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FACULDADE ARQUIDIOCESANA DE MARIANA – DOM LUCIANO MENDES

GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Luiz Henrique de Moraes Silva

A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

Mariana
2014
Luiz Henrique de Moraes Silva

A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

Monografia apresentada ao curso de


graduação em Filosofia da Faculdade
Arquidiocesana de Mariana - Dom
Luciano Mendes como requisito parcial
para obtenção do título de bacharel em
Filosofia.

Orientador: Ms. Rodrigo Alexandre de


Figueiredo

Mariana
2014
“A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro
pela sensação da fadiga – não isenta de terror – com que
contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para
usar uma expressão popular, é arremessada para meados da
semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente
não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade
não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do
passado: um medo não só do mal que há no passado, senão
também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso
ante a insuportável virtude da humanidade. Houve
tantas fés flamejantes que não podemos suportar, houve
heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar,
empregaram-se esforços tão grandes na construção de
edifícios monumentais ou na busca da glória militar que
nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é
um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de
nossos antepassados. São as gerações passadas, não as
futuras, que vêm bater à nossa porta.”

G. K. Chesterton

“Como a filosofia política deriva sua sanção da ética, e a


ética da verdade da religião, é somente ao retornar à fonte
eterna da verdade que poderemos ter esperança em alguma
organização social que não venha, até a destruição eterna,
a ignorar algum aspecto essencial da realidade.”

T. S. Eliot
RESUMO

Discorremos, neste trabalho, a respeito dos componentes teóricos fundamentais da


filosofia política de Edmund Burke, pensador irlandês que advogou por uma conduta
política regulada especialmente pela virtude da prudência, que considerava
indispensável a legisladores e estadistas em geral. Ao criticar a Revolução Francesa de
1789, Burke denuncia a impetuosidade e os erros da ideologia que serviu de
combustível para aquela insurreição. Ele adverte, nesse contexto, que não são os
princípios abstratos fabricados pelo intelecto que devem reger a ação política, mas sim a
consideração realista e ponderada das circunstâncias particulares de cada tempo e lugar.
Antevendo, já em 1790, que o regime jacobino acarretaria em violências ainda maiores
posteriormente, Burke discute os dogmas da mentalidade revolucionária, questionando
inclusive a acuidade da razão pretensamente esclarecida dos philosophes iluministas.
Burke contesta as noções iluministas relacionadas a um estado primitivo e a direitos
primitivos dos homens, bem como a ideia de que a natureza humana, sendo plástica e
perfectível, poderia ser artificialmente melhorada por um Estado esclarecido. O seu
ceticismo diante das utopias revolucionárias e seu apreço pelas instituições tradicionais
levaram as gerações posteriores a nomeá-lo pai do conservadorismo moderno. O
pensador irlandês sustenta a convicção de que há uma Ordem e uma Lei Natural acima
do Estado e da sociedade com a qual as instituições humanas devem conformar-se
progressivamente para alcançar a realização de seus fins. A observância das doutrinas
encontradas nas fontes cristãs da Revelação divina e a valorização da tradição moral,
institucional e espiritual que os antepassados nos transmitiram seriam os meios mais
seguros para manter os laços entre o que é temporal, contingente e humano e o que é
eterno, natural, e divino. Burke defende, ainda, que um estadista prudente deve sempre
levar em conta as experiências passadas, aprender com erros e com os acertos dos
ancestrais e estar disposto a preservar as instituições salutares legadas pelos
antepassados, sem deixar de melhorá-las quando as circunstâncias permitirem. Diante
de estruturas e sistemas que se tornam ineficazes para atender as necessidades dos
cidadãos, Burke propõe, como alternativa ao método revolucionário, a reforma gradual,
paciente e orgânica, que permite conservar o que permanece vantajoso nas velhas
instituições e fazer reajustamentos posteriores para melhor adequar as mudanças
políticas ao todo do organismo social.

Palavras-chave: Prudência; Política; Conservadorismo; Revolução Francesa;


Iluminismo; Lei Natural; Tradição; Reforma Institucional; Edmund Burke.
ABSTRACT

We discourse, in this paper, about the essential theoretical components of Edmund


Burke’s political philosophy. This Irish author advocates for a political procedure
regulated specially by the virtue of prudence, which he consider indispensable to
lawmakers and statesmen in general. While Burke was criticizing the French Revolution
of 1789, he denounces the impetuosity and the errors of the ideology that was the fuel
for that insurrection. He warns, in that context, that the abstract principles fabricated by
intellect should not drive the political action, but the realistic and weighted
consideration of the particular circumstances of each time and site. In 1790, foreseeing
the bigger violence that the Jacobin regime would bring about later, Burke discusses the
revolutionary mind’s dogmas, quarrel also the accuracy of the French philosophes and
his so-called enlightened reason. Burke contests the Enlightenment notions related to
the primitive status and the primitive rights of mankind, just like the idea of the
plasticity and perfectibility of human nature that could be improve artificially by an
Enlightened State. His skepticism up against the revolutionary utopias and his regard for
traditional institutions lead the subsequent generations to nominate him the father of the
modern conservatism. The Irish philosopher believes in a natural Order above the
society and in a natural Law, which the social and political institutions must
progressively agree with to reach the fulfillment of their purposes. Valuating the
doctrines founded in the Christian sources of the divine Revelation and being fond of
the moral, institutional and spiritual tradition transmitted by the ancestors are the secure
means to keep the bonds between what is temporal, contingent and human and what is
eternal, natural and divine. Burke also stand up for the idea that a prudent statesman
must always consider the experiences from the past, have the disposition to preserve the
favorable institutions received by legacy from the ancestors and be able to improve
them when the circumstances allow that. When the structures and systems become
inefficient to satisfy the citizen’s needs, Burke propose, like an alternative to
revolutionary method, a gradual, patient and organic reformation that allows to conserve
what remains beneficial at the old institutions and permit subsequent enhances to adjust
the political changes to all the social organism.

Key-words: Prudence; Politics; Conservatism; French Revolution; Enlightening;


Natural Law; Tradition; Institutional Reformation; Edmund Burke.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO..................................13

1.1 A presciência de Burke..............................................................................................15

1.2 O realismo burkeano..................................................................................................19

1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária.......................................................21

2 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS....................................25

2.1 Visão antropológica restrita.......................................................................................26

2.2 Heranças greco-cristãs...............................................................................................28

2.3 O jusnaturalismo burkeano........................................................................................33

3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA................36

3.1 A experiência dos antepassados................................................................................36

3.2 Considerações sobre o governo civil.........................................................................39

3.3 Representatividade política........................................................................................41

3.4 As instituições e valores consolidados pelas gerações..............................................46

3.5 Reformas orgânicas em vez de revoluções................................................................50

CONCLUSÃO................................................................................................................53

REFERÊNCIAS.............................................................................................................56
10

INTRODUÇÃO

Uma filosofia política que não prescreva grandes mudanças, transformações repentinas,
ou revoluções violentas como solução para os problemas do sistema vigente, pode não
ser considerada, por todos, digna de compor o cânon dos grandes paradigmas do
pensamento político ocidental. Isso não significa, contudo, que ela não ofereça uma
contribuição filosófica significativa que nos permita contemplar a política de um outro
ângulo de visão e com outros critérios de juízo. Um dos objetivos desse trabalho é
verificar se é possível pensar temas políticos de forma pertinente sem pretender oferecer
fórmulas teóricas para a construção de um sistema virtualmente perfeito e sem sugerir
solapar as bases institucionais de um sistema político qualquer a fim de desconstruí-lo e
dar ocasião ao surgimento de uma nova ordem civil. Averiguaremos também, tendo por
esteio o pensamento filosófico de Edmund Burke, se é possível assegurar uma filosofia
política conservadora que não se limite à crítica das posturas revolucionárias e proponha
meios mais sustentáveis e seguros de aprimoramento das estruturas sociopolíticas.

Edmund Burke foi um filósofo irlandês, nascido em Dublin, que entrou para a história
como o pai do conservadorismo político moderno e o mais ferrenho crítico da
Revolução Francesa. Não obstante sua obra seja um marco da filosofia política
conservadora, Burke foi líder do partido whig (liberal) no parlamento britânico, onde
atuou como deputado pelo condado de Bristol. Alguns o classificam como liberal-
conservador; liberal no que tange à economia e pela importância que a liberdade
individual tem em seu pensamento, conservador no que se refere à cultura, à moralidade
pública e à própria política. Em sua atividade parlamentar, destacou-se como notório
antiabsolutista, com um histórico de denúncias contra os abusos britânicos na Índia e de
luta política contra as pretensões absolutistas do rei George III. Embora fosse de
confissão anglicana e um monarquista convicto, empenhou-se na defesa dos direitos dos
católicos irlandeses e dos colonos separatistas e republicanos da América do Norte.

O livro sobre o qual dissertaremos com maior frequência para discorrer sobre a filosofia
política burkeana teve, de acordo com o próprio autor, origem epistolar. As Reflexões
sobre a Revolução em França nasceram de uma carta enviada pelo autor a um “jovem
fidalgo de Paris”. Esse jovem era Charles-Jean-François Depont, que interrogara Burke
acerca da sua opinião sobre o estado de coisas na França após a Revolução de 1789. Nas
11

primeiras páginas do texto, o deputado irlandês explica ao leitor a origem e o intento da


obra. Por suas palavras iniciais, podemos inferir que as discussões acerca da referida
revolução estavam pululando por toda a Europa naqueles primeiros anos após o levante
jacobino.

O ano em que Burke redige suas Reflexões sobre a Revolução em França é 1790, ano
seguinte ao da Queda da Bastilha. A missiva que se tornaria um tratado político célebre
em todo o Ocidente foi, na verdade, uma reação do autor, na forma de carta a Depont, a
certos elogios públicos que se faziam no Reino Unido à revolução gaulesa. A troca de
correspondência entre o parlamentar irlandês e o “jovem fidalgo de Paris”, embora real,
teria sido apenas a ocasião que o primeiro encontrou para fazer vazar suas críticas à
insurreição jacobina para o público comum.1 Com isso, Burke pretendia advertir as
massas para evitar que as ideias revolucionárias ganhassem mais entusiastas entre os
britânicos, o que era para ele motivo de grande preocupação.

As Reflexões, entretanto, não encerram toda a obra do filósofo dublinense. No conjunto


dos escritos filosóficos de Burke incluem-se muitos outros textos, que abarcam seus
discursos no parlamento, correspondências diversas e até mesmo um tratado de Estética
redigido como “investigação filosófica” sobre a origem das ideias do Belo e do
Sublime. Para este trabalho monográfico interessam-nos, contudo, apenas os escritos de
Burke dedicados à política.

Assim sendo, procuraremos aqui apresentar a visão política de Burke enfocando as


noções que formam a espinha dorsal de sua argumentação nessa matéria, tais como
herança, circunstâncias, natureza, experiência, liberdade e, sobretudo, prudência.
Tangenciamos também o entendimento do filósofo acerca do justo exercício do poder,
da representatividade dos cidadãos perante o governo, da apropriada atuação do
estadista frente aos interesses sociais conflitantes, da injustiça inerente à conduta
revolucionária, da imprudência inerente à mentalidade subversora, da deferência devida
às instituições civis consagradas, das configurações possíveis de um Estado, entre
outros motes. Se for adequada a distinção feita entre ciência política e filosofia política
que define a primeira como o estudo pragmático das estruturas e mecanismos de
1
Quem apresenta essa informação sobre a ocasião em que surgiu a obra-prima de Burke é Francis
Canavan, S. J., em prefácio para as Reflexões encontrado na edição de 2012 da Topbooks, pág. 12.
12

governo, bem como das relações políticas que perfazem o aparato estatal e a sociedade,
enquanto concebe a segunda como a fundamentação ética e metafísica de um projeto
ideal de Estado e de uma conduta ideal dos agentes políticos, podemos dizer que Burke
fez tanto uma quanto outra.

No primeiro capítulo, encetaremos com uma retomada das circunstâncias históricas nas
quais foi deflagrada a Revolução Francesa – evento determinante para a produção
filosófica de Burke – e apresentaremos dados referentes aos desdobramentos daquela
sublevação que corroboraram o parecer inicial do filósofo sobre a mesma. Também
evidenciaremos as reações manifestas de Burke àquele acontecimento, que aparecem na
forma de denúncias, advertências e apreciações contestatórias do pensamento
revolucionário e iluminista. E abordaremos, ainda, o realismo burkeano frente às
promessas utópicas que então ganhavam prestígio. No nosso capítulo inicial, portanto,
prevalecem temas que ressaltam o caráter reativo e contestador do filósofo.

No segundo capítulo, discorreremos sobre as noções antropológicas, éticas e metafísicas


que alicerçam e permeiam o pensamento político burkeano. Procuraremos expor
algumas características da antropologia restrita adotada pelo autor, sua confiança nas
antigas virtudes clássicas e numa Ordem cosmológica natural com a qual devem
conformar-se as convenções humanas, bem como seu apreço pelos valores do
cristianismo, e também sua convicção de que os direitos naturais da humanidade
procedem de uma Lei natural eternamente estabelecida. Neste capítulo aparece,
portanto, um Burke que, não obstante preferisse ser prático, é também metafísico.

No terceiro e último capítulo do nosso trabalho, à medida que apresentarmos as


recomendações do filósofo para uma práxis política baseada, sobretudo, na virtude da
prudência, sobressairá um Burke mais propositivo. Assim, procederemos a uma
exposição das propostas práticas do filósofo para que os homens de Estado sejam
norteados por uma salutar circunspecção e uma judiciosa sensatez na gestão da coisa
pública. Mostraremos como a política da prudência surge como uma alternativa à
política revolucionária e visa firmar uma relação de confiança recíproca entre governo e
sociedade civil, possibilitando que toda mudança sócio-institucional seja sempre
gradativa, orgânica e resulte em proveito do maior número possível de cidadãos.
13

1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO

Discorreremos, neste primeiro capítulo, acerca do modo como Edmund Burke


manifestou sua oposição ao triunfo dos jacobinos na França, às medidas revolucionárias
que aqueles tomaram e às ideias iluministas que os moviam. Apontaremos, também,
determinadas ocorrências da França oitocentista que confirmaram as advertências de
Burke sobre as consequências da Revolução.

A reação do deputado irlandês àquele evento histórico contrariou o que, segundo


Espada (2010), se esperava dele após a Queda da Bastilha em 1789. Na Câmara dos
Comuns, a expectativa era que Burke apoiasse a insurreição gaulesa, como fizera em
relação à Revolução Americana, que já havia tornado os EUA um país independente em
1776. Entretanto, o parlamentar liberal manifestava-se com críticas veementes ao
levante dos jacobinos, algo que seus compatriotas esperavam naturalmente dos tories
(conservadores), mas não de um whig. A oposição de Burke não se explica apenas pelas
notícias que chegavam até ele a respeito da escalada de violência que se desencadeava
naquele processo revolucionário, mas também por sua experiência anterior com
ideólogos cujas concepções motivaram o levante.

Por volta de 1773, isto é, dezesseis anos antes da revolução, Burke teria viajado a Paris,
onde teve contato com alguns iluministas franceses2. Na ocasião, Burke teria percebido
neles não só uma hostilidade com relação à religião cristã, mas também um acentuado
apego a princípios teóricos e direitos universais abstratos, como os de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, em nome dos quais se poderia até desprezar os direitos
individuais, tendo em vista um pretenso “bem comum” e os supostos interesses da
coletividade. Burke teria, então, já naquele ano, percebido que concepções perigosas
começavam a insuflar um movimento revolucionário na França.

A mentalidade revolucionária, eivada de um caráter dogmático, utopista, subversivo e,


muitas vezes, violento, inquietava Burke. Certamente impressionavam-no as palavras de
ordem e frases como: “Só haverá liberdade quando o último rei for enforcado com as
vísceras do último padre”, disseminada pelos iluministas. Ou: “Antes faremos da

2
Conforme a Introdução de Conor Cruise O’Brien presente na 2ª edição brasileira das Reflexões sobre a
Revolução em França lançada pela Editora Universidade de Brasília em 1997.
14

França um cemitério do que deixaremos de regenerá-la”, atribuída a Jean-Baptiste


Carrier, o principal carrasco dos resistentes de Vandée. Contudo, Burke ponderava
(1997, p. 72) que a França pré-revolucionária – apesar da crise financeira e dos
problemas que vinham se acumulando, não só por este motivo, mas também por causa
do comodismo do rei e dos excessivos privilégios da aristocracia – tinha uma história
notável, um legado de bons valores e de ancestrais sábios e virtuosos que os franceses,
em sua opinião, deveriam ter aprendido a respeitar. O deputado britânico lembra que a
França não era uma nação recente em 1789, não era um “povo de ontem” que fora
escravizado até as vésperas da Revolução (como o discurso jacobino procurava
denotar), e que depois dela se tornara livre e renascido. Logo, não se poderia desculpar
os crimes dos revolucionários com o pretexto de que seriam “abusos da liberdade”
cometidos por um povo desacostumado a ser livre (ibidem).

“A França comprou miséria com crime!”, denunciava Burke (1997, p. 73). E vociferava
contra o encarceramento da família real, o confisco dos bens da Igreja, os exílios de
dissidentes, as execuções dos guardas e servos da realeza (idem, p. 97), acusando a
Revolução inclusive de corromper o comportamento do povo na medida em que
estendia a toda a população as “funestas corrupções que geralmente eram taras apenas
de ricos e poderosos” (idem, p. 73). Burke elencava, já dois anos antes da fase mais
crítica do “terror”, algumas das primeiras consequências observáveis daquela
sublevação: “leis não cumpridas e tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o
comércio se extinguindo; impostos não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a
Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isso; a anarquia civil e militar...”
(idem, p. 74). Em tudo isso, Burke via a concretização das ideologias da dita
“ilustração”, elaboradas por “pioneiros que demoliram e abaixaram tudo ao nível de
seus pés” e que, não obstante instigassem o povo às armas, “não derramaram uma só
gota de sangue para o país que arruinaram” (ibidem).

Mostrando-se sempre cético com relação ao novo estado de coisas na França, o autor
manifesta também, ainda no início do texto, seu desejo de que a França seja “animada
de um espírito de liberdade racional”, bem como suas “dúvidas sobre vários pontos
importantes de suas últimas operações.” (BURKE, 1997, p. 48). Em sua carta-resposta
que acabou se tornando um tratado de filosofia política, Burke deixou claro que o seu
parecer não pretendia representar nenhum partido inglês e que, se cometesse erros de
15

julgamento, estes seriam de sua “inteira responsabilidade” (ibidem). Com isso, procurou
dar um caráter de análise apartidária às suas considerações, sem deixar de admitir que,
além de seus desejos de liberdade e prosperidade para a França, motivavam-no suas
preocupações a respeito das consequências da Revolução Francesa para o Reino Unido,
uma vez que as ideias oriundas da nação gaulesa influenciavam a Grã-Bretanha e vários
outros países (idem, p. 103).

Na Inglaterra, duas entidades promotoras dos ideais da chamada Revolução Gloriosa,


ocorrida em 1688, apoiavam o regime da Assembleia Nacional francesa e começaram a
difundir princípios jacobinos na Grã-Bretanha. A reverberação dos discursos
revolucionários em solo inglês inquietava Burke, que temia que a ideologia estrangeira
afetasse a percepção do povo britânico a respeito de suas próprias instituições. Na
missiva, o autor como que procura convencer seu interlocutor de que a aprovação de
tais clubes britânicos à Revolução Francesa não representava o parecer do parlamento e
tampouco a maioria dos ingleses. A Assembleia Nacional francesa, no entanto, recebera
tais declarações favoráveis a ela como se aquelas atestassem a aprovação do Reino
Unido ao novo estado de coisas na França, razão pela qual Burke queria mostrar que a
importância atribuída àquelas moções de apoio redundava numa impostura de ambas as
partes, isto é, uma “fraude” (BURKE, 1997, p. 50).

1.1 A presciência de Burke

Há comentadores, como Cobban (1960, p. 11), que ressaltam a clarividência e a


presciência de Burke, atribuindo-lhe certo “profetismo” que lhe permitiu antever, já em
1790, as consequências futuras do processo revolucionário gaulês. Aos abusos de poder
que observara já então, Burke classificou ironicamente3 como um “esboço” das
barbáries que estavam por vir:

Esboçou-se, sem dúvida, com audácia, uma série de regicídios e de sacrílegos


atentados, mas foi apenas esboçada. Infelizmente, restou inacabado, no
grande quadro da história, o massacre dos inocentes. Veremos mais tarde
qual lápis endurecido de um grande mestre da escola dos direitos do homem
o terminará. (BURKE, 1997, p. 98).

3
O recurso à ironia é frequente ao longo da obra Reflexões sobre a Revolução em França, especialmente
quando o autor intenta criticar conceitos do pensamento iluminista, como “os direitos do homem”, a
conduta revolucionária francesa ou seus adeptos britânicos.
16

A violência insólita do chamado Reino do Terror, que durou da queda dos girondinos,
em 1792, à prisão de Robbespierre, em 1794, mais que confirmou as advertências de
Burke. E, se a Revolução sustentou o princípio da “igualdade” em algo, certamente o foi
na aniquilação de dissidentes, executando pessoas de origens e profissões muito
distintas: de camponeses a aristocratas, de monjas a cientistas, como o próprio Antoine
Lavoisier, pai da química moderna, cuja vida também teve seu desfecho na guilhotina.

Nos anos do terror revolucionário, os crimes da ditadura de Robespierre marcaram a


história da França: os afogamentos de Nantes (Noyades), o massacre de Vandée e as
cerca de dezessete mil execuções na guilhotina, na qual decapitaram desde os opositores
manifestos da Revolução, incluindo os nobres (entre eles, o próprio rei Luís XVI), até as
inofensivas monjas carmelitas de Compiégne4. Otto Flake menciona também o
morticínio desenfreado de Jean-Baptiste Carrier (FLAKE, 1937, p. 187), um
revolucionário que ficou famoso por sua crueldade, sobretudo contra os clérigos, e pelos
abusos sexuais que cometia contra algumas vítimas antes de executá-las. A Carrier é
atribuída a invenção do método de execução denominado “casamento republicano”, o
qual consistia em amarrar duas vítimas nuas, uma defronte a outra (e, às vezes, padres
com freiras, para zombar de sua castidade), para depois atirá-las no rio Loire.

De acordo com Messori (2004, p. 65), três mil padres teriam sido assassinados pelo
governo revolucionário, muitas religiosas violadas e torturadas até a morte e dezenas de
camponeses esquartejados, sobretudo na província de Vandée, onde os católicos haviam
organizado uma resistência armada, bem como nas demais localidades que se opuseram
ao totalitarismo revolucionário a fim de preservar suas tradições. Há historiadores que
consideram o massacre de Vandée como o primeiro genocídio da história moderna
(ibidem), uma antecipação jacobina e anticristã da “solução final da questão judaica”
implementada pelo governo antissemita do Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães no século XX. Em todas as regiões alcançadas pela cólera
revolucionária jacobina, inclusive em terras italianas, podem ter havido massacres ou
perseguições aos crentes (MESSORI, 2004, p. 66).

4
A memória do martírio delas foi perpetuada pela beatificação da Igreja, pelo romance histórico de
Gertrude Von Le Fort (A Última ao Cadafalso) e pela peça de teatro de Georges Bernanos (Diálogo das
Carmelitas), a partir da qual produziu-se também um filme com o mesmo título da peça.
17

Quanto aos resistentes antijacobinos, sabe-se que organizaram, em algumas regiões da


França, milícias de reação ao totalitarismo ateu republicano semelhantes àquelas
formadas no México da década de 19205. Tais reações tiveram um caráter amplamente
religioso e popular, de maneira que a resistência era composta majoritariamente por
pessoas do campesinato, i. e., milícias de plebeus movidos pelo desejo de conservar sua
fé, sua liberdade, seus costumes tradicionais e sua cultura cristã-católica (MESSORI,
2004, p. 66). Os combatentes católicos traziam, em seus casacos, pedaços de pano
costurados com a imagem devocional do Sacre Coeur de Jésus, assim como em seus
estandartes.6 O lema dos resistentes de Vandée era Dieu et le Roy (“Deus e o Rei”), uma
vez que desejavam também a restauração da monarquia, provavelmente por
compreenderem esta forma de governo como uma maneira de assegurar a conservação
da religião e de todo o legado cultural cristão da França.

A resposta da Paris jacobina e revolucionária aos resistentes foi a destruição de suas


casas e edifícios públicos, a devastação de suas colheitas e o extermínio de inocentes,
inclusive mulheres e crianças. Terminada a guerra,

o general jacobino Westermann escrevia triunfalmente a Paris, ao Comitê de


Salvação Pública, aos adoradores da deusa Razão, da deusa Liberdade e da
deusa Humanidade: “A Vendée já não existe, cidadãos republicanos! Foi
morta pela nossa livre espada, com suas mulheres e crianças. Acabo de
enterrar um povo inteiro nos pântanos e nos bosques de Savenay.
Executando as ordens que me haveis dado, esmaguei as crianças sob os
cascos dos cavalos e massacrei muitas mulheres, que assim não poderão
parir mais bandidos. Não tenho que lamentar nenhum prisioneiro.
Exterminei todos.” Da parte de Paris, responderam elogiando a diligência
posta em “purificar completamente o solo da liberdade desta raça maldita”.
(MESSORI, 2004, p. 68, tradução nossa)7.

5
Quando houve uma reação popular às perseguições anticatólicas do governo mexicano que levaram à
chamada Guerra Cristera ou Cristiada.
6
Note-se que estes dados históricos apresentados por Messori contrariam tanto os historiadores marxistas
que afirmam que a reação ao terror revolucionário partiu de uma Igreja e de uma nobreza ávidas por
preservar privilégios do Antigo Regime, quanto a concepção marxiana segundo a qual os grandes
empreendimentos históricos teriam sempre motivações socioeconômicas de fundo.
7
el general jacobino Westermann escribía triunfalmente a París, al Comité de Salud Pública, a los
adoradores de la diosa Razón, la diosa Libertad y la diosa Humanidad: “¡La Vendée ya no existe,
ciudadanos republicanos! Ha muerto bajo nuestra libre espada, con sus mujeres y niños. Acabo de
enterrar a un pueblo entero en las ciénagas y los bosques de Savenay. Ejecutando las órdenes que me
hábeis dado, he aplastado a los niños bajo los cascos de los caballos y masacrado a las mujeres, que así
no parirán más bandoleros. No tengo que lamentar ni un prisionero. Los he exterminado a todos.” Desde
París contestaron elogiando la diligencia puesta en “purgar completamente el suelo de la libertad de
esta raza maldita”.
18

A propaganda iluminista contra a aristocracia e contra a Igreja não se limitava à


realidade dos fatos, mas criava factoides para instigar os rebeldes contra seus
adversários. De acordo com Carvalho (2007), os iluministas promoveram uma “vasta
campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios
inescrupulosos disponíveis”. Cita como exemplo o notável enciclopedista iluminista
Diderot, que fabricou a história de uma jovem noviça (La Religieuse) mantida na
clausura de um mosteiro contra a sua vontade. Com o intuito de gerar revolta contra
uma Igreja que era capaz de oprimir e manter moças inocentes cativas nos porões de um
convento, Diderot difundiu esta ficção como se fosse um relato verídico. Em carta a
Jacob Grimm, o enciclopedista teria dito que “estourava de rir” ao fazer tantos
acreditarem na veracidade daquele embuste e se escandalizarem com ele. Em
decorrência de falácias como essa, os revolucionários jacobinos puderam revestir de
sentimentos humanitários o seu furor homicida ao exterminar tantos religiosos e
religiosas durante a Revolução.8

No momento em que Burke escreve as Reflexões, as perseguições anticlericais violentas


ainda não haviam começado (ou, pelo menos, o autor ainda não havia tomado
conhecimento delas), mas o novo regime francês já havia feito mudanças estruturais e
intervenções despóticas na Igreja. E o deputado irlandês vislumbrava, com clareza, qual
era a finalidade daquelas medidas políticas:

O poder atual da França, entretanto, tem como principal preocupação a


pilhagem da Igreja. [...] Em resumo, senhor, parece-me que essa nova
estrutura eclesiástica será temporária e visa à destruição completa da religião
cristã sob todas as suas formas, na época em que os homens estiverem já
preparados para este último golpe. (BURKE, 1997, p. 150-151).

E o que prepararia os homens da França para as formas mais extremas de abuso de


poder seria a corrupção cultural-ideológica da sociedade, a dissolução dos princípios
mantenedores da estabilidade social. Uma sabotagem que se efetivaria substituindo, por
exemplo, a antiga lealdade pelo crime preventivo:

8
Em 1966, o cineasta Jacques Rivette transformou o embuste de Diderot em um filme de sucesso. E em
2013 foi lançada uma nova versão de La Religieuse para o cinema, dirigida por Guillaume Nicloux.
19

A usurpação que, a fim de subverter as antigas instituições, destruiu os velhos


princípios, conservar-se-á no poder por meios semelhantes àqueles pelos
quais o obteve. Quando estiver extinto da mente dos homens o velho espírito
feudal da Lealdade9, que, ao liberar os reis do medo, liberou, ao mesmo
tempo, os reis e seus súditos das precauções contra a tirania, os complôs e os
assassinatos serão evitados pela morte preventiva e pela confiscação
preventiva e pela aplicação daquela longa lista de máximas sinistras e
sanguinárias que formam o código político do poder, o qual não repousa em
sua própria honra, nem na honra daqueles que devem obedecê-lo. (BURKE,
1997, p. 102).

1.2 O realismo burkeano

O autor das Reflexões percebia o potencial destrutivo das ideologias utópicas que,
movidas por um “sentimento de humanidade abstrato”, prometem um “benefício futuro
e incerto” a pessoas que só existem idealmente, em troca de submeter os cidadãos
concretos do presente a verdadeiras “calamidades” (BURKE, 1997, p. 9). De acordo
com Russel Kirk (2005, p. 3), Burke era um homem que preferia a particularidade, o
concreto e o experimentável, mas que, diante do triunfo das ideias deletérias dos
philosophes10 iluministas, não teve outra escolha senão entrar na discussão dos
princípios abstratos da política, ainda que lhe aborrecesse o domínio da abstração. Em
geral, as obras políticas conservadoras surgem como reação à ascensão da mentalidade
revolucionária e são produzidas com certa relutância, atesta Kirk (2013, p. 133).

Burke tinha uma visão bastante modesta e, podemos dizer, realista, a respeito da
capacidade da razão humana. Em sua perspectiva, a reflexão de pensadores
contemporâneos, por mais inovadora, atraente e promissora que seja, vale muito menos
que a razão legada pela tradição. A razão inovadora seria, portanto, menos digna de
consideração do que a razão tradicional. Isso porque esta última é o produto da reflexão
testada pelo tempo, confirmada por experiências que atravessaram os séculos e
qualificada por homens prudentes de muitas gerações diferentes. Destarte, suprimir
modelos institucionais e culturais que já foram testados e aprimorados por várias
gerações a fim de substituí-los por incertos projetos brotados das “frágeis e falíveis

9
Valor que funcionava, quando respeitado, como sustentáculo da sociedade medieval, como base dos
vínculos e responsabilidades mútuas entre as classes sociais feudais.
10
Palavra francesa para “filósofos”, usada geralmente para designar os autores iluministas que nem
sempre eram propriamente dedicados à filosofia, mas escreviam sobre temas gerais de humanidades.
20

invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) não parecia uma opção viável para o
espírito um tanto cético do autor.

O filósofo irlandês considerava demasiadamente pretensiosos os intelectos isolados e


modernos que aspiravam, a partir de suas especulações teóricas, conhecer perfeitamente
e fazer valer os “direitos dos homens”, construindo uma nova ordem política baseada
neles. Burke acreditava que os direitos humanos devem ser reconhecidos “não em
virtude de princípios abstratos” (BURKE, 1997, p. 68), mas pela recepção de um
patrimônio de valores civilizacionais derivados de uma Lei natural reconhecida e
confirmada pela sabedoria e pela experiência dos antigos. Sua percepção da falibilidade
da razão humana, uma marca característica do pensamento conservador, fez dele um
implacável adversário daqueles que prometiam elaborar um paraíso na terra, de acordo
com Kirk (2005, p. 4).

Guillermo Margadant afiança um “rechaço total”, da parte de Burke, às fórmulas


abstratas com pretensão de validade absoluta na política. Para ele, o filósofo quis
“expulsar da política todo dogmatismo que tenda a uma aplicação mecânica, cega, de
alguma teoria abstrata” (MARGADANT, 1994, p. 117, tradução nossa)11. Isso porque o
pensador irlandês atentava para o fato de que os promissores modelos políticos que tais
teóricos propagandeavam muitas vezes implicavam em altíssimos e inaceitáveis custos
humanos, sociais e culturais, como se observou na própria Revolução Francesa.

O valor dos princípios gerais e das instituições, para o autor, é circunstancial, não
absoluto. As circunstâncias de cada tempo e situação devem ser avaliadas para que os
princípios gerais que norteiam a ação política não sejam aplicados inadequadamente.
Para Burke, até mesmo os melhores e mais nobres princípios não podem ser
absolutizados desconsiderando as circunstâncias concretas e as consequências de sua
aplicação em cada caso. Não se trata, evidentemente, de ver os princípios e as
instituições como coisas sempre provisórias e relativas – Burke acreditava na solidez e
na durabilidade de muitos deles –, mas sim de lhes dar a adequada e devida aplicação:

11
expulsar de la política todo dogmatismo que tienda a la aplicación mecánica, ciega, de alguna teoría
abstracta
21

São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que,


na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito
particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou
nocivos à humanidade. (BURKE, 1997, p. 50).

Para legitimar a sua casuística – a sua apologia ao exame dos casos particulares –,
Burke usa os exemplos do governo e da liberdade; uma instituição e um princípio que,
não obstante sejam considerados geralmente como bens, nem sempre podem ser matéria
de felicitações, uma vez que não são bons em toda e qualquer circunstância:

Falando-se em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom; no


entanto, há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França
por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemão, inquirido o
que era este governo e de que maneira funcionava? Posso hoje felicitar esta
nação por sua liberdade? A liberdade é, sem dúvida, em princípio, um dos
grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seriamente felicitar um
louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudável obscuridade de sua cela,
por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um
assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisão, por terem readquirido
seus direitos naturais? (BURKE, 1997, p. 50-51).

1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária

O filósofo avalia que certas posturas que pautavam a ação dos revolucionários na
França deveriam ser desterradas da política, a fim de evitar males que podem levar uma
nação inteira ao colapso e prejudicar muitas gerações à frente. Algumas delas seriam: a
ousadia aventureira, o racionalismo excessivamente otimista e pretensioso, o
progressismo imoderado e irrefletido, o lidar com os bens públicos de modo arriscado e
imprudente, o desprezo pelos costumes e instituições históricas, a falta de circunspecção
e de um juízo equilibrado. São posturas motivadas por ideologias inovadoras que os
revolucionários aplicam ao que é comum, público, mas que provavelmente não
aplicariam ao lidar com suas importâncias pessoais: “Aí eles deixam o todo à mercê de
especulações não experimentadas; abandonam os mais caros interesses do público
àquelas vagas teorias, às quais nenhum deles sonharia confiar o menor de seus
interesses privados.” (BURKE, 2012, p. 365).

A própria composição da Assembleia Nacional francesa incomodava o deputado


irlandês, que lamenta a impetuosidade, a insensatez e a imponderação de seus membros.
Burke vê o poder político deste órgão, configurado para perseguir as metas do regime
22

revolucionário, como um poder “semelhante ao princípio do mal, de subverter e


destruir” (BURKE, 1997, p. 95), ou uma espécie de oficina de demolição e sabotagem
institucional, elaborada para demolir tudo o que fosse resquício do antigo regime, e
incapaz de “construir algo diferente das máquinas que fabricam maiores subversões e
destruições” (ibidem). O filósofo acusa a mentalidade revolucionária de querer adaptar,
à força, o mundo real a seus projetos ideológicos, como se houvesse, da parte daqueles,
uma aversão à realidade ou como se quisessem aprisionar a realidade em seus conceitos,
algo que, mesmo antes da Revolução, a propaganda iluminista já fazia na medida em
que se empenhava para estigmatizar o sistema vigente, cobrindo-o de descrédito12.

Burke reprova, deste modo, as posturas políticas que ignoram a realidade da


“composição real de um Estado” e dos “princípios públicos” de uma sociedade no
intuito de fazê-la encaixar-se, na marra, em esquemas teóricos extremistas (1997, p. 92).
E critica também o projeto iluminista de uma Educação Cívica destituída de valores
religiosos e “fundada em um conhecimento das necessidades [meramente] físicas dos
homens” (BURKE, 2012, p. 342). Para o autor, semelhante educação não seria capaz de
cultivar nos educandos nada mais do que um “egoísmo iluminado” (ibidem).

Indignava-o, sobretudo, o desprezo dos revolucionários pelos valores morais e


religiosos que plasmaram a história da França e a tornaram a nação que fora até a Queda
da Bastilha. Para o parlamentar irlandês, espezinhar a história, a cultura e os princípios
espirituais de um povo pacífico, em favor de um “progresso” violento que supostamente
teria o potencial para dar à luz uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária, é uma
atitude demasiado pretensiosa, uma maquinação nociva engendrada por pessoas que
consideram “um país como se fosse uma tábula rasa onde pudessem escrever aquilo que
melhor lhes convém” (BURKE, 1997, p. 157). Tendo em vista aquelas arbitrariedades,
apesar da aparência de “democracia pura” que revestia a autoridade então vigente na

12
Na historiografia brasileira, há registros dos anos anteriores e imediatamente posteriores à Proclamação
da República (instaurada em 1889) que mostram a ocorrência, no Brasil, de campanhas semelhantes de
depreciação do regime monárquico-parlamentarista. Recorde-se, ainda, que o Brasil teve também a sua
própria Vandée: no episódio que ficou conhecido como Guerra de Canudos, a população monarquista do
vilarejo baiano de Belo Monte foi massacrada pelo exército republicano. Analisando as razões
ideológicas que levaram o governo da república a dar ao povo de Belo Monte esse trágico desfecho,
compreende-se por que o historiador Boris Fausto classificou os republicanos brasileiros da época como
“jacobinos” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1995. p. 257-258).
23

França, o filósofo sugeriu que ela se tornaria, em breve, “uma ignóbil e malévola
oligarquia” (BURKE, 1997, p. 135).

A excessiva concentração de poder num grupo político deliberativo que reúna


atribuições legislativas, executivas e judiciárias, como parecia ser o caso da Assembleia
Nacional, também foi criticada pelo autor. Embora se pretendesse uma instância
representativa dos cidadãos franceses, guiada pelas “luzes” da ilustração filosófica e
conduzida sob a égide dos “direitos do homem”, o poder quase ilimitado da Assembleia
dava-lhe ocasião para os erros e abusos que abundavam. Por isso, o deputado irlandês, a
respeito daquela poderosa entidade, lastimava:

não tem nada que a possa frear: nem a lei fundamental, nem convenção
estrita, nem costume respeitado. Ao invés de ser obrigada a respeitar uma
Constituição estabelecida, ela tem o poder de elaborar uma que seja conforme
seus objetivos. Não há nada, nem no céu nem na terra, que possa controlá-la.
(BURKE, 1997, p. 78).

Encontra-se também na missiva várias advertências a respeito ao risco de se conferir


poder a homens que instrumentalizem o Estado para se servirem dele, tendo em vista
não o bem comum, mas seus próprios “interesses particulares” (BURKE, 1997, p. 77).
O filósofo atenta para as “negociatas lucrativas que acompanham sempre as revoluções
no Estado, e sobretudo as grandes e violentas transferências de propriedade.” (ibidem).
Burke não pensa, contudo, que todos os revolucionários são sempre movidos pela
ambição e por interesses pecuniários. Mas certamente considerava que aqueles que
acreditam, sincera e honestamente, nas promessas da revolução, iludem-se ao pretender
criar um governo simples norteado por princípios simples, uma vez que “a natureza do
homem é complicada”, e os “objetivos da sociedade”, a política, a gestão da res pública,
revelam-se, na realidade, atividades “da maior complexidade”. (BURKE, 1997, p. 90).

Por conseguinte, o filósofo recomenda que as funções públicas de maior importância


sejam exercidas por pessoas “de espíritos mais assentados e de inteligências mais
abrangentes.” (BURKE, 1997, p. 77). Ao passo que deplora as consequências práticas
das ideias iluministas, Burke ufana-se por a Grã-Bretanha não ter sido, até então,
influenciada significativamente por elas. Além disso, critica, naquelas, a pretensão de
terem revelado grandes verdades e princípios até então inéditos:
24

Não fomos convertidos por Rousseau; não somos discípulos de Voltaire;


Helvetius não teve sucesso entre nós. Nossos pregadores não são ateus; nem
nossos legisladores loucos. Sabemos que nós não fizemos descoberta alguma;
e julgamos que não há descobertas a serem feitas no campo da moral, nem
tampouco no campo dos grandes princípios do governo e das ideias de
liberdade; que eram compreendidos bem antes de nascermos e que
continuarão a ser até muito depois que a terra tiver se acumulado sobre a
sepultura de nossa presunção e o silêncio do túmulo tiver se imposto sobre a
nossa impertinente loquacidade. (BURKE, 1997, p. 107).

Como se percebe, Burke não via sequer sinais de reta intenção na prática dos
revolucionários; ou, pelo menos, não na prática dos dirigentes deles. Pelo contrário, o
pensador irlandês, em diversos trechos de suas Reflexões, parece convencido da má-fé
dos jacobinos que lideravam as mudanças na França. Considera a Assembleia Nacional
francesa como nada mais que “uma associação voluntária de homens que se aproveitam
das circunstâncias para tomar o poder do Estado” (BURKE, 2012, p. 363).

O autor ainda ajuíza que a recusa dos jacobinos a recorrer aos “métodos regulares” para
sanar as desordens políticas comuns do antigo regime fora uma escolha derivada “não
só de um defeito de compreensão, mas [...] de alguma malignidade de disposição.”
(BURKE, 2012, p. 371). Embora não negasse que certas mudanças do novo regime
traziam “melhorias superficiais” aos franceses (idem, 1997, p. 221), o filósofo chama
mais a atenção para as violências e “erros fundamentais” da Revolução cujos dirigentes,
em seu parecer, “tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, e,
ao mesmo tempo, fingem querer transformá-la no receptáculo de todo o poder.” (idem,
p. 86).
25

2 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS

Este segundo capítulo dedica-se a explorar as noções antropológicas e ético-metafísicas


fundamentais que sustentam a visão política de Burke. Apresentaremos algumas das
principais asserções filosóficas e crenças que serviram de esteio à cosmovisão burkeana,
mormente à sua concepção de uma Ordem inerente à natureza do mundo e do homem.
Natureza esta que, embora esteja radicada na essência de ambos, é passível de ser
contrariada ou subvertida pelo último, no entendimento do autor.

A concepção de uma Ordem cosmológica estável que pode e deve plasmar a


artificialidade das sociedades humanas, inclusive o Estado, está, notavelmente, na base
da filosofia política de Burke. Neste sentido é que o autor fala de uma “prodigiosa
sabedoria que preside à misteriosa coesão das sociedades humanas” (BURKE, 1997, p.
69). E é patente a sua convicção de que as instituições legais do Reino Unido, naquele
final do século XVIII, correspondiam satisfatoriamente – embora não perfeitamente –
àquela ordem natural e àquelas necessidades humanas mais legítimas e caras às famílias
britânicas. Dessa dupla correspondência é que procedia, no entendimento do autor, a
solidez do seu sistema político, que era tradicional e monárquico sem ser absolutista,
pois preservava a coroa, a nobreza e, ao mesmo tempo, as liberdades comuns e os
direitos caros ao povo, graças ao seu caráter constitucional e parlamentarista bicameral.

Em decorrência daquela dupla correspondência, Burke acreditava que o núcleo do


sistema do Reino Unido era capaz de se perpetuar “em meio às decadências, quedas,
renovações e progressos” (BURKE, 1997, p. 69). Entretanto, tal confiança não
significava que Burke via-o como algo acabado e completo, nunca necessitado de
melhorias e reformas. Pelo contrário, a mesma possibilidade de ser aprimorado, sem que
perdesse o que nele permanecia proveitoso, o tornava mais adequado àquela Natureza e
àquelas necessidades e afetos caros às famílias britânicas:

Assim, pelo emprego de métodos da natureza na conduta do Estado, aquilo


que melhorarmos não é nunca completamente novo, e aquilo que
conservarmos não é nunca completamente velho. Permanecendo ligados a
nossos ancestrais, não é pela superstição da antiguidade que nos deixamos
conduzir; mas pelo sentimento da analogia filosófica. Adotando este
princípio da herança, demos à nossa construção política a imagem de um
parentesco pelo sangue; ligamos a nossa Constituição a nossos mais caros
vínculos domésticos, dando a nossas leis fundamentais um lugar no seio de
nossas afeições de família. (BURKE, 1997, p. 69).
26

2.1 Visão antropológica restrita

Dentre as concepções que sustentam a lógica subjacente ao edifício teórico político de


Burke, sobressai uma “visão restrita” acerca da natureza do ser humano, identificada
nos textos do filósofo por comentadores como Thomas Sowell (2011). Trata-se de uma
visão restrita não no sentido de “limitada” ou de “particularizada”, mas no sentido de
“realista”, de “desiludida”, uma visão antropológica livre de ilusões e otimismos pouco
razoáveis em relação à nossa espécie. Esta visão antropológica restrita desconfia das
capacidades da razão humana e espera a priori que haja vícios na conduta dos cidadãos
e de seus representantes políticos, independentemente da configuração de Estado ou de
sociedade que se queira adotar. Nessa perspectiva se inserem as considerações do
filósofo sobre as “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69)
bem como sua noção de uma “enfermidade geral da natureza humana” (BURKE, 1877c,
p. 437, tradução nossa)13, uma enfermidade entendida não apenas como fragilidade
biológica, mas também como deficiência ética e epistemológica.

A desilusão antropológica inerente a esta visão conservadora se contrapõe, por exemplo,


ao pensamento de Jean Jacques Rousseau, para quem a natureza humana, sendo
essencialmente virtuosa e irrestrita, fora corrompida pela sociedade. Na lógica da
antropologia irrestrita, a natureza humana é dotada de uma plasticidade e de uma
perfectibilidade naturais. Logo, sendo ela plástica, o Estado revolucionário poderia
remodelá-la para que ela tornasse a ser tão virtuosa quanto era no seu estado original. E,
sendo ela perfectível, o Estado poderia eliminar os elementos da sociedade que a
corrompem, dirigir o seu aperfeiçoamento e, assim, chegar a uma solução final para os
problemas e injustiças sociais. Portanto, procedimentos de engenharia social e
reconfiguração forçada da mentalidade das massas poderiam, nessa ótica, tornar a
sociedade mais justa e virtuosa. E parece ter sido isso o que o regime instaurado após a
Revolução Francesa procurou fazer ao tentar suprimir os traços da influência
aristocrática e eclesiástica na cultura comum, banindo não só as tradições da nobreza e
as festas religiosas, mas até mesmo o calendário gregoriano e os dias da semana.

No horizonte da visão irrestrita combinada com a ideologia revolucionária, pode ser


acatado como vantajoso um projeto político que prescreva grandes sacrifícios iniciais
13
general infirmity of human nature
27

em prol de benesses futuras. Nessa perspectiva, podem parecer aceitáveis até mesmo os
sacrifícios mais violentos, como eliminar os adversários, calar os dissidentes e destruir
algumas instituições apreciadas pelo povo. Esta visão irrestrita da humanidade, no que
toca à plasticidade e à perfectibilidade que ela atribui ao homem, favoreceu o caráter
utópico e totalitário da Revolução Francesa, de acordo com Sowell (2011, p. 40). Uma
antropologia irrestrita, além de dar ocasião ao surgimento de ideologias utopistas,
facilitaria a legitimação de líderes políticos com pretensões absolutas que são
apresentados como a encarnação das “virtudes naturais” do homem.

Na contramão da mentalidade revolucionária irrestrita, a filosofia política conservadora


advoga que a busca quimérica por um estado de perfeição terrena esbarra não só nas
imperfeições intelectuais dos homens, que os tornam incapazes de alcançar aquele
estado, mas também nos conflitos de interesses que frequentemente se dão nos
relacionamentos humanos. Conflitos existentes não apenas entre as diferentes classes,
mas inclusive entre famílias de uma mesma classe e, eventualmente, entre indivíduos de
uma mesma família. Nesta compreensão, reconhecer a imperfeição intelectual humana,
bem como nossa falibilidade natural e a pluralidade de interesses dos diversos tipos de
cidadãos, requer que o estadista adote uma conduta humilde, prudente, conciliadora e de
rechaço às tentações utópicas e totalizantes.

Burke observava que as deficiências presentes nas instituições humanas não são outra
coisa senão o reflexo amplificado das deficiências presentes na própria natureza de cada
homem. O filósofo dublinense acreditava que o bom estadista deve ter a imperfeição
humana como premissa e levá-la em conta na gestão dos bens públicos. Tomando os
homens por criaturas irremediavelmente restritas, naturalmente marcadas por impulsos
egoístas e às vezes perigosos14, Burke pensava que o Estado deve lidar com os
interesses conflitantes adotando estratagemas sociais e oferecendo contrapartidas, em
vez de pretender suprimi-los à força (cf. BURKE15 apud SOWELL, 2011, p. 29).
Importa, ainda, que, visando à preservação de bens fundamentais, como a liberdade, o
Estado tenha certo grau de tolerância para com os defeitos humanos, mesmo quando

14
Não se trata, porém, de uma visão similar à do estado de natureza hobbesiano, no qual, sem a força
coercitiva do Estado, imperam o caos e a guerra de todos contra todos. Não. Neste ponto, Burke se
aproxima mais do conceito cristão de concupiscência, que denota uma inclinação do homem para o
egoísmo, adquirida no pecado original, mas que pode ser refreada pela vontade individual aliada à Graça.
15
The Correspondance of Edmund Burke. Chicago, University of Chicago Press, 1967, v. VI, p. 392
28

estes geram certos prejuízos sociais. Neste sentido, dizia que quem “tem de lidar com
homens” (BURKE, 2012, p. 336) deve aprender a suportar as deficiências humanas até
que elas ultrapassem os limites de uma justa aceitação, ou seja, deve “tolerar fraquezas
enquanto elas não degeneram em crimes.” (ibidem).

Na opinião do autor, um estadista prudente deve saber oferecer compensações viáveis


aos cidadãos insatisfeitos, em vez de se aventurar a perseguir grandes projetos
arriscados que exigem, muitas vezes, altos custos e acarretam males piores do que
aqueles que se pretendia combater. Fatalmente, as contrapartidas e concessões feitas
para aplacar insatisfações circunstanciais podem, por sua vez, gerar novos problemas e
exigir algumas renúncias.16 Por isso, o filósofo avalia que exercer a política implica em
“contrabalancear” bens e males e em “computar” as “quantidades morais” em jogo
(BURKE, 1997, p. 91). Desafios novos surgem sempre e o estadista deve seguir
procurando conciliar interesses, agradar as diversas partes dentro do que for possível, e
melhorar a sociedade sem afoitezas e sem a pretensão de resolver todos os problemas de
uma só vez, de modo que ela se aprimore organicamente, como um sistema social que
nunca será perfeito para todos, mas que pode ser satisfatoriamente funcional.

Os males latentes nas invencionices mais promissoras são cuidados à medida


que vão surgindo. Uma vantagem é tão pouco quanto possível sacrificada a
uma outra.Compensamos, reconciliamos, equilibramos. Somos capacitados a
unir em um todo consistente as várias anomalias e princípios conflitantes que
se encontram nas mentes e negócios dos homens. (BURKE, 2012, p. 370).

2.2 Heranças greco-cristãs

As influências conceituais mais marcantes que formam a base ético-metafísica da obra


política de Burke certamente são clássicas, principalmente gregas, e cristãs, com notas
escolásticas. Os laços da cosmovisão burkeana com essas fontes são claros. Russel Kirk
recorda que Burke, em resposta aos intelectuais que então ganhavam destaque na
Europa, como Rousseau e Bentham, sustentava que “os primeiros princípios na esfera

16
O gozo do sossego público, por exemplo, exige certas renúncias no que tange à liberdade individual,
enquanto que o gozo das liberdades civis exige também, por sua vez, renúncias de outra ordem.
29

moral vem a nós através da revelação e da intuição e não das caprichosas especulações
de filósofos sonhadores.” (KIRK, 2005, p. 3-4, tradução nossa)17.18

Por “intuição”19, Burke compreendia a sensibilidade – não apenas no sentido sensorial,


mas também no de sensibilidade psicológica – que permite a captação do real pelo
intelecto. E por “revelação” Burke compreendia justamente aquele conjunto de crenças
e preceitos morais legados ao mundo ocidental pelo cristianismo. Embora acreditasse
que a política é mais uma ciência experimental do que um receituário de fórmulas a
priori a serem aplicadas pelo Estado (cf. BURKE, 2012, p. 223), o filósofo entendia que
a realização teleológica das coisas que são da ordem temporal e humana depende da sua
conformação com os princípios que emanam da Ordem eterna e divina.

Assim como o velho Platão e outros filósofos menos velhos do que ele, Burke concebe
uma ordem inteligível da qual a ordem sociopolítica deve ser sufragânea. Tal ideia se
expressa, por exemplo, na proposição de que uma sociedade pode aprimorar seu Estado
e suas instituições públicas na medida em que mantém seus vínculos com o “grande
contrato primitivo da sociedade eterna” (BURKE, 1997, p. 116), contrato este que “liga
o visível ao invisível” (ibidem) e encerra os princípios supremos que regem a ordem da
criação. Em Burke, o exercício legítimo do poder político tem que estar de acordo com
“aquela lei eterna e imutável na qual vontade e razão são a mesma coisa” (BURKE,
2012, p. 269), o que nos sugere já uma influência tomista, visto que, em Tomás de
Aquino, a vontade de Deus coincide necessariamente com a Sua inteligência20.

Joseph Pappin (1993, p. 53) também identifica marcas da tradição aristotélico-tomista


em Burke e o insere na linhagem dos realistas clássicos, embora admita que o
pragmatismo burkeano permite ao leitor encontrar nele também abordagens que se
aproximam do utilitarismo. Não obstante sua aversão pela especulação teórica
absolutizadora de princípios abstratos e sua preferência pela evidência, pela
circunstância e pela experiência, Burke esteve longe de ser um anti-metafísico, sugere
Pappin (1993, p. 94). O filósofo irlandês apenas fazia a devida distinção entre as

17
first principles in the moral sphere come to us through revelation and intuition, not the fanciful
speculations of dreamy philosophers.
19
intuitive glance (Burke, 1877a, p. 456)
20
TOMÁS DE AQUINO. Seleção de Textos de São Tomás de Aquino e Dante. Col. Os Pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1988. Cap. 33.
30

abstrações artificiais produzidas pela imaginação humana e aquelas que, no seu


entendimento, são as verdadeiras fundações diretivas universais, constituídas na ordem
da criação para reger o universo e orientar a conduta do homem e as sociedades
humanas. Em outras palavras, Burke distinguia uma vã teoria baseada em abstrações
puramente convencionais do legítimo conhecimento da razão suprassensível que rege o
mundo (1997, p. 116).

Em Burke, a filosofia política não é uma atividade puramente especulativa, mas diz
respeito ao exercício da sabedoria prática. Em Aristóteles (Ética a Nicômaco, VI, 8), a
sabedoria prática é a genitora de toda reflexão ética e implica diretamente nas relações
sociais e políticas. Para o filósofo grego, a sabedoria prática e a ciência política, embora
essencialmente distintas por se dirigirem a objetos diferentes (a primeira, ao indivíduo,
e a segunda, à polis), aparecem como a mesma disposição mental; ambas aparecem
como razão aplicada ao modo de orientar a ação humana para atingir o bem, ou a
eudaimonia (felicidade), de onde se apreende a proximidade entre a compreensão
burkeana e a aristotélica no que tange à reflexão política.

Em Burke, Deus é o “Autor e Protetor da sociedade civil” (BURKE, 1997, p. 117), pois
Ele não apenas fornece as diretrizes para a reta ordenação da vida e das sociedades
humanas, mas, ao criar o homem com o potencial para organizar-se racionalmente em
sociedade, cria por extensão também o Estado. Burke reconhece que o Estado e a
sociedade são convenções humanas, mas também admite que o homem e sua razão são
apenas a causa imediata dessas convenções, sendo a Causa do homem a causa primeira
das mesmas. Logo, toda a autoridade política humana, inclusive a do cidadão, vem de
Deus; não por uma especial determinação divina, mas pelo simples fato de Deus ter
criado o homem como um animal político por natureza. Burke sustenta, assim, a ideia
de uma politicidade natural. E a noção burkeana da origem divina da política pode ter
sido inspirada pela escolástica tardia, segundo Canavan (2012, p. 26), uma vez que
Francisco Suárez21 a apresentou de forma elaborada nos primórdios da modernidade.

A posição de Burke sobre a origem divina da autoridade política humana, contudo, não
deve ser confundida com a teoria da origem divina do poder real de Jacques Bossuet22,

21
Filósofo escolástico espanhol do século XVI.
22
Teólogo francês nascido no século XVII.
31

pois difere fundamentalmente dela. Enquanto em Bossuet apregoa-se a eleição divina do


soberano como uma investidura espiritual especial, que dá margem inclusive para a
defesa do absolutismo monárquico, em Burke apenas é reafirmada a proposição de que
Deus criou o ser humano como um animal político (zoon politikón, definia Aristóteles)
e lhe delegou poder sobre a ordem temporal, fazendo-o capaz para o governo da criação
terrena. Note-se ainda que, para Burke, o Criador não abandonou os homens à própria
sorte após ter concluído a criação, mas continua lhes concedendo os “dons da
Providência” (1997, p. 69), isto é, continua a intervir favoravelmente nos assuntos
humanos quando estes o consentem.

Há em Burke também uma teleologia de inspiração aristotélica, como identificou


Canavan (2012, p. 29) e Pappin (1993, p. 94). Para o filósofo dublinense, o ser humano
tem em si o potencial para o seu próprio aperfeiçoamento, conforme a natureza que lhe
foi dada pelo Criador. E quanto mais o homem cultiva a sua racionalidade e permite que
ela predomine em todos os aspectos da vida, inclusive sociopolíticos, mais ele
permanece enraizado na natureza, mais ele se aprimora e mais se conserva em
correspondência com a sua Causa primeira, cujo bem é refletido nas criaturas
naturalmente boas. O próprio Estado, enquanto instituição produzida pela razão humana
e propícia ao aprimoramento da sociedade e dos cidadãos, deve nortear-se pela ordem
arquetípica constituída desde sempre por aquela sua Causa original. Disto resulta que,
em Burke, não é possível pensar um Estado irreligioso ou regulado por princípios
meramente seculares, uma vez que Deus é o governante e o legislador supremo pelo
qual devem pautar-se as sociedades humanas.

Embora preveja a possibilidade de um aperfeiçoamento não linear do ser humano e das


instituições humanas, a teleologia adotada por Burke se distingue do perfectibilismo
antropológico iluminista por diversas razões. Uma delas é que, em Burke, o homem não
é naturalmente virtuoso em seu estado primitivo, mas é naturalmente limitado,
defectível e, ao mesmo tempo, possui o potencial natural para o seu aperfeiçoamento.
Este potencial existe não só por causa de fatores intrínsecos, como as faculdades do
intelecto, mas também graças a fatores extrínsecos, como o estímulo da família e da
comunidade e a assistência do Criador. Ademais, na compreensão iluminista e irrestrita,
o aperfeiçoamento humano é possível graças à plasticidade do homem e deve ser
conduzido por dirigentes esclarecidos, por um Estado revolucionário que dirija os
32

cidadãos no sentido de fazer cada homem voltar a ser tão justo, livre e fraterno quanto
era o homem primitivo, levando-o a cumprir o seu papel para que todo o corpo social se
aperfeiçoe.

Por outro lado, em Burke, os homens e o tecido social que eles constituem não podem
ser aperfeiçoados pela direção de um Estado totalizante governado por uma elite de
intelectuais. O aperfeiçoamento é, na reflexão do pensador irlandês, fruto de um
processo espontâneo de desenvolvimento moral e espiritual da sociedade, que só é
capaz de evoluir neste sentido se mantiver os vínculos com a sua Origem divina, se
valorizar as experiências dos antepassados, aprendendo com seus erros e acertos, e se
conservar as instituições e os costumes benéficos recebidos da tradição; reformando-os
para melhorá-los, quando necessário, sem cismar em destruí-los. Ou seja, para Burke o
aperfeiçoamento humano é naturalmente possível, mas não é dirigível, não pode ser
conduzido artificialmente por dirigentes esclarecidos e estruturas governamentais.

A influência aristotélica no pensamento burkeano é perceptível também no


reconhecimento do papel dos hábitos na formação da conduta moral. Para Aristóteles,
“a virtude ética nasce do hábito”23. Na concepção ética de Burke, o hábito também
desempenha um papel importante, como podemos conferir na seguinte passagem das
Reflexões, que também manifesta a rejeição do autor pela proposta revolucionária
supracitada de moldar artificialmente os homens para aperfeiçoá-los: “não há nome,
poder, função, instituição artificial que possa fazer homens, que compõem um sistema
de autoridade, diferentes daquilo que Deus, a natureza, a educação e seus hábitos de
vida lhe fizeram.” (BURKE, 1997, p. 75) Na dimensão ética, haveria, ainda, certa
similaridade entre o arquétipo político platônico e o modelo de estadista burkeano,
sendo que tanto para Platão quanto para Burke, a prudência deve ser a maior das
virtudes do estadista (KIRK, 2013, p. 107). Vale lembrar, entretanto, que o modelo de
Estado idealizado por Platão distancia-se da política burkeana, entre outras coisas, pelo
caráter artificial e utópico do sistema que o filósofo grego propôs.

Na constelação das virtudes aristotélicas, figura também a magnanimidade, associada à


grandeza de espírito e ao cultivo das virtudes em alto grau. O filósofo grego sugere ser

23
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 1518.
33

ela “uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é encontrada
sem elas.”24 Em Burke, essa virtude também aparece de forma destacada no contexto de
um de seus discursos políticos e é elencada entre as virtudes que devem cultivadas pelo
estadista: “A magnanimidade na política é, não raramente, a verdadeira sabedoria”
(BURKE, 1877b, p. 181, tradução nossa)25. Burke ainda cita expressamente Aristóteles
(1997, p. 135) para expressar suas reservas em relação ao regime democrático; assunto
do qual trataremos no capítulo terceiro.

2.3 O jusnaturalismo burkeano

Apesar de algumas colocações de Burke aparentemente sugerirem que nada há de


superior, no campo do direito, à tradição jurídica constitucional britânica, o filósofo
certamente admite a existência de um direito natural anterior e superior a ela. A Lei da
natureza, para o autor, se manifesta e se implanta nas sociedades humanas por meio da
sabedoria prática das gerações, quando esta sabedoria se atualiza como o “efeito feliz de
uma conduta que imitou a natureza” (BURKE, 1997, p. 69), em vez de ser mero
artifício das “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (ibidem). Burke contrasta os
direitos herdados da tradição não com a Lei natural, mas sim com os “direitos dos
homens” (idem, p. 68), isto é, com os supostos direitos originais que os homens tinham
em seu estado primitivo, no sentido iluminista. Por isso, o filósofo defende a tradição
política na qual está situado; porque a compreende como penhor de direitos, leis e
valores sagrados fundados na natureza.

Russel Kirk (2005, p. 6) confirma que Burke rejeita a doutrina iluminista sobre os
direitos naturais do homem. O comentador recorda que as proposições de jusnaturalistas
célebres como John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham,
por exemplo, diferem significativamente do jusnaturalismo burkeano. Kirk afirma
também que Burke foi buscar numa tradição mais antiga a base para o seu
jusnaturalismo: na concepção de ius naturale (lei natural) do filósofo romano Marco
Túlio Cícero, bem como na filosofia cristã e na commom law inglesa, que surgiu no
século XII, sob o reinado de Henrique II, como um sistema jurídico-legal unificado. A

24
Ética a Nicômaco, IV, 3
25
Magnanimity in politics is not seldom the truest wisdom
34

noção de direitos humanos, em Burke, não tem a ver apenas com o que é devido ao
próprio homem, mas também, e em primeiro lugar, com o que é devido ao seu Criador.

Burke compreendia a Lei natural, da qual dimanam os legítimos direitos, como a


conformação do costume humano à intenção divina. Consequentemente, o deputado
whig atribuía os direitos e as liberdades dos quais os britânicos gozavam à assimilação
da Lei natural26 por seus antepassados e à influência benéfica da Revelação divina sobre
aquelas gerações precedentes, bem como à experiência acumulada e ao legado cultural e
institucional deixado por elas. É a estes direitos e valores herdados, sobretudo, que
Burke se refere quando escreve sobre o “legado que nós recebemos de nossos
antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade” (BURKE, 1997, p. 69). O
filósofo faz questão de defender que o legado de direitos comuns que beneficia os
britânicos sustenta-se “não em virtude de princípios abstratos” (idem, p. 68), mas
porque segue “funcionando segundo o padrão da natureza” (BURKE, 2012, p. 186).

Burke comunga da proposição de Cícero de que há uma Lei de procedência divina, da


qual deriva também o Direito. Esta Lei, sendo eterna e absolutamente justa em suas
determinações, vincula-se à própria “razão da Natureza” (CÍCERO, 1967, p. 42), alusão
também encontrada em Burke. Para o filósofo romano, contudo, a Razão natural que
concebe o Direito e a Lei suprema se permite acessar pelas “inteligências comuns” dos
homens (idem, p. 50). Mas, para Burke, os direitos naturais não nos são inteligíveis em
sua forma pura e integral; daí a necessidade que temos do auxílio da Revelação e da
experiência das gerações.

Nessa perspectiva, as sociedades humanas cujas leis mais se conformam àqueles


mandamentos revelados por Deus seriam as que mais respeitam a natureza e a
finalidade ontológica do gênero humano, uma vez que o Criador onisciente sabe o que é
melhor e mais adequado à natureza de sua criatura. Por si só, o homem não poderia
saber o que é melhor para si e mais adequado à sua natureza, uma vez que, como vimos,
sua capacidade de conhecimento é restrita, limitada e falível. Historicamente, as
tentativas das sociedades humanas de conformação ao mandamento divino teriam
gerado um legado de experiências cristalizado na forma das instituições, direitos
26
O conceito de Lei Natural, em Burke, deriva tanto do filósofo romano Cícero, quanto da filosofia cristã
de inspiração escolástica e paulina (Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo II, versículos 14 e 15).
35

reconhecidos e tradições. E estes são o fruto da “razão acumulada dos séculos, [que
afirma valores e promulga leis] combinando os princípios da justiça original com a
infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115).

Burke considera que os direitos positivos recebidos de uma longa e profícua tradição –
enraizada na Lei Natural e iluminada pela Revelação divina – são naturalmente mais
proveitosos aos cidadãos do que supostos direitos originais reclamados por racionalistas
ilustrados de uma única geração. Isso porque os “direitos originais do homem”,
elaborados a partir de princípios abstratos e de uma crença num idílico estado primitivo
da humanidade, não foram experimentados e testados, enquanto os direitos positivos
tiveram que ser amadurecidos, nuançados e equilibrados entre as reivindicações
conflitantes até chegarem à sua forma última. Assim, os direitos baseados na revelação
do Criador e na experiência (sabedoria prática) das gerações precedentes seriam
melhores, ainda, porque os direitos naturais da humanidade que os iluministas quiseram
elencar teoricamente sequer nos são acessíveis em sua forma pura:

Esses direitos metafísicos penetrando na vida comum, como raios de luz


penetram por um meio denso, sofrem, pelas leis da natureza, uma refração de
sua linha reta. De fato, na rudimentar e complicada massa de paixões e
preocupações humanas, os direitos primitivos do homem sofrem uma tal
variedade de refrações e reflexos, que se torna absurdo falar deles como se
continuassem na simplicidade de sua direção original. (BURKE, 2012, p.
224).

É possível, ainda, que a compreensão jusnaturalista de Burke seja um eco da noção de


Lei natural defendida por Tomás de Aquino. Para o filósofo escolástico, toda lei
estabelecida pelo homem só tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da
natureza, de modo que, se a lei positiva discorda da lei natural, deixa de ser lei e torna-
se uma corrupção da verdadeira lei.27 Certamente, a convicção de Burke nesta “lei
eterna e imutável” (1997, p. 115), ou na “natureza [que] nos ensina a reverenciarmos os
indivíduos” (idem, p. 70), poderia ter motivado, por exemplo, o engajamento do filósofo
na campanha contra a escravidão (cf. SOWELL, 2011, p. 221), ou nas denúncias contra
a abusiva taxação dos súditos da coroa inglesa que viviam nas colônias.

27
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 95, a.2.
36

3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA

Como já sinalizamos anteriormente, Burke acreditava que um estadista, para lidar com a
complexa arte da política, deve cultivar virtudes como a humildade, a magnanimidade e
a prudência. Tais são virtudes necessárias ao homem de Estado porque lidar com a
política implica em lidar com uma multiplicidade de interesses sociais conflitantes e
com os defeitos sociais provenientes das falhas próprias do que é humano. Nessa
dinâmica, a prudência tem um papel de destaque enquanto virtude política. Ela permeia
todas as proposições burkeanas que dizem respeito à gestão da coisa pública.

A prudência é a base da práxis conservadora. Burke a considera “a primeira de todas as


virtudes” (1877a, p. 314, tradução nossa)28. É a judiciosa prudência que recomenda
“seguir a natureza ao invés de nossas especulações” (BURKE, 1997, p. 70). Nos tópicos
seguintes, iremos apresentar algumas das principais proposições do autor nas quais a
prudência se sobressai enquanto virtude norteadora do agir político.

3.1 A experiência dos antepassados

Se a política é uma ciência prático-experimental, que não se faz por meio de prescrições
a priori (BURKE, 2012, p. 223), logo é sensato o estadista que dá mais crédito aos
dados resultantes das experiências políticas já realizadas do que às suas próprias
impressões pessoais. Burke avalia que, na ciência política, a experiência de longo prazo
é a que fornece os resultados mais adequados para um acurado discernimento. E a
experiência de vida de uma só geração não é bastante; é preciso considerar as
experiências dos que viveram antes de nós e que, não raramente, enfrentaram problemas
semelhantes aos nossos. O autor acredita que nada se perde por admitir que há uma
sabedoria acumulada subjacente à tradição cultural, moral e institucional que uma
geração recebe das anteriores.

Se fossem desprezadas totalmente as salutares tradições que compõem este vínculo


intergeracional, “os homens valeriam pouco mais que moscas de verão” (BURKE,
1997, p. 115), pois os frutos da experiência humana seriam tão fugazes quanto a vida de
cada geração sobre a terra. A civilização seria impossível se cada nova geração
28
the first of all virtues
37

desdenhasse absolutamente de tudo o que a geração anterior logrou construir e


conhecer. Por isso, o autor deplora a insensatez daqueles que pretendem “tudo refazer a
partir do nada” (idem, p. 71).

O filósofo irlandês ainda relaciona o respeito aos antepassados à responsabilidade que


se deve ter para com as gerações futuras. Valorizar ou desprezar o passado implica em
consequências para o futuro; como se escutar os mortos fosse algo crucial para garantir
a segurança daqueles que ainda estão por nascer. Em uma de suas acusações aos
jacobinos, Burke censura-lhes a soberba, afirmando que eles se arvoram em “mestres
absolutos” e agem “sem se importar com o que tenham recebido de seus ancestrais ou
com o que é devido à posteridade” (1997, p. 115), de maneira que se arriscam a “não
deixar àqueles que virão depois deles nada além de ruína no lugar de uma habitação”
(ibidem). Por isso, uma sociedade prudente, na perspectiva burkeana, afirma-se como
uma comunidade coesa que respeita o cabedal cultural da tradição e que “não imitará
métodos cuja experiência nunca tenha realizado, nem retomará métodos que a
experiência mostrou ser nocivos.” (idem, p. 63).

Na visão iluminista, é a intervenção engenhosa e revolucionária dos homens


esclarecidos que, suprimindo completamente a sociedade tradicional com os seus vícios,
pode dirigir a coletividade para uma perfeição uniforme e para uma ordem civil
racional, justa, igualitária, libertária e fraterna. Porém, na concepção burkeana, como
vimos, o aprimoramento do corpo social e institucional acontece, antes, no
desenvolvimento espontâneo de uma sociedade que mantém seus vínculos com a Lei
Natural e com o patrimônio espiritual e material herdado dos antigos. Tal patrimônio
inclui a história e as lições dos antepassados. Aprende-se com os erros e com os acertos
deles. E, se a política de uma nação deve ser conduzida de modo seguro e prudente, é
útil aprender com os ancestrais e reconhecer o que há de bom e virtuoso no legado
deixado por eles.

Para falar desta herança institucional e cultural, Burke usa a imagem de uma árvore cujo
“velho tronco” os britânicos souberam preservar, tendo o cuidado de “não enxertar
nenhuma muda estranha à [sua] natureza” (BURKE, 1997, p. 67). De fato, o seu modelo
de monarquia constitucional atravessou séculos sem sofrer mudanças radicais desde a
Idade Média. A própria Revolução Gloriosa de 1688 fora uma “revolução relutante”
38

que não visou derrubar o sistema tradicional, mas “restaurar as antigas liberdades
constitucionais consagradas na Magna Carta de 1215” (Espada, 2010).

João Carlos Espada salienta a reverência pela tradição como uma característica
distintiva da corrente conservadora da qual Burke faz parte; uma vertente político-
filosófica que visa à conciliação entre permanência e mudança. Ao se dispor a orientar a
práxis política, o político conservador, longe de querer estagnação ou retrocesso, propõe
incentivar a evolução orgânica do Estado e da sociedade sem deixar que se invalidem, a
cada mudança de governo, as conquistas passadas. Trata-se, portanto, de uma política
que pensa o futuro em respeitoso diálogo com o passado; que planeja o futuro para
deixar à posteridade o que de bom foi recebido da ancestralidade, não com uma fixidez
anacrônica, mas com as melhorias requeridas pelas circunstâncias de cada época:

a ideia de herança fornece meios seguros de conservar e transmitir, sem


excluir os meios de melhorar. Ela deixa a liberdade de adquirir; mas fixa
aquilo que se adquire. Um Estado que se inspira nestas máximas incorpora,
como em uma espécie de bem de família, todas as vantagens que ele se
proporciona, ele cria uma espécie de usufruto eterno. (BURKE, 1997, p. 69).

O teor dessa corrente filosófica para a qual Burke deu uma significativa contribuição
pode ser haurido também das obras de G. K. Chesterton, por exemplo. Chesterton foi
um autor profícuo no início do século XX e, tal como Burke, se tornou célebre por sua
crítica filosófica e suas reações criativas às tendências ideológicas da moda. Ele,
inclusive, retoma (e enriquece) a imagem da velha árvore para defender o legado da
tradição e criticar a mentalidade revolucionária a modo burkeano:

A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modifica é


apenas o cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro
continuam sendo os mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos,
mas não deixaram de ser centrais. Quando nasce um ramo na parte superior
de uma árvore, ele não se desprende de suas raízes, antes, ao contrário,
quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força a árvore terá de se
prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o
progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie.
Mas quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se
referem a isto. Eles não desejam que mude a parte externa de um centro
orgânico e permanente, como numa árvore; objetivam a modificação total e
absoluta de cada parte a cada minuto, como a transformação que sofrem as
nuvens. Mas se adotarmos como filosofia uma evolução similar à das nuvens,
ou seja, uma evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar,
então, para o passado e a civilização estaria incompleta; o que hoje existe
pode desaparecer amanhã, inclusive amanhã mesmo. Pois bem, não creio
nesse progresso perpétuo que acarreta apenas um caos perpétuo, creio na
evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a natureza de cada
coisa. (CHESTERTON, 2013, p. 8-9).
39

3.2 Considerações sobre o governo civil

Se, no que concerne à natureza do ser humano, Burke tem uma visão mais “restrita” que
a dos iluministas franceses, podemos dizer que, quanto às possíveis configurações dos
sistemas políticos, o filósofo irlandês é menos restrito do que os chamados philosophes.
Burke critica tanto os “fanáticos” monarquistas, por apregoarem que a monarquia
hereditária é o “único modo legítimo de governo”, quanto os “fanáticos” republicanos,
que pretendem impor a ideia de que a eleição popular é a “única fonte legítima do
poder” (BURKE, 1997, p. 64). Assim, se Rousseau proclamava que todo poder emana
do povo, para o nosso missivista tal postura parecia indefensável.

Nem toda autoridade, para ser legítima e benéfica aos cidadãos, precisa necessariamente
ser eleita pelo povo, na visão de Burke. Assim como um governante eleito nem sempre
é bom para o povo, uma autoridade que recebeu seu poder por transmissão hereditária
não é necessariamente ruim para os cidadãos: “Nós temos uma coroa hereditária, um
pariato hereditário, uma Câmara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha
de ancestrais, seus privilégios, suas franquias e liberdades.” (BURKE, 1997, p. 69). E
não se trata aqui apenas de uma defesa da monarquia inglesa, pois o filósofo considera
também outras formas de poder que dispensam o sufrágio popular – como o poder
jurídico, a autoridade policial ou a autoridade eclesiástica – e que são usualmente
reconhecidas como legítimas e úteis à sociedade.

Com relação ao regime democrático, Burke afirma que a democracia absoluta, direta e
baseada na vontade da maioria, não é uma forma legítima de governo, assim como não
o é a monarquia absoluta. Para Burke, uma forma absoluta de democracia pode tornar a
maioria dos cidadãos “capaz de exercer, sobre a minoria, a mais cruel das opressões”
(BURKE, 1997, p. 135). Trata-se do risco da tirania da maioria, a respeito da qual
também alertou, mais tarde, Alexis de Tocqueville29. Para corroborar seu ponto-de-
vista, Burke recorre ao filósofo estagirita: “Aristóteles observava que a democracia
apresenta, em muitos aspectos, uma grande semelhança com a tirania.” (ibidem).

29
Filósofo francês do século XIX, autor do clássico A Democracia na América, que também escreveu
sobre a Revolução Francesa e é considerado, ao lado de Burke, um dos principais expoentes da tradição
liberal-conservadora.
40

Contudo, como era de se esperar de um membro da Câmara dos Comuns, Burke


reconhecia que a democracia é algo salutar quando equilibrada com outras instâncias de
poder e balizada pelos artigos de uma Constituição capaz de proteger os princípios
irrenunciáveis e os direitos de todos, inclusive das minorias. A democracia nunca foi,
para o deputado irlandês, a bandeira política suprema, como era, ao menos no discurso,
para os jacobinos. Mas Burke de fato apreciava o grau de democracia que havia no
sistema britânico, uma democracia moderada e intermediada: “Resolvemos conservar
uma Igreja estabelecida, uma aristocracia estabelecida, e uma democracia estabelecida,
cada uma no grau em que existe e não em um maior.” (BURKE, 1997, p. 112).

O filósofo defende a importância do dissenso político no interior de um governo, útil


inclusive para evitar determinações pouco refletidas e unilaterais na administração
pública e preservar, assim, o princípio da prudência. O dissenso emerge sob a forma de
“oposições e conflitos” que servem como “um freio salutar a todas as resoluções
precipitadas”, na medida em que “tornam a deliberação uma necessidade, e não uma
questão de escolha” (BURKE, 1997, p. 71). As resoluções de Estado acrisoladas pelo
debate e pelo dissenso tendem a ser melhores, na visão de Burke, do que aquelas
definidas num governo de partido único ou de autoridade absoluta. Em sua percepção, o
dissenso faz brotar certa “harmonia do conjunto das lutas recíprocas de poderes
discordantes” (ibidem). Assim, as oposições políticas “evitam males terríveis
produzidos por reformas brutais, repentinas e absolutas, e tornam impraticáveis as ações
inconsideradas do poder arbitrário.” (ibidem).

Lastimando o autoritarismo e a truculência dos dirigentes revolucionários, Burke afirma


que seria desejável que os líderes “temessem um pouco os indivíduos que eles
conduzem” (BURKE, 1997, 75) e que se sentissem sujeitos à avaliação popular e a
punições que coibissem qualquer abuso de poder, de modo que os cidadãos “pudessem
julgar com peso e autoridade reais a influência que se pretende exercer sobre eles”
(ibidem). Além disso, o autor considera que, ao estadista, importa ter “experiência
prática nos negócios públicos”, uma vez que essa experiência tende a reduzir o risco das
ousadias típicas dos “homens só de teoria” (ibidem). O seu padrão de estadista é aquele
que tenha reunidas, simultaneamente, uma “disposição a preservar [os direitos, as
liberdades e as instituições benéficas consolidadas] e uma capacidade de melhorar”
(BURKE, 2012, p. 353).
41

Num governo que pretenda conciliar os interesses díspares dos cidadãos, a prudência
atua como uma ponderação cuidadosa das compensações. O estadista deve saber lidar
com a “infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115), para que as
vontades de uns não venham a violar os direitos de outros. O governante deve ser capaz
de conciliar liberdade e sujeição, de modo que permita a seus cidadãos o justo gozo da
liberdade, mas coíba os excessos.

O exercício dos direitos de cada cidadão deve equilibrar-se com os direitos dos demais e
acomodar-se aos preceitos da ordem pública. O autor pondera, por exemplo, que a
liberdade boa e legítima deve harmonizar-se com outros princípios, sem os quais a
mesma liberdade não seria vantajosa, nem duradoura:

Por tal razão, eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova
liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza
com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos
exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a
moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem,
com os costumes públicos e privados. À sua maneira, todas estas coisas são
bens, e se elas vierem a faltar, a liberdade deixa de ser um benefício e perde a
chance de durar muito tempo. (BURKE, 1997, p. 51).

3.3 Representatividade política

Burke discorda da opinião segundo a qual qualquer homem é apto para exercer funções
políticas e representar devidamente seus semelhantes. O deputado britânico pensa que
nem todos são capazes de governar ou de compor um parlamento. Mas a falta de aptidão
para a qual o filósofo atenta não é devida ao sangue ou à carência de títulos
nobiliárquicos; antes, ele se refere a deficiências relacionadas à qualidade moral e
intelectual dos candidatos, à educação por eles recebida, à sabedoria por eles adquirida.

Cargos de grande prestígio e responsabilidade exigem candidatos que estejam à sua


altura, que possuam vasto conhecimento e reconhecida idoneidade, no parecer do autor.
O legislativo, por exemplo, deveria ser composto sempre por homens graves,
circunspectos, de princípios construtivos e, preferencialmente, com alguma experiência
política. O pensamento político burkeano comporta, assim, uma espécie de visão
meritocrática do funcionalismo público. Entretanto, nem só de predicados racionais
devem ser dotados os parlamentares que representam um povo. O bom representante
42

público também se enobrece por cultivar a virtude da caridade e por ter certo temor
diante do poder que lhe foi confiado: “O verdadeiro legislador deveria ter um coração
cheio de sensibilidade. Ele deveria amar e respeitar sua espécie, e temer a si mesmo.”
(BURKE, 2012, p. 369).

Burke também crê que, entre os representantes do povo, devem estar homens de
propriedade, homens que possuam bens privados em abundância. A representação dos
proprietários no parlamento é útil, segundo o autor, para defender a propriedade
privada, grande e pequena, das investidas daqueles que usam sua habilidade política
para promover a abolição da propriedade, ignorando que a propriedade privada assegura
a liberdade e a prosperidade de uma nação (1997, p. 82-83). Aliás, para Burke, assim
como para Adam Smith30, a própria desigualdade social31 é condição sine qua non para
a subsistência material de uma sociedade, sendo útil tanto aos proprietários quanto aos
camponeses e operários. Já a ideia de igualdade material plena é recebida como uma
fantasia impraticável na realidade, pois, uma vez imposta pelo Estado, geraria carência
de mão de obra para diversos serviços, escassez insuportável de produtos e serviços
básicos, falência da indústria, crise de abastecimento e caos social.

Para representar fielmente as comunidades que compõem uma nação e os segmentos


políticos que formam o Estado, cada instância de poder deve respeitar as demais e
cumprir as obrigações públicas que lhe competem. Essa proposta de Burke, contudo,
não pode ser associada ao princípio da separação dos poderes de Montesquieu, uma vez
que provém de uma tradição bem mais antiga que remonta à Magna Carta, um
documento com caráter de constituição legal incipiente redigido no século XIII. Nas
Reflexões, fica patente a oposição de Burke às ingerências indevidas de certas esferas de
poder em âmbitos que não são de sua competência, bem como a exigência de que cada
qual cumpra os deveres que tem para com as outras:

30
Filósofo e economista escocês do séc. XVIII, considerado o pai da economia moderna.
31
Não se deve confundir, aqui, desigualdade social com pobreza. Esta desigualdade prevista pelo
liberalismo econômico é considerada, antes, um remédio contra a pobreza geral. Argumenta-se que a
existência de classes e funções sociais distintas é natural, necessária e contribui para a prosperidade do
todo. Afirma-se, ainda, que a possibilidade de ascensão social numa sociedade liberal é sempre aberta aos
que se destacam pelo trabalho, pelo talento, pela criatividade ou por outros dotes laborais e intelectuais.
43

As partes constituintes de um Estado devem respeitar as obrigações públicas


que elas têm umas em relação às outras e em relação a todos os que derivam
algum interesse sério de seus compromissos, da mesma forma que um
Estado, como um todo, é obrigado a manter sua palavra face a comunidades
separadas. De outra forma, competência e poder seriam logo confundidos, e
as leis nada mais seriam que injunções da força vitoriosa. (BURKE, 1997, p.
60).

Como já sinalizamos anteriormente, uma legítima e favorável representatividade dos


cidadãos não está necessariamente atrelada à eleição popular dos representantes, na
opinião de Burke. O deputado whig não apenas acreditava que a monarquia
parlamentarista representava bem o povo britânico, mas também afirmava que ela
garantia uma valiosa estabilidade sociopolítica à nação, bem como a manutenção de
liberdades e direitos civis tradicionais que estariam, de alguma forma, vinculados à
coroa. Confiante na estima que a maioria de seus compatriotas mantinha por seu sistema
e na rejeição que expressariam ante a proposta da implantação na Grã Bretanha de um
regime semelhante ao dos jacobinos, argumentava:

A lei de transmissão hereditária da coroa aparece-lhe [aparece ao povo


britânico] como um de seus direitos, não como um dos seus deveres; como
uma vantagem, não como um abuso; como uma garantia de suas liberdades,
não como o selo de sua escravidão. Ele olha a estrutura da coisa pública, na
forma em que ela existe atualmente, como um bem de valor inestimável; e a
transmissão pacífica da coroa aparece-lhe como a garantia da estabilidade e
da perpetuidade de todas as outras partes de nossa Constituição. (BURKE,
1997, p. 63).

A bem da verdade, importa relembrar que o poder político no Reino Unido não está
concentrado apenas na coroa e na aristocracia, sendo que há uma instância parlamentar
que é formada por congressistas eleitos pelos distritos: a Câmara dos Comuns, que é
muito expressiva politicamente e tem nomeado a maioria dos ministros de Estado. Além
da Câmara dos Comuns, o parlamento britânico também é formado pela Câmara dos
Lordes32, composta por nobres e membros do episcopado, e pelo(a) monarca, que não
governa na prática, mas é detentor(a) das chamadas “prerrogativas reais”, que incluem a
sanção das leis, a concessão de honras, o reconhecimento de países estrangeiros, a
declaração de guerra, o título de “chefe de Estado”, a autorização do uso das forças

32
No tempo em que o Brasil também tinha um monarca, o primeiro modelo de senado criado no país foi
inspirado na Câmara dos Lordes britânica e era chamado de Senado Imperial do Brasil. Após a
Proclamação da República, em 1889, o nosso senado foi reconfigurado de acordo com os modelos dos
Estados Unidos e da Argentina.
44

armadas em seu próprio território, a formalização da nomeação do primeiro-ministro,


entre outras.

A política britânica pode ser dita, ao mesmo tempo, tradicional e evoluída: uma
democracia liberal altamente representativa no seio de uma monarquia. Essa síntese,
porém, não teve origem na modernidade, segundo Espada (2010). A Magna Carta de
1215 que, de certa forma, funda essa tradição, foi escrita para impedir o exercício do
poder absoluto pelo rei John, bem como para garantir direitos aos lordes e aos demais
súditos do rei, e ainda reformar a justiça, regular o comportamento da corte, livrar a
Igreja da ingerência do monarca, dar direito de julgamento aos acusados, entre outras
resoluções antiabsolutistas.

O modelo britânico foi configurado de modo que cada uma das instâncias de poder
pudessem complementar e, ao mesmo tempo, limitar as demais. Por conseguinte, a
proposta de um governo limitado é uma “velha tradição” muito anterior a John Locke,
embora este tenha sido um de seus principais entusiastas, atesta Espada (2010).
Tomando-a emprestada de Winston Churchill33, Espada recupera a imagem da “corrente
de ouro”34 que liga o passado e o presente, unindo tradição e progresso. E sugere que
essa corrente resistiu aos séculos na Grã-Bretanha não só por causa da solidez de suas
instituições e valores, mas também porque não foram exercidas pressões indevidas
sobre ela como aquelas que derrubaram o antigo regime francês.

Poder-se-ia questionar, contudo, o que teria levado o mesmo Burke que se opôs com
tanta veemência à Revolução Francesa e às concepções jacobinas, a defender os direitos
dos colonos americanos e se posicionar a favor da Revolução Americana de 1776. De
acordo com João Pereira Coutinho (2014, p. 73), não é possível ver nisso qualquer tipo
de incoerência da parte do filósofo irlandês. E não há incoerência, inclusive, porque
vários dos mesmos motivos que o levaram a criticar a Revolução Francesa tinham-no
levado, antes, a se posicionar a favor do levante que trouxe a independência aos Estados
Unidos da América.

33
Ex-primeiro ministro do Reino Unido que se tornou célebre por sua atuação política durante a Segunda
Guerra Mundial.
34
Golden chain, no idioma de Churchill.
45

Os colonos norte-americanos não suportavam mais pagar impostos abusivos ao governo


de Londres sem receber a justa contrapartida da metrópole. Por muito tempo eles
apelaram, por seus legítimos direitos, à constituição arbitrariamente suspensa pelo rei
George III. Sem lograr sucesso em suas reivindicações por seus direitos constitucionais
– uma atitude genuinamente “conservadora”, segundo Coutinho (2014, p. 73) –, os
colonos passaram a exigir não serem taxados por um governo que não os representava
efetivamente35. Nota-se, então, que a questão da (falta de) representatividade foi um dos
fatores que motivou a postura condescendente de Burke frente ao levante americano.

Não tinham os americanos, inicialmente, a pretensão de criar uma nova ordem a partir
de novos direitos e princípios teóricos, mas queriam apenas que lhes fossem restituídas
as “velhas liberdades”, isto é, os direitos da “velha ordem” que lhes eram negados. Em
outras palavras, os colonos americanos desejavam tão somente ter os mesmos direitos
que tinham os velhos homens livres da velha Inglaterra. Como a coroa e o parlamento
permaneceram teimosamente inflexíveis, negando-lhes o pouco que pediam, eles
insurgiram-se contra a metrópole e, uma vez independentes, implantaram uma república
que restituía muitas daquelas “velhas liberdades”. Tal postura os distinguia
radicalmente dos jacobinos e dava um caráter conservador à insurreição americana e à
sua demanda por independência.

Em circunstâncias extraordinárias de “grandes abusos” sendo cometidos por um


governo legítimo, o autor das Reflexões considerava legítima a insurreição como
“último recurso dos homens inteligentes e virtuosos” (BURKE, 1997, p. 67). Atos
sediciosos, como a deposição de um rei ou a instituição de um novo governo, embora
devam ser evitados ao máximo, poderiam de fato ser tomados como último recurso, no
parecer do autor. No caso de um governo que já não representasse razoavelmente seus
governados e ainda os oprimisse com impostos e perseguições, a insurreição se
justificaria. Como se vê, a postura diversa de Burke em relação às duas revoluções – a
francesa e a americana – sinalizam, na verdade, uma notável coerência inerente aos seus
critérios de juízo. Em vista de posturas como essa, Jean-Jacques Chevallier qualifica-o
como “brilhante defensor da liberdade política” (1999, p. 213).

35
Conforme o célebre bordão “no taxation without representation” (“nenhuma taxação sem
representação”).
46

Burke pode ter se inspirado, mais uma vez, na filosofia tomista ao aquiescer com o juízo
de que seria legítimo, quando todos os outros recursos estivessem esgotados, punir um
soberano que estivesse causando grandes males a seus súditos. Tomás de Aquino
concordou com a legitimidade do recurso ao tiranicídio em circunstâncias extremas36, e
lembrava, inclusive, que Cícero considerara justo o assassínio do imperador romano
Júlio César. Embora monarquista convicto, Burke também chega a afirmar que, em
casos extremos, “a punição de reis tiranos é um ato de justiça nobre e grandioso” (1997,
p. 105). Assim, fica parente que, na visão do autor, os impulsos deletérios da
mentalidade revolucionária não constituem a única ameaça possível a uma ordem
política fundada na natureza e na experiência. Pois um governante empossado
legitimamente que cobiçasse o poder absoluto para si e espezinhasse os direitos dos
súditos para alcançá-lo também poderia ser tão perigoso, subversivo e irrepresentativo
quanto um levante revolucionário insuflado por intelectuais utopistas.

3.4 As instituições e valores consolidados pelas gerações

A prudência política também diz respeito ao modo como o estadista compreende as


instituições antigas de um país. Burke acredita que o governante deve reconhecer que
elas passaram por uma espécie de seleção natural (no sentido evolucionista darwiniano),
por um processo que as burilou até a sua forma atual, que as consolidou e as tornou
aptas a responder satisfatoriamente às necessidades de um povo. Entre estas instituições,
incluem-se também os direitos cujo reconhecimento pelo Estado foi fruto de conquistas
históricas. Note-se, por exemplo, que, quando o autor se refere aos “privilégios” do
povo britânico, não se trata de regalias ou vantagens de classe, mas de direitos positivos
e liberdades comuns que então faziam os britânicos “privilegiados” em relação a outros
povos. Estes “privilégios” são compreendidos não como concessões do governo, mas
como uma herança recebida dos antepassados.

Em suas Reflexões, em diversos trechos o autor afirma, em relação à tradição política do


Reino Unido, que ela “sempre levou os habitantes deste reino a considerarem seus
direitos e franquias mais sagrados como uma herança.” (BURKE, 1997, p. 68). Atesta,

36
TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, II, 44. 2. 2.
47

ainda, que a confiança dos britânicos em seu sistema se sustenta “não em virtude de
princípios abstratos” (ibidem), mas graças à transmissão de um patrimônio de direitos e
valores “legado pelos seus antepassados” (idem, p. 68). Patrimônio este que remonta ao
século XIII e cujos valores constituem o eixo central de seu sistema, o fator unificante
de suas leis, o fundamento comum das diversas partes de sua Constituição.

A sabedoria dos antepassados, no parecer de Burke, é produto não apenas da


experiência humana, mas também das revelações feitas por Deus à humanidade ao
longo dos milênios, como já indicamos anteriormente. Portanto, toda tradição que
transmite valores, direitos, instituições e princípios normativos legítimos é derivada da
experiência acumulada das gerações precedentes e da Revelação divina. O filósofo
acreditava que as instituições tradicionais erigidas sob os auspícios da cristandade e
seus códigos de valores são o produto desse progressivo norteamento divino da
humanidade.

Encontramos em Burke a convicção de que as instituições de um país devem estar de tal


modo enraizadas na realidade, na natureza e na história, que sejam capazes de garantir a
coesão social e uma paz duradoura. Deste modo, o filósofo enaltece a tradição que
sustenta as instituições de seu país porque a vê sob a égide de uma ordem natural e de
uma sábia ancestralidade:

Graças a uma política constitucional calcada sobre a natureza, nós


recebemos, possuímos e transmitimos nossas propriedades e vidas.
Recebemos e legamos a outros as instituições políticas, da mesma maneira
que transmitimos os bens da fortuna e os dons da Providência. [...] O mesmo
plano que nos fez conformar nossas instituições artificiais à natureza, e
chamar seus seguros e poderosos instintos em socorro das frágeis e falíveis
invenções de nossa razão, nos fez derivar outras vantagens, e não menores,
do fato de que consideramos nossas liberdades como uma herança.
(BURKE, 1997, p. 69).

O filósofo considera que entre os antigos se encontrava, com mais frequência do que
entre os modernos, pioneiros que deveriam servir de inspiração às novas gerações, que
se destacaram como “modelos de virtude e de sabedoria” (1997, p. 72). Estes pioneiros
entraram para a história, em muitos casos, por terem criado ou reformado instituições
que se tornaram venerandas e atravessaram os séculos. O autor acredita que tais
instituições fazem parte do patrimônio comum da humanidade e não merecem ser
desmanteladas em nome de impetuosas e irrefletidas inovações revolucionárias. A
48

concepção burkeana que subjaz a essa postura é a de que o conhecimento da


humanidade não é resultante somente dos esforços individuais de mentes brilhantes,
mas é um fundo depositário comum, com o qual várias gerações contribuem.

Evidentemente, os pioneiros do passado foram os inovadores de seu tempo. Sua


engenhosidade muitas vezes também encontrou resistência quando eles propuseram
algo de novo. E, se eles não tivessem inovado, as gerações seguintes não poderiam
desfrutar de suas criações. Contudo, Burke refere-se aos antigos que, mesmo ousando
inovar, respeitaram o direito e a ordem natural. Os pioneiros que Burke enaltece são
aqueles que não tinham a pretensão de destruir tudo indiscriminadamente e construir
algo inteiramente novo. Antes, ele se refere àqueles que inovaram, mas sem o ímpeto
demolidor dos jacobinos, que erigiram coisas novas, mas sobre fundamentos já
existentes, não raramente a partir das contribuições de “gigantes”37 ainda mais antigos.

Para o filósofo dublinense, é certo que a razão de um único indivíduo, ou de uma só


geração, é mais limitada do que a razão de várias gerações. Sendo a experiência passada
mais sábia do que as modas ideológicas, as instituições antigas deveriam ser tidas em
alta consideração, pois elas são o produto do capital experiencial das épocas. Elas
passaram pelos testes do tempo e resistiram aos reveses de cada período. Por isso, elas
gozam do princípio da consagração pelo uso; tendo sido experimentadas, testadas e
aprovadas por muitas gerações, o seu mérito torna-se inegável. Assim, o autor considera
que tais instituições merecem ser tratadas, inclusive, com certa reverência, com o
respeito que é devido, por exemplo, a um ancião ou a um veterano de guerra.

Tendo por premissa que a sociedade provida de instituições tradicionais favorece a


transmissão hereditária de direitos e liberdades civis (BURKE, 1997, p. 70), o filósofo
exorta à confiança nas instituições “cujos méritos forma confirmados pelo sólido
testemunho da longa experiência e por crescentes força popular e prosperidade
nacional” (idem, p. 88). Aqui, percebe-se uma compreensão mais positiva da sociedade
civil do que aquela manifestada pelos teóricos que sustentam uma antropologia
irrestrita. Se, na perspectiva irrestrita, a sociedade civil erigida sobre os baldrames da
tradição é vista como uma força de degenerescência que adultera a natureza
37
Referimo-nos, aqui, à imagem usada por sir Isaac Newton em sua famosa frase: “Se vi mais longe foi
por estar de pé sobre ombros de gigantes.”
49

intrinsecamente boa do homem, em Burke a sociedade fundada na tradição é, desde que


permaneça enraizada na ordem natural, um fator de aperfeiçoamento dos homens. Se,
para os iluministas, a sociedade é um fator de corrupção que afasta o homem do seu
estado de virtude original e o priva de seus direitos naturais, para o conservador ela é
um lugar privilegiado de mútua cooperação, de mútuo benefício e de salutar exercício
dos deveres e direitos comuns e individuais.

Por conseguinte, o estadista prudente não deve menosprezar, em seu governo, a


sabedoria experiencial encerrada nas instituições consolidadas:

Sendo, portanto, a ciência do governo, tão prática em si mesma e dirigida


para a solução de questões igualmente práticas, uma ciência que requer
experiência, - ainda mais experiência do que aquela que um indivíduo pode
adquirir durante sua vida, não importa sua sagacidade ou capacidade de
observação,- é com infinita precaução que se deve aventurar a derrubar um
edifício que vem, há séculos, respondendo toleravelmente bem aos propósitos
da sociedade, ou construí-lo novamente sem ter à vista modelos e moldes
cuja utilidade tenha sido comprovada. (BURKE, 1997, p. 90).

Isoladamente, cada instituição social não pode socorrer a todas as necessidades humanas
sem as demais. O Estado não pode substituir a família, e tampouco a Igreja, como
pretenderam os jacobinos. As instituições sociais devem coexistir e cumprir seus papéis
de forma a corresponder, inclusive, aos sentimentos da população: “unimos em nossos
corações, para querê-los com o calor de todos os nossos sentimentos combinados, nosso
Estado, lares, túmulos e altares.” (BURKE, 1997, p. 69). A cada instituição cabe
respeitar as demais e cumprir bem sua missão, sem violar as jurisdições alheias. Ao
afirmar, por exemplo, que “as leis não podem se fazer escutar por entre o barulho das
armas, e os tribunais caem por terra com a paz que eles não são capazes de manter”
(idem, p. 66), Burke lembra que as instituições são tão mais duráveis quanto mais
eficazes conseguirem ser no cumprimento de sua missão.

Dentre as instituições que desempenham trabalhos fundamentais na sociedade civil,


Burke considerava que a Igreja, enquanto guia moral e espiritual, cumpre um papel
singular. Tanto que o filósofo avalia que, quando a religião é suprimida de um país, ela
faz mais falta ao povo do que o comércio e a indústria (BURKE, 1997, p. 103). E
denunciava que a propaganda ateísta fanática que se espalhava pela França jacobina
estaria conseguindo corromper progressivamente não apenas as estruturas, mas também
os sentimentos do povo (idem, p. 155).
50

Contudo, Burke se opunha abertamente à ideologização política do discurso religioso.


Para ele, cada instituição deve tratar do que lhe diz respeito, do que é de sua alçada, do
que é próprio do seu caráter. O autor aceitava que as instituições tradicionais pudessem
ser reformadas, como veremos adiante, mas considerava inadmissível que elas fossem
desvirtuadas. Por isso, critica os pregadores eclesiásticos que eram simpáticos aos
jacobinos, protestando que eles, “sob o nome de religião, nada ensinam além de política
insensata e perigosa” (BURKE, 1997, p. 92). Nesse sentido, o filósofo dedicou boa
parte de suas Reflexões a criticar um sermão pregado pelo ministro Richard Price em
novembro de 1790. O discurso de Price, apesar de travestido de exortação religiosa,
elogiara o novo regime de Paris, criticara o velho regime de Londres e, com isso,
contrariara Burke profundamente, fazendo-o temer que as próprias instituições do Reino
Unido fossem instrumentalizadas para instilar as ideias revolucionárias no país:

Detesto as revoluções, sei que frequentemente é do púlpito que se dá o sinal


para o seu desencadeamento. Vejo reinar na França um desprezo absoluto por
todas as instituições antigas quando se lhes apresenta como opositoras à
maneira atual de conceber as coisas, ou à direção das inclinações de hoje.
Temo que este desprezo se estabeleça entre nós. (BURKE, 1997, p. 63).

3.5 Reformas orgânicas em vez de revoluções

Não obstante seu apreço pelas instituições antigas, Burke não sugere que elas devam
permanecer sempre imutáveis, mesmo quando começam a dar sinais de desgaste. Pelo
contrário, o filósofo irlandês deplora a “obstinação que rejeita toda melhoria” (2012, p.
369) tanto quanto a “leviandade que fica cansada e enjoada de tudo que possui”
(ibidem). Uma sociedade sábia, no seu parecer, não só preserva as instituições e
costumes benéficos legados pela tradição, mas também se dispõe à reforma gradual e
paciente das instituições que se tornam ineficazes ou prejudiciais. A possibilidade de
mudanças pontuais, de reformas prudentes e adequadas, é considerada útil à própria
conservação do Estado: “Um Estado onde não se pode mudar nada, não tem meios de se
conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes de sua Constituição que
com mais ardor desejaria conservar.” (BURKE, 1997, p. 61).

Burke põe em evidência, assim, a afluência concomitante de dois princípios na


administração das instituições públicas: o da “conservação” e o da “correção” (BURKE,
1997, p. 61). Tais princípios, se estiverem equilibrados e simultaneamente presentes em
51

cada ato de governo, convergem para o aperfeiçoamento do Estado e da sociedade.


Quando as instituições de uma sociedade se deterioram moralmente, por exemplo, é
perfeitamente legítima a aplicação de uma reforma normativa, a fim de empregar “os
melhores meios para formar um tal sistema que sua religião, leis e liberdades não
corram mais o perigo de serem subvertidas” (BURKE, 1997, p. 68).

Uma reforma institucional só será prudente quando for orgânica, isto é, quando for
adaptável ao todo do organismo social, quando “o que for acrescentado for adequado ao
que é retido” (BURKE, 2012, p. 368), de modo que não haja incompatibilidade entre o
acréscimo e o que permanece, entre o novo componente e o velho38. Até porque toda
reforma parte do que foi dado pela tradição e, para que ela seja bem-sucedida, os
reformadores devem consultar o repositório experiencial das épocas, a fim de não
repetir os erros cometidos por reformadores de outros tempos. Tendo em vista essa
prudência que deve nortear o procedimento reformista e evitar os erros da celeridade,

Burke considera que, quando as circunstâncias demandam um reparo institucional que


acarrete qualquer mudança para os cidadãos, tal reforma deve ser planejada e
implantada sem precipitação. Ademais, ela deve ser corrigível, reajustável conforme o
que melhor convir aos que serão por ela atingidos, visto que não há receita a priori que
garanta o sucesso de uma medida reformadora. Como observa Coutinho (2014, p. 78) a
respeito deste método conservador de aprimoramento sociopolítico, o reformador deve
proceder de modo que procure “avaliar no prazo devido as consequências mais tangíveis
de cada ação reformista antes de se avançar para uma nova ação do mesmo tipo.”

Compete ao governante, ainda, ajuizar que as reformas devem ter sempre um caráter
pontual e restrito, devem “limitar a mudança à parte deteriorada” (BURKE, 1997, p.
60), a fim de evitar qualquer “pretensão de decompor todo o corpo civil e político”
(idem, p. 61). Assim, ao examinar os defeitos de uma antiga instituição nacional, cuide-
se para que “nunca se imagine começar sua reforma pela sua subversão” (idem, p. 116).

38
Há, aqui, certa proximidade com a visão política do empirista David Hume, com quem Burke manteve
contato pessoal (1997, p. 168). Hume também defendia que o estadista sensato deve adaptar as melhorias
e inovações necessárias “o mais possível” às antigas instituições, “conservando intactos os principais
pilares e sustentáculos da Constituição”, além de igualmente ver a experiência passada como parâmetro
para a política e considerar dignas de respeito as instituições que trazem as “marcas do tempo” (HUME,
David. Ideia de uma república perfeita. Col. Os Pensadores São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 261).
52

Os reformadores devem ter em vista garantir maior estabilidade e eficiência


institucional por mais tempo e da forma mais tranquila, de modo que seja afastado o
risco de a mudança gerar desarmonias sociais, crises, perturbação ou conflitos.

A lentidão das reformas cuidadosas é, para o filósofo irlandês, não apenas aceitável,
mas até mesmo desejável, de modo que a vagarosidade de um procedimento reformista
que só muda as coisas passo a passo é, em última análise, uma de suas excelências, uma
vez que diminui a incidência dos erros próprios das mudanças apressadas. Burke advoga
que, enquanto processo de aprimoramento sócio-institucional, a reforma gradual é “um
método em que o tempo é um de seus assistentes” (2012, p. 369). O autor ainda recorda
que nunca são demasiadas a paciência e a prudência que se mantêm ao planejar
quaisquer mudanças que possam ter implicações graves na vida dos cidadãos:

Se circunspecção e cautela fazem parte da sabedoria quando trabalhamos


apenas com matéria inanimada, certamente elas fazem parte do dever também
quando o objeto de nossa demolição ou construção não é tijolo e madeira,
mas seres humanos, pela súbita alteração de cujo estado, condição e hábitos,
multidões podem se tornar infelizes. (BURKE, 2012, p. 369).

Deste modo, o parlamentar irlandês recomenda, no lugar das grandes mudanças


repentinas instigadas por ideologias utópicas e perfectibilistas, reformas controladas e
consequentes, que funcionem como um mecanismo favorável à conservação do que é
benéfico e à melhoria gradativa do que está deteriorado.39 Ao discorrer sobre o antigo
regime francês, Burke admite que ele, de fato, precisava de reformas para atender
satisfatoriamente as necessidades dos cidadãos da França. Mas também ressalta que o
Ancien Régime tinha vantagens apreciáveis – como a grande independência política de
seus parlamentares –, embora os jacobinos não o reconhecessem. Nas suas Reflexões
sobre a Revolução em França, empregando mais uma vez sua peculiar ironia, o autor
contrapõe a conduta revolucionária com o pacífico espírito reformista:

Para algumas pessoas, complôs, massacres e assassinatos tornam-se um preço


pequeno para a consecução de uma revolução. Parecem-lhes insípidas e
vulgares uma reforma barata e sem sangue e uma liberdade sem culpa.
(BURKE, 1997, p. 93).

39
Na contemporaneidade, Karl Popper repropôs essa alternativa de modo muito similar à intuição de
Burke: “o método utópico deve levar a uma perigosa adesão dogmática a um projeto pelo qual se fizeram
incontáveis sacrifícios. Poderosos interesses devem ligar-se ao sucesso dessa experiência. Tudo isso não
contribui para a racionalidade, ou para o valor científico, da experiência. Mas o método gradual permite
experiências reiteradas e contínuos reajustamentos.” (POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos. Vol I. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974. p. 178)
53

CONCLUSÃO

As Reflexões sobre a Revolução em França, para além de uma mera composição textual
destinada a criticar um acontecimento histórico específico e fundamentar teoricamente
essa crítica, dão-nos a conhecer um pensamento que delineia uma proposta consistente
de ação política. Deste modo, a obra ultrapassa o evento histórico particular que
motivou a sua escrita. Esse pensamento político, porém, não se encerra totalmente no
texto das Reflexões, mas é complementado por outros textos de menor importância
ainda não traduzidos para a língua portuguesa, como o Apelo dos Novos Whigs para os
Velhos, o Discurso sobre a Independência do Parlamento, as Cartas sobre uma Paz
Regicida, os Discursos sobre a Conciliação com a América e os Pensamentos sobre a
Causa dos Presentes Descontentamentos. Contudo, pela leitura atenta das Reflexões,
pudemos divisar claramente uma filosofia política que vai muito além das críticas aos
iluministas e jacobinos, uma vez que propõe positivamente uma práxis política que é
válida mais para as circunstâncias ordinárias de estabilidade sócio-institucional do que
para aquelas que demandam reação a um processo revolucionário já em curso.

Assim, a pesquisa empreendida para a confecção deste trabalho possibilitou-nos o


contato com as temáticas centrais do pensamento político burkeano e corroborou a
hipótese de que Burke não se limita a criticar a Revolução e os métodos de
transformação política que preveem a subversão das estruturas existentes, mas
recomenda, como alternativa, um mecanismo conservador de aperfeiçoamento político-
institucional. Este mecanismo, que é a reforma gradativa e orgânica, é indicado pelo
filósofo porque tende a ser mais seguro e sustentável na medida em que é pautado pela
virtude da prudência e pelos princípios da conservação e da correção. Acreditamos que
a reflexão de Burke nos mostra, dessa maneira, que é possível pensar uma ação política
aprimoradora conjugada com os preceitos de uma ética comum e universal baseada na
tradição filosófica clássica e cristã.

Cremos ter obtido êxito também ao demonstrar a pertinência da crítica de Burke à


política de viés revolucionário, na qual a violência é justificada sob os estandartes de
princípios coletivistas e direitos abstratos coletivos que, uma vez absolutizados, acabam
por sobrepujar os direitos fundamentais dos indivíduos concretos e até aniquilá-los.
Comprovamos, assim, que Burke se insere numa linhagem de filósofos políticos que
54

advogam pela salvaguarda das liberdades civis organicamente ordenadas e pelo respeito
aos direitos individuais. Como observa João Pereira Coutinho, a tradição política
conservadora é uma das poucas que pode se orgulhar por “não ter sangue nas mãos”.
Esperamos também ter chamado a atenção para os méritos de uma tradição político-
filosófica de matriz anglo-saxã40, da qual Burke foi um dos maiores e mais
indispensáveis expoentes, que é largamente ignorada no Brasil, não obstante tenha
transmitido valores e critérios de juízo a diversas gerações de filósofos, estadistas e
eleitores da Europa e das Américas.

A reflexão do filósofo-parlamentar irlandês nos fornece ferramentas conceituais ainda


úteis para analisarmos a atuação dos agentes políticos de hoje. Sobretudo porque os
utopismos e os princípios abstratos coletivistas descolados da realidade ainda estão
presentes em diversos movimentos ideológicos hodiernos. Entre nós há grupos que
continuam a reivindicar, por exemplo, um Estado socialista centralizador que assegure
uma igualdade material plena para todos, desdenhando as experiências históricas de
países que arcaram e ainda arcam com os altíssimos custos humanos cobrados por
aventuras revolucionárias dessa natureza.41 Ademais, tais grupos indicam que ainda há
um número preocupante de pessoas que ignoram aspectos essenciais da natureza
humana; que ignoram, por exemplo, que os seres humanos são desiguais por natureza,
uma vez que possuem habilidades, preferências, talentos e disposições laborais
desiguais que geram, consequentemente, condições materiais diferentes. A ampla falta
de atenção a esses fatores elementares também é causa da sobrevivência das tentações
político-ideológicas propensas à engenharia social e à homogeneização totalitária.

O pensamento de Burke nos sugere manter certo ceticismo para com todas as formas
aparentemente promissoras de engenharia político-social. Sua obra também nos ajuda a
meditar, por exemplo, sobre a questão da autonomia dos poderes, principalmente nas
circunstâncias em que um mesmo grupo partidário pode cobiçar o controle de todas as
instâncias de poder, aparelhando inclusive o judiciário. O autor nos faz repensar, ainda,
a questão da representatividade política, sobretudo nos contextos onde um governo,

40
Uma das poucas tradições políticas que podem se orgulhar por não ter “sangue nas mãos”, recorda João
Pereira Coutinho (2014, p.18)
41
Só no século XX, como é de conhecimento geral, mais de 150 milhões de vidas humanas foram
ceifadas por atos políticos de regimes alçados ao poder pela força das ideologias utópicas.
55

servindo mais a projetos partidários e ideológicos do que ao bem comum, consegue


manter-se no poder, embora não represente os verdadeiros valores e anseios dos
cidadãos, pelo abuso do erário público, inchando a máquina estatal com a multiplicação
de quadros e expandindo políticas populistas insustentáveis.

Esperamos ter feito transparecer que o conservadorismo de Burke não é uma espécie de
ideologia aristocrática elaborada numa tentativa frustrada de resguardar privilégios de
classe ante a ascensão de uma burguesia revoltosa. Até porque, como vimos, Burke não
fazia parte da Câmara dos Lordes, não falava pelos nobres, mas era um deputado da
Câmara dos Comuns eleito pelo povo do condado de Bristol. Ademais, mostramos que
sua política é alicerçada na defesa de direitos e liberdades comuns, em experiências
históricas e nas tradições e instituições consagradas pelos povos. Fosse de outro modo,
não se poderia esperar de Burke qualquer condescendência para com os colonos
indianos, americanos ou para com os católicos irlandeses, e tampouco qualquer
compreensão sua a respeito das circunstâncias críticas que podem legitimar a
deflagração de um processo revolucionário.

Importa notar também a inadequação de se associar o conservadorismo burkeano a um


imobilismo político de qualquer espécie, como se prescrevesse um conformismo inerte
perante o status quo. Suas cartas, seus discursos e suas intercessões no parlamento
denotam, ao contrário, um estímulo à dinamicidade política. Aliás, suas reações à
divulgação das ideias jacobinas no Reino Unido revelam não apenas um filósofo apto a
analisar ideias, examinar acontecimentos e tecer críticas, mas um representante político
preocupado em alertar as massas sobre o potencial destrutivo de uma ideologia que,
então, a muitos empolgava. Se os britânicos não tivessem sido advertidos por
reacionários como Burke, talvez o terror jacobino tivesse inspirado também outras
pilhagens e carnificinas acima do Canal da Mancha. E, nisso, podemos dizer que Burke
mostrou-se coerente com o axioma que, apesar de não constar em nenhuma de suas
obras conhecidas, lhe é atribuído:

Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os bons façam nada.
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