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EDIÇÃO 162 | MARÇO_2020
questões científicas
A BELEZA E A EVOLUÇÃO
O extravagante esplendor do reino animal não pode ser explicado apenas pela seleção natural –
então, como foi que ele surgiu?
FERRIS JABR
O colhereiro, cercado por pássaros de plumagem monótona, exibe toda a exuberância de sua beleza: há casos exemplares da
capacidade da natureza de levar criaturas a extremos estéticos CRÉDITO: SCOTT SURIANO
O
Sericulus aureus ardens macho é um pássaro de beleza
incandescente da família dos ptilonorinquídeos. Sua plumagem
transita suavemente do vermelho-escuro ao amarelo solar. Mas esse
brilho radiante não é suficiente para atrair uma parceira. Quando os
machos de boa parte da família dos ptilonorinquídeos estão prontos para
cortejar uma fêmea, eles começam a construir a estrutura que lhes é
peculiar e que se assemelha a um caramanchão: um conjunto de galhos a
que dão a forma de um coruchéu, de um corredor ou de uma cabana.
Decoram, então, esse caramanchão com toda sorte de objetos coloridos,
como flores, frutinhas vermelhas, conchas de caracóis ou, quando
próximos de uma área urbana, tampas de garrafa e talheres de plástico.
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O próprio Charles Darwin discordava dessa teoria. Embora ele tenha sido
um dos descobridores da seleção natural, tendo dedicado boa parte da
vida a demonstrar sua importância, Darwin jamais postulou que ela
explicava tudo. Os ornamentos, propôs, desenvolveram-se graças a um
processo à parte que ele chamou de seleção sexual: as fêmeas escolhem os
machos mais atraentes “de acordo com seu próprio padrão de beleza” e,
em consequência disso, os machos se desenvolvem na direção desse
padrão, custe o que custar. Darwin não achava necessário vincular
estética e sobrevivência. Os animais, acreditava, são capazes de apreciar a
beleza pela beleza em si. Muitos de seus colegas e sucessores
ridicularizaram essa ideia. Para estes, a noção de que os animais teriam
tal sofisticação cognitiva – e a de que as preferências de fêmeas
“caprichosas” seriam capazes de moldar espécies inteiras – era absurda.
Ainda que jamais tenha sido esquecida, a teoria da beleza de Darwin foi,
em grande medida, abandonada.
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Agora, quase 150 anos mais tarde, uma nova geração de biólogos está
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retomando essa ideia negligenciada. A beleza, afirmam, não precisa ser
uma representante da boa saúde ou de genes vantajosos. Às vezes, ela
nada mais é que o produto fútil da preferência arbitrária. Os animais
simplesmente acham atraentes certas características – um brilho
vermelho, um floreado da plumagem –, e esse seu senso inato de beleza
pode se tornar um motor da evolução, levando-os a extremos estéticos.
Em outros casos, certos imperativos ambientais ou fisiológicos conduzem
um animal a uma preferência estética que nada tem a ver com a
sobrevivência.
T
alvez não haja cientista vivo que defenda de maneira mais
entusiasmada – ou doutrinária – a seleção sexual de Darwin que
Richard Prum, ornitólogo evolucionista da Universidade Yale. Em
maio de 2017, Prum publicou um livro, The Evolution of Beauty (A
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evolução da beleza), que explica com lucidez e paixão sua teoria pessoal
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da evolução estética. A obra foi indicada para o Prêmio Pulitzer de não
ficção geral, mas, no interior da comunidade científica, suas ideias não
desfrutaram de recepção tão calorosa. Repetidas vezes, contou-me ele,
Prum solicitou a opinião de outros pesquisadores, mas não recebeu
resposta nenhuma ou recebeu apenas desculpas de colegas muito
ocupados. Alguns externaram críticas abertas. Num parecer acadêmico
sobre o livro de Prum, Gerald Borgia, um dos maiores especialistas
mundiais em ptilonorinquídeos, e o etologista Gregory Ball descreveram
as passagens históricas da obra como “revisionistas” e afirmaram que o
autor não logrou apresentar argumentos críveis para corroborar sua tese.
Certa vez, enquanto almoçavam burritos, Prum explicou sua teoria a um
colega em visita, que a classificou como “niilismo”.
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vívido que jogava folhas para o ar. Prum logo ficou paralisado. Era um
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Toxostoma rufum, disse-me, descrevendo as características da ave com
um misto de precisão e ternura – “de um marrom-avermelhado, com
pintas no peito, olho amarelo, bico curvo, rabo comprido”. Depois,
censurou-me por, em vez de observá-lo com o binóculo, eu ter tentado
tirar uma foto do passarinho.
Na faculdade, não perdeu tempo e foi logo tirar proveito dos substanciais
recursos ornitológicos da Universidade Harvard. Na primeira semana,
conseguiu as chaves do Museu de Zoologia Comparada, que abriga a
maior coleção ornitológica do mundo sediada numa universidade – hoje
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outros, assim como se sabe que, em algumas espécies, são os machos que
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escolhem fêmeas dotadas de ornamentos. Até o presente, porém, os
exemplos mais bem estudados dizem respeito à preferência feminina e à
ostentação masculina.)
N
o início da década de 1980, enquanto pesquisava a história da
seleção sexual, Prum leu um artigo seminal sobre o assunto, de
1915, e também um livro, este de 1930, ambos de autoria do biólogo
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Embora a teoria de Fisher por certo não tenha sido ignorada, ela acabou
eclipsada por uma série de hipóteses que pareciam salvar a beleza dessa
ausência de propósito. Em primeiro lugar, o biólogo israelense Amotz
Zahavi propôs uma ideia nada intuitiva chamada de “princípio da
desvantagem”, uma ideia que deu novo sentido à explicação utilitária de
Wallace para os ornamentos sexuais. Ornamentos extravagantes,
argumentou ele, não eram meros indicadores de características
vantajosas, como Wallace havia dito – eram, sim, uma espécie de teste.
Se, apesar do fardo de um ornamento desajeitado e custoso em termos
metabólicos, um animal prosperava, então esse animal havia com efeito
demonstrado seu vigor e se provado digno de uma parceira. Da mesma
forma, em 1982, os biólogos evolucionistas W. D. Hamilton e Marlene
Zuk propuseram que certos ornamentos, em especial a plumagem
brilhante, sinalizavam que um macho era resistente a parasitas e
estenderia a sua prole essa mesma proteção. Muitos cientistas começaram
a pensar na seleção sexual como uma espécie de seleção natural. Grande
número de pesquisadores juntou-se à caça pelos benefícios mensuráveis
da escolha de um parceiro atraente – tanto os benefícios diretos, como os
resultantes de pais melhores ou de um território mais desejável, quanto
os benefícios indiretos, ou seja, alguma prova de que machos mais
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Àquela época, ele ainda não desenvolvera por completo sua teoria
evolucionária da beleza, mas suspeitou de imediato que o tangará-bate-
asa era um caso exemplar da capacidade da natureza de levar criaturas a
extremos estéticos. O vibrato singular do pássaro perseguiu-o por anos.
No início dos anos 2000, quando Prum já se tornara professor de biologia
da Universidade do Kansas, ele e Kimberly Bostwick, sua aluna de pós-
graduação, revelaram que as exigências da corte tinham alterado
drasticamente a anatomia do pássaro, transformando-o num violino vivo.
Os machos tinham penas com raques contorcidas que se esfregavam
umas nas outras à razão de cem vezes por segundo – uma frequência
maior que as das batidas das asas de um beija-flor. Embora a maioria dos
pássaros possua ossos leves e ocos para poder voar, Bostwick, valendo-se
de tomografia computadorizada, demonstrou recentemente que o
tangará-bate-asa macho tem ulnas sólidas – isto é, ossos fortes nas asas,
necessários para suportar a vibração intensa. Também as fêmeas
herdaram anomalias daí resultantes.
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C
omo Darwin, Prum está tão encantado com os resultados das
preferências estéticas que, em grande parte, desconsidera suas
origens. Mais para o fim de nossa caminhada pelo Parque Estadual
de Hammonasset Beach, começamos a conversar sobre o tangará-bate-
asa. Perguntei a ele sobre a história da evolução desse pássaro. Prum
acredita que, muito tempo atrás, uma versão anterior da dança do
acasalamento desse tangará casualmente produziu um murmúrio das
penas. Ao longo do tempo, esse som acabaria por se tornar muito
atraente para as fêmeas, que passaram a pressionar os machos a
desenvolver adaptações para que suas penas produzissem um farfalhar
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Contudo, o que uma criatura acha atraente não depende apenas das
qualidades únicas de seu ambiente. A atração é determinada também por
quais dessas qualidades ultrapassam o limiar de nossa percepção. Pense
na diferença entre o que nós vemos ao olhar para uma flor e o que vê
uma mamangava. Como nós, os insetos veem as cores, mas, ao contrário
de nós, eles percebem também a luz ultravioleta. Muitas plantas
desenvolveram partes de flores capazes de absorver ou refletir essa luz,
que forma padrões semelhantes a anéis, a um alvo com círculos
concêntricos ou a uma explosão estelar. A maior parte das criaturas fica
alheia a esses ornamentos, mas, aos olhos de muitos polinizadores, eles
constituem faróis inequívocos. Há toda uma dimensão da beleza das
flores invisível a nós, e não porque não estamos expostos à luz
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M
ichael Ryan, um professor de zoologia cujo laboratório situa-se
apenas alguns andares abaixo da sala de Cummings, passou mais
de trinta anos investigando de que forma as idiossincrasias na
anatomia de um animal determinam suas preferências estéticas – um
percurso que ele detalha no livro A Taste for the Beautiful (Um gosto
pelo belo). Desde 1978, Ryan tem viajado ao Panamá para estudar um
anfíbio cor de lama chamado rã-túngara. Como o tangará-bate-asa, essa
rã produz uma forma única de beleza que não é visual, e sim auditiva.
No crepúsculo, os machos se reúnem à beira d’água e cantam para
seduzir as fêmeas. Seu canto de acasalamento possui dois elementos: a
parte central, o chamado lamento, soa exatamente como uma pistola a
laser em miniatura. Às vezes, o lamento é seguido de um ou mais
grunhidos breves conhecidos como cacarejos. Um canto longo e
complexo é arriscado, porque atrai morcegos que comem rãs. O
resultado, no entanto, compensa o risco. Ryan demonstrou que lamentos
seguidos de cacarejos podem ser até cinco vezes mais eficazes na atração
das fêmeas que apenas lamentos. Mas por quê?
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frequências de 2,2 mil Hz, mas nenhuma delas emite cacarejos em seu
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canto de acasalamento. Ryan acredita que, num passado remoto, o
ancestral de todas essas espécies provavelmente desenvolveu um ouvido
interno afinado em cerca de 2,2 mil Hz, tendo em vista algum propósito
abandonado há muito tempo. Mais tarde, a rã-túngara resgatou esse
canal auditivo negligenciado, e é provável que o tenha feito por acaso. Os
machos que produziam algumas notas adicionais depois do lamento
passaram a ser automaticamente preferidos pelas fêmeas – não porque
fossem os mais apropriados, mas simplesmente porque chamavam mais
a atenção delas.
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A maior parte dos cientistas com quem conversei disse-me que a velha
dicotomia entre o adorno adaptativo e a beleza arbitrária, entre os “bons
genes” e a seleção de Fisher, está sendo substituída por uma síntese
conceitual moderna que enfatiza a multiplicidade. “A beleza é algo que
surge de toda uma série de mecanismos diferentes” afirma Gil Rosenthal,
biólogo evolutivo da Universidade Texas A&M e autor de Mate Choice
(A escolha de um parceiro). “Trata-se de um processo que apresenta uma
quantidade incrível de camadas.”
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E
m meu último dia em Austin, enquanto eu caminhava por um
parque, encontrei um rabo-de-quilha que caçava insetos pela grama.
De início, sua plumagem parecia preta como o carvão, mas, assim
que ele se mexeu, dela começaram a cintilar todas as cores de uma
mancha de óleo. De vez em quando, ele parava, inchava o peito e
produzia um som como o de um balanço enferrujado. Então, insatisfeito
com o cardápio local, talvez, ou incomodado com minha presença, ele
alçou voo e foi-se embora.
Na falta dele, minha atenção se voltou de imediato para algo que sua
presença tinha ocultado – um arbusto cheio de aquilégias amarelas. De
certa distância, as flores pareciam ilustrações medievais de cometas,
grandes e vívidas, com um rastro comprido de luz. De perto, me
surpreendi com a complexidade de um único botão: uma grande estrela
amarela enlaçava um conjunto de cinco pétalas tubulares em formato de
trombetas e cheias de néctar. Bem no meio, um tufo de filamentos
efervescentes com pólen na ponta. Vistas de cima, pareciam grupos de
passarinhos minúsculos de asas abertas juntando os bicos. Seu nome em
inglês, columbine, provém do latim: semelhante a uma pomba.
Por que as flores são bonitas? Ou, mais precisamente: por que elas são
bonitas para nós? Quanto mais eu pensava nisso, mais parecia me
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acolhemos numerosas plantas que dão flores em nosso círculo cada vez
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mais amplo de espécies domesticadas. Levamos as flores para estufas e
laboratórios, aumentando sua beleza inerente, criando novos híbridos e
adaptando suas características a nossos gostos pessoais. Contraímos a
paixão pelas orquídeas e a mania das tulipas, e disso nunca nos
recuperamos de fato. A flor, de início um apelo, transformou-se num
fenômeno.
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