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ACW, HESPANHA Faculdade de Ciencias Sociais e Humanas dda Universidade Nova de Lisboa SABIOS E RUSTICOS: A VIOLENCIA DOCE DA RAZAO JURIDICA A inais covrente hier do dieito aruda gezorevau como v0 direto 6 das iaituioes sempre fom core Gor rashoos. Nas suas eatogoras @ idorade.e volupse go Oieito Glassficapdee, nos. seus, formals urgpeu como um rogreso linasr Tete furgas, ns sis wstaregas Beat ago ross se Gos nahcos sprasonta exaarone Bom difefante. Ald aoe laa somomangae som ot areas ‘do Ange Fagine, 2 dicta favelados pele actue! antopooge jecoeristiy numa coosiae nas margans das actus Socoda: féncla confitual— com trasieoes Gos dosohvoiid. Firitees populares, gue a douiring N ‘Antigo Regime em Portugal 6 preciso ultrapassar 0 discurso explicito das fontes quando se torna patente o seu caracter fantasmagérico, ou seja, uma nitida incompatibilidade entre, Por um lado, as exigéncias institucionais do modelos de organizacao juridica e judicial contidas nas fontes do direito fe, sobretudo, doutrinarias ©, por outro lado, a goneralidads ‘das situagdes vividas. Com efeito, perante os dados estatisti- C08 relativos ao peso das magistraturas eruditas no século XVII (Poderia mesmo dizer-se, até as grandes reformas judiciais do ‘século XIX), segundo os quais o niumero de juizes de fora nao ja além de um décimo do total dos juizes, rapidamente so ‘compreende que todo o discurso dos juristas eruditos sobre a ‘organizagdo judicial assentava numa ficeao ou até numa deli- berada recusa da realidade. A ole vem juntar-se 0 discurso os historiadores que, desde o século XIX, nele piamente acreditam e 0 paratraseiam. A Ideia vulgarmente cada pela historiogratia das fontes — totalmente voltada para a descrigao das fontes de direito dos tribunals centrais para os problemas doutrinais levantados a este propesito pelos juristas eruditos — ¢ a de que, a partir do século XV, 0s costumes, gerais o locals, tinham passado & 32 A.M. Hespanna categoria de fontes de direito francamente secundérias. N3o 86 a legislagao real e 0 direito comum regularizam zonas cada vez mals extensas da vida social, como a doutrina teria subord- nado ofinitwamente 0 costume a lel, substituindo & sua antiga definig&o como stacitus consensus populi» uma outra ‘que 0 fazia depender da «consclentia et pationtia ragiss. Os séculos XVI a XVIII teriam sido, assim, uma época de franco predominio do direito régio e do direito comum, este titimo ‘contido na Glosa de Acirsio, nos comentarios de Bartolo e, mais recentemente, na communis opinio dos «modernos». No plano da administragao da justica, a visio 6 corres- Pondente. A partir do século XV a progressiva intervengao da justiga real — através dos Juizes de fora e dos corregedores— teria gradualmente subsiituido as justicas auténomas dos cconcelhos © dos senhorios. A expansao deste apareino de justiga real teria alargado 0 ambito de aplicagao do direito régio (lus proprium) e do direito erudito (ius commune), est sobretudo a partir de 1539 quando se exige a corregedores & 8 julzes de fora uma formagao universitéria om dircit. E, na verdade, muitos factores se combinam para tornar esta imagem verosimil No plano politico-ideol6gico, afirma-se, na historiogratia portuguesa, a persistancia do mito da «centralizagao do poder reals que no século passado serviu quer para enaltecer a ac¢ao da coroa na correc¢ao dos abusos feudais ena proteceao do terceiro estado (que, no contexto politico do século KIX, revelava 08 esforgos de legitimacao histérica do poder «moderador» do rei previsto na Carta Constitucional de 1826), quer para explicar a decadéncia dum pals esvaziado da sua dindmica local e de cidadania pelos designios politicos uma corte monopolizadora, distante e Imobilista. or outro lado, © agora no campo mais preciso da ideo- logia e da dogmética dos juristas, essa idela de expropriagso 08 poderes locais pelo centro parecia um proceso natural ‘aqueles espiritos para quem a separagao entre o Estado © a sociedade civil, © monopélio das competéncias deliberativas do poder central ¢, portanto, a atribuigao & periferia de com- peténcias meramente executivas, constitulam inelutéveis fac- tores de um processo historico necessario (@ desejével) de desenvolvimento duma razio natural no dominio da organi- \rativa. Se, em Portugal, tal processo ‘ocorreu precocemente, tanto maior 0 motivo de regozij. ‘A par destes ingredients ideologicos, o estado das fontes, contribuiu também para essa orientagao. Por um lado, @ organizacao da vida juridica local —b seada na oralidade— defendie-a mal do esquecimento da his toria. Os costumes raro foram, que se saiba, reduzidos a esctite: dos finais do séo. XIV conhece-se cerca de uma dezena de redaccoes de costumes, mas 6 evidente que isto ‘corresponde apenas @ uma pequena parte do direito consue- tudinério. O resto, apesar da expressa cominacao das Orde- rnagoes de que os costumes fossem reduzidos @ escrito (Ord. AF., 1,27, 8; Ord. Man., 1, 46, 8; Ord. Fil. 1, 66, 28), perdeu-se ou ‘esta ainda inédito nos livros de vereagoes das cdmaras. Quanto as sentencas dos juizes locals, parte delas nao tera sequer sido reduzida a escrito, dado que as Ordenacdes promoviam a simplicidade e a oralidade do processo nos tri- bunais locais, satistazendo-se frequentemente com a mera redacgio do assento final (sprotacolo>) pelo escrivao, o que impede, nomeadamente, o conhecimento da ratio decidend! dda argumentagao do juiz. Mesmo em relagdo a sentencas escritas—que, contra a regra comum do direito portugués, poderao nao apresentar a motivacdo, muito poucas S40 as que ‘estdo disponiveis para estudo. De facto, a generalidade das coleecdes de sentencas apenas recolhe sentencas dos tribu- nals superiores, que raramente dao uma descrigao capaz da decisdo recortida. As inéditas Jazom nos cacticos arquivos judiciais ou municipais. Se, no plano das fontes de investigagao, a historiograt tradicional teve rezdes para ignorar 0 direito local e 0 labor das magistraturas populares, a estas raz0es somou-se a imax {gem que a literatura da época deu deste mundo juridico mar- Sinalizado. ‘A doutrina seiscentista @ sotecentista nao @, desde logo, muito prolixa a respeito destas questoes. Os principals juristas, portugueses da época sao, na verdade, pessoas ligadas div samente aos meios do direito régio ou erudito— professores da universidade, desembargadores ou advogados dos tribu- nals superiores; de qualquer modo, letrados e oficiais do rei Muitos deles tinham, é certo, feito @ sua carreira pola provin- cia, © alguns recordam questées entao surgidas. Mas a sua vio do foro local & decisivamente influenciada pola formagao Universitaria prévia ou pela situacao profissional e politica em que se encontravam, como funcionarios do rei. Desde logo, @ sua atengdo nao ¢ atraida pelas magistraturas locals, salvo quando, comentando as Ordenagées. encontravam os titulos @ elas dedicados. Mas quando o @, utilizam-se fontes doutri- nals do direito comum, alheias @ realidade portuguesa, © reproduzem-se formulas doutrinais estereotipadas por detras {das quals nao se consogue entrever a natureza oa dinamica {a vida Juridica local. Os concelhos portugueses, 0 seu direito @ 08 seus magistrados, aparecem al nas vestes dos municipios Fomanos ou das cidades italianas contemporaneas dos gran- es juristas de trezentos. E se acaso a realidade local portu- ‘Sabios @ Rusticos 33 34 A.M. Hespanha guesa 6 t4o gritantemente diferente que suscita uma observa- (0 particular, essa observagao ¢ normalmente dirigida pela Optica do jurista erudito, que tende a desvalorizar a realidade juridica autonoma dos concelhes, caracterizando-a apenas, do onto de vista negativo, como uma situagao de auséncla ou do desconhecimento do direlto (entenda-se, do direlto erudito) 8 nfo como uma situagdo de presenga de um outro ordena- ‘mento juridico diferente e alternativo. Nesta perspectiva, por fexemplo, a caracteristica dominante dos juizes locals ndo pode delxar de ser a ignorantia, rusticitas, ou imperitia,jé que © padrao de cultura juridica 6, nao 0 direlto local, mas 0 direito régio ou erudite, 2 A recusa das propostas. desta historiogratia —atitude correcta se se pretende obter, neste dominio, uma visto do pasado valida para outras areas além da corte © de umas |uantas cidades onde existia lustiga erudita — implica, porém, fa Ardua tarefa de substituir o discurso tantasmagérico das fontes sobre a omnipresenga © a normalidade (em sentido estatistico ¢ axiolégico) duma justica letrada e dum direito ferudito, por uma descrigao historica da vida juridica real fora dos grandes centros, Baseada na oralidade, desprozada pelas fontes escritas, a lustiga peritérica partitha, de facto, 0 destino de todos os fendmenos socials minoritérios e reprimidos que para’ serem recuperados sociologica e nistoricamente levantam serios problemas metodologices. ‘Qualquer avanco do conhecimento nesses dominios exige meios epistemolégicos alternativos para suprir as lacunas Crriadas pelos métodos tradicionals. Como hipdtese da traba- Ino, tentei uma leltura sintomal cas fontes, guiada por uma referéncia a modelos tipicos de organizacdo da pratica Juridica desenvolvidos pela antropologia e sociologia juridices, letura essa que permite descobrir, por tras do discurso juridico eru- dito, as realidades préticas apenas atloradas. Para tanto, utilizei uma tipologia, bestante difundida partir de Max Weber, mas que estudos recentes de antropo- logia @ de sociologia do direito vieram nao s6 contirmar nas ‘suas linhas tundamentais como libertar de todo 0 normati- vismo até hoje usual na tradic4o Waberiana. Estou a referir-me & distingao entre sociedades domina- das por uma matriz tradicional de distribuigao do poder (tra- ditfonale Herrschatt) © sociedades dominadas por um sistema politico de natureza legal-racional (rationale Herrschatt). Na literatura mais recente esta distingao é expressa sob a forma de oposi¢ao entre sociedades «pré-racionais» @ «racionais», stradicionais» © «modernass, «camponesas+ © -capitalistas. 3, No dominio do direito, o contraste entre estes dois tipos de organizagao social (a que ee liga uma dualidade de orga- nizagao simbélica) foi descrito numa ja longa série de traba- thos, principalmente de antropélogos ('). Segundo Boaventura de Sousa Santos —que utilizou o8 instrumentos teéricos des- sas correntes na sua investigagao sobre o dicelto «nao oficial» ddas tavelas do Rio de Jansiro ()— 08 tragos distintivos da pratica juridica dessas sociedades marginalizadas dos nossos dias (cujas estruturas @ praticas culturais e simpclicas estao intimamente relacionadas com as das sociedades tradicionais) podem descrever-se da forma que passamos a reterir 2) Os conflitos 18m, goralmente, um caracter trans-indi- vidual, no se reduzem @ uma questao puramente privada e @ Comunidade mostra-se, de certo modo, empenhada nos cite- rendos entre seus membros. Isto explica-se devido as fortes solidariedades decorrentes do teor marcadamente colectivista {da vida social, Além disso, a natureza tradicional e imanente (isto 6, ndo voluntarista e arbitréria) da ordem juridica trans- forma qualquer conflito sobre o direito numa questae que uiltrapassa o nivel meramente t8cnico e que pSe em causa o8 fundamentos (considerados indisponiveis) da vida social, Por outras palavras, nao sendo a ordem juridica o produto arbi- trério duma vontade (individual ou colectiva), mas antes 0 produto duma tradigao social quase sagrada, acto anti-juri dico @ tido nao como uma mera «transgressao», mas como desafio as regras fundamentals da vida em comum. € este cardcter trans-ingividual dos contlitos que explica, por um lado, a tluidez das fronteiras entre o direito (ius), a moral (fas) © 0 costume (mos), e ainda a referéncia, permanente no dis- curso juridico tradicional, a padroes éticos de conduta (prae- cepta iuris sunt hapc: honeste vivere, alterum non laedere, ‘suum cuique tribuere); por outro lado, explica ainda a indis- tingao entre as sangdes spenais» © as sancSes «civis- da qual resultam quer a «penalizagaox de questoes, noje em dia, nit ‘damente civis (por exemplo, a prisdo por dividas), quer a » de questdes, actualmente, de natureza penal (por @ aceitagao de penas puramente privadas de rep! 1) Gi Fars 1969), Gluckmann (1505 a ©), Nader (1968), Hacker 3974) Bom como & vastabibvograle olga em Santos (1880) 6 Sotar (ET) santos (1976. Sablos © Rusticos 35 36 A.M. Hespanha: ago penal). Este caractor fundamental dos conflitos explica ainda a intervengao activa do tribunal e da propria sociedade (através dos sous elementos mais respeitados, os honoratio- 79s, anciaos) na procura dum equilibrio entre 05 interesses confltuantes que permita resolver 0 ltigio de forma duravel (Santos, 1980: 17). 'b) Uma segunda caracteristica consiste na precaridade dos meios coercivos institucionalizados @ explica que a reso- ucao dos conflitos assente numa «violencia doce do discurso crientada para a obteng’io dum consenso que possibilite nao 86 satisfazer momentaneamente os interesses, mas também encontrar um equilibria estavel. Este objective atinge-se por diversos meios. Por um lado, através de um grande investi- mento retérico-argumentativo © alé emocional tendente @ criagdo das bases do consenso. 0 discurso juridico socorre-se de todos os lugares retdricos aceites, mobilize toda uma riqueza emocional e tépica e, longe de isolar a questo numa moldura técnica e abstracta (neutra, do ponto de vista das convengoas colectivas), favorece constantemente a sua liga {¢80 com outros regisios axiolégicos da vida social, pro- ‘curando salientar 0 cardctor socialmente indispensavel da ‘obtengdo dum acordo (e, por consequéncla, os deveres das partes nesse sentido), Por outro lado, a propria estratégia da decisao deve faciltar a conciliagao das partes 0, assim, a decisfio tende a ser, n8o uma forma de adjudicagao, mas uma forma de mediagaa assente na reciprocidade de cedéncias e sganhos (Santos, 1980: 21). cc) A terceira caracteristica é o fraco grau de instituciona- lizagao das instincias decisérias das questoes juridicas que se concretiza, em primeiro lugar, no carécter «no auténomo= as instituicbes jurisdicionals, que s8o integradas ou presidi- {das ndo por prolissionais de carreirs, especializados © esco- lhidos em func&o das suas qualificagdes técnicas, mas por Individuos investidos dum prestigio social anterior & sua designagio para juizes (honaratiores, notaveis) que exercem ‘essa fungao a par de outras fungoes sociais e que nao pos- ‘suem qualquer formagao técnica. Em segundo lugar, 0 carac- ter nao técnico da linguagem juridica ou, pelo menos, o facto {de 0 seu baixo grau de especializagao nao provocar a distan- cclagao entre o tribunal e 0 auditério (Santos, 1980: 34), per- mite um controlo e uma participagao publica no desenrolar do proceso 0, finalmente, na decisao. Em terceiro lugar, a »sim- Plificagdo» dos processos, mais do que uma verdadeira «sim- plificagao» traduz uma tentativa de aproximar as. préticas judiciais dos rituais e tormalidades comuns a outros dominios 4a vida social, eliminando todos as protacolos em que a fun- 80 6 sacriticada & forma ou, melhor dizendo, em que a solu- 80 socialmente evidente e justa @ abandonada por razoes formals» (por exemplo, a fixagdo definitiva do objecto do processo de acordo com a litis contestatio, criterios pré-esta- belecidos de apreciagao da prova, perda de direltos materiais por prescrigao de prazos ou por violagao de certas formali- dades processuais). Finalmente, o cardcter omni-inclusivo do discurso juridico onde a questo juridica se nao distingue da questo vivida, ou soja, onde nunca se atinge a determinagao dum objecto especifico do processo. Isto explica, nomeada- ‘mente, essa incapacidade, tantas vezes patente, de contengao dos membros das comunidades tradicionais perante as lim tacoes rigorosas do objecto do processo impostas pela pratica Judicial contemporanea (Santos, 1980: 26) 4 © antagonismo entre as praticas juridicas tradicionais ¢ ‘as que se desenvolveram com 0 Estado contemporaneo nao deve fazer perder de vista, polo menos nas sociedades onde ‘cosxistem praticas juridicas dos dois tipos, que entre ambas ‘30 goram relagdes que ndo sdo de oposigae total. Com eteito, quer @ lei quer as formalidades do processo erudito podem ser apropriadas pelo direito tradicional; no entanto, essa apropriagao modifica desde logo as regras da sua ulilizaga0 ‘no discutso juriico. A lel ou a formula doutrinal perce a sua qualidade de critério decisive e imperative na «invengao» da solugao juridica © passa a ser apenas um topico entre tantos outros, num sistema argumentativo cuja estratégia & agora dominada pela preocupacao de alcangar um acordo. O que ‘acontece com a lei acontece igualmente com as formulas o 108 actos do processo erudite quando aplicados no contexto {do processo tradicional (Spittler, 1980: 6). Qualquer dos factos se explica pela preponderancia, nessas sociedades dvalisias (neste aspecto), dum modelo legal-racional de legitimagao do poder, do qual faz parte @ crenga no cardcter decisivo da forma juridica escrita, tanto no plano das normas como do processo (:}. A referéncia ao direito escrito prendo-se. assim, ‘com a necessidade de »criar uma atmostera de oficialidade © de normatividade» que facilite a aceitagao da solugao (Santos, 1980: 19). Aldm disso, a forma escrita favorece a idola de dis- tanciagdo entre o tribunal as partes @, deste modo, reiorca essa idoia moderna segundo a qual a realizagdo da justia exige a heteronomia do érgao decisério, Estas relagdes entre os dois tipos de préticas juridicas levaram a quo se defendesse a tese segundo a qual 0 dosen- 1 Weber 1085), ‘Sabios ¢ Rusticos 37 38 A.M. Hespanha volvimento da justiga tradicional (dispute institutions) pres- supée a coexisténcia duma justiga institucionalizada na forma estadual (courts) sob cuja ameaga (juntamente com os seus tecnicismos processuais) se actuaria nos tribunais tradicio- ais Seria, contudo, errado partir destas consideragdes para uma concepgdo segundo a qual a justiga tradicional ¢ a jus tiga estadual se integrariam harmoniosa complementarmente dentro dum sistema global de resolugdo de conflitos, ou ainda, como as fontes historicas eruditas muitas vezes deixam supor, que a =divisdo do trabalho» entre ambas resultaria duma deciséo do legislador que, sensatamente, deixaria aos, povas 0 julgamento das quesides menores a fim de, simulta eamente, preparar as decisées dos tribunais superiores (organizadas de acordo com as regras processuais eruditas) © 08 libertar, em parte, da sua carga. Pelo contrario, embora 96605 dois mundos nao sejam estanques, as rolacdes entre eles s8o sempre conflituais, © as trocas 0 se fazem a custa de conversdes funcionais dos elementos apropriades. Assi, nao deve falar-se de continuidade entre ambos, mas antes de ruptura e de conflito, ainda que encobertos (8). Mas, funda mentalmente, a justiga tradicional nao se conforma nunca com o estatuto de «primeira instancia» da justiga estadual, pois no aceita de bom grado o modelo duma estrutura judi ial e processual muitas vezes antitetica. Com efeito, os tribunais tradicionais diferem dos esta- duais quer no plano do direito processual quer no plano do direito material. Relativamente a este ultimo, pelo facto de se submoterem a normas juridicas tradicionais diferentes das normas do direito oficial e erudito. No direito processual eru- dito, ha regras que esto nos antipodas da organizagao do proceso tradicional: primeiro, a utilizagao da linguagem téc- nica, maxime, do latim; em segundo lugar, as regras sobre a Intorvencdo das partes no processo (necessidade de repre- sentagdo por um advogado ou um procurador, limitagao do direito de uso da palavra); em terceito lugar, a estrutura dos meios de prova (predominio da forma escrita) @ o sistema de sangoes (preponderancia das sangdes de tipo penal —v.g, 08 Tal 6a teso de Spit (1080. +32) que oxplica a austo, em coras socindaden, de insttgoes,nho-udicae (nemgarcnfiche Insatutonen, “tepute neilutions) com base, do no og earacter uniroral (leo Unier= nist) ov na ua igseto a'om determnaco satio sutra (exe cual) mas sun dependencia das mstturtoes juscais A tese cen it!deeintuigoas jus inoogoe, om a vor com a exit ‘30835 comunidades tresciones ‘rar autocdeoza som eairem no campo desc pristo—em substituigéo das de natureza @ signorantex, por opo- sigfo a um ideal de cultura literavia que, cada vez mais, se vinha impondo ‘Na literatura juridica, 0 mundo dos rtisticos surgia, por- tanto, como um universe dotado do uma eapocifcidade tal {que tornava impossivel @ aplicagao estita do direito comum. A altude do jurista erudito para com esse mundo é um misto (8) Uleratura sobre os sostcos: (psigign, ile). Andreas Tis quelle, Tractaus. go" prvlogisrustcorum, Coloniae Agippinan 1580 enatus Chopinus, Do frivlegisruetisorum, Parte 18/0" See srvleges fds personnes want aux champs, Pars i684 (tas. Heng). le Albi Spufcuium de regimin rusticorem, Waguntise 0601. usive Henning bahar De lirtate imperecia ustocnim im: Germtnis, Hale 1! Sica Flecgua, De rustcorum regimen, Moguntie T00¥, Joh, Wilt. Coe Bi Be ue io aco To Govan main 1729 Borex to: Sued, Tractatus ge priviegis tusticarum,Colonae Toad» tras obras {ie ecay sbrtido on obega bt au aoe rastcon edo camponaae. 2 por Saigo: sustcus Gutur quotbet hatirane evita murts ess 1 fh casio, nau ost Romina panunas (Comm. D. de 1 Godle, t conficantur§ eoatcll- et Ml p170), Tit) Alexander de tmola, Conrita, Ligaum i969, vol 6 con. 9 Sabios © Rusticos 4a 42 ‘A.M. Hespanha de simpatia, mais retérica do que genuina, suscitada pelo estado epigonal da inocéncia primitiva, de condescendéncia arrogante relativamente & sua ignorancia e estupidez e, tinal- mente, de desprezo mal disfargado pela insignificincia das questoes que ai eram julgadas. O rustico era, por um lado, a criatura franca, ingénua, incapaz de malicia, desprovida de capacidace de avaliacao exacta das coisas em termos eco- nOmicos e, Por isso, susceptivel de ser enganada. Por outro lado, porém, era o ignorante e 0 grosseiro, o ser incapaz de se oxprimir correctamente © de compreender as subtilezas da vida, nomeadamente da vida juridica. Por fim, ele era o pobre Ccujas causas nunca atingiam uma importancia que justiicasse as formalidades solenes dum julgamento. (© que nunca transparece neste discurso erudito sobre 0 mundo dos rusticos 6 uma abertura para o reconhecimento do caracteralternativo e diferente do direlto tradicional, ou até da existoncia dum direito ristico, isto é, de uma ordem jurl- dica com caracteristicas proprias, organica, equivalente, no fundo, ordem juridica erudita. Quando referem a especiticl- dade do estatuto juridico dos rusticos, os juristas nao a fun- damentam no principio de pluralidade que dominava a teoria medieval do direito —isto 6, no principio da autonomia dos Ccorpos socials © do reconhecimento das respectivas.atribut {gbes estatutarias ou jurisdicionais— mas antes numa atitude paternalista e condescendente, propria de quem esta perante ‘uma realidade juridica inferior, precaria, que apenas prevalece ‘gragas a paciéncia do direito oficial. A realidade juridica do undo rustico 6, assim, deste modo, banalizada © expropriada {da sua dignidade de pratica juridica auténoma, Por este facto, o discurso erudito raramente assume um tom violento ou polémico em relagdo ao mundo do direito tradicional, Expressdes que encontramos nas fontes a propo- sito dos contactos entre as magistraturas eruditas @ 0 mundo 09s iletrados, néo parece, no contexto do estilo enfético & um tanto exagerado da época, suficientes para que possa falar-se uma polémica deciarada ¢ encarnicada entre os dois mundos juridicos. Pelo contrario, se violéncia havia, ela mar festava-se mals sob @ forma clemente de paternalismo, de condescendéncia e de compaixto, ou até em banalidades apologeticas sobre a simplicidade e a pureza da vida dos ‘campos. Paternalismo, condescendéncia ¢ banalidades que, no entanto, eram inexoravelmente eficazes como meios de depreciagao da pratica juridica dos risticos (© proprio estatuto dos rusticos, com tudo 0 que de dis- criminaterio contém, &, aparentemente, um estatuto protector ‘cuja nota saliente @ o raconhecimento do cardcter justificativo da ignordncia e da rusticidade. Isto traduzia-se num regime ‘mais favoravel para os risticos, validando actos que de outro modo seriam nulos, admitindo a restituigo em casos onde ou «mal educado». Na época de Dante @ de Petrarca, tanto em verndculo como em latim, stico» equivalia a «burro» ou a «bestae © a expressio, homens rdsticos e bestials> era uma corrente figura de estilo. Simultaneamente, a palavra remetia também para a ideia de simplicidade de espirito, mas uma simplicidade que expunna ‘a0 dosfrute e a exploragao. «Oh! Deus — pode ler-20 num texto sallrico do século XlI—, tu que semeaste a discérdia entre o letrado @ 0 ristioa, concede-nos a graga de vivermos: do sou trabalho, de possuit as suas mulheres, de coabitar com as suas filhas © de festojar o dia da sua morte» (1978: 230). Os juristas recolhem todo este potencial negativo da palavra @, nos seus textos, a equivaléncia entre rustico © ignorante é corrente, fornecendo até, como vimos, a justifica- lo para a especificidade do estatuio dos rusticos. Dai que Sablos © Rusticos 53

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