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AeRT
Unidade 1
Prof. Julia Vanodio
2
ANÁLISE E REDAÇÃO DE TEXTOS
plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas como é que se pode
Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo
que se faz agora, se ele andar para trás e começar do princípio, e puder
1
José Saramago, escritor português. (1922/02010). Depoimento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JBmLzbjmhhg
Índice
Narrativa Pg. 10
O recital Pg. 12
Extras Pg. 18
Bibliografia Pg. 19
Paulo Freire, pedagogo brasileiro, no seu livro “A importância do ato de ler” 2, coloca uma questão
chave que subjaz ao ato de ler: a importância do conhecimento do mundo para um efetivo
processo de leitura.
Em concordância com esta visão, consideramos que o ato de ler não se relaciona com a simples
decodificação de signos e estruturas da língua e não é um processo que segue um trajeto
unilateral entre escritor e leitor. Antes bem, é um processo complexo em que autor e leitor se
encontram na criação e recriação do sentido do texto.
Para ler é necessário ativar os conhecimentos que temos sobre o mundo. Será a partir dessa
ancoragem na própria existência que a experiência da leitura se tornará significativa e, por sua
vez, enriquecedora de futuras leituras. Estes conhecimentos envolvem múltiplos fatores entre eles
os conhecimentos linguísticos, relacionados com o funcionamento da língua como sistema e seu
uso; os fatores que tem a ver com a forma que o texto toma (tipo e gênero textuais) e também os
fatores que guardam relação com os conhecimentos prévios que o leitor possua no momento da
leitura.
Quando falamos de conhecimentos prévios, então, não estamos estabelecendo uma relação
exclusivamente linguística, muito pelo contrário, os aspectos linguísticos são apenas uma
dimensão que intervém no momento da leitura, mas nunca a única. Assim, os conhecimentos
prévios, ou “a leitura do mundo” no dizer de Freire, são aquilo que “precede à leitura da palavra”.
No decorrer da presente apostila, através do ato de ler como eixo temático, esperamos que o
aluno reflita sobre a importância de uma abordagem crítica da produção da leitura, buscando a
produção de sentidos a partir do texto. Visamos fomentar o ato de ler como um processo em que
o leitor constrói sua subjetividade ao tempo que interage com o texto, inscrevendo-se como leitor
em uma determinada ordem social e experimentando uma transformação como resultado desse
encontro.
Boa leitura!
2
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 48. ed. São Paulo, Cortez, 2006.
Funções da linguagem
As funções da linguagem foram apresentadas pelo linguista russo Roman Jakobson no intuito de analisar
como se organiza o discurso. São consideradas básicas na análise da construção de um ato comunicativo e,
mesmo tendo sido revisadas e complexadas em instâncias posteriores, ainda são muito úteis para
compreender como funciona a comunicação humana.
As funções da linguagem estão baseadas, por sua vez, no seguinte esquema da comunicação:
Contexto (ambos
devem conhecer os
referentes situacionais)
Contato/Canal Código
Devem estabelecer um (ambos devem utilizar o
efetivo contato através mesmo conjunto
de um canal (condutor) estruturado de signos)
de comunicação
Emissor
Receptor
Código
Canal
Mensagem
Contexto
i
Cada um dos fatores acima citados determina uma função diferente da linguagem e da predominância de
uma ou outra obteremos diferentes efeitos de sentido ao momento da interpretação da mensagem.
ii
Relacione os textos a seguir com a função à que fazem referência :
a)
Centra-se no contexto e é abundante em dados concretos, fatos e circunstâncias visto que tem como
objetivo transmitir a informação objetivamente. É a função predominante em textos acadêmicos,
jornalísticos e no discurso científico. Há predomínio de estruturas em terceira pessoa para distanciar a voz
do texto dos posicionamentos de quem escreve.
Exemplo: O Brasil limita com os seguintes países: Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana
Francesa, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai.
b)
É centrada no emissor, espelha suas emoções, opiniões, estados de ânimo. É rica em adjetivações e figuras
da linguagem, tem ocorrência da primeira pessoa, interjeições e sinais de pontuação. Veicula informação
também, mas sempre deixando transparecer o ponto de vista do emissor. É de destacar que as emoções que
esta função traz à tona não tem uma necessária correspondência com a realidade, isto é, um emissor pode
expressar uma emoção que pode ser fingida.
c)
É voltada para o receptor em quem se pretende provocar um efeito de sentido. Busca persuadir ou
convencer o receptor envolvendo-o com o conteúdo através de linguagem argumentativa e apelos diretos.
Há predomínio da segunda pessoa do discurso, imperativos e vocativos. Dependendo das características do
gênero textual estes elementos podem não aparecer, mas o intuito de convencer o destinatário ainda assim
estar presente. Predomina, entre outros, em textos de opinião, propagandas e publicidades.
Exemplo: “Diga não aos maus tratos. Denuncie. Defenda essa ideia.”
d)
É a função centrada no canal. Visa estabelecer, manter ou interromper a comunicação. Aparece nos
cumprimentos, em perguntas para conferir a chegada da mensagem como “entende?/ viu/ não é mesmo?”.
Exemplo:
“- Olá! Como vai?
e)
Prevalece quando usamos a língua para falar da mesma, quer dizer, quando se explica um código usando o
próprio código.
f)
Centrada na mensagem. Explorada na poesia, literatura e publicidade, busca provocar efeitos de sentido a
partir da forma em que se constrói a mensagem. É característica dos textos literários, mas não exclusiva. Em
palavras de Jakobson, a característica indispensável da função poética “ projeta o princípio da equivalência
do eixo de seleção ao eixo de combinação”, isto é, a equivalência é uma característica constitutiva dos
textos onde a função poética predomina. Este eixo de combinação enfatiza as relações de equivalência que
o emissor estabelece entre um determinado tema e a materialidade linguística com que o representa.
Diferentemente da metalinguagem, da qual também se poderia dizer que combina expressões sinônimas
(como no dicionário, por exemplo, A=A), a função poética se baseia em uma equação para construir uma
sequencia e não em uma sequência para construir uma equação.
Exemplo:
http://blogdoenem.com.br/gramatica-enem-funcoes-linguagem/
http://blogdoenem.com.br/funcoes-linguagem-2-gramatica-enem/
Segundo Luiz Antônio Marcuschi, linguista brasileiro, a língua é “uma atividade social, histórica e cognitiva”.
Assim, a língua só cobra entidade no uso em situações, épocas e grupos sociais concretos. Isto se traduz em
formas determinadas, em modelos que usamos para interagir através da língua.
Estes modelos que se adaptam ao largo leque de situações comunicativas possíveis são os gêneros textuais,
isto é, as formas diversas que os atos comunicativos adotam segundo as características sócio-comunicativas
definidas por conteúdos, funções da linguagem predominantes neles, o estilo, e suas características
constitutivas. Os gêneros constituem uma imensa diversidade, podemos citar a modo de exemplo as cartas,
entrevistas, romances, papers, blogs,ligações telefônicas, etc. É uma classificação da materialidade dos
textos.
Os tipos textuais são construtos teóricos definidos pelas propriedades linguísticas intrínsecas de um texto
(entendendo texto em um sentido amplo). A diferença dos gêneros, não são textos empíricos, antes bem,
maneiras de organizá-los com determinados objetivos. Por sua vez, constituem um conjunto muito mais
limitado de categorias do que os gêneros. Uma classificação possível para os tipos textuais (Werlich 1973)
divide-os em:
Narrativos
Descritivos
Ex: A luz crescia; e as altas colunas e as figuras esculpidas ao longo do caminho passavam
lentamente como fantasmas cinzentos. (J. R. R. Tolkien, O senhor dos anéis, O retorno do rei,
p. 901.)
Expositivos
Ex: Essa é a corneta que Boromir sempre carregava! – exclamou Pippin. (J. R. R. Tolkien, O
senhor dos anéis, O retorno do rei, p. 797.)
Argumentativos
– Não mudei de ideia. É apenas bom senso: que vá primeiro aquele que tem mais
probabilidade de escorregar. Não quero cair em cima do senhor e derrubá-lo – é insensatez
matar dois numa só queda. (J. R. R. Tolkien, O senhor dos anéis, As duas torres, p. 637.)
Injuntivos
São enunciados incitadores à ação. Nota-se claramente sua função apelativa, uma vez que
tende a possuir sequências com verbos no imperativo.
Ex: Parem! Parem! – gritou Galdalf, saltando na direção da escada de pedra diante da porta. –
Parem com esta loucura! (J. R. R. Tolkien, O senhor dos anéis, O retorno do rei, p. 901.)
Note-se que todos os exemplos foram tirados de O senhor dos anéis, um texto “narrativo”.
Isso porque um mesmo gênero normalmente pode ter sequências textuais de diferentes
tipologias. No gênero “redação escolar” predominam as sequências argumentativas, mas é
possível identificar enunciados expositivos ou injuntivos, por exemplo. O romance, por
exemplo, terá todas essas sequências trabalhando em função da narração.
Narrativa
Com o intuito de revisitar as funções da linguagem e a análise dos diferentes níveis de leitura de um texto
trabalharemos os pormenores da tipologia narrativa através do gênero textual “crônica”. Este se enquadra
na produção artística literária, portanto não é demais ter presente uma definição do que é considerado
texto literário.
“Literatura, como manifestação artística, tem por finalidade recriar a realidade a partir da visão
de determinado autor (o artista), com base em seus sentimentos, seus pontos de vista e suas
técnicas narrativas. O que difere a literatura das outras manifestações é a matéria-prima: a
palavra que transforma a linguagem utilizada e seus meios de expressão. Porém, não se pode
pensar ingenuamente que literatura é um “texto” publicado em um “livro”, porque sabemos que
nem todo texto e nem todo livro publicado são de caráter literário.
Logo, o que definiria um texto “literário” de outro que não possui essa característica? Essa é
uma questão que ainda gera discussão em diversos meios, pois não há um critério formal para
definir a literatura a não ser quando contrastada com as demais manifestações artísticas
(evidenciando sua matéria-prima e o meio de divulgação) e textuais (evidenciando um texto
literário de outro não literário). Segundo José de Nicola (1998:24), o que torna um texto literário
é a função poética da linguagem que “ocorre quando a intenção do emissor está voltada para
a própria mensagem, com as palavras carregadas de significado.” Além disso, Nicola enfatiza
que não apenas o aspecto formal é significativo na composição de uma obra literária, como
também o seu conteúdo.”
Fonte: http://www.soliteratura.com.br/introducao/
A intenção comunicativa é narrar, contar uma história fictícia ou real, ou uma combinação de ambas.
A estrutura narrativa
É quando há uma multiplicidade de situações ainda não delineadas, criaturas que são vistas
individualmente, ambientes que formam apenas um pano de fundo. Geralmente, as narrativas iniciam-
se por um conflito (lance inicial), um problema, uma dúvida. Tomemos como exemplo Memórias
Póstumas de Brás Cubas: um narrador defunto contará a sua história; ou como em D. Casmurro: o
narrador quer "atar as duas pontas da vida"; ou como em Senhora: o relato de Aurélia Camargo que
"compra" um marido de pouco estofo moral por cem contos de réis.
Desenvolvimento narrativo
Desfecho ou desenlace
Suponha uma novela de TV. Mocinho e mocinha felizes e casados, vilão preso, tudo em paz. Você já
pode até adivinhar o que vai acontecer no "arremate", acabamento: as personagens menores se
acomodam em seus destinos, nasce uma criança, um casamento se faz. Todos serão felizes ou
prosseguirão de qualquer modo suas vidas. É o fim da narrativa.
Manipulação: um personagem induz outro a fazer alguma coisa. O que o personagem vai fazer o coloca em
duas posições possíveis: querer fazê-lo, dever fazê-lo, ou uma combinação de ambas.
Sugestão
Pense em um conto clássico infantil e identifique as quatro fases da narrativa.
Elementos da narrativa
O ambiente: situa a história em um espaço, o lugar onde ocorrem as ações realizadas pelos personagens.
O ambiente pode incluir a descrição do lugar, a estação do ano ou o clima, a situação ou um determinado
período de tempo como “num reino muito antigo” ou “era uma vez”.
As ações: se desenrolam no tempo e no espaço, ou seja, no ambiente descrito. Elas se desenvolvem a partir
de um enredo ou trama, ou seja, é o que acontece na história.
Contidos na tipologia narrativa, encontramos os gêneros “conto” e “crônica”, ambos muito prolíficos dentro
do acervo da literatura brasileira.
O conto concentra-se no relato de um acontecimento. Pode estar baseado em um fato real ou ser produto
da imaginação do autor. Nasceu na tradição dos relatos orais da antiguidade. O foco narrativo pode ser
tanto na primeira como na terceira pessoa. Tem um espaço e tempo normalmente restritos, poucos
personagens, mas com personalidades complexas e detalhadas. A narrativa normalmente se centra em
apenas um dilema, capaz de produzir no leitor as sensações desejadas pelo autor.
A crônica baseia-se sempre em fatos cotidianos provocando uma identificação imediata do leitor com o
relato. O foco narrativo é quase sempre a primeira pessoa privilegiando a função expressiva. É uma
característica marcante na crônica brasileira os recursos do humor e da ironia para estabelecer críticas
sociais e provocar no leitor, reflexões que extrapolam a simples descrição do fato cotidiano.
O recital
Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal — digamos, um
recital de quarteto de cordas — e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um
recital de quarteto de cordas.
O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta platéia. São três homens e uma mulher. A
mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque.
Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o
violoncelo.
Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se
revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.
Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início
de qualquer concerto. As últimas tossidas da platéia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar
discreto. Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai
começar o recital.
Nisso...
Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas?
Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da
platéia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa mas
depois tudo volta ao normal.
O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e mesmo aquilo
não pode estar acontecendo —, começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o
Mozart.
Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena
incongruência. Algo que crie apenas um mal estar, de início, e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao
caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda.
Entra no palco um homem carregando uma tuba. Há um murmúrio na platéia. O que é aquilo? O homem
entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como
um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado
e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um
violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:
— Por favor...
— O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que eu não posso ficar aqui?
— O que o senhor quer?
— Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho. Alguns risos na platéia. Ruídos de impaciência.
Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em
seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
— Retire-se, por favor.
— Por quê? Quero tocar também.
O primeiro violinista olha nervosamente para a platéia. Nunca em toda a sua carreira como líder do
quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma
passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.
— Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte
para a tuba.
— Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o UM-Pá-Pá.
Mais risos da platéia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem
está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camisa do Vasco.
Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para
retirar o tocador de tuba à força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e começa:
— Se alguém se aproximar de mim eu toco pof !
A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
— Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado.
Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um pá pá.
— Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba, rindo para a platéia e tentando
conquistar a sua simpatia.
Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:
— Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17
revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão
interrogados. Um a um, pá-pá. Torna-se suplicante:
— Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar
instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...
Num tom sedutor, para a violista:
— Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa.
Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha
tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...
Finalmente, desafiador, para o violoncelista.
— Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!
O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A
platéia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que
teve início com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ainda, uma pane mental do
autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga e que agora quem está com o bigode ruivo é a violista.
Vendo-a assim, o tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita:
"Mamãe!".
Nisso, entra no palco uma manada de zebus.
Para analisar
Vizinho -
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado a visita do
zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu
apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a
5 sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe
dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor a
teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro direito ao repouso
noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003.
Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o
10 seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois
números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a
oeste 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto 1103 e embaixo
pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números comportados e silenciosos; apenas eu
e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós
15 dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo
sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de
manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será
convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois
às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde
20 ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que
ela só pede ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o
respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas -e prometo
silêncio.
...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um
25 homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi
música em tua casa. Aqui estou. “E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de
meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos
que a vida é curta a lua é bela."
Quando abordamos um texto podemos ficar na superfície dele, amarrados aos fatos apresentados ou tentar
entender a estrutura profunda que subjaz a todo bom texto. A crônica “Recado ao senhor do 903” oferece
um bom exemplo disso. Por trás do relato de um fato corriqueiro, há uma profunda reflexão do autor sobre
o convívio entre as pessoas, sobre a submissão aos costumes e o que para ele constitui a verdadeira
essência do ser humano.
Acompanhe a descrição feita por Platão e Fiorin dos três níveis de leitura para esta crônica e veja como se
relacionam com a estrutura narrativa colocada na página 10:
No nível da estrutura profunda, podemos organizar todo o texto em torno de uma oposição básica:
submissão x autonomia. Assim:
Num primeiro momento existe a afirmação da autonomia caracterizada pelo desacato às leis da sociedade.
Num segundo momento, a negação da autonomia, caracterizada pela repressão do vizinho, do zelador, das
leis e da polícia.
Num terceiro momento, a afirmação da submissão, caracterizada pela promessa sincera de acatar a
reclamação do vizinho.
16
ANÁLISE E REDAÇÃO DE TEXTOS
É interessante destacar como, quando um texto é bem construído, todas as escolhas do autor contribuem a
reforçar a estrutura profunda do texto. Na crônica em análise podemos salientar os seguintes recursos:
A escolha dos termos utilizados não é arbitrária. Isto é o que se denomina construção do campo semântico.
Lembremos a função poética descrita por Jakobson: relações de equivalência predominam neste tipo
textual. É através dessas relações que o autor instala um campo semântico; quer dizer o conteúdo não é o
único que determina o léxico e sim as escolhas intencionadas de quem escreve. Os significados das palavras
utilizadas contribuem significativamente à construção do sentido do texto por parte do leitor.
Exemplo disto são os nomes dos personagens. O autor poderia ter escolhido nomes populares como João e
José para identificar seus personagens. Contudo, decidiu-se pelos números e com esta decisão não está
evidenciando desconhecimento dos sujeitos ou superficialidade descritiva, mas alertando o leitor para o fato
de que esses personagens não possuem identidade senão a partir dos números, dos postos que ocupam no
conjunto de uma sociedade na qual o anonimato parece garantir o funcionamento sem desvios.
A primeira pessoa, presente durante a quase totalidade do texto, evidencia um uso da função emotiva,
visando comover o leitor em marcada oposição à quantidade de números citados no corpo da crônica. Este
relacionamento antagônico entre estrutura e vocabulário reforça o sentido profundo do texto, embora o
leitor não o perceba numa primeira aproximação.
Já nos dois últimos parágrafos, há referências bíblicas (“come do meu pão, bebe do meu vinho”) colocadas
na segunda pessoa como forte apelo àquilo que a voz do texto pretende salientar pela ausência no
parágrafo anterior: a irmandade e o vínculo profundo entre as pessoas. O uso de tempos verbais do
subjuntivo (...”e o homem trouxesse sua mulher...”) colaboram na construção do sentido de que tudo o
colocado nestes parágrafos é um desejo da voz do texto (eu lírico), um objetivo elevado que ainda parece
não ter sido alcançado.
Para analisar
Articuladores do discurso
quando a oração
principal está
Futuro no futuro do presente
se Subjuntivo ou no presente do
indicativo com
CONDIÇÃO valor de futuro
Extras
( texto adaptado)
Antes de ler
Lembre o que você já sabe de experiências semelhantes, de outras leituras, de tudo o que
conseguir relacionar com o texto.
Alargue seus conhecimentos: o que você deve saber? (informações sobre o autor, o texto, a cultura
de origem...)
Escreva antes de ler (escreva em um quadro o que você sabe sobre o assunto e o que gostaria de
saber, faça esquemas ou mapas conceptuais para completar depois da leitura...)
Formule antecipações sobre o que vai ler.
Leia o texto em diagonal para descobrir como está construído (uma narração, uma descrição, uma
argumentação) e quais são as respectivas partes principais.
Durante a leitura
Coloque-se perguntas (sobre palavras, frases, sequencias que não sejam muito claras para você,
etc.)
Estabeleça ligações com pessoas, lugares ou acontecimentos que você conheça.
Clarifique e confirme. Responda às perguntas que fez a você mesmo, verifique as suas predições
quando encontrar a informação no texto.
Avalie o que lê. Aponte informações ou situações semelhantes que você lembre, bem como suas
impressões e reflexões pessoais.
Após a leitura
Mapas conceituais
https://www.youtube.com/watch?v=ZChbDjrUX2M
Bibliografia consultada
Fiorin, Jose Luiz; Platão, Francisco. (2007). Para entender o texto. Leitura e redação.
Gama, Nilce et al. (2013). Os tipos e gêneros textuais na sala de aula.
Jakobson, Roman . (1984) (1975) Linguística e poética, in Ensaios de linguística geral.
Marcuschi, L. A. (2002). “Gêneros textuais: definição e funcionalidade” In DIONÍSIO, Â. et al. Gêneros
textuais e ensino.
ii