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A PERFORMANCE-ART NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO SÃO JERÔNIMO:

Potencialidades reveladas entre adolescentes do sexo feminino em cumprimento de


medida socioeducativa de internação

Gilmara Gonçalves Oliveira

Junho 2019

JUSTIFICATICA

Segundo RoseLee Goldberg, historiadora e crítica de arte, “a performance passa a ser


reconhecida como meio de expressão artística independente na década de 1970”
(GOLDBERG, 2007, p.7).
Como expressão reconhecida, porque diversos teóricos, dentre eles SCHECHNER1 e
GOFFMAN2, defendem a ideia de que as origens das práticas performativas são mais
remotas, podendo ter suas raízes ligadas aos rituais ancestrais, e outros como GLUSBERG3,
afirmam ter suas origens nos movimentos de vanguarda do início do século XX (bauhaus,
dadaísmo, surrealismo, etc.).
Para além dessa conceituação, desse entendimento, Marco Paulo Rolla, afirma em seu
texto O Corpo da Performance:

Como definir a performance, sendo ela um meio híbrido por essência? Sua
estrutura está sendo sempre remontada e reapropriada. Absorvendo as idades
e passagens do tempo como parte de seu composto, o artista produz um elo
entre o tempo da história e o tempo presente, sentido em um corpo também
ambíguo. São várias as definições sobre o assunto. Também já vimos muitas
tentativas de formatá-la como um campo artístico específico. Será isto
possível, já que o corpo é transmutável e tem, em sua formulação, a ideia do
transgressor de limites? É com esta característica que ela reage aos inúmeros
arquivistas, organogramas e fichários.
A performance não é! Ela quer ser penetrável, transformadora de espaços,
pessoas e mentes. O ambiente da performance quer ser mutante e mimético.
Em sendo ela muito flexível, pode desenvolver diálogo entre muitas áreas do
conhecimento do homem. Mas o que é mais interessante disto tudo é que
este fenômeno acontece principalmente através do poder de transmissão
sensível da presença do corpo, imagem e energia. O corpo do performer
envolve este espaço e o constrói, fazendo-nos perceber tudo como um corpo
único. Em sua busca, muitas vezes, revive o passado e tange o sentimento
primal de pertencimento na natureza e na vida. (ROLLA, 2012, p. 125)

Ainda na linha de pensamento de GOLDBERG4, podemos afirmar que a performance


surge no cenário pós-guerra5 como uma espécie de denúncia, proposta de resistência e
questionamento, tratando justamente de desnortear definições pré-concebidas e desconstruir
os modos tradicionais de se pensar a arte. Não se fechava em formas espaciais ou temporais,
permitindo a utilização de diversas mídias e materiais, porém sem esta obrigatoriedade; podia
ter a duração de anos, como também de minutos; ser realizada em espaços públicos (urbanos
ou rurais) e ou em galerias; permitia se dar para alguns espectadores, como também com eles,
1
Richard Schechner (1934- ) é professor de estudos da performance na Tisch School oh the Arts da Universidade de Nova
Iorque, editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists.
2
Ervin Goffman (1922-1982) foi um cientista social, antropólogo, sociólogo e escritor canadense. Foi considerado o
sociólogo norte-americano mais influente do século XX.
3
Jorge Glusberg (1932-2012) foi um autor argentino, editor, curador, professor e artista conceitual.
a partir do momento em que pensava no público como testemunhos de um acontecimento ou
como co-realizadores da ação.
Sob a perspectiva deste olhar, o crítico de arte e ensaísta Michael Archer afirma em seu
livro Arte Contemporânea – Uma História Concisa que a arte dos dias atuais é confrontada
com uma profusão de estilos, levando-nos à incerteza e dificuldade de aceitação do que é arte
devido a uma visão conservadora, porém, sua riqueza e diversidade mostra que não são
sintomáticas de um estado de coisas caóticas, mas sim provenientes de um estudo da arte dos
últimos quarenta anos, reinterpretados. Com isso, aponta-nos que

Observar a arte não significa consumi-la passivamente, mas tornar-se parte


de um mundo ao qual pertencem essa arte e esse espectador. Olhar não é um
ato passivo; ele não faz que as coisas permaneçam imutáveis. [...] A arte é
um encontro contínuo e reflexivo com o mundo em que a obra de arte, longe
de ser o ponto final desse processo, age como iniciador e ponto central da
subsequente investigação do significado. (ARCHER, 2001, p. 235-236)

A abordagem criativa se voltou intensamente para as preocupações relativas ao caráter


da vida contemporânea, com isso, para alguns, se distanciou da preocupação exclusiva com a
beleza, ainda que este termo seja relativo. Nesta amplitude interpretativa a única certeza era
que em todas as variantes de realização performática, o corpo sempre foi o tema e a matéria
investigativa, à prova, lidando com os próprios limites. A inexistência de ficção era outra
característica, visto que a grande maioria dos que se envolviam na investigação em
performance falavam de si, seus questionamentos pessoais, políticos e sociais, e de
experimentações cotidianas no meio em que coexistiam.
No campo educacional, especificamente, a ação corpórea ou performatividade entra
como um ato vital de transferência de saberes e ou memórias, visto que, o sujeito vivencia a
arte como experiência, no espaço-tempo em que se encontra; o que implicaria um
reconhecimento de si como corporeidade ampla de significados. Segundo John Dewey6, a arte
acentua esta característica de ser e pertencer ao todo maior e abrangente que é o universo,
porque toda vez que se passa por algo em consequência de um ato, ou seja, por uma dada
experiência, o eu se modifica, já que parte do que foi compreendido e termina no assombro.
Em contato com os saberes artísticos, portanto, é impossível não se afetar pelos signos
transmitidos ainda que não se tenha plena consciência.

A arte tem a faculdade de promover e concentrar a união entre qualidade e


significado de um modo que vivifica ambos. Em vez de anular a separação
entre o sensorial e o significado (dita psicologicamente normal), ela
exemplifica, de maneira acentuada e aperfeiçoada, a união característica de
muitas outras experiências, encontrando os meio qualitativos exatos que se
fundem mais completamente com aquilo que se quer expressar.[...] A
expressão da experiência é pública e comunicativa porque as experiências
transmitidas são como são graças às experiências dos vivos e dos mortos que
4
RoseLee Goldberg (1947 - ) é uma historiadora de arte, autora, crítica e curadora de arte performática com sede nos Estados
Unidos. Ela é mais conhecida como fundadora e diretora da Performa, uma organização de arte performática.
5
A Guerra do Vietnã (1955-1975) também conhecida como Segunda Guerra de Indochina, chamada no Vietnã de Guerra de
Resistência contra a América ou simplesmente Guerra Americana, vitimou massivamente asiáticos com a alegação
Estadunidense de ‘defesa da liberdade e da democracia’. Porém, com as crescentes denúncias acerca das atrocidades
praticadas por soldados Estadunidenses, surgiu uma crescente rejeição à guerra, inserida no contexto do movimento
contracultura, que revolucionou a década de 1960, na maior parte do mundo ocidental. Algumas das vertentes deste
movimento foi o hippie, que lançou o ‘Paz e Amor’, o feminismo com o surgimento das ‘Panteras Negras’, e nas artes as
manifestações corporais ligadas à arte-vida, dentre elas a performance, em meados dos anos 1970, no contexto pós-guerra,
seguindo a linha do Fluxus, Happenings e Environments.
6
John Dewey (1859-1952) foi psicólogo, filósofo, educador, cientista político e social estadunidense, doutorou-se em
filosofia pela Johns Hopkins University em 1884. Ele próprio descrevia sua vida como a busca de “uma ideia razoavelmente
clara e distinta dos problremas subjacentes às dificuldades e aos males que experimentamos [...] na vida e na prática”. Essa
ideia também é a preocupação central do conceito filosófico de pragmatismo, que Dewey viria a desenvolver em diversas
obras. (DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. RIBEIRO, Vera. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Nota de orelha)
as moldaram. Não é preciso que a comunicação faça parte da intenção
deliberada do artista, embora ele nunca possa escapar da ideia de uma plateia
potencial. Mas a função e a consequência da intenção consistem em realizar
a comunicação, e não por acidente externo, mas a partir da natureza que ele
compartilha com os outros. (DEWEY, 2010, p 450 e 466)

Com isto, acredita-se na realização de uma oficina em caráter progressivo, com o título
Corpo em Ação, como oportunidade ímpar de criação artística e possível transformação
social; e na análise da mesma, enquanto dissertação como importante ferramenta de fruição e
fomento da performanmce, desconstrução dos pré-conceitos que envolvem o corpo como obra
de arte, e estratégia de ruptura com algumas amarras sociais. Acredita-se ainda na
possibilidade de transformar a realidade de conflito e violência que as adolescentes
vivenciam, já que ao se expressarem por meio da ação performática, os sentimentos se
suavizem por serem também expurgo.
Algumas das hipóteses que norteiam este trabalho surgiram em função de vivências
profissionais da pesquisadora, como professora de Arte, no Sistema Socioeducativo São
Jerônimo pela Escola Estadual Jovem Protagonista, desde 2015; como Artista da Performance
que cria suas proposições tratando da violência entre gêneros e do sagrado feminino, desde
2012; e como professora da disciplina Artes do Corpo no Centro Interescolar Arte Cultura
Linguagens e Tecnologias (CICALT), desde 2018.
Assim, o presente projeto de pesquisa terá como sujeitos as adolescentes do gênero
feminino em cumprimento de medida socioeducativa de internação na Unidade São Jerônimo,
em Belo Horizonte/Minas Gerais e a própria pesquisadora numa linha autoetnográfica.
Para melhor contextualização do cenário em que se pretende trabalhar, medida
socioeducativa é uma determinação jurídica destinada a adolescentes entre 12 e 18 anos de
idade que cometeram ato infracional, sendo este entendido, segundo o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), artigo 103 como “conduta descrita como crime ou contraversão
penal”.
No entanto, são a partir das relações sociais de poder e diversos outros fatores que uma
ação é considerada contraversão penal, visto que, o que é infração em uma determinada
sociedade pode não ser em outra, assim como em diferentes momentos histórico-sociais.
Desta forma, adolescentes em privação de liberdade são fruto da escolha do sistema de
justiça a refletir na sociedade acerca de quem deve ser punido (VOLPI, 1998).

Ao descrever as penalidades passíveis de ser aplicada, o ECA (art. 112, IV.), nos aponta
algumas ressalvas:

§1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de


cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
§2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de
trabalho forçado.
§3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão
tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Na prática não é bem isso que ocorre, e, além de prestação de serviço em troca de
benefícios como uma das maneiras aplicáveis de controle dos corpos, adolescentes portadores
de doença ou deficiência mental não recebem tratamento individual especializado, a não ser
por meio de medicação como forma de controle.
Segundo Sandra Maciel Almeida, diretora em Educação, que investigou em seu
doutorado a situação educacional de jovens e mulheres em privação de liberdade, em 2013
utilizando uma abordagem etnográfica de pesquisa cuja síntese foi publicada no livro
Mulheres Invisíveis,

fora do contexto da cultura, dita hegemônica, os sistemas prisional e


socioeducativo enquadram as jovens e mulheres reduzindo-as à díade,
normal e anormal, aplicando sanções normalizadoras. Os relatos das
mulheres e jovens participantes revelam que essas sanções se expressam
institucionalmente por meio do controle do corpo (através do isolamento por
mau comportamento), do controle da criatividade (através de atividades
educacionais infantilizadoras) e por meio do controle da mente (através do
uso de medicamentos psicotrópicos). (FACALDE, 2016, Cap. 2, p. 52)

Em se tratando de mulheres, em uma sociedade machista e patriarcal, o controle exercido


sobre os corpos que ali coexistem envolve ainda a imposição de padrões estéticos, a
intervenção das posturas ao sentar e ao andar, e a padronização da fala ao discursar. Os
espaços de encarceramento reproduzem a discriminação que ocorre fora das grades
(FALCADE, 2016) sem garantir o necessário às peculiaridades do ser mulher.
Além disso, dentre as adolescentes, que se encontram em privação de liberdade, o índice
de violência e a recorrência na objetificação do ‘ser mulher’ é evidente, o que, muitas vezes, é
reforçado dentro da própria instituição.
Paulo Marco Ferreira Lima, Procurador de Justiça Criminal em São Paulo, que corrobora
com a temática da Violência Contra a Mulher, aponta

que de fato, a dominação masculina sobre o feminino é executada de forma


contínua para que essas se percebam e concordem com os esquemas naturais
das diferenças anatômicas dos órgãos sexuais e da divisão social do trabalho,
o que leva a toda uma percepção diferente de como devem ser os
comportamentos feminino e masculino, que acabam por aceitar sua condição
de forma inconsciente, alimentadas essas razões costumeiramente pela
família e depois por toda a ordem social, com suas instituições, como a
Igreja, a Escola e o Estado. (LIMA, 2013, p. 46)

A sociedade brasileira avançou nas conquistas de direitos das mulheres nas últimas
décadas, mas essa evolução não significa ausência de disparidade entre gêneros. A situação de
vulnerabilidade em que as adolescentes em cumprimento de medida se encontram e se
enquadram socialmente, assim como uma enorme parcela das mulheres é reflexo desta
discriminação ainda eminente somada à violência simbólica e física, muitas vezes
provenientes de pessoas muito próximas; o que resulta em traumas que se manifestam desde
por meio de reclusão e dificuldade de se relacionar como na reprodução de comportamento
agressivo.
Com base nas experiências, vivências, da pesquisadora, na maioria das vezes, após a
realização de criações performáticas, no entendimento desta como arte-vida, as reverberações
internas do que foi realizado costumam ser tão intensas que alteram a visão do artista acerca
de seu lugar no mundo, seu entendimento social, e do próprio corpo como potência
comunicativa, além de provocar reflexões acerca de sua coexistência no espaço-tempo e sua
relação com o outro.
Assim, vale reforçar a crença de que a performance entre adolescentes comumente
oprimidas e provenientes de condições sociais desprivilegiadas, em conflito com a lei, pode
ser um meio de empoderamento consciente e poético, capaz de gerir o entendimento de
pertencimento social e afirmação da própria identidade.
Segundo análise feita por Kathryn Woodward7,

7
Kathryn Woodward professora Regional de Sociologia da Open University é autora do livro Identity and Difference (1997)
é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos
sentido à nossa experiência e àquilo que somos.[...] Diferentes significados
são produzidos por diferentes sistemas simbólicos, mas esses significados
são contestados e cambiantes.[...] Todas as práticas de significação que
produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para
definir quem é incluído e quem é excluído. A cultura molda a identidade ao
dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as várias
identidades possíveis, por um modo específico[...].(SILVA, 2007, p.17-19)

A formação da identidade ou mesmo o intercambiamento da mesma através de


determinadas práticas culturais é imprescindível para aquisição de conhecimento e
reformulação de atitudes frente à diversidade, e a linguagem da performance permite uma
reflexão sobre o próprio processo de formação além do desenvolvimento de uma vivência
mais crítica, visto que sua prática envolve consciência corporal e emocional.
Nesse sentido, algumas questões iniciais mobilizaram a pesquisadora nesta investigação:

Como a consciência corporal e a criação performática, enquanto escultura social pode libertar,
internamente, os corpos femininos controlados pelo Estado, das amarras sociais existentes? O
que as adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, realizando
performance art compreendem, acerca de si e do outro, que as transformam?
Pensando a importância da arte para a sobrevivência do ser humano, o que o corpo
feminino em privação de liberdade teria haver com isso e por que investir neste trabalho com
as meninas do socioeducativo especificamente? Por questões ativistas emergenciais, como o
fato de, dentre estas adolescentes, o índice de violência e a recorrência na objetização do
corpo feminino ser tão evidente, e muitas vezes reforçado dentro da própria instituição,
conforme supracitado acerca do controle dos corpos.
Amarrando todas as questões apresentadas até aqui, a implementação da oficina Corpo
em Ação, que se configura não somente como objeto de estudo, mas também como o produto
a ser gerado nesta pesquisa, configura-se como uma atividade de fundamental importância.
Esta transcorrerá com atividades de consciência corporal, rodas de conversa com
questões de entendimento de si e do outro enquanto corpos que coabitam e coexistem na
sociedade contemporânea, dinâmicas de grupo, experimentos performáticos, desenvolvimento
criativo em performance por parte das adolescentes e conversa sobre as transformações
possíveis acarretadas em decorrência destas práticas, apreciação de vídeos de performance e
conversa com artistas da performance art.
Vale reforçar que, com o estudo/análise da Oficina Corpo em Ação, a ser criada, não se
tem a intenção de impor uma metodologia que molde o trabalho de educadores sociais, mas
sim, ao realiza-la, poder criar possibilidades e alternativas de valorização das adolescentes por
meio da arte do corpo que possam transformá-las internamente e apresentar às mesmas uma
forma de expressão na qual dificilmente teriam contato social caso não fosse levado até elas,
devido à realidade de fomento seletivo deste saber artístico. E, é claro, inspirar professores de
arte que trabalham com adolescentes em situação de vulnerabilidade social a focarem mais
nas particularidades de seus alunos e menos nos estereótipos vigentes ao tratarem desta e das
demais expressões artísticas.
Trabalho final de Conhecimento, Linguagem e Interações em Sala de Aula
Professor: Gilcinei Carvalho
Aluna: Gilmara Gonçalves Oliveira
PROMESTRE

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