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Rodrigo Castelo1
I. Introdução
1
econômico-social. Por isto, o estudo de uma obra literária ou teórica é precedida por
uma análise do contexto histórico no qual foi produzida. Este método foi fielmente
seguido desde os seus primeiros escritos, tornando-o um marxista ortodoxo no sentido
emprestado por Lukács ao termo.
Em 1974, no artigo “O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”,
Carlos Nelson fez uso do método marxiano/luckásiano de escrutinar uma obra literária a
partir do seu contexto histórico, sem abrir mão do estudo das especificidades dos
fenômenos estéticos. Para realizar esta tarefa, utilizou-se do conceito de Lênin de via
prussiana na análise da formação econômico-social brasileira, marcada por processos de
transformação social de largo alcance – Independência, Abolição da escravatura,
Proclamação da República, Revolução de 1930, Golpe militar de 1964, Abertura
democrática dos anos 1980 –, conduzidos pelo alto por acordos entre as classes
dominantes (latifundiários e burgueses) que excluem as classes subalternas de um
protagonismo efetivo nestes momentos históricos. Conforme explica o nosso autor,
Ao invés das velhas forças e relações sociais serem extirpadas através
de amplos movimentos populares de massa, como é característico da
“via francesa” ou da “via russa”, a alteração social se faz mediante
conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o
plano imediatamente político, mediante um reformismo “pelo alto”
que exclui inteiramente a participação popular (COUTINHO, 1974,
p.3).
2 O conceito de Lênin também aparece – enriquecido com as determinações que Lukács agrega a ele – na
obra de Carlos Nelson nos textos “Cultura e sociedade no Brasil” (1979) e “Os intelectuais e a
organização da cultura” (1980). Ambos os artigos figuram no livro da sua lavra Cultura e sociedade no
Brasil: ensaios sobre ideias e formas, 4ª edição, editora Expressão Popular, 2011.
2
Na década de 1980, o conceito gramsciano ganhará cada vez mais espaço na sua
obra. Em 1985, a aplicação do conceito de revolução passiva fica explícita no texto “As
categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, onde se discute a universalidade da
produção teórica de Gramsci no estudo das particularidades da nossa formação
econômico-social (COUTINHO, [1985] 1999). A partir de então, os conceitos de Lênin
e Gramsci serão usados conjuntamente, de forma complementar 3, no estudo das
transformações históricas que o Brasil passou no século XX, da Era Vargas à abertura
democrática dos anos 1980, passando pelo populismo e a ditadura militar inaugurada
com o golpe de 1964. Com o tempo, em especial nos anos 1990, o conceito gramsciano
ganha corpo e maior volume nos seus escritos, eclipsando largamente a luz do conceito
de Lênin.
3 “De qualquer modo, na medida em que se concentra prioritariamente nos aspectos infra-estruturais do
processo, o conceito de Lenin não é suficiente para compreender plenamente as características
superestruturais que acompanham – e, em muitos casos, determinam – essa modalidade [não-clássica] de
transição. Portanto, não é por acaso que essas tentativas recentes de aplicar ao Brasil o conceito de ‘via
prussiana’ são quase sempre complementadas pela noção gramsciana de ‘revolução passiva’”
(COUTINHO, [1985] 1999, p.197).
4 Para uma melhor caracterização dos conceitos de via prussiana e revolução passiva, bem como da
narrativa histórica da modernização capitalista no Brasil, consultar os artigos de Virgínia Fontes, Mauro
Iasi e Marildo Menegat publicados no presente livro. Faço aqui somente um resgate histórico-conceitual
dos anos 1930 aos 80 para retratar os antecedentes do neoliberalismo, que conserva e nega
simultaneamente elementos do passado, superando muitos deles em uma nova fase do desenvolvimento
capitalista no Brasil (e no mundo, em geral).
3
interesses privados. O processo de modernização foi conduzido pelo Estado, que soldou
uma aliança entre setores da oligarquia fundiária e uma nascente burguesia industrial,
quebrando com a antiga hegemonia das oligarquias exportadoras, que mesmo assim se
manteve no bloco de poder, embora de forma secundária. O país aprofundava-se na
direção do capitalismo, mantendo, todavia, estruturas agrárias pré-capitalistas com a
presença das velhas elites no poder.
Aos setores sociais resistentes, como a ala esquerda do tenentismo e o
movimento operário autônomo, o Estado valeu-se da sua máquina coercitiva. A reação
estatal à resistência dos trabalhadores, entretanto, não se limitou à repressão,
intensificada com o golpe do Estado Novo. O Estado varguista editou medidas de
atendimento de demandas pontuais do movimento operário, com a promulgação de leis
trabalhistas voltadas aos empregados urbanos, deixando de lado os trabalhadores rurais.
Além disso, a legislação sindical atrelou os sindicatos dos trabalhadores à burocracia
estatal, a partir de uma legislação influenciada pelo fascismo.
O golpe militar de 1964, realizado com apoio da burguesia e dos latifundiários,
foi mais um capítulo da revolução passiva brasileira. Naquela ocasião, o bloco de poder
dominante efetivou a mudança de patamar do capitalismo da sua fase concorrencial para
a monopolista, consolidando o capital monopolista de Estado 5 e a hegemonia das
multinacionais no país, processo este que já ocorria desde o governo JK. A estrutura
fundiária continuou extremamente concentrada, mas as relações sociais de produção e
as forças produtivas capitalistas entraram no setor rural, trazendo alterações substantivas
no campo brasileiro, que ainda combinava elementos arcaicos e modernos.
Mais uma vez, o Estado assumiu aquilo que Gramsci chamou de função
Piemonte na revolução passiva, isto é, um papel protagonista nas transformações da
sociedade, substituindo classes e grupos sociais na direção da modernização. O Estado
autocrático burguês liderou todo o processo de transição capitalista monopolista com o
uso intensivo da coerção aos grupos que resistiram ao golpe, dos trabalhistas aos
comunistas. Em paralelo, o governo ditatorial ensaiou medidas de construção do
consenso junto às camadas médias (COUTINHO, [1985] 1999, p.202), não somente
com o crescimento econômico (que mais tarde se revelaria um modelo de
desenvolvimento que aprofundava as desigualdades sócio-econômicas), mas também
5 Sobre o conceito de capitalismo monopolista de Estado e a política brasileira, ver o quarto capítulo do
livro A democracia como valor universal (COUTINHO, 1980, p.93-118).
4
com concessões pontuais nas áreas dos direitos sociais (previdência, habitação),
enquanto suprimia diretamente direitos civis e políticos.
O terceiro e último capítulo da revolução passiva brasileira, pelo menos no
entendimento de Carlos Nelson, foi a transição da ditadura militar para a Nova
República nos anos 1970-80. A abertura política do país iniciou-se como um projeto
formulado nos gabinetes do alto escalão da ditadura, particularmente pelo estrategista
do regime, o general Golbery do Couto e Silva, em parceria com Ernesto Geisel.
Segundo as suas formulações, o projeto de abertura deveria ser uma “transição segura,
lenta e gradual”, numa operação de ação repressiva aos setores mais radicalizados da
oposição e de cooptação dos moderados. A este projeto, contrapôs-se um processo de
abertura construído pelas bases e direções oposicionistas, que lutavam pela anistia
ampla, geral e irrestrita, pelo pluralismo partidário com agremiações dos trabalhadores e
por eleições livres e diretas. Neste embate entre a ditadura e a oposição, venceu a
primeira, que foi obrigada, todavia, por conta das forças de centro-esquerda, a fazer
determinadas concessões6. A resultante final foi, assim, uma transição “fraca”, na qual
prevaleceram aspectos autoritários na cultura política brasileira, bem como as
desigualdades sócio-econômicas. Nas suas palavras,
6 “Na prática, contudo, a sociedade civil emergente terminou por promover um processo de abertura ‘a
partir de baixo’, que certamente buscou se valer das novas condições geradas pela implementação do
projeto ‘pelo alto’, mas que o transcendeu, indo bastante além dele, e que terminou assim por dar lugar a
uma abertura bem mais radical do que a prevista no projeto originário do governo Geisel-Golbery”
(COUTINHO, 2006a, p.187, grifos originais).
5
repressão brutal aos aparelhos privados de hegemonia ligados à classe trabalhadora e
setores médios mais progressistas. A partir dos primeiros germes da decadência da
ditadura tecnocrático-militar, intensificou-se a ocidentalização da formação econômico-
social brasileira, isto é, uma relação mais equilibrada dentro do Estado ampliado a partir
da diversificação e complexificação da sociedade civil, ilustrada no fortalecimento do
MDB, no aparecimento do novo sindicalismo e dos novos movimentos sociais, na
fundação do PT e do MST etc.
Este processo sui generis de ocidentalização do Brasil tornou-se definitivamente
consolidado na década de 1980, que viu, na arena político-ideológica, a formulação de
dois grandes modelos de estruturação do poder e de representação dos interesses, o
liberal-corporativo e o democrático de massas (COUTINHO, 2006a, p.189-90). O
primeiro modelo, típico da sociedade estadunidense, é formado por sindicatos
corporativistas de resultados imediatos aos seus filiados e partidos políticos sem uma
definição ideológica muito clara, funcionando como federações de lobbistas de causas
específicas, que tendem a gerenciar a ordem existente a partir da pequena política. O
segundo modelo, originado na Europa ocidental, tem sindicatos classistas de maior
combatitividade, e partidos políticos com programas, ideologias e bases sociais distintos
e, muitas vezes, antagônicos, o que gerou uma intensa disputa pela direção intelectual-
moral das sociedades nacionais a partir da grande política. No Brasil, o modelo norte-
americano adquiriu a forma e o conteúdo do neoliberalismo; já o modelo europeu
tornou-se o projeto democrático-popular capitaneado pelo PT e seus aliados.
A disputa político-ideológica no Brasil deu-se, a partir dos anos 1980, entre os
modelos neoliberal e o democrático-popular. A novidade desta disputa era que as classes
dominantes reconheceram, diante do avanço das forças populares, a necessidade
histórica de se tornarem classes dirigentes, isto é, que precisavam construir consenso
junto às classes subalternas. Contra o projeto de democratização das esferas econômica,
política e cultural proposto pelos trabalhadores, a burguesia brasileira encampou o
projeto neoliberal na sua versão básica do Consenso de Washington, de política
econômica de juros altos, superávit primário, liberalização financeira, comercial e
produtiva e privatização dos bens públicos, bem como de despolitização da sociedade
civil via o “Terceiro Setor”, o enfraquecimento dos partidos políticos e a promoção do
sindicalismo de resultado. Conforme declara Carlos Nelson Coutinho (2006a, p.191-2),
(...) na medida em que a burguesia tem hoje consciência de que essas
soluções são inviáveis [ditadura militar], ela tem se esforçado por
6
combinar sua dominação com formas de direção hegemônica, ou seja,
por obter um razoável grau de consenso por parte dos governados. O
grande objetivo atual das forças do capital, no Brasil e no mundo, é
consagrar a pequena política e a pseudo-ética do privatismo
desenfreado como elementos fundamentais de um senso comum que
sirva de base à sua hegemonia. É essa, precisamente, a face ideológica
do neoliberalismo.
7
desta maneira, alguns dos seus traços mais típicos, como o seu caráter privatista e anti-
democrático, para não dizer autoritário. Nas palavras de Carlos Nelson,
(...) o sentido último da “reforma” proposta pelo atual governo [FHC]
não aponta para a transformação do Estado num espaço público
democraticamente controlado, na instância decisiva da universalização
dos direitos de cidadania, mas visa submetê-lo ainda mais
profundamente à lógica do mercado. Trata-se, na verdade, de uma
“contra-reforma”, que tem dois objetivos prioritários: por um lado, em
nome da “modernização”, anular as poucas conquistas do povo
brasileiro no terreno dos direitos sociais; e, por outro, em nome da
“privatização”, desmontar os instrumentos de que ainda dispúnhamos
para poder nos afirmar como nação soberana em face da nova fase do
imperialismo, a da “mundialização do capital” (COUTINHO, [1998]
2000, p.123).
Com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 2002, até então defensor do
modelo democrático-popular e crítico do neoliberalismo, acreditou-se numa reviravolta
na política nacional. A reviravolta, contudo, não veio e o PT rapidamente aderiu ao
projeto neoliberal (MACHADO, 2005), em particular pela manutenção da política
econômica herdada dos governos FHC7, blindando a acumulação rentista das
ingerências da democracia. Os resultados foram o aprofundamento e a consolidação da
inserção nacional na mundialização do capital, que agora não encontrava maiores
resistências no campo da esquerda e das forças populares. Assim, o Brasil caminhou
para o seu “americanalhamento” (COUTINHO, 2006a, p.193), isto é, a incapacidade
real de grupos políticos discutirem (e implementarem) alternativas de ruptura com os
nossos passado e presente de desigualdades sócio-econômicas e uma política autoritária
e anti-democrática. Vive-se, assim, a hegemonia da pequena política, definida por
Carlos Nelson da seguinte maneira: “existe hegemonia da pequena política quando a
política deixa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e
passa, portanto, a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos,
como simples administração do existente” (COUTINHO, 2010, p.32).
De acordo com o nosso autor, a adesão do PT ao projeto neoliberal pode ser lida
a partir do transformismo, processo típico das revoluções passivas de cooptação de
lideranças das classes subalternas ao bloco de poder dominante. Isto significa, então,
7 “Todo o esforço teórico e prático do neoliberalismo tem se voltado no sentido de desqualificar a ‘grande
política’ (que seria ‘ideológica’, ‘utópica’, ‘universalista’ etc.) e reduzir a atividade política ao que
Gramsci chamava de ‘pequena política’. Faz parte desta redução o esforço para subtrair do debate político
as opções de política econômica, aquelas que envolvem um questionamento dos próprios lineamentos da
ordem social. Ora, tanto a atual crise como as soluções apontadas para ela fazem parte do universo da
‘pequena política’. Não me parece casual que a grande preocupação, tanto da oposição tucano-pefelista
quanto do governo, seja ‘blindar’ a economia, ou seja, impedir que questões de ‘grande política’ voltem a
ocupar a agenda” (COUTINHO, 2006b, p.156-7).
8
que o neoliberalismo seria o quarto capítulo da revolução passiva brasileira? Carlos
Nelson expressa uma descrença quanto a esta hipótese:
Tenho dúvidas sobre a possibilidade de aplicar à atual conjuntura
brasileira, iniciada com o governo Collor, a categoria gramsciana de
‘revolução passiva’. Uma ‘revolução passiva’ implica algumas
concessões às classes subalternas, como foi precisamente o caso do
governo Vargas, do populismo em geral e até mesmo da ditadura
militar (a qual, por exemplo, estendeu direitos previdenciários aos
trabalhadores rurais e aos autônomos urbanos). Ao contrário, os
últimos governos têm tido como meta apenas desconstruir direitos
sociais já conquistados, o que talvez permita dizer que estamos numa
época de ‘contrarreforma’ (...). Mas, ainda que se trate de
contrarreforma e não de revolução passiva, a justeza da aplicação da
noção de ‘transformismo’ ao período que se inicia com o governo
Cardoso e prossegue no governo Lula me parece inegável
(COUTINHO, 2006a, p.198, nota 30).
9
III. Inventário de uma controvérsia: o neoliberalismo em debate
10
autora propor o conceito de capital-imperialismo para o entendimento das novas
determinações do modo de produção capitalista.
Diante da confusão teórica, o termo ganhou muitas facetas dentro do
pensamento social crítico. Na sua maioria, os intelectuais progressistas privilegiam
dimensões particulares do real, com ênfase nas esferas ideológicas e políticas. A
definição do neoliberalismo enquanto uma força ideológica é uma das mais difundidas.
Um dos textos sobre o neoliberalismo mais influentes no Brasil foi “Balanço do
neoliberalismo”, de Perry Anderson. Neste artigo, o intelectual britânico faz um
histórico do neoliberalismo e, ao final, propõe um balanço do mesmo, definido como
um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como
o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um
corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente
decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição
estrutural e sua extensão internacional (ANDERSON, 2000, p.22).
8 “O neoliberalismo é um projeto sério e racional, uma doutrina coerente e uma teoria vinculada e
reforçada por certos processos históricos de transformação do capitalismo. É uma doutrina, pelo menos de
fato, conectada com uma nova dinâmica tanto tecnológica e gerencial quanto financeira dos mercados e
da competição” (THERBORN, 2000, p.182).
9 “Me parece que o essencial é caracterizar o neoliberalismo como um modelo hegemônico. Isto é, uma
forma de dominação de classe adequada às relações econômicas, sociais e ideológicas contemporâneas”
(SADER, 2000, p.146).
11
Neves (2005) taxa o neoliberalismo, em especial sua vertente da Terceira Via, de uma
nova pedagogia da hegemonia para consolidar o consenso burguês.
Um segundo conjunto de definições sobre o neoliberalismo pode ser circunscrito
em torno dos seus aspectos políticos. Em linhas gerais, define-se o termo como uma
ofensiva da classe burguesa e seus aliados contra os trabalhadores diante da crise
capitalista no final dos anos 1970 e início dos 1980. Neste grupo, encontram-se autores
como Atilio Boron10, Immanuel Wallerstein11, Luciano Vasapollo12 e Pablo González
Casanova13. Com destaque, têm-se os textos de David Harvey (2008) e François
Chesnais (2002), que utilizam o termo como uma tentativa da burguesia rentista em
reverter a tendência a queda da taxa de lucro, além de combater outras causas das crises
capitalistas, atacando as organizações da classe trabalhadora, tidas como politicamente
responsáveis pela corrosão das bases da acumulação (os conflitos distributivos entre
rendas e riquezas do capital e do trabalho). Este conjunto de intelectuais assume a
hipótese da ofensiva neoliberal ser uma estratégia política que a classe burguesa –
hegemonizada por sua fração rentista –, projetou e colocou em ação para estancar o
processo de democratização política e social dos anos 1960 e 1970, cristalizado tanto no
Welfare State quanto no socialismo real. Para lograr êxito na reafirmação da sua
supremacia, as classes dominantes lançaram mão prioritariamente de recursos
hegemônicos e consensuais e, nos casos mais extremos (mas não tão raros), da
dominação-coerção, como repressão policial brutal, criminalização da pobreza e
invasões militares na periferia mundial. Vale ressaltar que tais autores, ao enfatizar os
aspectos políticos deste assalto do capital financeirizado, não obliteram os aspectos
econômicos e ideológicos do neoliberalismo.
10 “O neoliberalismo nos é apresentado como saída única, como a ‘solução técnica’, quando não se trata
de nada mais do que a expressão de uma coalizão de interesses das classes dominantes” (BORON, 2000,
p.174).
11 “O raciocínio é, portanto, o seguinte: o triplo processo [de tendência secular] de
desruralização/esgotamento ecológico/democratização produziu uma poderosa pressão sobre os níveis de
lucro, levando-os a um ponto crítico. Evidentemente, os capitalistas contra-atacam. O conjunto da
ofensiva neoliberal nos últimos 20 anos corresponde exatamente a uma tentativa de inverter o sentido da
corrente. Os capitalistas tentaram, deste modo, reduzir os salários dos trabalhadores
[deslocalização/relocalização das empresas na periferia], as exigências referentes à internalização de
custos [agressão ambiental] e os gastos do Estado providência [democratização]” (WALLERSTEIN,
2003, p.90).
12 “(...) A dominação mundial neoliberal é uma tentativa do capital de solucionar a crise de acumulação
que está presente com força desde os anos 1970 e determina a estrutura e a dinâmica do presente modo
com que o imperialismo se apresenta. Os países imperialistas devem responder cada vez mais aos
processos do capital financeiro internacional, que mais do que nunca é a forma de mostrar as
características mundiais do capitalismo com sua busca por superlucro” (VASAPOLLO, 2007, p. 67).
13 “A chamada ‘economia [neo]liberal’ é a nova forma da sociedade civil e da política social no que se
refere aos marginalizados e superexplorados, que de outro modo tenderiam a formar frentes coletivas. É
uma política de desestruturação da classe trabalhadora” (CASANOVA, 1995, p. 110, grifos originais).
12
No Brasil, o termo foi relacionado a conceitos da filosofia política que versam
sobre períodos históricos anteriores ao bloco histórico fordista-keynesiano. Francisco de
Oliveira (1999, p.80), antes de sugerir o abandono do vocábulo, tratou-o como uma
ideologia totalitária que anula a política e a fala dos subalternos, incutindo o consenso
neoliberal à força, como se houvesse uma (nova) “ditadura” no país. No dossiê
Neoliberalismo e neofascismo do nº 7 da revista Crítica Marxista, Octávio Ianni (1998,
p.118) traça um paralelo entre o neoliberalismo e o nazi-fascismo, apontando
similitudes entre as suas políticas de terrorismo de Estado, criminalização dos
movimentos sociais, xenofobia, racismo etc. Reginaldo Moraes (1998, p.125), por sua
vez, indica que a falência da contrarrevolução neoliberal poderia pavimentar o caminho
para saídas fascistas. Os conceitos de totalitarismo e fascismo usados por Chico de
Oliveira, Octávio Ianni e Reginaldo Moraes são mais relacionados ao uso da coerção do
que ao consenso ideológico dentro do mix de recursos utilizados pelas classes
proprietárias nos seus padrões de supremacia. É importante destacar a existência de
elementos ditatoriais na ofensiva neoliberal, mas não se deve perder de vista que tal
ofensiva se baseou fundamentalmente em táticas hegemônicas.
No prólogo do livro Poder & dinheiro, João Manuel Cardoso de Mello (1997)
narra a globalização capitalista como uma “contrarrevolução liberal-conservadora”, com
a qual as elites dominantes tentam controlar os setores tecnológicos, o sistema
internacional de moedas e finanças e o poder político-militar. Os resultados do controle
destas dimensões por parte dos governos centrais e suas elites são, para a periferia, o
aumento da heterogeneidade estrutural, da exclusão social e da dependência externa.
Kátia Lima (2008, p.2), a partir de um resgate dos textos de Florestan Fernandes, define
o neoliberalismo como uma “contrarrevolução preventiva e prolongada, indicando como
esse conjunto de ações da burguesia para enfrentamento de suas crises, reconstituição de
suas margens de lucro e reprodução do seu projeto de sociabilidade ganha novos
contornos e nova racionalidade nos anos de neoliberalismo, seja por meio do
‘neoliberalismo clássico’ ou do neoliberalismo de ‘terceira via’”.
Como se percebe, a controvérsia sobre o neoliberalismo vai muito além de um
maniqueísmo conceitual entre contrarreforma e revolução passiva. Daí a importância
desta cartografia ideológica sobre o atual projeto de supremacia burguesa, que permite
múltiplas leituras dentro do campo da teoria social crítica e, portanto, múltiplas ações de
transformação social, que ainda não colocaram em xeque a ordem burguesa em tempos
de crise.
13
IV. Social-liberalismo: a renovação na revolução passiva neoliberal (à guisa de
conclusão)
14
Na minha tese de doutorado, intitulada O social-liberalismo (CASTELO, 2011),
defendida na Escola de Serviço Social sob orientação do mestre Carlos Nelson 14,
também procuro edificar a mesma hipótese.
Ora, como o prof. Carlos Nelson admite, o neoliberalismo tem o transformismo
como uma das suas marcas. O que cabe perguntar é: diante do subversivismo esporádico
e elementar das classes subalternas surgido em meados dos anos 1990, a ofensiva
neoliberal não teria sido obrigada a adotar mecanismos de reformas passivas para além
da restauração do poder da classe burguesa e seus apoiadores?
O que se argumentará logo a seguir é que tais reformas não se configuram como
conquistas da classe trabalhadora como as ocorridas nos Trinta Anos Gloriosos, mas
como concessões que as classes dominantes fazem sob um invólucro de medidas
assistencialistas, totalmente desvinculadas da noção de direito, de organização de classe
e de luta político-cultural. Assim, defende-se que a ofensiva rentista ajustou sua
estratégia inicial de restauração para uma reforma-restauradora a partir da última década
do século passado, com o objetivo de manutenção do bloco histórico neoliberal.
Apesar da sua força, o neoliberalismo encontrou resistências na sua aplicação
“pura” e, por isto, não tomou exatamente o rumo idealizado pelos ideólogos de Mont
Pèlerin. Tais resistências – vindas dos subalternos e até mesmo de frações das classes
dominantes – ocorreram desde os primórdios da consolidação do neoliberalismo nos
governos Pinochet, Reagan e Thatcher. Na primeira variante ideológica do
neoliberalismo, intitulada de receituário-ideal, defendia-se uma intolerante doutrina do
controle dos gastos públicos, do arrocho salarial, das aberturas comercial e financeira,
do desmonte do Welfare State e de um amplo processo de privatização, dentro daquilo
que ficou consagrado nos anos 1990 como o Consenso de Washington.
Os planos de ajuste estrutural foram implementados de acordo com a correlação
de forças de cada um dos países. Na América Latina, por exemplo, a agenda neoliberal
foi aplicada com maior ênfase em países como Argentina, Bolívia, México e Venezuela.
No Brasil, diante de um complexo quadro nacional das lutas de classes, no qual a
esquerda – liderada pelo PT nos anos 1980 – formou um bloco de resistência
relativamente eficiente, o neoliberalismo só conseguiu se estabelecer tardiamente nos
14 Peço licença aos leitores para uma nota de cunho estritamente pessoal: apesar das divergências no
campo interpretativo sobre o neoliberalismo, Carlos Nelson, em momento algum, quis imputar qualquer
tipo de direção a minha tese. Ao contrário, estimulou – de todas as formas possíveis –, o debate franco e
aberto, defendendo a minha autonomia enquanto pesquisador. Creio que esta marca de generosidade o
distingue de muitos intelectuais da academia, e o torna um grande mestre.
15
anos 1990 com a cooptação de setores da social-democracia (PSDB), auxiliados por
conservadores (o então PFL, hoje DEM) e até mesmo ex-comunistas (PPS).
Operado por uma composição heterogênea de social-democratas, intelectuais e
executivos ligados ao setor rentista e oligarcas do agronegócio, o bloco de poder PSDB-
PFL, após a vitória presidencial de 1994, promoveu a inserção do Brasil na nova divisão
internacional do trabalho, adequando o país aos padrões globais da acumulação
capitalista, além de combater as organizações políticas e sociais dos trabalhadores com
repressão e cooptação das suas principais lideranças. A ofensiva neoliberal fundou um
novo bloco histórico capitalista no Brasil, com alterações tanto na base econômica
quanto nas superestruturas político-ideológicas. Do ponto de vista político, soldou-se
um bloco social com participações de distintas frações da burguesia – com hegemonia
do grande capital financeirizado nacional e internacional (FILGUEIRAS, 2006, p.183-
4) –, dos latifundiários, das classes médias, e, a depender do período, do
lumpenproletariado e da aristocracia operária (BOITO Jr., 2003).
O projeto neoliberal representou a derrota do movimento operário reconstruído
na década de 1980, o aborto de um Estado de bem-estar social nacional e, acima de
tudo, a vitória da burguesia liderada por sua fração rentista internacionalizada. À esta
vitória, seguiu-se uma ofensiva ideológica neoconservadora. Em uma estratégia
formulada e conduzida por universidades (na sua maior parte privadas e de cariz
eclesiástico), institutos de pesquisa, ONGs e pela mídia, o social-liberalismo chegou
aqui para reafirmar e reatualizar a direção intelectual-moral das classes proprietárias.
Não há um consenso entre os especialistas acerca da data de desembarque do social-
liberalismo no Brasil. Flávio Bezerra de Farias (2003) e Ruy Braga & Álvaro Bianchi
(2003) afirmam que tal ideologia chegou aos trópicos com a eleição de Lula em 2002.
José Luis Fiori (1995), em contraposição, observa que a social-democracia de Felipe
Gonzalez, que se auto-intitulava um social-liberal, funcionou como um modelo de
atuação prática para os tucanos. Segundo esta linha de raciocínio, o social-liberalismo
teria chegado ao Brasil durante o governo FHC: esta tese, todavia, não deve
desconsiderar a força legitimadora que o PT e seus aliados da antiga esquerda nacional
injetaram no neoliberalismo ao abraçarem à ideologia social-liberal.
No meu entender, este debate precisa ser encaminhado sob uma análise mais
dinâmica. Nos primeiros passos do neoliberalismo brasileiro, os elementos de
restauração prevalecem em larga medida nos governos FHC, mas já existiam, neste
momento, alguns embriões de projetos renovadores típicos do social-liberalismo que
16
seriam aprofundados nos governos Lula, como os programas experimentais de
transferência de renda, a universalização da educação básica (com péssima qualidade,
diga-se a verdade) e os aumentos reais do salário mínimo; já nos mandatos do PT,
alguns elementos de renovação são aprofundados e outros são inaugurados – não nos
moldes de reformas sociais, mas sim de atendimentos pontuais de algumas demandas
dos subalternos, como programas massivos de transferência de renda, aumento do
crédito para consumo de massa, sistema de cotas raciais e sociais para ingresso no
ensino superior, geração de empregos formais etc. (BRAGA, 2010, p.12). Ou seja, o
social-liberalismo consolida-se nos governos Lula e Dilma, mas seus germes estavam
sendo cultivados na gestão tucana.
Os resultados prometidos às populações pelos programas de ajuste do Consenso
de Washington não foram alcançados: as taxas de crescimento econômico continuaram
estagnadas, o desemprego cresceu, os empregos gerados foram de baixa qualificação e,
principalmente, os índices de pobreza e desigualdade aumentaram. Gradativamente
tomou-se consciência que o receituário-ideal do neoliberalismo não reunia condições
políticas e ideológicas para cumprir suas (falsas) promessas. Um mal-estar generalizado
começou a ser sentido pelas classes subalternas diante dessa situação de deterioração
social. Era hora, portanto, do neoliberalismo sofrer um suave ajuste na sua estratégia.
Apresento uma hipótese de trabalho que busca explicar os múltiplos nexos
estruturais do social-liberalismo: a deterioração do mundo do trabalho no centro e na
periferia do mercado mundial, as crises financeiras globais e as lutas e resistências
contra-hegemônicas da década de 1990 (zapatismo, Seattle, Fóruns Sociais etc.)
geraram um período de crises conjunturais. Estas crises, caracterizadas de acordo com a
teoria gramsciana15, exigem soluções renovadas de disciplina da classe trabalhadora –
subsunção formal e real do trabalho à lógica do capital, coerção direta promovida pelo
Estado e o poder da ideologia –, apagando tentativas de rebelião dos subalternos.
Por meio da rearticulação entre sociedade política e sociedade civil, as classes
dominantes pretenderam retomar a direção intelectual e moral do processo de expansão
imperialista, na medida em que a supremacia burguesa foi, gradativamente, perdendo
credibilidade e legitimidade a partir da degradação do mundo do trabalho, das crises
financeiras e econômicas e das lutas anti-sistêmicas na metade dos anos 1990. A
politização da “questão social” forçou as classes dominantes a se articularem em torno
15 Sobre os conceitos de crise orgânica e conjuntural nos apontamentos carcerários de Antonio Gramsci,
sugiro a consulta das notas 216 do caderno 8 (volume 1 da edição brasileira), 61 do caderno 9 (volume 4),
17, 23 e 24 do caderno 13 (volume 3), 5 do caderno 15 (volume 4) e 1 e 15 do caderno 22 (volume 4).
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de uma nova tática de sua estratégia de supremacia para garantir o consenso e a
legitimidade do neoliberalismo, privilegiando os mecanismos de hegemonia sem,
contudo, abrir mão dos aparelhos coercitivos de dominação.
O diagnóstico apresentado pelas classes dominantes e seus representantes
ideológicos não foi o erro na prescrição do remédio, mas a sua baixa dosagem. Em
essência, o Consenso de Washington estaria correto: o problema residiria na aplicação
parcial do receituário, derivada das resistências que impediam o correto manejo das suas
políticas. Seria preciso remover tais barreiras e promover um aprofundamento das
medidas liberalizantes, dando ênfase aos mecanismos de mercado na produção da
riqueza, ao mesmo tempo em que se passaria a reconhecer as suas falhas no tocante à
distribuição de renda, além dos problemas ambientais.
A partir da correção de rumo dos programas de ajuste propugnados pelas
agências multilaterais de desenvolvimento, os projetos de refuncionalização do Estado
ganharam uma nova configuração: se antes das medidas corretivas defendia-se – pelo
menos no plano da retórica – um aparato estatal mínimo, o Estado, agora, teria uma
função reguladora das atividades econômicas e operacionalizaria, em parceria com o
setor privado, políticas sociais emergenciais, focalizadas e assistencialistas. De acordo
com esta reconfiguração, o Estado continuaria seguindo a lógica da retomada do
crescimento das taxas de lucro, da estabilidade monetária, do equilíbrio fiscal, da
desoneração dos impostos das classes dominantes, da desestabilização do poder dos
sindicatos e do controle social sobre a força de trabalho, tal qual vinha sendo feito de
acordo com o receituário-ideal. As políticas econômicas, que ocupavam um papel
central no projeto de retomada da supremacia burguesia, preservariam o seu rumo
original e seriam mantidas longe de qualquer ingerência popular.
Reconhece-se, em um primeiro momento, as falhas do mercado, em especial no
tocante ao pauperismo e à destruição ambiental e promove-se, consequentemente, um
sincretismo entre o mercado e o Estado, imaginariamente capaz de instaurar a justiça
social. Ou seja, as desigualdades sócio-econômicas passaram a ser um dilema a ser
tratado pela burguesia e seus intelectuais. Assim, as classes dominantes promoveram
uma ofensiva na direção das bandeiras ideológicas da esquerda, tradicionalmente
vinculadas ao igualitarismo. O que antes era um ideal progressista, passou a ter novos
significados culturais após a ofensiva conservadora. O objetivo burguês em retomar o
debate sobre a “questão social” consiste na reconstrução do nível de consenso usufruído
pelo neoliberalismo nos anos 1980, quando este se tornou mundialmente hegemônico.
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As teorias da Terceira Via (Anthony Giddens), da Via 2 ½ (Alan Touraine), do
pós-Consenso de Washington (John Williamson), da “nova questão social” (Pierre
Rosanvallon), do desenvolvimento humano com liberdade (Amartya Sen) e das
informações assimétricas e falhas de mercado (Joseph Stiglitz) – que na sua totalidade
conformam aquilo que intitulo de social-liberalismo – são uma variante ideológica do
neoliberalismo, na qual as antigas teses do novo consenso burguês são conservadas e
ganham um verniz (pós)moderno e “progressista” com a adesão da social-democracia,
que já se nega a fazer uma crítica radical dos elementos primários do (neo)liberalismo,
aceitando-os quase integralmente.
A ideologia social-liberal é produzida e difundida por uma ampla rede de
aparelhos privados de hegemonia: agências multilaterais de desenvolvimento,
organizações não-governamentais, fundações filantrópicas laicas e religiosas, mídias
impressas e televisivas, intelectuais tradicionais e orgânicos da direita e business men.
São inúmeros agentes do social-liberalismo, desde os ideólogos ativos – os
formuladores das propostas neoliberais – até os passivos, que propagam esta ideologia
às vezes sem muita clareza do que realmente está em jogo, reproduzindo no nível do
senso comum (e próximo a ele) as teses formuladas no plano da filosofia.
Somem-se aos ideólogos tradicionais e orgânicos da direita, os intelectuais
egressos da social-democracia, do socialismo e do comunismo, integrados à supremacia
neoliberal por meio do transformismo. Os prêmios, honrarias, bolsas de pesquisa e
espaços midiáticos são fartos e amplamente oferecidos para os intelectuais que aderem
ao projeto neoliberal, especialmente as antigas lideranças dos movimentos populares.
Nesses casos, a cumplicidade nada tem de passiva: é ativa e consciente, com ganhos a
ambos os lados, cooptados e cooptadores. As perdas ficam para as classes subalternas,
que veem a decapitação das direções das suas principais organizações. Desarmados da
sua vocação utópica de uma práxis voltada para a transformação social, os intelectuais
progressistas vêm gradativamente perdendo sua identidade própria, e cada vez mais são
cooptados, objetiva e subjetivamente, pelas classes proprietárias. Parte dos ideólogos e
lideranças políticas mais representativas do social-liberalismo é composta por ex-
membros da esquerda. Alguns têm, inclusive, sua formação marcada por influxos da
tradição marxista e foram, em determinado momento da sua trajetória, intelectuais
orgânicos de organizações políticas da classe trabalhadora. Conferem, desta maneira,
uma legitimidade que, de outra forma, a supremacia neoliberal não gozaria
(BOURDIEU, 1998, p.111).
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Em suma, os intelectuais do social-liberalismo tentam se diferenciar da vertente
do neoliberalismo chamada de receituário-ideal a partir de três eixos. Primeiro, tecem
críticas contra o liberalismo extremado da globalização que, sem maiores critérios, teria
desregulamentado mercados de países frágeis do ponto de vista econômico e
institucional, o que aumentou drasticamente as taxas de desemprego e,
consequentemente, a tensão social. Em segundo lugar, discordam da tese do Estado
mínimo, afirmando que a nova configuração global do capitalismo exigiria um Estado
ágil e eficiente, capaz de fazer intervenções pontuais nas falhas de mercado e nas
expressões mais agudas da “questão social”. Por último, dão destaque à participação dos
aparelhos privados da sociedade civil, em comunhão estreita com o Estado, na
formulação e implementação de políticas públicas, em especial as políticas sociais de
alívio à pobreza via a transferência de renda e o empoderamento dos indivíduos.
O propósito é motivar uma inflexão no pensamento hegemônico em relação ao
debate sobre mercado e bem-estar social, na qual uma epistemologia de direita –
maximização e otimização dos recursos, escassez relativa, capital humano – é
envernizada por uma ética de “esquerda”, com palavras de ordem como equidade,
justiça social, economia verde, solidariedade e voluntariado. O núcleo central das
políticas neoliberais – que consiste em políticas econômicas para a retomada das taxas
de lucro com ênfase na financeirização da riqueza – permanece como um dogma
inquestionável, não passível de alteração. Restaria, como alternativa “realista”, a
promoção de ações sociais nas fissuras provocadas pelas falhas de mercado, uma
espécie de operação microscópica sobre os mecanismos macroestruturais de produção
das desigualdades sócio-econômicas.
O bloco histórico neoliberal sofreu abalos nos anos 1990, mas foi remodelado
sobre velhas bases e uma nova roupagem: o que se vislumbra com as teorias do social-
liberalismo é um projeto ideológico classista de retomada da supremacia neoliberal que
ganhou impulso com o acoplamento de amplos setores da social-democracia e mesmo
dos comunistas cooptados ao reformismo-restaurador contemporâneo. O transformismo
social-democrata na supremacia neoliberal resultou no aprofundamento de pontos da
agenda neoliberal, e não a sua amenização.
O receituário-ideal neoliberal e o social-liberalismo, vale ressaltar, não são dois
projetos distintos, um conservador, e o outro reformista, que busca superar o primeiro;
trata-se, acima de tudo, do mesmo programa reformista-restaurador operado por forças
políticas diferentes do ponto de vista da sua história e das suas bases sociais, mas que
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por meio da emergência da supremacia neoliberal, articulou um bloco social capaz de
aglutinar grupos até então adversários. O caso brasileiro do social-liberalismo liderado
pelo PT é, justamente, um dos mais paradigmáticos do mundo. Diante do transformismo
das forças progressistas, o neoliberalismo passou a atuar como um centrismo
conservador, ditando os mesmos objetivos às suas alas da esquerda e da direita, embora
cada uma delas tenha métodos ligeiramente diferenciados de dirigir o projeto burguês.
O social-liberalismo comporta, portanto, um duplo movimento: a decadência
política e ideológica da social-democracia, esvaziada das suas lutas reformistas na
construção de uma via democrático-institucional para o socialismo, e a incorporação de
uma agenda social ao neoliberalismo. A resultante destes dois movimentos
aparentemente paradoxais entre si, converge em um sentido único: a formação de um
novo senso comum, um consenso que ocupa o centro da política mundial e neutraliza as
lutas mais radicais de combate às expressões da “questão social”.
Em termos da dialética hegeliana, no bloco histórico neoliberal, grande parte das
forças da antítese abdicou do seu papel de negação radical da tese, conformando-se em
um papel secundário de consciência crítica acrítica da tese, sem negar seus pressupostos
básicos, apontando apenas seus defeitos, imprecisões e falhas. Com o enfraquecimento
da antítese, a tese não pode ser superada, e os choques entre os contrários –
transmutados no presente tão somente em diferenças – não são fortes o suficiente para
gestar uma nova síntese, daí a aparente incapacidade de mudanças estruturais. Do
acordo entre as diferenças (sem mais o choque dos contrários), surge a reafirmação da
antiga tese, repaginada sob uma nova aparência na qual os seus elementos essenciais são
reafirmados. “Na verdade, da oposição dialética entre tese e antítese só a tese
desenvolve suas possibilidades de luta, até o ponto de atrair para si os chamados
representantes da antítese” (BRAGA, 1995, p.63).
Em termos mais concretos, o que houve foi uma incorporação de antigos setores
socialistas e comunistas ao projeto burguês contemporâneo. O mais surpreendente nesta
incorporação foi que os social-democratas não se limitaram a ser uma linha de força
auxiliar no bloco social neoliberal: em algumas experiências nacionais, eles assumiram
o papel de condutores primários da supremacia burguesa. Os casos mais emblemáticos
são o inglês (Novo Trabalhismo), o brasileiro (PT) e o sul-africano (CNA).
No caso do transformismo, os grupos cooptados tornam-se aliados de segunda
mão do bloco social-ideológico dominante e não assumem o controle da direção
política. O que ocorreu no neoliberalismo em algumas formações econômico-sociais é
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um pouco diferente. Chico de Oliveira (2010), na tentativa de teorizar sobre o ocorrido,
chamou o processo de conversão de setores de esquerda em dirigentes do bloco
histórico neoliberal de “hegemonia às avessas”. Ele vai além, afirmando que a força
teria desaparecido da hegemonia burguesa e as classes dominantes teriam consentido
em serem dirigidas pelos setores cooptados dos subalternos (OLIVEIRA, 2010, p.27).
O social-liberalismo é, em resumo, uma unidade eclética do receituário-ideal do
neoliberalismo com a consciência crítica acrítica da social-democracia contemporânea,
que entrou irremediavelmente em mais uma etapa do seu antigo processo de decadência
ideológica. A resultante é a gestação de um novo “conservadorismo reformista
temperado.” O social-liberalismo é avaliado não como uma conscientização humanista
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da burguesia, mas uma ideologia de manutenção da ordem capitalista que embasa uma
série de intervenções políticas na “questão social”, como ações do voluntariado, da
filantropia empresarial, da responsabilidade social, do terceiro setor, de
desenvolvimento local e sustentável e de políticas sociais assistencialistas e
fragmentadas, que não questionam as bases da acumulação capitalista, produtora de
riqueza no topo e de miséria na base da hierarquia social.
Vivemos, desta forma, uma nova etapa da revolução passiva no Brasil (e no
mundo), com determinações inéditas e mediações históricas que ainda carecem de
estudos mais aprofundados, tarefa indispensável caso queiramos colocar um freio à
barbárie capitalista.
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