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Espaços negados, povos socioeconômicas desses indivíduos.

Foi a
partir dessa última condição que Maike
invisibilizados: a presença
entrou para a universidade.
indígena na universidade.
Indígena do povo Fulni-ô, habitante do
Semiárido pernambucano, em Águas Belas,
Maike (29) vivencia ao mesmo tempo a
renovação espiritual, ao participar dos vários
rituais anuais que acontecem na sua aldeia, e
a relação com a sociedade não indígena
recifense, na condição de estudante de
graduação no curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE).

De família Fulni-ô extensa, o jovem é o


segundo da sua casa a entrar na
universidade. De acordo com Maike, sua
mãe, cuja experiência universitária foi
inviabilizada, se sente realizada pela
realidade dos filhos: “minha mãe analfabeta
Figura 1 Maike Fulni-ô fala sobre sua experiência como coloca dois filhos na Universidade Federal.
indígena na universidade
Então, pra ela aquilo é orgulho. Acho que é
É cada vez mais frequente a presença de orgulho mais pelo fato dela escutar o tempo
indígenas ocupando cadeiras universitárias. todo que estudar era pra rico, e ela sempre
Se, por um lado, a migração forçada para as quis estudar também, mas devido as
cidades mantém uma realidade de abandono condições da época, ela não conseguiu.
dos indígenas, principalmente por conta das Quando você não consegue ter algo e
invasões das terras onde os índios habitam, gostaria de ter, você tenta proporcionar esse
por outro, a demarcação de suas terras algo para seus filhos”.
garante a organização de muitas famílias
Ao falar da adaptação pela qual passou,
indígenas dentro daquele espaço, dando
Maike diz que no começo foi difícil. Sempre
oportunidade para a implementação de
atento e participativo nas práticas do seu
projetos que beneficiam seus integrantes e
povo, ele nunca tinha passado o período de
que possibilitam melhores condições
renovação espiritual fora da sua aldeia. “Eu Apesar da universidade ser um espaço que
vim pra cá pra universidade e, quando deveria refletir o universo da cidade, onde
chegava o período de rituais, eu começava a muitos indígenas vivem atualmente em
lembrar, porque é o que faz parte da minha condições precárias, a presença deles ainda
vivência, é o que faz parte da minha é ínfima se levada em consideração a
construção de identidade. [...] quando eu população total dos índios do Brasil. Dos
viajava, quando eu imaginava voltar pra 897 mil indígenas, de acordo com os dados
Recife, eu não ficava querendo voltar, eu do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
ficava querendo ficar por lá mesmo”. Estatística) de 2010, apenas 3.540, segundo
levantamento do INEP (Instituto Nacional
Essa nova realidade entra em conflito com a
de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira) de
visão de mundo do estudante indígena. Para
2011, ocupam vagas na universidade; isto é,
quem sempre aprendeu com a experiência
0,3% do total da população indígena
prática e com os mais velhos do seu espaço
nacional – 1 estudante indígena
de vivência, entrar em um
para cada 500 matriculados no
lugar de privilégio é ao
ensino superior.
mesmo tempo
recompensador e motivo de A falta de indígenas na
coragem, devido aos universidade e o pouco espaço
enfrentamentos para lidar que é dado a eles refletem nos
com uma nova experiência tipos de conhecimentos
de educação. Ele ainda produzidos nas universidades e
acrescenta que, devido a organização e no silenciamento dos saberes dos povos
estrutura da universidade, a academia não indígenas e outras comunidades tradicionais.
foi pensada para indivíduos que acionam Maike reconhece isso ao afirmar: “a
outras sensibilidades: “a universidade não é universidade, pelo menos pra mim, nunca
pensada para as minorias, a gente entra de levou em consideração isso: respeitar
ousado; nós somos intrusos aqui; esse minhas demandas identitárias. Você vê que
espaço não foi pensado pra gente. [...] É dentro desse espaço, a universidade não sabe
preciso repensar nova formas de ensino – trabalhar ainda com outras demandas que
não estou dizendo isso pra contemplar Fulni- fogem o seu campo de pensamento, talvez
ô – mas pra contemplar outras minorias; por conta de não entender tanto as
outras lógicas dessas outras minorias”. diferenças. Por mais que se diga plural, mas
a abertura dela é recente”.
Como tantos outros estudantes que saem do retornando pra desenvolver determinada
Ensino Médio, a pressão familiar e social foi atividade. Eu estou pensando em fazer um
um dos motivos que levou o indígena Fulni- mestrado em Educação justamente pra isso.
ô a entrar na graduação. Mesmo com certa Não que eu não consiga pensar a educação
resistência, por achar que era possível, sim, Fulni-ô sem ter o mestrado, mas o mestrado
viver dentro da aldeia sem o nível superior, expande as minhas ferramentas, pra que eu
Maike cedeu às pressões do irmão. “Pra possa trabalhar lá”.
você vencer na vida, necessariamente, você
Quando questionado sobre a vivência em
tem que passar pela universidade, tentar
contexto urbano, o jovem Fulni-ô deixa bem
buscar seu lugar ao sol, dentro desse mundo
claro o que mais lhe assustou quando
de competência que te colocam. Por mais
começou a experienciar o contato com a
que você rale, rale, rale, a incompetência
cidade majoritariamente não indígena –
ainda é daquela pessoa”.
Recife. “Uma das experiências mais
Mesmo não sendo um projeto pensado pelo chocantes, pra mim, no Recife, foi andando
seu povo, o estudante de Ciências Sociais é nas ruas. Uma coisa que o Fulni-ô sempre
enfático ao afirmar que sua presença na valorizou foi a figura do velho. Se você
universidade vai além dos interesses chega dentro dos Fulni-ô, geralmente desde
individuais. Ele acredita que a maioria dos criança até adulto, eles vão respeitar os
indígenas que entra na graduação sempre velhos. Esse Thxow e Thxa [adjetivos para
pensa em dar alguma contribuição aos homens e mulheres, na língua Yaathe,
parentes do povo ao qual pertence; com respectivamente, reverenciados pela sua
Maike não seria diferente. sabedoria; geralmente são pessoas mais
velhas da povo] são tratados com uma certa
Desde quando entrou na universidade, com
reverência. Ai quando eu vim pra cá pro
25 anos e cursando Ciências Econômicas, o
Recife, eu achei muito doido – coisa que eu
jovem já pensava em contribuir de alguma
nunca vi lá – você ter um velho no meio da
forma para seu povo. Quando trocou de
rua sem assistência nenhuma, e aqui eu
curso, manteve-se com as mesmas
encontrei bastante isso”. Mostrando a
pretensões e não pensa em parar somente na
valorização que é dada para os mais velhos
graduação. “Eu mudei pra Ciências Sociais
dentro do seu povo, principalmente quando
pensando em levar algum retorno. Eu acho
esses chegam a certa idade, ele continua:
que todo mundo que sai, por mais que saia
“esse pessoal, o que faz com os velhos
com aquele pensamento individual, não
deles? Porque deixam eles assim? Será que
vendo como pensamento do povo, acaba
eles não têm nada o que aprender com esses outro ângulo. “Algumas coisas eu sempre
velhos?”. vivi dentro do meu povo e nunca me
perguntei ‘porque viver aquilo?’. Pra quem
As experiências de Maike não fogem dos
vê, pra quem está de fora aparentemente são
preconceitos de reconhecimento dos
práticas ilógicas, mas existe toda uma lógica
indígenas em contexto urbano, e
que o povo segue ali, e eu apenas vivia. A
principalmente na universidade. Para ele,
universidade nesse sentido, nesse sair lá de
isso se deve principalmente por conta da
Fulni-ô, fez com que eu
ignorância das pessoas,
retornasse meu olhar pra lá, pra
da falta de informação, e
que eu refinasse meu olhar pro
primordialmente por
povo”.
conta do lugar comum ao
qual historicamente os O reconhecimento da presença
indígenas foram indígena e a abertura das portas
colocados. “A população acadêmicas para outros índios
brasileira parou em 1500 com a visão do diminuem as assimetrias entre os vários
indígena. Tudo se modificou, tudo se indivíduos com identidades étnico-raciais
modifica, mas pra população brasileira, a distintas. O jovem Fulni-ô sabe bem disso e
figura do indígena, não! O indígena tem que defende uma universidade mais plural.
ser engessado! Se não for engessada na Quanto mais indígenas na universidade,
figura de 1500, deixa de ser indígena. Se eu segundo Maike, melhor, “porque o povo
chegar aqui e me apresentar como Fulni-ô, indígena parte do campo da diferença. São
sendo barbudo, cabelo cacheado, branco, as diferenças étnicas que estabelecem os
cheio de pelo, as pessoas vão dizer: ‘Mas limites entre um indígena e outro; então, o
você não é índio!’. O pessoal ainda hoje tem indígena tem mais empatia pra entender o
essa visão romântica do que é ser indígena. outro. [...] são lógicas de mundo diferentes,
E isso se perpetua. O pessoal vem e diz são saberes diferentes, quanto mais
‘você não é indígena, você não está com o diferenças ela colocar no seu campo de
cocar, você não está pintado’”. convívio, mais ela ganha, porque ela traz
uma série de conhecimentos pra dentro dela
Apesar dos equívocos e desinformações
que até então foram negados”.
dentro do espaço acadêmico, as reflexões
que ela gerou trouxe importantes
contribuições para que Maike voltasse seu
olhar para dentro do seu povo a partir de um

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