Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Mariana
2014
Luiz Henrique de Moraes Silva
Mariana
2014
“A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro
pela sensação da fadiga – não isenta de terror – com que
contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para
usar uma expressão popular, é arremessada para meados da
semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente
não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade
não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do
passado: um medo não só do mal que há no passado, senão
também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso
ante a insuportável virtude da humanidade. Houve
tantas fés flamejantes que não podemos suportar, houve
heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar,
empregaram-se esforços tão grandes na construção de
edifícios monumentais ou na busca da glória militar que
nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é
um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de
nossos antepassados. São as gerações passadas, não as
futuras, que vêm bater à nossa porta.”
G. K. Chesterton
T. S. Eliot
RESUMO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................10
CONCLUSÃO................................................................................................................53
REFERÊNCIAS.............................................................................................................56
10
INTRODUÇÃO
Uma filosofia política que não prescreva grandes mudanças, transformações repentinas,
ou revoluções violentas como solução para os problemas do sistema vigente, pode não
ser considerada, por todos, digna de compor o cânon dos grandes paradigmas do
pensamento político ocidental. Isso não significa, contudo, que ela não ofereça uma
contribuição filosófica significativa que nos permita contemplar a política de um outro
ângulo de visão e com outros critérios de juízo. Um dos objetivos desse trabalho é
verificar se é possível pensar temas políticos de forma pertinente sem pretender oferecer
fórmulas teóricas para a construção de um sistema virtualmente perfeito e sem sugerir
solapar as bases institucionais de um sistema político qualquer a fim de desconstruí-lo e
dar ocasião ao surgimento de uma nova ordem civil. Averiguaremos também, tendo por
esteio o pensamento filosófico de Edmund Burke, se é possível assegurar uma filosofia
política conservadora que não se limite à crítica das posturas revolucionárias e proponha
meios mais sustentáveis e seguros de aprimoramento das estruturas sociopolíticas.
Edmund Burke foi um filósofo irlandês, nascido em Dublin, que entrou para a história
como o pai do conservadorismo político moderno e o mais ferrenho crítico da
Revolução Francesa. Não obstante sua obra seja um marco da filosofia política
conservadora, Burke foi líder do partido whig (liberal) no parlamento britânico, onde
atuou como deputado pelo condado de Bristol. Alguns o classificam como liberal-
conservador; liberal no que tange à economia e pela importância que a liberdade
individual tem em seu pensamento, conservador no que se refere à cultura, à moralidade
pública e à própria política. Em sua atividade parlamentar, destacou-se como notório
antiabsolutista, com um histórico de denúncias contra os abusos britânicos na Índia e de
luta política contra as pretensões absolutistas do rei George III. Embora fosse de
confissão anglicana e um monarquista convicto, empenhou-se na defesa dos direitos dos
católicos irlandeses e dos colonos separatistas e republicanos da América do Norte.
O livro sobre o qual dissertaremos com maior frequência para discorrer sobre a filosofia
política burkeana teve, de acordo com o próprio autor, origem epistolar. As Reflexões
sobre a Revolução em França nasceram de uma carta enviada pelo autor a um “jovem
fidalgo de Paris”. Esse jovem era Charles-Jean-François Depont, que interrogara Burke
acerca da sua opinião sobre o estado de coisas na França após a Revolução de 1789. Nas
11
O ano em que Burke redige suas Reflexões sobre a Revolução em França é 1790, ano
seguinte ao da Queda da Bastilha. A missiva que se tornaria um tratado político célebre
em todo o Ocidente foi, na verdade, uma reação do autor, na forma de carta a Depont, a
certos elogios públicos que se faziam no Reino Unido à revolução gaulesa. A troca de
correspondência entre o parlamentar irlandês e o “jovem fidalgo de Paris”, embora real,
teria sido apenas a ocasião que o primeiro encontrou para fazer vazar suas críticas à
insurreição jacobina para o público comum.1 Com isso, Burke pretendia advertir as
massas para evitar que as ideias revolucionárias ganhassem mais entusiastas entre os
britânicos, o que era para ele motivo de grande preocupação.
governo, bem como das relações políticas que perfazem o aparato estatal e a sociedade,
enquanto concebe a segunda como a fundamentação ética e metafísica de um projeto
ideal de Estado e de uma conduta ideal dos agentes políticos, podemos dizer que Burke
fez tanto uma quanto outra.
No primeiro capítulo, encetaremos com uma retomada das circunstâncias históricas nas
quais foi deflagrada a Revolução Francesa – evento determinante para a produção
filosófica de Burke – e apresentaremos dados referentes aos desdobramentos daquela
sublevação que corroboraram o parecer inicial do filósofo sobre a mesma. Também
evidenciaremos as reações manifestas de Burke àquele acontecimento, que aparecem na
forma de denúncias, advertências e apreciações contestatórias do pensamento
revolucionário e iluminista. E abordaremos, ainda, o realismo burkeano frente às
promessas utópicas que então ganhavam prestígio. No nosso capítulo inicial, portanto,
prevalecem temas que ressaltam o caráter reativo e contestador do filósofo.
Por volta de 1773, isto é, dezesseis anos antes da revolução, Burke teria viajado a Paris,
onde teve contato com alguns iluministas franceses2. Na ocasião, Burke teria percebido
neles não só uma hostilidade com relação à religião cristã, mas também um acentuado
apego a princípios teóricos e direitos universais abstratos, como os de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, em nome dos quais se poderia até desprezar os direitos
individuais, tendo em vista um pretenso “bem comum” e os supostos interesses da
coletividade. Burke teria, então, já naquele ano, percebido que concepções perigosas
começavam a insuflar um movimento revolucionário na França.
2
Conforme a Introdução de Conor Cruise O’Brien presente na 2ª edição brasileira das Reflexões sobre a
Revolução em França lançada pela Editora Universidade de Brasília em 1997.
14
“A França comprou miséria com crime!”, denunciava Burke (1997, p. 73). E vociferava
contra o encarceramento da família real, o confisco dos bens da Igreja, os exílios de
dissidentes, as execuções dos guardas e servos da realeza (idem, p. 97), acusando a
Revolução inclusive de corromper o comportamento do povo na medida em que
estendia a toda a população as “funestas corrupções que geralmente eram taras apenas
de ricos e poderosos” (idem, p. 73). Burke elencava, já dois anos antes da fase mais
crítica do “terror”, algumas das primeiras consequências observáveis daquela
sublevação: “leis não cumpridas e tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o
comércio se extinguindo; impostos não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a
Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isso; a anarquia civil e militar...”
(idem, p. 74). Em tudo isso, Burke via a concretização das ideologias da dita
“ilustração”, elaboradas por “pioneiros que demoliram e abaixaram tudo ao nível de
seus pés” e que, não obstante instigassem o povo às armas, “não derramaram uma só
gota de sangue para o país que arruinaram” (ibidem).
Mostrando-se sempre cético com relação ao novo estado de coisas na França, o autor
manifesta também, ainda no início do texto, seu desejo de que a França seja “animada
de um espírito de liberdade racional”, bem como suas “dúvidas sobre vários pontos
importantes de suas últimas operações.” (BURKE, 1997, p. 48). Em sua carta-resposta
que acabou se tornando um tratado de filosofia política, Burke deixou claro que o seu
parecer não pretendia representar nenhum partido inglês e que, se cometesse erros de
15
julgamento, estes seriam de sua “inteira responsabilidade” (ibidem). Com isso, procurou
dar um caráter de análise apartidária às suas considerações, sem deixar de admitir que,
além de seus desejos de liberdade e prosperidade para a França, motivavam-no suas
preocupações a respeito das consequências da Revolução Francesa para o Reino Unido,
uma vez que as ideias oriundas da nação gaulesa influenciavam a Grã-Bretanha e vários
outros países (idem, p. 103).
3
O recurso à ironia é frequente ao longo da obra Reflexões sobre a Revolução em França, especialmente
quando o autor intenta criticar conceitos do pensamento iluminista, como “os direitos do homem”, a
conduta revolucionária francesa ou seus adeptos britânicos.
16
A violência insólita do chamado Reino do Terror, que durou da queda dos girondinos,
em 1792, à prisão de Robbespierre, em 1794, mais que confirmou as advertências de
Burke. E, se a Revolução sustentou o princípio da “igualdade” em algo, certamente o foi
na aniquilação de dissidentes, executando pessoas de origens e profissões muito
distintas: de camponeses a aristocratas, de monjas a cientistas, como o próprio Antoine
Lavoisier, pai da química moderna, cuja vida também teve seu desfecho na guilhotina.
De acordo com Messori (2004, p. 65), três mil padres teriam sido assassinados pelo
governo revolucionário, muitas religiosas violadas e torturadas até a morte e dezenas de
camponeses esquartejados, sobretudo na província de Vandée, onde os católicos haviam
organizado uma resistência armada, bem como nas demais localidades que se opuseram
ao totalitarismo revolucionário a fim de preservar suas tradições. Há historiadores que
consideram o massacre de Vandée como o primeiro genocídio da história moderna
(ibidem), uma antecipação jacobina e anticristã da “solução final da questão judaica”
implementada pelo governo antissemita do Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães no século XX. Em todas as regiões alcançadas pela cólera
revolucionária jacobina, inclusive em terras italianas, podem ter havido massacres ou
perseguições aos crentes (MESSORI, 2004, p. 66).
4
A memória do martírio delas foi perpetuada pela beatificação da Igreja, pelo romance histórico de
Gertrude Von Le Fort (A Última ao Cadafalso) e pela peça de teatro de Georges Bernanos (Diálogo das
Carmelitas), a partir da qual produziu-se também um filme com o mesmo título da peça.
17
5
Quando houve uma reação popular às perseguições anticatólicas do governo mexicano que levaram à
chamada Guerra Cristera ou Cristiada.
6
Note-se que estes dados históricos apresentados por Messori contrariam tanto os historiadores marxistas
que afirmam que a reação ao terror revolucionário partiu de uma Igreja e de uma nobreza ávidas por
preservar privilégios do Antigo Regime, quanto a concepção marxiana segundo a qual os grandes
empreendimentos históricos teriam sempre motivações socioeconômicas de fundo.
7
el general jacobino Westermann escribía triunfalmente a París, al Comité de Salud Pública, a los
adoradores de la diosa Razón, la diosa Libertad y la diosa Humanidad: “¡La Vendée ya no existe,
ciudadanos republicanos! Ha muerto bajo nuestra libre espada, con sus mujeres y niños. Acabo de
enterrar a un pueblo entero en las ciénagas y los bosques de Savenay. Ejecutando las órdenes que me
hábeis dado, he aplastado a los niños bajo los cascos de los caballos y masacrado a las mujeres, que así
no parirán más bandoleros. No tengo que lamentar ni un prisionero. Los he exterminado a todos.” Desde
París contestaron elogiando la diligencia puesta en “purgar completamente el suelo de la libertad de
esta raza maldita”.
18
8
Em 1966, o cineasta Jacques Rivette transformou o embuste de Diderot em um filme de sucesso. E em
2013 foi lançada uma nova versão de La Religieuse para o cinema, dirigida por Guillaume Nicloux.
19
O autor das Reflexões percebia o potencial destrutivo das ideologias utópicas que,
movidas por um “sentimento de humanidade abstrato”, prometem um “benefício futuro
e incerto” a pessoas que só existem idealmente, em troca de submeter os cidadãos
concretos do presente a verdadeiras “calamidades” (BURKE, 1997, p. 9). De acordo
com Russel Kirk (2005, p. 3), Burke era um homem que preferia a particularidade, o
concreto e o experimentável, mas que, diante do triunfo das ideias deletérias dos
philosophes10 iluministas, não teve outra escolha senão entrar na discussão dos
princípios abstratos da política, ainda que lhe aborrecesse o domínio da abstração. Em
geral, as obras políticas conservadoras surgem como reação à ascensão da mentalidade
revolucionária e são produzidas com certa relutância, atesta Kirk (2013, p. 133).
Burke tinha uma visão bastante modesta e, podemos dizer, realista, a respeito da
capacidade da razão humana. Em sua perspectiva, a reflexão de pensadores
contemporâneos, por mais inovadora, atraente e promissora que seja, vale muito menos
que a razão legada pela tradição. A razão inovadora seria, portanto, menos digna de
consideração do que a razão tradicional. Isso porque esta última é o produto da reflexão
testada pelo tempo, confirmada por experiências que atravessaram os séculos e
qualificada por homens prudentes de muitas gerações diferentes. Destarte, suprimir
modelos institucionais e culturais que já foram testados e aprimorados por várias
gerações a fim de substituí-los por incertos projetos brotados das “frágeis e falíveis
9
Valor que funcionava, quando respeitado, como sustentáculo da sociedade medieval, como base dos
vínculos e responsabilidades mútuas entre as classes sociais feudais.
10
Palavra francesa para “filósofos”, usada geralmente para designar os autores iluministas que nem
sempre eram propriamente dedicados à filosofia, mas escreviam sobre temas gerais de humanidades.
20
invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) não parecia uma opção viável para o
espírito um tanto cético do autor.
O valor dos princípios gerais e das instituições, para o autor, é circunstancial, não
absoluto. As circunstâncias de cada tempo e situação devem ser avaliadas para que os
princípios gerais que norteiam a ação política não sejam aplicados inadequadamente.
Para Burke, até mesmo os melhores e mais nobres princípios não podem ser
absolutizados desconsiderando as circunstâncias concretas e as consequências de sua
aplicação em cada caso. Não se trata, evidentemente, de ver os princípios e as
instituições como coisas sempre provisórias e relativas – Burke acreditava na solidez e
na durabilidade de muitos deles –, mas sim de lhes dar a adequada e devida aplicação:
11
expulsar de la política todo dogmatismo que tienda a la aplicación mecánica, ciega, de alguna teoría
abstracta
21
Para legitimar a sua casuística – a sua apologia ao exame dos casos particulares –,
Burke usa os exemplos do governo e da liberdade; uma instituição e um princípio que,
não obstante sejam considerados geralmente como bens, nem sempre podem ser matéria
de felicitações, uma vez que não são bons em toda e qualquer circunstância:
O filósofo avalia que certas posturas que pautavam a ação dos revolucionários na
França deveriam ser desterradas da política, a fim de evitar males que podem levar uma
nação inteira ao colapso e prejudicar muitas gerações à frente. Algumas delas seriam: a
ousadia aventureira, o racionalismo excessivamente otimista e pretensioso, o
progressismo imoderado e irrefletido, o lidar com os bens públicos de modo arriscado e
imprudente, o desprezo pelos costumes e instituições históricas, a falta de circunspecção
e de um juízo equilibrado. São posturas motivadas por ideologias inovadoras que os
revolucionários aplicam ao que é comum, público, mas que provavelmente não
aplicariam ao lidar com suas importâncias pessoais: “Aí eles deixam o todo à mercê de
especulações não experimentadas; abandonam os mais caros interesses do público
àquelas vagas teorias, às quais nenhum deles sonharia confiar o menor de seus
interesses privados.” (BURKE, 2012, p. 365).
12
Na historiografia brasileira, há registros dos anos anteriores e imediatamente posteriores à Proclamação
da República (instaurada em 1889) que mostram a ocorrência, no Brasil, de campanhas semelhantes de
depreciação do regime monárquico-parlamentarista. Recorde-se, ainda, que o Brasil teve também a sua
própria Vandée: no episódio que ficou conhecido como Guerra de Canudos, a população monarquista do
vilarejo baiano de Belo Monte foi massacrada pelo exército republicano. Analisando as razões
ideológicas que levaram o governo da república a dar ao povo de Belo Monte esse trágico desfecho,
compreende-se por que o historiador Boris Fausto classificou os republicanos brasileiros da época como
“jacobinos” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1995. p. 257-258).
23
França, o filósofo sugeriu que ela se tornaria, em breve, “uma ignóbil e malévola
oligarquia” (BURKE, 1997, p. 135).
não tem nada que a possa frear: nem a lei fundamental, nem convenção
estrita, nem costume respeitado. Ao invés de ser obrigada a respeitar uma
Constituição estabelecida, ela tem o poder de elaborar uma que seja conforme
seus objetivos. Não há nada, nem no céu nem na terra, que possa controlá-la.
(BURKE, 1997, p. 78).
Como se percebe, Burke não via sequer sinais de reta intenção na prática dos
revolucionários; ou, pelo menos, não na prática dos dirigentes deles. Pelo contrário, o
pensador irlandês, em diversos trechos de suas Reflexões, parece convencido da má-fé
dos jacobinos que lideravam as mudanças na França. Considera a Assembleia Nacional
francesa como nada mais que “uma associação voluntária de homens que se aproveitam
das circunstâncias para tomar o poder do Estado” (BURKE, 2012, p. 363).
O autor ainda ajuíza que a recusa dos jacobinos a recorrer aos “métodos regulares” para
sanar as desordens políticas comuns do antigo regime fora uma escolha derivada “não
só de um defeito de compreensão, mas [...] de alguma malignidade de disposição.”
(BURKE, 2012, p. 371). Embora não negasse que certas mudanças do novo regime
traziam “melhorias superficiais” aos franceses (idem, 1997, p. 221), o filósofo chama
mais a atenção para as violências e “erros fundamentais” da Revolução cujos dirigentes,
em seu parecer, “tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, e,
ao mesmo tempo, fingem querer transformá-la no receptáculo de todo o poder.” (idem,
p. 86).
25
em prol de benesses futuras. Nessa perspectiva, podem parecer aceitáveis até mesmo os
sacrifícios mais violentos, como eliminar os adversários, calar os dissidentes e destruir
algumas instituições apreciadas pelo povo. Esta visão irrestrita da humanidade, no que
toca à plasticidade e à perfectibilidade que ela atribui ao homem, favoreceu o caráter
utópico e totalitário da Revolução Francesa, de acordo com Sowell (2011, p. 40). Uma
antropologia irrestrita, além de dar ocasião ao surgimento de ideologias utopistas,
facilitaria a legitimação de líderes políticos com pretensões absolutas que são
apresentados como a encarnação das “virtudes naturais” do homem.
Burke observava que as deficiências presentes nas instituições humanas não são outra
coisa senão o reflexo amplificado das deficiências presentes na própria natureza de cada
homem. O filósofo dublinense acreditava que o bom estadista deve ter a imperfeição
humana como premissa e levá-la em conta na gestão dos bens públicos. Tomando os
homens por criaturas irremediavelmente restritas, naturalmente marcadas por impulsos
egoístas e às vezes perigosos14, Burke pensava que o Estado deve lidar com os
interesses conflitantes adotando estratagemas sociais e oferecendo contrapartidas, em
vez de pretender suprimi-los à força (cf. BURKE15 apud SOWELL, 2011, p. 29).
Importa, ainda, que, visando à preservação de bens fundamentais, como a liberdade, o
Estado tenha certo grau de tolerância para com os defeitos humanos, mesmo quando
14
Não se trata, porém, de uma visão similar à do estado de natureza hobbesiano, no qual, sem a força
coercitiva do Estado, imperam o caos e a guerra de todos contra todos. Não. Neste ponto, Burke se
aproxima mais do conceito cristão de concupiscência, que denota uma inclinação do homem para o
egoísmo, adquirida no pecado original, mas que pode ser refreada pela vontade individual aliada à Graça.
15
The Correspondance of Edmund Burke. Chicago, University of Chicago Press, 1967, v. VI, p. 392
28
estes geram certos prejuízos sociais. Neste sentido, dizia que quem “tem de lidar com
homens” (BURKE, 2012, p. 336) deve aprender a suportar as deficiências humanas até
que elas ultrapassem os limites de uma justa aceitação, ou seja, deve “tolerar fraquezas
enquanto elas não degeneram em crimes.” (ibidem).
16
O gozo do sossego público, por exemplo, exige certas renúncias no que tange à liberdade individual,
enquanto que o gozo das liberdades civis exige também, por sua vez, renúncias de outra ordem.
29
moral vem a nós através da revelação e da intuição e não das caprichosas especulações
de filósofos sonhadores.” (KIRK, 2005, p. 3-4, tradução nossa)17.18
Assim como o velho Platão e outros filósofos menos velhos do que ele, Burke concebe
uma ordem inteligível da qual a ordem sociopolítica deve ser sufragânea. Tal ideia se
expressa, por exemplo, na proposição de que uma sociedade pode aprimorar seu Estado
e suas instituições públicas na medida em que mantém seus vínculos com o “grande
contrato primitivo da sociedade eterna” (BURKE, 1997, p. 116), contrato este que “liga
o visível ao invisível” (ibidem) e encerra os princípios supremos que regem a ordem da
criação. Em Burke, o exercício legítimo do poder político tem que estar de acordo com
“aquela lei eterna e imutável na qual vontade e razão são a mesma coisa” (BURKE,
2012, p. 269), o que nos sugere já uma influência tomista, visto que, em Tomás de
Aquino, a vontade de Deus coincide necessariamente com a Sua inteligência20.
17
first principles in the moral sphere come to us through revelation and intuition, not the fanciful
speculations of dreamy philosophers.
19
intuitive glance (Burke, 1877a, p. 456)
20
TOMÁS DE AQUINO. Seleção de Textos de São Tomás de Aquino e Dante. Col. Os Pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1988. Cap. 33.
30
Em Burke, a filosofia política não é uma atividade puramente especulativa, mas diz
respeito ao exercício da sabedoria prática. Em Aristóteles (Ética a Nicômaco, VI, 8), a
sabedoria prática é a genitora de toda reflexão ética e implica diretamente nas relações
sociais e políticas. Para o filósofo grego, a sabedoria prática e a ciência política, embora
essencialmente distintas por se dirigirem a objetos diferentes (a primeira, ao indivíduo,
e a segunda, à polis), aparecem como a mesma disposição mental; ambas aparecem
como razão aplicada ao modo de orientar a ação humana para atingir o bem, ou a
eudaimonia (felicidade), de onde se apreende a proximidade entre a compreensão
burkeana e a aristotélica no que tange à reflexão política.
Em Burke, Deus é o “Autor e Protetor da sociedade civil” (BURKE, 1997, p. 117), pois
Ele não apenas fornece as diretrizes para a reta ordenação da vida e das sociedades
humanas, mas, ao criar o homem com o potencial para organizar-se racionalmente em
sociedade, cria por extensão também o Estado. Burke reconhece que o Estado e a
sociedade são convenções humanas, mas também admite que o homem e sua razão são
apenas a causa imediata dessas convenções, sendo a Causa do homem a causa primeira
das mesmas. Logo, toda a autoridade política humana, inclusive a do cidadão, vem de
Deus; não por uma especial determinação divina, mas pelo simples fato de Deus ter
criado o homem como um animal político por natureza. Burke sustenta, assim, a ideia
de uma politicidade natural. E a noção burkeana da origem divina da política pode ter
sido inspirada pela escolástica tardia, segundo Canavan (2012, p. 26), uma vez que
Francisco Suárez21 a apresentou de forma elaborada nos primórdios da modernidade.
A posição de Burke sobre a origem divina da autoridade política humana, contudo, não
deve ser confundida com a teoria da origem divina do poder real de Jacques Bossuet22,
21
Filósofo escolástico espanhol do século XVI.
22
Teólogo francês nascido no século XVII.
31
cidadãos no sentido de fazer cada homem voltar a ser tão justo, livre e fraterno quanto
era o homem primitivo, levando-o a cumprir o seu papel para que todo o corpo social se
aperfeiçoe.
Por outro lado, em Burke, os homens e o tecido social que eles constituem não podem
ser aperfeiçoados pela direção de um Estado totalizante governado por uma elite de
intelectuais. O aperfeiçoamento é, na reflexão do pensador irlandês, fruto de um
processo espontâneo de desenvolvimento moral e espiritual da sociedade, que só é
capaz de evoluir neste sentido se mantiver os vínculos com a sua Origem divina, se
valorizar as experiências dos antepassados, aprendendo com seus erros e acertos, e se
conservar as instituições e os costumes benéficos recebidos da tradição; reformando-os
para melhorá-los, quando necessário, sem cismar em destruí-los. Ou seja, para Burke o
aperfeiçoamento humano é naturalmente possível, mas não é dirigível, não pode ser
conduzido artificialmente por dirigentes esclarecidos e estruturas governamentais.
23
Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 1518.
33
ela “uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é encontrada
sem elas.”24 Em Burke, essa virtude também aparece de forma destacada no contexto de
um de seus discursos políticos e é elencada entre as virtudes que devem cultivadas pelo
estadista: “A magnanimidade na política é, não raramente, a verdadeira sabedoria”
(BURKE, 1877b, p. 181, tradução nossa)25. Burke ainda cita expressamente Aristóteles
(1997, p. 135) para expressar suas reservas em relação ao regime democrático; assunto
do qual trataremos no capítulo terceiro.
Russel Kirk (2005, p. 6) confirma que Burke rejeita a doutrina iluminista sobre os
direitos naturais do homem. O comentador recorda que as proposições de jusnaturalistas
célebres como John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham,
por exemplo, diferem significativamente do jusnaturalismo burkeano. Kirk afirma
também que Burke foi buscar numa tradição mais antiga a base para o seu
jusnaturalismo: na concepção de ius naturale (lei natural) do filósofo romano Marco
Túlio Cícero, bem como na filosofia cristã e na commom law inglesa, que surgiu no
século XII, sob o reinado de Henrique II, como um sistema jurídico-legal unificado. A
24
Ética a Nicômaco, IV, 3
25
Magnanimity in politics is not seldom the truest wisdom
34
noção de direitos humanos, em Burke, não tem a ver apenas com o que é devido ao
próprio homem, mas também, e em primeiro lugar, com o que é devido ao seu Criador.
reconhecidos e tradições. E estes são o fruto da “razão acumulada dos séculos, [que
afirma valores e promulga leis] combinando os princípios da justiça original com a
infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115).
Burke considera que os direitos positivos recebidos de uma longa e profícua tradição –
enraizada na Lei Natural e iluminada pela Revelação divina – são naturalmente mais
proveitosos aos cidadãos do que supostos direitos originais reclamados por racionalistas
ilustrados de uma única geração. Isso porque os “direitos originais do homem”,
elaborados a partir de princípios abstratos e de uma crença num idílico estado primitivo
da humanidade, não foram experimentados e testados, enquanto os direitos positivos
tiveram que ser amadurecidos, nuançados e equilibrados entre as reivindicações
conflitantes até chegarem à sua forma última. Assim, os direitos baseados na revelação
do Criador e na experiência (sabedoria prática) das gerações precedentes seriam
melhores, ainda, porque os direitos naturais da humanidade que os iluministas quiseram
elencar teoricamente sequer nos são acessíveis em sua forma pura:
27
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 95, a.2.
36
Como já sinalizamos anteriormente, Burke acreditava que um estadista, para lidar com a
complexa arte da política, deve cultivar virtudes como a humildade, a magnanimidade e
a prudência. Tais são virtudes necessárias ao homem de Estado porque lidar com a
política implica em lidar com uma multiplicidade de interesses sociais conflitantes e
com os defeitos sociais provenientes das falhas próprias do que é humano. Nessa
dinâmica, a prudência tem um papel de destaque enquanto virtude política. Ela permeia
todas as proposições burkeanas que dizem respeito à gestão da coisa pública.
Se a política é uma ciência prático-experimental, que não se faz por meio de prescrições
a priori (BURKE, 2012, p. 223), logo é sensato o estadista que dá mais crédito aos
dados resultantes das experiências políticas já realizadas do que às suas próprias
impressões pessoais. Burke avalia que, na ciência política, a experiência de longo prazo
é a que fornece os resultados mais adequados para um acurado discernimento. E a
experiência de vida de uma só geração não é bastante; é preciso considerar as
experiências dos que viveram antes de nós e que, não raramente, enfrentaram problemas
semelhantes aos nossos. O autor acredita que nada se perde por admitir que há uma
sabedoria acumulada subjacente à tradição cultural, moral e institucional que uma
geração recebe das anteriores.
Para falar desta herança institucional e cultural, Burke usa a imagem de uma árvore cujo
“velho tronco” os britânicos souberam preservar, tendo o cuidado de “não enxertar
nenhuma muda estranha à [sua] natureza” (BURKE, 1997, p. 67). De fato, o seu modelo
de monarquia constitucional atravessou séculos sem sofrer mudanças radicais desde a
Idade Média. A própria Revolução Gloriosa de 1688 fora uma “revolução relutante”
38
que não visou derrubar o sistema tradicional, mas “restaurar as antigas liberdades
constitucionais consagradas na Magna Carta de 1215” (Espada, 2010).
João Carlos Espada salienta a reverência pela tradição como uma característica
distintiva da corrente conservadora da qual Burke faz parte; uma vertente político-
filosófica que visa à conciliação entre permanência e mudança. Ao se dispor a orientar a
práxis política, o político conservador, longe de querer estagnação ou retrocesso, propõe
incentivar a evolução orgânica do Estado e da sociedade sem deixar que se invalidem, a
cada mudança de governo, as conquistas passadas. Trata-se, portanto, de uma política
que pensa o futuro em respeitoso diálogo com o passado; que planeja o futuro para
deixar à posteridade o que de bom foi recebido da ancestralidade, não com uma fixidez
anacrônica, mas com as melhorias requeridas pelas circunstâncias de cada época:
O teor dessa corrente filosófica para a qual Burke deu uma significativa contribuição
pode ser haurido também das obras de G. K. Chesterton, por exemplo. Chesterton foi
um autor profícuo no início do século XX e, tal como Burke, se tornou célebre por sua
crítica filosófica e suas reações criativas às tendências ideológicas da moda. Ele,
inclusive, retoma (e enriquece) a imagem da velha árvore para defender o legado da
tradição e criticar a mentalidade revolucionária a modo burkeano:
Se, no que concerne à natureza do ser humano, Burke tem uma visão mais “restrita” que
a dos iluministas franceses, podemos dizer que, quanto às possíveis configurações dos
sistemas políticos, o filósofo irlandês é menos restrito do que os chamados philosophes.
Burke critica tanto os “fanáticos” monarquistas, por apregoarem que a monarquia
hereditária é o “único modo legítimo de governo”, quanto os “fanáticos” republicanos,
que pretendem impor a ideia de que a eleição popular é a “única fonte legítima do
poder” (BURKE, 1997, p. 64). Assim, se Rousseau proclamava que todo poder emana
do povo, para o nosso missivista tal postura parecia indefensável.
Nem toda autoridade, para ser legítima e benéfica aos cidadãos, precisa necessariamente
ser eleita pelo povo, na visão de Burke. Assim como um governante eleito nem sempre
é bom para o povo, uma autoridade que recebeu seu poder por transmissão hereditária
não é necessariamente ruim para os cidadãos: “Nós temos uma coroa hereditária, um
pariato hereditário, uma Câmara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha
de ancestrais, seus privilégios, suas franquias e liberdades.” (BURKE, 1997, p. 69). E
não se trata aqui apenas de uma defesa da monarquia inglesa, pois o filósofo considera
também outras formas de poder que dispensam o sufrágio popular – como o poder
jurídico, a autoridade policial ou a autoridade eclesiástica – e que são usualmente
reconhecidas como legítimas e úteis à sociedade.
Com relação ao regime democrático, Burke afirma que a democracia absoluta, direta e
baseada na vontade da maioria, não é uma forma legítima de governo, assim como não
o é a monarquia absoluta. Para Burke, uma forma absoluta de democracia pode tornar a
maioria dos cidadãos “capaz de exercer, sobre a minoria, a mais cruel das opressões”
(BURKE, 1997, p. 135). Trata-se do risco da tirania da maioria, a respeito da qual
também alertou, mais tarde, Alexis de Tocqueville29. Para corroborar seu ponto-de-
vista, Burke recorre ao filósofo estagirita: “Aristóteles observava que a democracia
apresenta, em muitos aspectos, uma grande semelhança com a tirania.” (ibidem).
29
Filósofo francês do século XIX, autor do clássico A Democracia na América, que também escreveu
sobre a Revolução Francesa e é considerado, ao lado de Burke, um dos principais expoentes da tradição
liberal-conservadora.
40
Num governo que pretenda conciliar os interesses díspares dos cidadãos, a prudência
atua como uma ponderação cuidadosa das compensações. O estadista deve saber lidar
com a “infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115), para que as
vontades de uns não venham a violar os direitos de outros. O governante deve ser capaz
de conciliar liberdade e sujeição, de modo que permita a seus cidadãos o justo gozo da
liberdade, mas coíba os excessos.
O exercício dos direitos de cada cidadão deve equilibrar-se com os direitos dos demais e
acomodar-se aos preceitos da ordem pública. O autor pondera, por exemplo, que a
liberdade boa e legítima deve harmonizar-se com outros princípios, sem os quais a
mesma liberdade não seria vantajosa, nem duradoura:
Por tal razão, eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova
liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza
com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos
exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a
moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem,
com os costumes públicos e privados. À sua maneira, todas estas coisas são
bens, e se elas vierem a faltar, a liberdade deixa de ser um benefício e perde a
chance de durar muito tempo. (BURKE, 1997, p. 51).
Burke discorda da opinião segundo a qual qualquer homem é apto para exercer funções
políticas e representar devidamente seus semelhantes. O deputado britânico pensa que
nem todos são capazes de governar ou de compor um parlamento. Mas a falta de aptidão
para a qual o filósofo atenta não é devida ao sangue ou à carência de títulos
nobiliárquicos; antes, ele se refere a deficiências relacionadas à qualidade moral e
intelectual dos candidatos, à educação por eles recebida, à sabedoria por eles adquirida.
público também se enobrece por cultivar a virtude da caridade e por ter certo temor
diante do poder que lhe foi confiado: “O verdadeiro legislador deveria ter um coração
cheio de sensibilidade. Ele deveria amar e respeitar sua espécie, e temer a si mesmo.”
(BURKE, 2012, p. 369).
Burke também crê que, entre os representantes do povo, devem estar homens de
propriedade, homens que possuam bens privados em abundância. A representação dos
proprietários no parlamento é útil, segundo o autor, para defender a propriedade
privada, grande e pequena, das investidas daqueles que usam sua habilidade política
para promover a abolição da propriedade, ignorando que a propriedade privada assegura
a liberdade e a prosperidade de uma nação (1997, p. 82-83). Aliás, para Burke, assim
como para Adam Smith30, a própria desigualdade social31 é condição sine qua non para
a subsistência material de uma sociedade, sendo útil tanto aos proprietários quanto aos
camponeses e operários. Já a ideia de igualdade material plena é recebida como uma
fantasia impraticável na realidade, pois, uma vez imposta pelo Estado, geraria carência
de mão de obra para diversos serviços, escassez insuportável de produtos e serviços
básicos, falência da indústria, crise de abastecimento e caos social.
30
Filósofo e economista escocês do séc. XVIII, considerado o pai da economia moderna.
31
Não se deve confundir, aqui, desigualdade social com pobreza. Esta desigualdade prevista pelo
liberalismo econômico é considerada, antes, um remédio contra a pobreza geral. Argumenta-se que a
existência de classes e funções sociais distintas é natural, necessária e contribui para a prosperidade do
todo. Afirma-se, ainda, que a possibilidade de ascensão social numa sociedade liberal é sempre aberta aos
que se destacam pelo trabalho, pelo talento, pela criatividade ou por outros dotes laborais e intelectuais.
43
A bem da verdade, importa relembrar que o poder político no Reino Unido não está
concentrado apenas na coroa e na aristocracia, sendo que há uma instância parlamentar
que é formada por congressistas eleitos pelos distritos: a Câmara dos Comuns, que é
muito expressiva politicamente e tem nomeado a maioria dos ministros de Estado. Além
da Câmara dos Comuns, o parlamento britânico também é formado pela Câmara dos
Lordes32, composta por nobres e membros do episcopado, e pelo(a) monarca, que não
governa na prática, mas é detentor(a) das chamadas “prerrogativas reais”, que incluem a
sanção das leis, a concessão de honras, o reconhecimento de países estrangeiros, a
declaração de guerra, o título de “chefe de Estado”, a autorização do uso das forças
32
No tempo em que o Brasil também tinha um monarca, o primeiro modelo de senado criado no país foi
inspirado na Câmara dos Lordes britânica e era chamado de Senado Imperial do Brasil. Após a
Proclamação da República, em 1889, o nosso senado foi reconfigurado de acordo com os modelos dos
Estados Unidos e da Argentina.
44
A política britânica pode ser dita, ao mesmo tempo, tradicional e evoluída: uma
democracia liberal altamente representativa no seio de uma monarquia. Essa síntese,
porém, não teve origem na modernidade, segundo Espada (2010). A Magna Carta de
1215 que, de certa forma, funda essa tradição, foi escrita para impedir o exercício do
poder absoluto pelo rei John, bem como para garantir direitos aos lordes e aos demais
súditos do rei, e ainda reformar a justiça, regular o comportamento da corte, livrar a
Igreja da ingerência do monarca, dar direito de julgamento aos acusados, entre outras
resoluções antiabsolutistas.
O modelo britânico foi configurado de modo que cada uma das instâncias de poder
pudessem complementar e, ao mesmo tempo, limitar as demais. Por conseguinte, a
proposta de um governo limitado é uma “velha tradição” muito anterior a John Locke,
embora este tenha sido um de seus principais entusiastas, atesta Espada (2010).
Tomando-a emprestada de Winston Churchill33, Espada recupera a imagem da “corrente
de ouro”34 que liga o passado e o presente, unindo tradição e progresso. E sugere que
essa corrente resistiu aos séculos na Grã-Bretanha não só por causa da solidez de suas
instituições e valores, mas também porque não foram exercidas pressões indevidas
sobre ela como aquelas que derrubaram o antigo regime francês.
Poder-se-ia questionar, contudo, o que teria levado o mesmo Burke que se opôs com
tanta veemência à Revolução Francesa e às concepções jacobinas, a defender os direitos
dos colonos americanos e se posicionar a favor da Revolução Americana de 1776. De
acordo com João Pereira Coutinho (2014, p. 73), não é possível ver nisso qualquer tipo
de incoerência da parte do filósofo irlandês. E não há incoerência, inclusive, porque
vários dos mesmos motivos que o levaram a criticar a Revolução Francesa tinham-no
levado, antes, a se posicionar a favor do levante que trouxe a independência aos Estados
Unidos da América.
33
Ex-primeiro ministro do Reino Unido que se tornou célebre por sua atuação política durante a Segunda
Guerra Mundial.
34
Golden chain, no idioma de Churchill.
45
Não tinham os americanos, inicialmente, a pretensão de criar uma nova ordem a partir
de novos direitos e princípios teóricos, mas queriam apenas que lhes fossem restituídas
as “velhas liberdades”, isto é, os direitos da “velha ordem” que lhes eram negados. Em
outras palavras, os colonos americanos desejavam tão somente ter os mesmos direitos
que tinham os velhos homens livres da velha Inglaterra. Como a coroa e o parlamento
permaneceram teimosamente inflexíveis, negando-lhes o pouco que pediam, eles
insurgiram-se contra a metrópole e, uma vez independentes, implantaram uma república
que restituía muitas daquelas “velhas liberdades”. Tal postura os distinguia
radicalmente dos jacobinos e dava um caráter conservador à insurreição americana e à
sua demanda por independência.
35
Conforme o célebre bordão “no taxation without representation” (“nenhuma taxação sem
representação”).
46
Burke pode ter se inspirado, mais uma vez, na filosofia tomista ao aquiescer com o juízo
de que seria legítimo, quando todos os outros recursos estivessem esgotados, punir um
soberano que estivesse causando grandes males a seus súditos. Tomás de Aquino
concordou com a legitimidade do recurso ao tiranicídio em circunstâncias extremas36, e
lembrava, inclusive, que Cícero considerara justo o assassínio do imperador romano
Júlio César. Embora monarquista convicto, Burke também chega a afirmar que, em
casos extremos, “a punição de reis tiranos é um ato de justiça nobre e grandioso” (1997,
p. 105). Assim, fica parente que, na visão do autor, os impulsos deletérios da
mentalidade revolucionária não constituem a única ameaça possível a uma ordem
política fundada na natureza e na experiência. Pois um governante empossado
legitimamente que cobiçasse o poder absoluto para si e espezinhasse os direitos dos
súditos para alcançá-lo também poderia ser tão perigoso, subversivo e irrepresentativo
quanto um levante revolucionário insuflado por intelectuais utopistas.
36
TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, II, 44. 2. 2.
47
ainda, que a confiança dos britânicos em seu sistema se sustenta “não em virtude de
princípios abstratos” (ibidem), mas graças à transmissão de um patrimônio de direitos e
valores “legado pelos seus antepassados” (idem, p. 68). Patrimônio este que remonta ao
século XIII e cujos valores constituem o eixo central de seu sistema, o fator unificante
de suas leis, o fundamento comum das diversas partes de sua Constituição.
O filósofo considera que entre os antigos se encontrava, com mais frequência do que
entre os modernos, pioneiros que deveriam servir de inspiração às novas gerações, que
se destacaram como “modelos de virtude e de sabedoria” (1997, p. 72). Estes pioneiros
entraram para a história, em muitos casos, por terem criado ou reformado instituições
que se tornaram venerandas e atravessaram os séculos. O autor acredita que tais
instituições fazem parte do patrimônio comum da humanidade e não merecem ser
desmanteladas em nome de impetuosas e irrefletidas inovações revolucionárias. A
48
Isoladamente, cada instituição social não pode socorrer a todas as necessidades humanas
sem as demais. O Estado não pode substituir a família, e tampouco a Igreja, como
pretenderam os jacobinos. As instituições sociais devem coexistir e cumprir seus papéis
de forma a corresponder, inclusive, aos sentimentos da população: “unimos em nossos
corações, para querê-los com o calor de todos os nossos sentimentos combinados, nosso
Estado, lares, túmulos e altares.” (BURKE, 1997, p. 69). A cada instituição cabe
respeitar as demais e cumprir bem sua missão, sem violar as jurisdições alheias. Ao
afirmar, por exemplo, que “as leis não podem se fazer escutar por entre o barulho das
armas, e os tribunais caem por terra com a paz que eles não são capazes de manter”
(idem, p. 66), Burke lembra que as instituições são tão mais duráveis quanto mais
eficazes conseguirem ser no cumprimento de sua missão.
Não obstante seu apreço pelas instituições antigas, Burke não sugere que elas devam
permanecer sempre imutáveis, mesmo quando começam a dar sinais de desgaste. Pelo
contrário, o filósofo irlandês deplora a “obstinação que rejeita toda melhoria” (2012, p.
369) tanto quanto a “leviandade que fica cansada e enjoada de tudo que possui”
(ibidem). Uma sociedade sábia, no seu parecer, não só preserva as instituições e
costumes benéficos legados pela tradição, mas também se dispõe à reforma gradual e
paciente das instituições que se tornam ineficazes ou prejudiciais. A possibilidade de
mudanças pontuais, de reformas prudentes e adequadas, é considerada útil à própria
conservação do Estado: “Um Estado onde não se pode mudar nada, não tem meios de se
conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes de sua Constituição que
com mais ardor desejaria conservar.” (BURKE, 1997, p. 61).
Uma reforma institucional só será prudente quando for orgânica, isto é, quando for
adaptável ao todo do organismo social, quando “o que for acrescentado for adequado ao
que é retido” (BURKE, 2012, p. 368), de modo que não haja incompatibilidade entre o
acréscimo e o que permanece, entre o novo componente e o velho38. Até porque toda
reforma parte do que foi dado pela tradição e, para que ela seja bem-sucedida, os
reformadores devem consultar o repositório experiencial das épocas, a fim de não
repetir os erros cometidos por reformadores de outros tempos. Tendo em vista essa
prudência que deve nortear o procedimento reformista e evitar os erros da celeridade,
Compete ao governante, ainda, ajuizar que as reformas devem ter sempre um caráter
pontual e restrito, devem “limitar a mudança à parte deteriorada” (BURKE, 1997, p.
60), a fim de evitar qualquer “pretensão de decompor todo o corpo civil e político”
(idem, p. 61). Assim, ao examinar os defeitos de uma antiga instituição nacional, cuide-
se para que “nunca se imagine começar sua reforma pela sua subversão” (idem, p. 116).
38
Há, aqui, certa proximidade com a visão política do empirista David Hume, com quem Burke manteve
contato pessoal (1997, p. 168). Hume também defendia que o estadista sensato deve adaptar as melhorias
e inovações necessárias “o mais possível” às antigas instituições, “conservando intactos os principais
pilares e sustentáculos da Constituição”, além de igualmente ver a experiência passada como parâmetro
para a política e considerar dignas de respeito as instituições que trazem as “marcas do tempo” (HUME,
David. Ideia de uma república perfeita. Col. Os Pensadores São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 261).
52
A lentidão das reformas cuidadosas é, para o filósofo irlandês, não apenas aceitável,
mas até mesmo desejável, de modo que a vagarosidade de um procedimento reformista
que só muda as coisas passo a passo é, em última análise, uma de suas excelências, uma
vez que diminui a incidência dos erros próprios das mudanças apressadas. Burke advoga
que, enquanto processo de aprimoramento sócio-institucional, a reforma gradual é “um
método em que o tempo é um de seus assistentes” (2012, p. 369). O autor ainda recorda
que nunca são demasiadas a paciência e a prudência que se mantêm ao planejar
quaisquer mudanças que possam ter implicações graves na vida dos cidadãos:
39
Na contemporaneidade, Karl Popper repropôs essa alternativa de modo muito similar à intuição de
Burke: “o método utópico deve levar a uma perigosa adesão dogmática a um projeto pelo qual se fizeram
incontáveis sacrifícios. Poderosos interesses devem ligar-se ao sucesso dessa experiência. Tudo isso não
contribui para a racionalidade, ou para o valor científico, da experiência. Mas o método gradual permite
experiências reiteradas e contínuos reajustamentos.” (POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos. Vol I. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974. p. 178)
53
CONCLUSÃO
As Reflexões sobre a Revolução em França, para além de uma mera composição textual
destinada a criticar um acontecimento histórico específico e fundamentar teoricamente
essa crítica, dão-nos a conhecer um pensamento que delineia uma proposta consistente
de ação política. Deste modo, a obra ultrapassa o evento histórico particular que
motivou a sua escrita. Esse pensamento político, porém, não se encerra totalmente no
texto das Reflexões, mas é complementado por outros textos de menor importância
ainda não traduzidos para a língua portuguesa, como o Apelo dos Novos Whigs para os
Velhos, o Discurso sobre a Independência do Parlamento, as Cartas sobre uma Paz
Regicida, os Discursos sobre a Conciliação com a América e os Pensamentos sobre a
Causa dos Presentes Descontentamentos. Contudo, pela leitura atenta das Reflexões,
pudemos divisar claramente uma filosofia política que vai muito além das críticas aos
iluministas e jacobinos, uma vez que propõe positivamente uma práxis política que é
válida mais para as circunstâncias ordinárias de estabilidade sócio-institucional do que
para aquelas que demandam reação a um processo revolucionário já em curso.
advogam pela salvaguarda das liberdades civis organicamente ordenadas e pelo respeito
aos direitos individuais. Como observa João Pereira Coutinho, a tradição política
conservadora é uma das poucas que pode se orgulhar por “não ter sangue nas mãos”.
Esperamos também ter chamado a atenção para os méritos de uma tradição político-
filosófica de matriz anglo-saxã40, da qual Burke foi um dos maiores e mais
indispensáveis expoentes, que é largamente ignorada no Brasil, não obstante tenha
transmitido valores e critérios de juízo a diversas gerações de filósofos, estadistas e
eleitores da Europa e das Américas.
O pensamento de Burke nos sugere manter certo ceticismo para com todas as formas
aparentemente promissoras de engenharia político-social. Sua obra também nos ajuda a
meditar, por exemplo, sobre a questão da autonomia dos poderes, principalmente nas
circunstâncias em que um mesmo grupo partidário pode cobiçar o controle de todas as
instâncias de poder, aparelhando inclusive o judiciário. O autor nos faz repensar, ainda,
a questão da representatividade política, sobretudo nos contextos onde um governo,
40
Uma das poucas tradições políticas que podem se orgulhar por não ter “sangue nas mãos”, recorda João
Pereira Coutinho (2014, p.18)
41
Só no século XX, como é de conhecimento geral, mais de 150 milhões de vidas humanas foram
ceifadas por atos políticos de regimes alçados ao poder pela força das ideologias utópicas.
55
Esperamos ter feito transparecer que o conservadorismo de Burke não é uma espécie de
ideologia aristocrática elaborada numa tentativa frustrada de resguardar privilégios de
classe ante a ascensão de uma burguesia revoltosa. Até porque, como vimos, Burke não
fazia parte da Câmara dos Lordes, não falava pelos nobres, mas era um deputado da
Câmara dos Comuns eleito pelo povo do condado de Bristol. Ademais, mostramos que
sua política é alicerçada na defesa de direitos e liberdades comuns, em experiências
históricas e nas tradições e instituições consagradas pelos povos. Fosse de outro modo,
não se poderia esperar de Burke qualquer condescendência para com os colonos
indianos, americanos ou para com os católicos irlandeses, e tampouco qualquer
compreensão sua a respeito das circunstâncias críticas que podem legitimar a
deflagração de um processo revolucionário.
Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os bons façam nada.
56
REFERÊNCIAS
Primárias
______. Reflexões sobre a Revolução na França. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2012.
______. Reflections on the Revolution in France. In ______. The Works of the Right
Honorable Edmund Burke. 5. ed. Vol. III. Boston: Little, Brown and Company, 1877a.
______. Speech on Conciliation with America. In ______. The Works of the Right
Honorable Edmund Burke. 5. ed. Vol. II. Boston: Little, Brown and Company, 1877b.
______. Thoughts on the cause of the present discontents. In ______. The Works of the
Right Honorable Edmund Burke. 5. ed. Vol. I. Boston: Little, Brown and Company,
1877c.
Secundárias
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
(Os Pensadores, v. 2).
CARVALHO, Olavo de. O inimigo é um só. Diário do Comércio. São Paulo, 08 jan.
2007. Opinião, p. 2-3. Disponível em: <
http://www.olavodecarvalho.org/semana/070108dc.htm >
CÍCERO, Marco Túlio. Das Leis. Trad., intr. e notas de Otávio T. de Brito. São Paulo:
Cultrix, 1967.
COBBAN, A. The Debate on the French Revolution: 1789-1800. London: Adam &
Charles Black, 1960.
______. Em busca do Equilíbrio. Dicta & Contradicta, São Paulo, n. 03, p. 32-42,
junho, 2009. Disponível em: <www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/em-busca-do-
equilibrio/>
FLAKE, Otto. A Revolução Francesa. Trad. Alcides Rössler. Porto Alegre: Ed. Globo,
1937.
______. Edmund Burke: a genius reconsidered. 2. ed. Wilmington: ISI Books, 2009.
PAPPIN, Joseph. The Metaphysics of Edmund Burke. New York: Fordham University
Press, 1993.