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ARTE E PUBLICIDADE: UMA RELAÇÃO INTERMIDIÁTICA


MARCADA POR INFLUÊNCIAS, APROPRIAÇÕES E SUBVERSÃO
DE CÓDIGOS E LINGUAGENS1

Nanci Aparecida da Silva2


Maria Adélia Menegazzo3

RESUMO
A publicidade moderna tem a sua gênese vinculada às artes pictóricas e, nesse
diálogo com a tradição plástica, apropriou-se de obras consagradas. Artistas das
vanguardas do século XX também transpuseram para o universo da arte códigos,
signos, meios e linguagens tradicionalmente ligados à publicidade. Com base teórica
vinculada ao conceito de intermidialidade, este artigo pretende discutir
a relação entre artes visuais e publicidade e como os dois campos geraram
influências mútuas. É a partir dessa relação de intermidialidade que obras das artes
visuais foram transpostas para peças e campanhas publicitárias, e artistas como
Andy Warhol da Pop Art e a feminista contemporânea Bárbara Kruger utilizaram
signos e linguagens da publicidade, subvertendo-os e questionando a sociedade
consumista e capitalista.

Palavras-chave: Artes visuais. Publicidade. Intermidialidade. Transposição


intersemiótica.

ABSTRACT
Modern advertising has its genesis linked to the pictorial arts and together in this dialogue
with the plastic tradition, it has taken over enshrined works. Avant-garde artists of the
twentieth century also transposed to the world of art codes, signs, media and languages
traditionally linked to advertising. With theoretical base connected to the concept of
intermediality, this article discusses the relationship between visual arts and advertising,
and how the two fields have generated mutual influences. It is in this intermediality
relationship that the visual arts’ works have been transposed into pieces and advertising
campaigns, and artists such as Andy Warhol's Pop Art, and contemporary, as the feminist
Barbara Kruger, used signs and languages of advertising, subverting them and
questioning consumerist and capitalist society.

Keywords: Visual arts. Advertising. Intermediality. Intersemiotic transposition.

1
Artigo apresentado à disciplina Poéticas Contemporâneas e Relações Interartes do curso de
Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal do Mato Grosso do sul
(MEL/CCHS/UFMS).
2
Jornalista, especialista em Imagem e Som, diretora de criação publicitária e aluna especial da
disciplina Poéticas Contemporâneas e Relação Interartes do Mestrado em Linguagens da UFMS –
nancisilva13@gmail.com.
3
Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada. Professora do Programa de Pós-Graduação
dos Estudos em Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
2

INTRODUÇÃO

Se é verdade que não é possível separar uma arte da outra, ainda mais num
cenário de surgimento e confluência de novas mídias, também é verdade que a
combinação de diferentes linguagens é uma forte tendência que, cada vez mais,
está atenuando as fronteiras entre manifestações artísticas e produções midiáticas.
É possível observar, ainda, que a intermidialidade – termo recente para um
fenômeno que, como relata Claus Clüver, esteve presente em todas as culturas e
épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que
chamamos de “arte” – expandiu-se e avançou para a publicidade. De acordo com
Clüver, “intermidialidade implica todos os tipos de inter-relação e interação entre
mídia 4 : uma metáfora frequentemente aplicada a esses processos que fala de
‘cruzar as fronteiras’ que separam as mídias” (CLÜVER, 2008, p. 9). Para avançar
na compreensão desse cruzamento de fronteiras intermidiáticas, Diniz (2011, p.28)
parte, primeiramente, da conceituação de intertextualidade, construída por Genette
para, depois, chegar ao conceito de intermidialidade:

Para Genette, a relação transtextual pode se dar de várias maneiras, cada


qual constituindo um aspecto da textualidade, ou ainda, um tipo de
transtextualidade. Entre esses tipos, destacamos a hipertextualidade, "toda
relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A
(que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma
que não é a do comentário" (GENETTE, 1997, p. 5) […] Como o conceito de
texto não se restringe apenas a formas verbais, podemos ainda dizer que,
ao nos relacionarmos com um texto, esta relação se dá pela configuração
de uma mídia, cuja performance emite signos (configurados por essa
mídia). Essa definição expande o nosso conceito de hipertexto, para
abranger também textos concebidos em outras mídias. Em analogia,
portanto, chegamos a um novo conceito, o de hipermidialidade, definido
como a relação que une o texto hipermidiático a um texto anterior, o texto
hipomidiático, do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário.

Dessa forma, são considerados como textos o que é concebido em qualquer


sistema semiótico e, assim, a intermidialidade é sempre intertextual e nos leva,
4
O termo mídia utilizado tem como base a conceituação de Clüver: “[…] ‘mídia’ tem muitos
significados e vários entre eles aplicam para o conceito de ‘intermidialidade’. Porém, é uma tarefa
difícil encontrar uma definição geral de ‘mídia’ que valha para todas as mídias englobadas pelo
conceito de ‘intermidialidade’. A proposta feita anos atrás por três estudiosos alemães encontrou
alguma aceitação. Eles definiram ‘mídia’ como ‘aquilo que transmite um signo (ou uma combinação
de signos) para e entre seres humanos com transmissores adequados através de distâncias
temporais e/ou espaciais’” (CLÜVER, 2008, p. 222). “‘Mídia’ pode ser definida […] como um meio de
comunicação convencionalmente distinto, especificado não só por canais (ou um canal) de
comunicação particular(es) mas também pelo uso de um ou mais sistemas semióticos que servem
para transmitir mensagens culturais”. (WOLF apud CLÜVER, 2006b, p. 34).
3

conforme esclarece Müller, para “o ‘jogo de estar no entre-lugar’, um jogo com vários
valores ou parâmetros em termos de materialidades, formatos, ou gêneros e
significados” (MÜLLER, 2012, p. 83).
Neste contexto de cruzamento de fronteiras, as relações intercambiáveis
entre artes visuais e criações publicitárias são marcadas por exemplos que
remontam ainda o século XIX, como a criação de cartazes, por Jules Chéret e Henri
de Toulouse-Lautrec, para os cabarés na Paris do final do século XIX, sobretudo o
Moulin Rouge.
Lautrec, ao criar os cartazes de divulgação da temporada de 1891 do Moulin
Rouge (fig.1), antecipa em Paris o segredo da moderna publicidade. O artista
francês revoluciona o design gráfico e faz da relação entre arte e publicidade uma
combinação de imagem e texto, primando pela mensagem direta e pela utilização de
recursos gráficos atraentes, como curvas, cores e sombras e, assim, inaugura na
linguagem publicitária uma composição de signos que vai além de mostrar o
produto: passa a dialogar com o imaginário do público, sugerindo e seduzindo-o
para uma ação.

Toulouse-Lautrec compreendeu que a essência do cartaz era uma


simplicidade corajosa que prendesse a atenção e transmitisse a sua
mensagem instantaneamente antes que o passageiro fosse levado adiante
pelo ônibus, ou pela carruagem, ou o pedestre fosse distraído por outra
visão da cidade. (HARRIS, 1994, p. 44).

Figura 1: Moulin Rouge: La Goulue, 1891. Henri de Toulouse-Lautrec (French, 1864–1901).


Lithograph printed in four colors; three sheets of wove paper; 189.99 x 116.51 cm.
Fonte: <http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/32.88.12>. Acesso em: 11 jul. 2015.
4

Portanto, a publicidade moderna tem a sua gênese vinculada às artes visuais.


Mas essa inflluência não foi unilateral. Mesmo tendo a publicidade como função
última e essencial a venda ou a promoção de produtos/serviços/valores/marca
(GAULI, 1998, p.182) a partir da estratégia da persuasão/sedução, fato que a
diferencia das artes, a sua linguagem e os seus códigos também foram apropriados
por artistas plásticos e invadiram espaços considerados sagrados da arte – museus
e galerias –, confirmando uma influência mútua.
A partir dos conceitos e das linguagens da publicidade moderna, artistas da
Pop Art, como Andy Warhol, e da Arte Contemporânea, como Barbara Kruger,
criaram obras para questionar a sociedade de consumo, as relações sociais, os
estereótipos e os estilos de vida. Nessa relação de intermidialidade, os trabalhos da
publicidade e dos artistas alcançaram a configuração de uma transposição
intersemiótica que:

[...] na conceituação de Irina Rajewsky, é o processo “genético” de


transformar um texto composto em uma mídia, em outra mídia de acordo
com as possibilidades materiais e as convenções vigentes dessa nova
mídia. Nesses casos, o texto “original” (um conto, um filme, uma pintura,
etc.) é a “fonte” do novo texto na outra mídia, considerado o “texto-alvo”.
(CLÜVER, 2008, p.18).

1 A ARTE NA PUBLICIDADE E A PUBLICIDADE NA ARTE: INFLUÊNCIAS E


APROPRIAÇÕES

A publicidade, a partir do avanço das tecnologias, aprimora a hibridação de


linguagens, signos, textos verbais e não verbais e meios. O diálogo com a tradição
plástica fez com que a publicidade buscasse na história da arte um vasto banco de
imagens para a criação e o desenvolvimento de seus anúncios e peças, que,
gradativamente, foram deixando de ser meros reclamos para se transformar em
imagens, cada vez mais icônicas (GAULI, 1998, p.183).
São muitos os exemplos de campanhas e anúncios publicitários que
utilizaram como referência obras de arte consagradas. A apropriação vai de
trabalhos artísticos como os clássicos Laocoonte e Seus Filhos, Mona Lisa e A
Última Ceia de Leonardo da Vinci, a quadros dos Monet, Mondrian, Salvador Dalí,
René Magritte, entre tantos outros. Mas quando a obra de arte é transposta para
5

uma peça publicitária, por exemplo, ela não vem apenas como uma recriação. À
tradução são associados outros ícones gráficos, geralmente uma combinação de
texto verbais (slogans, informações sobre o produto) e não verbais (fotografias,
logotipos) para atender à construção de um conceito e à intencionalidade de se
relacionar a marca a um comportamento, despertando no público-alvo (target5) uma
adesão ao que se propõe na campanha. Por essa razão, a imagem não é apenas
um texto a ser lido, mas um texto que incorpora valores e referência de outros textos
que, juntos, compõem os sistemas de significações. Assim, o novo texto se constitui
num texto intersemiótico ou intermídia que, no conceito de Clüver, é aquele que
“recorre a dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os
aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos
se tornam inseparáveis” (CLÜVER, 2008, p. 20).
Neste diálogo com a tradição pictórica, temos o exemplo do afresco A Última
Ceia, do renascentista Leonardo da Vinci (1495 a 1497), pintado no convento de
Santa Maria delle Grazie, em Milão, uma transposição semiótica feita a partir do
texto bíblico e a primeira obra da história a ser reproduzida em massa, o que
inspirou a criação, em 2013, de cartazes publicitários, vídeos e peças digitais da
campanha Salvador Rocks, da marca brasileira Cavalera (fig. 2).

Figura 2: Peça publicitária eletrônica da Campanha Salvador Rocks, 2013, Cavalera, Brasil.
Fonte: CAVALERA.

As peças gráficas e eletrônicas da campanha reconstruíram o afresco de da


Vinci numa fotografia que coloca em cena apresentadores de TV e cantores do pop
5
No caso da publicidade, é o público-alvo a ser atingido com a estratégia de comunicação.
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rock nacional assumindo o papel de apóstolos na Santa Ceia. A composição, no


entanto, substitui a figura de Jesus pelo logotipo da Cavalera, reforçando a
imponência da marca. Com uma atitude ousada, a campanha publicitária uniu a
religiosidade à irrevência e à rebeldia do rock, trazendo para a publicidade uma
referência das artes pictóricas, mas subverte os ícones sagrados da obra “original”.
Outra obra do artista renascentista que tem sido apropriada pela
comunicação publicitária é a Mona Lisa. Diretores de criação e de arte têm feito a
tradução da obra utilizando recortes, acrescentando elementos gráficos e
interferindo nos aspectos originais da protagonista enigmática da tela de Leonardo
da Vinci. Os anúncios, sendo uma tradução, não precisam, necessariamente, fazer
referências explícitas ou ser cópias da obra original (fig.3). A obra precursora pode
aparecer na forma de um traço, um eco, um palimpsesto.

Figura 3: Anúncio publicitário de Lufthansa, criado em 2007 pela McCann.


Fonte: BONAZZOLI; ROBECCHI.

Ao realizar a tradução para uma nova mídia e com outra tecnologia, a


publicidade acrescentou outros elementos gráficos, constituindo o que Clüver
anuncia:

[...] é inevitável que uma tradução não seja equivalente ao original, e que,
ao mesmo tempo, contenha algo a mais ou a menos que o original [...] Toda
tradução oferece, de maneira inevitável, mais e menos que o texto original.
O acerto do tradutor depende [...] também das decisões que toma quanto ao
que pode ser sacrificado. (CLÜVER, 1989, p. 61).

É assim que a tradução da obra célebre de Eugéne Delacroix, A liberdade


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guiando o povo, 260 cm x 325 cm, Museu do Louvre, Paris, no cartaz publicitário
POWERevolution, para a Cotton Joy, é feita, por meio da fotografia de uma jovem
empunhando um grande tecido laranja e atrás uma multidão carregando peças de
tecidos como se fossem cartazes (fig. 4). A imagem do cartaz remete o leitor à obra
de Delacroix e à ideia de revolução. A pintura de Delacroix não está no cartaz, mas
podemos percebê-la porque o “significado do signo nos é transmitido não por sua
aparência geral, mas por aquilo que se conhece como características
identificadoras.” (GOMBRICH, 2007, apud ESTEVES; CARDOSO, p. 166).

Figura 4: Anúncio Publicitário da Marca Cotton Joy.


Fonte: BONAZZOLI, Francesca; ROBECCHI, Michele.

Essa percepção da obra-fonte numa peça publicitária, no entanto, depende do


grau de conhecimento do público. Nesse jogo intertextual é necessário que as obras
usadas como referência façam parte do repertório de quem vai ser atingido pela
campanha publicitária, caso contrário, a referência não vai ser percebida pelo leitor.
Dessa forma, a “tradução” é um ato de interpretação tanto do tradutor, que
demonstrará seu envolvimento com o texto no ato tradutório, como do leitor, que fará
isso a partir dos seus códigos, convenções e normas interpretativas e também do
conhecimento que possui da obra original.
Com as vanguardas artísticas do século XX, cresceu a influência das artes
visuais na publicidade (Construtivismo Russo, Surrealismo, Dadaísmo, entre outros),
mas com a Por Art, o jogo intertextual se intensifica e a relação se inverte. É a
publicidade que passa a influenciar as criações. Com raízes no dadaísmo de Marcel
Duchamp, a Pop Art começou a ganhar forma na década de 50, na Inglaterra, e teve
o seu ápice na década seguinte, nos Estados Unidos. Artistas desse movimento se
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apropriaram não só da linguagem publicitária, mas também dos símbolos e das


marcas, e passaram a transformá-los em tema de suas obras, inclusive, para criticá-
los. Dialogaram com a cultura de massa (televisão, cinema, revistas de
celebridades, quadrinhos, propaganda) e do universo de consumo (embalagens de
produtos).

2 A ARTE SE APROPRIANDO E SUBVERTENDO A LINGUAGEM PUBLICITÁRIA

Andy Warhol (1928 - 1987), artista estadunidense, foi fundo na apropriação


dos signos publicitários. Com a sua origem profissional na publicidade – trabalhou
na revista Glamour, Vogue e Harper's Bazaar – carrega consigo a técnica que
aprendeu a dominar nos estúdios de publicidade e design, construindo uma
hibridização visual que derruba as fronteiras que separavam a arte "erudita" e
"comercial” (fig. 5). Warhol, além de utilizar tonalidades fortes nas suas criações,
também privilegia colagens e a utilização de matéria-prima descartável, geralmente
não utilizada pelos artistas plásticos. Na década de 60, por meio da serigrafia, passa
a gerar mecanicamente inúmeras cópias de seus trabalhos, reproduzindo em série
os temas das suas produções artísticas que foram extraídos do cotidiano da
sociedade de consumo: sopas Campbell, notas de dólar, garrafas de Coca-Cola,
rostos de ícones da indústria cultural, entre eles os de Marilyn Monroe, Elvis Presley,
entre outros. Se o conceito de arte, desde que Marcel Duchamp inventou o readymade,
tornou-se cada vez mais difícil de diferenciar “arte” da “não arte” (CLÜVER, 2006, p.18), a
partir da Pop Art, de acordo com João Fernandes6, aprofundam-se os questionamentos em
torno da autonomia e da “essência” da obra de arte:

Assiste-se assim, ao mesmo tempo em que há a consagração da pop art, à


redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento dos gêneros formais, ao
uso do filme, do cinema, da fotografia e do texto como suportes de projetos
conceituais, a uma busca das relações entre arte e vida que acompanham a
aceitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito
de marco ou enquadramento, os quais dão lugar à invasão do espaço interior e, às
vezes, exterior e também à utilização de novos materiais pobres, reciclados a partir
de outros existentes ou, inclusive, materiais tecnologicamente sofisticados.
(FERNANDES, 2004, p. 102).

6
João Fernandes. Subdiretor artístico e curador principal do Museu Nacional Centro de Arte Rainha
Sofia (Madrid) desde 2012. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de
Porto.
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Warhol pretendia tornar a sua arte o mais industrial possível, usando métodos
de produção em massa. Depois, paradoxal e ironicamente, é a própria publicidade
que vai se apropriar de Warhol para vender produtos e marcas e despertar no
público o desejo pelo consumo.

Figura 5: Andy Warhol – Perrier – 1983.


Fonte: MOMA.

Com a mesma ironia de Warhol, a artista norte-americana Barbara Kruger,


nascida em 1945, também se apropria da linguagem publicitária e midiática e traz
para a arte visual os temas consumismo, machismo e discriminação. Ela, a exemplo
de Warhol, teve sua origem profissional no mercado editoral e publicitário, como
diretora de arte de revistas e como designer de capas de livros; estudou Arte e
Design na Parson’s School of Design e cursou Artes Visuais na Universidade de
Syracuse.
Kruger, ao fazer a transposição midiática, subverte os signos e a linguagem
da publicidade, denunciando as desigualdades, as relações sociais e os valores da
sociedade capitalista. A artista faz uma combinação de imagens e palavras de efeito
que dão forte impacto às suas obras, as quais, geralmente, são de grandes
dimensões, como se fossem anúncios gigantes ou grandes outdoors. A combinação
de textos imperativos e/ou slogans, fontes tipográficas, diagramação impactante com
fotografias em preto e branco fazem com que as obras da artista se configurem
numa tradução estética de um anúncio publicitário ou de uma página de revista.

[…] faz bastante sentido abordar como transposições intersemióticas os


muitos exemplos nos quais os aspectos visuais dos textos verbais têm sido
intensificados por operações visuais adicionais. Essas são as obras
intermidiáticas nas quais o texto verbal tem sido incorporado ao novo signo.
(CLÜVER, 2006a, pp. 151-152).
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Como fotógrafa, Kruger trabalha não somente com a criação de imagens, mas
também com colagem e montagens, unindo fotografia e textos e, por meio dessa
manipulação, dá outros sentidos às suas criações. Utilizando a linguagem
publicitária para combater as mensagens que a própria publicidade anuncia, ela
utiliza a arte como espaço de combate, subvertendo a sua linguagem e contestando
a sociedade capitalista e suas desigualdades, especialmente a de gênero.7
Ao analisar a obra de Kruger, Rod Slemmons afirma:

[...] Barbara Kruger combinou uma linguagem muito simples que ultrapassa
os lugares comuns, com imagens que também são de lugares comuns e
que as toma emprestadas de diversos meios para criar sofisticadas
afirmações feministas. [...] Kruger aperfeiçoou a composição de texto e
imagem recorrendo a eficazes estratégias publicitárias e à propaganda
política. Mas não perdeu de vista sua agenda social primeira. (SLEMMONS,
2004, p. 32).

Barbara Kruger não se restringe aos lugares institucionalizados da arte como


galerias e museus. Ela explora as possibilidades das ruas, os espaços urbanos, nos
quais a publicidade tem forte presença, buscando alcançar o público que circula
pelas grandes cidades. Para tal, utiliza as mídias normalmente vinculadas à
propaganda e ao consumo, como cartazes, outdoor, fachadas de ônibus, sacolas e
camisetas. Não é uma arte contemplativa. É a arte que advém da publicidade:
mensagens diretas e imperativas que no cotidiano falam com os sujeitos.

Figuras 6 e 7: Criações de Barbara Kruger.


Fonte: ESPAÇO HUMUS.

7
O conceito de gênero, que foi desenvolvido pela teoria feminista na década de 1980 e mais tarde
rediscutido por Scott (1990, p. 5), refere-se a um sistema de relações de poder baseadas num
conjunto de qualidades, papéis, identidades e comportamentos opostos atribuídos a mulheres e
homens. As relações de gênero são determinadas pelo contexto social, cultural, político e econômico.
Enquanto sexo é determinado pela natureza, pela biologia, o gênero é construído historicamente,
sendo, portanto, variável e mutável.
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A figura 6 apresenta uma imagem bastante conhecida no campo da


publicidade, tanto pela fotografia como pela tipologia gráfica: uma mão que, com um
gesto clássico, segura um cartão. Porém, o que nos anúncios publicitários aparece
como um cartão de crédito é aqui substituído por um simples retângulo vermelho,
sobre o qual a artista destaca a frase “I shop therefore I am” (Eu compro, logo
existo), o que remete ironicamente à máxima de René Descartes “Penso, logo
existo”. Com isso, Kruger denuncia a inversão de valores na sociedade capitalista
consumista, na qual prevalece o ter sobre o ser. As obras da artista são compostas
por imagens que possuem poucos elementos de modo a facilitar sua assimilação e
decodificação, e contêm frases curtas, claras e de impacto, assim como se
constituem os slogans publicitários.
Na construção da obra da figura 7, a artista discute o controle político do
corpo da mulher, um controle que é exercido, inclusive pelo Estado ao proibir o
aborto. “Your body is a battleground” (O seu corpo é um campo de batalha) traz em
primeiro plano uma foto em preto e branco de um rosto feminino – fotografia que
provavelmente foi apropriada de uma revista antiga e, no jogo intertextual de juntar
imagem e texto, utiliza uma diagramação própria da linguagem publicitária. Metade
do rosto passou pelo processo de negativação da fotografia, criando uma linha
divisória imaginária que divide verticalmente por contraste a face da mulher.
Retângulos vermelhos horizontais soprepõem a fotografia e emolduram a
mensagem escrita com a tipografia Futura Bold Italic em letras brancas – fonte que é
usual na publicidade, especialmente quando se quer destacar a mensagem.
A artista, ao separar o rosto da modelo em duas partes com cores invertidas,
subverte o sentido da fotografia publicitária, que sempre evidencia o corpo perfeito.
Vai além e mostra que a mulher não tem o controle sobre o seu corpo, o qual é um
campo de batalha sempre em disputa numa sociedade que, construída a partir da
desigualdade de gênero, controla, manipula e violenta o corpo feminino. Kruger, ao
utilizar a linguagem publicitária, subvertendo-a com mensagens que, incialmente,
provocam estranhamento, convoca o público a pensar, a refletir sobre o controle do
corpo da mulher. Aqui, ela traz para as artes o discurso feminista que busca o direito
da mulher sobre o seu corpo, inclusive, no que tange à reprodução sexual – por
exemplo, com o aborto.
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Atualmente, Kruger tem criado grandes instalações, numa combinação


midiática que reúne fotografia, projeções de vídeo e aplicações de frase, construindo
espaços tridimencionais. A artista transpõe palavras e imagens diretamente nas
superfícies da galeria – paredes, chão e teto. Cada uma dessas instalações tem
textos escritos no chão em grandes letras brancas sobre uma superfície vermelha,
levando o público a uma imersão plena na obra, que domina a relação espacial.
Para a professora da Escola de Arquitetura da UFMG Luciana Bosco e Silva,
a artista realiza uma transposição intersemiótica que leva não só texto e imagens do
universo publicitário para o mundo das artes, mas transpõe uma linguagem
tradicionalmente tridimensional para uma obra tridimensional ou de sensações
tridimensionais [figs. 8 e 9].

Ao se apropriar do espaço da galeria e transgredi-lo, transformando-o em


um grande outdoor penetrável, imbuído de sentido artístico e social, Kruger
transforma a arquitetura da galeria, subverte o tradicional cubo branco
modernista, e o impregna de palavras, imagens e cor, onde arquitetura, arte
e espaço de discussões sociais se tornam um, ganhando voz própria e
interagindo com seus espectadores. (SILVA, 2008, p. 4).

Figuras 8 e 9: Instalações de Barbara Kruger


Fonte: Blckdmnds.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ênfase na materialidade da produção cultural e de comunicação nos


possibilita compreender que não existem formas artísticas e midiáticas “puras”. A
partir dos estudos intermidiáticos é possível constatar que todos os tipos de mídias
de arte se relacionam de diversas maneiras, configurando, portanto, a inexistência
de limites entre uma arte/mídia e outra.
Nesse cruzamento de fronteiras, torna-se evidente a influência existente na
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relação entre artes visuais e publicidade. Textos da tradição pictórica foram


transpostos para outras mídias no campo da publicidade e por ela recriados, de
acordo com as possibilidades materiais e as convenções vigentes dessas novas
mídias e dos objetivos das campanhas para divulgação de marcas, produtos e
eventos.
A apropriação da linguagem e dos signos da publicidade por artistas de
vanguardas foi feita de forma a utilizar a influência como um meio de subverter os
próprios conceitos e as mensagens da publicidade. Andy Warhol e Barbara Kruger
são criadores de obras que fizeram a transposição intersemiótica, utilizando textos
verbais e não verbais da publicidade para questionar a sociedade de consumo e o
capitalismo.

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In: Anais Eletrônicos II Simpósio ABCiber. 10 a 13 de novembro de 2008.
Disponível em:
<http://www.cencib.org/simposioabciber/PDFs/CAD/Luciana%20Bosco%20e%20Silv
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SLEMMONS, Rod. Entre el lenguaje y la percepción. In: Revista Exit, n. 16, pp. 24-
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