutem
como isso influenciou em seu cinema e no cinema brasileiro. Como vimos, diversas teses
também utilizam a vida de Glauber como objeto de pesquisa, analisando e percorrendo estas e
outras fontes, como entrevistas e seus relatos pessoais.
81
por Glauber para se manter relevante, identificadas nas pesquisas ou que fossem discutidas a
partir de citações, diretas ou indiretas.
82
Nada mais distante do que as intempestivas participações de Glauber no
cenário internacional, suas posições de ataque frontal à cultura européia, sua
condenação sem tréguas ao colonialismo, sua crítica estética ao realismo
socialista e as formas dramáticas do cinema político, enfim, suas diatribes e
bate-bocas contra inimigos reais ou imaginários (CARDOSO, 2007, p.14).
83
memórias sobre a corrente cinematográfica, na busca infrene de configurar
uma tradição. Estas fontes escritas, ao explicitar a individuação/subjetivação
dos cineastas, identificam os “outros” que os auxiliaram a se formar. Logo,
foram de grande utilidade (CASTELO, 2010, p.24).
Da mesma forma que Glauber não foi “eleito” o personagem central deste
trabalho. Mas, considero que ele é, enquanto sujeito imerso numa teia de
sensibilidades juvenis que se desenvolveu a partir dos anos 1950, alguém que
articulou práticas e discursos capazes de dar legitimidade a um começo e
desenvolvimento narrativos sobre o Cinema em questão (LIMA, 2012, p.17).
Selecionei estas passagens por reproduzirem facetas mais usuais da liderança de Glauber
Rocha. A primeira trata da sua ação enquanto liderança do Cinema Novo em busca da
consolidação da nova linguagem e do movimento, uma liderança jovem e enérgica. A segunda
já trata do maior alcance do cineasta enquanto agente dotado de poder de legitimação. Ali o
autor discute o papel de Glauber na consolidação de uma narrativa sobre o que ele chama de
Cinema Brasileiro Moderno, a negação e a validação de certas tradições. A terceira passagem
trata do intelectual consagrado mundialmente, representante do cinema latino-americano com
uma grande contribuição para o desenvolvimento do cinema mundial. A última passagem trata
da forma como Glauber articulava suas redes para produzir relevância para seus filmes e seus
discursos. Elas indicam para suas ações e relações sociais, a forma como se firmava nos
84
espaços, e o papel que representou para consolidar-se como ator relevante em uma série de
relações.
Cinema e recepção
As palavras político/política e revolução estão entre as palavras com cinco letras ou mais
que mais se repetem no universo de teses. Politico/política são utilizadas 2200 vezes nas 12
teses, enquanto revolução 1293 vezes, em que pese o título de um livro do diretor, Revolução
do Cinema Novo (1981). Fora nomes próprios como Glauber, Paulo e substantivos como
cinema (a palavra mais recorrente), Político/Política é a palavra mais utilizada nos trabalhos.
O jagunço Antônio das Mortes, alter ego de Glauber, contratado pela Igreja e
por latifundiários, dizima aquelas manifestações, no intuito de livrar um casal
de camponeses de suas influências deletérias. No final do filme, Manuel e
Rosa encontram o mar, metáfora da revolução. Imbuído da visão etapista da
revolução brasileira elaborada pelo PCB antes de 1964, o cineasta propugna a
ideia de que ela parte da cidade para o campo, uma concepção eminentemente
leninista de revolução. O litoral exerce função civilizatória no sertão, mediante
a ação do intelectual marxista, que incita a consciência de classe dos
sertanejos. Emblemático da radicalização do cineasta, cuja maior inspiração é
Eisenstein, é o fato de Manuel, após ser injustiçado, assassinar o patrão,
diferentemente do Fabiano de Vidas secas, que prefere migrar (CASTELO,
2010, p.13).
85
O contexto do último momento da tese se estabelece indagando-se
politicamente as posições de Glauber, suas rachaduras, seu conceito de nação,
sua interpretação sobre o nacionalismo e o populismo, e este recorte seria,
talvez, uma superextensão do espaço em branco ou de certo silêncio deixado
pelos trabalhos anteriores, ao falarem do Glauber político sem examinar mais
detidamente seu pensamento, apresentando, apenas, o impacto das
declarações nas quais o cineasta expunha suas opiniões sobre a arte e a política
e a repercussão dessas declarações em seus relacionamentos pessoais e junto
ao público. (AGUIAR, 2010, p.14).
Estes fragmentos dão conta da maior parte das percepções da política no cinema de
Glauber. A primeira lida diretamente com o texto do filme, a maneira como Glauber constrói
suas imagens com um subtexto político. A segunda transcende a imagem em movimento e trata
da música nos filmes, que, assim como a totalidade da obra, faria uma referência a um projeto
de valorização dos aspectos próprios da cultura brasileira. O terceiro trata especificamente do
pensamento do diretor e dos temas que são caros a ele, colocando-o como um intérprete destas
questões. O último segmento dá conta da preocupação com a identidade nacional, outro tema
que é recorrente nas representações sociais mobilizadas pelos pesquisadores como constitutivo
dos filmes do cineasta.
Demonstrei, com recurso a algumas passagens das teses estudadas que é possível falar
na recorrência de certas representações sociais sobre Glauber Rocha. Os três assuntos mais
debatidos nas teses transmitem algumas poucas percepções sobre o cineasta. Segundo os
pesquisadores, o diretor seria um intelectual com trajetória internacional, representante do
cinema latino-americano e do terceiro mundo, responsável por divulgar uma determinada forma
de fazer cinema, dado aos conflitos e embates com adversários e interlocutores, mas que se
cimenta como uma grande força cultural no país cuja obra é engajada politicamente, trazendo
86
questões como identidade nacional e revolução. Tentarei responder o porquê da manutenção de
tais representações sociais nas pesquisas estudadas no próximo subcapítulo.
A partir de agora demonstrarei que certos autores são importantes para entender as
pesquisas sobre Glauber Rocha e as construções que os pesquisadores fazem dele. Para atingir
meu objetivo, levantei, a partir das bibliografias contidas nas teses, quais textos e autores
possuem maior recorrência nos estudos. Como discutido anteriormente, esta importância não
diz respeito apenas à sua contribuição metodológica e teórica para as pesquisas, mas também
como forma de estabelecimento de determinadas representação social que é aceita ou negada
pelos pesquisadores.
Nesta sessão apresentarei os levantamentos feitos nas bibliografias das 12 teses que tive
acesso sobre Glauber Rocha. Primeiramente, irei tratar dos autores mais relevantes nas
bibliografias. Elegi como relevantes os autores que tivessem mais de um trabalho citado pelos
pesquisadores. Apesar de haver alguns textos que aparecem em mais de uma tese, considerei
que ter mais de duas obras é importante, pois demonstra que o autor ou autora possuem mais
reflexões sobre Glauber Rocha ou cinema, não sendo apenas um assunto eventual em suas
obras. Em segundo lugar, compilei os livros que tiveram maior frequência nas teses levantadas.
Irei apresentar na tabela livros que foram citados pelo menos em seis obras diferentes.
Manuel Palacios da Cunha e Melo, em seu livro Quem explica o Brasil (1999), faz uma
pesquisa muito semelhante a esta, na qual ele levanta as bibliografias de 300 teses e dissertações
de 11 cursos de pós-graduação em Ciências Sociais. Ele usa duas abordagens: estuda as citações
e faz um levantamento dos autores mais citados neste universo. Ele chama esta metodologia de
pesquisa bibliométrica. Seu trabalho utiliza métodos estatísticos viabilizados por causa da
amplitude das amostragens. Como meu trabalho é mais restrito, preferi uma abordagem menos
ambiciosa, apenas com indicações numéricas simples.
A tabela abaixo apresenta os autores com o maior número de obras citadas em uma tese,
contendo o número de obras citadas e em quantas teses eles estão presentes. Iremos observar
que alguns autores, apesar do pequeno número de livros citados, possuem uma presença
relevante:
Jean-Claude Bernadet e Ismail Xavier são os autores representados com o maior número
de livros citados pelas teses, com sete livros cada, seguidos por Glauber Rocha e por Paulo
Emílio Sales Gomes, com seis e cinco obras, respectivamente. Além disto, os quatro autores
possuem a maior presença nos trabalhos. Ismail Xavier e Glauber Rocha são referências em
todas as teses, enquanto Gomes e Bernadet são referenciados em dez pesquisas. Apesar de
possuírem um número muito menor de publicações referenciadas, Jacques Aumont, Rachel
Geber, Alex Viany, Lúcia Nagib e Rober Stam também aparecem em pelo menos metade das
teses. Geber e Stam são referenciados em oito trabalhos, Viany e Aumont em sete, enquanto
Nagib é referência em seis trabalhos. Três livros de Aumont são referenciados, enquanto os
outros aparecem com dois cada. O quadro abaixo apresenta a distribuição dos autores quanto à
nacionalidade:
89
Quadro XIX: Nacionalidade
Nacionalidade
Brasileiro 11
Francês 3
Russo 1
Americano 1
Total 16
Como podemos ver, o número de autores brasileiros com mais de um livro citado nas
bibliografias é muito destacado. Além disto, os autores estrangeiros que contribuem para a
composição bibliográfica possuem um campo de atuação mais geral, enquanto os autores
brasileiros focam na realidade cinematográfica nacional. Isto demonstra que há um campo
constituído dos estudos sobre Glauber Rocha e do cinema nacional, que se tornam referências
canônicas. O quadro abaixo apresenta as áreas de cada um destes autores e destas autoras:
90
relacioná-lo com sua área de formação. A categoria Teoria e Crítica do Cinema é ampla, pois a
maior parte destes autores se dedicaram às duas funções, tanto enquanto críticos em jornais,
como pesquisadores e teóricos da linguagem cinematográfica. Como podemos ver, apesar da
variedade de áreas das teses, os autores que são referência para a maioria dos trabalhos são da
área de teoria e crítica do cinema, o que pode ser um indício de que as teses sobre Glauber
Rocha são interdisciplinares. O próximo quadro é o dos livros que estão referenciados em pelo
menos metade das teses estudadas.
Como podemos ver, dentre os livros mais referenciados nenhum deles é de algum autor
estrangeiro. É mais uma evidência forte de que há um campo brasileiro bem constituído do
cinema nacional e de Glauber Rocha. Glauber Rocha e Ismail Xavier são os autores com o
maior número de obras neste recorte, quatro cada, sendo que o diretor tem os dois livros mais
citados. Dos 17 livros identificados, quatro citam Glauber Rocha diretamente no título e outros
quatro tratam do Cinema Novo, movimento que teve o diretor como um de seus principais
membros. Por fim, sete livros fazem alguma menção à história, revisão ou introdução ao cinema
nacional. Como visto anteriormente, Alex Viany, apesar de ter apenas duas obras referenciais,
91
está entre os que mais têm presença no universo estudado, enquanto Jean-Claude Bernadet se
coloca como uma importante referência para o entendimento da história do cinema nacional.
Além disto, podemos compreender a permanência destes atores dentro de uma série de
relações pela hegemonia da produção de um determinado tipo de conhecimento. Bourdieu
(2004) acredita que há espaços sociais relativos à produção de elementos simbólicos, como a
arte e a ciência, onde se juntam as instituições, os produtores e os estudiosos deste campo. Estes
campos, o campo da arte, da literatura, da ciência, seguem determinadas leis mais ou menos
definidas e que são, na maioria dos casos, criadas no interior do próprio campo. Segundo o
autor, há uma disputa entre tais agentes pela determinação destas leis, para a consagração de
certos temas e de certos conteúdos. Isto envolve, inclusive, representações sociais que
produzem uma percepção objetiva dos objetos científicos, das obras e dos próprios atores.
Vemos nesta pesquisa que tais teses mobilizam algumas destas representações sobre Glauber
Rocha, influenciadas pela dominância de alguns autores neste campo específico. Além disto,
argumentei brevemente que o próprio diretor é um importante ator na manutenção destas
percepções, não apenas por ser considerado por outros relevante, canônico ou gênio, mas pela
sua própria ação dentro do campo, que corresponde à forma como lidava com os seus conflitos
e da imagem que cultivava de si próprio.
92
CONCLUSÕES
Minha proposta neste trabalho foi fazer um levantamento das teses e dissertações sobre
Glauber Rocha defendidas entre 2006 e 2015 com o objetivo de discutir se há permanências
nas representações mentais mobilizadas pelos pesquisadores e explicar o porquê, se este fosse
o caso.
Também vimos que há um maior número de publicações a partir de 2011 do que entre
2006 e 2010. Entre estes anos houve a defesa de 17 teses e dissertações, e de 2011 em diante
foram 27. Ao cruzarmos os dados obtidos do total de estudantes matriculados nas pós-
graduações no Brasil, não é possível afirmar que na última década há um aumento do interesse
no diretor. No ano de 2006 o país tinha 125622 matriculados em mestrados e doutorados,
enquanto no ano de 2014 este número saltou para 210867, segundo dados da CAPES. O
crescimento de alunos é de 67%, enquanto o crescimento de estudos sobre o diretor é de 58%,
o que indica um crescimento quase proporcional.
93
Oeste e 2 no Sul. Considerei duas possíveis explicações para esta relação. Em primeiro lugar,
a condição socioeconômica e populacional do Sudeste, bem como sua maior tradição acadêmica
pode explicar a discrepância com relação às outras localidades. Além disto, Glauber Rocha e o
Cinema Novo se estabeleceram nesta região, sendo o Rio de Janeiro o principal polo produtor
destes cineastas e São Paulo um importante centro de formação de críticos. A segunda
colocação do Nordeste pode ser explicada pela proximidade temática dos filmes do cineasta,
sendo o tema do sertão e do sertanejo um dos mais explorados por ele. Além disto, o diretor
nasceu na Bahia, onde deu seus primeiros passos como intelectual e artista.
Outro ponto importante do primeiro capítulo foi a comparação do diretor baiano com
outros expoentes do Cinema Novo, em que demonstrei que há uma enorme distância no número
de teses e dissertações defendidas sobre Glauber Rocha e seus companheiros de movimento.
Enquanto Glauber é protagonista em 44 pesquisas, o segundo colocado, Leon Hirszman tem 16
estudos, seguidos por Nelson Pereira dos Santos, com 15, Joaquim Pedro de Andrade com nove,
Carlos Diegues com sete e Paulo César Saraceni com três. Isto demonstra que, para o campo
científico, Glauber Rocha é o principal cineasta do Cinema Novo e que, como veremos adiante,
há uma tradição de estudos estabelecida sobre ele.
O capítulo 2 trata dos resumos das teses e das dissertações apresentadas no capítulo 1.
O objetivo deste capítulo é descobrir, de maneira mais ampla, o que cada uma das disciplinas
estudam sobre o diretor.
A primeira a ser discutida é a área de Letras. O primeiro dado a chamar minha atenção
é a associação de Glauber Rocha a escritores. Os trabalhos se dividem em dois grupos
principais: os que observam a influência da literatura e do teatro em seu cinema e a interlocução
e aproximação a autores, como Manoel de Barros e Darcy Ribeiro. O segundo aspecto
importante é a forma como os pesquisadores observam a relação entre estética e política nos
filmes do diretor. As atualizações estéticas e o texto das suas obras estariam a serviço de uma
crítica política, uma luta pela valorização identitária Brasileira e latino-americana. Além disto,
a aproximação com o teatro brechtiano fez com que ele buscasse provocar na sua plateia uma
atitude reflexiva.
94
integração política e estética do cinema do “terceiro-mundo” e a denúncia das condições
culturais e econômicas do Brasil.
Vimos, portanto, que o tema da arte engajado do diretor e de seu próprio engajamento
político dominam a produção acadêmica. Como apontei, este tema não é novo. O próprio
Glauber Rocha e outros pesquisadores como Ridenti (2001) e Xavier (2007) tratam do assunto.
Por ter dado uma atenção especial aos aspectos políticos do seu cinema e criticar a falta de
engajamento de outros, além de ter sido um agente cultural muito ativo, não é de se surpreender
o destaque dado pelos pesquisadores a este objeto.
95
que há representações mentais recorrentes nas teses, e a segunda explica que isto acontece já
que existe um campo estabelecido de estudos sobre Glauber Rocha, com um número restrito de
autores que circula na maioria delas.
96
No terceiro grupo, Trânsitos e atuação internacional, os pesquisadores destacam duas
representações sociais: a primeira de defensor da cultura brasileira e latino-americana com
relação ao mundo “desenvolvido” e a segunda relativa a sua defesa pela integração cultural do
“terceiro-mundo”. A primeira representação social destaca duas imagens: a de intelectual e
cineasta consagrado e a de indivíduo envolto em conflitos com intelectuais e cineastas europeus
e americanos. A segunda trata do ideal glauberiano de integração dos cinemas de países
subdesenvolvidos, demonstrando como sua produção visava buscar a emancipação com relação
à estética que julgava colonizadora e a criação de um projeto político-estético autônomo. Fiz
uma ressalva neste grupo, uma vez que, apesar dos autores destacarem estes elementos, nota-
se, a partir dos dados, que grande parte das realizações de Glauber Rocha buscava o diálogo
com a crítica e cinematografia europeia, mais do que com a latino-americana. Quero dizer com
isto que os pesquisadores, apesar de não tratarem do assunto diretamente em todos os casos,
destacam um interesse do cineasta em estar referido à Europa, utilizando atores consagrados
por diretores como Buñel, escrevendo em revistas francesas e circulando por festivais e mostras
na Europa, como Cannes e Viena.
Com relação à minha hipótese, demonstrei que pode ser verificada uma constância de
representações mentais mobilizadas pelos pesquisadores. Enquanto diversos aspectos poderiam
ser destacados por eles, foram escolhidos alguns e eles se repetem por todas as teses estudadas.
No subcapítulo seguinte demonstrei que pode se estabelecer uma relação causal entre a
existência de representações mentais recorrentes e um campo estabelecido de estudos sobre
Glauber Rocha. Em primeiro lugar, apenas 16 autores possuem mais de um livro citado nas 12
teses estudas, o que indica que há um número restrito de trabalhos “canônicos”, ou mesmo de
autores que têm uma produção relevante na área de cinema ou do próprio diretor. Pudemos ver
também que destes, poucos se destacam com um grande número de obras, apesar de que alguns,
como Alex Viany, com apenas dois livros, é recorrente na maioria dos trabalhos. Ismail Xavier
e Jean-Claude Bernardet são os autores com o maior número de livros, sete, Glauber Rocha,
com seis e Paulo Emílio Gomes Sales, cinco. Glauber Rocha e Ismail Xavier são os únicos
autores presentes em todas as teses, enquanto Bernadet e Paulo Emílio estão em dez.
Dos 16 autores mais frequentes, 13 são brasileiros. Este fato, junto com a predominância
dos quatro autores citados anteriormente demonstram que há um campo de estudos sobre
Glauber Rocha e o cinema estabelecidos no Brasil. Outro indício importante da força deste
campo é a dominância de obras da crítica e teoria do cinema, com 12 autores afiliados a esta
97
área. Como indiquei, as teses, apesar de serem de áreas variadas, podem ser vistas como
interdisciplinares, já que recorrem a outras disciplinas.
Esta dissertação mostrou que entre os livros mais citados em pelo menos metade das
teses, nenhum é estrangeiro, o que fortalece meu argumento de que há um campo de estudo
estabelecido no país. A obra mais citada é Revolução do Cinema Novo, de Glauber Rocha, que
está em todos os trabalhos, seguido por Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, do mesmo autor,
presente em 11 teses, Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema
Marginal, de Ismail Xavier e Brasil em tempo de cinema, de Bernardet, citados por 10 e 9
trabalhos respectivamente. A importância dos livros de Glauber Rocha nas teses reforça a minha
ideia de que ele foi um importante agente na sua própria consagração. A partir da representação,
ele cria uma persona que estabelece certas visões sobre si. Isto é diferente do que fazem os
autores mencionados. Glauber Rocha, além da escrita como um canal, utiliza a escrita para a
performance. Parte do que é percebido sobre si por todos, como por exemplo, Xavier, Bernardet
e os pesquisadores objetos desta dissertação, é derivado desta performance, desta representação.
Por parte das “autoridades”, importa mais a legitimidade e a legitimação conferida ao cineasta
enquanto objeto de pesquisa do que as próprias performances.
Como visto, pude descrever e confirmar haver uma relação entre um campo estabelecido
de estudos sobre Glauber Rocha e as representações mentais mobilizadas pelos pesquisadores.
Apesar de não ter demonstrado diretamente o uso destes autores, os dados bibliométricos me
permitem fazer tal inferência, baseado na ideia de ciência indiciária, a qual nos referimos no
início deste trabalho.
98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTES, Ivana (orgs.). Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1994.
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