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MORTE EM VENEZA
Cinema e Melancolia
Fernando Fábio Fiorese Furtado*
>A crise de desmistificação do cinema e o estatuto do espectador. Análise de Morte em Veneza (1971), de
Luchino Visconti, a partir de uma perspectiva metalingüística. Os signos da morte como afirmação do
domínio da melancolia no cinema moderno.
Cinema moderno - Espectador - Luchino Visconti - Morte em Veneza -Melancolia
>The crisis of cinema desmystification and the spectator status. Analysis of Death in Venice (1971) by
Luchino Visconti upon a metalinguistics perspective. Death signs as affirmation of the melancholy domain in
the modern cinema.
Modern cinema - Spectator - Luchino Visconti - Death in Venice - Melancholy
Com os diretores e teóricos do cinema moderno1, aprendemos que todo filme deve
ser uma reflexão sobre a vida e uma reflexão sobre o cinema. Sob tal perspectiva, parece-
nos que desde o neo-realismo italiano – cujos desdobramentos posteriores determinaram a
afirmação da idéia de cinema moderno – a realização fílmica e a teoria cinematográfica
agudizaram as questões que mobilizam a arte nesta segunda metade do século XX,
particularmente aquelas relacionadas ao advento da consciência da linguagem e das
possibilidades de realização do conceito hegeliano da morte da arte.
A natureza paradoxal do cinema – técnica, indústria e arte – o inscreve como um
locus privilegiado para a reflexão acerca da morte da arte – ou, como preferem alguns, da
morte da noção de arte moderna2. Mesmo porque, ainda que não possamos considerar a
esfera dos mass media, na qual o cinema se inclui, como o espírito absoluto hegeliano
(“talvez seja uma caricatura”), devemos situar a morte da arte, como afirma Gianni Vattimo
em La fine della modernità, como um evento que
... constitui a constelação histórico-ontológica em que nos movemos. Esta constelação
é um entrelaçamento de acontecimentos histórico-culturais e de palavras que lhe
pertencem, os descrevem e os co-determinam. Neste sentido geschicklich, destinal, a
morte da arte é algo que nos concerne e que temos de levar em conta. (Vattimo, 1987:
60)
Tendo como horizonte estas considerações preliminares – o filme como reflexão
sobre o cinema e este como locus privilegiado da questão da morte da arte – e,
principalmente, a importância da arte da imagem na produção das grandes configurações do
imaginário coletivo do século XX, pretendemos que a análise do filme Morte em Veneza
(Morte a Venezia, 1971)3, de Luchino Visconti (1906-1976), poderia desvelar alguns
indícios acerca da questão da constituição da subjetividade.
Trata-se de compreender as configurações do imaginário produzidas pelo cinema
como operando sobre a construção de novos sujeitos, seja por fornecer os protótipos da
condição do homem contemporâneo, seja por alterar (e, por vezes, maltratar) nossos
aparelhos de percepção e de representação. Não se pretende uma leitura intensiva da obra,
mas apenas perscrutar através dela alguns dos mecanismos do inconsciente postos em ação
pelo cinema, particularmente aqueles relacionados à perda.
De muitos modos, inclusive porque inspirado na obra homônima de Thomas Mann
(1875-1955), Morte em Veneza participa da dicotomia imagem/palavra, a qual, segundo
Julia Kristeva em Sol negro: depressão e melancolia, refere-se aos dois extremos da
realização da nova retórica apocalíptica necessária à representação das monstruosidades e
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do mal-estar do século XX (Kristeva, 1989: 203). Na literatura, tal retórica se realiza seja
pelo apelo ao silêncio ou por uma linguagem enigmática e obscura, seja pela loqüacidade e
tautologia ou pela adoção de programas de empobrecimento e redução da obra.
Ao cinema cabe “suprir esse exagero silencioso ou precioso da palavra, sua fraqueza
esticada em corda bamba sobre o sofrimento” (Kristeva, 1989: 205). E ainda, como “arte
suprema do apocalipse”, a demonstração da intimidade da “doença da morte”, o
descobrimento pelo olhar da visão de um nada além do mais monstruoso. Tanto na
literatura quanto no cinema, o motor secreto desta nova retórica é a melancolia, pois que a
“consciência da maldade radical” (Hannah Arendt) que caracteriza a nossa época remete
fundamentalmente à perda, à morte.
No âmbito da arte, tal perda pode referir-se às sucessivas crises de desmistificação
da arte e da atividade do artista, ao fim da inocência face aos meios expressivos, ao
postulado da arte como antiarte, ao conflito entre a autonomia (“espiritualidade”) e a
heteronomia (“materialidade”) da obra. Nas palavras de Susan Sontag no ensaio “A estética
do silêncio” (1967):
O “espírito” que busca a corporificação na arte choca-se com o caráter “material” da
própria arte. A arte é desmascarada como gratuita e a própria concretude dos
instrumentos do artista (e, em particular, no caso da linguagem, sua historicidade)
aparece como um ardil. Praticada em um mundo provido de percepções de segunda
mão e especificamente confundida pela traição das palavras, a atividade do artista é
amaldiçoada com a mediação. A arte torna-se a inimiga do artista, pois nega a
realização – a transcendência – que ele deseja.
Portanto a arte passa a ser considerada como algo que deve ser superado. Um novo
elemento ingressa na obra de arte individual e se torna parte constitutiva dela: o apelo
(tácito ou aberto) à sua própria abolição – e, em última instância, à abolição da própria
arte. (Sontag, 1987: 12-3)
A experiência deste profundo e frustrante conflito verticaliza-se no cinema devido à
sua estreita dependência em relação à “matéria”, ao suporte técnico. De forma que, se nos
dispomos a analisar o filme de Visconti como uma reflexão acerca do cinema (e da arte em
geral), devemos considerar em que medida Morte em Veneza realiza o transtorno dos
protótipos elaborados pela narrativa clássica e o questionamento do “equipamento mental”
que fundamenta o funcionamento do dispositivo cinematográfico.
Ilusões perdidas
Além das questões acerca da autonomia/heteronomia da obra de arte que permeiam
os embates estéticos entre Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) e Alfred (Mark Burns),
podemos nos referir à “situação de cinema” que o próprio protagonista encarna na
seqüência de abertura e à presença da câmera fotográfica nas cenas finais. No primeiro
caso, trata-se de evocar e convocar, através da figura atônica de Aschenbach, o espectador
típico do cinema4, como descrito por Roland Barthes no ensaio “Saindo do cinema”:
... vai-se ao cinema a partir de um ócio, de uma disponibilidade, de uma desocupação.
Tudo se passa como se, antes mesmo de entrar na sala, as condições clássicas da
hipnose estivessem reunidas: vazio, ociosidade, disponibilidade, desemprego: não é
frente ao filme e pelo filme que sonhamos; é, sem o sabermos, antes mesmo de nos
tornarmos seus espectadores. Existe uma “situação de cinema”, e esta situação é pré-
hipnótica. Seguindo uma metonímia verdadeira, o escuro da sala é pré-figurado pelo
“devaneio crepuscular” (prévio à hipnose, no dizer de Breuer-Freud) que precede este
escuro e conduz o sujeito, de rua em rua, de cartaz em cartaz, a precipitar-se finalmente
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num cubo obscuro, anônimo, indiferente, onde deve-se produzir este festival de afetos
que chamamos de filme. (Metz et al., 1980: 121-2)
O fim do cinema-sonho corresponderia à perda do poder de cura da hipnose fílmica.
Com o protagonista dormente que abandona a leitura, Visconti nos convoca ao especular
(no sentido substantivo e verbal) da “situação de cinema”. Trata-se de fornecer um
protótipo do corpo ocioso do espectador e, ao mesmo tempo, transtorná-lo com o
deslocamento da “situação de cinema” para o personagem. A um logro similar nos sujeitam
os planos que antecedem a morte de Aschenbach na praia do Lido.
O espectador que, aceitando o convite inaugural de Visconti, deixou-se capturar
pela imagem fílmica, colando-se à representação no logro da coalescência, da segurança
analógica, da impregnação, da naturalidade, da verdade (Metz et al., 1980: 124), deve
sujeitar-se a ser novamente logrado, a ser “descolado” do espelho da tela, a ser despertado
da hipnose. Por outro lado, na seqüência final, o enquadramento da praia do Lido, tendo no
primeiro plano uma câmera fotográfica e na profundidade de campo o personagem Tadzio,
desvela ao espectador o logro da imagem fílmica e o transtorno do cinema moderno.
Somos abruptamente içados do estado de fascinação pela presença do mecanismo
que funda a produção mecânica de imagens. Antes da morte de Aschenbach, a morte do
espectador onírico. Antes da danação daquele que renunciou aos sentidos em favor da
forma e do espírito, a danação da arte da imagem pelo desvelamento de sua relação, como
assinala Barthes em A câmara clara, com a objetualização do sujeito – “Porque a fotografia
é o aparecimento de eu próprio como outro, uma dissociação artificiosa da consciência de
identidade” (Barthes, 1981: 28), na medida em que nos transforma em objeto – e com a
morte:
Porque, historicamente, a Fotografia deve ter alguma relação com a “crise da morte”,
que começa na segunda metade do século XIX; e, pela minha parte, preferiria que, em
vez de se colocar constantemente o advento da Fotografia no seu contexto social e
econômico, se pusesse também em questão a ligação antropológica da Morte e da nova
imagem. Porque, numa sociedade, a morte tem de estar em qualquer lado; se ela já não
está (ou está menos) no religioso, deve estar em qualquer outra parte. Talvez nessa
imagem que produz a Morte, pretendendo conservar a vida. Contemporânea do recuo
dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, na nossa sociedade moderna,
de uma morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, uma espécie de mergulho
brusco na Morte literal. (Barthes, 1981: 129-30)
Morte literal da ilusão especular, do público fascinado pela imagem, do espectador
que, como Aschenbach, acaba por perder o mundo pelo desejo e pela sedução da inocência.
No entanto, na profundidade de campo, Tadzio ergue o braço indicando uma distância para
além da imagem, da realidade diegética, como a anunciar um outro modo de ir ao cinema:
“... deixando-se fascinar duas vezes: pela imagem e por seus arredores” (Metz et al., 1980:
125). Com o seu corpo narcisista ferido de morte, o trabalho de luto do espectador poderia
ser realizado5 pela recorrência à distância crítica – o efeito brechtiano de distanciamento –
ou, conforme propugna Barthes, pela adoção de uma natureza ambígüa:
... um corpo narcisista que olha, perdido no espelho próximo, e um corpo perverso,
pronto a fetichizar não a imagem, mas precisamente o que a excede... Aquilo de que
me sirvo para tomar minhas distâncias com respeito à imagem, eis, afinal de contas, o
que me fascina: estou hipnotizado por uma distância, e esta distância não é crítica
(intelectual); mas é, pode-se dizer, uma distância amorosa. (Metz et al., 1980: 125)
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entre vida e morte, pois que a montagem alterna planos do navio (féretro) com sua chaminé
(vela funérea) e imagens de Veneza, incluindo um travelling que acompanha a marcha
acelerada de um grupo de jovens soldados.
As remissões à morte prosseguem com o gondoleiro-Caronte que conduz o
compositor ao Lido, apesar de seus protestos por um outro destino. O óbolo será pago com
a própria vida. Enfim, o mal-estar do siroco, o Spectrum8 fotográfico dos objetos do luto
(mulher e filha), o tempo que se esgota invisível na ampulheta da infância perdida, a
inelutável maladie de la mort, a bagagem à deriva, a perda do trem, o horror que se
avizinha. E Aschenbach já não pode-se deter ante esse deus desconhecido, a não ser
afirmando a beleza de Tadzio como símbolo do que falta, o belo como sobrevivência à
morte, como sublime e sublimação.
Somente a sublimação resiste à morte. O belo objeto capaz de nos enfeitiçar no seu
mundo nos parece mais digno de adesão do que qualquer causa amada ou odiada de
ferimento ou de pesar. A depressão o reconhece e concorda em viver nele e para ele,
mas essa adesão não é mais libidinal. Ela já está desligada, dissociada, já integrou em
si os traços da morte significada como indiferença, distração, leviandade. A beleza é
artifício, ela é imaginária. (Kristeva, 1989: 97)
Last but not least, a simbólica de Veneza: espaço líqüido, ondulante e luminoso, limite
da Europa e do Ocidente, encruzilhada de culturas (bizantina, renascentista, mourisca),
labirinto de canais, pontes e ruínas, cenário alegórico do estado de passagem. Na
indecidibilidade do écran melancólico de Veneza – porque sempre prestes a oscilar para a
morte –, Aschenbach busca a cura pela reintegração no universo aqüoso, no útero da Mãe.
Mas acaba por reencenar o afogamento de Narciso como evocação da morte simbólica do
cinema-sonho e do corpo narcisista do espectador.
Notas
* Poeta e ensaísta. Doutor em Semiologia (Faculdade de Letras / UFRJ. Professor Adjunto
(Facom/UFJF). E-mail: fiorese@artnet.com.br
Bibliografia
BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1981.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Trad. Nilson Moulin Louzada. São Paulo:
Globo, 1989.
ECO, Umberto. Duas hipóteses sobre a morte da arte. In: A definição da arte. Trad. José
Mendes Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 243-259.
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de
Janeiro: Rocco, 1989.
METZ, Christian et al. Psicanálise e cinema. Trad. Pierre André Ruprecht. São Paulo:
Global, 1980.
SONTAG, Susan. A estética do silêncio. In: A vontade radical: estilos. Trad. João Roberto
Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
VATTIMO, Gianni. Morte o tramonto dell’arte. In: La fine della modernità: nichilismo ed
ermeneutica nella cultura post-moderna. Milano: Garzanti, 1987, p. 59-72.