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No último capítulo de meu romance La literatura nazi en América,
narrava-se de modo talvez esquemático demais (não passavam de vinte
páginas) a história do tenente Ramírez Hoffman, da FACH. Essa história me
foi contada pelo meu compatriota Arturo B, veterano das guerras floridas e
candidato a suicida na África, que não ficou satisfeito com o resultado final.
O último capítulo da Literatura nazi servia como um contraponto, ou talvez
como anticlímax, para todo o conteúdo literário grotesco que o precedia, e
Arturo queria uma história mais longa, não como um reflexo ou um
resultado da explosão de outras histórias, e sim como reflexo e explosão em
si mesma. Portanto, isolamo-nos durante um mês e meio em minha casa de
Blanes e, a partir do último capítulo, ao embalo de seus sonhos e pesadelos,
compusemos o romance que o leitor tem em mãos agora. Minha função
limitou-se a preparar bebidas, consultar alguns livros e discutir, com ele e
com o fantasma cada vez mais vivo de Pierre Menard, a pertinência da
repetição de vários parágrafos.
1.
A primeira vez que vi Carlos Wieder foi em 1971 ou talvez 1972, quando
Salvador Allende era presidente do Chile.
Dizia chamar-se Alberto Ruiz-Tagle e às vezes aparecia na oficina de
poesia de Juan Stein, em Concepción, a chamada capital do Sul. Não posso
dizer que o conhecia bem. Via-o uma vez por semana, ou duas, quando ia à
oficina. Não falava muito. Eu sim. A maioria de nós que íamos ali falava
muito: não só de poesia, mas de política, de viagens (naquela ocasião,
ninguém imaginava que viriam a ser aquilo que foram depois), pintura,
arquitetura, fotografia, revolução e luta armada; a luta armada que nos traria
uma nova vida e uma nova época, mas que para a maioria de nós era como um
sonho ou, mais propriamente, como a chave que nos abriria a porta dos
sonhos, os únicos pelos quais valia a pena viver. E embora soubéssemos
vagamente que os sonhos muitas vezes se transformam em pesadelos, isso não
importava. Tínhamos entre dezessete e vinte e três anos (eu tinha dezoito), e
quase todos nós estudávamos na Faculdade de Letras, menos as irmãs
Garmendia, que cursavam sociologia e psicologia, e Alberto Ruiz-Tagle, que,
segundo ele mesmo afirmou certa vez, era autodidata. Muita coisa poderia ser
dita sobre ser um autodidata no Chile daqueles dias que antecederam 1973. A
verdade é que ele não parecia um autodidata. Quero dizer: exteriormente, não
parecia um autodidata. Estes, no Chile, no começo dos anos 70, na cidade de
Concepción, não se vestiam da maneira como Ruiz-Tagle se vestia. Os
autodidatas eram pobres. Falava como um autodidata, isso sim. Falava como
eu suponho que todos nós falamos agora, aqueles que ainda estamos vivos
(falava como se vivesse no meio de uma nuvem), mas se vestia bem demais
para quem não tinha sequer pisado numa universidade. Não quero dizer que
fosse elegante — embora o fosse, sim, à sua maneira — nem que se vestisse
de uma forma determinada; seu gosto era eclético: às vezes aparecia de terno e
gravata, outras vezes com roupas esportivas, e não desdenhava do jeans nem
de camisetas. Mas, qualquer que fosse o traje, Ruiz-Tagle sempre usava
roupas caras, de grife. Em resumo, Ruiz-Tagle era elegante, e eu, naquela
época, não achava que os autodidatas chilenos, sempre entre os manicômios e
o desespero, fossem elegantes. Certa vez disse que seu pai ou seu avô tinha
sido dono de umas terras na região de Puerto Montt. Ele contava (ou o
ouvimos contar a Verónica Garmendia) que decidiu largar os estudos aos
quinze anos para se dedicar ao trabalho no campo e à leitura da biblioteca
paterna. Nós, da oficina de Juan Stein, dávamos como certo que ele era um
bom cavaleiro. Não sei por quê, já que nunca o vimos montando nenhum
cavalo. Na realidade, todas as suposições que podíamos estabelecer a
respeito de Ruiz-Tagle eram predeterminadas pelo nosso ciúme, ou talvez por
nossa inveja. Ruiz-Tagle era alto e magro, forte e de belas feições. Segundo
Bibiano O’Ryan, era um sujeito de feições excessivamente frias para serem
belas, mas, claro, Bibiano disse isso bem mais tarde, e assim não vale. Por
que tínhamos ciúme de Ruiz-Tagle? O plural, aqui, é exagerado. Quem tinha
ciúme era eu. Talvez Bibiano compartilhasse dele. O motivo, claro, eram as
irmãs Garmendia, gêmeas univitelinas e estrelas incontestáveis da oficina de
poesia. Tanto que às vezes tínhamos a sensação (Bibiano e eu) de que Stein
dirigia toda a oficina em função apenas das duas. Eram, admito, as melhores.
Verónica e Angélica Garmendia eram tão iguais em certos dias que ficava
impossível distinguir uma da outra, e tão diferentes em outros dias (sobretudo
em outras noites) que pareciam duas desconhecidas, quando não inimigas uma
da outra. Stein as adorava. Além de Ruiz-Tagle, era o único que sempre sabia
quem era Verónica e quem era Angélica. Mal consigo falar sobre elas. Às
vezes aparecem nos meus pesadelos. Têm a mesma idade que eu, talvez um
ano a mais, e são altas, magras, de pele morena e cabelos pretos compridos,
como acredito que fosse moda naquela época.
As irmãs Garmendia ficaram amigas de Ruiz-Tagle quase de imediato. Ele
ingressou na oficina de Stein em 71 ou 72. Ninguém o havia visto antes, nem
na universidade nem em parte alguma. Stein não lhe perguntou de onde vinha.
Pediu que lesse três poemas e disse que não eram ruins. (Stein só elogiava
abertamente os poemas das irmãs Garmendia.) E ficou conosco. No começo,
não lhe dávamos bola. Mas, quando vimos que as Garmendia começaram a
ficar amigas dele, também ficamos amigos de Ruiz-Tagle. Até então, seu
comportamento era de uma cordialidade distante. Era abertamente simpático,
cheio de delicadeza e atencioso apenas com as Garmendia (e nisso se parecia
com Stein). Quanto aos outros, como já disse, tratava-nos com uma
“cordialidade distante”, quer dizer, cumprimentava-nos, sorria, era discreto e
ponderado em sua avaliação crítica quando líamos nossos poemas, nunca
defendia seus textos contra nossos ataques (costumávamos ser demolidores) e
nos escutava, quando lhe falávamos alguma coisa, com algo que hoje eu jamais
me atreveria a chamar de atenção, mas que na época assim nos parecia.
As diferenças entre Ruiz-Tagle e os demais eram evidentes. Falávamos em
gíria ou com um jargão marxista-mandraqueiro (a maioria de nós era membro
ou simpatizante do mir ou de partidos trotskistas, embora um ou outro, creio,
militasse nas Juventudes Socialistas ou no Partido Comunista ou, ainda, em um
dos partidos da esquerda católica). Ruiz-Tagle falava em espanhol. Aquele
espanhol de certos lugares do Chile (lugares mais mentais do que físicos)
onde o tempo parece que não passa. Morávamos com nossos pais (os de
Concepción) ou em pensões estudantis baratas. Ruiz-Tagle morava sozinho, em
um apartamento próximo do centro, com quatro quartos com as cortinas
permanentemente fechadas, que nunca visitei mas sobre o qual Bibiano e a
Gorda Posadas me contaram coisas, muitos anos depois (coisas contaminadas,
já, pela lenda maldita de Wieder), que não sei se são verdadeiras ou se devem
ser atribuídas à imaginação de meu ex-colega. Quase nunca tínhamos grana (é
engraçado escrever agora a palavra grana: brilha como um olho na
escuridão);* quanto a Ruiz-Tagle, dinheiro nunca lhe faltou.
O que Bibiano me contou sobre a casa de Ruiz-Tagle? Falou principalmente
de seu despojamento; teve a sensação de que a casa estava preparada. Esteve
ali sozinho uma única vez. Passava por perto e decidiu (Bibiano é assim
mesmo) convidar Ruiz-Tagle para ir ao cinema. Passava um filme de Bergman,
não me lembro qual. Bibiano já tinha estado na casa duas vezes, sempre
acompanhando uma das Garmendia, e nas duas oportunidades a visita era,
digamos, de alguma maneira aguardada. Então, naquelas visitas com as
Garmendia, a casa lhe pareceu preparada, arrumada para o olhar de quem ali
chegasse, vazia demais, com espaços onde nitidamente faltava alguma coisa.
Na carta em que me contou essas coisas (escrita muitos anos depois), Bibiano
dizia que tinha se sentido como Mia Farrow em O bebê de Rosemary, quando
vai pela primeira vez, com John Cassavettes, à casa de seus vizinhos. Faltava
alguma coisa. Na casa do filme de Polanski, o que faltava eram os quadros,
preventivamente retirados para não assustar Mia e Cassavettes. Na casa de
Ruiz-Tagle, o que faltava era alguma coisa inominável (ou que Bibiano, anos
depois e já ciente da história ou de boa parte da história, considerou
inominável porém presente, tangível), como se o anfitrião tivesse amputado
pedaços de sua moradia. Ou como se esta fosse um brinquedo de armar que se
adaptava às expectativas e particularidades de cada visitante. Essa sensação
se acentuou quando ele foi sozinho à casa. Ruiz-Tagle, evidentemente, não o
aguardava. Demorou a abrir a porta. Quando o fez, pareceu não reconhecer
Bibiano, embora este me garanta que Ruiz-Tagle abriu a porta com um sorriso
e que em nenhum momento parou de sorrir. Não havia muita luz, como ele
próprio admite, portanto não sei até que ponto meu amigo está próximo da
verdade. De qualquer maneira, Ruiz-Tagle abriu a porta e, depois de uma troca
de palavras mais ou menos sem sentido (demorou a entender que Bibiano
estava ali para convidá-lo a ir ao cinema), fechou-a novamente, não sem antes
pedir que esperasse um pouco, e depois de alguns segundos abriu-a de novo e
convidou-o a entrar. A casa estava na penumbra. O cheiro era denso, como se
Ruiz-Tagle tivesse preparado na noite anterior alguma comida muito forte,
cheia de gordura e especiarias. Por um momento Bibiano acreditou ter ouvido
um ruído vindo de um dos quartos e supôs que Ruiz-Tagle estivesse com uma
mulher. Quando ia se desculpar e dar o fora, Ruiz-Tagle perguntou que filme
estava pensando em ver. Bibiano disse que era um de Bergman, no Teatro
Lautaro. Ruiz-Tagle voltou a sorrir, com aquele mesmo sorriso que para
Bibiano parecia enigmático e que eu achava arrogante, quando não
explicitamente exagerado. Pediu desculpas, disse que já tinha um encontro
marcado com Verónica Garmendia e que, além disso, segundo explicou, não
gostava dos filmes de Bergman. Naquele momento, Bibiano estava convencido
de que havia outra pessoa na casa, alguém imóvel e que ouvia atrás da porta
sua conversa com Ruiz-Tagle. Considerou que devia ser justamente Verónica,
pois, do contrário, como explicar que Ruiz-Tagle, normalmente tão discreto, a
tinha mencionado? Contudo, por mais que se esforçasse, não conseguiu
imaginar nossa poeta numa situação como aquela. Nem Verónica nem Angélica
Garmendia eram de ficar ouvindo conversas atrás da porta. Quem seria, então?
Bibiano não sabe. Naquela hora, provavelmente, a única coisa que ele sabia é
que queria sair dali, despedir-se de Ruiz-Tagle e nunca mais voltar àquela
casa vazia e sangrada. Palavras dele. Embora, de acordo com sua descrição, a
casa não tivesse como exibir aspecto mais asséptico. Paredes limpas, livros
ordenados numa estante de metal, as poltronas cobertas com ponchos sulinos.
Sobre um pequeno banco de madeira, a Leika de Ruiz-Tagle, a mesma que ele
usou certa tarde para tirar fotos de todos os integrantes da oficina de poesia. A
cozinha, que Bibiano enxergou através de uma porta semiaberta, de aparência
normal, sem o acúmulo de panelas e pratos sujos típico da casa de um
estudante que mora sozinho (mas Ruiz-Tagle não era um estudante). Enfim,
nada que fugisse do normal, a não ser aquele barulho, que bem podia ter vindo
do apartamento vizinho. Segundo Bibiano, enquanto Ruiz-Tagle falava ele teve
a sensação de que este não queria que ele se fosse, de que falava justamente
para retê-lo ali. Essa sensação, sem nenhuma base concreta, contribuiu para
elevar o nervosismo de meu amigo a níveis, segundo ele, intoleráveis. O mais
curioso é que Ruiz-Tagle parecia desfrutar a situação: percebia que Bibiano
estava cada vez mais pálido ou mais suado e continuava falando (de Bergman,
suponho) e sorrindo. A casa permanecia num silêncio que as palavras de Ruiz-
Tagle só faziam acentuar, sem chegar em nenhum momento a interrompê-lo.
De que falava ele?, pergunta-se Bibiano. Seria importante, escreve em sua
carta, que se lembrasse, mas, por mais que me esforce, é impossível. O fato é
que Bibiano aguentou o máximo que pôde, depois se despediu de uma forma
mais ou menos atropelada e foi embora. Na escada, pouco antes de chegar à
saída, cruzou com Verónica Garmendia, que lhe perguntou se estava
acontecendo alguma coisa com ele. O que pode estar acontecendo?, disse
Bibiano. Não sei, respondeu Verónica, mas você está branco que nem papel.
Nunca esquecerei estas palavras, diz Bibiano em sua carta: branco que nem
uma folha de papel. Nem o rosto de Verónica Garmendia. Rosto de uma
mulher apaixonada.
É triste ter de admiti-lo, mas é isso mesmo. Verónica estava apaixonada por
Ruiz-Tagle. E pode até ser que Angélica também estivesse apaixonada por ele.
Certa vez Bibiano e eu conversamos sobre isso, faz muito tempo. Imagino que
o que mais nos doía era que nenhuma das Garmendia estivesse apaixonada ou
ao menos interessada por nós. Bibiano gostava de Verónica. Eu gostava de
Angélica. Nunca nos atrevemos a lhes dizer nenhuma palavra a respeito,
embora eu acredite que nosso interesse por elas fosse publicamente
conhecido. Coisa em que não nos diferenciávamos do restante dos
participantes masculinos da oficina, todos, uns mais, outros menos,
apaixonados pelas irmãs Garmendia. Mas elas (ou pelo menos uma delas)
tornaram-se presas do charme incomum do poeta autodidata.
Autodidata, sim, mas preocupado em aprender, como constatamos Bibiano e
eu quando o vimos aparecer na oficina de poesia de Diego Soto, a outra
oficina de vanguarda da Universidade de Concepción, que rivalizava,
digamos, na ética e na estética, com a oficina de Juan Stein, embora Stein e
Soto fossem o que na época se chamava, e suponho que ainda se chama,
amigos do peito. A oficina de Soto se realizava na Faculdade de Medicina,
não sei por que motivo, em uma sala mal ventilada e mal mobiliada, separada
apenas por um corredor do anfiteatro onde os estudantes dissecavam
cadáveres nas aulas de anatomia. O anfiteatro, é claro, recendia a formol. O
corredor, às vezes, também recendia a formol. E em algumas noites, pois a
oficina de Soto se realizava todas as sextas-feiras das oito às dez, embora
geralmente costumasse acabar depois da meia-noite, a sala se impregnava de
um cheiro de formol que tentávamos em vão mitigar acendendo um cigarro
atrás do outro. Os frequentadores da oficina de Stein não iam à de Soto e vice-
versa, com exceção de Bibiano O’Ryan e eu, que na verdade compensávamos
nossa ausência crônica nas aulas comparecendo não só às oficinas, mas
também a todos os recitais ou reuniões culturais ou políticas realizadas na
cidade. Por isso, ver Ruiz-Tagle aparecer por ali certa noite foi uma surpresa.
Sua atitude foi mais ou menos a mesma que mantinha na oficina de Stein.
Ouvia, fazia críticas ponderadas, breves e sempre num tom cordial e educado,
lia seus próprios trabalhos com desprendimento e certa distância e aceitava
sem replicar até mesmo os piores comentários, como se os poemas que
submetia à nossa crítica não fossem dele. Isso foi percebido não só por nós,
Bibiano e eu; uma noite, Diego Soto lhe disse que ele escrevia com
distanciamento e frieza. Não parecem poemas seus, observou ele. Ruiz-Tagle
reconheceu isso sem se alterar. Estou tateando, respondeu.
Na oficina da Faculdade de Medicina, Ruiz-Tagle conheceu Carmen
Villagrán, e os dois ficaram amigos. Carmen era uma boa poeta, embora não
tão boa como as irmãs Garmendia. (Os melhores poetas ou candidatos a
poetas estavam na oficina de Juan Stein.) Também conheceu e fez amizade com
Marta Posadas, conhecida como a Gorda Posadas, única estudante de
medicina da oficina da Faculdade de Medicina, uma garota muito pálida,
muito gorda e muito triste que escrevia poemas em prosa e que queria acima
de tudo, pelo menos naquela época, tornar-se uma espécie de Marta Harnecker
da crítica literária.
Não fez amizade com nenhum dos homens. Cumprimentava-nos, a Bibiano e
a mim, educadamente, mas sem exteriorizar o menor sinal de familiaridade,
apesar de estarmos juntos, contando a oficina de Stein e a de Soto, umas oito
ou noves horas por semana. Parecia não ter o menor interesse pelos homens.
Morava sozinho, em sua casa havia alguma coisa estranha (segundo Bibiano),
carecia do orgulho infantil que os demais poetas costumavam ter de sua
própria obra, era amigo não só das garotas mais bonitas da minha época (as
irmãs Garmendia), como também havia conquistado as mulheres da oficina de
Diego Soto. Numa palavra, era o alvo da inveja de Bibiano O’Ryan e da
minha também.
E ninguém o conhecia.
Juan Stein e Diego Soto, que eram, para mim e para Bibiano, as pessoas
mais inteligentes de Concepción, não perceberam nada. As irmãs Garmendia
tampouco; ao contrário, em duas ocasiões Angélica elogiou para mim as
qualidades de Ruiz-Tagle: sério, formal, uma mente organizada, com grande
capacidade de ouvir os outros. Bibiano e eu o odiávamos, mas também não
percebemos nada. Somente a Gorda Posadas captou alguma coisa daquilo que
se movia por trás de Ruiz-Tagle. Lembro-me da noite em que falamos sobre
isso. Tínhamos ido ao cinema e depois do filme fomos a um restaurante no
centro. Bibiano estava com uma pasta com textos do pessoal das oficinas de
Stein e de Soto para a sua décima primeira antologia de jovens poetas de
Concepción que nenhum periódico publicaria. A Gorda Posadas e eu nos
pusemos a bisbilhotar a papelada. Quem vai estar na antologia?, perguntei,
sabendo que eu era um dos selecionados. (Não fosse assim, minha amizade
com Bibiano estaria rompida no dia seguinte.) Você, disse Bibiano, Martita (a
Gorda), Verónica e Angélica, é claro, Carmen, e em seguida disse o nome de
dois poetas, um da oficina de Stein e outro da oficina de Soto, e finalmente
pronunciou o nome de Ruiz-Tagle. Lembro-me de que a Gorda ficou calada
por alguns instantes enquanto seus dedos (permanentemente manchados de tinta
e com as unhas sujas, coisa que parecia estranha para uma estudante de
medicina, embora, quando falasse de sua carreira, a Gorda o fazia em termos
tão frouxos que ninguém tinha dúvidas de que jamais obteria o diploma)
percorriam a papelada até encontrarem as três quadrinhas de Ruiz-Tagle. Não
o inclua, disse subitamente. Ruiz-Tagle?, perguntei, sem acreditar no que
ouvia, pois a Gorda era devota admiradora dele. Bibiano, ao contrário, não
disse nada. Os três poemas eram curtos, nenhum deles tinha mais que dez
versos: um falava de uma paisagem, descrevia uma paisagem, árvores, um
caminho de terra, uma casa afastada desse caminho, cercas de madeira,
colinas, nuvens; segundo Bibiano, era “bem japonês”; na minha opinião, era
como se tivesse sido escrito por Jorge Teillier depois de ter sofrido uma
comoção cerebral. O segundo poema falava do ar (chamava-se “Ar”) que se
infiltrava pelas junturas de uma casa de pedra. (Nesse caso, era como se
Teillier tivesse ficado afásico mas insistisse em seu labor literário, o que não
deveria ter sido estranho para mim, pois, já então, em 73, pelo menos metade
dos filhos bastardos de Teillier já tinham ficado afásicos mas persistiam.)
Quanto ao último, esqueci completamente. Lembro apenas que em algum
momento, sem mais nem menos (assim me pareceu), surgia uma faca.
Por que você acha que não devo incluí-lo?, perguntou Bibiano, um braço
estendido sobre a mesa e a cabeça apoiada nele, como se o braço fosse a
almofada e a mesa fosse a cama do seu quarto. Pensei que vocês fossem
amigos, eu disse. E somos, respondeu a Gorda, mas, mesmo assim, não o
incluiria. Por quê?, insistiu Bibiano. A Gorda deu de ombros. É como se os
poemas não fossem dele, disse depois. Dele mesmo, não sei se estou sendo
clara. Explique-se, pediu Bibiano. A Gorda fitou-me nos olhos (eu estava de
frente para ela e Bibiano, ao seu lado, parecia adormecido) e disse: Alberto é
um bom poeta, mas ainda não pôs para fora. Quer dizer que é virgem?,
perguntou Bibiano, mas nem eu nem a Gorda lhe demos bola. Já leu outras
coisas dele?, eu quis saber. O que ele escreve? Como ele escreve? A Gorda
sorriu para dentro, como se ela mesma não acreditasse naquilo que nos
contaria a seguir. Alberto, disse ela, vai revolucionar a poesia chilena. Mas
você leu alguma coisa ou está falando de uma intuição que tem? A Gorda
emitiu um som com o nariz e ficou calada. Outro dia, disse ela subitamente, fui
à casa dele. Não dissemos nada, mas vi que Bibiano, espalhado sobre a mesa,
sorria e a encarava com ternura. Não tinha avisado que ia, é claro, esclareceu
a Gorda. Já sei o que você quer dizer, falou Bibiano. Alberto se abriu comigo,
disse a Gorda. Não consigo imaginar Ruiz-Tagle se abrindo com alguém,
observou Bibiano. Todo mundo acha que ele está apaixonado pela Verónica
Garmendia, afirmou a Gorda, mas não é verdade. Ele mesmo disse isso?,
perguntou Bibiano. A Gorda sorriu como se tivesse de posse de um grande
segredo. Não gosto dessa mulher, eu me lembro de ter pensado então. Deve ter
talento, deve ser inteligente, é uma companheira, mas não gosto dela. Não, não
foi ele que me disse, respondeu a Gorda, embora ele me fale sobre coisas que
não fala com os outros. Você quer dizer outras, disse Bibiano. Isso mesmo,
com as outras, concordou a Gorda. E sobre que coisas ele fala com você? A
Gorda pensou um pouco antes de responder. Sobre a nova poesia, ora, de que
mais poderia ser? A poesia que ele pensa em escrever?, perguntou Bibiano
com ceticismo. A poesia que ele vai fazer, disse a Gorda. E sabem por que
estou tão segura disso? Por causa da vontade dele. Durante alguns instantes,
aguardou que perguntássemos mais alguma coisa. Ele tem uma vontade de
ferro, acrescentou, vocês não o conhecem. Já era tarde. Bibiano olhou para a
Gorda e se levantou para pagar a conta. Se você tem tanta fé nele, por que não
quer que Bibiano o inclua na antologia?, perguntei. Enrolamos nossos
cachecóis no pescoço (nunca mais usei cachecóis tão compridos como naquela
época) e saímos para o frio da rua. Por que não são poemas dele, disse a
Gorda. E como você sabe disso?, perguntei exasperado. Porque eu conheço as
pessoas, respondeu a Gorda com uma voz triste, olhando para a rua deserta.
Pareceu-me o cúmulo da presunção. Bibiano, saindo de trás de nós, disse:
Martita, há poucas coisas de que tenho certeza, e uma delas é que Ruiz-Tagle
não vai revolucionar a poesia chilena. Parece-me que ele nem sequer é de
esquerda, acrescentei. Surpreendentemente, a Gorda me deu razão. Não, ele
não é de esquerda, admitiu, com uma voz cada vez mais triste. Por um
momento cheguei a achar que ela ia começar a chorar e tentei mudar de
assunto. Bibiano riu. Com amigas como você, Martita, ninguém precisa de
inimigos. É claro que Bibiano estava brincando, mas a Gorda não entendeu
assim e quis ir embora imediatamente. Nós a acompanhamos até sua casa.
Durante a viagem de ônibus, falamos sobre o filme e sobre a situação política.
Antes da despedida, olhou-nos fixamente e disse que precisava pedir que
fizéssemos uma promessa. O que é?, perguntou Bibiano. Não fale para Alberto
nada sobre o que conversamos. Tudo bem, disse Bibiano, está prometido, não
lhe contaremos que você me pediu para excluí-lo da minha antologia. Pois
talvez nem sequer a publiquem, observou a Gorda. Isso é bem provável,
concordou Bibiano. Obrigada, Bibi, disse a Gorda (só ela chamava Bibiano
dessa maneira), e deu-lhe um beijo na bochecha. Juro que não lhe contaremos
nada, disse eu. Obrigada, obrigada, obrigada, exclamou a Gorda. Pensei que
estivesse brincando. Não contem nada também para Verónica, pediu, pois ela
pode contar alguma coisa para Alberto, e aí vocês sabem. Não, não
contaremos. Isso tudo fica entre nós três, disse a Gorda. Prometido?
Prometido, dissemos. Finalmente a Gorda nos deu as costas, abriu a porta do
seu prédio e a vimos entrando no elevador. Antes de desaparecer, ela nos fez
um último aceno de mão. Que mulher mais esquisita, disse Bibiano. Eu ri.
Voltamos a pé para as nossas respectivas moradas, Bibiano para a pensão
onde vivia e eu para a casa de meus pais. A poesia chilena, disse Bibiano
naquela noite, só vai mudar no dia em que lermos Enrique Lihn corretamente,
não antes disso. Ou seja, ainda falta muito tempo.
Poucos dias depois, veio o golpe e, com ele, a debandada.
Uma noite, telefonei para as irmãs Garmendia, sem nenhum motivo em
especial, apenas para saber como estavam. Vamos embora, disse Verónica.
Com um nó no estômago, perguntei quando. Amanhã. Apesar do toque de
recolher, insisti em vê-las ainda naquela noite. O apartamento onde as duas
irmãs viviam sozinhas não ficava muito longe da minha casa, e, além disso,
não era a primeira vez que eu burlava o toque de recolher. Eram dez da noite
quando cheguei ali. As Garmendia, surpreendentemente, tomavam chá e liam
(acho que esperava encontrá-las em meio a uma confusão de malas e planos de
fuga). Contaram-me que estavam de partida, não para o exterior e sim para
Nacimiento, um vilarejo a poucos quilômetros de Concepción, para a casa dos
pais. Que alívio, eu disse, pensei que fossem para a Suécia ou algo assim.
Bem que eu gostaria, observou Angélica. Em seguida, falamos sobre os
amigos que não víamos havia vários dias, fazendo as especulações
características daquele momento, os que certamente estavam presos, os que
tinham possivelmente passado para a clandestinidade, os que estavam sendo
procurados. As Garmendia não tinham medo (não havia motivo para tanto,
pois eram apenas estudantes e seus vínculos com os chamados “extremistas”
se limitavam à amizade pessoal com alguns militantes, principalmente da
Faculdade de Sociologia), mas partiam para Nacimiento porque Concepción
tinha ficado impossível e porque sempre, admitiram, voltavam para a casa dos
pais quando a “vida real” adquiria traços de certa feiura e certa brutalidade
profundamente desagradáveis. Então vocês devem partir mesmo de imediato,
disse eu, porque me parece que estamos entrando no campeonato mundial de
feiura e brutalidade. Elas riram e falaram que eu devia ir embora. Insisti para
ficar um pouco mais. Lembro dessa noite como sendo uma das mais felizes de
minha vida. À uma da manhã, Verónica disse que seria melhor eu ficar e
dormir por ali. Nenhum de nós tinha jantado, de modo que nos enfiamos os três
na cozinha e preparamos ovos com cebola, pão caseiro e chá. De repente me
senti feliz, imensamente feliz, capaz de fazer qualquer coisa, embora soubesse
que naqueles instantes tudo aquilo em que eu acreditava ia ladeira abaixo para
sempre e que muita gente, inclusive vários amigos, estava sendo perseguida ou
torturada. Mas eu sentia vontade de cantar e dançar e as más notícias (ou as
especulações sobre as más notícias) só contribuíam para jogar lenha na
fogueira da minha alegria, se me permitem a expressão, mais cafona
impossível (esnobe, teríamos dito então), mas que expressa meu estado de
ânimo, e me atreveria até mesmo a afirmar que o estado de ânimo também das
Garmendia e o estado de ânimo de muitos daqueles que em 1973 tinham vinte
anos ou menos.
Às cinco da manhã, adormeci no sofá. Fui acordado por Angélica, quatro
horas depois. Tomamos café da manhã na cozinha, em silêncio. Ao meio-dia,
elas enfiaram duas malas no seu carro, uma Citroneta 1968 verde limão, e
partiram para Nacimiento. Nunca mais as vi.
Seus pais, um casal de pintores, tinham morrido antes de as gêmeas
completarem quinze anos, creio que num acidente de trânsito. Vi, uma vez, uma
foto deles: ele era moreno e enxuto, as maçãs do rosto salientes e com uma
expressão de tristeza e perplexidade que só se veem nos nascidos ao sul do
Bío-Bío; ela era ou parecia ser mais alta que ele, meio gordinha, com um
sorriso doce e ingênuo.
Com a morte, deixaram-lhes a casa de Nacimiento, uma casa de pedra e
madeira com três andares — sendo o último deles uma grande sala de teto
inclinado que lhes servia como ateliê —, na periferia do vilarejo, e algumas
terras perto de Mulchén que lhes possibilitavam viver sem muito aperto. As
Garmendia costumavam falar bastante dos pais (segundo elas, Julián
Garmendia era um dos melhores pintores de sua geração, embora eu nunca
tenha ouvido falar no seu nome em lugar algum) e não era raro que
aparecessem, em seus poemas, pintores perdidos no sul do Chile, sugados por
uma obra desesperada e por um amor desesperado. Julián Garmendia amava
desesperadamente María Oyarzún? Custa-me acreditar, quando rememoro
aquela foto. Mas não tenho nenhuma dificuldade para acreditar que na década
de 60, no Chile, havia pessoas que amavam a outras pessoas
desesperadamente. Parece-me estranho. Parece-me como um filme perdido
numa estante esquecida de uma grande cinemateca. Mas dou isso como certo.
A partir daqui, meu relato se alimentará basicamente de conjecturas. As
Garmendia partiram para Nacimiento, para aquela grande casa de sua periferia
onde viviam apenas uma tia, uma tal Ema Oyarzún, irmã mais velha da
falecida mãe, e uma velha empregada chamada Amalia Maluenda.
Partiram, portanto, para Nacimiento e se fecharam na casa até que um belo
dia, digamos que duas semanas ou um mês depois (embora não creio que tenha
se passado tanto tempo), Alberto Ruiz-Tagle aparece por ali.
Só pode ter sido assim. Em um fim de tarde, um desses entardeceres
vigorosos mas ao mesmo tempo melancólicos do Sul, um automóvel avança
pela estradinha de terra, mas as Garmendia não o escutam porque estão
tocando piano ou então cuidando da horta ou ainda carregando lenha na parte
de trás da casa junto com a tia e a empregada. Alguém bate na porta. Depois
de várias batidas, a empregada atende e depara com Ruiz-Tagle. Ele pergunta
pelas Garmendia. A empregada não o deixa passar e diz que vai avisar as
meninas. Ruiz-Tagle aguarda pacientemente sentado numa poltrona de vime na
varanda ampla. As Garmendia, ao vê-lo, cumprimentam-no com efusão e
repreendem a empregada por não tê-lo deixado entrar. Durante a primeira
meia hora, cobrem Ruiz-Tagle de perguntas. Aos olhos da tia, certamente
parece um jovem simpático, de boa aparência, educado. As Garmendia estão
felizes. Logicamente Ruiz-Tagle é convidado a ficar para o jantar, e preparam
uma refeição caprichada em sua homenagem. Não quero imaginar o que eles
terão comido. Talvez torta de milho, talvez empanadas, não, que nada, com
certeza comeram outras coisas. Logicamente o convidam para passar a noite
ali. Ruiz-Tagle aceita com humildade. Durante a sobremesa, que se prolonga
até altas horas, as Garmendia leem poemas diante do assombro da tia e do
silêncio cúmplice de Ruiz-Tagle. Ele, logicamente, não lê nada, pede
desculpas, diz que diante daqueles poemas os seus não valem nada, a tia
insiste, por favor, Alberto, leia algum poema seu para nós, mas ele continua
inflexível, diz que está prestes a concluir algo novo que até não ser finalizado
e corrigido prefere não divulgar, sorri, dá de ombros, diz que não, sinto muito,
não, não, não, e as Garmendia aquiescem, tia, não seja insistente, acreditam
compreender, inocentes, não entendem nada (a “nova poesia chilena” está
prestes a nascer), mas acreditam compreender e leem seus poemas, seus
maravilhosos poemas, ante a expressão de prazer de Ruiz-Tagle (que
certamente fecha os olhos para ouvir melhor) e o rosto em alguns momentos
aborrecido de sua tia, como você consegue escrever essa barbaridade,
Angélica, ou então Verónica, minha menina, não estou entendendo nada,
Alberto, será que você pode me explicar o que essa metáfora significa?, e
Ruiz-Tagle, solícito, falando de significado e significante, de Joyce Mansour,
Sylvia Plath, Alejandra Pizarnik (embora as Garmendia digam não, não
gostamos de Pizarnik, querendo dizer, na verdade, que elas não escrevem
como Pizarnik), e Ruiz-Tagle vai falando, e a tia escuta e assente, de Violeta e
Nicanor Parra (eu conheci Violeta, em sua tenda, sim, diz a pobre Ema
Oyarzún), e depois fala de Enrique Lihn e da poesia civil e se as Garmendia
estivessem mais atentas teriam visto um brilho irônico nos olhos de Ruiz-
Tagle, poesia civil, vou lhes mostrar o que é poesia civil, e finalmente, já mais
solto, fala de Jorge Cáceres, o surrealista chileno morto em 1949 aos vinte e
seis anos de idade.
E as Garmendia então se levantam, ou talvez só Verónica se levanta, e
procura algo na grande biblioteca do pai e volta com um livro de Cáceres, Por
el camino de la gran pirámide polar, publicado quando o poeta tinha apenas
vinte anos; as Garmendia, talvez só Angélica, em algum momento tinham
falado em reeditar a obra completa de Cáceres, um dos mitos da nossa
geração, por isso não é de estranhar que Ruiz-Tagle o tenha mencionado
(embora a poesia de Cáceres não tenha nada a ver com a poesia das
Garmendia; Violeta Parra sim, Nicanor sim, mas não Cáceres). E também
menciona Anne Sexton e Elizabeth Bishop e Denise Levertov (poetas
admirados pelas Garmendia, que em algum momento os traduziram e leram na
oficina, para visível satisfação de Juan Stein) e depois todos riem da tia que
não entende nada e comem biscoitos caseiros e tocam violão e alguém observa
a empregada, que também os observa, de pé, na parte escura do corredor mas
sem se atrever a entrar, e a tia diz venha para cá, Amalia, não seja ridícula, e a
empregada, atraída pela música e por toda aquela farra, dá dois passos, mas
nenhum a mais, e logo chega a noite, encerra-se o sarau.
Algumas horas mais tarde, Alberto Ruiz-Tagle, embora eu já devesse
começar a chamá-lo de Carlos Wieder, se levanta.
Todos dormem. Ele, provavelmente, transou com Verónica Garmendia. Não
tem importância. (Quero dizer: agora não tem importância, embora naquele
momento, sem dúvida, para o nosso infortúnio, teve.) O fato é que Carlos
Wieder se levanta com a segurança de um sonâmbulo e percorre a casa em
silêncio. Procura o quarto da tia. Sua sombra atravessa os corredores onde
estão pendurados os quadros de Julián Garmendia e María Oyarzún ao lado de
pratos e de cerâmicas da região. (Nacimiento é conhecida, creio, por suas
louças ou cerâmicas.) Wieder, em todo caso, abre uma porta atrás da outra
com grande cautela. Finalmente encontra o quarto da tia, no térreo, ao lado da
cozinha. Em frente com certeza está o quarto da empregada. No exato instante
em que entra no quarto, escuta o som de um automóvel que se aproxima da
casa. Wieder sorri e acelera os movimentos. Num salto se põe junto à
cabeceira. Traz na mão direita uma faca. Ema Oyarzún dorme placidamente.
Wieder lhe tira o travesseiro e tampa com ele seu rosto. Em seguida, num
único golpe, rasga-lhe o pescoço. Nesse instante, o carro para na frente da
casa. Wieder já saiu do quarto e agora entra no da empregada. Mas a cama
está vazia. Por um momento, Wieder fica sem saber o que fazer: sente vontade
de acabar com a cama a pontapés ou destruir a cômoda de madeira toda
despedaçada onde se amontoam as roupas de Amalia Maluenda. Mas é apenas
por um segundo. Pouco depois já está na porta, abrindo-a para que os quatro
homens recém-chegados possam entrar. Saúdam-no com um movimento de
cabeça (que ao mesmo tempo exprime respeito) e observam com olhares
obscenos o interior da casa na penumbra, os tapetes, as cortinas, como se
desde o primeiro momento procurassem e avaliassem os lugares mais seguros
para se esconder. Mas não são eles que irão se esconder. Eles são os que
procuram os que se escondem.
E junto com eles entra a noite na casa das irmãs Garmendia. E quinze
minutos depois, talvez dez, quando se retiram, a noite volta a sair, subitamente
a noite entrava e saía, eficaz e veloz. E os cadáveres jamais serão
encontrados, ou sim, há um cadáver, apenas um cadáver que aparecerá anos
depois numa fossa comum, o de Angélica Garmendia, minha adorável, minha
incomparável Angélica Garmendia, mas somente esse, como que para provar
que Carlos Wieder é um homem, e não um deus.
* O autor faz um jogo com a palavra plata, que na gíria significa dinheiro mas que é também prata, daí a ideia de brilho
na escuridão. (N. T.)
2.
É então que entra em cena Abel Romero e que eu volto a aparecer em cena.
O Chile também se esqueceu de nós.
Romero foi um dos policiais mais famosos da época de Allende. Agora é
um homem de mais de cinquenta anos, baixo, moreno, excessivamente magro e
com o cabelo preto penteado com gomalina ou fixador. Sua fama, sua pequena
lenda estava relacionada a dois episódios delituosos que no seu tempo
deixaram de cabelos em pé, como se costuma dizer, os leitores das páginas
policiais do Chile. O primeiro foi um assassinato (um quebra-cabeças, dizia
Romero) cometido em Valparaíso, no quarto de uma pensão da rua Ugalde. A
vítima foi encontrada com um tiro na testa e a porta do quarto estava com o
ferrolho trancado e travada com uma cadeira. As janelas estavam fechadas por
dentro; qualquer um que tivesse saído por ali, além disso, seria visto da rua. A
arma do crime foi encontrada ao lado do morto, razão pela qual, no início, a
sentença foi inequívoca: suicídio. Mas com as primeiras amostras colhidas a
polícia científica demonstrou que a vítima não tinha disparado um único tiro.
O morto se chamava Pizarro e não tinha nenhum inimigo conhecido; levava
uma vida controlada, solitária e não tinha nenhuma profissão ou meio de
ganhar a vida, embora logo se tenha comprovado que seus pais, de uma família
sulina sem problemas financeiros, mandavam-lhe uma mesada. O caso
despertou a curiosidade da imprensa: como o assassino tinha saído do quarto
da vítima? Fechar o ferrolho por fora, como observaram em outros quartos da
mesma pensão, era quase impossível. Passar o ferrolho e ainda por cima
travar a porta posicionando uma cadeira sobre a maçaneta da fechadura era
impensável. Investigaram as janelas: em apenas uma de cada dez vezes em que
eram fechadas a partir de fora com um golpe seco e preciso, o trinco ficava
enganchado. Mas, para fugir por ali, era preciso ser um equilibrista e que
ninguém na rua, e o assassinato se deu numa hora em que ela costumava estar
com bastante trânsito de pessoas, tivesse o azar de erguer os olhos e descobrir
você. Ao final, diante da inviabilidade de alternativas, a polícia chegou à
conclusão de que o assassino tinha escapado pela janela, e ele passou a ser
chamado pela imprensa de o equilibrista. Romero foi então enviado de
Santiago para lá e elucidou o crime em vinte e quatro horas (mais oito de
interrogatório, do qual ele não participou, bastaram para que o assassino
assinasse uma confissão que não se afastava muito da linha de investigação
seguida). Os fatos, tal como Romero me contou posteriormente, ocorreram da
seguinte forma: a vítima, Pizarro, tinha algum tipo de trato com o filho da dona
da pensão, um tal de Enrique Martínez Corrales, conhecido como Enriquito ou
Henry, frequentador do hipódromo de Viña del Mar, onde sempre acabam se
reunindo, segundo Romero, as pessoas de vida indecente ou aqueles que têm a
sorte negra, como escreveu Victor Hugo, cuja obra Os miseráveis é a única
“joia universal da literatura” que Romero confessa ter lido na juventude,
embora infelizmente, com o passar dos anos, a tenha esquecido totalmente,
com exceção do suicídio de Javert (sobre Os miseráveis, volto a falar mais
adiante); o tal Enriquito, ao que tudo indicava, estava atolado em dívidas e
envolveu Pizarro de alguma maneira nos seus negócios. Por algum tempo,
equivalente ao mau momento por que passa Enriquito, os dois amigos
compartilham aventuras que são bancadas à distância pelos pais da vítima.
Mas um dia as coisas começam a melhorar para o filho da dona da pensão e
ele se esquiva de Pizarro, que se considera trapaceado. Os dois brigam,
trocam ameaças, até que um dia, ao meio-dia, Enriquito entra no quarto de
Pizarro armado com um revólver. Sua intenção é pregar-lhe um susto, não
matá-lo, mas, em meio à encenação, quando Enriquito aponta o cano da arma
para a cabeça de Pizarro, o revólver dispara acidentalmente. Que fazer? É
então que Enriquito, vivendo o pior de seus pesadelos, tem o único sinal de
inteligência de toda a sua vida. Sabe que, se fugir, sem mais nem menos, as
suspeitas logo recairão sobre ele. Sabe que se o assassinato de Pizarro for
apresentado sem nenhuma ornamentação, as suspeitas logo recairão sobre ele.
Precisa, portanto, revestir o crime com as roupagens de algo fantasioso e
inverossímil. Fecha a porta por dentro, põe a cadeira reforçando o travamento,
põe o revólver na mão do morto, tranca as janelas e, quando considera estar
bem armado todo o cenário para um suicídio, enfia-se no guarda-roupa e fica à
espera. Conhece a mãe e os demais pensionistas, que nessa hora comem ou
veem tevê na sala, e sabe, confia em que arrombarão a porta sem esperar pela
chegada da polícia. Com efeito, a porta é derrubada, e Enriquito, que nem se
dera o trabalho de fechar o guarda-roupa, se une tranquilamente ao restante
das pessoas da pensão, que contemplam horrorizadas o corpo de Pizarro. O
caso era muito simples, disse Romero, mas me acarretou uma fama imerecida
pela qual, depois, paguei muito caro.
Maior notoriedade ainda lhe deu a resolução do sequestro de Las Cármenes,
um sítio próximo a Rancagua, poucos meses antes do fim da democracia. O
caso foi protagonizado por Cristóbal Sánchez Grande, um dos empresários
mais ricos do país, que desapareceu supostamente em mãos de uma
organização esquerdista que para libertá-lo exigia uma quantia de dinheiro
exorbitante que devia ser paga pelo governo. Durante semanas a polícia não
sabia o que fazer. Romero, no comando de um dos três grupos operacionais
que procuravam por Sánchez Grande, considerou a possibilidade de que ele
tivesse forjado o próprio sequestro. Seguiram durante vários dias um jovem
do grupo Patria y Libertad, até que este, ingenuamente, levou-os ao sítio Las
Cármenes. Ali, enquanto metade de seus homens cercava a casa principal,
Romero dispôs os três que lhe restavam como atiradores e, com um revólver
em cada mão e acompanhado por um investigador muito jovem chamado
Contreras, que era o mais corajoso de todos, entrou na casa e capturou
Sánchez Grande. No embate que se seguiu, dois guarda-costas de Patria y
Libertad que protegiam o empresário foram mortos; Romero e um dos homens
que guardavam a parte de trás da casa ficaram feridos. Por essa ação, recebeu
a Medalha de Coragem das mãos de Allende, a maior satisfação profissional
de sua vida, uma vida repleta de amarguras, mais do que alegrias, segundo
suas próprias palavras.
Eu lembrava seu nome, é claro. Tinha sido uma celebridade. Costumava
aparecer nas páginas policiais dos jornais, antes ou depois das páginas de
esportes?, junto com os nomes de lugares que então considerávamos
ignominiosos (ainda não sabíamos o que era realmente a ignomínia), um
cenário do crime no Terceiro Mundo, nos anos 60 e 70: casas pobres, terrenos
baldios, casas de campo mal iluminadas. E tinha recebido a Medalha de
Coragem das mãos de Allende. A medalha eu perdi, disse ele com tristeza, e já
não tenho nenhuma foto que o comprove, mas me lembro como se fosse hoje
do dia em que me deram. Ainda parecia um policial.
Com o golpe, passou três anos na cadeia e depois se foi para Paris, onde
vivia à custa de trabalhos eventuais. Nunca me disse nada sobre a natureza
desses trabalhos, mas em seus primeiros anos em Paris havia feito de tudo,
desde colar cartazes até encerar pisos de escritórios, trabalho que se faz à
noite, quando os prédios estão fechados, e que possibilita pensar bastante. O
mistério dos edifícios de Paris. Assim ele chamava os prédios de escritórios,
quando é noite e todos os andares estão às escuras, menos um, e depois este
também se apaga e outro se acende, e depois este se apaga e assim
sucessivamente. Vez por outra, se o transeunte noturno ou o homem que
trabalhava colando cartazes se aquietasse durante algum tempo, podia ver uma
pessoa que aparecia na janela de um daqueles prédios vazios e permanecia ali
durante algum tempo, fumando ou contemplando a cidade com as mãos na
cintura. Era um homem ou uma mulher do serviço noturno de limpeza.
Romero era casado e tinha um filho, e planejava voltar para o Chile e
começar uma nova vida.
Quando lhe perguntei o que queria (mas já o deixara entrar na minha casa e
pusera água para ferver para tomarmos um chá), disse que buscava alguma
pista de Carlos Wieder. Bibiano O’Ryan tinha lhe passado meu endereço em
Barcelona. Conhece Bibiano? Ele disse que não o conhecia. Pelo menos não
pessoalmente. Escrevi-lhe uma carta, ele respondeu, depois falamos por
telefone. Bem típico de Bibiano, eu disse, e tentei calcular há quanto tempo
não o via: quase vinte anos. Seu amigo é uma boa pessoa, disse Romero, e
parece conhecer o senhor Wieder muito bem, mas acha que você o conhece
melhor ainda. Não é verdade, disse eu. Tem dinheiro nessa jogada, disse
Romero, se me ajudar a encontrá-lo. Ao dizer isso, olhava para a minha casa
como se pesasse a quantia exata necessária para me comprar. Raciocinei que
ele não se atreveria a continuar nessa trilha, por isso decidi ficar calado e
esperar. Servi-lhe o chá. Gostava de tomá-lo com leite, e parecia saboreá-lo.
Sentado à minha mesa, parecia bem menor e mais magro do que realmente era.
Posso lhe oferecer duzentas mil pesetas, disse. Aceito, mas em quê eu poderia
ajudar?
Em questões de poesia, disse ele. Wieder era poeta, eu era poeta, ele não
era poeta, logo, para encontrar um poeta ele precisava da ajuda de outro poeta.
Eu disse que para mim Carlos Wieder era um criminoso, não um poeta.
Bem, bem, disse Romero, não sejamos intolerantes, talvez para Wieder ou
para um outro qualquer você não seja um poeta ou seja um poeta ruim e ele ou
eles sim, tudo depende da lente com que se olha, como dizia Lope de Vega,
não acha? Duzentas mil redondas, imediatamente?, perguntei. Duzentas mil
pesetas na lata, disse ele com força, mas lembre-se de que a partir de agora
você trabalha para mim, e quero resultados. Quanto estão pagando para você?
Muito, disse ele, a pessoa que me contratou tem muita grana.
No dia seguinte, apareceu em casa com um envelope contendo cinquenta mil
pesetas e uma maleta cheia de revistas de literatura. O resto eu lhe dou quando
me passarem o dinheiro, disse. Perguntei por que ele achava que Carlos
Wieder estava vivo. Romero sorriu (tinha um sorriso de fuinha, de rato do
campo) e disse que seu cliente é que achava que ele estava vivo. E o que o
leva a acreditar que ele esteja na Europa e não na América ou na Austrália?
Formei para mim mesmo uma ideia desse homem, disse ele. Depois disso,
convidou-me a almoçar num restaurante da rua Tallers, onde eu morava (ele se
hospedara numa pensão discreta e decente da rua Hospital, a poucos metros de
minha casa), e a conversa enveredou pelos seus anos no Chile, pelo país de
que nós dois nos recordávamos, sobre a polícia chilena, que Romero (para o
meu espanto) situava entre as melhores do mundo. Você é um fanático e um
patrioteiro, disse eu enquanto comíamos a sobremesa. Garanto que não, disse,
nos meus tempos de Brigada não havia caso de assassinato que não fosse
solucionado. E os meninos que entravam para o setor de Investigações eram
dos mais preparados, com boas notas no curso de humanidades e mais três
anos de academia com excelentes professores. Lembro que o criminologista
González Zavala, que descanse em paz o doutor González Zavala, dizia que as
duas melhores polícias do mundo, pelo menos no que diz respeito ao
Departamento de Homicídios, eram a inglesa e a chilena. Não me faça rir, eu
disse.
Saímos dali às quatro da tarde, depois de comer e de esvaziar duas garrafas
de vinho. Vinho espanhol e estamos conversados, disse Romero, melhor que o
francês. Perguntei-lhe se tinha alguma coisa contra os franceses. Seu rosto
pareceu se ensombrecer, e ele disse que queria ir embora, só isso, já são
muitos anos.
Tomamos um café no bar Céntrico e falamos sobre Os miseráveis. Romero
considerava Jean Valjean, que depois virou Madeleine e mais tarde
Fauchelevent, um personagem comum, encontrável nas heterogêneas cidades
latino-americanas. Javert, ao contrário, lhe parecia excepcional. Esse homem,
disse ele, é como uma sessão de psicanálise. Não foi difícil perceber que
Romero nunca tinha passado por uma psicanálise, embora para ele essa
atividade carregasse em si todo o prestígio do mundo. Javert, o policial de
Victor Hugo, de quem se compadecia e a quem admirava, era para ele, nesse
sentido, um luxo, uma “comodidade de que só de vez em quando podemos
gozar ”. Perguntei-lhe se tinha visto o filme, um francês, bem antigo. Não,
disse ele; sei que existe um musical passando em Londres, mas também não vi,
deve ser uma espécie de La pérgola de las flores.* Como eu já disse, não me
lembrava de nada do romance, mas apenas que Javert comete suicídio. Tinha
minhas dúvidas. Talvez no filme ele não o fizesse. (Ao recordá-lo, vêm-me à
mente apenas duas imagens: as barricadas de 1832, agitadas por estudantes
revolucionários e por vagabundos, e a figura de Javert, depois de ser salvo
por Valjean, em pé na boca de uma galeria de águas, o olhar perdido no
horizonte e o som, como o de uma cachoeira, majestoso na verdade, do esgoto
caindo nas águas do Sena. Embora seja mais provável que eu esteja
confundindo ou misturando um filme com outro.) Hoje em dia, disse Romero
saboreando as últimas gotas de um carajillo,** pelo menos nos filmes norte-
americanos, os policiais só se divorciam. Javert, em vez disso, se suicida.
Percebe a diferença?
Depois subiu comigo os cinco andares até minha casa, abriu a maleta e
depositou as revistas em cima da mesa. Leia com calma, disse, que enquanto
isso farei um pouco de turismo. Que museus você me recomenda? Lembro de
ter lhe indicado vagamente como ir até o Museu Picasso e de lá até a Sagrada
Família, e então Romero partiu.
Voltei a vê-lo depois de três dias.
As revistas que ele deixara comigo eram todas europeias. Da Espanha, da
França, de Portugal, da Itália, da Inglaterra, da Suíça, da Alemanha. Havia
também uma da Polônia, duas da Romênia e uma da Rússia. A maioria eram
fanzines de pequena tiragem. Os tipos de impressão, à exceção de algumas
francesas, alemãs e italianas que se percebia serem mais profissionalizadas e
com suporte financeiro sólido, iam desde a fotocópia até o mimeógrafo (uma
das romenas) e o resultado saltava aos olhos, a qualidade defeituosa, o papel
barato e a diagramação malfeita expressavam uma literatura porca. Folheei
todas. Segundo Romero, em alguma delas teria de haver uma colaboração de
Wieder, com outro nome, é claro. Não eram revistas literárias de direita
comuns: quatro delas eram publicadas por grupos de skinheads, duas eram
publicações irregulares de torcidas de futebol, pelo menos sete dedicavam
mais da metade de suas páginas à ficção científica, três eram de clubes de
wargames, quatro se dedicavam ao ocultismo (duas italianas e duas
francesas), dentre elas uma (italiana) dedicada à adoração do diabo, pelo
menos quinze eram declaradamente nazistas, umas seis podiam se inscrever na
corrente pseudo-histórica do “revisionismo” (três francesas, duas italianas e
uma suíça de língua francesa), uma, a russa, era uma mistura caótica de tudo
isso, ao menos foi a essa conclusão que cheguei pelas caricaturas (em grande
número, como se de repente seus potenciais leitores russos tivessem virado
analfabetos, mas algo providencial para mim, que não sei russo), quase todas
eram racistas e antissemitas.
No segundo dia de leitura, comecei a me interessar de verdade. Morava
sozinho, não tinha dinheiro, minha saúde deixava bastante a desejar, não
publicava nada em lugar algum fazia um bom tempo, ultimamente nem sequer
escrevia. Meu destino me parecia miserável. Acho que tinha começado a me
acostumar com a autocompaixão. As revistas de Romero, todas reunidas sobre
minha mesa (decidi comer de pé na cozinha para não tirá-las dali), em pilhas
de acordo com a nacionalidade, as datas de publicação, a tendência política
ou o gênero literário em que trafegavam, provocaram em mim os efeitos de um
antídoto. No segundo dia de leitura, senti-me mal fisicamente mas logo percebi
que o mal-estar se devia à minha falta de sono e à alimentação ruim, por isso
decidi descer para a rua, comprar um pouco de queijo e depois dormir.
Quando acordei, seis horas depois, estava renovado e descansado e com
vontade de continuar a ler ou reler (ou adivinhar, conforme o idioma da
revista), cada vez mais envolvido na história de Wieder, que era a história de
alguma coisa a mais, embora, na ocasião, eu não soubesse do quê. Uma noite
cheguei até mesmo a sonhar com isso. Sonhei que estava em um grande barco
de madeira, talvez um galeão, e que íamos pelo Pacífico. Eu estava numa festa
na cobertura da popa e escrevia um poema, ou talvez uma página de um diário,
enquanto olhava o mar. Alguém, um velho, começava então a gritar um
tornado!, um tornado!, mas não a bordo do galeão e sim a bordo de um iate ou
de pé num molhe. Exatamente como uma cena de O bebê de Rosemary, de
Polanski. Nesse instante o galeão começava a afundar e todos os
sobreviventes acabaram como náufragos. No mar, eu conseguia ver Carlos
Wieder, flutuando agarrado a um barril de aguardente. Eu me aferrava a uma
tábua de madeira podre. Enquanto as ondas nos afastavam, eu compreendia
que Carlos Wieder e eu tínhamos viajado no mesmo barco, só que ele tinha
contribuído para afundá-lo e eu não tinha feito nada, ou quase nada, para evitá-
lo. Por isso, quando Romero voltou, depois de três dias, recebi-o quase como
a um amigo.
Não tinha ido ao Museu Picasso nem à Sagrada Família, mas visitara o
museu do Camp Nou e o novo aquário. Nunca na minha vida, disse ele, tinha
visto um tubarão tão de perto, uma coisa impressionante, eu juro. Quando
perguntei sua opinião sobre o Camp Nou, ele disse que sempre achou que
aquele era o melhor estádio da Europa. Pena que o Barcelona perdeu no ano
passado para o Paris Saint-Germain. Romero, não vá me dizer que você é
culé. Não conhecia a palavra. Expliquei o que significava, e ele a achou
engraçada.*** Durante algum tempo permaneceu como que ausente. Sou um
culé transitório, disse. Na Europa gosto do Barcelona, mas no fundo meu
coração é do Colo-Colo. Que se pode fazer, acrescentou com tristeza e
orgulho.
Naquela tarde, depois de almoçarmos juntos num boteco da Barceloneta, ele
me perguntou se tinha lido as revistas. Estou mergulhado nisso, eu disse. No
dia seguinte, apareceu com uma televisão e um aparelho de vídeo. São para
você, faça de conta que é um presente do meu cliente. Não assisto tevê, eu
disse. Pois faz muito mal, não sabe quanta coisa interessante está perdendo.
Odeio os concursos, expliquei. Alguns são muito interessantes, disse Romero.
São pessoas simples, autodidatas enfrentando todo mundo. Lembrei-me de
que, nos seus velhos tempos de Concepción, Wieder era ou fingia ser um
autodidata. Eu leio livros, Romero, disse, e agora revistas, e às vezes escrevo.
Dá para perceber, observou Romero, e logo acrescentou: não me leve a mal,
sempre respeitei os padres e os escritores que não têm nada. Lembro de um
filme com Paul Newman, disse ele, era um escritor, deram-lhe o prêmio Nobel
e o homem admitiu que durante todos aqueles anos tinha ganho a vida
escrevendo sob pseudônimo romances policiais. Respeito esse tipo de
escritor, disse ele. Não deve ter conhecido muitos, disse eu, debochando.
Romero não notou. Você é o primeiro, disse. Depois me contou que não seria
conveniente instalar a tevê na pensão onde ele morava e que eu precisava ver
três vídeos que ele tinha trazido. Acho que dei uma risada, de puro medo.
Exclamei: não vá me dizer que Wieder aparece aí. Nos três filmes, sim senhor,
disse Romero.
Instalamos a tevê, e antes de ligar o vídeo Romero tentou ver se conseguia
captar algum canal, mas foi impossível. Vai ter de comprar uma antena, disse.
Em seguida, pôs a primeira fita de vídeo. Não me levantei do meu lugar na
mesa, ao lado das revistas. Romero se sentou na única poltrona da sala.
Eram filmes pornográficos de orçamento barato. Na metade do primeiro
(Romero trouxera uma garrafa de uísque e via o filme bebendo pequenos
goles), confessei-lhe que eu seria incapaz de ver três filmes pornôs seguidos.
Romero esperou pelo fim e depois desligou o vídeo. Veja-os esta noite,
sozinho, sem pressa, disse ele, guardando a garrafa de uísque num canto
qualquer da cozinha. Tenho de reconhecer Wieder entre os atores?, perguntei,
antes que ele se fosse. Romero sorriu enigmaticamente. O importante são as
revistas, os filmes são uma ideia minha, trabalho rotineiro.
Naquela noite vi os dois filmes que faltavam, depois vi o primeiro de novo
e voltei a ver os outros dois. Wieder não aparecia em nenhum deles. Nem
Romero voltou a aparecer no dia seguinte. Considerei que a coisa dos filmes
era uma brincadeira de Romero. A presença de Wieder entre as paredes de
minha casa, porém, fazia-se cada vez mais intensa, como se os filmes, de
alguma forma, o estivessem conjurando. Não precisa exagerar, disse-me
Romero numa ocasião. Mas eu sentia que minha vida estava indo por água
abaixo.
Quando Romero voltou, vestia um terno novo, recém-comprado, e me trazia
um presente. Desejei ardentemente que não fosse alguma coisa de vestir. Abri
o pacote: era um romance de García Márquez — que eu já havia lido, mas não
disse nada — e um par de sapatos. Experimente, disse ele, espero que o
tamanho esteja certo, os sapatos espanhóis são muito admirados na França.
Surpreso, constatei que os sapatos me serviam perfeitamente.
Explique-me esse enigma dos filmes pornográficos, pedi. Não percebeu
nada estranho, fora do normal, alguma coisa que tenha chamado sua atenção?,
perguntou Romero. Por sua expressão, percebi que os filmes, as revistas, tudo
aquilo, com exceção talvez de sua planejada volta, com a família, para o
Chile, não tinha a menor importância para ele. A única coisa que tenho a
registrar é que estou cada dia mais obcecado com a besta do Wieder, eu disse.
E isso é bom ou ruim? Não brinque, disse eu. Bem, vou lhe contar uma
história, disse Romero, o tenente está em todos esses filmes, só que por trás
das câmeras. Wieder é o diretor desses filmes? Não, disse Romero, é o
fotógrafo.
Contou-me então a história de um grupo que fazia cinema pornô numa casa
de campo no golfo de Tarento. Uma manhã, e isso já fazia dois anos,
apareceram todos mortos. Eram, no total, seis pessoas: três atrizes, dois atores
e o câmera. Suspeitou-se do diretor e produtor, que foi detido. Também
prenderam o dono da casa, um advogado de Corigliano ligado ao hard-core do
crime, ou seja, a filmes pornôs que continham crimes não simulados. Como
todos apresentaram algum álibi, foram postos em liberdade. Depois de algum
tempo o caso foi arquivado. Onde Carlos Wieder entrava na história? Havia
outro câmera. Um tal R. P. English. E a polícia italiana nunca conseguiu
localizá-lo.
English era Wieder? Quando começou sua investigação, Romero achava que
sim, e durante algum tempo percorreu a Itália em busca de pessoas que
tivessem conhecido English, às quais exibia uma velha foto de Wieder (aquele
em que ele posa junto a um avião), mas não encontrou ninguém que se
lembrasse do câmera, como se ele não tivesse existido ou não tivesse um rosto
para ser lembrado. Por fim, numa clínica de Nimes, encontrou uma atriz que
havia trabalhado com English e que se lembrava de como ele era. A atriz se
chamava Joanna Silvestri e era uma preciosidade, disse Romero, a mulher
mais bonita, eu juro, que vi em toda a minha vida. Mais bonita que sua
esposa?, perguntei para provocá-lo um pouco. Rapaz, minha mulher já está um
pouco passada e não conta, disse Romero. E eu também, acrescentou quase em
seguida. O fato é que aquela era a mulher mais bonita que já tinha visto.
Falando com mais precisão: a mais bem formada. Uma mulher de se tirar o
chapéu, pode acreditar. Perguntei-lhe como ela era. Loira, alta, com um olhar
que fazia você voltar à infância. Um olhar aveludado, com lampejos de tristeza
e determinação. Além disso tinha ossos esplendorosos e uma pele muito
branca, com aquele tom oliva que se vê em abundância no Mediterrâneo. Uma
mulher de sonhar acordado, mas também para viver junto e compartilhar
dificuldades e maus momentos. Prova disso, disse Romero, eram seus ossos,
sua pele, seu olhar sábio. Nunca a vi de pé, mas imagino que seria como uma
rainha. A clínica não era de luxo, mas tinha um pequeno jardim que à tarde
ficava cheio de pacientes, em sua maioria franceses e italianos. Da última vez,
que foi quando ficamos mais tempo juntos, convidei-a a descer (talvez com
medo de que se irritasse comigo estando a sós no quarto). Disse-me que não
podia. Falávamos em francês, mas de vez em quando ela intercalava algumas
expressões em italiano. Isso ela me disse em italiano, meu amigo, olhando-me
bem nos olhos, e eu me senti o homem mais impotente ou fodido ou
desgraçado do mundo. Não sei como explicar: teria chorado ali mesmo. Mas
me controlei e tratei de continuar conversando sobre coisas que se
relacionavam ao assunto que me levara até ali. Ela achava graça no fato de eu
ser chileno e de estar atrás do tal English. O detetive chileno, dizia ela,
sorrindo. Parecia uma gata, na cama, com os braços cruzados e vários
travesseiros nas costas. A forma de suas pernas sob as cobertas já era, em si,
como que um milagre: mas não desses milagres que o deixam confuso, e sim
desses que passam como o vento, deixando-o tranquilo, mais tranquilo que
antes, quero dizer. Nossa, como era linda, disse Romero de repente. Estava
doente? Estava morrendo, disse Romero, e mais solitária que uma cadela, pelo
menos foi essa a terrível conclusão a que cheguei depois das duas tardes que
passei na clínica, e, apesar de tudo, mantinha-se serena e lúcida. Gostava de
falar, percebia-se que ficava animada com as visitas (não devia ter muitas,
embora na verdade eu não saiba direito), estava sempre lendo ou escrevendo
cartas ou vendo televisão com fones de ouvido. Lia revistas de atualidades,
revistas femininas. Seu quarto estava sempre bem-arrumado e cheirava bem.
Ela e o quarto. Suponho que passava uma escova no cabelo e água de colônia
ou perfume no pescoço e nas mãos antes de receber as visitas. É o que
imagino. A última vez em que a vi, antes de nos despedirmos, ligou a tevê e
procurou um canal italiano em que passava não sei o quê. Temi que fosse um
filme dela. Juro que aí é que eu não saberia o que fazer e que minha vida
inteira teria dado uma virada. Mas era um programa de entrevistas em que
aparecia um velho amigo dela. Apertei sua mão e fui embora. Ao chegar à
porta, não consegui me segurar e voltei a olhá-la. Já tinha encaixado os fones
nas orelhas e exibia, veja que curioso, um aspecto marcial, não sei classificar
de outro modo, como se o quarto da paciente fosse uma sala de comando de
uma nave espacial e ela a dirigisse com mão firme. No fim das contas, o que
aconteceu?, perguntei, já sem vontade de gozar de Romero. Não aconteceu
nada, ela lembrava de English e o descreveu muito bem, mas essa descrição
corresponde a milhares de pessoas na Europa, e não conseguiu reconhecê-lo
na velha foto de aviador, é lógico, são mais de vinte anos passados, meu
amigo. Não, eu disse, pergunto o que aconteceu com Joanna Silvestri. Morreu,
disse Romero. Quando? Alguns meses depois que a vi, li a notícia em Paris,
na seção de mortes do Libération. E nunca viu um filme dela?, perguntei. De
Joanna Silvestri? Não, rapaz, como é que você pode pensar uma coisa dessas,
nunca. Nem mesmo por curiosidade? Nem pensar, sou um homem casado e
meio velhinho, disse Romero.
Naquela noite, foi minha vez de convidá-lo para jantar. Comemos na rua
Riera, em um restaurante barato e familiar, e depois ficamos caminhando à toa
pelo bairro. Ao passar por uma videolocadora aberta, disse a Romero que me
seguisse. Não está pensando em alugar um vídeo dela, ouvia sua voz às minhas
costas. Não confio na sua descrição, quero ver como era o rosto dela. Os
filmes pornôs ocupavam três estantes ao fundo. Acho que só uma vez eu havia
entrado numa videolocadora. Fazia tempo que não me sentia tão bem, embora
estivesse fervendo por dentro. Romero procurou durante algum tempo. Via-o
passar as mãos, mãos escuras e nodosas, pelas capas dos vídeos, e só isso já
fazia com que me sentisse bem. É esta, disse. Tinha razão, era uma mulher
muito bonita. Quando saímos, dei-me conta de que a videolocadora era a única
loja do bairro que ainda estava aberta.
No dia seguinte, quando Romero passou em casa, eu lhe disse que achava
ter identificado Carlos Wieder. Se voltasse a vê-lo, conseguiria reconhecê-lo?
Não sei, respondi.
Roberto Bolaño nasceu em 1953, no Chile, e é considerado um dos grandes nomes da literatura latino-
americana contemporânea. Romancista, contista, ensaísta e poeta, passou a adolescência no México,
voltando ao seu país pouco antes do golpe que depôs Salvador Allende. Conseguiu se exilar e começou a
publicar na Espanha, quando já tinha quarenta anos. Morreu em Barcelona, em 2003, supostamente de
insuficiência hepática. De sua autoria, a Companhia das Letras lançou 2666, Amuleto, Os detetives selvagens,
Estrela distante, Noturno do Chile, A pista de gelo, Putas assassinas e O Terceiro Reich.
Copyright © 1996 by Roberto Bolaño
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em
2009.
Título original
Estrella distante
Capa
warrakloureiro
Foto de capa
Sem título (1998), óleo sobre tela de Rodrigo Andrade, 190 x 220 cm.
Preparação
Silvia Massimini Felix
Revisão
Ana Maria Barbosa
Huendel Viana
ISBN 978-85-438-1105-5