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29/03/2020 A beleza e a evolução

Pushnews
EDIÇÃO 162 | MARÇO_2020

questões científicas

A BELEZA E A EVOLUÇÃO
O extravagante esplendor do reino animal não pode ser explicado apenas pela seleção natural –
então, como foi que ele surgiu?
FERRIS JABR

O colhereiro, cercado por pássaros de plumagem monótona, exibe toda a exuberância de sua beleza: há casos exemplares da
capacidade da natureza de levar criaturas a extremos estéticos CRÉDITO: SCOTT SURIANO

O
Sericulus aureus ardens macho é um pássaro de beleza
incandescente da família dos ptilonorinquídeos. Sua plumagem
transita suavemente do vermelho-escuro ao amarelo solar. Mas esse
brilho radiante não é suficiente para atrair uma parceira. Quando os
machos de boa parte da família dos ptilonorinquídeos estão prontos para
cortejar uma fêmea, eles começam a construir a estrutura que lhes é
peculiar e que se assemelha a um caramanchão: um conjunto de galhos a
que dão a forma de um coruchéu, de um corredor ou de uma cabana.
Decoram, então, esse caramanchão com toda sorte de objetos coloridos,
como flores, frutinhas vermelhas, conchas de caracóis ou, quando
próximos de uma área urbana, tampas de garrafa e talheres de plástico.

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Alguns desses pássaros chegam mesmo a dispor os itens de sua coleção


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em ordem crescente de tamanho, do menor para o maior, formando,
assim, uma passarela que os torna, a eles e a seus adornos, ainda mais
chamativos aos olhos das fêmeas – uma ilusão de ótica conhecida como
perspectiva forçada, algo que os humanos só foram aperfeiçoar no século
XV.

Mesmo essa extraordinária exibição, no entanto, não é o bastante para a


fêmea. Caso ela demonstre algum interesse inicial, o macho precisa agir
depressa. Ele então olha fixamente para ela, as pupilas dilatando-se e
encolhendo-se ao ritmo das batidas do coração, e dá início a uma dança
que poderia ser descrita como provocante e psicótica. Sacode, agita e
estufa o peito. Agacha-se bem e, depois, se ergue lentamente, brandindo
uma asa à frente da cabeça como a capa de um mágico. De repente, seu
corpo todo se convulsiona como um despertador de corda. Se a fêmea
aprovar, vai copular com ele por dois ou três segundos. E nunca mais se
encontrarão.

Os ptilonorinquídeos desafiam o conhecimento tradicional que se tem do


comportamento dos animais. Eis aí criaturas que perdem horas cuidando
meticulosamente de um gabinete de curiosidades, agrupando seus
tesouros por cor e semelhança, produzindo com seus bicos coisa bem
mais sofisticada que muitas das celebradas ferramentas construídas por
animais – os galhos desfiados que os chimpanzés usam para pescar
cupins mal se comparam a sua obra. Pelo menos um cientista já postulou
que o caramanchão dos ptilonorinquídeos é nada menos que arte.
Quando se leva em conta cada elemento de sua corte – o figurino, a
dança, a escultura –, o todo evoca um conceito que o compositor alemão
Richard Wagner prezava muito: o da Gesamtkunstwerk, a obra de arte
total, que mescla muitas formas diferentes e estimula todos os sentidos.

Essa extravagância é também uma afronta às regras da seleção natural.


Adaptações devem ser úteis – essa é a ideia –, e as criaturas mais bem-
sucedidas deveriam ser aquelas mais bem-adaptadas a seu ambiente.
Portanto, qual a justificativa evolucionária para toda essa ostentação dos
ptilonorinquídeos? Quando não estão fazendo a corte, suas penas
coloridas e suas elaboradas construções não apenas carecem de todo e

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qualquer valor como, além disso, constituem um empecilho à sua


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sobrevivência e ao seu bem-estar geral, porque drenam calorias preciosas
e os tornam mais visíveis a predadores.

Numerosas espécies apresentam ornamentos sexuais (como os chamam


os biólogos) conspícuos, custosos do ponto de vista do metabolismo e
fisicamente penosos. Pense nos pescoços brilhantes e elásticos dos
lagartos anólis, alguns dos quais são chamados de papa-ventos, no
abdome Fabergé da aranha-pavão e nas penas ridiculamente longas,
encaracoladas e iridescentes das aves-do-paraíso. Para conciliar tamanho
esplendor com uma visão utilitária da evolução, biólogos postularam que
a beleza no reino animal não é mero elemento decorativo, e sim um
código. De acordo com essa teoria, os ornamentos se desenvolveram
como indicadores das qualidades vantajosas potenciais de um macho:
sua saúde, sua inteligência e capacidade de sobrevivência, características
que, ademais, ele vai transmitir com seus genes aos filhotes. Um pássaro
da família dos ptilonorinquídeos com plumagem particularmente
brilhante pode ter um sistema imunológico robusto, por exemplo, ao
passo que outro, capaz de encontrar ornamentos raros e únicos, talvez
seja um caçador excepcional. A beleza, portanto, não iria de encontro à
seleção natural, mas seria, sim, parte integrante dela.

O próprio Charles Darwin discordava dessa teoria. Embora ele tenha sido
um dos descobridores da seleção natural, tendo dedicado boa parte da
vida a demonstrar sua importância, Darwin jamais postulou que ela
explicava tudo. Os ornamentos, propôs, desenvolveram-se graças a um
processo à parte que ele chamou de seleção sexual: as fêmeas escolhem os
machos mais atraentes “de acordo com seu próprio padrão de beleza” e,
em consequência disso, os machos se desenvolvem na direção desse
padrão, custe o que custar. Darwin não achava necessário vincular
estética e sobrevivência. Os animais, acreditava, são capazes de apreciar a
beleza pela beleza em si. Muitos de seus colegas e sucessores
ridicularizaram essa ideia. Para estes, a noção de que os animais teriam
tal sofisticação cognitiva – e a de que as preferências de fêmeas
“caprichosas” seriam capazes de moldar espécies inteiras – era absurda.
Ainda que jamais tenha sido esquecida, a teoria da beleza de Darwin foi,
em grande medida, abandonada.

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Agora, quase 150 anos mais tarde, uma nova geração de biólogos está
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retomando essa ideia negligenciada. A beleza, afirmam, não precisa ser
uma representante da boa saúde ou de genes vantajosos. Às vezes, ela
nada mais é que o produto fútil da preferência arbitrária. Os animais
simplesmente acham atraentes certas características – um brilho
vermelho, um floreado da plumagem –, e esse seu senso inato de beleza
pode se tornar um motor da evolução, levando-os a extremos estéticos.
Em outros casos, certos imperativos ambientais ou fisiológicos conduzem
um animal a uma preferência estética que nada tem a ver com a
sobrevivência.

Essa nova geração de biólogos não está apenas reescrevendo a explicação


tradicional de como a beleza se desenvolve: está, também, mudando
nossa maneira de pensar a própria evolução. Há décadas, a seleção
natural – o fato de que as criaturas dotadas das características mais
vantajosas têm as melhores chances de sobreviver e se multiplicar – vem
sendo considerada a pedra basilar inequívoca da teoria da evolução. Mas
esses biólogos acreditam que há outras forças em ação, modos de
evolução bem menos comportados e mais dispersivos que a seleção
natural. Não basta levar em conta de que maneira o habitat e o estilo de
vida de um animal determinam o tamanho e a acuidade de seus olhos ou
o número e a complexidade de seus circuitos neuronais. Temos de
questionar também de que modo os olhos e o cérebro de um animal
moldam sua percepção da realidade e como essa maneira única de
experimentar o mundo pode, ao longo do tempo, alterar profundamente
tanto sua forma física como seu comportamento. São de fato dois os
ambientes que governam a evolução das criaturas sencientes: o externo,
ou seja, aquele que elas habitam, e o interno, isto é, o que elas constroem.
Para resolver o mistério da beleza, para compreender a evolução em sua
plenitude, precisamos descobrir os vínculos ocultos entre esses dois
mundos.

T
alvez não haja cientista vivo que defenda de maneira mais
entusiasmada – ou doutrinária – a seleção sexual de Darwin que
Richard Prum, ornitólogo evolucionista da Universidade Yale. Em
maio de 2017, Prum publicou um livro, The Evolution of Beauty (A

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evolução da beleza), que explica com lucidez e paixão sua teoria pessoal
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da evolução estética. A obra foi indicada para o Prêmio Pulitzer de não
ficção geral, mas, no interior da comunidade científica, suas ideias não
desfrutaram de recepção tão calorosa. Repetidas vezes, contou-me ele,
Prum solicitou a opinião de outros pesquisadores, mas não recebeu
resposta nenhuma ou recebeu apenas desculpas de colegas muito
ocupados. Alguns externaram críticas abertas. Num parecer acadêmico
sobre o livro de Prum, Gerald Borgia, um dos maiores especialistas
mundiais em ptilonorinquídeos, e o etologista Gregory Ball descreveram
as passagens históricas da obra como “revisionistas” e afirmaram que o
autor não logrou apresentar argumentos críveis para corroborar sua tese.
Certa vez, enquanto almoçavam burritos, Prum explicou sua teoria a um
colega em visita, que a classificou como “niilismo”.

Em abril de 2018, Prum e eu viajamos pouco mais de 30 km, partindo da


cidade de New Haven, no estado de Connecticut, em direção ao Parque
Estadual de Hammonasset Beach, situado no Estuário de Long Island –
cerca de 360 hectares de uma mescla de litoral, pântano, bosque e
campina. Nossa esperança era a de encontrar ali uma mariquita-de-
capuz. Fazia pouco tempo, observadores de pássaros tinham visualizado
na área essa espécie migratória pequena, mas notável. Antes mesmo de
estacionarmos o carro, Prum recitava os nomes dos pássaros que tinha
ouvido ou visto pela janela do carro: águia-pescadora, andorinha-azul,
pássaro-preto-da-asa-vermelha. Perguntei a ele como conseguia
reconhecê-los tão rapidamente e, às vezes, a distância tão grande. Ele me
respondeu que era tão fácil quanto reconhecer um retrato de Abraham
Lincoln. Para Prum, todo pássaro é famoso.

De binóculo em punho, caminhamos pelas trilhas serpenteantes do


parque, rumando vagarosamente para um grande grupo de árvores.
Prum vestia calça jeans, uma jaqueta acolchoada e chapéu bege. As
sobrancelhas grossas, os óculos redondos e mechas de cabelos brancos e
grisalhos davam a seu rosto um ar de vaga solenidade. Ao longo do dia,
vimos patos-reais, com a cabeça verde-esmeralda, andorinhas-das-
árvores de manto turquesa iridescente, e diversas espécies de pardais,
cada uma delas agraciada com um ornamento único: um amarelo em
torno dos olhos, um delicado bico cor-de-rosa, um penacho cor de cobre.
Num caminho ladeado por árvores, encontramos um pássaro muito

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vívido que jogava folhas para o ar. Prum logo ficou paralisado. Era um
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Toxostoma rufum, disse-me, descrevendo as características da ave com
um misto de precisão e ternura – “de um marrom-avermelhado, com
pintas no peito, olho amarelo, bico curvo, rabo comprido”. Depois,
censurou-me por, em vez de observá-lo com o binóculo, eu ter tentado
tirar uma foto do passarinho.

Passadas cerca de duas horas de caminhada, Prum, rápido e fluente ao


falar, deteve-se no meio de uma frase: “Ali, bem ali!”, exclamou. “Olhe lá
a mariquita! Bem ali na árvore!” Um brilho dourado cintilou. Ergui o
binóculo até os olhos e comecei a vasculhar os galhos à nossa direita.
Quando a encontrei, perdi até o fôlego. O pássaro era de uma beleza
quase mitológica: asas de um verde-musgo, corpo e rosto luminescentes e
um capuz preto perfeito, sob medida para, pelo contraste, tornar-lhe o
semblante ainda mais luminoso. Ficamos vários minutos o observando
saltitar de um lado para o outro, às vezes abanando as penas brancas do
rabo em nossa direção. Por fim, voou para longe. Confessei a Prum que
era mesmo emocionante ver de perto uma criatura daquelas. “É isso”, ele
disse: “É isso que buscam os observadores de pássaros.”

Quando criança, enquanto crescia numa cidadezinha da zona rural do


Sul do estado de Vermont, Prum era, segundo suas próprias palavras, um
“sujeito amorfo e meio nerd”. Adorava ler e decorar estatísticas do
Guinness, mas não era obcecado por nada em especial. Então, na quarta
série, começou a usar óculos, e o mundo entrou em foco. Numa livraria,
topou por acaso com um guia de campo dedicado aos passarinhos, o que
o estimulou a sair mais de casa. Logo estava observando pássaros nos
amplos campos e bosques das cercanias. De tanto ouvir, quase furou dois
discos contendo cantos de pássaros. Fez amizade com naturalistas locais
e saía regularmente em excursão com um grupo de mulheres, a maioria
de meia-idade (e, muito convenientemente, portadoras de carteira de
motorista). Quando estava na sétima série, já liderava excursões pelo
parque local em busca de passarinhos.

Na faculdade, não perdeu tempo e foi logo tirar proveito dos substanciais
recursos ornitológicos da Universidade Harvard. Na primeira semana,
conseguiu as chaves do Museu de Zoologia Comparada, que abriga a
maior coleção ornitológica do mundo sediada numa universidade – hoje

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em dia, quase 400 mil espécimes de pássaros. “Estive associado a uma


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coleção de pássaros de renome internacional a cada momento de minha
vida adulta”, ele diz. “Brinco com meus alunos – e é a pura verdade – que
preciso de pelo menos 100 mil pássaros mortos do outro lado do corredor
para poder funcionar intelectualmente.” (Prum é hoje curador da área de
ornitologia no Museu Peabody de História Natural de Yale.) Escreveu
um trabalho de graduação sobre a filogenia e a biogeografia dos tucanos
e dos capitonídeos, e o fez numa escrivaninha que ficava ao pé de um
esqueleto de moa, uma ave extinta, semelhante ao emu, que atingia 3,5
metros de altura e pesava cerca de 230 kg.

Depois de se graduar em Harvard, em 1982, Prum foi ao Suriname


estudar a família dos tangarás, composta por pássaros muito coloridos
que competem por parceiras valendo-se de um canto agudo e de
números acrobáticos de dança. Em 1984, começou sua pós-graduação em
biologia em Ann Arbor, na Universidade de Michigan, onde planejava
reconstruir a história evolutiva dos tangarás mediante cuidadosas
comparações envolvendo anatomia e comportamento. Foi quando um
colega lhe apresentou alguns trabalhos de pesquisa sobre a seleção
sexual, aguçando-lhe o interesse na história dessa ideia fascinante e, no
entanto, aparentemente negligenciada.

Desde cedo, lá pelos 30 e poucos anos, Darwin já estava interessado em


como os animais percebiam a beleza uns dos outros: “Como a galinha
determina qual o galo mais bonito, qual canta melhor?”, ele rabiscou
numa nota para si mesmo escrita em algum momento entre 1838 e 1840.
Em A Origem do Homem e a Seleção Sexual, publicado em 1871, dedicou
centenas de páginas à seleção sexual, que acreditava capaz de explicar
duas das características mais conspícuas e intrigantes do reino animal:
suas armas e seus ornamentos. Por vezes, na feroz competição por
fêmeas, os machos davam início a uma espécie de corrida armamentista
evolucionária e punham-se a desenvolver armas cada vez maiores –
presas, chifres, galhadas – pois, afinal, os machos mais bem-dotados de
cada geração reproduziam-se à custa de seus pares mais fracos.
Paralelamente, naquelas espécies em que as fêmeas escolhem os machos
mais atraentes com base no gosto subjetivo, eles desenvolviam
ornamentos sexuais bizarros. (Hoje, sabe-se muito bem que os sexos
exercem numerosas pressões evolucionárias diferentes uns sobre os

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outros, assim como se sabe que, em algumas espécies, são os machos que
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escolhem fêmeas dotadas de ornamentos. Até o presente, porém, os
exemplos mais bem estudados dizem respeito à preferência feminina e à
ostentação masculina.)

Ao contrário do que acontece na seleção natural, que preserva


características úteis “na luta pela vida”, Darwin via a seleção sexual
interessada apenas no sucesso reprodutivo, muitas vezes resultando em
traços que punham em risco o bem-estar de um animal. A cauda do
pavão – fascinante, mas desajeitada – era um excelente exemplo disso, e
segue sendo até hoje uma espécie de mascote da seleção sexual. “Um bom
número de machos”, Darwin escreveu, “como é o caso da maioria dos
pássaros mais belos, assim como de alguns peixes, répteis, mamíferos e
de uma série de borboletas de cores magníficas, é bonito pela beleza em
si.”

Seus colegas abraçaram a ideia de machos bem armados duelando por


domínio sexual, mas muitos zombaram do conceito de estética animal,
em parte porque se baseava na consciência dos bichos e no desejo
feminino. Em uma dessas críticas, o biólogo inglês St. George Mivart
enfatizava “a diferença fundamental existente entre os poderes mentais
dos homens e das bestas”, bem como a incapacidade do “rude capricho
feminino” de dar origem a cores e padrões duradouros. Outro inglês, o
naturalista Alfred Russel Wallace – que, independentemente de Darwin,
chegou a muitas ideias idênticas a respeito da evolução –, foi outro que
reagiu de forma bastante crítica. Perturbava-o em particular a sugestão
da beleza sem utilidade. “O único modo de explicarmos os fatos
observados é supor que cor e ornamento estão intimamente relacionados
com saúde, vigor e aptidão geral para a sobrevivência”, escreveu ele. Em
outras palavras, os ornamentos só podiam ser explicados como uma
heurística empregada pelos animais para julgar a aptidão potencial de
um macho para a sobrevivência – visão que acabou por prevalecer.

N
o início da década de 1980, enquanto pesquisava a história da
seleção sexual, Prum leu um artigo seminal sobre o assunto, de
1915, e também um livro, este de 1930, ambos de autoria do biólogo

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e estatístico inglês Ronald Fisher. Fisher reforçou a ideia original de


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Darwin com um entendimento mais sofisticado da hereditariedade. De
início, argumentou, as fêmeas talvez desenvolvam preferências por certos
traços sem valor – uma plumagem brilhante, por exemplo –, casualmente
correspondentes a características como saúde e vigor. Seus filhotes
tenderiam, então, a herdar os genes subjacentes tanto à preferência da
mãe como às características do pai. Mas, com o tempo, essa correlação
genética atingiria um ponto de inflexão e ensejaria um ciclo
descontrolado, o qual, exagerando grandemente tanto preferência como
característica, glorificaria a beleza em detrimento da sobrevivência do
macho. No começo dos anos 1980, os biólogos evolucionistas norte-
americanos Russell Lande e Mark Kirkpatrick deram à teoria do biólogo
inglês uma estrutura matemática formal, demonstrando que a chamada
seleção sexual de Fisher podia ocorrer na natureza e que os ornamentos
envolvidos podiam ser inteiramente arbitrários, e não transmitir,
portanto, nenhuma informação útil.

Embora a teoria de Fisher por certo não tenha sido ignorada, ela acabou
eclipsada por uma série de hipóteses que pareciam salvar a beleza dessa
ausência de propósito. Em primeiro lugar, o biólogo israelense Amotz
Zahavi propôs uma ideia nada intuitiva chamada de “princípio da
desvantagem”, uma ideia que deu novo sentido à explicação utilitária de
Wallace para os ornamentos sexuais. Ornamentos extravagantes,
argumentou ele, não eram meros indicadores de características
vantajosas, como Wallace havia dito – eram, sim, uma espécie de teste.
Se, apesar do fardo de um ornamento desajeitado e custoso em termos
metabólicos, um animal prosperava, então esse animal havia com efeito
demonstrado seu vigor e se provado digno de uma parceira. Da mesma
forma, em 1982, os biólogos evolucionistas W. D. Hamilton e Marlene
Zuk propuseram que certos ornamentos, em especial a plumagem
brilhante, sinalizavam que um macho era resistente a parasitas e
estenderia a sua prole essa mesma proteção. Muitos cientistas começaram
a pensar na seleção sexual como uma espécie de seleção natural. Grande
número de pesquisadores juntou-se à caça pelos benefícios mensuráveis
da escolha de um parceiro atraente – tanto os benefícios diretos, como os
resultantes de pais melhores ou de um território mais desejável, quanto
os benefícios indiretos, ou seja, alguma prova de que machos mais

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atraentes de fato têm “bons genes” subjacentes a suas boas qualidades,


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como a resistência às doenças ou uma inteligência acima da média.

Passados mais de trinta anos de buscas, a maioria dos biólogos concorda


que, embora esses benefícios existam, sua prevalência e sua importância
são incertas. Uns poucos estudos convincentes realizados com rãs, peixes
e pássaros mostraram que as fêmeas que escolhem machos mais atraentes
em geral têm filhotes dotados de um sistema imunológico mais robusto e
de uma chance maior de sobrevivência. No todo, porém, as provas
encontradas ficam abaixo do entusiasmo inicial. Em 2012, uma
metanálise de noventa estudos envolvendo 55 espécies resultou em apoio
apenas “duvidoso” à hipótese dos bons genes.

Prum acredita que as provas dos benefícios decorrentes da escolha de um


macho bonito são escassas porque os benefícios em si são raros, ao passo
que a beleza arbitrária é “quase onipresente”. Ao longo dos anos, quanto
mais ele estudava a seleção sexual de Fisher, mais convencido ficava de
que ela era uma força evolutiva muito mais poderosa e criativa do que a
seleção natural, a qual ele vê como supervalorizada e tediosa. “Os
animais são agentes em sua própria evolução”, disse-me ele numa
conversa. “Os pássaros são bonitos porque são bonitos para si próprios.”

No verão de 1985, mais ou menos ao mesmo tempo em que os biólogos


renovavam seu interesse pela seleção sexual, Prum e a documentarista da
natureza Ann Johnson (que, mais tarde, o escolheria para marido)
viajaram ao Equador para seguir estudando os tangarás. Na primeira
manhã, numa caminhada por uma floresta nublada, Prum ouviu
estranhas notas que lembravam o toque de uma campainha e imaginou
que os sons provinham dos papagaios. Mais tarde, na mesma trilha,
ouviu de novo os sons estranhos e os seguiu floresta adentro. Ficou
espantado ao descobrir que as notas provinham de um Machaeropterus
deliciosus, ou tangará-bate-asa, uma pequena ave com o corpo cor de
canela, vermelho no topo da cabeça e com asas pintadas de preto e
branco. O pássaro saltava de um lado para outro, sugerindo que estava
cortejando alguma fêmea. Em vez de cantar com a garganta, erguia
repetidas vezes as asas às costas e vibrava as penas em fúria, umas contra
as outras, produzindo dois bipes eletrônicos e intermitentes seguidos de

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uma espécie de campainha estridente – Prum transcreve seu canto como


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um “bip-bip-UÉÉÉNG!”.

Àquela época, ele ainda não desenvolvera por completo sua teoria
evolucionária da beleza, mas suspeitou de imediato que o tangará-bate-
asa era um caso exemplar da capacidade da natureza de levar criaturas a
extremos estéticos. O vibrato singular do pássaro perseguiu-o por anos.
No início dos anos 2000, quando Prum já se tornara professor de biologia
da Universidade do Kansas, ele e Kimberly Bostwick, sua aluna de pós-
graduação, revelaram que as exigências da corte tinham alterado
drasticamente a anatomia do pássaro, transformando-o num violino vivo.
Os machos tinham penas com raques contorcidas que se esfregavam
umas nas outras à razão de cem vezes por segundo – uma frequência
maior que as das batidas das asas de um beija-flor. Embora a maioria dos
pássaros possua ossos leves e ocos para poder voar, Bostwick, valendo-se
de tomografia computadorizada, demonstrou recentemente que o
tangará-bate-asa macho tem ulnas sólidas – isto é, ossos fortes nas asas,
necessários para suportar a vibração intensa. Também as fêmeas
herdaram anomalias daí resultantes.

Ainda que inexistam estudos publicados sobre a aeronáutica do tangará-


bate-asa, Prum afirma ser óbvio à mera observação que esses pássaros
têm um voo desajeitado, inclusive as fêmeas. A pressão pela beleza,
perpetuando-se a si mesma, argumenta ele, dificulta a sobrevivência de
toda a espécie. Como as fêmeas não cortejam os machos, seus ossos e
penas arqueados não constituem vantagem nenhuma. “Algumas das
consequências evolucionárias do desejo e da escolha sexual na natureza
nada têm a ver com adaptação”, Prum escreve em seu livro mais recente.
“Certos resultados são verdadeiramente luxuriosos.”

Na década seguinte, quando a audição de Prum se deteriorou, ele se


retirou da pesquisa de campo e da observação de pássaros, mas ainda
conseguiu produzir uma série de descobertas científicas muito
importantes: ajudou a confirmar que os dinossauros desenvolveram
penas muito antes do surgimento dos pássaros e tornou-se um dos
primeiros cientistas a deduzir a cor da plumagem de um dinossauro a
partir do exame de moléculas de pigmentos preservadas em penas
fossilizadas. Nesse meio-tempo, jamais parou de pensar na seleção

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sexual. Prum apresentou formalmente sua teoria da evolução estética


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numa série de artigos científicos publicados entre 1997 e 2015. Eles
propunham que ornamentos e preferências sexuais deveriam ser
considerados arbitrários até que tivessem sua utilidade comprovada.

Apesar da recente indicação para o Pulitzer, Prum ainda se ressente do


escárnio que, segundo sua percepção, lhe dedicaram alguns colegas
acadêmicos. Contudo, depois de conversar com numerosos
pesquisadores no campo da seleção sexual, descobri que seus pares têm
plena consciência do trabalho que Prum realizou e que muitos já aceitam
os princípios centrais de sua argumentação – mais especificamente, que
seleção natural e seleção sexual são processos distintos e que, ao menos
em alguns casos, a beleza nada revela sobre a saúde ou o vigor de um
animal. Ao mesmo tempo, quase todos os pesquisadores com quem falei
me disseram que ele exagera a importância das preferências arbitrárias e
da seleção de Fisher a ponto de excluir todas as demais possibilidades.
Quando se conversa com Prum, seu brilhantismo é patente, mas ele tende
a ser dogmático, por vezes interrompendo o interlocutor para descartar
um argumento com o qual não concorda. Ainda que admita que certas
formas de beleza possam estar ligadas a vantagens em matéria de
sobrevivência, ele não parece muito interessado em dialogar com a
extensa pesquisa em torno desse tópico. Quando lhe perguntei que
estudos teriam oferecido apoio decisivo à ideia dos “bons genes” e de
outros benefícios, ele fez uma pequena pausa e então respondeu que
avaliar a literatura existente não era seu trabalho.

C
omo Darwin, Prum está tão encantado com os resultados das
preferências estéticas que, em grande parte, desconsidera suas
origens. Mais para o fim de nossa caminhada pelo Parque Estadual
de Hammonasset Beach, começamos a conversar sobre o tangará-bate-
asa. Perguntei a ele sobre a história da evolução desse pássaro. Prum
acredita que, muito tempo atrás, uma versão anterior da dança do
acasalamento desse tangará casualmente produziu um murmúrio das
penas. Ao longo do tempo, esse som acabaria por se tornar muito
atraente para as fêmeas, que passaram a pressionar os machos a
desenvolver adaptações para que suas penas produzissem um farfalhar

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mais alto e perceptível, o que, para ele, culminou no som resultante


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daquela rápida fricção. Mas, afinal, por que as fêmeas eram atraídas por
esse som em particular? Para Prum, essa é uma pergunta sem resposta,
sobre a qual, portanto, não vale a pena refletir. “Nem tudo”, disse ele,
“possui uma explicação causal tão explícita.”

A indiferença de Prum à origem do prazer estético abre uma lacuna que


chama a atenção em sua grandiosa teoria. Ainda que aceitemos que boa
parte da beleza brota de preferências arbitrárias, precisaríamos de todo
modo explicar por que, afinal, essas preferências existem. É perfeitamente
concebível que o gosto de um animal por, digamos, um gorjeio de
acasalamento ou penas amarelas brilhantes lhe seja inerente e que esse
tipo de predileção nada tenha a ver com genes vantajosos. Mas é também
inquestionável que tais inclinações são produto de sua neurobiologia, a
qual, por sua vez, resulta de uma longa história evolutiva para adaptar o
cérebro do animal e seus órgãos sensoriais a condições ambientais
específicas. Nas últimas duas décadas, toda uma gama de biólogos se
dedicou a estudar de que forma o “viés sensorial” de um animal – seu
nicho ecológico e seu modo particular de experimentar o mundo – molda
sua aparência, seu comportamento e seu desejo. Como Prum, esses
cientistas não creem que a beleza tenha a ver com adaptação. Mas onde
aquele celebra o capricho, estes buscam causalidade.

Molly Cummings, professora de biologia integrativa da Universidade do


Texas, em Austin, é uma pesquisadora de ponta na área da ecologia
sensorial. Quando eu a visitei, na primavera passada, ela me levou a um
de seus laboratórios de campo: uma clareira recoberta de grama e cheia
de grandes bacias de concreto. A superfície de uma dessas bacias estava
tão repleta de algas e nenúfares com flores cor-de-rosa que mal podíamos
ver a água. Cummings começou a afastar as plantas, criando recessos de
sombra que nos permitiram encontrar o ângulo correto de observação.
“Deixe-me ver se consigo achar um meninão grande e bonito”, ela disse.

Um peixe do tamanho de um clipe nadou em nossa direção. Eu me


inclinei para observá-lo melhor. Adornavam-lhe o corpo prateado um
único ponto preto e uma faixa de um azul iridescente; a cauda comprida,
na forma de uma espada, exibia listras amarelas. “Ah, aí está um
sujeitinho fazendo a corte”, disse Cummings. “Está atrás daquela fêmea

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ali, tentando impressioná-la.” O peixe, um espadinha macho, parecia


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fazer esforço quase maníaco para ser notado. Disparava de um lado para
o outro na frente da fêmea, vibrando o tempo todo, as escamas refletindo
a pouca luz que atravessava a escuridão.

Mais tarde, viajamos os poucos quilômetros de volta até o laboratório do


campus, onde estantes cheias de tanques de peixes se enfileiravam por
diversas salas e as magníficas ilustrações de águas-vivas de autoria de
Ernst Haeckel flutuavam pelas paredes. Enquanto visitávamos as
instalações, Cummings me falou de sua carreira acadêmica. Ainda
estudante de graduação da Universidade Stanford, ela passara um verão
mergulhando na gigantesca floresta de algas da Estação Marinha
Hopkins, ao lado do mundialmente famoso Aquário da Baía de
Monterey. Depois de formada, foi para a Universidade James Cook, em
Townsville, na Austrália, onde estudou ecologia marinha e descobriu o
trabalho dos biólogos John Lythgoe e John Endler, ambos interessados
em como o tipo de luz que incide sobre o ambiente de um animal molda
seu sistema visual.

Cummings refletia sobre os peixes que observara na Califórnia e na


Austrália. Estava impressionada com a beleza dinâmica dos
embiotocídeos na floresta de algas, que se comunicavam por meio da cor
e do brilho da pele, irradiando luz azul, prateada e laranja para atrair
parceiras. Impressionante era também a diversidade de seus habitats
aquáticos – as águas ora brilhantes e claras, ora turvas em decorrência do
muco produzido pelas algas. Na Austrália, a luz do sol banhava de modo
quase constante as espécies vibrantes de peixes recifais, mas contra um
caleidoscópico pano de fundo de corais. Como os peixes desenvolviam
ornamentos sexuais eficazes e confiáveis se a luz e o cenário em que
viviam variavam tanto?

Terminada a pós-graduação na Austrália, em 1993, ela deu início a um


doutorado em Santa Barbara, na Universidade da Califórnia. Passou anos
estudando várias espécies de embiotocídeos e mergulhando nas florestas
de algas marinhas com um espectrômetro protegido por acrílico, a fim de
poder quantificar e caracterizar a luz em diferentes habitats. À noite,
valia-se de uma luz potente para atordoar os peixes e levá-los ao
laboratório, escapando das focas famintas que regularmente a seguiam na

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esperança de transformar os peixes assustados em refeição. Depois de


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centenas de mergulhos e cuidadosas medições, Cummings descobriu que
a própria água balizara a evolução da beleza dos peixes. A preferência da
fêmea pelo esplendor prateado ou azul não era arbitrária, e sim
consequência de comprimentos específicos de ondas de luz que
atravessavam distâncias maiores em seu ambiente subaquático. O macho
que tivesse escamas capazes de refletir melhor esses comprimentos de
onda tinha também maior probabilidade de chamar a atenção das
fêmeas.

Em seus estudos, Cummings demonstrou que os embiotocídeos que


viviam em águas escuras ou turvas em geral davam preferência a
ornamentos brilhantes, ao passo que as espécies que habitavam zonas de
brilho mercurial tinham predileção por cores vivas. Mais tarde, descobriu
que os espadas mexicanos que ocupavam as camadas superiores dos rios,
onde as águas claras polarizavam fortemente a luz do sol, possuíam
ornamentos especializados em refletir a luz polarizada – como uma faixa
de azul iridescente. Essas descobertas coincidem com as de estudos
semelhantes que sugerem que as fêmeas de barrigudinhos no
arquipélago de Trinidad e Tobago preferem machos com porções laranja
– e isso porque desenvolveram um gosto pelas nutritivas laranjas que,
vez por outra, caíam das árvores para dentro da água. “Alguns pensam
que as preferências das fêmeas surgem do nada”, diz Cummings. “Mas o
que ignoram é que, em muitos casos, elas resultam de imperativos
ambientais. Nem sempre podem ser atribuídas ao acaso.”

Contudo, o que uma criatura acha atraente não depende apenas das
qualidades únicas de seu ambiente. A atração é determinada também por
quais dessas qualidades ultrapassam o limiar de nossa percepção. Pense
na diferença entre o que nós vemos ao olhar para uma flor e o que vê
uma mamangava. Como nós, os insetos veem as cores, mas, ao contrário
de nós, eles percebem também a luz ultravioleta. Muitas plantas
desenvolveram partes de flores capazes de absorver ou refletir essa luz,
que forma padrões semelhantes a anéis, a um alvo com círculos
concêntricos ou a uma explosão estelar. A maior parte das criaturas fica
alheia a esses ornamentos, mas, aos olhos de muitos polinizadores, eles
constituem faróis inequívocos. Há toda uma dimensão da beleza das
flores invisível a nós, e não porque não estamos expostos à luz

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ultravioleta, mas porque não dispomos do aparato biológico adequado


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para percebê-la.

M
ichael Ryan, um professor de zoologia cujo laboratório situa-se
apenas alguns andares abaixo da sala de Cummings, passou mais
de trinta anos investigando de que forma as idiossincrasias na
anatomia de um animal determinam suas preferências estéticas – um
percurso que ele detalha no livro A Taste for the Beautiful (Um gosto
pelo belo). Desde 1978, Ryan tem viajado ao Panamá para estudar um
anfíbio cor de lama chamado rã-túngara. Como o tangará-bate-asa, essa
rã produz uma forma única de beleza que não é visual, e sim auditiva.
No crepúsculo, os machos se reúnem à beira d’água e cantam para
seduzir as fêmeas. Seu canto de acasalamento possui dois elementos: a
parte central, o chamado lamento, soa exatamente como uma pistola a
laser em miniatura. Às vezes, o lamento é seguido de um ou mais
grunhidos breves conhecidos como cacarejos. Um canto longo e
complexo é arriscado, porque atrai morcegos que comem rãs. O
resultado, no entanto, compensa o risco. Ryan demonstrou que lamentos
seguidos de cacarejos podem ser até cinco vezes mais eficazes na atração
das fêmeas que apenas lamentos. Mas por quê?

De acordo com o modelo de beleza pautado na adaptação, os cacarejos


devem transmitir alguma informação sobre a boa forma do macho. E, de
fato, machos maiores – que são os que produzem os cacarejos mais
graves e sensuais – são os mais aptos para o acasalamento, porque seu
tamanho se aproxima do das fêmeas. (O sexo entre as rãs é terreno
escorregadio: um macho minúsculo tem maior probabilidade de errar o
alvo.) Além disso, a rã-túngara tem um ouvido interno afinado em 2,2 mil
Hz, frequência mais próxima daquela predominante no cacarejo. Juntos,
esses fatos parecem indicar que a serenata do macho à beira d’água
fornece um exemplo de escolha adaptativa: as fêmeas desenvolveram
ouvidos afinados com os cacarejos porque estes indicam os machos
maiores e mais qualificados do ponto de vista sexual. Mas a pesquisa de
Ryan conta uma história mais estranha. Ao examinar a árvore
genealógica das rãs-túngaras, ele descobriu que oito espécies de rãs
aparentadas a elas também possuem ouvidos internos sensíveis a

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frequências de 2,2 mil Hz, mas nenhuma delas emite cacarejos em seu
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canto de acasalamento. Ryan acredita que, num passado remoto, o
ancestral de todas essas espécies provavelmente desenvolveu um ouvido
interno afinado em cerca de 2,2 mil Hz, tendo em vista algum propósito
abandonado há muito tempo. Mais tarde, a rã-túngara resgatou esse
canal auditivo negligenciado, e é provável que o tenha feito por acaso. Os
machos que produziam algumas notas adicionais depois do lamento
passaram a ser automaticamente preferidos pelas fêmeas – não porque
fossem os mais apropriados, mas simplesmente porque chamavam mais
a atenção delas.

Como as escamas brilhantes nos embiotocídeos e espadinhas estudados


por Cummings, o custoso canto de acasalamento das rãs-túngaras não se
desenvolveu para transmitir qualquer informação pragmática sobre a
saúde ou a boa forma dos machos. Isso, porém, não significa que essas
características sejam arbitrárias. Elas resultaram de aspectos específicos e
discerníveis do ambiente, da anatomia e do legado evolucionário desses
animais. “Levei muita pancada quando sugeri essa ideia, em 1990”, Ryan
conta. “Muita gente criticou. Hoje, porém, o viés sensorial é considerado
elemento importante na evolução dessas preferências.”

Durante nossa caminhada em Hammonasset, enquanto admirávamos as


aves marinhas de cima dos penhascos à beira-mar, perguntei a Prum
sobre o viés sensorial. Ele me disse que isso não explicava a
surpreendente diversidade e as idiossincrasias dos ornamentos sexuais –
o fato, por exemplo, de espécies aparentadas de pardais possuírem, cada
uma delas, adornos próprios. Prum vê o viés sensorial como mais uma
maneira de sustentar o “paradigma adaptativo” predominante, que se
recusa a reconhecer sua teoria da evolução estética. Curiosamente, Prum
e Ryan não discutem o trabalho um do outro em seus livros recentes.

Enquanto pensava nas semelhanças e discrepâncias entre as ideias de


Prum e as de seus pares, volta e meia eu retornava a uma passagem do
livro de Prum. Em 2010, ele e seus colegas revelaram que um dinossauro
do tamanho de um corvo, o Anchiornis huxleyi, era possuidor de belos
adornos: plumagem cinzenta, um penteado moicano castanho-
avermelhado e penas brancas compridas salpicadas de preto nos
membros. Por que os dinossauros desenvolveram penas é algo que há

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muito intriga os cientistas. De início, é bem provável que camadas de


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filamentos encrespados, semelhantes à penugem dos pintinhos, os
tenham ajudado a repelir a água e a regular a temperatura do corpo. Mas
o que explica o surgimento de penas largas e chatas, como as encontradas
no Anchiornis? Eles as desenvolveram para voar – eis a resposta
intuitiva. As primeiras penas planas, contudo, eram provavelmente
primitivas demais para voar ou planar, não possuíam a singular
assimetria que torna as penas dos pássaros aerodinâmicas. Em seu livro,
Prum defende uma hipótese alternativa que vem ganhando apoio: penas
longas desenvolveram-se por sua beleza.

As possibilidades estéticas da penugem encrespada são limitadas. “Já a


inovadora barba plana da pena cria uma superfície bidimensional bem
definida, na qual é possível criar todo um mundo novo de complexos
padrões de cores”, escreve Prum. Somente mais tarde os pássaros se
valeram de suas penas grandes e glamorosas para voar, o que constitui
uma das prováveis razões pelas quais alguns deles sobreviveram à
extinção em massa, há 66 milhões de anos. Os pássaros transformaram o
que um dia foi apenas quinquilharia vistosa em algumas das mais
invejáveis adaptações do planeta, desde a amplitude oceânica do albatroz
à silhueta semelhante a um torpedo do falcão em mergulho. Mas nunca
abandonaram seu senso de estilo, empregando as penas como um meio
para alcançar esplendor sem igual. Uma pena não pode, pois, ser
etiquetada como produto único nem da seleção natural nem da sexual.
Com sua estrutura recíproca, ela incorpora a confluência de duas forças
evolucionárias poderosas e igualmente importantes: a utilidade e a
beleza.

A maior parte dos cientistas com quem conversei disse-me que a velha
dicotomia entre o adorno adaptativo e a beleza arbitrária, entre os “bons
genes” e a seleção de Fisher, está sendo substituída por uma síntese
conceitual moderna que enfatiza a multiplicidade. “A beleza é algo que
surge de toda uma série de mecanismos diferentes” afirma Gil Rosenthal,
biólogo evolutivo da Universidade Texas A&M e autor de Mate Choice
(A escolha de um parceiro). “Trata-se de um processo que apresenta uma
quantidade incrível de camadas.”

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O ambiente baliza a anatomia de uma criatura, o que determina como ela


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vai experimentar o mundo, o que, por sua vez, gera preferências tanto
adaptativas como arbitrárias, o que, por fim, retroage e altera sua biologia
de maneiras por vezes prejudiciais à adaptação. A beleza revela que a
evolução não resulta de uma lapidação reiterada dos organismos vivos
pelo ambiente predominante e tampouco decorre de uma colisão
frenética de acontecimentos fortuitos. A evolução é, antes, como o
intricado mecanismo de um relógio para o qual concorrem a física, a
biologia e a percepção, um mecanismo no qual cada parte em movimento
influencia a outra, de tal forma que é a um só tempo sutil e profunda.
Suas engrenagens são tantas e tão dinâmicas – tão suscetíveis à sorte e ao
contratempo – que mesmo um único efeito de seu incessante tique-taque
é capaz de desconcertar a ciência por séculos.

E
m meu último dia em Austin, enquanto eu caminhava por um
parque, encontrei um rabo-de-quilha que caçava insetos pela grama.
De início, sua plumagem parecia preta como o carvão, mas, assim
que ele se mexeu, dela começaram a cintilar todas as cores de uma
mancha de óleo. De vez em quando, ele parava, inchava o peito e
produzia um som como o de um balanço enferrujado. Então, insatisfeito
com o cardápio local, talvez, ou incomodado com minha presença, ele
alçou voo e foi-se embora.

Na falta dele, minha atenção se voltou de imediato para algo que sua
presença tinha ocultado – um arbusto cheio de aquilégias amarelas. De
certa distância, as flores pareciam ilustrações medievais de cometas,
grandes e vívidas, com um rastro comprido de luz. De perto, me
surpreendi com a complexidade de um único botão: uma grande estrela
amarela enlaçava um conjunto de cinco pétalas tubulares em formato de
trombetas e cheias de néctar. Bem no meio, um tufo de filamentos
efervescentes com pólen na ponta. Vistas de cima, pareciam grupos de
passarinhos minúsculos de asas abertas juntando os bicos. Seu nome em
inglês, columbine, provém do latim: semelhante a uma pomba.

Por que as flores são bonitas? Ou, mais precisamente: por que elas são
bonitas para nós? Quanto mais eu pensava nisso, mais parecia me

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embrenhar na natureza da beleza em si. Filósofos, cientistas e escritores


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vêm tentando definir sua essência há milhares de anos. A pluralidade de
seus esforços ilustra a imensa dificuldade dessa tarefa. Beleza, já
disseram, é harmonia; bondade; manifestação da perfeição divina; um
tipo de prazer; aquilo que enseja amor e anseio; ou M = O/C (em que M é
o valor estético, O, ordem e C, complexidade).

Psicólogos evolutivos, ansiosos por aplicar a lógica adaptativa a cada


faceta do comportamento e da cognição, já argumentaram que a
percepção humana da beleza emerge de um conjunto de adaptações
antiquíssimas: talvez os homens gostem de mulheres de seios grandes e
cintura fina porque essas características sinalizam grande fertilidade;
rostos simétricos podem estar relacionados a saúde; talvez os bebês sejam
tão irresistivelmente bonitos porque seus traços infantis ativam os
circuitos “cuidadores” de nosso cérebro. Tais postulações por vezes
resvalam no ridículo. O filósofo Denis Dutton defendeu que as pessoas
pelo mundo todo têm um gosto intrínseco por certo tipo de paisagem –
um relvado com um bosque cheio de árvores, água e animais selvagens –
porque ele lembra as savanas do Pleistoceno em que os humanos se
desenvolveram. Num TED Talk, Dutton explica que cartões-postais,
calendários e pinturas exibindo essa paisagem amada por todos em geral
incluem árvores que se ramificam perto do chão, e isso porque nossos
ancestrais confiavam em seus galhos convenientemente baixos para
escapar de predadores.

É inegável, claro, que nós, como todos os animais, somos produtos da


evolução. Nosso cérebro e nossos órgãos sensoriais são tão tendenciosos
como os de qualquer criatura. A anatomia, a fisiologia e os instintos que
herdamos sem dúvida moldaram nossa percepção da beleza. Em suas
obras recentes, Richard Prum e Michael Ryan sintetizam a pesquisa sobre
animais e humanos em busca de possíveis explicações evolucionárias
para nossos gostos estéticos. Ryan interessa-se em especial pelas
sensibilidades e vieses inatos de nossa arquitetura neural: descreve, por
exemplo, como nosso sistema visual pode estar conectado de modo a
perceber a simetria. Prum sublinha sua convicção de que, nos seres
humanos, assim como nos pássaros, muitos tipos de beleza física e de
desejo sexual se desenvolveram arbitrariamente, sem qualquer relação
com saúde ou fertilidade. O que complica seus respectivos argumentos é

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o poder imenso da cultura humana. Como espécie, estamos tão saturados


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de simbolismo, rituais e de arte – somos tão influenciados por modas que
se alteram com rapidez – que é mais ou menos impossível determinar
quanto uma preferência estética se deve à história evolucionária, e não à
influência cultural.

Mais do que qualquer outro objeto de obsessão estética, talvez, as flores


expõem a futilidade de tentar enfiar a beleza num único arcabouço
teórico. Pensem em como as flores surgiram e em como aprendemos a
amá-las. Há 150 milhões de anos, muitas plantas dependiam do vento
para disseminar o pólen e se reproduzir. Mas certos insetos, talvez
besouros e mosquitos, começaram a comer os grãos de pólen ricos em
proteínas e, inadvertidamente, os transportaram de uma planta a outra.
Isso se revelou um meio de fertilização muito mais eficaz do que as
caprichosas correntes de ar. As plantas que eram fontes mais ricas e
óbvias de pólen foram especialmente bem-sucedidas. Da mesma forma,
os insetos mais capazes de encontrar pólen levaram vantagem sobre seus
pares.

Graças a um longo processo paralelo de evolução, plantas e polinizadores


foram modificando uns aos outros. Algumas plantas começaram a
transformar suas folhas em protoflores – pequenas bandeiras a assinalar a
localização de seu pólen. Cores vivas e formas singulares ajudaram-nas a
se sobressair num emaranhado verde. Perfumes fortes e faróis
ultravioleta atuaram sobre os sentidos dos polinizadores. E o néctar veio
adocicar o conjunto. Insetos, aves e mamíferos começaram a competir
pelo acesso a elas, desenvolvendo asas, línguas e cérebros mais
adequados à busca pelo sustento fornecido pelas flores. Quando a
pressão de ambos os lados se intensificou, plantas e polinizadores
começaram a forjar relacionamentos cada vez mais específicos,
compelindo-se mutuamente a extremos estéticos e adaptativos – um
pássaro que zumbe e paira no ar como um inseto, uma orquídea cuja
aparência e cujo aroma imitam as de uma abelha fêmea.

Muitos milhões de anos mais tarde, as flores encantaram ainda outra


espécie. Talvez a atração inicial tenha sido meramente utilitária: a
promessa de frutos e grãos. Ou talvez tenhamos sido cativados pela
harmonia de cor, forma e perfume. Qualquer que tenha sido o caso,

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acolhemos numerosas plantas que dão flores em nosso círculo cada vez
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mais amplo de espécies domesticadas. Levamos as flores para estufas e
laboratórios, aumentando sua beleza inerente, criando novos híbridos e
adaptando suas características a nossos gostos pessoais. Contraímos a
paixão pelas orquídeas e a mania das tulipas, e disso nunca nos
recuperamos de fato. A flor, de início um apelo, transformou-se num
fenômeno.

Se há uma verdade universal sobre a beleza – algum conceito conciso e


elegante que abranja cada variedade existente de encanto e graça –, ainda
não sabemos o bastante sobre a natureza para articulá-la. O que
chamamos de beleza não é simplesmente uma coisa ou outra, não possui
propriamente um propósito nem é de todo uma casualidade, não é bem
uma propriedade e tampouco um sentimento. A beleza é um diálogo
entre o que é percebido e aquele que percebe. É a resposta do mundo à
ousadia de uma flor. É o modo como uma abelha se derrama na pétala de
um botão-de-ouro bocejante; é o cuidado com que o pássaro-cetim
seleciona um botão de hibisco; é o impulso de recriar nenúfares com óleo
sobre tela; é a necessidade de depositar rosas numa sepultura.

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