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INSTITUTO DE ARTES
Mestrado em Artes
São Paulo
2020
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Instituto de Artes
São Paulo
2020
GISELDA PEREIRA RODRIGUES
São Paulo
2020
GISELDA PEREIRA RODRIGUES
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rejane Galvão – Unesp – Orientadora
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli – Unesp
___________________________________________________________________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço a tudo o que vivi até aqui. Mesmo as dores, pois foram as dores que me
colocaram na direção que estou hoje. Foi em busca da cura que iniciei a caminhada que
relatarei aqui.
Agradeço a Exu, que sempre está comigo nos momentos mais difíceis, daqueles
momentos em que você duvida de si e para, diante da encruzilhada. Agradeço a você, Exu,
fundador da comunicação, que me permitiu caminhar e conhecer tanta gente, que me estendeu
a mão em algum momento e me abriu uma porta, uma janela, uma fresta, um feixe de luz, na
caminhada desse mundo que, bem disse meu pai, não é fácil para mulheres negras e pobres.
Assim, agradeço a cada uma dessas pessoas, que em sua maioria foram mulheres, que
me oportunizaram um saber, um livro, uma conversa, um café, uma cachaça, um convite, uma
presença. A vocês eu agradeço.
A minhas tias, que foram exemplos de possibilidades de ser mulher negra nesta
sociedade. Em especial a minha tia Raimunda, que me ensinou o bem sagrado de saber
sambar e amar o samba, a minha tia Railde, por me dar o exemplo de mulher empreendedora.
A minha tia Geni, que habitou mais o meu imaginário do que a vida real, mas me permitiu
sonhar em ser artista. Às avós Germana e Altamira, que, cada uma do seu jeito, inscreveram
sua existência e antecederam meus passos com resistência e muito amor.
Agradeço a Elisabeth Belisário, que me mostrou um novo horizonte de existir como
mulher negra, artista e educadora, e a todas as irmãs que encontrei no Ilú Obá De Min.
A Kiusam de Oliveira, por se fazer exemplo, por desbravar caminhos que tornaram
possível a minha chegada até aqui. A Amanda Carneiro, que releu meus textos para o pré-
projeto de mestrado, que pacientemente decodificou parte desse mundo acadêmico, tão
ilegível para mim.
Agradeço a Nega Duda por criar um Recôncavo em São Paulo e me possibilitar viver
um pouco da Bahia, minha primeira África imagética. Agradeço a Mafalda Pequenino pela
generosidade no início de minha trajetória como atriz profissional e pela generosidade atual.
Agradeço à minha yalorixá, Solange Machado por me ajudar a entender meus
caminhos com a ancestralidade, por me ensinar a cuidar de quem veio antes de mim, para que
eu pudesse estar aqui. Viva minhas e meus ancestrais!
Agradeço a Renata Felinto e a tantas outras mulheres negras acadêmicas que vieram
antes de mim e me ajudaram a construir este lugar de direito de todas nós.
1
Agradeço ao naipe do agogô do Ilú Obá De Min, na figura da Cris Blue, por me
acolher neste momento tão delicado e importante.
Agradeço a Andrea Cavinato, por ter-me colocado numa direção honesta e possível no
início desta caminhada acadêmica. Agradeço a Fábia Nogueira por, em meu início com a
escrita de projetos em arte/educação, ler meus textos, corrigir e me incentivar. Agradeço a
Antonia Matos, por acreditar e me nutrir de boa arte, irmandade e asè, e ser colaboradora
nessa pesquisa. A Mazé Cintra e Sosso Parma, por sempre acreditarem. A Thayame Porto,
pelas injeções de ânimo e boas trocas. A Clarissa Suzuki, pelo apoio em todos os sentidos.
Agradeço aos homens também; são poucos, mas valorosos. A Pedro Neto, meu irmão,
por me alimentar de confiança toda vez que o procurei. A Marcos Felinto e Felipe Torres por,
mais que acreditar na minha Arte, me darem as mãos em momentos fundamentais. A Roger
Cipó, que fez o ensaio fotográfico que compõe esta dissertação e que sempre me inspirou com
sua arte. A meu pai, Joseval, por ter me alertado sobre o mundo e me estimular a continuar
sempre estudando. A meu companheiro e marido, Anderson Pereira Rodrigues, que muitas
vezes pareceu não entender o porquê de tudo isto, mas me apoiou sempre que pôde. A meu
pai de santo, Emerson Thomazini, por abrir a picada na mata.
Agradeço a todas as professoras e professores, coordenadoras, coordenadores, gestoras
e técnicos que me encontraram nas encruzilhadas das trajetórias de luta na educação e
seguiram caminhos possíveis para o combate ao racismo.
Agradeço a minha mãe, Maria Neves, e a minha amiga/irmã/doula Edite Neves, que
me acolheram no puerpério e início da vida de meus pequenos tesouros.
Agradeço a meu pai Xangô por tudo, a mãe Oxum por me refrescar com a água que
tudo cura, e a Oyá, que nunca desiste de mim e de minha família.
Agradeço a cada artista que soma nos trabalhos que realizo para fortalecer nossas
identidades negras. E, por fim, às professoras doutoras Rejane Galvão Coutinho, minha
orientadora, e Rita Bredariolli, por todo o estímulo e fé em minha pesquisa que ambas
demonstraram desde o primeiro dia.
1
RESUMO
Este trabalho parte do princípio de que todas as nossas experiências nos formam; assim, ele
revisita minha trajetória como artista, educadora e mulher negra, destacando os cruzamentos
com o racismo estrutural que me adoeceu psicologicamente, mas me conduziu a formular
perguntas para as lacunas históricas encontradas por mim durante aquela revisitação. Tais
lacunas orientaram-me a tecer novas narrativas sobre as histórias de origem da população
negra na relação com minhas histórias de origem. Disso nasceu um desejo fundamental de
compartilhar essas histórias e fazê-las chegar às crianças, principalmente às que estão no
contexto escolar, e o caminho mais factível encontrado foi por meio da formação das
professoras e professores. Busquei percursos formativos na relação com as culturas e artes
negras, fundamentando esse estudo na tradição oral, nas histórias de origem e na metodologia
de história de vida. Narro a memória dos projetos em formação para professores que formulei
e executei e que foram fundamentais para a pesquisa de campo que aqui apresento. Os mitos
afro-brasileiros e alguns arquétipos de orixás foram a urdidura no tecer dessas memórias,
auxiliando na formulação de sentido e na ressignificação de perspectivas racistas, com o
objetivo principal de fundamentar novas práticas pedagógicas antirracistas.
RESUMEN
Este trabajo parte del princípio de que todas las experiencias que vivenciamos, sirven para
formarnos. De este modo, el trabajo de rever mi trayectoria como artista, educadora y mujer
negra, dando destaque a las intersecciones con el racismo estructural que me enferma
psicológicamente me condujo a formular las preguntas por las brechas históricas que
encontré durante ese proceso de revisión. Tales brechas me orientaron a tejer nuevas
narrativas sobre las histórias originárias de la población negra, en relación con mis propias
histórias de origen. Del resultado de eso, nació un deseo fundamental de compartir estas
histórias y hacerlas llegar a las niñas y a los niños, principalmente a las que están en el
contexto escolar y, el camino más factible que encontré, fué por medio de la formación de
profesoras y profesores. Busqué caminos formativos relacionados con las culturas y las artes
negras, fundamentados en el estudio de la tradición oral, en las histórias originárias y en la
metodología de la história de vida. Narro la memória de los proyectos formativos que he
formulado a los profesores, que he ejecutado y que han sido fundamentales para el trabajo de
campo que les presento aqui. Los mitos afrobrasileños y algunos de los arquetipos de los
orishas, fueron la urdimbre para tejer las memórias, auxiliando la formulación del sentido y la
resignificación de las perspectivas racistas, con el principal objetivo de fundamentar nuevas
prácticas pedagógicas antirracistas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1 HISTÓRIAS INVISÍVEIS: TRAJETÓRIAS FORMATIVAS, HISTÓRIAS DE VIDA
E ARTE ................................................................................................................................... 16
1.1 A oralidade e a memória no processo de formação da identidade cultural ......... 17
1.2 Infâncias, linguagens e narrativas roubadas........................................................... 21
1.3 Os mitos e contos e o racismo religioso .................................................................... 30
2 AS FOLHAS DE OSSAIM: TRADIÇÃO ORAL, EDUCAÇÃO E ARTE .................... 36
2.1 O que contêm as folhas: a arte negra e a religiosidade, resistência e persistência
no existir ........................................................................................................................... 42
2.2 Tornar-se narradora de histórias, o estudo dos mitos e contos ............................. 48
2.3 O reencontro com a palavra viva ............................................................................. 54
2.4 A cabaça Agbalá ........................................................................................................ 58
2.5 O encontro com os baobás ........................................................................................ 65
2.6 A literatura infantojuvenil e as relações com a oralidade ..................................... 69
3 OS VENTOS DE IANSÃ: AS FOLHAS SE ESPALHAM, SABEDORIA
COMPARTILHADA É SABEDORIA VIVA ................................................................... 75
3.1 Caminhos possíveis, até onde o vento alcançar ...................................................... 77
3.1.1 Literatura Negra e Oral, um Tesouro Ancestral ............................................... 78
3.1.2 Ìrètí – Formação em cultura negra para educadores(as) ................................. 81
3.2 Em tempos de rochas, somente a água pode mobilizar .......................................... 84
3.3 Com a coragem de Oyá: vento, ventania, tempestade ........................................... 87
3.4 Da superfície ao mergulho ........................................................................................ 94
3.5 Perdida na tempestade, Oyá que nos conduza ...................................................... 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 110
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 114
9
INTRODUÇÃO
Em 2003, por meio da Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003), foram feitas alterações na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996), que
tornaram obrigatório o ensino de História e Cultura Negra nas escolas públicas e privadas, e o
ensino de arte foi apontado como uma das principais áreas de aplicação. Era o começo de
minha caminhada acadêmica; iniciava uma graduação em Educação Artística, onde nasceu a
inquietação sobre como minha prática pedagógica seria atravessada por essa lei.
Apesar dos cursos de formação inicial de professoras e professores não oferecerem
qualificação para o cumprimento da lei, a formação continuada tem auxiliado na sua
implementação. O percurso formativo de uma professora pode-se dar oficialmente a partir da
graduação, mas é composto por todas as experiências familiares, sociais e culturais. No
desenvolvimento da pesquisa, aprendi a “repensar as questões de formação, acentuando a
ideia de que ‘ninguém forma ninguém’ e que ‘a formação é inevitavelmente um trabalho de
reflexão sobre os percursos de vida’.” (NÓVOA, FINGER, 1988, p. 116).
Assim, minha pesquisa se constituiu em revisitar as memórias de minha trajetória
formativa, considerando família, religiosidade, educação formal e informal, para tecer
relações com as lacunas na formação de professoras e professores sobre o ensino de História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira, tendo a tradição oral preservada nos contos e mitos
tradicionais africanos e afro-brasileiros como principal porta de entrada para a reformulação
de práticas e paradigmas. Portanto, meu objeto de pesquisa é a cultura tradicional oral como
fonte para alimentar práticas pedagógicas antirracistas.
Mas, para esculpir meu objeto de pesquisa que, poderia dizer, tem forma de cabaça
, mergulhei nas lacunas percebidas em minha formação inicial e continuada, e assim criei,
em parceria com outras pesquisadoras, projetos experimentais com a formação de professores
em Arte e Cultura Negra. Os projetos inscritos e premiados no Programa de Ação Cultural
(Proac)1 da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo serão apresentados como espaço de
pesquisa e formulação de conhecimento acerca das dificuldades encontradas no trabalho
formativo com Arte e Cultura Negra, no enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa2.
1
Proac é um programa de incentivo à cultura, que anualmente premia projetos em diferentes frentes da cultura
brasileira. Há linhas de incentivo específicas para projetos em cultura negra e projetos de estímulo a leitura em
bibliotecas municipais.
2
Intolerância religiosa é o termo mais utilizado para designar a ação de exclusão e violência que um grupo ou
pessoa exerce sobre a escolha religiosa de outro. Nesta pesquisa, será também utilizado o termo “racismo
religioso”, que contempla as especificidades brasileiras acerca da intolerância religiosa que está diretamente
ligada à existência e permanência dos cultos de matriz africana.
10
É por isso que todo projeto de formação cruza [...] com a temática da
existencialidade associada à questão susbsequente da identidade (identidade
para si, identidade para os outros) [...] Assim, a questão do sentido da
formação [...] apresenta-se como uma voz de acesso às questões de sentido
que hoje permeiam os atores sociais, seja no exercício da sua profissão [...],
seja nas vivências questionadas e questionadoras de sua própria vida.
E foi desejando fortalecer minhas raízes que passei a recontar minha própria história
de origem; foi na busca das histórias que não me foram contadas que me deparei com essa
necessidade humana de saber sua própria história. Brasileira, negra, paulista, filha de família
nordestina: a história da minha origem é a mesma de tantos outros brasileiros e está
diretamente ligada ao surgimento de gerações com histórias incompletas, mal contadas,
escondidas, pois elas relatam as dificuldades e o sofrimento de parte de uma população que
11
A história sobre nossas origens contada pela educação formal nem sempre colabora
para a valorização das nossas ancestralidades de forma que contemple nossa diversidade. O
direito de conhecer e recontar a própria história é de todo ser humano; os mitos e contos
tradicionais contam sobre nossas origens, promovem em cada pessoa histórias e imagens
diferentes, fenômeno fundador em nossa formação.
Apesar de vivermos a pós-modernidade e estarmos buscando uma nova concepção de
identidade, as ideologias que fundamentam nossa sociedade e orientam a grade curricular da
educação formal ainda são as elaboradas no período em que as relações sociais eram,
principalmente, relações raciais. E, se nossa identidade é definida historicamente e não
biologicamente, sabemos que, sobre a cultura negra, a história contada atualmente narra os
infortúnios vividos na escravidão e mais nada. Nossa identidade é forjada na imagem da
escravidão, do sofrimento e da dor.
Nesta pesquisa, é fundamental que façamos considerações históricas sobre as relações
raciais do fim do século XIX e início do século XX, vinculando-as ao contexto histórico do
ensino de arte nas escolas brasileiras e como esses contextos foram fundamentais para o
modelo de ensino e os conteúdos eurocêntricos das aulas de arte e das demais disciplinas no
ensino formal na cidade de São Paulo.
Após o fim oficial do período da escravidão, propagou-se entre os pensadores
brasileiros, influenciados por teorias desenvolvidas na ciência europeia ocidental, a ideologia
do branqueamento, que nasceu da preocupação da elite em como seria o Brasil como nação e
qual seria a sua identidade nacional, tendo agora os ex-escravizados e os indígenas “livres”.
Os teóricos do período, imersos na ideologia escravocrata, apresentaram uma “estrutura
mental herdada do passado, que os considerava apenas como coisas e força animal de
trabalho” (MUNANGA, 2004, p. 54).
A ideologia do branqueamento difundiu em nossa sociedade a necessidade de
embranquecer a nação, conseguindo a abertura dos portos aos povos brancos da Europa e Ásia
para substituição da mão de obra; porém, para a elite brasileira a possível mistura de brancos
com índios e negros poderia ser a solução para o futuro da nação. A mestiçagem seria o
13
Isso fez com que fosse marginalizado tudo o que estivesse relacionado às
manifestações artísticas de origem negra. E nos processos artísticos brasileiros ela foi
esvaziada de valor, mesmo que muitos artistas, inclusive eruditos, se influenciassem por sua
estética. Essas manifestações e os espaços por ela ocupados tornaram-se ilhas de resistência
da cultura negra, marco de valor identitário.
A educação formal nos dias atuais ainda é herdeira do modelo implantado pelos
jesuítas, que pensa a arte como um meio para catequizar e modernizar outras áreas e que
exclui a arte negra e a indígena. Barbosa (2002, p. 21) fala sobre a presença invisível dos
jesuítas: “Embora ausentes das atividades educativas, eram os ecos de suas concepções que
orientavam nossa cultura quando aqui chegou D. João VI, e [...] suas influências ainda
ressoam entre nós!”. Sendo a escola historicamente um aparelho ideológico do Estado, ela se
estrutura com base nessa concepção.
Ao fim do século XIX, os liberais incluíram como ensino de arte o ensino do desenho,
como “a matéria mais importante do currículo da escola primária e secundária, baseados
principalmente, na influência de Walter Smith. A intenção era copiar os modelos americanos,
ingleses ou belgas sem qualquer preocupação com a cultura nativa” (BARBOSA, 2001, p.
41).
14
A cultura nativa para nós seria a cultura indígena, mas a cultura negra é também
matriz formadora do conceito de nação brasileira, e do mesmo modo foi excluída dos
processos de ensino aprendizagem em arte.
Em minha experiência como professora de artes no ensino fundamental, vivenciei
situações em que o racismo institucionalizado e estruturante, juntamente com a onda de
intolerância religiosa, impediam que promovêssemos práticas que envolvessem qualquer
aspecto da arte e cultura africana e afro-brasileira, mesmo após a edição da Lei nº
10.639/2003, que obriga seu ensino. Direção, coordenação e corpo docente não aceitavam as
propostas com cultura negra, baseados em suas orientações religiosas, que muitas vezes
fortaleciam a ideia de “demonização” e “mal” que permeia o imaginário brasileiro sobre sua
ancestralidade africana.
Em experiências de formação com professoras e professores percebo que, mesmo
havendo a compreensão teórica da importância do ensino da arte e da cultura negra, há
bloqueios que eles não entendem, pois se trata das raízes profundas da cultura racista
brasileira. Ao conhecer a mitologia dos orixás, muitos se encantam pela sabedoria e beleza
contida, mas quase sempre justificam o Estado laico para que essas histórias não adentrem o
contexto escolar, e não refletem criticamente que eles próprios se utilizam de outras
mitologias, também vinculadas a contextos religiosos de outros povos, em muitas práticas
diárias, como o ato de registrar trechos da Bíblia no quadro negro. Ao questionar essa ação
para um grupo de professores de Guarulhos, ouvi que isso era “normal”.
Por essa naturalização do racismo e da intolerância religiosa, professoras e professores
perdem a possibilidade de ampliar seu repertório artístico e cultural e o de seus alunos e
alunas e de recontar suas trajetórias de origem e, consequentemente, quem são e o que ainda
podem ser. Para professoras e professores, vivenciar uma experiência formativa em arte por
meios dos mitos e contos tradicionais africanos e afro-brasileiros pode promover espaço de
reflexão crítica, revisão sobre suas abordagens metodológicas e sobre quais ideologias elas
estão pautadas, além de fundamentá-los para os embates cotidianos com situações racistas e
intolerantes.
A metodologia de história de vida foi o caminho encontrado para acolher a
subjetividade nos processos de formação como fonte de conhecimento para a formulação da
narrativa da pesquisa. Após buscar outros métodos que se aproximavam da experiência como
fonte de pesquisa, ainda sentia limites, pelo fato de a pesquisa ter a trajetória formativa da
pesquisadora como urdidura no tecer dessa narrativa. O caminho entendido para esta pesquisa
foi compreender o racismo, sua existência e suas consequências na vida social e cultural de
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Na formulação das primeiras perguntas que levaram pelos caminhos até aqui narrados,
acreditava que somente as crianças seriam protagonistas; minha maior aflição ao retornar para
o contexto escolar público como professora foi ver diante dos meus olhos, diariamente, muitas
de mim. Meninas e meninos negros colocados à margem, independentemente de seu
desenvolvimento, com pouco olhar sobre sua capacidade criativa. Isso me adoeceu, e me
coloquei em grande angústia ao pensar formas de fazer as muitas de mim ouvirem e saberem
outras histórias sobre sua origem e sua identidade.
Desde o começo compreendi que o contexto escolar seria meu campo de ação, mas
levei mais tempo para entender que as crianças estariam imbricadas na pesquisa, pois é por
elas que busco caminhos para realizar encontros formativos com as professoras e professores;
mas para isso, seria necessário tornar protagonistas dessa narrativa quem as encontra
diariamente e pode promover pequenas revoluções no processo de ensino-aprendizagem.
O contexto histórico das artes e do ensino das artes no Brasil no fim do século XIX e
início do XX apresenta uma perspectiva possível de descobrir parte das histórias silenciadas, e
alimenta essa contranarrativa em busca de recriar imaginários sobre a expressão cultural e
artística negra, africana e afro-brasileira.
A oralidade abre caminho para novas perspectivas e reformulações acerca do valor da
experiência da narrativa, e cede fundamentos na construção de caminhos de formação para
professoras e professores. Reformulações, recontos, costuras e recosturas acerca do
imaginário sobre a existência negra nas Artes e na Educação.
Na experiência com formação de professores, em que mitos e contos tradicionais são
nossa matéria de pesquisa sobre a cultura negra e campo para o exercício da arte de narrar,
deparei com professoras e professores descrentes de sua capacidade narrativa. Tive de
reconhecer que Benjamin (1994) estava certo ao declarar descrença na retomada de nossa
capacidade narrativa.
Ao pesquisar o papel do tradicionalista da palavra (BÂ, 2010) nas sociedades
africanas, vi relações com o papel do professor em nossa sociedade. Mesmo não sendo a
totalidade, há uma convergência no ofício de ensinar. E ao olharmos para a figura desse
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alunos. E, ao emergirem, traziam uma nova percepção, descolavam, empurravam, faziam fluir
e traziam força criadora. Mas nem sempre atribuí a elas a confiança merecida; foi nos
processos formativos com as professoras e em meus processos criativos em arte que passei a
compreender que o que emerge mistura-se às “percepções imediatas” e amadurece uma
formulação iniciada no passado. Assim, meu medo de “o que estou lembrando é real?” ou
“será que o que lembro é o que realmente foi?” desapareceu ao compreender que o
conhecimento se formula dessa relação entre passado e presente, entre experiências vividas e
que ainda viveremos.
Mas, voltando à experiência com os alunos, um menino pelo qual me apaixonei assim
que o vi quando cheguei à instituição escolar, no início dos anos 2000, foi o disparador de
todo o processo que me levou a esta relação em narrar minhas memórias de infância. Primeiro
trocávamos olhares pelos corredores; só depois de alguns anos ele se tornou meu aluno e pude
acompanhá-lo dos seus 6 aos 12 anos. Cruzamos olhares de reconhecimento e identificação: o
menino negro, tímido e com baixa autoestima, numa escola particular da zona norte de São
Paulo. Adorava ouvir meus relatos sobre quando aprendi o que eles estavam aprendendo. Suas
dúvidas, dificuldades e encantamentos com o novo descoberto e experimentado faziam pontes
para minha memória de infância.
Ser uma professora negra e minhas histórias de vida sobre os aprendizados
encorajavam o menino diante de dificuldades e lhe mostravam outros jeitos de aprender. Para
mim, além de saborear algo tão afetivo que emergia espontaneamente ao observar as crianças,
ter vivas as memórias de infância agregou uma habilidade ao meu ofício de professora,
aproximou-me da perspectiva de vida das crianças, o que melhorou muito nossa comunicação
ao longo dos anos. Mas principalmente, colaborou em processos de cura de dores que também
bloqueavam meus processos de aprendizagem. Feridas, em uma menina, sofridas pelo
racismo e pela intolerância religiosa na vida escolar.
A cabelo duro. O nariz de batata. A tiziu. Fedida. Macaca. Macumbeira. Saravá. A
fora do padrão estético estabelecido em todas as mídias, em todos os serviços públicos, em
todas as escolas, em todas as aulas de arte. Da memória nesses processos não emergiam só as
experiências positivas, mas também as que marcaram pela dor.
Revisitei memórias de infância ao lecionar aulas como polivalente e como professora
de artes. Descobri, na trajetória como artista e educadora, que a memória é composta por
muitas imagens, visualidades, recriação de fatos, revivências sensoriais, cheiros, temperaturas,
texturas, sonoridades. Na memória imprimimos imagens produzidas em experiências
significativas, positivas ou negativas.
20
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Nunca se
passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro
lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a
informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da
experiência, quase uma antiexperiência. (BONDÍA, 2002, p. 21)
Se criamos condições para que a experiência aconteça, permitimos que nossa memória
a registre de forma que ela possa ser evocada e revivida no futuro. Uma das peculiaridades da
memória na cultura africana tradicional é a capacidade de “reconstruir o acontecimento ou a
narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do princípio ao
fim, e fazê-lo no presente” (BÂ, 2010, p. 215).
Narrar memórias nos faz reviver experiências que nos marcaram ou nos imprimiram
aspectos de nossa identidade cultural e nos são tão valiosas que somos capazes de narrá-las
com riqueza de detalhes, sentindo o que se sentiu no dia e incluindo quem escuta na nova
experiência, que se torna coletiva.
A memória, a formação e nossa identidade cultural estão diretamente ligadas na
perspectiva desta pesquisa, pois Hall (2011), ao ampliar a identidade na pós-modernidade,
ilumina o entendimento de que somos resultado de toda a experiência por nós vivida em
diferentes campos de nossa vida, assim como Bosi (1979, p. 17) indica que a “memória do
indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola,
com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência
peculiares a esse indivíduo”. Ambos entendem que ampliar espaços para a memória no
presente pode trazer experiências formativas mais completas e significativas, em que os
protagonistas sintam-se parte e reinventem-se como tecelões, criando uma história no presente
que considere também as histórias não contadas pelas histórias.
Sigo na direção apontada por Bâ e as culturas tradicionais africanas: incluir nos
processos formativos com professores o exercício constante com a memória, para quem sabe
pararmos de usar a frase “o brasileiro não tem memória” e nos tornarmos capazes de
“reconstruir um acontecimento [...] em sua totalidade” (BÂ, 2010, p. 11), dando à memória o
altar merecido. Na perspectiva das memórias da afrodescendência faremos contato com
nossas dores, com as dores ancestrais das nossas histórias, dores que silenciam tantas
21
narrativas do nosso passado. Mas ao encará-las talvez sejamos capazes de dar altar às
memórias de sabedoria, de descobertas e grandes feitos.
No último ano em que estive como professora com o menino, fui homenageada por ele
em um DVD produzido pela escola, com diferentes alunos que deram depoimentos sobre
todas as professoras da instituição. E foi ele quem falou de mim. Tímido, disse o que só o
tempo me faria entender, como a chave para uma nova perspectiva de prática pedagógica e de
pensamento criador: ele disse que eu contava histórias que o ajudavam a aprender melhor e
que, apesar da minha braveza, era uma professora que o fazia rir.
Na época em que vi o DVD pela primeira vez ainda não compreendia, pois não me via
contando histórias da forma como o mercado cultural nos ensina. Mas a trajetória ajudou-me a
ressignificar o enigma. Eu contava histórias da minha infância, da aluna, da filha, narrava
histórias da trajetória como aprendiz. E a nova trajetória como professora que se iniciaria
ganhou novo sabor, novo sentido.
Em 2008 assumi dez turmas em uma escola pública na mesma região daquela escola
privada na zona norte de São Paulo. Mas ali vi muito mais alunas e alunos negros, professoras
e funcionários. Dentro de mim pulsava ainda mais forte o desejo de construir novas práticas
pedagógicas e transformar as já experimentadas. Guardava secretamente o orgulho de trazer
coisas que descobri no mundo de volta para o lugar de onde saí: a escola pública.
Na minha primeira semana de aula estava realmente feliz com meu trabalho de
professora de artes para alunas e alunos do ensino fundamental I. Passava por uma fase mais
madura profissionalmente e isso facilitava a relação com as crianças e me ajudava a
aprofundar as práticas em que acreditava.
Em 2006 fora promulgada a Lei nº 11.274, que estabelecia o ensino fundamental de
nove anos, e era o primeiro ano de aplicação da lei naquela unidade escolar. Chegavam à
escola crianças vindas da educação infantil; muitos ainda não tinham 6 anos completos.
Estava tocada e queria acolhê-las de alguma maneira, lembrava-me do medo e do frio que
senti ao entrar na “escola grande” aos 7 anos.
Sabia que não poderia mudar essa transição, que é sempre um tanto abrupta, mas
desejava recebê-los de forma afetuosa. Preparei brincadeiras e jogos cantados da cultura
tradicional brasileira, fizemos grandes rodas no pátio, cantamos, dançamos, rimos e nos
apresentamos. Recebemo-nos para um longo ano que estava apenas no início.
22
Ao fim da primeira semana, fui parada no corredor da sala dos professores e fui
informada pela vice-direção que o diretor não aprovava minhas aulas: “Aula de artes é na
sala, com o caderno de artes... Além de que o barulho atrapalha as salas que estão no
processo de alfabetização”. As aulas de artes nessa escola assim como em todas em que
eu trabalhei tinham total indicação de que o que seria ensinado seriam as Artes Visuais.
Nada era dito objetivamente, mas era subentendido.
A história do ensino das artes no Brasil se inicia com o ensino do desenho. No
período pós-abolição e com a chegada da República, o cenário político e intelectual se
agitava. Barbosa (2015) nomeia de “virada industrial” ou “virada da alfabetização” o
momento em que o discurso da elite intelectual e econômica era sobre o progresso
econômico:
Quando compreendi esse discurso ainda vivo nos tempos atuais, também identifiquei
um mecanismo do racismo atuando, privando-nos de construir um ensino em arte mais plural,
que se identificasse com nossas expressões artísticas e culturais, feitas no coletivo, em que as
linguagens artísticas dialogam e criam expressões genuínas de nossa identidade.
De todo modo, sempre foi um esforço tentar corresponder a essas expectativas na
realidade do ensino das artes. Tendo como campo de expressão artística a Música, a Dança e
as Artes Cênicas, sendo artista em mais de uma linguagem, sentia-me em uma gaiola devendo
ensinar somente as Artes Visuais. O ensino de artes no senso comum de direções e
coordenações escolares estava subentendido como o ensino do desenho; o corpo como
experiência artística gerava espanto, desconfiança. A arte, para muitas das minhas colegas
professoras, era algo complicado de lidar para poder ensinar. Porque, afinal, o que era arte?
Quando realizava propostas com cultura negra e indígena, a pergunta era: “Isso é arte”?
Ouvi isso de muitos alunos e alunas, em muitas reuniões pedagógicas, com famílias,
com direções escolares. Falta conhecimento sobre Arte na Educação? Talvez, mas falta
principalmente uma formação para gestores e demais profissionais da Educação que trate das
artes em todas as suas linguagens e perspectivas culturais. Nessa construção do que se ensina
nas aulas de artes, na realidade vivida nessa trajetória com as escolas públicas e privadas,
23
No fim do século XIX, no Brasil, o que se buscava era uma identidade nacional; havia
um pessimismo difundido pela intelectualidade da época, que enxergava a produção pré-
24
existente como deficiente e causadora de atrasos que impediriam o Brasil de ter uma arte
nacional à altura dos padrões estabelecidos pela Europa. Críticos de arte do período, como
Gonzaga Duque (1863-1911), deixaram registros desse pessimismo que apontava para um
futuro incerto para a criação de uma arte brasileira.
A partir do olhar desta pesquisa, que busca fragmentos de uma história não contada
nas narrativas dos dominantes que registraram a historiografia oficial, a vivência com o corpo
que dança, canta, toca e encena dentro de festejos, como as festas do Divino, do Rosário e do
Espírito Santo, foi fundamental para a resistência e a permanência da forma de existir de
nossa ancestralidade negra num processo de colonização. O corpo era meio de expressão tão
25
aquela escola, as datas comemorativas que também orientam muitas instituições para o ensino
de arte estavam sob a minha responsabilidade. Então aproveitei a oportunidade do dia das
mães e produzimos um cartão que na frente dizia: “Aqui dentro está meu maior tesouro!”.
Para o interior do cartão, como continuação do trabalho sobre autorretrato, estávamos há
algumas aulas criando um retrato da mãe com lápis grafite, lápis de cor e papel sulfite.
Desde a primeira aula com essa proposta, chamou-me a atenção a representação de um
dos alunos: um menino negro com a cor de pele mais escura, um negro cor do céu da noite,
menino de algumas banguelas. Tinha o cabelo crespo bem raspado e assim mostrava mais a
perfeição do contorno de sua cabeça. Todos os dias ele vestia a mesma roupa e o mesmo
chinelo, e o mesmo sorriso brilhante de estrelas.
Era o aluno rotulado daquela turma. Eu ouvia sempre de sua professora que ele não
fazia nada direito, e ele sorria por fora, mas por dentro nós nada sabíamos. Nessa época eu
morava perto da escola e por vezes encontrava algumas crianças com seus cuidadores ou
cuidadoras fora do horário da aula, e todos os que encontrei da família do menino de sorriso
de estrelas eram, em sua maioria, negros de pele escura. Vi o menino com sua mãe poucas
vezes, mas não a esqueci, pois me vi nela: uma mulher negra, de pele escura, cabelos alisados
quimicamente, mas sem a custosa manutenção.
Mas o sorriso de estrelas me trazia, aula após aula, a representação de uma mulher
branca com cabelos loiros. Questionei diversas vezes, e todas as vezes ele afirmou que aquela
era a sua mãe. E foram tantas idas e vindas que o sorriso perdeu as estrelas e eu entendi que
era hora de parar, pois não sabia mais como seguir.
Foi esse o marco na minha trajetória como educadora que me fez parar para investigar
o porquê de um menino negro, com uma relação de amor com sua mãe, não a representar
como uma mulher negra, mas como o padrão por ele visto em todos os meios de educação e
comunicação. Precisei então buscar ajuda, pois adoeci psicologicamente. Desenvolvi uma
síndrome muito comum entre professoras e professores, a Síndrome de Burnout, um estado
crônico de fadiga diretamente ligado ao esgotamento com o trabalho. Senti-me esgotada, não
com a relação com as crianças, mas com a relação institucional e com o racismo estrutural.
Foi então que me afastei das salas de aula e passei a descobrir pistas da pesquisa que hoje
realizo.
Quanto mais investigava na direção das pistas que os dois alunos negros haviam me
dado (prática educativa pautada em memórias afetivas da aprendizagem, narrativas de vida,
narrativas de histórias), mais me aproximava da memória do quanto o racismo me fez
acreditar ser incapaz no contexto escolar, como aluna e como professora. O quanto nos foi
28
furtado ouvir e ler histórias de nossa ancestralidade, para além da escravidão, e ouvir e ler as
histórias da ancestralidade negra escrita e narrada por seus protagonistas, e não pelo
colonizador. Nas escolas, a narrativa sobre a origem negra conta sobre sofrimento, dor e
submissão. Não contou para minha geração sobre heroínas e heróis, inventores, escritores,
pesquisadores, as e os notáveis na história da cultura negra africana e afro-brasileira.
Conhecer os caminhos percorridos pelos ancestrais dos quais eu descendo
culturalmente, mas principalmente pelo fenótipo herdado, que define parte da minha trajetória
nessa sociedade colaborou para o processo de formação de minha identidade cultural e me
fortaleceu. Passei a me posicionar socialmente tendo como premissa minha origem ancestral.
Segundo Bâ (2013, p. 11), uma criança criada na cultura tradicional africana, que tem
a oralidade como enraizamento e disseminação do conhecimento, recebia estímulos para
“observar, olhar e escutar com tanta atenção que todo acontecimento se inscrevia em nossa
memória como cera virgem”. O autor nos conta que toda uma geração de africanos criados
nas culturas tradicionais tornava-se capaz de narrar uma experiência com riqueza de detalhes.
Mestres como Bâ, que em vida e morte são a memória de conhecimentos milenares não
pautados na escrita no modelo europeu ocidental.
Mas nós, negras e negros brasileiros, não podemos assim descrever as memórias de
nossas origens, histórias que são fundantes para um ser humano. Nossos ancestrais deixaram
histórias preservadas na tradição oral em espaços sagrados de culto como os terreiros de
candomblé, as diversas comunidades culturais negras, os núcleos familiares, mas muito foi
apagado, e ainda é.
Atualmente, artistas negras e negros de diferentes áreas, inclusive das Artes Visuais,
alguns com base no que foi preservado nos espaços de culturas tradicionais, mobilizam-se
para recontar, reescrever, recriar, preencher lacunas, criar pontes e reconstruir a narrativa
sobre nossa origem e sobre nossa permanência.
No começo do século XIX, no Porto Ajudá, na cidade de Uidá, meus e minhas
ancestrais africanos que foram escravizados pela colônia portuguesa, antes de embarcarem
29
35 alunos, dos quais mais de 70% eram crianças com o fenótipo negro. Quem nos ensinou que
há um lápis de uma única cor para representar a pele? Foi um professor de arte? Foi a
reprodução sem crítica? Foi o olhar naturalizado sobre o que é belo nas artes?
No fim do século XIX surgem os primeiros artistas visuais negros minimamente
reconhecidos pelo meio artístico, como Estevão Silva (1844–1891) e Arthur Timótheo (1882–
1922), “que abrem caminho para outros artistas e que representam a si e à sua cultura”
(FELINTO, 2011), e passam a trazer a pessoa negra representada com dignidade e
humanidade. Mas, anteriormente ao surgimento de artistas que dialogavam com o conceito e a
técnica das Artes Plásticas/Visuais ocidentais, havia desde o início do século congos, jongos,
maracatus e muitas expressões artísticas e culturais nas comunidades e terreiros Brasil afora.
No mesmo período em que a Missão Francesa circulava pelo território e propunha
projetos para uma arte nacional, nas senzalas e quilombos pulsavam expressões artísticas e
culturais, avaliadas como algo de baixo valor, mas que na contemporaneidade servem de
entretenimento para uma classe média que usa a cultura popular como estandarte de não
racismo, de não intolerância, embora fora dessa experiência estética não se questione sobre
seus privilégios e suas relações raciais com seu entorno.
Foram ignoradas e propositalmente excluídas da historiografia oficial produções
artísticas negras e indígenas, mas elas se tornaram ação de resistência cultural, atravessaram
os séculos e permaneceram na memória até as gerações atuais, apesar de, para a grande
maioria do meio acadêmico, artístico e educativo, esta ser uma história invisível.
Ainda hoje, o ensino de arte ignora, além das diferentes linguagens, a diversidade
cultural que nos tornou brasileiras e brasileiros. Quantas professoras, ao fim de palestras sobre
a cultura negra e a educação, procuravam-me preocupadas, questionando se o que eu
propunha era a substituição da cultura europeia pela cultura negra no currículo. Apesar de
tentadora, não é essa a proposta do movimento negro educativo; o que propomos é expandir
perspectivas sobre o mundo, agregar valores e saberes desprezados até então. É somar na
formação de crianças, jovens e adultos, com suas histórias de origem negra e indígena,
resgatando-as da marginalidade e devolvendo a dignidade que lhes foi roubada no processo de
escravização e colonização.
conjunto com estruturas sociais como a mídia, formadora do conceito do belo e do aceitável.
Fingir não ver e ouvir os embates dos alunos e alunas sobre suas representações, sobre a
imposição do lápis cor de pele, torna-nos coniventes com o racismo.
Após a experiência com o aluno de sorriso de estrelas, afastei-me oficialmente da sala
de aula, pois encarar o racismo como professora adoeceu-me psicologicamente, e então decidi
buscar aprofundar-me no assunto para, talvez, conseguir retornar à sala de aula. No entanto,
quando comecei a estudar e procurar respostas sobre a origem da doença o racismo estrutural
na Educação , percebi que no estudo dos contos e mitos tradicionais fazia contato com
narrativas que devolviam ao meu imaginário possibilidades de reconstruir a autoimagem e
encontrar outra possibilidade de cura ancestral.
Reformular possibilidades de descendência para além da escravidão, imaginar-me
descendente de sabedores de conhecimentos diversos, conhecedores da natureza, fazedores de
conhecimento científicos e artísticos, abriu um novo horizonte de futuro, que me trouxe até
aqui, devolveu-me a autoestima necessária para um ser humano fazer escolhas saudáveis e
produtivas. Acreditar em nossa própria capacidade nos impulsiona em direções que podem
proteger nossa descendência, proteger o futuro daqueles que ainda nem estão por aqui.
Em 2011, passei a oferecer palestras e cursos para professoras e professores da
educação infantil ao ensino médio e compartilhar experiências como educadora e artista da
narrativa, acreditando que poderia ofertar às crianças essa possibilidade de futuro, devolver-
lhes, com a experiência artística da mediação ou da narração de histórias, o direito a um
imaginário diverso, plural e que contemplasse sua própria existência.
Ofertar essas experiências para professoras e professores é também uma busca pela
cura, não só da criança que fui, mas da professora. Tratar as dores vindas pelo fazer diário
numa instituição escolar, acolhendo professoras e professores que desejam buscar novas
práticas, para que elas acolham crianças, vem curando e lavando com água fresca as feridas
ganhas no combate.
O receio de que tal pesquisa inicialmente não contemplasse a criança diretamente foi-
se diluindo ao perceber o quanto seria potente esparramar sementes, auxiliar no adubo e no
tratamento da terra que vai recebê-la. A criança está viva em cada encontro que estou, ela se
faz presente ou se expressa pela criança que um dia cada adulto foi.
Os contos e mitos africanos e afro-brasileiros tradicionais são fontes infinitas de
conhecimento sobre uma cultura que nos forma, trazendo nova luz para nossas ocidentais
mentes, sobre a infância e sobre a velhice. Para a maioria de profissionais da Educação que
encontrei, são desconhecidos e cobertos de estigmas e preconceitos. Contudo, desde o menino
32
de sorriso de estrelas, foram uma porta de entrada para dialogar sobre a cultura africana e
afro-brasileira e sobre as práticas de ensino adotadas na educação contemporânea.
Este argumento quase sempre fazia o grupo de professoras entender que há algo a mais
na dificuldade em conhecer e levar as histórias dos orixás para a sala de aula. O que as impedia
está fundamentado no racismo estrutural existente em nossa sociedade desde os primórdios. O
que as impedia era o medo de ter de lidar com o racismo que engessou, no imaginário
brasileiro, a ideia de que tudo que está ligado à cultura negra é para fazer o “mal”.
Por algum tempo, tendi a acreditar que esse medo que sempre apareceu nos debates
com professoras sobre a não inclusão das culturas negras nas práticas pedagógicas estava
ligado ao desconhecimento, ao medo do que não se conhece. Porém, a cada experiência
34
formativa vivida, compreendia que o medo na verdade sempre esteve relacionado com a
tradução de bem e mal feita pelos colonizadores ao entrarem em contato com as culturas
tradicionais africanas.
Caberia um capítulo somente para discutirmos o sentido de bem e mal das culturas
tradicionais africanas, das quais descende a cultura afro-brasileira. Essa ideia fundamentada
no conceito cristão ocidental de bem e mal que se deu quando conheceram a divindade Exu.
“Por se tratar de uma entidade associada à sexualidade e à fertilidade, seu culto de origem
africana, quando descoberto pelos europeus séculos atrás, foi alvo de preconceitos e mal-
entendidos. Sua demonização foi inevitável, tanto na África quanto nas Américas” (SILVA,
2015, p. 17).
Exu, divindade do panteão iorubá que aparece com diferentes nomes em distintas
culturas africanas, como a banto e a fon, é responsável pela comunicação, pelos caminhos, e é
quem mais se assemelha aos seres humanos por sua capacidade de adaptar-se e tornar
favorável qualquer situação. Exu foi sincretizado pelo colonizador com o diabo, símbolo, na
cultura cristã ocidental, de toda a maldade na existência. Esse sincretismo espalhou-se por
todo o olhar sobre as culturas e artes negras lançado pela elite econômica, artística e
intelectual.
Apesar de ao fim das palestras/cursos a maioria das participantes aparentar reconhecer
o valor dos mitos e contos como matéria rica para a sala de aula, poucas se atreveriam a
encarar suas instituições, com gestões que se pautam no cristianismo. Em uma formação na
cidade de Guarulhos, com um grupo visivelmente incomodado pela questão levantada sobre o
racismo religioso, tomou coragem uma professora e disse que, ao escrever salmos todos os
dias na lousa ou cantar cantigas religiosas nas aulas, estava fazendo o “bem” para seus alunos
e alunas, mas contar histórias afro-brasileiras, conhecer a obra de Carybé, estudar o maracatu
pernambucano, seria má influência para eles.
Quanto uma única expressão da cultura negra poderia contribuir para o ensino das
artes na escola? Um mito dos orixás apresenta símbolos, vestimentas, cores, texturas, músicas
e danças, como a maioria das expressões tradicionais negras, que são múltiplas, com
interfaces e linguagens que se inter-relacionam.
Mas, nessa trajetória de quase dez anos com formação em cultura negra por meio dos
mitos e contos tradicionais para professoras e professores de arte e de outras disciplinas,
testemunhei também grandes avanços. Professoras que se descobriram negras, que se
aceitaram como negras, que revisitaram a própria história familiar, cheia de exclusões e
apagamentos no que se referia aos parentes negros. Pude ver professoras se aprofundarem no
35
estudo da cultura negra e mudarem sua prática educativa, tornando-a mais diversa, criativa e
inclusiva.
O estudo da cultura negra possibilitaria que professoras questionassem sua relação
com o racismo e com suas histórias de origem; poderia colaborar para a reconexão com a
capacidade narrativa e para a ampliação de práticas artístico-pedagógicas.
Mas, como chegar a uma prática formativa para professoras contemplando o diálogo
com o racismo por meio das artes? Foi olhando para esse horizonte que redesenhei as
formações por mim propostas. No terceiro capítulo descreverei os projetos formativos criados
que me conduziram à pesquisa de campo que será apresentada.
36
Uma armadura pesada e dourada eu usava quando ouvi da preta velha Maria Amélia a
possibilidade de ser folha leve voando ao vento. A experiência de crescer sendo uma menina
negra, pobre e periférica agregou ao meu corpo a imagem de uma armadura, dura e resistente,
para proteger minha integridade do racismo estruturante. Mas essa imagem da armadura
construída em meio às experiências sociais na infância e juventude também me trouxe muito
peso. Xangô, orixá designado a mim como representante maior de minha ancestralidade
africana, carrega pedras e as joga em sua dança. Às vezes são pedras de fogo, às vezes, pedras
de raio, tudo depende do que ele ataca ou defende.
E foi com esse peso que cheguei a uma festa de pretos velhos, tradição comum em
terreiros de umbanda e alguns candomblés. Pretas e pretos velhos seriam nossa ancestralidade
mais próxima, encantados que viveram os flagelos da escravização e hoje vêm a terra orientar
a nós, seus descendentes diretos. Era o começo da minha caminhada no candomblé, quando
Maria Amélia, a preta velha da minha iyalorixá4, surpreendeu-me com a epígrafe de abertura
deste capítulo. E, somente com essa frase, ela me abriu um mundo de possibilidades de ser e
existir, onde eu poderia ser leve como as folhas das plantas e poderia me deixar conduzir pelo
vento. Essa nova possibilidade trouxe-me um novo caminho, onde minhas lutas já não
precisariam ser somente jogando as edùn-àrá, as pedras de fogo ou raio de Xangô, o que me
levava a embates nos contextos profissionais e pessoais que quase sempre resultavam em
rompimentos. Sendo folha conduzida ao vento, estaria entregue à natureza e poderia chegar,
com minha militância, a espaços até então inalcançáveis pelas pedras.
A imagem das folhas ao vento também remete a minha experiência da infância. Vivi
numa casa com um gigantesco quintal, cultivado pelas mãos de minha mãe, que plantava
ervas, flores e árvores frutíferas, construía brinquedos e balanços em nosso majestoso
abacateiro. Cresci solitária nesse quintal, com um irmão oito anos mais velho e uma rua cheia
de crianças, mas um pai severo que não permitia à menina brincar. Mas brinquei e passei
muitas e muitas horas a observar as folhas que voavam e seguiam para outros quintais.
3
Preta velha Maria Amélia na festa às pretas e pretos velhos, em 2012.
4
As palavras presentes no vocabulário afro-brasileiro das religiosidades de matriz africana serão apresentadas
não em iorubá, mas na grafia mais recorrente utilizada por sacerdotes pesquisadores.
37
Na fase adulta, acreditei não ter nada a ver com essa habilidade de cultivar plantas,
mas sempre vivi experiências de reconexão ao entrar em contato com a natureza. Por crescer
numa periferia que nos anos 1980 trazia características rurais, a São Paulo mais urbana nunca
me trouxe a sensação de estar em casa; ao me tornar adulta, só fazia contato com o sentimento
de estar num lugar de identificação quando estava em espaços minimamente arborizados e
com trechos de terra, mesmo que pequenos.
A experiência de reconexão com essa criança que brincou com os bichos e que
passava o dia em meio às plantas foi imediata ao ouvir as palavras da sábia preta velha.
Apesar de imediata, ainda era frágil, e só com o passar do tempo e na relação com as
elaborações feitas no decorrer da pesquisa e da escrita da dissertação foi que a reconexão se
fortaleceu, e hoje a considero fundamental na constituição de minha identidade cultural. A
infância reservou-me boas memórias dos dias passados ali no quintal.
Durante uma aula que fazia como ouvinte na pós-graduação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), a professora doutora
Regina Machado fez uma provocação sobre o estudo das partes de um conto ou mito à
escolha. Escolhi o mito de Ossaim e suas folhas, reflexo da experiência descrita acima.
Sempre me interessei por saber um pouco mais sobre as histórias desse orixá envolto em
mistério. Pude ouvir poucas histórias suas pela tradição oral, por meio de alguns mais velhos
do candomblé, e também as li em alguns registros existentes.
Ao estudar e narrar os mitos de Ossaim, reconecto-me a experiências de relação com a
natureza e com as plantas que me recordam como podemos ter infâncias mais saudáveis, em
contato com a capacidade da natureza de nos manter em relação com o que é vivo e fazer com
que nos percebamos como somente parte de um grande universo. E essas memórias, quando
ativadas, fazem-me lembrar de que sou parte, uma pequenina parte, de uma ancestralidade
milenar, que me torna parte de uma grande história.
No tempo da escolha do estudo do mito estava ainda construindo meu primeiro projeto
de pesquisa, por isso acabei fazendo relações metafóricas com meu desejo do quê e como
pesquisar, e hoje esse mito inspira e direciona aspectos importantes da pesquisa. Por isso o
apresentarei no decorrer deste capítulo e dos seguintes, e o que aqui conheceremos é o
resultado do estudo na oralidade e na literatura pautada na oralidade, não havendo, portanto,
uma única fonte, pois ele aqui é o meu reconto do mito de Ossaim e as folhas.
Comecemos, então. Num tempo em que divindades/orixás e humanos conviviam no
Ayê, na Terra, dentro da floresta mais profunda que hoje está entre a Nigéria e o Benin, vivia
sozinho Ossaim, divindade iorubá que conhecia as folhas como ninguém. Não era homem de
38
grandes encontros, e sim de poucas e raras amizades. Dedicava-se ao culto das folhas, suas
parceiras confidentes; buscava compreender a magia contida em cada uma, encantava-as
cantando e agradando a elas.
Assim, Ossaim é o dono de todas as folhas, com elas cura os males do corpo e do
espírito. Ele guardava sozinho saberes científicos medicinais milenares, preservados no
universo profundo da tradição oral. Ele havia construído sua casa dentro do tronco de uma
grande árvore milenar; enfeitou-a com folhas e raízes, sua casa cheirava a lavanda, jasmim,
hortelã e alecrim. Quase ninguém visitava Ossaim por ele ser misterioso; todos tinham um
misto de medo e respeito. Seres humanos e divindades só o procuravam e superavam seu
medo quando não havia mais jeito, pois Ossaim curava como ninguém os males do corpo, da
mente, do espírito e do coração.
Mas quem procurava por Ossaim sempre encontrava ajuda. Ele não sabia receber as
pessoas nem lhes ser agradável; quando procurado, abria uma pequena fresta em sua porta,
olhava no fundo dos olhos de quem o solicitava e já sabia o que seria melhor. Entregava-lhe o
chá, a emulsão, a pomada, o unguento, o banho ou a beberagem, e em poucos dias, se tivesse
seguido as orientações de Ossaim, a pessoa encontrava a cura para o que a afligia. E assim o
mestre das folhas tornou-se famoso entre todos os iorubás e demais povos do entorno.
Apesar da fama de mal-humorado, Ossaim conquistava a todos com sua
sabedoria/magia. Ossaim sabia como encantar as plantas com cantigas e rezas. Cada folha era
tratada por ele como única, elas eram respeitadas e agradadas, havia o tempo da delicadeza
para lidar com elas, e elas então entregavam a ele toda a sua capacidade curadora.
Mas essa fama de Ossaim incomodou outras divindades que também viviam no Ayê.
Xangô, rei da cidade de Oyó, divindade do fogo, dos raios e que preserva a justiça, não
achava justo que somente Ossaim tivesse a sabedoria e o conhecimento dessa tradição.
Decidiu entrar em disputa com Ossaim para ele e os outros orixás também terem essa
sabedoria.
Se esse mito se passasse no contexto da realidade ocidental, talvez essa disputa jamais
aconteceria. A oralidade foi pouco considerada como fonte de conhecimento para a visão do
colonizador europeu. Desde o primeiro contato em território africano, o colonizador teve
como medida de valor sobre as culturas seu registro escrito, de acordo com a lógica ocidental.
Julgou inferiores as culturas africanas fundadas na oralidade, mas se esqueceu de que a
cultura gráfica tem uma origem, e nasce da relação humana com a existência; ela vem do som
e da imagem produzidos na interpretação do ser humano sobre a vida.
39
5
“Assim a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram
sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados
inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade.
40
No Brasil dos séculos XIX e XX, Ossaim não teria sua sabedoria disputada; seria tido
como macumbeiro6, que no imaginário popular é aquele que faz feitiço para o mal. O
macumbeiro é fruto da fantasia cristã que demonizou toda e qualquer prática ou rito que não
seguisse seus padrões. Ossaim sofreria racismo, intolerância e provavelmente seria dado como
louco. Ele só teria valor, assim como nossas práticas culturais e religiosas, se estivesse a
serviço da branquitude, ou do próprio colonizador, que o usaria como um adorno exótico ou
um ser diferente a ser exposto como um animal em um zoológico, apartado de seu habitat,
mas a serviço do entretenimento e do prazer de quem o domina.
Em períodos festivos como o carnaval, nós somos o país que se autodeclara uma
democracia racial:
Talvez aqui Ossaim tivesse sua sabedoria apropriada com outro nome e veria
demonizarem o nome original, inferiorizando-o e excluindo-o da categoria de conhecimento,
de ciência. Mas o colonizador e o colonizado usariam muito sua sabedoria, pois no fundo sabe-
se o valor contido na oralidade dos povos tradicionais.
Apesar de que provavelmente Ossaim seria rotulado como macumbeiro ou louco no
período da escravização e colonização e também nos tempos atuais , intuo que ele nunca
duvidaria de sua sabedoria e do valor nela contido, pois, assim como nossos ancestrais
escravizados, Ossaim tinha seus fundamentos na oralidade, com raízes profundas que jamais
seriam, como não foram, esquecidas. Pois a experiência vivida com a oralidade coloca o
sujeito em outra relação com a vida e o conhecimento formulado nas experiências. “Fundada
na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em virtude
disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a
alma africana.” (BÂ, 2010, p. 170)
A colonização na África e no Brasil fez reféns todos os conhecimentos tradicionais,
bens culturais materiais e imateriais, e difundiu a ideia de que a cultura tradicional seria algo
Portanto, para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de
poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram.” (SCHUCMAN, 2012, p. 23)
6
Denominação utilizada de forma pejorativa quando se quer dizer que uma pessoa é de religiões de matriz
africana. Na visão do senso comum de gestores, professoras, crianças e adolescentes com os quais trabalhei,
uma pessoa que faz macumba o faz para o mal de alguém.
41
mitos, as cantigas entoadas por vozes e acompanhadas por tambores, ferros e xequerês. Há
muitas variações; aqui apresentarei a construção do candomblé a partir de minha experiência
no candomblé nagô egbá e na narrativa construída por Prandi e Vallado (2010).
Xangô teria sido o quarto rei da cidade de Oió, o mais poderoso dos impérios
iorubás. Depois de sua morte, Xangô foi divinizado, como era comum
7
Desconhece-se sua imagem, não existem retratos da rainha elaborados em vida. Uma imagem de 1769, para a
obra Zingha, reine d’Angola, de Jean-Louis Castilhon, mostra a rainha de perfil com um olhar recatado, que
em nada corresponde ao perfil guerreiro dessa líder política africana. Informações disponíveis em:
https://www.geledes.org.br/nzinga-a-rainha-negra-que-combateu-os-traficantes-portugueses/. Acesso em: 20
jan. 2020.
44
acontecer com os grandes reis e heróis daquele tempo e lugar, e seu culto
passou a ser o mais importante de sua cidade, a ponto de o rei de Oió, a
partir daí, ser o seu primeiro sacerdote. (PRANDI, VALLADO, 2010, p.
141)
Após Xangô se encantar e retornar ao Orum, o mundo espiritual, seu culto ganhou
força e atravessou os séculos por meio da oralidade.
[...] o poderio de Oió foi destruído no final do século XVIII por seus
inimigos [...] e os povos iorubás se transformaram em caça fácil para o
mercado de escravos. Foi nessa época que o Brasil, assim como outros países
americanos, passou a receber escravos iorubás em grande quantidade. [...]
Vinham de diferentes cidades, traziam diferentes deuses, falavam dialetos8
distintos, mas tinham todos algo em comum: o culto ao deus do trovão, o obá
de Oió, o orixá Xangô. (PRANDI, VALLADO, 2010, p. 145)
8
Na perspectiva desta pesquisa, referir-se às línguas faladas no continente africano como “dialeto” é mais uma
tentativa de esvaziar de valor o conhecimento tradicional, validando como língua somente a trazida pelo
colonizador.
45
O candomblé foi e ainda é resultado de muita luta de resistência para que nós,
descendentes de africanas e africanos, existíssemos com dignidade e respeito e tivéssemos a
oportunidade de fazer contato com essa herança. Apesar de não ser visto por alguns sequer
como uma religião, o candomblé e as religiões de matriz africana que ganharam outras
denominações Brasil afora extrapolam a ideia de serem somente uma comunidade religiosa.
Em 2013, um grupo de lideranças de matriz africana lançou, junto à Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do governo federal, o I Plano Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, que
pretendia agir interministerialmente “para garantir direitos, efetivar a cidadania, combater o
racismo e a discriminação sofrida pelos povos e comunidades tradicionais de matriz africana”
(BRASIL, 2013, p. 16). Esse plano consolidou dentro das políticas públicas o conceito de que
somos um povo, somos uma comunidade que preserva tradições repletas de sabedorias que
envolvem o saber existir de forma sustentável, em relação direta com a natureza. Mas esse
conceito não teve o tempo suficiente de chegar até o imaginário comum da população; apesar
de ainda haver luta, estamos em pleno desmonte visando à permanência daquele imaginário,
que esvazia de valor as práticas ancestrais milenares que fundamentam nossa cultura afro-
brasileira.
Foi também na experiência artística que tomei contato com a religiosidade de matriz
africana, pois artisticamente o bloco Ilú Obá De Min recria práticas com a música e com a
dança votiva dos orixás; por isso fui pesquisar em uma casa de candomblé que orienta o bloco
espiritualmente: o Abassá de Xangô Agodô e Odé Erinlé, na Vila Barros, cidade de
Guarulhos. O que inicialmente foi motivado pela pesquisa em arte, posteriormente se tornou
uma pesquisa sobre minhas histórias de origem.
No candomblé tradicional, as comunidades sempre nascem ligadas a uma comunidade
mais velha, o que chamamos de “raiz do terreiro” ou casa matriz, que em alguns casos são as
primeiras comunidades fundadas pelas mãos de nossa ancestralidade africana. “Hoje, também
é comum um terreiro identificar-se com a nação das casas ‘tradicionais’ ocasionalmente mais
visíveis e prestigiadas (i.e., ketu), independentemente de qualquer vínculo ritual de iniciação”
(PARÉS, 2007, p.103).
O Abassá de Xangô tem como raiz o Ilê Obá Ogunté, popularmente conhecido como
Sítio do Pai Adão, fundado há mais de cem anos pela africana Ifá Tinuké ou Inês Joaquina da
Costa, “que trouxe consigo, ao vir já adulta para o Brasil, várias divindades, em forma de
símbolos, imagens, objetos e inclusive sementes” (CARVALHO, 1993, p. 20). O Ilê Obá
Ogunté localiza-se na cidade de Recife, terra de minha ancestralidade paterna.
46
Mas não foi racionalmente que decidi tornar-me parte dessa comunidade, nem foi tão
linear o percurso, como talvez possa parecer nesta escrita. Algumas idas e vindas e diálogos
com meu preconceito foram necessários, pois, apesar de estar num grupo artístico que
reverenciava essa tradição, trazia junto comigo toda a formação social que nos traz apreensão,
que nos faz ter preconceitos e medos sobre nossa própria cultura de origem. Em minha
história familiar, são tantos “engasgos” para contar nossa própria história, tantos “não sei”...
Após alguns anos frequentando a comunidade como visitante, tornei-me parte da
família. Encontrei ali aqueles que seriam meus orientadores espirituais e passei a frequentar
os ritos e festas como abiã, participante do culto aos orixás ainda não iniciada/iniciado
(NAPOLEÃO, 2011). O candomblé, como expressão religiosa afro-brasileira, é resultado de:
Olhando para as histórias que formam a História do Brasil, sempre vejo o racismo
como mecanismo de controle; naturalizado para a maioria de nós, é quase automático praticar
o racismo, viver o racismo, reproduzir o racismo, colaborar de algum modo para sua
perpetuação. Ele é algo que até pouco tempo era tolerável para muitos ao meu redor. Mas era.
Não é mais possível aceitar uma sociedade que deseje viver somente na superfície das coisas
(nas histórias únicas, citando Chimamanda Adichie9, nos deuses únicos, em possibilidades
únicas, sempre iguais e previsíveis. Binárias e extremas, certo, errado, feio, bonito, bom ou
ruim. Pois nessa superficialidade de nós, brasileiras e brasileiros, estamos sempre buscando
nos encaixar em padrões em que não cabemos. A maioria de nós não cabe na forma para o
homem e para a mulher de bem. Pois ele e ela são brancos.
Eu não caibo, e nunca coube; em muitos níveis eu não me encaixo no que a sociedade
diz ser uma mulher de bem, e talvez nem tenha sido vista como uma criança de bem, com
futuro, assim como hoje meus filhos são vistos pelos olhos de alguns: sem futuro. Sem
história. Sem voz, sem fala. Invisibilizados nós, negras e negros brasileiros, somos. Na
História, nas histórias e nas estórias. Em todos os nomes dados às narrativas que contam nossa
origem, a negra e o negro só são visíveis no óbvio construído para eles nessa sociedade,
subjugados e submetidos.
O que me tornou narradora foi a emergência. Sempre contei histórias, mas me
aprofundar nas florestas dos contos africanos e afro-brasileiros, conhecer novas camadas,
imaginar meus ancestrais e minha ancestralidade alimentada de imagens criadas na relação
com o conto tradicional, devolveu-me a história apagada sobre minha ancestralidade. No
momento, não vejo outro caminho senão narrar essas histórias em todos os espaços que se
abrirem, pois a luz de emergência está acesa há muito tempo, e agora pisca, sinalizando que o
ódio epistemológico está posto em todas as instâncias da comunicação. Então, dedico-me a
estudar contextos culturais africanos e afro-brasileiros, imaginar e narrar as histórias que
ninguém quer contar. Narrar para tornar visível o invisível, dar rosto, nome, endereço, para o
avô e bisavô de quem nunca nem vi foto. Devolver nossas histórias de origem é também
devolver parte da dignidade que nos foi roubada há séculos.
Foram tantas experiências racistas no contexto educativo e no artístico que me vi
chamada, convocada por essa ancestralidade a narrar nossas histórias. Senti um chamado para
unir-me às forças guerreiras, para estar em luta, mas minhas armas seriam as palavras que,
como a água, penetrariam no aparentemente impenetrável, mudariam formas antigas,
9
Escritora nigeriana, que alcança muitas educadoras e educadores por meio da célebre palestra veiculada no
Youtube O perigo de uma história única.
50
Oduduá tinha uma beleza rústica e não gostava de se enfeitar. Ela era a Terra
e tinha força da Terra. Desde criança, Oduduá só teve dois desejos: ficar para
sempre a habitar sua cabaça e possuir os sete anéis. Possuía como atributos,
a rapidez e a determinação. Era uma guerreira que saía em busca do que
desejava. Suas cores preferidas eram o marrom e o vermelho.
Oduduá era uma princesa linda e Obatalá era um lindo príncipe. Antes de o
Céu e a Terra existirem, eles já existiam e moravam dentro de uma cabaça. A
cabaça não era grande e eles tinha que viver muito apertados lá dentro e um
tinha que ficar em cima do outro.
Todas as noites, o príncipe Obatalá decidia que a princesa Oduduá deveria
dormir em baixo dele.
- Princesa Odudá, ordeno que você durma novamente embaixo de mim –
exclama Obatalá.
- Príncipe Obatalá, eu ordeno que você pare de Ordenar. [...]
[...] A princesa Oduduá, irada, partiu para cima dele numa briga sem-fim.
[...] Lutaram, mas lutaram tanto que a cabaça se rompeu em duas partes.
Conforme a cabaça se rompeu, a parte de cima dela foi projetada para o
espaço juntamente com o príncipe Obatalá; e a parte de baixo permaneceu lá
com a princesa Oduduá [...]
E foi assim que Céu e Terra se separaram: a partir de uma briga. [...]
(OLIVEIRA, 2009, p. 43)
A Dança Mítica dos Orixás surge, então, como possibilidade real para o
empoderamento da mulher negra, tendo ela acesso direto com os próprios
orixás; essa dança reconstitui a auto-estima a partir de uma identidade
redescoberta na ancestralidade. É a dança que possui o poder de reconectar a
mulher negra às experiências afro-expressivas de natureza plástica, rítmica,
corpórea e emocional. (OLIVEIRA, 2008, p. 199)
Com Kiusam pude, em uma única e potente oficina da mitologia narrada e dançada
dos orixás, compreender que o caminho com a arte negra provinda das nossas tradições, no
qual iniciava como artista tanto na formação como na atuação, era potente e transformador
para mim, como mulher negra, e para muitas outras pessoas que pudessem experenciar uma
arte fundamentada nos conceitos e valores estéticos da cultura negra africana e afro-brasileira,
onde o corpo não é desconsiderado; pelo contrário, é parte fundamental da expressão. Assim,
entendi que meu corpo também narra as histórias.
Mesmo em contexto urbano onde às vezes parece tão pouco provável construirmos
experiências significativas nas relações humanas e mesmo não sendo africana, formulei e
ainda formularei novas maneiras de sentir e ver a vida e o outro a partir da relação com a
cultura negra, por meio dos mitos e contos e por meio do candomblé. E venho exercitando
perceber a vida por meio de valores afrocentrados, onde a relação com a palavra se diviniza e
se torna viva, sempre em relação com o corpo, o que traz muita responsabilidade em seu
proferir.
53
Hoje compreendo quando Bâ explica a relação do ser africano com a palavra a partir
do mito de criação do povo bambara, quando ele conta a relação de inteireza a partir da
imagem de que a palavra foi criada pelo divino:
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo
tempo, dotava-o da capacidade de responder. Teve início o diálogo entre
Maa Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas.
Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas
porque ainda não haviam entrado em contato com a materialidade. Após o
contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se
carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua
vez a corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a
comunicação com Maa Ngala. (BÂ, 2010, p. 172)
Foi somente nessa relação com a palavra que me encontrei no ofício de narrar, foi
tendo fé na palavra narrada e em sua capacidade transformadora na relação com o sagrado. E
esse sagrado para minha formação é minha ancestralidade, e todo o mistério e vazios
narrativos que ela carrega. Mas o sagrado pode ser o que faz sentido para cada um que deseja
encontrar uma relação mais profunda com o narrar histórias em todos os contextos,
profissional e/ou familiar.
Essa palavra embebida de sagrado, capaz de criar e recriar realidades, era a arma
necessária que eu precisava para assumir o chamado e trilhar meu caminho com as histórias.
Pois, ao assumir um repertório de histórias africanas e afro-brasileiras, assumi lidar com o
racismo. Ele, que sempre esteve na minha realidade, ganhou outras dimensões e o compreendi
por diferentes estruturas, para além do que me afeta pessoalmente. Colocar-se no mundo
como artista e educadora pesquisadora das culturas negras é colocar-se de forma consciente
em relação cotidiana com o racismo estrutural.
As resistências ao trabalho foram surgindo e eu tive de aprender com cada uma delas;
em alguns momentos de cansaço, pensava se não seria melhor contar outras histórias, pois não
ser convidada ou receber muitos nãos fez parte dessa trajetória de persistência com tal
repertório. Mas fui aprendendo com cada não e com cada sim. O racismo, principalmente o
racismo religioso, manifesta-se quase todas as vezes em que narro os mitos dos orixás no
circuito comercial e nas escolas. Sempre há os que vão embora, mas há pouco tempo decidi
ficar com quem fica para ouvir e relacionar-se com seus limites culturais, seus
estranhamentos, seus julgamentos e se abrir ao encantamento das histórias, com a palavra viva
embebida do meu sagrado.
Foi identificando os arquétipos de Xangô, Iansã e Ossaim que compreendi melhor o
chamado. Ossaim, guardião do segredo das folhas, assim como guardamos nossos segredos
54
Ser professora narradora? Narradora professora? Ser atriz que narra? Narradora que
atua? Todas essas questões surgiram durante meu trajeto formativo com a arte de narrar
10
Irmandades: associações de leigos, tendo por objetivo principal o culto do Santíssimo, da Virgem Maria ou de
um santo. “Durante a época escravista, africanos e descendentes constituíram, no Brasil e em outros países,
incentivados pela Igreja, inúmeras irmandades católicas [...] O traço mais marcante dessas antigas confrarias
era a sua autonomia na condução de seus negócios e de suas questões internas e externas, cujo âmbito
extrapolava o simplesmente religioso para o recreativo e social. Dedicando-se à ajuda aos carentes, assistência
aos enfermos e encarcerados, organização de funerais e garantia de sepultamento honroso, defesa contra maus-
tratos, ajuda na obtenção de alforria etc., as irmandades desempenhavam papel fundamental na vida dos
negros. Do ponto de vista cultural, as irmandades negras conseguiram manter fortes traços de sua identidade
africana [...]” (LOPES, 2006, p. 82).
11
Afoxés: “Cortejo carnavalesco de adeptos da tradição dos orixás, outrora também chamado ‘candomblé de
rua’. Surgidos em Salvador, BA, por volta de 1895 [...]” (LOPES, 2006, p. 14).
12
Blocos afro: “tipo de agremiação carnavalesca surgida em Salvador (BA) no início dos anos 1980, com o
objetivo de reafricanizar o carnaval de rua da capital baiana. Evocando temas que buscam uma conexão direta
com a África bem como a afirmação da negritude, foram responsáveis pela criação de uma nova estética. A
atuação de vários deles, transcendendo o âmbito do carnaval, estendeu-se ao trabalho de recuperação,
preservação e valorização da cultura de origem africana e de desenvolvimento comunitário” (LOPES, 2006, p.
49).
55
histórias, no campo da Arte ou da Educação. Mas para todas elas volto-me à origem do ofício
de narrar e ensinar, volto-me ao tradicionalista da palavra no contexto africano. O
tradicionalista da palavra foi difundido no ocidente com o nome de griot:
Esse nome difunde o ofício que ganha muitos nomes e também variáveis em sua
função social. A partir da cultura tradicional africana estudada, compreendemos um nome e
também formas de organizar esse ofício. Mas o que encontramos em comum é a função de
preservar saberes milenares por meio da palavra falada, saberes que cruzam diferentes campos
do conhecimento humano. O tradicionalista da palavra pode ser o preservador da história de
todo um reino e sua linhagem, como ser preservador de histórias de cura e saberes medicinais.
Os griots, djelis, domas, gando, nomes em diferentes culturas para designar “os
grandes depositários da herança oral [...] ‘os tradicionalistas’. Memória viva da África, eles
são suas melhores testemunhas” (BÂ, 2010, p. 175). Reconhecer quais as pistas deixadas por
esse ofício tradicional às professoras e professores, para retomar a capacidade narrativa de
profissionais da Educação, é um dos objetivos desta pesquisa e uma das barreiras que
identifiquei ao promover formações que vão ao encontro desse objetivo; é o reconhecimento
da oralidade como fonte de conhecimento.
Para além do tradicionalista da palavra/griot, o contexto tradicional africano também
nos inspira a olharmos para nossas famílias como espaço de preservação de conhecimento na
nossa oralidade, nossas avós e avôs como agentes de preservação e disseminação. Mas, como
são desvalorizados nossas avós e avôs, nossas mais velhas e mais velhos brasileiros,
descendentes de escravizados, migrantes do Nordeste, foram silenciados pelas mortes
prematuras, pelos desaparecimentos, pelo esquecimento.
Em conversas sobre nossas mais velhas e mais velhos com crianças e docentes, ouvi
inúmeras vezes que eles repetem demais, falam sempre a mesma coisa. Muito diferente da
tradição africana, em que: “Nunca nos cansamos de ouvir mais uma vez, e mais outra, a
mesma história! Para nós, a repetição não é um defeito” (BÂ, 2013, p. 11). Repetir é o
principal exercício para a memória manter-se viva e fresca.
Mas, como as últimas gerações têm-se mostrado incapazes no exercício da escuta, não
há paciência para apreender o que elas e eles têm a nos dizer. Característico também de
56
gerações como a minha é não ter a sorte de ter o mais velho para ouvir. Pois o mais comum na
realidade da afrodescendência no Brasil é o silenciamento, o desaparecimento da história
familiar de nossos ancestrais. Famílias sem pais, sem avôs, avós, bisavôs e bisavós.
Parte do projeto de embranquecimento da população brasileira era a invisibilidade da
memória, da história e da cultura negra. E para isso seria preciso desaparecer com a sua fonte
de criação e permanência, a população negra, que foi abandonada propositalmente após o fim
oficial da escravidão, foi deixada à própria sorte para morrer e desaparecer.
E nas famílias o reflexo disso são avós e avôs desaparecidos na memória familiar.
Histórias que não foram mais contadas, por fazer reviver dores de experiências como
estupros, vícios, assassinatos, exploração:
todos os meios de comunicação, por todas as camadas da educação pública e privada, pelo
senso comum raso e vazio que habita milhares de brasileiros quando o assunto é a mitologia
dos orixás que fundamenta a religiosidade de matriz africana, o candomblé e a umbanda.
Na perspectiva desta pesquisa, o candomblé é o fruto da resistência de mulheres
africanas que plantaram suas raízes de origem e conseguiram que elas atravessassem os
séculos por meio da prática repetitiva, com cantos, palavras, danças, mitos, com o preparo dos
alimentos, o cultivo de plantas e a criação de animais. Quando cheguei ao candomblé,
buscava uma única coisa: as histórias que ninguém havia me contado. Buscava uma raiz, um
endereço de origem. E essa história vai-se reescrevendo rito após rito, encontro após encontro
com minha família de santo. Onde a palavra está totalmente relacionada com o corpo, o fazer,
o viver é o que traz o aprendizado, assim como nos ritos de iniciação em povos tradicionais
africanos.
Botelho (2005) indica-nos o campo fértil de aprendizagens que o candomblé nos
proporciona ao falar do seu ilê, seu campo de pesquisa:
Apesar de toda a opressão por meio da violência, do extermínio que a população negra
sofre até hoje, as sabedorias milenares continuam vivas, correndo riscos sempre, mas estão
vivas. E em terreiros por todo o Brasil repete-se uma tradição que preserva aspectos de
culturas africanas das quais descendemos. Entre muitas riquezas culturais preservadas, temos
a mitologia dos orixás. Ela nos oferece um repertório cultural que traz a possibilidade de
imaginar rainhas e reis, heróis e heroínas, príncipes e princesas, feiticeiras e feiticeiros, todo
personagem mitológico em uma cultura negra tradicional, fazedor de conhecimento e cultura.
Poder se ver representada em imagens positivas nos estimula e nos torna capaz de caminhar
na vida a partir de exemplos positivos.
13
Agbalá é o nome dado ao núcleo de pesquisa de histórias tradicionais africanas e afro-brasileiras que nasceu
do Coletivo Agbalá, coletivo de arte/educação e cultura negra que existiu de 2007 a 2009. Após o fim do
coletivo, dei continuidade à pesquisa com as histórias e permaneci com o nome, e desde 2010 nasceu Agbalá
Conta. No nascimento do coletivo, o nome Agbalá foi livremente inspirado no livro Agbalá: um lugar
continente, de Marilda Castanha.
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encantou de tal forma que conseguiu guardar dentro dela todas as folhas sagradas. Junto
também guardou cada canto, história, reza e fórmula de cura que sabia. Depois a escondeu
protegida pela copa de uma árvore majestosa, que vivia num lugar nunca explorado por outro
além dele.
A mais bela cabaça foi o que ganhei anos atrás, quando essa trajetória com a narração
de histórias teve início. Decidi formatar um trabalho profissional como narradora de histórias
e, ao olhar para o mercado cultural e fazer contato com memórias onde habitavam os
narradores de minha infância, inspirei-me a ter um objeto-símbolo, um lugar de onde as
histórias se revelariam. Muitos narradores e narradoras que vi pela TV Cultura usavam malas,
baús, tapetes. Na minha primeira apresentação em uma escola, usei um carrinho de feira. Há
pouco tempo, vi uma narradora com uma bicicleta. No início não compreendia o porquê dos
objetos, mas imaginava que, para ser uma narradora de histórias “profissional”, eu deveria
também ter um.
Estava pesquisando objetos e buscava um que tivesse as mesmas funções de uma mala:
que guardasse coisas e pudesse ser transportado. Ainda numa fase experimental, sem muita
expectativa sobre o que exatamente buscava, decidi ir ao bairro paulistano do Brás, na região de
artigos nordestinos, pois sempre encontrei identificação na estética nordestina, nas cestarias, nos
artigos de couro, nos alimentos. Apesar de ser filha de pais nordestinos, pouco vivi da cultura
nordestina no cotidiano do meu lar, mas minha ancestralidade nordestina sempre me trouxe
experiências de encaixe e espelhamento, como se me faltasse algo para formular minha
identidade e, ao viver a experiência com a cultura nordestina, sentia-me mais completa.
Andando pelas ruas ao lado da Estação Brás, deparei-me com muitas cabaças penduradas,
ensacadas, empilhadas, e aquela multiplicidade de texturas, formas, tamanhos e tons
monocromáticos me encantou, abriu-me possibilidades de investigações poéticas com a cabaça e
a narração de histórias, permitiu experimentações também com a manipulação de objetos como
criação de imagens, materialização de elementos mágicos e personificação de personagens.
Antes daquele momento em que comprei as cabaças, nunca me havia perguntado o que
elas eram, sua origem, se alguém as havia feito, se nasciam de algo ou de alguém, se eram
planta, objeto ou comida. E antes mesmo de ter essas respostas, uma dupla de cabaças me
escolheu. Duas grandes cabaças e uma porção de outras menores.
Passei um tempo levando-as comigo nas experiências com histórias, apenas para
ambientar. Após pesquisa simples, descobri sua natureza e as identifiquei com diferentes
nomes em diferentes culturas, africanas, afro-brasileiras e indígenas. Assim, encontrei um
símbolo que sintetizava toda uma ancestralidade que desejava tornar visível por meio da
narração de histórias. E foi na experiência, narrando o conto Os sete novelos, inspirado no
livro de Angela Shelf Medearis, que iniciei a relação com as cabaças e a narrativa. Escolhi
cabaças de diferentes formas, texturas e tamanhos, e elas se tornaram os sete irmãos axântes,
protagonistas do conto.
Ao apresentar os irmãos, colocando-os em cena numa escada decrescente (após alguns
fracassos ao tentar manipulá-las), no decorrer da narrativa elas se tornaram um altar, o
símbolo da união dos irmãos, posta em prova durante todo o percurso da história. Os sentidos
eram despertados em mim e em quem assistia; vontade de tocá-las, tempos contemplativos,
sentidos que eram formulados por cada um que as observava durante a narrativa. E cada dia
crescia mais a certeza de que a cabaça continha um mistério que eu gostaria de conhecer.
As cabaças passaram, então, a me acompanhar nos trabalhos com narração de
histórias, mas seu significado foi-se aprofundando na relação com o público, com o ofício de
narrar e com a passagem do tempo. Exu inspirou-me ao pensar-me narradora como uma
caminhante das estradas, conhecedora de muitas encruzilhadas e muitas histórias sobre outros
pontos de vista, para além da narrativa mais repetida, para além da história mais conhecida.
Pelo fato de ser, no panteão dos orixás, aquele que comunica com a palavra, torna possível o
encontro, cria pontes e com sua existência torna o avesso o lado usual, Exu trouxe-me a
coragem de me autodeclarar narradora de histórias.
E em cada cabaça que o acompanha pendurada na cintura e em seu ogó, seu cajado,
traz consigo elementos mágicos, sementes, raízes, raspas de cascas, mel, dendê e tantas outras
coisas apreciadas e necessárias para criar as conexões entre as pessoas e as resoluções de seus
problemas. E é a Exu que todos procuram quando há dificuldade em escolher ou seguir por
um caminho, e com sua magia ele torna possível o impossível. E quantos caminhos apontam
uma história? Quantas possibilidades de existir há em uma cabaça?
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A cabaça é fêmea, parece um útero, preserva e revela. Ela é múltipla, utensílio que
carrega água, alimento, elementos sagrados e ritualísticos; é copo, colher, prato, panela; é
instrumento que repercute o som da água. Desde o som da água leve e delicada que cai sobre
ela mesma até o som da água que cai com força na cachoeira. Sua forma feminina falou
comigo e com a fêmea que há em mim. Caberia a ela a missão de sintetizar o ventre de onde
vim; ela conectou minhas raízes, indígenas, africanas, nordestinas, sertanejas e ribeirinhas. A
cabaça tornou-se o símbolo da ancestralidade que desejo esparramar ao vento.
No mito de criação da Terra, o Ayê na mitologia iorubá, a cabaça é o próprio universo,
o início, o ventre de onde tudo no mundo vem: “A cabaça da existência Igbadu aos nossos
olhos remete, dentre muitas representações, ao ventre feminino fecundado e gerador de vida,
no qual a parte de cima que possui a ligação com o Orum é análoga ao cordão umbilical e a
parte debaixo, o Aiyé com o útero” (OXALÁ, 2006, p. 20). E assim como Adilson de Oxalá a
vê, eu também a vejo como o meu próprio útero, onde gesto histórias, preservo, cuido,
alimento, entro em trabalho de parto para finalmente parir histórias pretas no mundo.
E, assim como a mim, a cabaça inspira tantos artistas:
Águas da cabaça
Esse fruto seco que tudo carrega
Elixir dos deuses e do diabo
Águas para o banho
Águas que matam a sede
É viva, é ventre...
Quando pensam que morri renasço nas mãos de uma mulher
Ser cabaça é ser fértil, simples, discreta,
Suave, dura e impermeável.
Reverberar o som com as suas sementes! (SOUZA, 2012, p. 32)
Elizandra Souza, artista contemporânea que com sua arte contribuiu em minhas nas
buscas de fragmentos de nossa história ancestral para tecer as narrativas das nossas existências,
poetiza a existência da cabaça e reverencia o feminino no livro intitulado Águas de cabaça
(SOUZA, 2012), trazendo nas palavras uma síntese da profundidade estética que as cabaças
podem provocar.
64
Mas foi uma longa trajetória até chegar onde estou, com a cabaça sendo o símbolo
de meu trabalho e sendo simbolicamente a fonte inesgotável das histórias. Numa fase em
que o objeto na narração para mim era como no teatro de animação, onde aprendi que
buscávamos a ânima14 do objeto, entendia que com o movimento animávamos a vida, a
alma, e só conduzíamos o que já estava lá. Tinha como objetivo animar as cabaças,
manipulá-las. Mas não foi necessário: somente elas já bastavam; elas têm a sua ânima e
têm tanta força simbólica ancestral que sua presença nos espaços das histórias necessita
apenas de reverência.
Durante os caminhos de formação em arte e cultura negra, fui privilegiada por ter
encontros de sabedoria com mestras e mestres forjados para além da academia, na vida, na
lida, no saber do dia a dia. Alguns somaram sabedorias e hoje dominam sua cultura
tradicional de origem, e também aprenderam a ler e escrever nos moldes do colonizador.
Sem essas mestras e mestres, baobás em meu caminho, não teria acreditado na
possibilidade de um dia ser artista ou educadora.
Foram sempre encontros que me trouxeram para o eixo, me devolveram ao
caminho de volta às minhas histórias de origem. Alguns encontros seguiram para a vida;
tornei-me parceira, amiga e hoje posso ouvir e viver a cultura tradicional do Recôncavo
Baiano pela existência de minha mestra Nega Duda, Ducineia Cardoso.
Outros encontros foram rápidos, mas profundos e intensos, como o que vou contar a
seguir. Nesse tempo, atuava profissionalmente como narradora há apenas dois anos.
Considero meu início o dia em que fui contratada pela Biblioteca de São Paulo, pela primeira
vez, para narrar histórias dentro da proposta que criara com a cabaça e as histórias africanas e
afro-brasileiras. Narraria histórias de Iemanjá, contos tradicionais do povo axante e um conto
do povo gurarani-kaiowá, pois no nascimento o Agbalá Conta se propunha a narrar histórias
africanas, afro-brasileiras e ameríndias, mas com o caminhar do ofício e a conexão genuína
com minha ancestralidade negra, entendi que era tempo de me debruçar sobre a matriz com a
qual me identifico no mundo.
14
Matéria animada, como a própria palavra diz, é todo e qualquer corpo físico que, no contato com energias sutis
do espírito, adquire outros significados (AMARAL, 2005, p. 16).
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Esse começo em 2010 tornou-se um marco, pois não houve nenhum questionamento
sobre as histórias escolhidas para serem narradas. Não houve nenhuma observação sobre
contar histórias de um orixá dentro da Biblioteca de São Paulo. As portas foram abertas.
E naquele tempo ainda não sabia se seria capaz de acumular o repertório necessário para
poder me declarar uma narradora de histórias da cultura africana e afro-brasileira, e ainda hoje
já mais distante desse início essa dúvida insiste em voltar.
Mas foi em uma oficina com o griot Hassane Kassi Koyaté, narrador tradicional filho
e neto de narradores tradicionais, homem formado na cultura tradicional mandingue, que
compreendi melhor o meu ofício. Foi como um rito de passagem que me trouxe a confiança
de que, sim, eu poderia me declarar uma narradora de histórias. Foi só então que pude
compreender que esse repertório se formaria da própria ação de narrar, paralelamente à
pesquisa sobre os contextos históricos dos mitos e contos.
No encontro internacional de contadores de histórias Boca do Céu, em 2012, vivi a
oficina com Hassane Kassi Koyaté, que além de griot é artista e diretor teatral, durante apenas
três dias, e em cada dia três horas somente. Mas o contato com a força que as palavras banhadas
no saber profundo da ancestralidade podem mobilizar em nós foi de tamanha intensidade que
carrego as descobertas até hoje. Ele falou em francês com tradução simultânea em português, e
eu que nada sei de francês o compreendi muitas vezes. Meu corpo o compreendeu.
Entre tantos saberes compartilhados sobre a arte de narrar histórias pela perspectiva
africana ele apresentou o conceito “o início do início”, o momento em que, antes de iniciar a
história, antes de deixar a teia da narrativa se desenvolver, o narrador prepara a si, ao
ambiente e aos outros para receber a história; o momento em que combinamos que vamos
começar a viver uma experiência para além do que estávamos vivendo até então.
A fala do mestre Hassane Koyaté foi como alimento, ressoou em meus experimentos
artísticos, e o sentido com a cabaça se fez: ela seria o início do início, gestaria as histórias a
serem narradas.
Passei a experimentá-la em todos os inícios das histórias, em que ela poderia já estar
em cena ou entrar em minhas mãos; dancei, cantei ou simplesmente caminhei. Tudo definido
a partir da história e do público, de acordo com o que estivesse acontecendo ao meu redor. Tê-
la ali, testemunhando o desenrolar das histórias, era como ter a fogueira, elemento mágico e
simbólico no ato ancestral de narrar e ouvir histórias.
67
Nessas experiências, foi como se a fogueira ancestral se acendesse; a cabaça trouxe o fogo
e despertou paixões. Dela retirei a ambientação das histórias, por meio de elementos cênicos:
folhas nas histórias de Ossaim, presentes enviados ao mar nas histórias de Iemanjá, os sete irmãos
axântes no conto Os sete novelos. E o fogo mantendo-se aceso e aquecendo todos ao redor.
contexto foi revolucionário; apesar de que toda a literatura por mim experimentada não trazia
personagens parecidas comigo, foi a experiência que afirmou a mim que eu poderia de algum
modo existir na literatura.
O início profissional com a narração de histórias não foi o início oficial dos portfólios,
releases e currículos. Ele se deu num dia que é difícil precisar, pois, mesmo no início, na
primeira vez em que narrei uma história, senti como se já fizesse aquilo há tempos. Mas eu
tinha 18 anos e era o último ano do magistério15.
Não que não tenha tido gosto, cheiro, jeito de primeira vez, mas ainda assim eu sabia
que estava em um lugar familiar, estava em casa. Era um trabalho da professora de Didática,
valeria horas de estágio e eu, que já tinha feito teatro na igreja parte da infância e adolescência
e precisava de mais horas, resolvi aceitar.
A tarefa era criar uma apresentação para alunos de uma escola pública da região, que
contasse as histórias da origem do bairro da Freguesia do Ó. Criamos, minha parceira de
tarefa e eu, o que pensava ser uma apresentação teatral.
A personagem que criei, de cujo nome não me lembro porque nem ela se lembrava
de tão velha que estava , narrava as próprias histórias vividas na região do Largo da Matriz
da Freguesia do Ó. A plateia eram crianças entre 8 e 10 anos de uma escola da região, e
apresentamos na Casa de Cultura Salvador Ligabue. Nesse período ainda não lecionava, mas
essa experiência marcou e plantou em mim o desejo de viver conexões com as crianças,
futuros alunos, como aquela que havia vivido ali, espaço de escuta, de brincadeira, espaço de
risadas e da emoção.
Essa tarefa da professora de Didática colocou-me em contato com um equipamento
cultural onde havia obras de arte de diferentes linguagens e uma biblioteca em que pude
pesquisar histórias e ser orientada pelos funcionários a conhecer determinados moradores. A
professora colocou na minha boca um gosto de quero mais em muitos sentidos; regou sonhos
e apontou caminhos, ainda tão iniciais.
Um tempo depois, logo após a formatura, comecei a dar aulas em escolas particulares,
onde tive acesso a livros infantojuvenis. Comecei a arriscar ler os livros para as crianças;
apesar de na minha formação no magistério não termos tido contato com a literatura
infantojuvenil, fui aprendendo fazendo, fundamentada na minha experiência com a literatura
na infância. Fui também entendendo as histórias que davam mais certo para a faixa etária que
15
Magistério: formação em nível médio de professores que na década de 1990 habilitava para a educação infantil
e o ensino fundamental I. Com a LDB de 1996, o curso técnico deixou de ser suficiente para o direito a
lecionar, exigindo a formação também em nível superior, com prazos que diferem de acordo com cada estado.
71
estava lecionando, entendendo o livro como objeto de arte e as histórias como possibilidades
de introduzir um tema que aprofundaríamos em Ciências, Língua Portuguesa e até
Matemática.
Algumas histórias tornavam-se preferidas minhas e das turmas, e eu as repetia, repetia
tanto que quando via estava contando do meu jeito, tendo o livro presente apenas para os
alunos lerem as imagens. E assim comecei a narrar histórias, a partir da relação com a
literatura infantojuvenil.
Na experiência com a escola pública, entre 2008 e 2012, a abundância de livros
acabou. Diferentemente das escolas particulares, as famílias não tinham condições
econômicas de adquirir livros individualmente, então fui em busca dos livros que havia na
escola. É curioso que em muitas escolas particulares por que passei não havia biblioteca.
Algumas tinham cantinhos de leitura, mas na minha realidade bibliotecas eram mais comuns
nas escolas públicas.
O que acontecia em muitas escolas públicas também havia acontecido na escola onde
ingressei como professora de artes: a biblioteca tinha virado sala de aula, mas não de leitura.
Os livros ficavam em caixas e estantes encostadas, cobertas pelo pó. Consegui separar
principalmente os que traziam a imagem como arte ou que tratavam de arte.
E que maravilha, havia muitos! E muitos também eram agora meus alunos: o que entre
os anos 2000 e 2008 eram no máximo 500 no total de cinco escolas, agora eram 500 alunos
em média por período.
Na realidade de 2009, todo material era escasso. Eu tinha um punhado de coisas que
fui guardando nos anos de magistério e faculdade, muito material que havia comprado com
meus recursos. Em um primeiro momento, usar os livros infantojuvenis era uma maneira dos
alunos terem acesso a imagens de qualidade das reproduções de obras de Artes Visuais. E,
para além da imagem, retomei nesse contexto a prática de mediar histórias.
E diante de tantos alunos negros nas turmas que lecionava, comecei timidamente a
apresentar livros do meu recém-nascido acervo em literatura negra infantojuvenil. Um
pequenino acervo de livros que eu havia ganhado das editoras no período de trabalho nas
escolas particulares. No início dos anos 2000, as editoras ofertavam livros dos seus catálogos,
como estratégia comercial para que adotássemos um para nossa turma. Nessa possibilidade de
pedir livros diversos, tive acesso a lançamentos da época da ainda inicial literatura
infantojuvenil em culturas negras africanas e afro-brasileiras; o mercado se abria motivado
pela Lei nº 10.639/2003.
72
Foi por esse prisma que segui e sigo agregando mais obras ao acervo, com recursos
próprios, com a bolsa Capes e com as premiações do Proac nos projetos de formação para
professores. Esse acervo hoje atende não só a mim, mas a muitas professoras que passaram e
ainda vão passar por experiências formativas. E atende e atenderá muitas crianças para as
74
quais o Agbalá Conta mediará leituras. E, principalmente por serem fonte principal de minha
pesquisa como narradora, serão muito ouvidas, devolvidas à oralidade, nas apresentações para
crianças e adultos. Um único livro pode ser a porta de entrada para muitas experiências
artísticas e educativas.
No início da pesquisa com as histórias preservadas na oralidade, sentia-me
enganando a mim e aos outros por necessitar dos livros para pesquisar a tradição oral, mas
com o tempo compreendi que ter essas histórias registradas em livros era estratégia de luta
contra nosso extermínio epistemológico. Poder, por meio da arte de narrar histórias, trazê-
las à experiência da palavra viva é fazer justiça, é reacender a fogueira ancestral. A
literatura infantojuvenil afro-brasileira hoje ganha cada vez mais autoras e autores
interessados em contribuir em fazer justiça à nossa memória ancestral, e acredito que
pesquisadoras e pesquisadores, autoras e autores, narradoras e narradores de histórias
podem, juntos, fortalecer cada vez mais a produção literária e a retomada do ato ancestral
de narrar histórias da tradição.
Que o futuro me reserve a possibilidade de finalmente poder recolher diretamente da
fonte, das nossas mais velhas e mais velhos, histórias narradas para serem também registradas
na literatura e, assim, alcançar gerações futuras. Diferentemente do que já me disseram
especialistas em literatura, oralidade e literatura são da mesma família, podem caminhar
juntas, complementando e fortalecendo suas existências.
75
Oyá, Iansã, mulher, mãe de nove filhos, dotada de muitos talentos, poderes e atributos,
fortaleza e leveza numa mesma divindade, é a búfala que admira a borboleta pousada em seu
nariz. Era livre e não havia quem ou o que a prendesse. Oyá Mesan Orun, a Oyá dos nove
mundos, nada temia. Ela tinha na criação do mundo ganhado de Olorum o domínio dos
ventos, conhecia cada canto da criação cavalgando as tempestades. Verdadeira companheira,
fiel a quem escolhia, sabia resolver problemas aparentemente insolúveis. Sabia, diante de um
furacão ou mesmo no olho dele, escolher o melhor momento de voar nos ventos como
borboleta e ganhar força para sair para outras direções. Quando Oyá dançava, os ventos se
moviam. Iansã encantava os ventos.
Determinada a encontrar o segredo de Ossaim, Iansã dançou e os ventos obedeceram,
percorreram cada canto das florestas iorubás em busca do que dava a Ossaim o poder sobre as
folhas. Mas Ossaim conseguia pressentir os ventos; as folhas lhe contavam tudo e logo
fizeram chegar as notícias sobre os ventos procurarem tal segredo. Então ele escolheu a mais
bela cabaça, cultivada e tratada por ele, e dentro dela guardou folhas, cantos e encantos.
Aprofundou-se ainda mais na floresta profunda e escolheu a copa de uma majestosa árvore
milenar para escondê-la. E, após encantar a cabaça e escondê-la, só podia aguardar.
Mas Iansã, a destemida, não desistiria. A guerreira, a que está quase sempre na linha
de frente dos embates, a que não teme represálias quando o assunto é sua crença na vida. Ela,
Iansã, acredita nas pessoas, acredita nas suas causas e as toma para si de forma tão verdadeira
e natural que oferta o seu melhor para garantir o melhor para todos.
Vejo muitas Iansãs quando penso nas professoras que conheci. Seja nas parceiras de
trabalho ou como aluna, encontrei mulheres dotadas de força e determinação e uma crença na
transformação das pessoas pela educação. Mulheres que mobilizam milhares de vidas há
séculos neste país.
Até hoje, nos encontros que vivi com grupos de professoras, não me senti à vontade
em usar o gênero masculino ao me dirigir ao grupo. Somos a maioria nas salas “dos
professores”. Vejo Iansã nessas professoras, pela persistência, pela entrega, por muitas vezes
não temer o que está por vir, abdicando da própria vida pessoal para tentar suprir tudo o que é
fundamental no desenvolvimento de seus alunos e alunas.
76
Assim como Iansã, dispomo-nos à guerra, mas não deixamos de sair feridas. Pois
Iansã é uma divindade e nós, apenas humanas. E de tanto ver mulheres feridas pelo contexto
da Educação, fui em busca de cura para mim e para elas pelo caminho da formação.
E nessa busca, que se aprofundou no desenvolvimento desta pesquisa, não me
identificava com metodologias que nos transformassem em simples dados, números,
estatísticas. Precisei encontrar uma metodologia que valorizasse a experiência vivida em
nossas trajetórias de formação, e assim conheci a metodologia de história de vida. Com ela
pude valorizar as relações com as trajetórias individuais, para juntas compreendermos como o
racismo nos moldou como professoras, atravessou nossas formações desde a infância até o
momento de ingressarmos na sala de aula como educadoras.
Poder olhar para as histórias familiares, para as histórias da nossa formação escolar,
acadêmica, abriu a possibilidade de não somente julgarmos as práticas pedagógicas que
reforçam o racismo e a intolerância, mas compreendermos a origem e, assim, enxergarmos o
racismo estrutural que sustenta o contexto educativo.
Não foi um caminho fácil ao compreender que para esta pesquisa não cabia outro
método, pois descobri o quanto no meio acadêmico a subjetividade é condenada e
desvalorizada como fonte de pesquisa. Apesar de estar cercada e orientada por outras
pesquisadoras que a valorizam como fonte de conhecimento, ainda era frágil e talvez ainda
seja minha convicção de que seria possível trilhar esse caminho. Mas sempre tive em vista a
necessidade de auxiliar descobertas sobre o racismo na formação de professores e professoras,
por acreditar numa transformação do indivíduo para, quem sabe, alcançarmos a transformação
global no contexto educativo.
E foi principalmente com Josso que construí a segurança de que o caminho apontado
pela pesquisa era o caminho a ser trilhado:
Josso (2007) trouxe-me a segurança de que rever nossos caminhos formativos seria
uma possibilidade de “questionar as heranças, a continuidade e a ruptura” acerca do racismo,
heranças familiares, heranças da formação escolar, que naturalizaram práticas que reforçam o
racismo e nos cegam diante de sua existência em nosso dia a dia na Educação.
A seguir contarei os caminhos percorridos com formações de professoras e professores
até o encontro de uma experiência formativa que considerasse nossas subjetividades como
percursos formativos.
Depois de deixar a sala de aula, durante quase três anos minha principal experiência
formativa em arte e cultura negra foi o trabalho como educadora do MAB, onde pude imergir
na relação com um acervo que busca representar uma identidade cultural negra brasileira.
78
Mediar diariamente obras de artistas negras e negros que questionavam a história oficial sobre
a população negra, com sua produção artística e cultural, colocou-me em contato com as mais
diversas manifestações do racismo e da intolerância religiosa. Milhares de crianças e
adolescentes que reproduziam comportamentos racistas e milhares de professoras e
professores que demonstravam não ter conhecimento nem da superfície, muito menos da
profundidade da cultura negra.
Durante minha permanência no MAB, conheci outras educadoras que desejavam, assim
como eu, aprofundar propostas formativas para professoras e professores vividas no contexto
do museu. Ofertávamos oficinas e/ou palestras, mas que se encerravam ali. Desse desejo de
aprofundamento nasceram, de forma independente do museu, dois projetos: Literatura Negra e
Oral, um Tesouro Ancestral e Ìrètí – Formação em Cultura Negra para Educadores,
vencedores de três concursos culturais do Proac, da Secretaria de Cultura do Estado de São
Paulo, os quais abordarei a seguir.
brasileira em que são narradas as histórias dos orixás, divindades provindas das culturas
iorubá, banto e fon, cultuadas nas religiosidades de matriz africana no Brasil.
Algumas relatavam que seria difícil contar essa mitologia na sala de aula, pois muitos
alunos eram evangélicos e as famílias se manifestariam negativamente. Precisei então
contextualizar historicamente a mitologia nas relações humanas, como bem diz Vanda
Machado quando defende a oralidade como campo de conhecimento e de sua preservação no
Brasil nos terreiros de candomblé.
Ela nos apresenta a possibilidade de compreendermos a mitologia dos orixás, assim
como o candomblé, como a base “na concepção do homem, do seu lugar e do seu papel no
seio no universo. Ela envolve uma visão singular do mundo [...]. A cultura africana não é,
portanto, algo abstrato que possa ser isolado na vida” (MACHADO, 2002, p. 71).
O que me permitiu provocar as professoras sobre o que de fato impedia a mitologia
dos orixás de estar nas escolas? Pois, ao estudarmos essas histórias, ao estudarmos a cultura
africana, ao a apreciarmos como arte e a vivermos como cultura, estamos garantindo nossa
formação cultural brasileira.
Poder perceber no horizonte que estamos na direção de práticas pedagógicas que
garantem aos alunos o direito de se desenvolverem plenamente, de terem proteção à formação
de sua identidade cultural, fundamentou e justificou para algumas o estudo dessa mitologia.
Contudo, a maioria não conseguiu olhar para além dos problemas que surgiriam se elas
levassem a escuta e/ou leitura das histórias dos orixás para sua rotina em sala de aula.
No estudo dos contos tradicionais africanos, trabalhamos com o conto “Elefante antes,
elefante depois”, do povo saras do Chade, que narra a história de uma elefanta que, junto com
sua manada, despe-se de sua pele animal, torna-se humana e vai refrescar-se no Rio Chade.
Por conta do desejo insano de um caçador, ela não encontra sua pele e permanece humana,
torna-se sua esposa e com ele tem filhos. Após anos de convivência e adaptação à vida
humana, um dia sua rotina de mãe e dona de casa é quebrada, pois, ao reencontrar sua pele,
ela imediatamente volta para sua manada.
O grupo mostrou-se resistente ao conto por ele ir de encontro a algumas moralidades
específicas de uma cultura baseada no cristianismo. Na transformação de animal em humano,
de humano em animal, mesmo que não se explicite cunho religioso, há a magia, e atualmente
parece ser complexo tratar de elementos mágicos na educação infantil e fundamental, reflexo
da “demonização” de tudo o que não é compreendido ou do que não é cristão, principalmente
no ponto de vista dos adeptos das igrejas neopentecostais.
80
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando
se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se
generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Uma
das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa,
e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo.
(BENJAMIN, 1994, p. 202)
racismo sem enfrentar o racismo estrutural. Dessa forma, novos propósitos para futuros
projetos de formação de professoras e professores nasceram.
Mas no Brasil ela foi usada para excluir tudo o que se relaciona à cultura negra, que é
esvaziada e reduzida às religiões de matriz africana. A intolerância religiosa faz com que uma
mitologia seja vista unicamente como expressão de uma religião e não como parte de um
arcabouço cultural milenar, onde o culto às divindades é um dos aspectos, e não sua
totalidade. Racismo e intolerância religiosa andam juntos e se fundem quando o assunto é
mitologia afro-brasileira.
Nos últimos encontros, quando preparávamos a roda final de histórias, percebi que
poucas haviam escolhido a mitologia dos orixás e, mesmo depois dos estudos sobre como o
sincretismo contribuiu para a demonização dessas divindades, professoras com orientação
religiosa neopentecostal diziam abertamente que “os demônios” não entrariam em sua sala de
aula.
conteúdo, carga horária e currículo das formadoras e formadores, mas me deparei com o
primeiro obstáculo.
Quando iniciei o diálogo com os responsáveis, o município estava entrando no
segundo ano de uma nova abordagem da gestão. A gestão anterior, que acolhera e apoiara o
projeto Ìrètí em 2014 e 2015, apresentava em sua estrutura políticas públicas de formação
para professores em cultura negra. Havia em seu plano de metas a viabilização e
implementação das Leis nº 10.639 e nº 11.645 (BRASIL, 2003a, 2008). Para isso havia
criado, na Secretaria Municipal de Educação, o Núcleo de Educação Étnico-Racial, o qual,
entre outras políticas, desenvolvia, em parceria com a Secretaria Municipal de Promoção da
Igualdade Racial, um conjunto de ações com foco na formação continuada de professoras e
professores.
Mas a nova abordagem da gestão tinha outros focos de ação com formação de
professoras e professores. Nos primeiros contatos com a DRE após apresentar a proposta
uma formação de três meses com um encontro semanal de três horas cada, com 40 vagas para
professoras de diferentes escolas , percebi que discutir racismo no contexto escolar não
estava entre as prioridades da equipe.
Houve reações de aparente interesse, pois relataram que em uma escola específica
havia uma demanda com estudantes haitianos e que, segundo a responsável, poderíamos
desenvolver projetos para auxiliá-los com a mediação cultural. Apesar de saber que esse não
era o objetivo da pesquisa de campo, para não perder a oportunidade do diálogo demos
encaminhamento às burocracias. Mandei o projeto da formação conforme solicitado, mas
nunca obtive nenhum tipo de retorno, somente uma desculpa diferente a cada ligação, até o
dia em que não me atenderam mais.
Com o passar do tempo, percebi que teria de mudar o plano de ação. Busquei ajuda de
ativistas culturais da região, gestores e supervisores de ensino que conhecia, que me alertaram
para o momento que vivemos, onde pautas sobre igualdade racial não fazem sentido. Há a
equivocada ideia de que tratar especificamente de uma cultura como a cultura negra pode
causar segregação.
Senti uma grande frustração, mas na conversa com minha orientadora compreendi que
o que planejamos no projeto de pesquisa nem sempre é o que realizamos. Apesar de sempre
ter a metáfora do vento de Iansã como motivação para não desistir de encontrar caminhos, fui
tomada pela imagem da água que, mesmo que demore, penetra sem ser percebida.
Compartilhando minhas frustrações com Juliana Balduíno, educadora e ativista
cultural do Coletivo Cultural Esperança Garcia, que desenvolve em nosso bairro o projeto
86
em seu lugar de jornadas duplas, triplas, de almoços pelo caminho, das horas de trajeto, dos
fins de semana e feriados voltados para o trabalho com correções que parecem infinitas, é
muito mais difícil.
E assim conquistei um primeiro encontro para me apresentar, contar que aquela
pesquisadora da Unesp era só uma criança do bairro que teve algumas oportunidades, alguns
poucos, mas preciosos olhares de professoras e professores que acreditaram na sua trajetória,
nos caminhos que ela ainda poderia trilhar. E era preenchida de afeto que eu queria estar ali,
compartilhando memórias e contribuindo para a reescrita das histórias acerca da arte e cultura
da população negra.
Após o primeiro encontro, percebi que haveria ainda muita resistência às discussões
que iria propor. Passamos a nos encontrar três vezes por mês, sempre às segundas-feiras, das
12h30 às 13h30, de agosto a dezembro de 2018. O grupo foi diverso, tendo algumas poucas
presenças que foram permanentes. Os encontros, quase sempre com menos de uma hora
devido a atrasos e saídas antecipadas, fizeram-me acreditar que o vento de Iansã havia me
levado até lá, mas para permanecer e trazer algum sentido seria fundamental que eu
permanecesse água doce, paciente e persistente.
Sem poder ser, sem poder pertencer, sem poder criar vínculos afetivos com o contexto
escolar, como se conscientizar? Como haverá diálogo? Haverá indisciplina.
Nas experiências formativas anteriores, recebi professoras que vieram em busca de
conhecer as culturas africanas e afro-brasileiras para proporcionar a seus alunos e alunas
88
experiências que considerassem sua realidade sociocultural. A procura era individual e por
razões diversas, mas motivada por um desejo.
Agora a experiência seria diferente: o trabalho formativo era com parte do corpo
docente de uma única unidade escolar, onde os perfis de atuação e formação eram diversos. E
deixaram muito claro que não viam a necessidade de dedicar sua reunião coletiva ao estudo
das artes e culturas negras. Havia professoras e professores, gestoras e gestores, com
especializações, mestrado e doutorado, inclusive com recorte sobre relações raciais ou
culturas negras, e uma grande maioria sem formações continuadas em qualquer área.
Assim, decidi iniciar com um levantamento sobre suas experiências formativas antes
da graduação. Meu objetivo era entender que experiência formativa elas traziam, para a partir
desse levantamento justificar a necessidade dos nossos estudos.
Abaixo os dados pedidos e as orientações sobre os temas:
Nome:
Formação:
Ano de conclusão:
Disciplina:
Faixa etária dos alunos:
a) África
b) Africanos (as)
c) Relação entre continente africano e Brasil
d) Negros (as) brasileiros (as)
e) Cultura negra
f) Escravidão
Após ler individualmente as fichas, elaborei um quadro com colunas de cada tema
relacionado com a questão central: “Quais histórias você ouviu sobre”; transcrevi a síntese de
alguns e copiei as respostas já sintéticas de outros. Pudemos, posteriormente, analisar juntos e
compreender coletivamente o que mais sobressaía nas respostas e qual narrativa sobre a
população negra se desenhava:
89
Lugar pobre de Vieram como Lugar de onde Descendentes dos Não considerada Triste que durou
onde vieram os escravos para o vinham os escravosescravos vindos da como boa; muito tempo,
escravos, lugar Brasil África Religiões faladas distante da nossa
com animais de forma realidade.
preconceituosa e Princesa Isabel era
pejorativa maravilhosa
Extrema pobreza, Pobres com cultura Local pobre de Habitantes de Cultura inferior e Novelas e filmes
povos exóticos, e religião onde vieram os favelas, vulgar, romantizavam;
havia escravos, diferenciada, ajuda escravos; marginalizados, religiosidade Princesa Isabel
lugar com animais externa para Brasil escravizou ninguém gostava. temida, samba, salvadora;
sensacionais, Egitosobreviver, fome africanos Sem expressão obscuridade,
Livros com histórias
e Saara, fome e profissional com poucas influências superficiais
guerras exceção dos dos negros em
esportistas e nossa cultura
artistas.
Feio falar negro ou
preto
90
Professora: Eu até falei: “nossa, que coisa ruim de fazer!” Você até olhou
pra mim [risos entre nós duas]. Mas assim, eu sei que você entendeu, mas é
assim de remexer nessas coisas mesmo. Como eu estava te falando, eu até
tive uma boa base, mas foi uma base [familiar] que eu vim entender depois,
na fase adulta. Que essa boa base, depois a gente vai passando e vai vendo:
“não, não é assim”. Só que eu não entendo, como você falou na semana
passada, é preciso ir buscar. É muito recente essa busca de um novo olhar, de
uma outra história. Então, assim, escrever sobre esses momentos, em que eu
acho que a escola me deu mais histórias, mais do que no núcleo familiar,
então [histórias] de preconceitos, de discriminação, foi na escola.
perceber, a partir do seu registro, o que eu estava individualmente relatando, que contamos
sempre uma história única, assim como disse a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi
Adichie em sua célebre palestra na Conferência anual – TED Global 2009, no Reino Unido,
segundo vídeo que passei no primeiro encontro. E quantos perigos moram nas histórias únicas
sobre indivíduos, culturas, países e continentes.
Fizemos também um jogo rápido usando a lousa: eu escrevia uma palavra/conceito e o
grupo deveria falar a primeira palavra associada que surgia em sua mente, com o objetivo de
acessarmos o senso comum onde estão nossas histórias únicas. As palavras/conceito também
se relacionavam com a população negra; foi um momento de descontração, apesar da prisão
que esse senso comum traz para os corpos negros. Mas o riso quase nervoso foi embora
quando escrevi: criança negra.
Pesquisadora: Vamos gente, sem formular, digam a primeira coisa que vem
à mente.
Professora 1: Coitado
Professora 2: Pobre, frágil.
[silêncio constrangedor]
Pesquisadora: Vamos, coloquem para fora, sem constrangimentos.
Professora 3: Cabelo despenteado.
Pesquisadora: Vamos gente, não se julguem.
[burburinho, sussurros, respirações profundas]
Professora 4: É difícil, eu tô passando mal.
Pesquisadora: Então, gente, nosso trabalho vai ser pôr o dedo na ferida,
passar remédio, pra poder limpar, secar e, se dermos sorte, cicatrizar. Se a
gente não fizer isso, vai ser de faz de conta essa formação. Cada um
individualmente vai precisar olhar para sua mala, o que carrega do racismo.
Se você não se considera racista, se você acredita que não tem a prática
racista no seu dia a dia, isso não te livra de reproduzir o racismo, não te livra
de cair em armadilhas. Então, se a gente não olhar de verdade e não assumir,
ficar nesse discurso de “eu não sou racista” sem nunca ter feito essa
avaliação antes, precisamos ser honestos com a gente mesmo pra podermos
avançar.
Professora 5: Então, eu penso que as coisas não dão certo na educação
nunca, porque sempre é teórico. Como você disse, “apesar da formação que
eu tenho, dos estudos que faço, eu me policio diariamente”. Porque na vida
prática não existe teoria, não são os teóricos que a gente vai buscar, porque
não adianta nada a gente estudar muito.
A primeira coisa que vem é, apesar de tudo que eu já estudei, de tudo que eu
conheço, porque quando fala criança negra... Vêm várias outras coisas, é que
reproduzir é complicado, tá dentro do nosso histórico, tá dentro da nossa
vivência, a gente tem referências péssimas. Se alguém aqui teve, ótimo, eu
não tive. Na minha casa principalmente, eu venho de uma família
extremamente racista, mas eu não sou racista. A minha mãe fala: ele é negro,
mas você viu como ele é legal?
É isso que a gente traz, por mais que a gente não concorde, por mais que
hoje tenha uma outra visão, esse trabalho de trazer à tona é importante,
porque a gente reproduz a todo o momento, não é teoria.
93
Giselda: A gente precisa levar pra prática, essa é a minha intenção, provocar
vocês pra vida da linha de frente, que é onde vocês estão. A teoria é
fundamental, os estudos, as pesquisas, mas a gente precisa encontrar um
lugar de diálogo entre esses dois universos.
Professora 5: Porque às vezes a teoria fica só na teoria.
Giselda: E a gente morre na hipocrisia. A gente pega chaves, né, eu tenho
que dizer isso aqui, eu já sei que eu não posso mais dizer que a África é um
país, que ela é um continente, pronto, tá superado.
Poder rever a narrativa que é reproduzida para nossos milhares de alunos durante anos
de carreira foi fundamental para o grupo presente nesses três primeiros encontros
compreender que não estava ali para acusar ou julgar nenhum professor, mas sim para auxiliar
na construção de novas possibilidades de narrativa sobre nossa ancestralidade negra.
Como bem disse a professora, de nada adianta a teoria alcançada por títulos,
certificados e diplomas se não nos revermos no nosso dia a dia e transformarmos práticas
racistas naturalizadas. O grupo forçosamente se perguntou: “o que há no meu imaginário
sobre as crianças negras?”, que é importante lembrar, são maioria nas escolas públicas. Se não
conseguimos encará-las e vê-las capazes, repletas de saberes, belezas e contextos culturais
que precisam ser considerados, como vamos ensiná-las? Como uma professora dará o seu
melhor se ela sequer percebe humanidade nesses pequenos corpos? Falar do que se vê
agregado à imagem da criança negra foi um dos momentos mais indigestos para o grupo, pois,
mesmo não sendo dito, o exercício mostrou a cada um o que habita seu imaginário. E é tão
cruel que causou mal-estar e vergonha.
Essa discussão auxiliou algumas professoras no entendimento do caminho que iríamos
percorrer; encontramos um ponto em comum na formação de uma grande maioria de
professoras, e a atuação do racismo nessa formação ficou mais evidente, ou talvez possa afirmar
que, após esses encontros iniciais, pudemos concordar como há um imaginário comum nos
espaços formativos que só reforça estereótipos negativos relacionados às histórias de origem
das populações negras.
Poderíamos agora, então, deixar a superfície do senso comum coletivo e mergulhar na
profundidade da existência de cada uma, falar das nossas histórias de origem e de como elas
poderiam ser também atravessadas pelo racismo.
94
imaginário dessa criança? Que ela nunca acessa, que ela nunca vai acessar,
nem sonhar ela pode. Agora, da menina branca pobre, mesmo que ela não
seja rica, a representação parte de um lugar que eu tenho que ser exatamente
aquilo? Eu preciso ser uma princesa rica pra me ver representada como uma
princesa rica? A gente tá falando do imaginário. Essa menina branca, ela se
vê nos livros, mesmo que ela não seja rica, ela se vê nos livros, mesmo que
ela não seja rica, ela tá ali de alguma maneira. E a menina negra, ela não vai
se ver nem como princesa. O único lugar da história que sobra pra ela,
falando de conto de fadas, é o de quem serve ou do vilão, tá sempre nessas
representações, falando da figura, da imagem que aparece nos livros infantis.
Então, esse lugar de relativizar as coisas é o que a gente tem feito até hoje na
Educação. Eu vou relativizando, mas não é tão ruim assim, não é tão
prejudicial assim... Mas olha, quem é que tá dizendo isso, né? É quem vive
essa parte da exclusão dentro do processo da educação? A gente já ouviu
essas crianças de fato? A gente já ouviu as famílias, e as mulheres que foram
crianças, enfim... É nesse lugar que eu tô querendo que a gente pare pra
observar.
Professora A No semestre passado, o Sesi escolheu um dos livros que as
crianças vão ler durante o bimestre, o semestre. Numa dessas escolhas, havia
um livro que é a história de uma princesa africana e aconteceu o seguinte:
uma das famílias se sentiu incomodada e escreveu uma carta pra escola,
dizendo que não queria que se lesse aquele livro, né, e a escola então disse:
tudo bem, não é pra ler o livro da princesa africana, então não vamos ler. Só
que isso caiu na mídia e virou um bafafá lascado, o Sesi teve de se retratar e
o livro entrou de novo. Um livro premiado, né, houve uma discussão muito
grande sobre essa questão. Aí, Professora B, pra você ver como isso é tão
atual, a escolha de um livro é censurada porque uma família acha que uma
família africana não interessa.
Pesquisadora: É porque o olhar sobre esse livro tem a ver por ser histórias
de orixás. Aí a gente volta por que eu trouxe esse vídeo pra vocês assistirem.
Por que falar de candomblé e não falar, sei lá, de qualquer outra coisa da
cultura negra brasileira, mas por que falar de candomblé? Vocês foram pra
casa pensando nisso? Por que essa mulher trouxe esse vídeo aqui pra gente?
Professora C Ah, mas acho que também é da nossa cultura falar de
religiosidade de matriz africana. Lembro quando eu tava, acho no 1º ano do
ensino médio, meu professor de História deu um ano de mitologia grega e
romana. Eu falava: “Meu deus, que saco!” O ano inteiro a gente tá estudando
Zeus bem aprofundado, Poseidon totalmente aprofundado. Eu não conhecia
candomblé na época, mas eu pensava: “gente, tudo bem, é especialista no
assunto, mas o ano inteiro?” Gente, eu sei muito sobre Poseidon, eu sei
muito sobre [?] e por aí vai. Aí, quando se vai pensar nessas religiosidades,
não pensa em olhar com respeito pra essa mitologia do orixás.
Por exemplo no museu [MAB], a gente chegava lá no setor dos orixás, aí a
gente apresentava pras crianças: “Ai, credo, isso é macumba!” Não sei o
que... E a gente aproximava Xangô de Thor, trazendo as mesmas
características. “ Você tá vendo que Thor é muito parecido com Xangô, só
que a diferença é que Thor é grego e Xangô africano? Ah, mas é que Thor
tá na Marvel, ah, Thor não sei o que...” Sempre tinha uma justificativa pra
valorizar o Thor e inferiorizar o Xangô. Então, eu acho que é isso, se faz
parte da nossa cultura, por que não ? [o racismo?] Então é essa estrutura
racial.
Professora D Eu queria até citar sobre toda a questão da ancestralidade,
né, de que na África a questão da religião foi implantada mesmo pelo
97
Ao escrever, ler, ouvir nossas histórias, podemos revisitar posturas racistas e, se assim
estivermos dispostos, podemos experienciar uma retomada de consciência, fundamental nos
processos de formação onde se desejam mudanças efetivas.
Com suas histórias de origem e formação, essas professoras apontam para direções que
podem contribuir na reconstrução da narrativa sobre a origem negra em suas histórias
individuais, ressignificando e devolvendo valor às narrativas invisibilizadas e auxiliando nos
processos com o reconhecimento de seus papéis na história afro-brasileira.
Depois desse encontro, algumas professoras brancas me procuraram individualmente
para contar mais e mais histórias em que agora elas compreendiam haviam sido
testemunhas do racismo cometido com filhos afrodescendentes, avós e avôs negros, amigas e
amigos. Estavam sempre atravessadas pela emoção em reviver, e agora se dando conta do que
realmente estava se passando.
Houve relatos sobre finalmente compreender que algumas situações que consideravam
brincadeira ou mal-entendidos eram casos de racismo sofrido pelas pessoas com as quais têm
vínculos afetivos. E, apesar de não chegar nem perto da dor que é reviver tais histórias sendo
uma pessoa negra, essa retomada de consciência de professoras brancas é fundamental para
construirmos projetos pedagógicos com a participação das culturas negras de forma coletiva,
envolvendo toda a equipe de docentes, e não só pela obrigatoriedade por conta de uma lei
federal, mas por desejo de mudança para uma educação mais justa e qualificada para todos.
Senti o grupo finalmente mais comprometido com as discussões que ali provocava;
deixávamos de estar numa formação sobre algo que era um problema no contexto escolar
somente para algumas pessoas negras, e começamos a ter uma formação sobre um problema
que é de todos nós.
105
Enquanto caminhava, pensei em cada um dos meus medos: de não ter trabalho, de não
ter sustento, de voltar a sentir os medos que tinha na infância e adolescência, medo de não
voltar para casa viva, medo de não voltar intacta. Medo de ser silenciada.
Cheguei atrasada, a caminhada me exigiu mais do que eu esperava. Na sala onde
habitualmente nos reuníamos, foram chegando as poucas professoras e professores, todos
visivelmente abatidos, inclusive eu.
Contei a eles sobre a caminhada, os jovens, os medos. E eles, aos poucos, foram
contando os seus. Decidimos não gravar.
Engasgos nas vozes, busca de palavras, constrangimentos. Não estava fácil contar
como se sentiam, era difícil entender. Na noite anterior, logo após a vitória do candidato de
extrema direita, uma deputada lançou em sua rede pessoal um comunicado que estimulava
alunos a filmarem as aulas e denunciarem casos de “formação ideológica de esquerda”.
Num curto espaço de tempo, os professores deixaram de ser apenas profissionais
desvalorizados para se tornarem alvos de perseguição, acusados de reproduzir ideologias de
esquerda caso contassem fatos históricos que colocassem em dúvida a narrativa difundida
pela extrema direita.
E assim, em meio à neblina, tentávamos nos reconhecer no novo cenário político que
se instaurava e nos localizar na História ouvindo relatos sobre vizinhos na periferia que
comemoraram a vitória do candidato, sem parecer entender que eles também eram alvo nesse
novo cenário. Ouvimos o relato sobre um filho que, por conhecer as visões políticas da mãe e
sua atuação no campo dos direitos humanos na Educação, abraçou-a e chorou, por acreditar
que ela também seria alvo. Ouvimos o medo na voz de um professor homossexual, que se
sentia em risco por acompanhar a entrada e saída dos alunos, pois sabia que muitos pais não o
aceitavam e que agora estavam encorajados a manifestar-se, até fisicamente.
Ao fim do encontro, respiramos fundo e falei sobre meu exercício imaginativo com a
imagem de Oyá em meio à tempestade, exercício ao qual sempre recorro em situações em que
não encontro forma de escapar, transformar ou encarar. Descrevi o redemoinho, o tufão, e nos
transportei para esses lugares, literalmente no olho do furacão. Imaginamos como Oyá em sua
forma humana lida com a tempestade; exercitamo-nos com a imagem dela serena,
observando, enquanto decidia o melhor a fazer. Estudar a tempestade para usar a própria força
do furacão para movimentar-se.
Em muitos momentos, as histórias foram a minha estratégia para sobreviver às
tempestades que enfrentamos quando nos dispomos a ser professoras, e até ali se fez
necessário recontar as histórias já conhecidas sobre a população negra para ofertar-lhes a
107
oportunidade de conhecer a arte e a cultura negra a partir de outra perspectiva que não a
hegemônica, eurocêntrica e masculina. Foi preciso abrir a escuta e deixar ressoar as falas
nascidas do racismo estrutural na educação nos nossos núcleos familiares, pois acreditava que
somente assim as histórias das culturas tradicionais africanas e afro-brasileiras poderiam
chegar e fazer seu papel.
Durante os encontros em que apresentei dados históricos, também narrei histórias da
mitologia afro-brasileira, a mitologia dos orixás. Elas foram o exemplo da narrativa de como a
memória foi meio de resistência e permanência da ancestralidade negra africana, e sem o
exercício de desconstrução de visões racistas sobre a cultura negra seria mais difícil a chegada
das histórias, pois, para a melhor vivência com a formação proposta, era fundamental
reconhecer o candomblé como campo para se fertilizar a memória de nossa identidade
ancestral.
Tivemos apenas dois encontros exclusivos com os mitos e contos tradicionais. Num
primeiro momento, apresentei meu acervo pessoal, com obras divididas em três temas: mitos
e contos de tradição oral, valorização da estética negra e criações autorais baseadas nas
culturas tradicionais negras.
Fotografia 17 Tesouros
a frustração de não ter chegado ao fundo no mergulho proposto, retomei a fé de que onde os
ventos movimentam, há mudanças por menores que sejam. A água umedece e empoça, às
vezes lentamente, os ventos movimentam mesmo quando imperceptível aos nossos sentidos.
110
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E foi a inquietude do fogo que me fez perguntar: como seria possível as crianças
ouvirem as histórias da nossa ancestralidade negra? E ainda havia uma ventania ao meu redor.
Iansã mandou encontrar a sabedoria dentro de mim, o vento ventou e só fez o fogo se alastrar
ainda mais. Queimei, adoeci. E por meio da busca da cura e da resposta à pergunta acima foi
que cheguei até aqui.
Uma pesquisa que é permeada pela revisitação de minha trajetória fez-me rever muitas
dores, culpas, inquietações, que acreditei estarem resolvidas no passado. Mas, no estudo com
as culturas africanas, por meio dos mitos e contos africanos e afro-brasileiros, encontrei de
diferentes formas a indicação de que nós somos, hoje, parte do nosso passado. As histórias do
passado, presente e futuro se intercruzam a todo momento em nossas vidas e é preciso
relacioná-las, colocá-las em diálogo. Como imageticamente me coloquei na encruzilhada
desse diálogo, pude ressignificar, redimensionar e tecer novos conhecimentos para seguir para
o futuro.
Compreendi ser esse o momento do cruzo apontado por Rufino (2019) dentro de sua
Pedagogia das encruzilhadas, com a qual tanto me identifiquei ao projetar um futuro de
práticas pedagógicas em Arte, na formação de professoras e professores, de artistas e de
crianças.
Esse momento onde, em nossas trajetórias formativas, somos conduzidos a nos rever
pode ser confuso e doloroso, pois inclui a imagem da encruzilhada como exercício formativo,
força-nos a mudar a chave da nossa leitura de mundo. Somos educados a compreender a vida
de forma compartimentada, onde passado, presente e futuro não se relacionam. A educação
ocidental limita-nos o acesso a toda a potencialidade de nós mesmos, de nossas histórias e
trajetórias, e reserva para nossas heranças culturais negras e ameríndias um espaço somente
alegórico.
O processo de retomada da consciência que acontece num processo formativo com as
histórias de vida é contínuo e revolucionário. Esta pesquisa trouxe-me de volta ao
entendimento de que a formação é para todo o percurso. Os apontamentos aqui trazidos, de
caminhos de desconstrução dos racismos na educação escolar, podem também abrir
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Pergunta formulada em exercício na busca do alvo da pesquisa, sob orientação da professora doutora Regina
Machado, em 2012.
111
cura para encantar as folhas agora eram também a sabedoria de outros orixás, que ajudariam a
preservá-la e multiplicá-la.
Então, o homem de poucos amigos perturbou-se uma noite inteira, perdendo o sono e
percebendo que, ao ser esparramada, a sabedoria seria também preservada e multiplicada. Ao
amanhecer, decidiu fazer uma festa e mandou convites a todos os reinos, inclusive a Xangô.
Mesmo desconfiados de um convite para uma festa na casa de Ossaim, todos os orixás
compareceram.
Ossaim havia preparado a casa com defumação com ervas, banhos de água de cheiro
e folhas e flores frescas. O aroma e o frescor acalmaram a todos, que formaram uma grande
roda ao redor de Ossaim. O único dono da sabedoria milenar ensinou a cantar e encantar cada
uma das folhas, foi um dia muito bonito. Naquela noite, Ossaim dormiu um sono bom.
Ele sabia agora que o compartilhamento é parte da preservação; com cuidado e na
dose certa, também pode curar. Hoje para nós, negras e negros e afrodescendentes não negros,
tomar um banho de ervas ou ouvir as histórias da cultura tradicional africana, vivenciar
experiências com a cultura negra, pode criar pontos e preenchimentos para as lacunas da
história das artes e culturas negras no Brasil, tornando visível o invisível por meio de nossos
corpos, de nossa ação concreta.
Compartilhar saberes milenares entre nossos descendentes pode ser uma forma de
resistência às opressões; por isso, contemos nossas histórias para preservá-las e para temos
parte da nossa história de origem que não está escrita em livros da historiografia oficial.
Multiplicar nos fortalecerá.
Que os ventos de Iansã continuem a movimentar e possibilitar mudanças e renovações,
mudanças de paradigma, revisões epistemológicas, principalmente no que se refere à
formação inicial e continuada de professores. Que sejamos capazes de construir uma
formação que reconheça o quanto a educação formal contribui para a permanência do racismo
e da intolerância religiosa no contexto escolar.
Que este trabalho umedeça as estruturas do ensino das artes tão ressecadas pela aridez
do racismo e ajude o florescer de novas práticas antirracistas, principalmente na formação das
futuras professoras e professores de todas as áreas do conhecimento.
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