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Na segunda parte traça o percurso grandioso da epopeia épica dos portugueses, bem
como a preço a pagar pela universalidade conquistada por este povo, entrevendo, desde
já, a posssibilidade de regeneração deste país que entretanto se adormeçeu: Senhor, a
noite veio e a alma é vil./ tanta foi a tormenta e a vontade! / Restam-nos hoje, no
silêncio hostil, / O mar universal e a saudade / Mas a chama, que a vida em nós criou /
Se ainda há vida ainda não é finda./ O frio morto em cinzas a ocultou./ A mão do vento
pode ergue-la ainda (Parte II- Prece)
Na terceira parte afirma a possibilidade de uma regeneração de Portugal através da força
do mito: É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que regressarei (Parte III,
D.Sebastião). Consciente da decadência e estagnação do país, o poeta acredita na
possibilidade de Portugal voltar a constituir-se como um Império: Tudo é incerto e
derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../ É a Hora!
(Parte III- Nevoeiro).
Mais à frente, Pessoa diz que concorda com os factos acentuando que o aparecimento
do livro coincide "com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra), da
remodelação do subconsciente nacional".
A totalidade Portugal (o livro esteve para ser intitulado deste modo) é um meandro
aberto para o futuro que só existe num processo de criação dramático.
Para Pessoa, a existência de Portugal como nação anda a par com a sua existência
poética e é esta que considera em perigo, estagnada, propondo-se a engrandecê-la.
Como parte do diálogo intertextual interior à obra de Fernando Pessoa, este livro
conduz-nos perante aspectos fundamentais para a sua compreensão, nomeadamente os
seguintes:
As três partes em que se divide o livro e a organização de cada uma delas revelam a
importância fundamental da estruturação triádica e a oscilação tendente para um
esquema de síntese quíntupla.
A zona intermédia não possui subdivisões, sendo formada por um único conjunto de
poemas onde se esbatem as fronteiras entre a iniciação no longe, que consistiu no
concretizar das descobertas e a que consiste no descobrir contemplativo.
Ambas resultam do fascínio do "mar anterior": "O mar anterior as nós, tem medos /
Tinham coral e arvoredos" (Horizonte). Neste grupo de poemas é notória a fluidez, em
íntima conexão com a dominância do elemento água. A sua ligação à primeira e terceira
partes estabelece uma identificação profunda entre o impulso para o mar e o impulso
para o sonho, que ufpousam nas figuras do Infante D. Henrique e de D. Sebastião, as
únicas que se repetem.
No Timbre, elemento maior da Heráldica e que a finaliza, "A cabeça do Grego" é ele "O
único imperador que tem deveras / O globo mundo em sua mão".
No início da segunda parte, "O Infante, simboliza o poder criador do sonho, enquanto
que a terminá-la, "A Prece" de renovação do sonho ("E outra vez conquistemos a
Distância - / Do mar ou outra, mas que seja nossa") - o ver surgir na sua existência mais
pura - o primeiro símbolo, D. Sebastião, que vem dizer: "E o que eu me sonhei que
eterno dura".
Também a este nível o elemento intermédio- "Os Avisos" entre "Os Símbolos" e "Os
Tempos" - é o lugar onde o sonho, a viagem que é a criação poética ,se conjuga com a
vontade de mudança.Quanto à articulação com uma síntese quíntupla, temos: a divisão
da primeira parte em cinco grupos de poemas que correspondem aos elementos da
bandeira nacional, sendo que a quinta da quinas é "D.Sebastião Rei de Portugal"; na
terceira parte são cinco os "Os Símbolos,sendo o quinto "O Encoberto" e cinco os
"tempos" que terminam com o Nevoeiro.
Trata-se de uma doutrina da Trindade que na sua divisão da História em idades "propõe
uma visão profética e iniciática da História", a qual regista em figuras emblemáticas (in
Fernando Pessoa e as Ficções do Abismo,p.303).
Na Mensagem, o olhar estático concilia-se com uma perspectiva temporal quase detecta
na sucessão de tempos a nível global, ou na que preside à organização de "Os Tempos",
onde à "Noite" se sucede a "Antemanhã" e finalmente o "Nevoeiro", que inclui a Hora
na ambiguidade da eterna ausência do dia claro.
Em cada uma das partes que concorrem para a totalidade se podem encontrar figuras
dominantes: Nun'Alvares, O Infante, D.Sebastião. Todavia o que ressalta desse conjunto
originado numa rigorosa selecção é que não são os factos ou feitos gloriosos, empirícos
que criam o destino,mas o processo de mitologização que lhes confere vida espiritual
fazendo que concorram para uma conjunção de atitudes e valores.
São as figuras maternas de D.Tareja e D.Filipa de Lencastre; é D.Dinis, o rei poeta, cujo
canto na noite "Busca o oceano por achar".
O primeiro dos "Castelos",o fundamento da identidade futura é o puro nato, o irreal, que
detém todas as possibilidades de dar vida à realidade. A lenda de Ulisses vem afirmar
não só a filiação cultural grega,mas sobretudo a primazia da errância, que é glorificada
em "Mar Português",dela derivando todos os valores nobres inscritos na vida espiritual
de um país que vive o "futuro do passado", ufpudiando a miséria do presente.
Pertence a "As Quinas", o poema "Fernando Infante de Portugal", com data de 1913,
que consiste numa nova versão de um poema nessa época (anterior ao aparecimento dos
heterónimos) escrito por Fernando Pessoa. Nele se apresenta inteiramente a aceitação de
um sacrifício a um Além, que move o sujeito da escrita, poeta na dor.
Ela é anterior a uma "loucura lúcida" a que domina a globalidade da Mensagem e lhe
confere a dimensão de não-tempo, anulando no irreal a distinção entre vida e morte para
viver a profecia, a verdade.
O passado e futuro são igualmente míticos, mas é a invenção do segundo que dá sentido
ao primeiro .O mito do Encoberto,materializado em D.Sebastião comparece nas três
partes dominando inteiramente a terceira. Ele informa todo o projecto criando uma
totalidade onde a capacidade de entender o apelo do oculto aparece como valor
fundamental que deve renascer para que com ele renasça Portugal.
A memória não depende de uma realidade empírica, mas de um alto destino que se faz e
o faz existir. Leiam-se os primeiros versos do poema "Viriato":
Como nota Alfredo Antunes (in A Saudade Profética), a profecia sebastianista aparece
em Pascoaes bastante diluída quanto à sua concretização espacio-temporal, enquanto em
Pessoa ela é investida de um alto valor de intervenção que engloba o descontentamento
do presente e visa o futuro pela acção de uma vontade transformadora.
Tudo o que Pessoa escreveu sobre o assunto, irónicamente ou não , poderá elucidar-nos
acerca de uma vivência dos problemas portugueses.
A Mensagem é toda ela um acto de paixão pela Pátria, que a confunde com a aspiração
anónima de um povo, a passar além de si, e dar ao mundo novos mundos que só a
inteligência pode achar.
("Horizonte")
Este ideal é, aliás, sublinhado por um intenso patriotismo visível nas "Páginas de
Estética" e de "Auto-Interpretação" e que conjuga o seu acérrimo humanismo:
"A Humanidade é outra realidade social tão forte como o indivíduo, mais forte que a
Nação, porque mais defenida do que ela" (…) "É através da fraternidade patriótica, fácil
de sentir a quem não seja degenerado que gradualmente nos sublimamos ou
sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens. (…)". A Nação é a escola
presente para a Super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda e
durante séculos estaremos na escola e só na escola.
Os Lusíadas e a Mensagem
A comparação entre "Os Lusíadas" e a "Mensagem" impõe-se pelo próprio facto de esta
ser, a alguns séculos de distância e num tempo de decadência - o novo mito de pátria
portuguesa.
Conhecido o proposto de Pessoa, desde cedo expresso (ao anunciar o Supra Camões) de
ultrapassar o grande épico da nossa literatura, a Mensagem, para além de nos aparecer
como parte do sistema de "imaginação ciumenta" (expressão de Eduardo Lourenço para
designar no processo de criação poética em Pessoa um mecanismo de disputa com
outras obras) que se estende a toda a obra do autor, apresenta-se como uma resposta à
premência de um novo mito, de um novo tipo.
Escreve Eduardo Lourenço 1 : "Fernando Pessoa foi o primeiro que percebeu que os
Lusíadas já não nos podiam ler como até então nos tinham lido e que chegara o tempo
de sermos nós a lê-lo a ele". Os tempos mudaram, o império desfez-se e a esperança
possível de Camões está definitivamente afastada, morta, já não pode interferir para pôr
fim à estagnação do presente.
Inventar a pátria que escolher , é para Pessoa, libertá-la do peso da imagem de realidade
empririca, encontrar sob o heroísmo dos actos concretos um heroismo de grandeza da
alma, independente da conquista e do domínio.
Escreve Jacinto Prado Coelho. " Em Camões, põe-se no mesmo plano a memória e a
esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a
utopia e daí uma concepção diferente do heroísmo ". (D' Os Lusíadas à Mensagem, p.
106)
Marca visível do diálogo com Camões, cuja ausência está presente no texto de Fernando
Pessoa (v. Eduardo Lourenço "Pessoa e Camões"), é a reflexão directa de um mito,
como é, por exemplo, o poema "O Mostrengo", que corresponde ao Mito do Adamastor.
É-o ainda a presença notória de um vocabulário comum aos dois textos.
Maria de Lurdes Belchior, comparando mitos e símbolos das duas obras, conclui que
para além dos valores fundamentais do mito do Adamastor, e não existindo na
Mensagem sinais do mito do Velho do Restelo, os símbolos - D. Sebastião, o Desejado,
o Encoberto, o Quinto Império, as Ilhas afortunadas- "aludem e englobam valores do
episódio mítico de Os Lusíadas: Ilha dos Amores (Fernando Pessoa e Luís de Camões:
Heróis e Mitos n'Os Lusíadas e na Mensagem, p. 8).
"Se o movimento mais fundo do epos camoniano é o de uma aspiração positiva para um
absoluto, última metamorfose do Amor e seu reino sem fim, o do epos imaginário de
Pessoa procede de um Enigma original e final, apenas consentanêo com o eterno
diferimento de um Desejo sem outro objecto que não seja a ausência de Desejo.Como
no limite, essa mesma "ausência" é inexequível toda a pulsão positiva inerente ao
Desejo é transferida por Pessoa para o plano da criação poética, único lugar da
heroicidade moderna, faústico, ou mallarmiano, a luta do espirito consigo mesmo.
(Eduardo Lourenço,Pessoa e Camões , p.260)
É como enigma, para além da acção para além da vida e da morte, que ressurge o
destino civilizador do ocidente.Identificação do indivíduo, na ambiguidade do sonho
que o constitui, com a raça, depois, desta com a humanidade: será esse o nacionalismo
universalista daquele que reconheceu como pátria a língua portuguesa.
Camões foi o Mestre que em poesia épica se distinguiu acima de todos os outros .
Fernando Pessoa, o "Supra-Camões", terá sido o Mestre que na poesia dramática (os
heterónimos em situação de diálogo uns com os outros) ou na fusão de toda a poesia
lírica, épica e dramática ultrapassou a todos.