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Texto complementar

Leitura e interpretação
de textos: contribuições
da teoria semiótica
Lucia Teixeira

PORTUGUÊS

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Português
Assunto: Semiótica e interpretação de textos

Leitura e interpretação de textos: contribuições


da teoria semiótica
RESUMO O artigo discute a necessidade de escolher uma teoria que fundamente o ensino de leitura e interpreta-
ção de textos na escola. Apresenta os fundamentos gerais da semiótica discursiva e expõe a metodolo-
gia proposta para a leitura de textos visuais. Analisa uma pintura de Almeida Júnior como exemplificação
das relações que se estabelecem entre o plano da expressão e o plano do conteúdo dos textos.

ABSTRACT The article discusses the need for the selection of a theory on which to set the grounds of the teaching
of reading and reading comprehension at school. It presents the general background of discursive se-
miotics and discusses the methodology we propose for the reading of non-verbal texts. Finally, it analy-
ses the paintings of Almeida Junior as an exemplification of the relationships established between the
plane of expression and the content of the texts.

Não são raras as situações em que professores se queixam da resistência dos alunos à leitura de textos
literários. Imersos num mundo de tecnologia, em que os apelos visuais e sonoros são irresistíveis, os jovens
da era da cibercultura têm a capacidade de ouvir música, ler mensagens no Orkut, falar ao celular e trocar
de roupa ao mesmo tempo.
Falo de uma geração que substituiu o jantar em redor da mesa pela tela do computador e navega
não mais na imaginação que sonha amores impossíveis e carinhos vãos, mas nos sites que invadem suas
inquietações e oferecem-lhes às vezes tão pouco, mas tão mais do que lhes pode oferecer o mundo das
obrigações e deveres, quando desejam apenas diversão e entretenimento. São meninos e meninas que
não mais marcam encontros no bar, mas no MSN, não mais chamam o amigo no telefone de casa, mas se
comunicam diretamente em celulares de última geração que carregam orgulhosos não só da tecnologia
que exibem mas da privacidade que garantem. São moços e moças que gastam horas em salas virtuais de
conversa em que todos se adoram, mandam beijos abreviados e abraços desenhados, encurtam palavras e
repartem risadas feitas de letras e carinhas. Expostos em blogs, são arredios ao desenho caligráfico das letras
correndo em páginas de cadernos com cadeados em que se costumava escrever diários.
Esses jovens, que estudam enquanto assistem à MTV ou que trocam o potencial estético e emotivo das
telas de cinema pelos filmes que baixam no computador, podem, entretanto, nos ensinar muito com suas
escolhas, se estivermos dispostos a aprender com eles um modo mais antenado, esperto, polissensorial e
animado de viver.
Atentos aos jovens, descobriremos que eles nos ensinam a não criar um antagonismo entre leituras e
tecnologias midiáticas. Eles nos mostram a todo momento que “também se aprende a ler e a ser espectador
sendo telespectador e internauta”, e mais ainda, que “ser internauta aumenta, para milhões de pessoas, a
possibilidade de serem leitores e espectadores” (CANCLINI, 2008: 24 e 54).
O gosto pelos textos escritos, pela boa literatura, ensinam nossos meninos e meninas, não precisa se sobrepor
ou se antepor ao gosto pelos artefatos da indústria de entretenimento, mas, no mundo da mistura das linguagens
e da desterritorialização das identidades, no mundo das imagens e da banalização da cultura, nesse mundo que
eles nos ensinam a habitar, o livro e a palavra convivem com os demais produtos culturais e associam-se à rede
de informação e lazer disponível em tantos outros suportes e modos de expressão. Sites de bibliotecas, acervos

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públicos de obras literárias, livros inteiros que podem ser baixados e arquivados nos computadores pessoais,
páginas de museus e galerias de arte com acesso a milhares de obras de arte antes só disponíveis aos endi-
nheirados que viajavam e frequentavam tais ambientes, tudo isso prova que o conhecimento se abre para
um público mais amplo e diversificado e que é preciso aprender a ler em outros suportes. Será igualmente
importante conhecer a poesia de Camões, descobrir o site de poesia concreta de Augusto de Campos
(http://www2.uol.com.br/augustodecampos), surpreender-se com os romances de Machado de Assis, acessar
obras literárias integrais de domínio público (http://www.dominiopublico.gov.br), ler poesia romântica nos
livros da biblioteca ou percorrer sites de contistas contemporâneos.
A escola tem dupla missão: absorver as novas tecnologias e aproveitar seu potencial de produção de
sentido e, ao mesmo tempo, insistir sempre na literatura e na arte, porque livros, quadros, esculturas, ao
exigirem o silêncio e a contemplação da apreensão estética, representam a resistência e o assombro capazes
de ressignificar a vida e dar-lhe nova direção.
A imersão nas páginas de um romance, no ritmo de um poema ou nas cores de uma pintura é capaz de
nos alhear do mundo por instantes e nos fazer retornar de outro modo a esse mesmo mundo. É experiência
semelhante à contemplação do mistério das folhinhas de nogueira que Calvino viu cair da árvore. Volteando
no vento, as folhinhas – duas, três, quatro, quantas mais, diz Calvino (1999:203) – obrigam nossos olhos a
acompanhá-las, perceber seu volteio, vê-las aproximarem-se e afastarem-se “como borboletas que se per-
seguem”, para enfim pousarem no solo. Esse percurso do olhar que acompanha o movimento das folhas da
árvore se assemelha àquele do movimento dos olhos nas folhas dos livros: tantos mundos, tantos mistérios
se desprendem daquelas páginas, voam em nossas imaginações, inquietam e entristecem nossos corações,
animam nosso corpo, movimentam-se em variadas direções, circunvolteiam em nossa mente, para afinal
pousar de novo nas mesmas páginas que outros lerão, não sem antes ter transtornado nosso olhar e recuperado
nosso poder de dúvida, insatisfação, indignação, encantamento.
Professores de língua e literatura, avessos ao pragmatismo das tarefas concretas, não constroem pontes
nem curam doenças, mas teimam em despertar em outras mentes e em outros corações o gosto pelo saber
e pela poesia, a intimidade com a língua e a compreensão de que estar no mundo é estar na linguagem.
Para ler e interpretar a literatura, é preciso uma disposição de alma, um estado de ânimo aberto para o
sopro inquieto da palavra literária. É preciso mais que isso, no entanto. É necessário um saber, um domínio
metodológico e teórico que ofereça os instrumentos pedagógicos para uma leitura crítica e proveitosa. Ser
um bom leitor não garante ao professor que seja capaz de ensinar a ler e interpretar. Não há bom ensino
sem boa teoria, não há possibilidade de fazer avançar o conhecimento oferecido pela escola se não se faz
avançar também a teoria que fornece a base de atuação prática dos docentes. Em suma, não há ensino de
boa qualidade sem pesquisa consistente.
Vamos então ao método.

A teoria semiótica
Escolher uma teoria que estuda os textos como objetos de sentido significa fazer uma opção pedagógica,
a de privilegiar o texto como unidade de trabalho, em torno da qual giram as atividades de compreensão e
expressão oral e escrita e de análise das estruturas gramaticais. Evidentemente essa é uma escolha possível
e há outras, inúmeras. Costumo dizer que é melhor um professor que segue a gramática tradicional
com segurança do que um que, tocado pelo deslumbramento com a novidade, faz de tudo um pouco,
sem saber, entretanto, definir suas metas e objetivos. Minha opção pela semiótica, tanto em meu trabalho
acadêmico na universidade, quanto em minha experiência de autora de livros didáticos, em coautoria com
Norma Discini (Leitura do mundo, 5a a 8a séries; Passaporte para a Língua Portuguesa, 6o ao 9o ano, Editora
do Brasil, 2000 e 2008), justifica-se pela coerência interna do método, pelo conjunto de análises relevantes já
realizadas, pela possibilidade que oferece de abordar textos de qualquer materialidade significante e, finalmente,
pela qualidade de ambição e consequente incompletude da teoria.
Definida como teoria geral da significação, a semiótica concebe a produção de sentido num texto como
um percurso gerativo constituído de três patamares: o fundamental, o narrativo e o discursivo. No fundamental,
uma oposição abrangente e abstrata organiza o mínimo de sentido a partir do qual o texto se articula. No nível
narrativo, entram em cena sujeitos em busca de valores investidos em objetos, traçando percursos que expandem

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e complexificam as oposições do nível fundamental. No patamar discursivo, um sujeito da enunciação converte
as estruturas narrativas em discurso, por meio da projeção das categorias sintáticas de pessoa, tempo e espaço
e da disseminação de temas e figuras que constituem a cobertura semântica do discurso.
As oposições fundamentais, do tipo natureza versus (vs.) cultura, vida vs. morte, interioridade vs. exterioridade,
estão na base de construção do sentido de um texto. A identificação das oposições fundamentais é um exercício
de organização da leitura: a busca de repetições, reiterações e regularidades aponta para os campos semânticos
desenvolvidos no texto, cujos sentidos serão depreendidos pelas oposições que estabelecerem.
Na frase publicitária “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”1, tomada como um texto (uma
unidade de sentido), identifica-se uma camada profunda de produção do sentido que diz respeito à opo-
sição entre vida e morte, manifestada superficialmente no discurso pela oposição entre liberdade e seu
contrário, opressão. Na peça publicitária veiculada na televisão, os jovens que usavam calças jeans eram
saudáveis, alegres, livres, aventureiros. Todos vestiam jeans e cantavam a música cujo slogan se propagou
enormemente na época e que opunha liberdade a opressão, este último termo estando presente ora por
pressuposição, ora por uma figura debreada no discurso, como a do chefe da estação uniformizado que
os jovens desafiavam. Na análise semiótica, as oposições mais superficiais e explícitas referem-se a uma
oposição de base, que organiza o sentido do texto e de muitos outros textos que operem sobre esse mí-
nimo de sentido. Essa é a forma de ir atribuindo sentido ao mundo: recortando oposições que permitam
identificar um primeiro desenho do sentido.
No nível narrativo, consideram-se as mudanças de estado. Um personagem está feliz com seu amor,
portanto, em estado inicial de conjunção com a felicidade e termina sendo abandonado, passando a um
estado final de disjunção com a felicidade. Uma paisagem está despoluída, logo, em estado inicial de disjunção
com a poluição, mas a ação de uma fábrica faz com que se torne suja e enfumaçada e então a paisagem
atinge um estado final de conjunção com a poluição. A noção de transformação se expande para a ideia de
mudança no tempo e, às vezes, no espaço. Na narrativa, há sempre um sujeito (uma pessoa, uma paisagem,
por exemplo) em busca de determinados valores: a felicidade, a vida saudável, o conforto etc. A narrativa
desenrola-se no percurso de busca desses valores.
Na frase publicitária tomada anteriormente, um sujeito representado por um grupo de jovens é esti-
mulado a buscar valores como libertação, conforto, despojamento. Tais valores estão inscritos no objeto
“calça velha, azul e desbotada” e o sujeito deve entrar em conjunção com esse objeto para obter os
valores que deseja. Para isso, sofre transformações pressupostas: abandona roupas formais e conceitos
tradicionais de elegância e os substitui pela calça jeans com aspecto de velha e desbotada, na qual se
investem os valores da liberdade.
Inscritos em objetos, os valores são as referências abstratas em que acreditamos, os conceitos que dão
sentido às ações do homem no mundo. Os valores do conforto, do despojamento, da libertação podem
estar inscritos numa calça velha azul e desbotada, numa cabana construída numa ilha deserta, num palacete
cheio de comodidades, num computador conectado com as novidades do planeta, figuras que aparecerão
no discurso para concretizar o objeto.
As categorias semio-narrativas, correspondentes aos níveis fundamental e narrativo, são discursivizadas a
partir da instância da enunciação, em que se dá a interação entre um enunciador e um enunciatário, os dois polos
considerados em toda produção discursiva. O enunciador pode projetar-se no enunciado na 1a ou na 3a pessoa
e cada uma dessas projeções, associada a outros recursos discursivos, cria diferentes efeitos de sentido.
No caso da frase publicitária, o enunciador é aquele que deseja vender a calça velha, azul e desbotada e
associá-la a uma forma de vida. O enunciatário é aquele que pode comprar a calça e a ideia de um modelo
de vida mais livre. O enunciador joga com os valores do enunciatário e, ao colocar em cena modelos jovens,
descontraídos, saudáveis e alegres, parte da suposição de que todo jovem deseja identificar-se com esse
padrão e constrói o enunciado pensando nessa imagem de enunciatário. O enunciador da frase projeta no
discurso uma 3a pessoa e um presente gnômico, formulando o slogan como uma verdade enunciada. Com
isso, produz-se um efeito de sentido de objetividade, de imparcialidade.

1
O slogan era de campanha publicitária divulgada em 1976. Os vídeos dos anúncios veiculados na TV podem ser vistos
em: <http://www.youtube.com/watch?v=2rxm9Sp_Ih8>.

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As projeções sintáticas de pessoa, tempo e espaço são recobertas pelas categorias semânticas, sob a
forma de temas e figuras. Por meio de temas, reflete-se sobre o mundo, define-se, opina-se. Tema é ideia
abstrata. Já a figura é concreta, representa as coisas perceptíveis pelos sentidos. A escolha de figuras define
ideologicamente o discurso. Liberdade é tema. Calça velha, azul e desbotada é figura que associa o tema da
liberdade ao conforto, à atitude de despojamento, vinculando ideologicamente o discurso à crença na
liberdade individual do sujeito. Se o tema estivesse concretizado em figuras como armas, bandeiras tremulantes,
barricadas, luta, revolucionários, teríamos a liberdade associada ideologicamente a uma conquista coletiva, a
uma opção política de confronto entre forças em oposição.
Os elementos desses três níveis de geração do sentido constituem o plano do conteúdo de um texto,
que se manifesta por meio de um plano de expressão. A expressão é o arranjo material de um conteúdo,
a forma de manifestar, por meio de uma linguagem, ideias, conceitos, histórias. Para falar do conteúdo da
liberdade, pode-se usar como meio de expressão um slogan publicitário, uma poesia, uma pintura.
O plano da expressão dá forma a um conteúdo. Quando Manuel Bandeira, no poema Trem de ferro, usa a
aliteração nos versos “Café com pão/ café com pão/ café com pão/ Virgem Maria que foi isso maquinista...”, está
usando os recursos do plano de expressão da língua para criar o efeito da sonoridade do trem em movimento.
A ideia de movimento manifesta-se pela aliteração de fonemas. Os signos café e pão valem por sua qualidade
significante, não mais remetem ao café e pão do dia a dia, mas à sonoridade imitativa do barulho do trem.
Da mesma forma, a fotografia de um trem usa os recursos do contraste de formas, do jogo claro/escuro, do
foco nítido ou pouco definido para remeter ao conteúdo do trem em movimento.
Na relação entre expressão e conteúdo, os textos produzem determinados efeitos de sentido. A linguagem
não é transparente, não existem etiquetas coladas às coisas, não existe um sentido previamente atribuído às
palavras. Tudo o que se fala adquire sentido nas relações que se criam no discurso. Não se pode dizer, assim,
que um texto em 1a pessoa é subjetivo, mas que a projeção da 1a pessoa ajuda a construir o efeito de sentido
de subjetividade. O sentido se constrói como uma rede de significados.
Numa notícia de jornal, a projeção de nomes, idades, datas e lugares cria um efeito de sentido de
verdade, isto é, aquele que lê acredita serem verdadeiras as informações, porque uma rede de dados passíveis
de comprovação foi construída no discurso. Entre enunciador e enunciatário estabelece-se um contrato de
aceitação e crença.
Desafiada pela grandiosidade do próprio projeto, a semiótica é uma teoria em movimento, que mais
recentemente vem enfatizando os estudos sobre paixão, tensividade, corpo e sensorialidade, de modo a
incorporar as desestabilizações, os deslizamentos, as ondulações que atravessam o percurso de produção
de sentido. Com isso, a estabilidade de uma concepção discretizante da organização do percurso é perpassada
por um movimento que acolhe a instabilidade e os afetos.
Zilberberg (2006) explica que, ao incorporar a afetividade ao percurso de produção do sentido dos textos,
a semiótica a integra sob a denominação de intensidade, grandeza oposta à extensidade, para formar o par
designado pelo termo tensividade, lugar imaginário em que a intensidade (os estados de alma) e a extensi-
dade (os estados de coisas) se juntam. Essa junção define um espaço tensivo de acolhimento das grandezas
do campo da presença: por causa de sua imersão nesse espaço, toda grandeza discursiva se acha qualificada
como intensidade e extensidade. Incorpora-se, assim, a questão da mobilidade do sentido, afetado sempre
pelo instável e o imprevisível.
Para além dessas direções metodológicas vinculadas a questões teóricas gerais, a análise semiótica vem
considerando os códigos particulares dos textos que examina: semiótica plástica, semiótica da canção,
semiótica da literatura são exemplos de semióticas definidas pelos objetos de que se ocupam e que exigem
formulações teórico-metodológicas próprias, capazes de descrever e interpretar a materialidade significante
dos textos. A observação dessa materialidade permitiu que a teoria desenvolvesse modelos metodológicos
consistentes que contemplam categorias particulares de análise. Assim, por exemplo, categorias cromáticas,
eidéticas, topológicas e matéricas são aquelas que constituem um texto visual produzido num suporte
planar, como veremos adiante. A identificação desses elementos permite trazer para a análise aquilo que é
próprio de uma pintura, uma fotografia, uma aquarela etc., assim permitindo uma compreensão dos objetos
semióticos como produtos cuja materialidade também significa.

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Ao lado de formulações que contemplam a descrição do plano da expressão particular de textos visuais,
verbais, musicais etc., a análise observa de que modo os textos se submetem a coerções e se identificam com
determinada práxis enunciativa. Para explicar tal conceito, Schulz (1995) recorre a Denis Bertrand e fala em
formas discursivas que o uso das comunidades socioculturais fixa sob a forma de tipos, de estereótipos ou
de esquemas. Podemos acrescentar também como formas fixadas pelo uso os gêneros textuais. O discurso
é tanto uma criação como o resultado de uma bricolage, que reutiliza os materiais de criações anteriores, e
sua originalidade vai depender dos modos como reage ou responde à exploração dos resíduos discursivos
que acolhe. Propõe-se, em consequência, uma concepção de enunciação que articule as formas discursivas
resultantes do ato enunciativo individual com o que o autor chama de “organizações culturais, mais ou menos
congeladas, da significação”, que independem da iniciativa particular do sujeito enunciador, mas que o incluem
numa práxis enunciativa que, garantindo a previsibilidade, atua como força coesiva do discurso e assegura sua
força argumentativa pela naturalização que confere a determinados materiais discursivos.
Num texto há sempre um jogo de forças discursivas, que pode ser compreendido como um embate
entre intensidades (o descontínuo, o novo, o inesperado) e extensidades (o contínuo, o já conhecido). Cabe
à enunciação regular os aumentos e diminuições de impacto do novo ou de manutenção do já conhecido.
Os anúncios publicitários regulam sua ação num equilíbrio bem produzido entre o novo e o esperado.
As cenas clássicas de anúncios de margarinas repetem sempre ambientes e figurinos claros, famílias felizes,
mesas bem-postas. A novidade estará na substância de última geração incluída no preparo da margarina,
na cor, textura, sabor, naquilo que pode diferenciar um produto recém-lançado de outros já em circulação
no mercado.
Nas produções estéticas, o impacto do novo pode ser mais forte e aí estará, certamente, a dificuldade
maior de compreensão dos textos poéticos, quaisquer que sejam suas formas de manifestação (poesia, conto,
pintura, gravura, escultura, música etc.).
Como minhas pesquisas se referem particularmente aos objetos visuais, em especial à pintura, apresento aqui
um exemplo de análise, que enfatizará a articulação entre categorias dos planos da expressão e do conteúdo2.

Leitura de textos visuais


A leitura de textos visuais3 requer uma observação específica de certos arranjos formais, como combinações
de cores, distribuição de formas no espaço, jogos de linhas e volumes. Para trabalhar com histórias em quadrinhos
em sala de aula, por exemplo, deve-se ir além da exploração dos balões de fala como explicações do desenho.
Questões que solicitam do aluno “impressões” a respeito de emoções ou estados de alma dos personagens
(o gatinho parece triste; o menino está assustado etc.) não dão conta dos mecanismos de produção de
sentido. Não se pode desejar, simplesmente, saber se um personagem parece triste, mas sim identificar os
recursos de expressão que criam a ideia de tristeza. Traços ascendentes, em geral, criam ideia de elevação de
ânimo; traços descendentes acentuam a ideia de abatimento (veja-se, por exemplo, o traço curvo descendente
na boca de personagens zangados ou tristes e o traço curvo ascendente, indicando riso, alegria).
Para ler um texto visual é preciso considerar, basicamente:
a) as combinações de formas ou as categorias eidéticas: um retrato pode combinar traços curvos,
arredondados e côncavos para criar efeito de movimento e de volume; ou pode jogar com con-
trastes como curvilíneo vs. retilíneo, arredondado vs. anguloso, côncavo vs. convexo para criar um
efeito de tensão, de conflito;
b) as combinações de cores ou as categorias cromáticas: as cores podem se combinar em contrastes
ou em gradações. Um fundo cinza-claro destaca uma figura em vermelho, dando-lhe densidade e
força; um céu pintado em gradações de azul, que vão do azul mais intenso ao mais claro, chegando
ao branco, tem mais luminosidade que um céu pintado apenas num tom. As cores, numa pintura,

2
 ara análise das relações entre plano da expressão e do conteúdo na literatura, do ponto de vista da semiótica, são
P
exemplares os estudos de José Luiz Fiorin, publicados em muitas de suas obras. Recomendo particularmente FIO-
RIN, 2008: 57-67.
3
Não se está falando aqui de uma “linguagem visual”, que não existe, mas de textos que se manifestam visualmente.
Desenvolvi o conceito de textos visuais em TEIXEIRA, 2008: 159-180.

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podem ser puras, aparecendo na tela do modo como saem do tubo de tinta, ou diluídas, após a
mistura da tinta com um solvente. A cor pura cria um efeito mais agressivo, mais marcado pelo gesto
do artista. O tipo de pincel, o tamanho e a espessura das pinceladas podem associar-se à escolha
cromática para acentuar determinados efeitos. Uma cor pura trabalhada com pincel grosso, que não
espalhe completamente a tinta, acentua o efeito de concretizar o gesto do artista e chama a atenção
para um tipo de pintura que fala da própria pintura;
c) a organização do espaço ou as categorias topológicas: a distribuição de formas e cores no espaço do
suporte (tela, papel, madeira etc) é outro recurso importante da linguagem visual. Num quadrinho
em que vários personagens brigam, o espaço estará todo preenchido, com os personagens, traços,
sombreamentos e outros recursos criando, pela ocupação desorganizada do espaço, a ideia da
confusão da briga. Já numa fotografia que pretenda destacar, por exemplo, a estranheza do surgimento
de uma árvore em determinado ambiente, o espaço em volta da figura principal estará vazio, para
indicar a singularidade do acontecimento.

Uma análise
Tomemos uma pintura de Almeida Júnior (1850-1899), pintor brasileiro considerado pela crítica um dos
artistas brasileiros mais expressivos de sua época. O quadro, bastante conhecido, é Leitura :
Pinacoteca do Estado, São Paulo

Leitura, 1892, óleo sobre tela, 95x141 cm, acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Uma observação geral indica os elementos de que se constitui a pintura: figura feminina solitária, inteiramente
vestida, no ambiente aberto de um terraço ou varanda, planos amplos, tonalidades pastel, luminosidade bem
distribuída, tudo criando um efeito de sentido de harmonia, introspecção e recato.
Que recursos da pintura criam esses efeitos de sentido? Em primeiro lugar, vejamos a organização
topológica do quadro. A mulher está rodeada por uma paisagem absolutamente imóvel, que não só a
rodeia, mas a isola. Cercada no que parece ser o espaço de um terraço, a mulher senta-se numa posição
desenhada em diagonais que, traçadas do canto superior esquerdo à ponta dos sapatos e da ponta do
pé da cadeira ao vértice direito da pilastra que sustenta a cerca, acompanham as linhas da cadeira. Além
de imobilizar a mulher, esse aprisionamento de linhas vai situá-la numa posição em que tanto poderia
dirigir o olhar para a paisagem quanto para o espectador. Os vários planos criados pela perspectiva aérea
preenchem-se, inicialmente, do verde da folhagem que se expande na forma ascendente de uma palmeira
a fechar o quadro à esquerda, por entre a vegetação; mais atrás, uma construção também cria, com a

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árvore que, ao contrário da palmeira, é descendente, novo fechamento, outra cercadura em torno da figura
feminina, todo este aprisionamento sendo reiterado pela figura mais concreta da cerca do terraço. Ainda
entre a pilastra e a ponta do telhado da construção desenha-se também nova diagonal, reiterando o efeito
de fixação da figura humana. Nos planos sucessivos, distanciando-se, e agora expandindo-se para a direita,
um braço de riacho, os taludes rasgando os verdes, pequenas construções pontilhando o lugarejo, e finalmente
as montanhas e o céu, figuras amplas expandindo o cenário.
Retornando ao primeiro plano, uma cadeira vazia fecha também a cena e, junto com o efeito da luz
lançada em sentido perpendicular, acentua a figura humana ao lado. Temos então, topologicamente, uma
oposição entre concentração (marcada na figura da mulher) e dispersão (no emolduramento criado pelos
demais elementos de composição da cena).
Observemos agora os preenchimentos de cor, a luminosidade e as escolhas eidéticas que dão volume à
figura da leitora. Inteiramente recoberta, a mulher veste saia e blusa rendada em tom pastel, valorizado pela
cobertura do casaco e o contraponto do sapato e da meia em gradações de castanhos. A mão direita sobre
o regaço destaca o planejamento criado pelo pincel na saia, leve sinal de movimento marcado nas linhas
curvas e nos suaves sombreamentos das dobras do tecido. Os braços amparados na estrutura da cadeira
são também indicadores da contenção gestual que se harmoniza com a total ausência de movimento da
paisagem, reafirmada na oposição entre o desenho de contornos definidos da mulher e os contornos mais
frouxos dos elementos da paisagem.
A mulher que lê é essa mulher aprisionada em linhas diagonais que lhe imobilizam a posição, embora
lhe permitam, na sutileza das linhas curvas contrapostas, a levíssima descontração do repouso. Também nas
categorias cromáticas e eidéticas, portanto, a oposição que se afirma no plano da expressão é entre concentração
e dispersão. No plano figurativo, essa oposição opõe a figura feminina à paisagem e cria os temas da ordem,
do recato e da uniformidade de um lado e da diversidade e expansão de outro. Em nível profundo, a oposição
é entre natureza e cultura e, no nível narrativo, opõe-se o sujeito obediente, sancionado positivamente pela
luminosidade, a beleza, a tranquilidade, à rebeldia que ele rejeita.
As oposições, entretanto, podem ser tensionadas por pequenos detalhes que fazem pulsar a possibilidade
de novos sentidos. O detalhe talvez mais expressivo da pintura de Almeida Júnior é a longa trança retilínea,
que funciona como contraste vertical das diagonais do desenho do corpo, desfazendo-se nas pontas. Este
desfazer-se, criado pela pincelada rala e a quase inobservável gradação da tonalidade acastanhada do cabelo,
é o único sinal de desarrumação da cena. A trança que se desmancha contraria a paisagem placidamente
arranjada e, ainda que integrada ao tratamento contido da figura feminina, surpreende porque, não chegando
a quebrar a ordem instalada, aponta para a possibilidade de fazê-lo. O enunciador que está fora da cena mostra
aí a sua presença. Tendo escolhido este detalhe para interferir no arranjo que a narrativa organizara, desmancha
com cuidado a trança e a ordem.
A mulher concentrada na leitura, isolada num mundo silencioso, está posta num entrelugar que, não
sendo nem a exterioridade da paisagem, nem a interioridade sugerida pela localização da cena, poderá a
qualquer momento desviar para dentro ou para fora um leve movimento dos olhos e encontrar o mundo
que a cerca. Se na fixidez da cena pintada seu repouso é feito de concentração, estaticidade e contenção, há
uma promessa de movimento, adivinhada seja no cabelo que se despenteia, seja na tensão entre interioridade
e exterioridade figurativizada no espaço da varanda.
O observador revelado nas marcas enunciativas, entretanto, ao espionar o terraço iluminado, escolhendo
a gradação fria do pastel, ampliando a cena com a economia de recursos, reiterando a solidão, moraliza o
modo de ser da mulher, preenchendo a figurativização da feminilidade com um padrão de comportamento
que, com diferentes recursos expressivos de sobreposição de formas, linhas, cores e luminosidade, quase
apaga toda a possibilidade de manifestação destemperada.
Tem-se aqui não apenas a representação realista de uma mulher que lê, mas a configuração de um
modo de ser feminino. Recatada, reprimida, contida, essa mulher é aquela que se submete ao capricho de
determinações sociais e se apresenta acolhida na harmonia aparente de um cenário apaziguado.
No entanto, há nessa mulher o estranhamento de uma trança que se desata, há um olhar que pode mover-se
para contemplar a vida fora do livro, pequenas rupturas que já seriam talvez o prenúncio de novos tempos.

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Conclusão
A adoção de uma teoria não é uma questão de crença, mas de adesão, de escolha, de filiação a determinada
matriz teórica. Entre crença e adesão existe a diferença conceitual que faz intervir na segunda a racionalidade.
Na crença, tem-se a “atitude de quem se persuadiu de algo pelos caracteres de verdade que ali encontrou”
(HOUAISS, 2001). Na adesão, não há aceitação, mas acordo, não há verdade, mas possibilidades que se oferecem,
dentre as quais se escolhe uma, a partir de determinada análise. Essa diferença é fundamental e serve aqui para
afirmar que o trabalho de pesquisa e suas aplicações originam-se na filiação, na adesão a alguma teoria e que
sem a densidade de uma teoria bem assimilada e bem compreendida não há ensino que se sustente.
Em ensino de língua e literatura costuma-se, muitas vezes, usar a opinião ou a crença como contraponto
(quase sempre débil) do conhecimento. “Eu sinto que os alunos gostam”, “Eu acho que assim eles aprendem
mais rápido”, “Eu tenho feito assim e os alunos gostam muito”, “Eu acredito nesse tipo de exercício” – são
recortes expressivos de um certo murmúrio ingênuo e difundido que associa ensino de língua e literatura
a alguma qualidade própria ou a alguma descoberta pessoal e intuitiva de um ou outro grande professor.
Experiência e vontade são efetivamente duas forças poderosas que diferenciam atuações profissionais
e podem, acrescentando entusiasmo ao trabalho, torná-lo mais bem-sucedido. Um ensino de qualidade, no
entanto, não se faz com a soma de boas atuações individuais, mas com uma mudança de concepção que,
por sua vez, também só é possível com a criação de condições coletivas de engajamento e concentração de
esforços. É nesse sentido que a adesão a uma teoria é importante: trata-se de uma forma de oferecer direção
a um grupo que tem um objetivo comum definido.
Compreendida como matriz de produção de conhecimento, a teoria não é, necessariamente, terreno
seco e pedregoso, árido, difícil de penetrar. Pode ser que se torne o ponto de partida de uma nova atitude,
de um outro modo de olhar o mundo. Mesmo porque, trabalhar com a linguagem é estar sempre atento às
paixões humanas, sejam elas feitas de papel, tinta, nota musicais ou qualquer outra linguagem.
É, aliás, com as paixões humanas que se pretende encerrar este texto. “Para aquele que fala e, em
particular, para aquele cujo ofício é falar sobre o discurso, para o linguista, a língua pode ser um objeto
de amor”. E o amor pela língua é o amor pelo outro, pela diferença: “o amoroso das línguas é enamorado da
alteridade” (HAGÈGE, 1998, p. 391 e 394).
O que mais fazemos nós todos os dias, ensinando língua e literatura, senão mostrar aos estudantes o
mistério de existir na linguagem, compreendendo que existir na linguagem é aproximar-se do outro a cada
instante, para acolhê-lo ou para rejeitá-lo? Pensar na linguagem, fazer dela objeto de reflexão e de trabalho,
é não só compreender esse enamoramento da alteridade, mas vivê-lo em cada trabalho de pesquisa.

Referências bibliográficas
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras,1990.
CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008.
FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008.
HAGÈGE, Claude. L’homme de paroles: contribution linguistique aux sciences humaines. Paris : Fayard, 1998.
SCHULZ, Michael. Enonciation et discours esthétique. Analyser le Serial Project n. 1 (Set A) de Sol LeWitt. Nouveaux
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TEIXEIRA, Lucia. Leitura de textos visuais: princípios metodológicos. In: BASTOS, Neusa Barbosa (Org.). Língua
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ABRIATA, V. L. R. (Org.). Sentidos em movimento. Identidade e argumentação. São Paulo: UNIFRAN, 2008.
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