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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O FIM, O COMEÇO, O FORA DO TEMPO


NA POESIA EXPRESSIONISTA ALEMÃ

Danielle Henrique Magalhães

2016
O FIM, O COMEÇO, O FORA DO TEMPO
NA POESIA EXPRESSIONISTA ALEMÃ

Danielle Henrique Magalhães

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria
Literária)

Orientador: Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto

Rio de Janeiro
Março de 2016
CIP - Catalogação na Publicação

Magalhães, Danielle
M111f O fim, o começo, o fora do tempo na poesia
expressionista alemã / Danielle Magalhães. -- Rio
de Janeiro, 2016.
134 f.

Orientador: Alberto Pucheu.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2016.

1. Poesia. 2. Poesia e Filosofia. 3.


Expressionismo . 4. Século XX. 5. Modernidade.
I.Pucheu, Alberto, orient. II. Título
O fim, o começo, o fora do tempo na poesia expressionista alemã
Danielle Henrique Magalhães
Orientador: Professor Doutor Alberto Pucheu Neto

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência


da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.

Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto
_________________________________________________
Prof. Doutor Marcelo Diniz Martins – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Leonardo Ramos Munk Machado – UNIRIO
_________________________________________________
Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Claudio Oliveira da Silva – UFF, Suplente

Rio de Janeiro
Março de 2016
RESUMO

O FIM, O COMEÇO, O FORA DO TEMPO


NA POESIA EXPRESSIONISTA ALEMÃ

Danielle Henrique Magalhães

Orientador: Professor Doutor Alberto Pucheu Neto

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.

Esta dissertação discorre sobre a modernidade na Alemanha a partir da poesia expressionista


alemã, tomando como recorte os primeiros anos do século XX, até o marco da Primeira
Guerra Mundial. Objetiva-se problematizar a concepção de tempo, levando em conta a
confluência das tradições cristã e judaica em tensão com a nova percepção de tempo que
passa a assolar os sujeitos com o advento do mundo moderno, com o tempo do futuro
orientado para o progresso, para novo. Pensadores que incidiram críticas à modernidade e à
tradição ocidental, como Walter Benjamin, Michael Löwy, Giorgio Agamben, Antoine
Compagnon, Hannah Arendt, Theodor Adorno, Martin Heidegger, constituirão parte do
arcabouço teórico nas análises. Neste tempo de cisões, Georg Trakl canta um mundo perdido,
Else Lasker-Schüler e Jakob Van Hoddis anunciam o Fim do Mundo, Nietzsche já havia
pronunciado a morte de Deus e Hegel já teria dito sobre o fim da Arte e o fim da História.
Todavia, as ideias de fim não apontam todas para um mesmo sentido. Sendo assim, diferentes
interpretações serão apresentadas com o propósito de não eliminar a complexidade da
compreensão. Uma leitura otimista enxerga o crepuscular de Trakl como o tempo mais cedo.
Por outro lado, seria difícil ver com algum otimismo todas essas entonações de fim. Talvez,
neste terreno ocidental de desterrados, haja outros apartados que já se colocam fora do tempo.

Palavras-chave: Poesia. Poesia e Filosofia. Expressionismo. Modernidade. Século XX.


Literatura alemã.

Rio de Janeiro
Março de 2016
ABSTRACT

THE END, THE BEGINNING, THE OUT-OF-TIME


IN THE GERMAN EXPRESSIONIST POETRY

Danielle Henrique Magalhães

Orientador: Professor Doutor Alberto Pucheu Neto

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.

This dissertation discusses the modernity in Germany considering the German expressionist
poetry, taking as time reference the early twentieth century until the landmark of the First
World War. The objective is to discuss the concept of time, taking into account the confluence
of the Christian and Jewish traditions in tension with the new perception of time brought by
the advent of the modern world, where the future is progress-oriented. Thinkers who
elaborated critiques of modernity and the Western tradition, as Walter Benjamin, Michael
Lowy, Giorgio Agamben, Antoine Compagnon, Hannah Arendt, Theodor Adorno, Martin
Heidegger, are a constituent part of the theoretical framework for analysis. In this time of
split, Georg Trakl sing a lost world, Else Lasker-Schüler and Jakob van Hoddis announce the
End of the World, Nietzsche had already pronounced the death of God and Hegel wrote about
the end of art and the end of history. However, the ideas about 'the end' don't point all to the
same direction. Thus, different interpretations are presented in order to not eliminate the
complexity of understanding. An optimistic reading sees the twilight of Trakl as the earlier
time. Moreover, it would be difficult to see to some optimism to all these intonations.
Perhaps, in this western land of outcasts, may there be other disjuncted people that have
already put themselves out of time.

Keywords: Poetry. Poetry and Philosophy. Expressionism. Modernity. Twentieth century.


German literature.

Rio de Janeiro
Março de 2016
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

PONTO FINAL 13

1. 1 O choque, o círculo, o ponto 14

1.2 O novo, o futuro, o “Fim do Mundo” 29

FIM, COMEÇO 46

2.1 Tempo das coisas, não-lugar do homem – “O Crepúsculo” e o “Ocidente” 47

2.2 Trágico, tempo trágico 56

2.3 Fim – de Deus, da Arte, da História 71

FORA DO TEMPO 83

3.1 Crepúsculo, o tempo mais cedo; “Ocidente”, lugar de travessia 84

3.2 “O Crepúsculo”: o “tempo-agora” 96

3.3 Kafka – poeta – expressionista? 103

CONCLUSÃO 125

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 128


7

INTRODUÇÃO

A modernidade já nos foi apresentada por diversos ângulos pela literatura. Edgar Allan
Poe atestou um dos lados aterradores das políticas de modernização e das reformas urbanas
pelas quais passou Londres, apresentando não só a multidão e o caos como fatores
preponderantes da grande cidade, mas a existência de indivíduos marginalizados que viviam à
custa desta multidão. O perigo espreitando a cada canto e em qualquer momento, o medo de
uma camada urbana regida pelo desemprego, pela criminalização crescente e pela
mecanização da existência. A manifestação de uma sociedade extrapolada em número e, ao
mesmo tempo, em solidão, marcou um fin-de-siècle desolado, em que os habitantes
manifestavam-se cada vez mais fora de lugar, embora estivessem, paradoxalmente, imersos
em multidões.
Na Alemanha do início do século XX e, particularmente, em Berlim, isso não foi
diferente, embora os fatores políticos, econômicos e sociais nos quais ela se encontrava a
diferenciasse muito dos países europeus que tinham suas capitais como grandes cidades, como
metrópoles emergentes. Se, a partir de Baudelaire, podemos ver Paris como a capital do
século XIX, não seria um risco se percebêssemos Berlim como a capital do século XX – ainda
que sua “Idade de Ouro” seja considerada a que abrange o período dos anos 20, o auge da
modernidade na Alemanha, coincidindo assim com a República de Weimar, iniciada em 1919,
após a Primeira Guerra Mundial (GAY, 1978, pp.11-12). No entanto, não podemos esquecer
que os primeiros anos deste século – desde o último quarto do XIX – também foram marcados
por uma intensa política de modernização pautada na industrialização acelerada. A unificação
tardia da Alemanha foi consolidada ainda em uma política imperial, prussiana, autocrática,
autoritária e belicista do segundo Reich de Guilherme II, que a inseriu, uma vez unificada, na
corrida armamentista e neoimperialista. Logo, o avanço das técnicas e da indústria será
marcado sobremaneira pelo cunho belicista que terá como objetivo uma Alemanha como
potência principalmente militar, com uma forte indústria bélica. Serão para esses primeiros
anos do século XX, até 1914, quando deflagra a Grande Guerra, que esta dissertação se
debruçará; no período antes, portanto, do que é considerado o ápice da modernidade alemã.
Esta escolha visa perceber os estremecimentos quase imediatos da passagem do
século, um momento ainda de indefinição, mais indefinido do que os anos definidos como
modernos, mais indefinido do que viria a ser a modernidade mesma que, no caso alemão,
seria marcada pelo impacto do fracasso da República de Weimar e da derrota da Alemanha na
guerra. Dos poemas escritos neste último período, identifica-se em sua maioria um caráter
8

mais programático, denotando em seus apelos a influência imediata da guerra, por vezes
explicitando um tom humanista mais otimista, mas em muitos casos também um tom
determinantemente mórbido. De todo modo, o que se intenta ao sair desta baliza demarcada
pelos anos de guerra e pelo pós-guerra é atentar para a complexidade de um momento que
costuma ser reduzido a toda a primeira metade deste século por estar englobado
cronologicamente nela. Acredita-se, na contramão disso, que este momento ainda está em um
cruzamento de mudanças e de tradições que, nos anos seguintes, será mais definido por outras
grandes tensões que viriam a ter lugar nos anos 20, sobretudo com o efeito imediato da
Primeira Guerra Mundial. Optar por este recorte não significa que poemas que estão fora dele
não serão contemplados, significa que a atenção maior será dirigida aos que se concentram até
1914.
Se a modernidade já foi teorizada a partir de autores aclamados da literatura, como
Poe, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Whitman, como exemplos mais famosos e sempre
correntes, é notável que estudos teóricos debruçados sobre a modernidade ainda carecem de
um enfoque na poesia expressionista. Atentando para os limites e para as ausências em uma
das maiores referências teóricas, a Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, Alfonso
Berardinelli (2007) assinala para a não atenção conferida a nomes e movimentos presentes na
modernidade, dentre eles o expressionismo – que aparece associado ao poeta Gottfried Benn,
por exemplo, não devidamente explorado por Friedrich –, que passam como pressupostos ou
como casos já superados, dada a supervalorização ao entorno de Mallarmé, considerado o
centro de uma linha evolutiva de Novalis-Poe, “antecessores” ou “preparadores”, até
Baudelaire, como “precursor”, e Paul Valéry, como o grande herdeiro mallarmeano, deixando
de fora toda uma gama de autores cujas obras deveriam ser minimamente incluídas no
pretensioso esforço de delineamento de uma estrutura da lírica moderna, tão abrangente e
diversificada.
Esta dissertação se propõe a oferecer uma leitura que vai para além da compreensão do
expressionismo em si como um movimento artístico de vanguarda, incidindo em um enfoque
sobre a compreensão de tempo que pode ser observada nestes anos iniciais do século XX, cuja
confluência de tradições em conflito com o tempo do progresso permite atentar para a
complexidade de tensões nas quais os poetas mesmos estavam inseridos. Acredita-se que uma
questão importante que perpassa os poemas expressionistas que serão analisados é o tempo,
tanto como crítica ao qual se dirigem quanto como elemento integrante, constitutivo do
poema. O tempo, portanto, será a chave de análise para as leituras críticas. Não buscando
perceber o tempo só como época, identificando-o à modernidade abrangente como fenômeno,
9

mas procurando interrogá-lo como conceito, nas bases de suas concepções. A ênfase recaíra
em noções temporais que comparecem nos poemas, como “fim”, e em noções que em si já
evidenciam uma marcação temporal, uma passagem do tempo, como “crepúsculo”, por
exemplo. O mundo do progresso e da aceleração do tempo se apresenta como novo, mas não
condiz com o Novo Mundo que aspiravam conforme suas tradições. Ao contrário de poemas
escritos durante a guerra que veem este momento com aspirações revolucionárias, como
evidência do Novo Mundo, de um novo tempo, colocando-se explicitamente contra as
amarras da tradição, mostrando uma convocação a este Novo que se vislumbra, uma vez que
inicialmente não se contava com a derrota alemã e a guerra ainda era vista como possibilidade
heroica, de uma forma romântica, os poemas que antecedem este momento apontam mais para
um fim, não vendo este fim como possibilidade do novo, não vendo a destruição a ser
superada pelo início de algo novo, mas como um fim que não aponta para um começo.
No desdobramento e aprofundamento destas ideias será estabelecido um contato direto
com pensadores que teceram críticas à concepção tradicional do tempo ocidental e que se
debruçaram sobre a modernidade, como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Michael Löwy,
Hannah Arendt, Martin Heidegger, dentre outros. No capítulo um, dividido em duas seções,
será apresentada a modernidade como o tempo da vivência submetida ao “choque”, ordenada
por uma sucessão de instantes que nada mais fazem que suprimir o tempo. Em tensão com
este novo modo de estar no mundo, as crenças tradicionais veem este novo tempo como
fracasso, lamentando a perda de um mundo idealizado e chorando por este que se encaminha
para o fim. Mas, na verdade, talvez eles apresentem semelhanças que apontam igualmente
para a submissão das pessoas, não para a liberdade. No capítulo dois, divido em três seções,
serão expostas leituras do “fim”, neste tempo de crise e de cisões que lançam o homem
moderno em uma condição trágica de solitário, abandonado, desterrado. Todavia, talvez não
se possa afirmar que definitivamente este seja um “tempo trágico”. Configurações do trágico,
porém, serão apresentadas. Muitos “fins” determinantes nesta época não apontam para um
fim, mas para um crucial começo, como será visto com as filosofias de Nietzsche e de Hegel,
com as devidas ponderações de importantes comentadores. No capítulo três, o último,
dividido em três seções, o lugar e o tempo da “queda”, do “declínio”, em que se “cai”,
assumem uma interpretação otimista, apontando para um “começo mais cedo” que não seria
localizado neste tempo, no tempo cronológico de tradição aristotélica. Porém, é possível que
esta constatação subtraia, por um lado, elementos difíceis de serem ignorados. Talvez não
haja nem começo nem fim em outras leituras; nem lamento nem otimismo; e talvez sejam
estas que se aproximam para um fora do tempo.
10

Deste modo, no que concerne ao objeto de estudo, não será o objetivo aqui, pelo que
foi abordado, discorrer sobre o expressionismo em seus múltiplos desdobramentos artísticos,
como um movimento de vanguarda em seu todo, mas ver na poesia expressionista alemã
como a modernidade foi percebida e como esta percepção está imbricada com a concepção de
tempo da qual os poemas partem. Entretanto, a fim de situá-lo e apresentá-lo minimamente,
parece consenso quando se afirma que o expressionismo teve suas primeiras manifestações na
pintura, com os grupos Die Brücke [A Ponte] e Der Blaue Reiter [O Cavaleiro Azul],
fundados em 1905 e 1911, respectivamente, o primeiro em Dresden e o outro em Munique. A
palavra “expressionismo”, no entanto, segundo João Barrento, aparece pela primeira vez no
século XIX, na Inglaterra, referida a um estilo de pintura, e depois na América do Norte, para
designar um grupo de escritores de estilo marginal ou antiburguês (BARRENTO, 1976, p.15).
O termo se tornou mais evidente em 1901, quando foi usado pelo pintor francês Julien
Auguste Hervé, ao caracterizar os quadros de sua exposição como expressionismes. Em 1911,
em Berlim, a palavra surgiu em alemão no prefácio do catálogo de uma exposição, a 22ª
Exposição da Secessão Berlinense, de artistas estrangeiros, considerados fauves ou cubistas,
como Braque e Picasso. Nessa época, contudo, já existia o Die Brücke e o Der Blaue Reiter,
que iniciou no mesmo ano. Ambos podem ser considerados a “origem” do movimento na
Alemanha, ou, como Barrento afirma, “a partir desta altura [desde o uso do termo da 22ª
Exposição em Berlim], o uso do termo generaliza-se e alarga-se a toda geração de pintores
modernos anti-impressionistas.” (1976, p.15).
No que tange especificamente ao âmbito literário, não houve desde o início do século
XX um grupo único que se reconheceu e se autodenominou Expressionista. Kurt Hiller,
jornalista, ensaísta e pacifista alemão, foi quem primeiro usou a palavra, na área da crítica
literária, em 1911, ao contrapor a si mesmo e outros amigos e conhecidos escritores, que
aliavam a atividade literária a uma postura ativista e politicamente engajada, a outros que só
pareciam reproduzir ideias e assumir uma posição indiferente ou apática. Portanto, se a partir
de 1911 o termo ganhou notoriedade, “nenhum escritor de algum verdadeiro destaque parecia
ansioso em utilizá-lo para referir-se à sua produção antes do final de 1914 ou do início de
1915” (SHEPARD, 1989, p.223). Inclusive, ao analisarem retrospectivamente, os artistas
ressaltam que inicialmente o expressionismo “não era uma ideologia adotada coletivamente,
sendo a simples interação de indivíduos com criatividades independentes.”. 1

1
Shepard acrescenta ainda o testemunho de Kurt Wolff, editor, jornalista, escritor, que salienta: “Com o conceito
‘expressionismo’, as pessoas ainda estão tentando (e hoje ainda mais que nunca) dar a um grupo de escritores
que estavam sendo publicados entre 1910 e 1925 o selo de uma coletividade que eles nunca tiveram.”(Cf.:
SHEPARD, 1989, p.224).
11

Kurt Hiller foi, porém, uma figura importante na literatura, ao fundar, em 1909, o Der
Neue Club [O Novo Clube], um tipo de associação livre, com participação de estudantes da
Universidade de Berlim, entres eles poetas e escritores que atacavam a apatia da época e
lutavam para conseguir novos modos de sensibilidades e novas direções na arte. Suas
discussões giravam entorno da busca por uma regeneração pessoal e reconstrução social. De
1910 a 1912, realizaram foros de discussões, em salas, em cafés, que ficaram conhecidos
como Neopathetische Cabarets [Cabaret Neopatético] – termo cunhado por Loewenson, e
definido por ele como “a vontade de um novo vitalismo revolucionário”, e que não deveria ser
mal entendido como “canções sujas cantadas a um piano”, no sentido pejorativo do termo.
Ainda no campo literário, duas revistas de destaque deram lugar a várias publicações:
Der Sturm [A Tempestade], criada em 1910, e Die Aktion [A Ação], criada em 1911, ambas
em Berlim. Todavia, isto não significa que a vinculação a essas revistas – que também
postulavam ideais – implicasse uma coesão dos membros, o que não ocorreu por diversos
fatores: desde hostilidades pessoais e posicionamentos políticos diferentes, até a fragilidade
das próprias associações; desde as condições clandestinas em que se davam, em que vários
precisavam fugir ou se exilar, ou até servir em campo de batalha, e até mesmo pela curta
duração de suas existências. Por exemplo, a Der Sturm, editada por Herwarth Walden,
dedicou-se nos primeiros anos de sua edição basicamente às artes gráficas. Por volta de 1916,
quando Walden descobriu a poesia de August Stramm, a literatura e a teoria literária
ganharam lugar de destaque. Todavia, sua dissolução seguiu à desilusão crescente de Walden
– que emigrou para a Rússia em 1932 – com os colaboradores que o haviam traído, ao seu
engajamento comunista e aos ideais da Sturm. A Die Aktion, por sua vez, fundada por Franz
Pfemfert, com forte engajamento político ao anarco-comunismo, durou menos tempo ainda.
Ele fundou, em 1915, um minúsculo partido político, o Anti-Nationale Sozialisten-Partei
[Partido Anti-Nacional-Socialista] que, embora clandestino, conseguiu publicar um manifesto
político na revista, em novembro de 1918. Mas, sem muitas comprovações até hoje, a revista
acabou provavelmente em 1919, devido aos assassinatos de Karl Liebknecht e Rosa
Luxemburgo e à repressão aos espartaquistas (SHEPARD, 1989, pp.224-232).
O que é importante ressaltar nisto tudo é que, ao mesmo tempo em que suas relações
eram fluidas, havia uma troca entre eles, seja por intermédio destes editores, seja por cartas,
como meio de compartilharem seus sentimentos e angústias, ou pessoalmente em encontros.
Não se deve esquecer de sublinhar, a propósito disso, que mesmo com a dissolução das
revistas, os artistas continuaram a produzir. Ou seja, muitos poemas que hoje são tidos como
expressionistas não foram publicados na época por estes grupos, mas descobertos
12

posteriormente, avulsos e manuscritos em arquivos pessoais. Muitos poemas foram


compilados e publicados tardiamente, muitos ainda não foram traduzidos para o português,
mas podemos contar com as antologias bilíngues de Claudia Cavalcanti (2000; 2010) e de
João Barrento (1976), as quais serão aqui utilizadas e, quando necessário, comentadas. Diante
do que foi dito, deve-se então manter em mente que a denominação “poesia expressionista”
não explicita um grupo coeso de poetas que existiu em um limite cronológico rigidamente
determinado, o que leva Richard Shepard a constatar que o que houve foi mais “uma série de
explosões, em vez de um movimento programático.” (1989, p.224). Sendo assim, acredita-se
que cada poema pode ser compreendido em sua complexidade, sem a obrigatoriedade de
vínculo com uma pressuposta totalidade. Portanto, o intuito maior será ver as possibilidades
de aprofundamento que podem surgir dos poemas, desdobrando suas questões e contribuindo
para uma visão sobre a poesia expressionista, não descartando sua heterogeneidade.
13

PONTO FINAL

“Há muito tempo deve ter havido uma era de harmonia entre o
céu e a terra. Alto era alto, baixo era baixo. Dentro era dentro
e fora era fora. Mas agora temos o dinheiro. Agora tudo está
desequilibrado. Eles dizem: tempo é dinheiro. Mas estão
enganados. Tempo é a ausência do dinheiro”. 2
(Emiti Flesti (Willem Dafoe) no filme “Tão longe, tão perto!”,
de Wim Wenders)

2
Trecho de uma fala do personagem Emit Flesti (interpretado por Willem Dafoe) ao anjo Cassiel (interpretado
por Otto Sanders) no filme “Tão longe, tão perto!” [In weiter ferne, so nah!], de Wim Wenders. Flesti é um ser
excêntrico, que parece representar o próprio tempo; intercede no mundo dos homens e no mundo dos anjos, mas
não é nem homem nem anjo; assume a forma humana (é representado como um homem), mas é, ao mesmo
tempo, invisível ao homem, como os anjos.
14

1. 1 O choque, o círculo, o ponto

Pleno de harmonias é o voo dos pássaros. As florestas verdes


Reuniram-se à noite em cabanas mais tranquilas;
Os pastos cristalinos da corça.
Escuridão suaviza o murmúrio do riacho, as sombras úmidas

E as flores do verão, que soam belas ao vento.


Já crepuscula a fronte pensativa do homem.

E brilha uma luzinha, a da bondade, em seu coração,


E a paz da ceia; pois santificados são pão e vinho
Pelas mãos de Deus, e com olhos noturnos o irmão
Contempla-te silencioso, repousando de espinhosa caminhada.
Ah, morar no vivo azul da noite.

Também amando o silêncio envolve no quarto as sombras dos


[ancestrais,
Os purpúreos martírios, lamento de toda uma geração,
Que agora se vai piedosa no neto solitário.

Cada vez mais radiante desperta sempre dos negros minutos de


[loucura
O paciente em soleira petrificada
E envolve-o violentamente o frio azulado e o cintilante resto do
[outono,

A casa tranquila e as lendas da floresta,


Medida e lei, e os lunares atalhos dos desterrados. 3

Georg Trakl, considerado um dos principais poetas do expressionismo, era


farmacêutico de formação e assim serviu na Primeira Guerra. É muito estudado por sua poesia
imagética, pela riqueza de metáforas, sinestesias e adjetivos que conferem a vivificação de
objetos e cores, até então inanimados. Ainda atrai os estudiosos, tanto por sua ousadia
gramatical como pela imersão fatal e real na melancolia severa de um choro por um paraíso
que se converteu em pesadelo, o que o levou a desterrar-se mortalmente, após a batalha de
Grodek, em 1914 – ano em que fez, além do poema acima, o seu último, cujo título é

3
“Canto do Desterrado” [Gesang des Abgeschiedenen], 1914. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2010. Original:
Voll Harmonien ist der Vögel. Es haben die grünen Wälder/ Am Abend sich zu stilleren Hütten versammelt/ Die
Kristallenen Weiden des Rebs./ Dunkles besänftigt das Plätschern des Baches, die feuchten Schatten/ Und die
Blumen des Sommers, die schö in Winde läuten./ Schon dämmert die Stirne dem sinnenden Menschen./ Und es
leuchtet ein Lämpchen, das Gute, in seinen Herzen/ Und der Frieden des Mahls; denn geheiligt ist Brot und
Wein/ Von Gottes Händen, und es schaut aus nächtigen Augen/ Stille dich der Bruder an, daβ er ruhe von
dorniger Wanderschaft./ O das Wohnen in der beseelten Bläue der Nacht./ Liebend auch umfängt das Schweigen
in Zimmer die Schatten der Alten,/ Die purpurnen Marten, Klage eines groβen Geschlechts,/ Das fromm nun
hingeht im einsamen Enkel./ Denn strahlender immer erwacht aus schwarzen Minuten des Wahnsinns/ Der
Duldende an versteinerter Schwelle/ Und es umfängt ihn gewaltig die Kühle Bläue und die leuchtende Neige des
Herbstes,/ Das stille Haus und die Sagen des Waldes,/ Maβ und Gesetz und die mondenen Pfade der
Abgeschiedenen.
15

homônimo ao lugar onde se deu a batalha –, não sobrevivendo à segunda tentativa de suicídio
por overdose de cocaína.
“Canto do Desterrado” não mostra somente uma harmonia dos dias transformada em
loucura, despertada pelo acontecimento da Primeira Guerra. O poema poderia muito mais
sintetizar a imagem da mudança entre dois mundos, ou das formas como esses homens
passaram a se ver no mundo. Inicialmente, seus versos podem nos dizer de uma vida em
comunhão, pautada em fundamentos bíblicos ou religiosos que unem o homem a Deus, ao
mesmo tempo em que o vincula mais fortemente a seus familiares e ancestrais. Um vínculo no
qual natureza e família são instâncias de um mesmo núcleo (“As florestas verdes/ Reuniram-
se à noite em cabanas mais tranquilas”) que confere unidade, integração. Um mundo
concomitantemente regido por uma essência e centrado nela, em que os dias são tão
ritualizados quanto previsíveis, as longas caminhadas são serenadas ao fim do dia no seio da
casa, da família, que é somente uma extensão do seio sublime e contemplativo, enquanto
também acolhedor, da natureza (“[...] e com olhos noturnos o irmão/ Contempla-te silencioso,
repousando de espinhosa caminhada/ Ah, morar no vivo azul da noite./ Também amando o
silêncio envolve no quarto as sombras dos ancestrais”). Elementos, deste modo, que conferem
segurança e proteção, um elo que une o homem ao universo com um tal sentimento que
poderia ser chamado de “oceânico”, segundo Freud. Uma sensação de algo ilimitado, de uma
“vinculação indissolúvel, de comunhão com o todo exterior”, de “ser-um com o universo”.
Esse sentimento estaria na base de toda religião, na fonte da energia religiosa de que as
diferentes religiões procuram ao conservar no indivíduo uma segurança da proteção divina
diante da ameaça do mundo externo, de um eu que se encontra em desamparo ao ser
ameaçado a todo o momento pelo perigo e pelo medo ante a superioridade do poder do
destino (FREUD, 1930).
O poema pode ser visto então em duas imagens: tanto como a própria “sombra dos
ancestrais”, que, como referência, evoca este elo perdido à medida que menciona uma
experiência, de um tempo perdido, em que houve uma comunhão, quanto a imagem da
solidão, na mesma sombra que agora se assume como indício de uma perda, como figura que
retém o passado, mas que se faz presente no que aponta para a sua falta, como vestígio. A
sombra se reveste de lamento na figura do “neto solitário”. O herdeiro de uma geração que já
não partilha da mesma experiência de tempo de outrora, a qual só se mantém na figura
fantasmática e alusiva do ancestral. Disso se pode compreender então uma experiência
tradicional de se perceber no mundo frente ao modo desintegrado característico da vivência
moderna. A uma melhor elaboração sobre isso podemos recorrer sobremaneira a Walter
16

Benjamin em sua teoria sobre a “perda da experiência” e a “vivência do choque” que acomete
os habitantes das grandes cidades.
Basicamente, foram três as novas condições que o século XIX viu surgir: as massas
urbanas; a mecanização de diversas esferas da vida social e o enfraquecimento do prestígio
das tradições – ou seja, em diversos espaços, principalmente nas metrópoles, vemos surgir a
perda de autoridade das tradições que antes orientavam as práticas sociais. Estas condições
correspondem ao que Benjamin afirmaria de que estar na modernidade é estar submetido ao
choque [choc] (1989, p.124). A sensação de o indivíduo estar na iminência de um abismo e
reduzido à fantasmagoria da instabilidade do existir.
Assim, a modernidade se apresenta como um tempo em que a vida em comunidade se
encontra desagregada e a tradição é abatida por novas formas de estar no mundo. O homem
não se vê mais preso a uma experiência tradicional de integração, mas vivendo a intensidade
de fatos infindáveis que marcam o caráter desconexo e perdido da vida nas grandes
metrópoles. O choque passa a ser então a nova condição do homem moderno, quando uma
série de eventos dispersos e aleatórios ocorre simultaneamente: um homem que se movimenta
na multidão e esbarra em diversos indivíduos está atento aos diversos sinais do semáforo do
tráfego; é submetido a diversas vivências inusitadas e dispara mecanismos complexos ao
alcance do polegar. As novas técnicas emergentes, a mecanização do mundo, modificam as
antigas e permitem novas percepções de ver e estar no mundo.
Estar em choque passa a ser a própria condição fragmentada a que a unidade do ser e
do mundo se encontra na grande cidade. Estar submetido ao choque é estar, pois, submetido à
modernidade, vivenciando-a. A percepção passa a ser fixada então no instante, singular, de
grande intensidade, na rapidez abrupta dos inúmeros eventos dispersos que passam a interferir
no modo de ver, sentir e (se) perceber (n)o mundo. É de acordo com isso que Baudelaire
(1996) chama de “caleidoscópio dotado de consciência” o novo tipo de homem gerado pela
constante expectativa do choque, aquele que está mergulhado em um “tanque de energia
elétrica”. O homem cindido de uma integração e impossibilitado de uma transmissibilidade da
tradição, o que faz parte do que Benjamin chamaria de “pobreza de experiência” no mundo
capitalista moderno.
A experiência [Erfahrung] estaria relacionada à acumulação de dados inconscientes
que consistiria em matéria da tradição, por ter na narração a transmissão integrada dos
acontecimentos que perpassava a vida coletiva. Enquanto esta corresponderia ao sujeito
integrado em uma comunidade, acumulando-a ao longo do tempo e transmitindo-a, narrando-
a, dando continuidade a uma tradição, a vivência [Erlebnis] corresponderia à perda da
17

experiência, à impossibilidade de narrar e transmitir, submetida a dados isolados, e não


acumulados. Segundo o filósofo, a vivência do choque, como modo de des-integração do
sujeito, seria a vivência fundamental do homem nas metrópoles contemporâneas. Como o
herói trágico, passa a ser um homem solitário, que se vê apátrida, estrangeiro, desterrado
(como evidencia o título do poema de Trakl), apartado dos deuses e do mundo, daquilo que
conferia uma justificativa da vida em um sentido total e acabado.
Poderíamos tecer semelhanças com o mundo antigo, o das “culturas fechadas”, que
Georg Lukács em A Teoria do Romance (2000) diferencia-o de outro, o moderno, sob a
imagem de um círculo fechado. Antes, é interessante notar que Lukács escrevia essa obra na
eclosão da Primeira Guerra, em 1914; contemporâneo, portanto, dos poetas expressionistas, o
autor expressa posteriormente – em prefácio crítico ao seu livro no qual reconhece as
limitações teórico-metodológicas que o aproximaram de um “anticapitalismo romântico” –
que ele não esperava uma nova forma literária, “mas expressamente um ‘novo mundo’”. O
que nos leva a considerar talvez que aqui Lukács não deva ser tido como um referencial
teórico scrictu sensu, mas sim em seu “teor testemunhal” de seu tempo. Ainda que parta de
dualismos e empirismos categóricos kantianos amplamente criticados até pelo próprio autor,
sua obra oferece chaves de leitura possíveis e enriquecedoras para o exercício crítico de
análise. A visão que oferece da tragédia se articula na interpretação que pode ser conferida
aos poemas na medida em que revelam homens abandonados, apátridas de si e do mundo, em
busca de uma essência perdida que antes se encontrava imanente com o universo e a natureza.
Nas “culturas cíclicas” ou “fechadas”, “ser e destino, aventura e perfeição, vida e
essência” são conceitos idênticos. A organização social dos homens é orientada para uma
repetição, no sentido como Cícero concebia a história como mestra da vida, na expressão do
círculo fechado, onde a organização social dos homens era orientada para uma repetição e a
vida era concebida como eterna. O mundo possui um sentido fechado e acabado, é
homogêneo, onde o homem não está só. Como os gregos, por exemplo, que cantavam em suas
epopeias a vitória da comunidade, sentindo-se no mundo como um grande todo, impregnado
de beleza, dignidade e grandeza. “As forças do grego antigo não estavam cindidas,
fragmentadas; o grego era um ser uno consigo mesmo e em unidade com a totalidade do
mundo.” (MACHADO, 2006, p.22). O que o capacitava não somente a usufruir de prazer,
mas a ter estrutura para suportar as infelicidades, tornando-o apto a se restabelecer
rapidamente dos desprazeres que viessem a ocorrer. O sofrimento do indivíduo não tinha
lugar na epopeia, mas sim a exaltação da vida em coletividade. A alma, neste mundo, ainda
não conhecia seus abismos interiores e não sofria com a escuridão da insegurança e da solidão
18

de um indivíduo apartado. Nesta cultura fechada, o eu e o mundo estavam em comunhão: “O


mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma
essência que as estrelas...” (LUKÁCS, 2000, p.25).
Podemos perceber, então, que o poema apresenta uma ruptura. Uma ruptura com um
mundo, um mundo que foi perdido. E essa perda é tanto marcada por uma base religiosa
quanto por um teor romântico que embebe o poema. Na esteira da interpretação de Lukcás,
podemos adentrar em aspectos importantes a serem ressaltados: a grande influência do
romantismo alemão, a valorização da cultura grega e a presença de elementos da tradição
judaica e da cristã. Faz-se relevante lembrar que essa retomada da cultura e da arte gregas na
Alemanha estará veemente nesta época, uma vez que será parte do jogo de construção da
própria nação, em que as literaturas de Goethe e de Schiller e o classicismo de Weimar serão
partes constitutivas do ideal de nacionalismo, da construção de um sentimento de pertença,
neste processo que poderia ser dito como a consolidação de uma Kultur alemã. E este
momento assume aqui crucial importância, uma vez que essa construção se deu em um
período ao mesmo tempo de crise e de renovação da tradição judaica e da própria cultura
alemã, que seriam assimiladas. A Kultur, entendida enquanto “um universo de valores éticos,
religiosos, estéticos”, em oposição à Zivilisation, “o mundo do progresso econômico e
técnico” (LÖWY, 1989, p.32), emerge já com um ideal de se opor à crise mesma da “cultura”
– que, como palavra, já aponta crise –, da Cultura (com C maiúsculo) que irrompia como
sinônimo de civilização, atrelada à exacerbação do racionalismo, do cientificismo, do
imperialismo e de todos os seus efeitos.
É aí então que no “Canto do desterrado” também podemos notar o que Schiller – na
esteira de dicotomias kantianas e também influenciando, mais tarde, Lukács – discorreu em
Poesia Ingênua e Sentimental (1991), a respeito da cisão de um mundo e da figura do poeta
neste mundo cindido. Inserido no mundo da “cultura”, apartado da imanência com a natureza,
como antes estavam os gregos, o poeta sentimental moderno diferenciar-se-ia do ingênuo.
Este, imanente à natureza, não separado dela pela arte, pela cultura, pela reflexão, que
caracterizariam a cisão do homem no mundo moderno em que agora ele deveria se voltar à
natureza como em movimento de busca, assumindo a forma do que seria o poeta sentimental.
Antes, “o objeto o possuía por inteiro”, o objeto coincidia com a essência, o sujeito não se
apresentava apartado em busca da imanência, pois as faculdades de entendimento e de
imaginação atuavam de maneira harmônica. “No estado de natureza, razão e sensibilidade
19

4
ainda formavam um todo e, por não se ter afastado inteiramente dele, o grego podia criar e
sentir de maneira intuitiva, espontânea, com entendimento e imaginação em estreito vínculo”,
explicou Suzuki em apresentação ao livro de Schiller (1991, p.19). No mundo moderno, ao
contrário, a imanência é rompida, a harmonia entre as faculdades é rompida, a cultura instaura
um antagonismo: a natureza torna-se objeto de reflexão e deve então ser intuída por esta
mesma reflexão que agora caracteriza o homem que “caiu” – que “decaiu”, que sofreu a
queda, que agora se encontra cindido, fraturado – na cultura, o homem crítico, cujo intelecto,
cuja faculdade de entendimento, se sobrepõe à imaginação. “Com o advento da cultura e a
multiplicação de formas de vida social, o homem cinde-se de si mesmo e, no afã de
desenvolver ao máximo suas potencialidades, separa a atividade intelectual da estética.”
(SUZUKI in SCHILLER, 1991, p.19).
Se a influência do romantismo vincula-se ao tom de saudosismo e a uma ânsia de
retorno a uma integração total, tal influência não se restringe a isso. Como bem delimitou
Anatol Rosenfeld, seria mais adequado definir a corrente dos autores que escrevem no final
do século XVIII, como Goethe e Schiller, comumente identificados como primeiro
romantismo alemão, como Sturm und Drang. Neles, encontramos certa irradiação do que seria
uma postura de “dor do mundo” (o famoso Weltschmerz de Werther), junto à qual veio um
pessimismo profundo no tocante à sociedade e à civilização modernas (1978, p.146). Todavia,
Goethe e Schiller tomariam rumos diferentes, ajustando-se a uma bem disciplinada inspiração
da arte grega, o que os tornaria verdadeiros classicistas. Diferentemente do Sturm und Drang,
Rosenfeld identifica o romantismo alemão à semelhança de uma literatura europeia posterior,
ligada a Baudelaire, ao simbolismo e à décadence literária do fin-du-siècle (1978, p.148). No
expressionismo, vemos a influência de ambos, tanto do pré-romantismo ou o que seria o
Sturm und Drang, como propriamente do romantismo alemão. Assim, para além do tom
nostálgico e da ânsia de retorno, presentes em Trakl, teremos em outros poemas também o
contrário: um repúdio aos padrões clássicos, ao academismo, à estética e aos valores
burgueses, à racionalidade emergente (a Aufklärung como esclarecimento iluminista), ao
cientificismo que cada vez mais coloca a natureza a serviço da cultura pela mediação da
técnica, “modificando a percepção do meio ambiente como objeto criado pelo homem e
modificando, por meio da ação humana, o desencadeamento dos próprios processos da
natureza, como o evidencia a fissão do átomo” (LAFER in ARENDT, 2014, p.12). Então o

4
“Entre eles [os gregos], a cultura não degenerou tanto a ponto de se abandonar a natureza.”; “Uno consigo
mesmo e feliz no sentimento de sua humanidade [...]; ao passo que nós outros, cindidos de nós mesmos e
infelizes em nossas experiências da humanidade, não temos nenhum interesse mais premente do que dela fugir e
afastar de nossos olhos uma forma tão malograda.” (SCHILLER, 1991, p.56).
20

homem, “quando se confronta com a ‘realidade objetiva’, não encontra mais a natureza, mas
se desencontra consigo mesmo, isto é, com objetos que criou e processos que desencadeou”,
não podendo mais explicá-los senão por uma linguagem estritamente técnica (LAFER in
ARENDT, 2014, p.12). É também contra o desprezo à subjetividade, dentre outros efeitos,
pela emergência da crescente formalização da linguagem científica, que este romantismo deve
ser entendido em seu aspecto de repúdio à sociedade industrial, aos padrões burgueses, ao
modo de vida capitalista emergente, contrário à Zivilisation.
Esta crítica permeava o entorno dos jovens universitários, de famílias burguesas, que
compunham grupos de intelectuais, haja vista que a intelectualidade era o que era valorizado
como pertencente à cultura alemã, como um meio de reconhecimento e de pertença. 5 Muitos
poetas expressionistas também faziam parte desta juventude que buscava ir contra os padrões
da época, reunindo-se em associações livres, como o Der Neue Club, cujo grupo de amigos
atacava a apatia da época em um misto de revolta e lamento, de restauração e de utopia em
um novo porvir. Isso ainda não deve ser entendido como posicionamentos políticos rígidos,
ao menos não nesses anos iniciais quando o que se percebe é muito mais uma “afinidade
eletiva”, como diz Michael Löwy, entre messianismo e utopia libertária neste círculo
específico da intelectualidade de língua alemã. Como enfatiza o sociólogo, “é somente nesta
época histórica determinada – a primeira metade do século XX – e nessa área social e cultural
precisa que essa homologia ou correspondência entre anarquismo e messianismo se torna
dinâmica e adquire uma forma fundida, como um neorromantismo, na obra de certos
pensadores” (LÖWY, 1989, p.25). No entanto, o mais notório neste início de século é, sem
dúvida, uma crítica à industrialização e seus efeitos. Esta crítica, no poema de Trakl, aparece
como lamento, como anseio por uma sociedade perdida, talvez primitiva, pré-capitalista, ou
talvez por uma nunca existente. Isso que faz com que Lukács defina muito bem como
“anticapitalismo romântico” ou “romantismo anticapitalista”.
Do final do século XIX até os anos 30, o romantismo constituiu-se como fundamento
da construção da Kultur alemã. E antes disso, embora o Sturm und Drang de Goethe e
Schiller, tão vigente no final do século XVIII, tenha sido muito criticado pelos românticos
posteriores e também por Nietzsche – pela nostálgica necessidade de retorno, idealizando uma
total harmonia, serenidade e perfeição no enaltecimento da cultura grega – ele possibilitou
5
“O caminho régio para conquistar respeitabilidade e honra, na Alemanha e na Europa Central, era a
Universidade. [...] os cidadãos com uma educação superior constituíam na Alemanha uma espécie de aristocracia
intelectual e espiritual: a ausência de títulos universitários, por outro lado, era uma ‘falta’ que nem a riqueza nem
a alta linhagem podiam substituir inteiramente. A lógica da assimilação cultural e o desejo de ascensão social na
escala de prestígio levam a burguesia judaica a enviar seus filhos à Universidade, sobretudo a partir do final do
século XIX.” (LÖWY, 1989, p.34).
21

também uma crítica aos padrões iluministas, o que permitiu ainda uma superação da análise
meramente normativa das poéticas clássicas para o surgimento de teorias estéticas referentes
aos gêneros. Foi assim que, como sublinhou Pedro Süssekind em prefácio ao Ensaio sobre o
Trágico, Peter Szondi considerou esta passagem uma fundamentação filosófica, pois
possibilitou o surgimento do idealismo alemão, com Fichte, Schelling e Hegel, e de uma
teoria literária que se delinearia na Alemanha a partir do século XX, com Adorno, Benjamin e
Lukács.
Denota-se então que a crise que caracteriza toda esta passagem do século XIX para o
XX deve ser vista também no que há de surgimento de crítica, de reflexão, não só de teorias
críticas, mas de poetas críticos, que buscavam restituir a esfera ética à arte, contra a
autonomia da l’art pour l’art e de sua relação estética desinteressada da vida. Neste sentido,
crise e crítica estão intimamente relacionadas e os poetas modernos passam a se colocar como
críticos frente à própria modernidade, como Baudelaire, um moderno em conflito com a
modernidade, ao mesmo tempo em que inserido nela. Assim é que a crise fundada pela crise
de vers mallarmeana agiria então para resgatar o teor crítico à poesia. Trakl, ao contrário,
ainda que sua poesia seja uma denúncia ao seu tempo, parece que seus poemas mais
sucumbem à modernidade apelando para elementos da tradição do que se utiliza de elementos
da tradição para criticar a tradição mesma. E isso nos remete a observar a presença de
elementos cristãos em sua poesia.
Trakl, especificamente, nasceu em uma família protestante que vivia na católica e
provinciana Salzburg, com a qual nunca manteve proximidade. Apesar disso, é possível notar
muita referência a Deus e a elementos cristãos em seus poemas, como os versos “E brilha uma
luzinha, a da bondade, em seu coração,/ E a paz da ceia; pois santificados são pão e vinho/
Pelas mãos de Deus, e com olhos noturnos o irmão/ Contempla-te silencioso, repousando de
espinhosa caminhada”. Estes elementos permeados de nostalgia, que encontramos no eu lírico
no decorrer do poema, denotam, como foi dito, um desejo de fuga e de retorno a um “tempo
de harmonia”, a um mundo regido pela justa medida a que a ordem das coisas estaria atrelada
ou imanente à própria natureza. Esse mundo onírico poderia ser comparado às epopeias, que
conferiam unidade, aproximando-se das culturas fechadas como discorreu Lukács. E, nele,
sua influência declarada não é só do simbolismo francês, sobretudo de Rimbaud e Baudelaire,
nos quais se inspirava, mas também do romantismo de Hölderlin, com a lírica atrelada ao
cristianismo; de Novalis, com a mística noturna e a emblemática cor azul, 6 e de Goethe, como

6
A influência de Novalis não deve ser identificada diretamente com todos os aspectos da corrente do
romantismo alemão do qual Novalis fazia parte, porque esta influência em Trakl aparece restrita a elementos
22

já foi dito, com a valorização de elementos da cultura grega, a necessidade de retorno à


imanência, à comunhão e à harmonia dos homens com a natureza e com os deuses (“A casa
tranquila e as lendas da floresta/ Medida e lei, e os lunares atalhos do desterrado”). Com
relação às figuras cristãs, Trakl não faz uso delas como crítica ao cristianismo. Sobre este
aspecto, faz-se interessante mencionar Hugo Friedrich (1991) no que ele desenvolve sobre a
presença do cristianismo em Baudelaire.
Partindo da premissa de que o homem se encontra cindido na modernidade, o crítico
alemão diz: “Nisto é sintomático que a intelectualidade moderna recorra a velhas formas de
pensamento e, precisamente, àquelas que respondem à sua cisão” (FRIEDRICH, 1991, pp.45-
47). Essas “velhas formas de pensamento” que, no caso, referem-se às recorridas por
Baudelaire, constituem-se, para Friedrich, como a presença repetida de formas primitivas,
maniqueístas e gnósticas do cristianismo em Baudelaire. Todavia – e este é um dos pontos
que distancia este poeta de Trakl –, ele “não tem outro propósito com isso a não ser acentuar
cada vez mais a cisão” (1991, pp.45-47). Ou seja, enquanto Baudelaire remete a formas
cristãs, mas com um ceticismo, só para apontar o cristianismo em ruína, não esperando por
uma salvação ou redenção nem se lamentando por esta ruína, Trakl, por outro lado, assume e
acolhe um lamento cristão. Como disse Friedrich, a tensão que há em Baudelaire “só seria
cristã se englobasse nela a fé no mistério da redenção. Mas isto é justamente o que falta.”
(1991, pp.45-47).
O fim ou a morte de Deus, importante tema já anunciado por Nietzsche – sobre o qual
será discorrido mais adiante – e que constituirá um dos pontos nevrálgicos das crises que
assolarão o homem moderno, não aparece aqui, como pode aparecer em Baudelaire, como um
cristianismo que devesse assumir sua ruína. E ela aparece não só em Trakl, mas também em
Else Lasker-Schüler, como veremos, e em outros poetas expressionistas. Assim, o “neto
solitário” é o herdeiro de uma geração novecentista de um “tempo final” que se vê apartada
dos deuses e de Deus (“Quando o neto em doce loucura/ Medita solitário o sombrio fim,/ E o
Deus silencioso baixa sobre ele as pálpebras azuis”.7). Os não bem resolvidos com isso
apresentam uma visão fatalista. Diante de uma realidade que não correspondia aos ideais de
salvação pelo futuro – como a proposta da modernidade como um tempo de promessas –, os

líricos, não sendo estendida à visão teórica que Novalis e Schlegel terão da poesia nem às leituras otimistas que
farão sobre o fragmento. A respeito da herança de Novalis e de Hölderlin em Trakl, ver a dissertação de Cristina
Caliolo: Azuis românticos na lírica de Georg Trakl. USP, 2007.
7
“Helian” [Helian].Versos no original: Da der Enkel in sanfter Umnachtung/ Einsam dem dunkleren Ende
nachsinnt,/ Der stille Gott die blauen Lider über ihn senkt. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2010.
23

mais pessimistas, que também eram os que evidenciavam elementos cristãos em seus poemas,
acreditavam que não haveria solução.
Identificando uma perda, uma ruptura, mas não só a identificando como também
lamentando, Trakl o faz na forma de canto, como evidencia o título do poema. Trakl clama –
enquanto o que emite é um canto – por este mundo anterior, por um mundo regido pela
natureza. “Canto do desterrado” é um choro por um mundo que foi perdido, como se ao
tempo do choque ele resistisse entoando um mundo mítico. Há um eco do mito, de uma
tradição, de uma transmissão, de uma integração que não mais existem. As imagens a que o
poeta se remete formam um sentido, assumem um direcionamento que vai se estabelecendo
do início para o fim do poema. Assemelhado quase a uma narrativa, o poema narra,
linearmente, uma transformação que termina na perda do mundo mítico que havia no início.
Ele forma imagens: um mundo em comunhão, integrado, que se transforma logo em seguida,
de um verso para outro, por uma distorção, em pesadelo. E então, na alusão a um
pertencimento, no lamento, nos elementos cristãos referidos, nas metáforas, no resgate de uma
integração, na linearidade da escrita etc., ele busca, no resgate destes elementos míticos, no
mito, a salvação. Mesmo que seus poemas não obedeçam sempre à mesma forma, este resgate
acontece no poema nas imagens sugeridas. Isso leva a pensar que a tradição, aqui, não é
resgatada na forma, em estrofes configuradas em sonetos ou em alexandrinos, mas sim no
sentido, na garantia de um sentido estabelecido. Trakl, inclusive, é um dos poucos poetas
expressionistas que não escreveu a maioria de seus poemas obedecendo a um padrão, mas é
um dos que mais podemos identificar o sentido estabelecido, fechado. O sentido é
estabelecido à medida que seu fatalismo vai tomando forma no poema, direcionando somente
para uma conclusão – onde o fim do poema coincide com o e o sentido assegurado, e não, ao
contrário, para a abertura do sentido, para a não garantia do sentido.
Enquanto canto, na função agregadora que um canto possui, o canto de Trakl lamenta
a cisão, aludindo, porém, ao anseio de uma agregação. Ele parece ter o anseio de resgatar –
enquanto indica e lamenta a perda, enquanto indica e lamenta a ausência, enquanto indica e
lamenta o desterro, o vazio, a ruptura com a tradição – a agregação, a realização da
imanência, a consistência de um elo, o sentimento de pertença. Ele não indica somente: ele
indica e lamenta. E nisso ele reforça o anseio pelo resgate, o que o diferencia de um moderno
que se assume moderno, ou seja, que constata a perda e parte dela, não almejando por um
resgate do que foi perdido. Conforme Hugo Friedrich,
os poetas sempre souberam que a aflição se dissolve no canto. É o
conhecimento da catarse do sofrimento mediante sua transformação
24

em linguagem formal mais elevada. Mas apenas no século XIX,


quando o sofrimento com uma finalidade passou a sofrimento sem
finalidade, à desolação e, por fim, ao niilismo, as formas tornaram-se,
tão imperiosamente, a salvação – conquanto fechadas em si e
repousantes – entrando em dissonância com os conteúdos inquietos.
(FRIEDRICH, 1991, pp.39-41).

Friedrich remete então a um importante aspecto característico da poesia moderna: a


não coincidência entre forma e conteúdo, e, ao mesmo tempo, a forma como salvação. A
salvação pela forma garantiria um sentido, um repouso, um repouso enquanto acabamento,
enquanto um lugar fechado e bem estruturado em que coubesse a inquietude do sofrimento e,
assim, devesse aos poetas uma sensação de conforto, de um “ter lugar”, de um “ter lugar” pela
forma, de salvação. Isso se ratifica inclusive se pensarmos no esforço de construção de um
sentimento nacional que existia no século XIX, de um sentimento de pertença, de unidade da
língua, de construção de uma língua nacional. Nisso, o maior exemplo a ser lembrado pode
ser o caso da França, onde o padrão de versos alexandrino esteve atrelado à construção de
uma identidade nacional. Friedrich aponta Baudelaire, que fará amplo uso do alexandrino,
como poeta que encontra a salvação através da forma. Mas isso se mostra paradoxal se nos
perguntarmos se Baudelaire estava à procura de alguma forma de salvação. Se a forma deve
ser entendida como uma última possibilidade de salvação, mesmo nele que não apontava o
cristianismo como resgate, então um dos paradoxos implícitos nisso é a coexistência de uma
das ideias que fundamentam o cristianismo: a ideia de salvação.
Para Friedrich, ainda havia, no poeta, uma “consciência romântica da forma”, um
anseio de segurança através da forma a partir das convenções de rima, do número de sílabas
do verso, da construção das estrofes.8 Então, mesmo sendo um exemplo de moderno que se
assumiu como moderno, mesmo incorporando o cristianismo para partir dele e criticá-lo, e
mostrá-lo no que havia como parte constitutiva das tradições que ainda existiam no homem
moderno, Baudelaire, nisso, apresentava-se amarrado à tradição, ainda mais se considerarmos
o ideal de salvação que pudesse existir nele, ainda que essa salvação se desse pela forma.
Antoine Compagnon já teria assinalado que “a ambivalência da modernidade
baudelairiana e de toda verdadeira modernidade é a resistência à modernidade, ou, pelo
menos, à modernização.” (2014, p.27). Ora, se compreender a modernidade é compreendê-la
no que há de ambivalência, no que abriga a própria tensão que caracteriza o moderno, a
forma, em Baudelaire – e em muitos outros em seguida que terão sua influência – assume aí

8
“Baudelaire exprimiu muitas vezes o conceito da salvação através das formas: O maravilhoso privilégio da arte
é que o espantoso, expresso com arte, torna-se beleza, e que a dor ritmizada, articulada, preenche o espírito
com uma alegria tranquila” (apud FRIEDRICH, 1991, p.41).
25

duplamente a tradição: primeiro, porque se torna a garantia de salvação, e precisamos


entender “salvação” como um ideal presente tanto na tradição cristã quanto na judaica;
segundo, porque ainda está ancorada em um padrão estilístico ainda não subvertido. É
relevante lembrar que o fragmento, como gênero, já estava relativamente em voga pelos
românticos de Jena, Schlegel e Novalis, mas o caráter otimista que os fragmentos ofereciam
ao pensamento não comparece neste exemplo de Trakl que, apesar de expor um sujeito
fragmentado, não utiliza o fragmentário no que ele proporciona de abertura à linguagem, da
linguagem que se volta à linguagem, mas, ao contrário, na configuração de um sentido
acabado.
Se a forma ainda era uma forma de salvação, no final do século XIX o que se torna
salvação talvez já não fosse mais somente a forma, mas a dissonância. Mallarmé já apontaria
para uma mudança nos padrões, logo no rígido cânone francês, denotando não só a
necessidade de uma poética que não mais encerrasse a representação em um objeto, mas a
emancipação da própria forma que, vazia, apontava a “recusa dos limites da inteligibilidade e
da busca do ser em si, equivalente ao nada” (COMPAGNON, 2014, p.48). Assim, toda
linguagem concebida como configuradora de um sentido, em seus padrões sistemáticos,
estruturadas em uma forma, passou a se mostrar insuficiente, constituindo um limite para a
expressão do homem moderno e para a sua própria fuga, para um eu que estava cada vez mais
se perdendo em uma despersonalização.
O “Canto” de Trakl esboça, porém, apenas outra maneira de ver a salvação, de
maneira inversa a de Baudelaire. Ao contrário de tentar fazer com que a forma constituísse
um meio de salvação, o poema não garante a salvação pela forma: ele anseia por uma
salvação, mas que é estabelecida no sentido, pelo conteúdo que se fecha em um sentido, não
pela forma, uma vez que os versos, apesar de serem marcadamente pontuados, não obedecem
a um padrão. Se a tradição se mostrava, em Baudelaire, na forma, como garantia de ajuste de
um conteúdo inquieto, em Trakl ela se mostrava no sentido. Ambos os casos apontam,
entretanto, para o que está de mais incrustado nesta tradição: a ideia de salvação. Estes casos
se diferenciam daqueles que serão mais subversivos, que vão assumir muito mais a não
salvação, que não vão ajustar o conteúdo à forma nem ansiar por algum tipo de resgate que
não seja possível no conteúdo. Aí, sim, talvez a dissonância seja a constatação da não
salvação; talvez o que esses assumam seja, privilegiadamente, o desajuste total, a dissonância
que não dá garantias, nem pela estrutura formal nem pelo sentido estabelecido. Assumir esta
dissonância talvez seja muito mais uma constatação da impossibilidade de salvação.
26

Entretanto, a respeito do outro aspecto tradicional presente em Trakl, da valorização


grega e de um anseio de retorno às sociedades pré-capitalistas, em confluência com a teoria
das culturas fechadas de Lukács, faz-se interessante se debruçar sobre a análise de Giorgio
Agamben (2005) da própria concepção grega de tempo. Considerando que a experiência do
tempo é em geral representada por meio de imagens espaciais, Agamben identifica na
concepção de tempo de gregos e romanos uma imagem circular. A concepção que a
antiguidade greco-romana tem do tempo é fundamentalmente circular e contínua. Essa
representação clássica é compreendida através da relação que os antigos estabeleciam com a
história. Como aponta Reinhart Koselleck (2006), a história, na antiguidade clássica, possuía
uma função pedagógica, servia para orientar as ações. De acordo com isso, ele acredita que o
topos clássico definido por Cícero como historia magistra vitae seria paradigmático da
9
relação que a antiguidade estabeleceu com a história e com o tempo. Nesse sentido, a
compreensão da passagem do tempo como um movimento cíclico está diretamente
relacionada ao conceito de história que a antiguidade ocidental possuía (KOSELLECK, 2006,
p.43), que seria a de registrar os feitos e os acontecimentos, garantindo a imortalidade do
homem na terra (LAFER in ARENDT, 2014, p.14). De acordo com isso, a nostalgia, a fuga
romântica, que aparecem no poema, também pressuporia o desejo de retorno a este modo de
compreender e sentir o tempo. Um tempo cíclico das sociedades primitivas, que certamente
difere do tempo que surge com a máquina, mas que, conforme Agamben, não seria o que
libertaria o homem – como talvez acreditassem os pré-românticos –, por ter como base o
desprezo às mudanças, pois conferia à natureza um caráter de imortalidade fundamentado na
circularidade da vida biológica, em contraste com a mortalidade concreta dos homens que,
uma vez que seus feitos fossem registrados, ascenderiam também à imortalidade (LAFER in
ARENDT, 2014, p.14). De acordo com isso, tanto a concepção de temporalidade clássica
como a cristã possuem, como veremos, uma semelhança que faz com que o homem conceba o
tempo como instância maior, superior e externa a si.
No que concerne à concepção greco-romana, definindo os seus principais aspectos,
Agamben faz a anunciada crítica às suas categorias fundamentais: o instante e o contínuo.
Dividindo o tempo ao infinito, o instante é outro e, paradoxalmente, é também o que conjuga
o devir e o vivido; é, portanto, sempre o mesmo. Repartindo e conjugando o tempo, o instante
é sempre e simultaneamente começo e fim do tempo, estabelece o fim do antes e garante o

9
“Até o século XVIII, o emprego de nossa expressão [historia magistra vitae] permanece como indício
inquestionável da constância da natureza humana (...)”. Koselleck, nesta passagem do ensaio Historia magistra
vitae, fala de como só havia fundamento em se pensar as narrativas do passado como instrutoras da ação humana
no presente, isto é, de conferir à história um caráter pedagógico (KOSELLECK, 2006, p.43).
27

início do depois. O tempo nunca poderá ser apenas um, mas somente outro, na medida em que
ele, inevitavelmente, estará sempre prestes a terminar e a começar. “E esta sua natureza é o
fundamento da radical ‘alteridade’ do tempo e do seu caráter ‘destrutivo’”, é o que faz com
que o homem não possa vivê-lo, experimentá-lo (AGAMBEN, 2005, p.113). Assim é que o
filósofo retoma a definição aristotélica do instante para apontar já ali o problema que
acompanhará por longo tempo a tradição do pensamento ocidental:

Visto que o instante é, simultaneamente, fim e início do tempo, não da


mesma porção dele, mas fim do passado e início do futuro, assim
como o círculo é no mesmo ponto côncavo e convexo, da mesma
maneira o tempo estará sempre prestes a começar e a terminar e, por
esta razão, ele parece sempre outro (ARISTÓTELES apud AGAMBEN,
2005, pp.113-114).

A visualização do círculo permite a compreensão de duas características fundamentais


do tempo atrelado ao conceito de história antigo: recorrência e imobilidade. O traço do círculo
é contínuo e ininterrupto e ainda volta-se sempre sobre os mesmos pontos. Pensando cada
ponto da figura do círculo como um evento, após a primeira volta completa, os eventos
repetem-se, enfatizando uma noção de recorrência e perpetuidade. Desta maneira, o
movimento circular, por sua incessante repetição e continuidade, assegura a manutenção do
mesmo.
A ideia aristotélica de constância da natureza humana demonstra bem como os gregos
puderam pensar o tempo. O ser autêntico para os gregos é aquele que permanece idêntico a si
mesmo, desprezando o devir e as mudanças, que seriam graus inferiores do real. A verdadeira
identidade é aquela perpétua e eternizável. Conforme a citação que Agamben faz do
historiador Henri-Charles Puech,

Dominado por uma ideia de inteligibilidade que assimila o ser


autêntico e pleno àquilo que é em si e permanece idêntico a si mesmo,
ao eterno e ao imutável, o grego considera o movimento e o devir
como graus inferiores da realidade, em que a identidade não é mais
compreendida senão – no melhor dos casos – como permanência e
perpetuidade, ou seja, como recorrência. O movimento circular, que
assegura a manutenção das mesmas coisas através da sua repetição e
do seu contínuo retorno, é a expressão mais imediata e mais perfeita
(e, logo, a mais próxima do divino) daquilo que, no ponto mais alto da
hierarquia, é absoluta imobilidade. (PUECH apud AGAMBEN, 2005,
p.112)

O eu lírico no poema de Trakl depara-se com o tempo que já não é mais regido pelo
divino, que não é mais circular, e que corre na velocidade dos segundos que podem ser
capturados, por exemplo, em uma fotografia, ou em tiragens diárias que atestam um tempo de
28

dispersão. Isso aparece no poema como um choro ou um lamento por um mundo que se
perdeu, que é substituído pelo mundo profano, secularizado, moderno, que, para ele, só
significava sofrimento. Assim, o poema apresenta duas imagens opostas, em que a primeira
foi perdida e substituída pela segunda, como o paraíso (a sociedade idealizada) que se
converte brutal e subitamente em inferno (o mundo moderno). Ainda imensamente permeados
pela tradição e pela concepção de tempo tradicional cristã, no caso de Trakl, muitos poetas
partem disso e expressam a mudança e a crítica a essa mudança em forma de perda. Na
extensão desta perda temos o fim da mais suprema ligação transcendental, a que os mais
pessimistas iriam atribuir o fim de tudo, do mundo e da vida.
A experiência do tempo aparece no cristianismo, segundo Agamben, de maneira
antitética à experiência clássica, que em geral é representada por um círculo: a representação
imagética do tempo cristão é a de uma linha reta. O mundo construído pelo cristianismo
possui um ponto de partida, a Gênese, e um ponto final, a perspectiva escatológica do
Apocalipse. A Criação, o Juízo e o percurso entre esses dois pontos são eventos únicos e
irrepetíveis. “A história da humanidade mostra-se assim como uma história da saúde, ou seja,
da realização progressiva da redenção, cujo fundamento se encontra em Deus. E nesta
conjuntura todo evento é único e insubstituível” (AGAMBEN, 2005, p.115).
O aspecto da experiência cristã mais fundamental na perspectiva do filósofo italiano é
aquele que refuta a relação entre o tempo e o movimento dos astros, para concebê-lo com uma
experiência humana e interior. Em Confissões, Santo Agostinho contrapõe a relação
estabelecida entre o tempo e os movimentos dos astros celestes, afirmando que é no espírito
que se pode medir o tempo: “É em ti, meu espírito, que eu mensuro o tempo” (AGOSTINHO,
1987, p.215). Há, neste sentido, uma interiorização do tempo pelo homem. Porém, o tempo
atrelado a uma dimensão humana não permitiu realizar uma ‘autêntica experiência de
historicidade’, devido à manutenção das categorias da antiguidade greco-romana de instante e
contínuo. O tempo medido no espírito da concepção cristã, mantém, na perspectiva de
Agamben, a ideia de sucessão contínua de instantes do pensamento grego. O filósofo aponta
como Agostinho se viu impedido de colocar o problema do tempo de modo diverso por ainda
manter a noção aristotélica de um continuum quantificado: “Agostinho com a sua angustiosa e
não resolvida interrogação sobre o tempo irrefreável, mostra como o tempo contínuo e
quantificado não é abolido, mas simplesmente transferido do curso dos astros à duração
interior” (AGAMBEN, 2005, p.116). Questionando-se sobre a supressão do instante,
Agostinho constata que não haveria nem passado nem futuro, mas apenas um presente ultra-
estendido; haveria tão somente a eternidade. E essa, como regime divino, não pode ocorrer no
29

século, mas somente ao seu cabo. Isso faz com que Agamben afirme que, mesmo na
concepção cristã, em que a experiência temporal estaria atrelada à sensibilidade do espírito, o
tempo foi abortado pela manutenção do instante e pela continuidade assegurada na retomada
de uma representação cíclica do tempo pela escolástica tomista.
Diante do que foi exposto, podemos perceber, portanto, uma imbricação das
concepções clássica e cristã, que partem da ideia de continuidade e de instante, de um ponto
estanque, que será encontrado sobremaneira na experiência moderna do tempo, uma vez que
esta passa a ser condicionada pelo choque, pelo tempo do instante, do fugidio, do fugaz.

1.2 O novo, o futuro, o Fim do Mundo

A modernidade já é em sua ideia o tempo prometido, o lugar da realização, o novo


que chegou. É, ao mesmo tempo, o novo que se faz presente e os novos para os quais aponta.
O novo que visa a produzir todo tipo de novo; um novo a cada momento. Deste modo, como
época, a modernidade se apresenta, ela mesma, enfaticamente nova. O filósofo Jürgen
Habermas assinala-a, por exemplo, como uma época orientada para o futuro, aberta a todo
tipo de novo (2002, p.9). Ou seja, como nova, a modernidade é tanto a consolidação de algo
que foi pensado, projetado anteriormente, como a projeção, a partir de si mesma, de um futuro
para o qual se orienta. Ela se apresenta tanto como o futuro que já está acontecendo, que já se
faz presente, quanto a promessa, no presente, de um futuro. Simultaneamente, portanto, como
o novo já acontecendo e como propulsora do novo ou dos novos que virão. No entanto, a
questão que se coloca aí é a ideia mesma de “novo” e a ideia mesma de “futuro”.
Precisamos vê-la como “futuro” no que implica a própria ideia de futuro, tanto na
concepção de tempo estanque, quanto no que nesta ideia tem de implícito uma promessa. É
isso e tudo o que está inserido em uma concepção de tempo que subentende o futuro como
realização, libertação, salvação e redenção, que faz com que se tenham pensado, na
modernidade, que o fim havia chegado. Isso que, por sua vez, parte do pressuposto de que a
experiência de tempo moderna é associada à ideia de futuro que pode ser encontrada tanto na
concepção cristã quanto na judaica. Essas, ainda que diferentes, possuem semelhanças que
conferem ao homem uma posição de subserviência ao próprio tempo, colocado a serviço dele
e estando submetido a ele. Semelhanças que fazem com que as novas formas de perceber o
mundo, surgidas na modernidade, e a percepção cristã e a judaica de tempo, confluam não só
30

em uma interferência no modo de experienciar o tempo, sentindo-se fora dele e impotente em


relação a ele, mas, também, interferindo no modo de perceber e de se sentir no espaço.
O homem moderno, submetido ao tempo do novo, que se apresenta, ao mesmo tempo,
como o tempo do fim, ou em que tudo é direcionado para alcançar uma determinada
finalidade, ou melhor, uma determinada e requerida utilidade, irá se ver, ele mesmo – não por
coincidência, e para além de um mero jogo retórico de palavras – no fim dos tempos. Não à
toa, Antoine Compagnon toma emprestada a “feliz fórmula de Gianni Vattimo” para se referir
à modernidade “‘como a época da redução do ser ao novum” (2014, p.16). Entretanto, do final
do século XIX ao desenrolar do século XX, o novo passará por conotações diferentes.
Segundo Compagnon, “a palavra de ordem do moderno” teria sido proclamada por Rimbaud,
repetida ao longo da Carta do visionário de 1871 “como recusa violenta do antigo”, como
uma exigência de formas novas, e se assumiria de forma desesperada em Baudelaire, como
um novo que fosse “arrancado da catástrofe, do desastre de amanhã”, que pudesse escapar da
“profecia da guerra”, reconhecida por Benjamin mais tarde (2014, pp.16-17). Compagnon
também identifica que, inicialmente, o adjetivo moderno, do latim modernus, “designa não o
que é novo, mas o que é presente, atual, contemporâneo daquele que fala” (2014, p.17), e que
o “sentido nebuloso” que tem para nós o termo moderno se atrela ao sentido positivo presente
no modo como definimos o tempo a partir da invenção do progresso, como observou Octávio
Paz (2014, p.19). Explicitando o que seria tal sentido, o crítico francês diz: “Uma concepção
positiva do tempo, isto é, a de um desenvolvimento linear, cumulativo e causal, supõe
certamente o tempo cristão, irreversível e acabado. Mas ela o abre para um futuro infinito”
(2014, p.19). Este futuro infinito não seria pensado como continuação do tempo corrente, mas
como uma eternidade na qual, somente nela, seria possível a salvação, uma vez que, se para a
tradição cristã a perfeição só se deu na origem, antes do pecado, então, como especulou
Compagnon, se ela se desse no futuro, só teria como acontecer em um tempo apartado da vida
profana, na eternidade (2014, p.19).
De todo modo, o progresso foi veiculado como promessa de salvação econômica,
política e social, e isso entrou em conflito com os feitos realizados especialmente na
Alemanha do início do século XX, inserida na corrida armamentista e tecnológica do
Neoimperialismo, conhecendo, sobretudo, os efeitos atrozes de uma política autocrática,
autoritária e belicista, o que piorou sobremaneira com a Primeira Guerra. No entanto, antes
mesmo da Grande Guerra, considerada o primeiro expoente das catástrofes que dariam
seguimento ao turbulento século XX, os homens já se mostravam desolados, passando por
crises de diversas ordens, tanto políticas, quanto econômicas e morais. Frente às promessas de
31

progresso, terão lugar as condições precárias de sobrevivência, o desemprego, as inflações e


as doenças.
Com relação à ideia de futuro, ela não está somente na visão cristã de eternidade, mas
também possui relação direta com a ideia de progresso, tendo como base a noção iluminista e
liberal amplamente influenciada pelo racionalismo e pelos ideais econômicos burgueses que
vinculavam o progresso à ideia de acumulação de riqueza e a acumulação de riqueza, por sua
vez, como o meio que traria a liberdade ao homem, princípio esse que encontrava reforço nos
fundamentos protestantes, sobretudo, calvinistas, depois de Lutero. Além disso, desde a
Renascença, como lembra Compagnon, “nossa concepção moderna de um tempo sucessivo,
irreversível e infinito” vê o “progresso científico ocidental” como a abolição da figura da
autoridade e como o triunfo da razão (2014, p.20). De acordo com isso, depreende-se então
que o progresso se constitui como um meio para a possibilidade de atingir um fim: a
autonomia do homem, entendida como liberdade – liberdade de algo; aqui, especificamente,
liberdade de um mundo que se deseja abandonar, a saber, o velho mundo, do Antigo Regime,
e todos os valores que a ele se vinculavam. É neste sentido que o novo se atrela à
modernidade e, junto a ele, todos os ideais de continuar o que estava se dando desde a
Revolução Industrial, e superar, tornando-se mais que isso, e, assim, projetando mais “novos”.
No âmbito da estética, isso faz surgir desde então a possibilidade de uma estética do
novo, em que a Revolução Francesa se assume como o importante momento do recomeço –
desde o tempo, sobretudo, com a construção de um novo calendário. E esta estética do novo
não deixa de remeter à já conhecida querela entre modernos e antigos:
Do ponto de vista dos modernos, os antigos são inferiores, porque
primitivos, e os modernos, superiores, em razão do progresso,
progresso das ciências e das técnicas, progresso da sociedade etc. A
literatura e a arte seguem o movimento geral, e a negação dos modelos
estabelecidos pode tornar-se o esquema do desenvolvimento estético.
(COMPAGNON, 2014, p.20).

Para Compagnon, “novo” e “futuro” assumem noções diferentes, em que a primeira


supõe a modernidade e, a segunda, a vanguarda. Para o crítico, a luta contra o conformismo e
contra a convenção, que teria começado a partir da metade do século XIX, teria se acelerado e
se radicalizado, especialmente com as chamadas vanguardas históricas do começo do século
XX, quando então a arte se orientaria para o futuro. O que muda nestas noções é o sentido do
presente na consciência do tempo: a modernidade teria um sentido do presente enquanto tal,
diferentemente da vanguarda, que teria um sentido do presente enquanto contribuição para o
futuro. É assim que Compagnon identifica que, sobretudo a partir da pintura
32

neoimpressionista, a arte estará apegada “desesperadamente ao futuro”, passando “da negação


da tradição para a uma tradição da negação” (2014, pp.44-45).10 Disso resultará uma
incidência temporal no termo vanguarda: inicialmente militar e usado para se referir a uma
configuração espacial, passa a ser usado na arte primeiramente pelos neoimpressionistas no
final do século XIX, referindo-se muito mais à inovação estética das formas do que aos temas
em torno do conflito social. Todo o vocabulário da crítica de arte tornar-se-á igualmente
temporal, pois a arte não só estará negando e rompendo com o passado, mas suprimindo o
próprio presente, antecipando-o a fim de inscrever-se já no futuro, inserindo-se então em um
modelo evolutivo de incessante superação. E isso, para o crítico supracitado, é o mais grave e
é tudo aquilo que Baudelaire recusava, porque a narrativa que faz do novo uma origem e uma
consequência reconcilia modernidade e história, e ao invés de recusar esta última para
11
dialogar com a atemporalidade , faz da modernidade “o motor da história”: “Enquanto o
tempo de Baudelaire se apresentava como uma sucessão de presentes disjuntos, um tempo
intermitente [...], o tempo das vanguardas confunde sucessão e consequência, na ideia de
antecipação.” (2014, p.50). Para o crítico, a modernidade baudelairiana denunciava o curso da
história, não se reduzindo a ele nem se inserindo na ordenação sucessiva e linear do tempo;
ordenação que também guiará o processo da mercadoria, cujo novo estará ligado a uma ideia
de repetição.
No âmbito econômico, estendido à vida social, o novo se apresenta como enfadonha
repetição, em que tudo passa a ser automatizado como o “sempre-igual” [Immergleich] da
indústria do maquinismo e da mercadoria. “Sempre-igual” até mesmo a espera pelo novo, até
mesmo a espera, até mesmo as promessas (LÖWY, 1989, p.104). A modernidade, então, já é
o novo que se orienta para a produção de um novo a ser sempre superado. E assim, o futuro,
como um tempo que ainda vai chegar, na verdade se apresenta muito breve, já é sempre um
presente em que o novo está sendo realizado. Compreende-se então que o futuro é o tempo
antecipado da realização que já está acontecendo. Ou melhor, parece que passado e futuro se

10
“Os anos 80 – com o neoimpressionismo na pintura e o decadentismo, depois o simbolismo e o naturalismo
em literatura – marcam, assim, a data da ligação fatal da arte e do tempo, da arte e da história, a passagem da
negação da tradição para uma tradição da negação, para aquilo que se pode chamar de um academismo da
inovação, que as vanguardas sucessivas denunciarão antes de sucumbir a ele.” (COMPAGNON, 2014, p.45).
11
A palavra usada por Compagnon não é atemporalidade, é “eternidade” (“A modernidade baudelairiana
recusava a história para dialogar com a eternidade, e a modernidade, seduzida pela narrativa ortodoxa, não é
outra coisa senão a doença da história, que Nietzsche chamou de decadência.”). Todavia, como “eternidade”,
aqui, está relacionada à compreensão de um tempo metafísico religioso, e como o desenrolar da análise do crítico
remete em seguida Baudelaire a Benjamin, em sua crítica ao sentido canônico da história, baseada na ideia do
progresso e na ideia de sucessão, optou-se pelo termo “atemporalidade”, uma vez que ele se adéqua mais ao
sentido de suspensão do tempo cronológico, linear, sucessivo, que seria interrompido com os “presentes
disjuntos” de Baudelaire. (cf.: COMPAGNON, 2014, p.50-51).
33

anulam em um tempo a serviço do presente, em que o presente é o instante imediato. O tempo


do progresso, da realização (“realização”, isto é, processo de tornar real, de tornar realidade)
das coisas é o presente, o agora que marca o fim de cada produção e o início de outra, de cada
novo, ininterruptamente. Ao lado do desencantamento do mundo capitalista moderno, como
Weber (2001) notou, fulminava o encantamento pela/da novidade, o fetiche (feitiço) da
mercadoria, o novo que se realizava quase como mágica, e seduzia e encantava e instaurava
ininterruptamente a falta, que nunca seria superada. Esse é o universo da repetição disfarçado
em novidade, que “Benjamin aborda como uma ‘procissão infernal’ que multiplica sempre a
mesma imagem repugnante” (LÖWY, 1989, p.104). No reino da mercadoria, “‘a humanidade
[...] faz o papel condenado’ porque o ‘novo’ repetitivo e factício da produção mercantil é ‘tão
incapaz de fornecer-lhe uma solução libertadora quanto uma nova moda de renovar a
sociedade’” (BENJAMIN apud LÖWY, 1989, p.104).
O que vemos diante de tudo isso são pessoas que se veem impotentes frente ao tempo,
uma vez que se colocam a serviço desse, é “uma modernidade escrava do tempo e devorando-
se a si mesma, à possibilidade de decadência da novidade, renovada incessantemente e
negando a novidade de ontem” (COMPAGNON, 2014, p.26). O tempo, como instância
superior e externa ao homem, aparece como uma face tirânica que a tudo submete. Na luta de
suprimir o presente (sendo o presente apenas uma sucessão contínua de instantes), na
impossibilidade de retornar ao passado e na visão fatalista do futuro, para uns, e salvacionista,
para outros, como eternidade apartada da temporalidade, a relação do homem com o tempo só
aniquila o primeiro. É uma relação que o coloca imobilizado e impotente.
Assim, da mesma forma que se veem como reféns do tempo, as pessoas se sentem
espacialmente deslocadas, fora de lugar. Presas à tradição das promessas, entram em colapso
com o tempo do instante, do fugidio, do desejo, dos pequenos prazeres, em que a promessa de
prazer não o coloca em relação amigável com o tempo, mas existe como uma necessidade de
matá-lo, pela vontade suprimi-lo – o que reforça a posição de soberano e a posição de
subserviência do ser humano como seu escravo. A relação desse último com o primeiro é
então doentia, em que o homem nunca está em posição afirmativa. A ininterrupta
possibilidade de pequenos prazeres não passa de supérfluos na realidade do cotidiano. Como
escreve o romancista francês Alexandre Arnoux, na cidade “tudo parece levar os homens a
esquecer o tempo, a consumir-se além de todos os limites no trabalho e no prazer, a roer até o
osso sua cota de lazer, de poupança, de sonho.” (ARNOUX apud RICHARD, 1988, p.82).
Antoine Compagnon, com uma formulação mais radical, diz que “com o advento da
‘modernidade’, a própria distinção entre o presente e o passado desaparece no efêmero”
34

(2014, p.22). Em abertura ao livro Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt, Celso Lafer
identifica que o século XX fez da cultura uma mercadoria, consumindo-a na forma de
diversão (2014, pp.12-13). Sendo a diversão aquilo que se consome nas horas livres, ela está,
pois, indiretamente relacionada com o processo biológico vital de deglutição e consequente
destruição. Pautada nisso, a indústria da diversão da sociedade de massas orientou-se para
uma atitude de consumo de apetites imensamente devoradores. Deste modo, “o ócio e a
cultura animi de que falava Cícero, que recompunham na tradição ocidental o balance entre
diversão e cultura” (LAFER in ARENDT, 2014, p.13), não constituem uma resposta
adequada a uma sociedade que tenta suprimir a qualquer custo uma falta, consumindo,
devorando, destruindo, relacionando-se com a cultura e com o próprio tempo de maneira
niilista, uma vez que na crescente desvalorização dos valores transcendentais, então
transformados em valores funcionais, a cultura e o tempo entraram na ordem da utilidade, mas
que não é regida senão a partir de uma ininterrupta substituição – no que se destrói, substitui-
se por outro, para então destruir e substituir por outro, continuamente.
Diante da frustração de uma impossibilidade de salvação neste tempo que se
apresentava como promessa, os mais pessimistas, que também eram os que evidenciavam
elementos cristãos em seus poemas, como já dito, acreditavam que não haveria solução: os
homens haviam abandonado Deus e Deus havia abandonado os homens e o mundo, que
estava fadado ao fim. “Segundo a teologia, o castigo mais severo em que pode incorrer uma
criatura, aquele contra o qual não há mesmo mais nada a fazer, não é a cólera de Deus, mas o
seu esquecimento.” (AGAMBEN, 2012, p.68). Eis a condição trágica do homem moderno,
apartado de um deus, enraizado em si mesmo – questão que será abordada em outro momento.
O abandono de Deus e o mundo que se direciona para o fim serão temas recorrentes,
apresentados como um grande lamento, o que faz denotar o choque de suas crenças com a
vivência do tempo moderno laicizado e orientado para as realizações do progresso.
Contrapondo a estética clássica à romântica, Compagnon diz que a primeira, “cuja ambição é
transcender o tempo”, se opõe à segunda, que repousa no “mal do século”, identificando nisso
um “mal estar experimentado na sua relação com o tempo, na consciência do inacabado da
história”, do incessante recomeço, do incessante novo “inseparável da fé moderna no
progresso e do reconhecimento de nossa historicidade sem fim” (2014, p.22). Talvez, estas
características não sejam opostas em parte dos poemas expressionistas, porque a crítica ao
tempo laicizado, voltado para os incessantes novos do progresso, não exclui a concepção
metafísica, mas a reforça; não só a reforça como coexiste em tensão com ela. Isso pode ser
percebido em Trakl, cujo anseio de transcender o tempo está indubitavelmente ligado à
35

denúncia do mal estar de seu tempo. Assim, a noção secular de uma “historicidade sem fim”
ou a consciência de um “inacabado da história” parece ter antes uma relação conflituosa com
a crença no transcendental, porque a fé moderna que promulgou uma historicidade sem fim,
ou seja, uma historicidade baseada em uma secessão interminável de instantes, foi a mesma
que contribuiu para a ameaça do abandono de Deus, precipitando o seu fim. É inserida neste
mal estar que se dá pela percepção da fé no progresso como promessa de realização e
libertação, em confronto com a concepção da tradição metafísica que deposita a fé no
transcendental, que Else Lasker-Schüler, a única poetisa expressionista, judia, vai anunciar o
“Fim do Mundo” – poema que, para alguns, marca o início do expressionismo – no início do
século, em 1905:
Há um choro no mundo,
como se o bom Deus chegasse ao final,
E a nuvem plúmbea cai ao fundo,
Em peso sepulcral.

Vem, escondamo-nos juntos em plenitude...


A vida está no coração de todos
como em ataúdes.

Tu! Profundamente nos beijemos -


No mundo palpita uma saudade
Da qual morreremos. 12

O fim do mundo em Lasker-Schüler coincide com um fim específico: o fim de Deus


(“Há um choro no mundo,/ como se o bom Deus chegasse ao final”). No verso original, “Als
ob der liebe Gott gestorben wär”, “chegasse ao final” está indicado como “gestorben”, que é
o particípio de sterben, podendo ser traduzido literalmente por “morrer”, e então, “gestorben
wär”, por “teria morrido”. “Como se o bom Deus chegasse ao final”, como se Ele estivesse
morrendo, ou morrido, chegado ao final e, não, no final; não no fim messiânico em que o que
chega no fim dos dias é o Messias que vem para restabelecer a harmonia e, assim, o fim
assume o significado de um re-começo. Poderíamos interpretar estes versos iniciais como um
lamento pela constatação da secularização do tempo, que haveria matado o Deus? Ou a
constatação da punição de Deus ao homem, conduzindo o mundo ao fim? Ainda que seja na
morte, a promessa de eternidade – também transcendental e externa à vida –, entretanto,
permanece: a morte como plenitude.

12
“Fim do Mundo” [Weltende], 1905. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2010. Versos no original: Es ist ein
Weinen in der Welt,/ Als ob der liebe Gott gestorben wär,/ Und der bleierne Schatten, der niederfällt,/ Lastet
grabesschwer.// Komm, wir wollem uns näher verbergen…/ Das Leben liegt in aller Herzen/ Wie in Särgen.//
Du! Wir wollen uns tief küssen –/ Es pocht eine Sehnsucht an die Welt,/ An der wir sterben müssen.
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A tradutora optou por incluir a palavra “plenitude” na tradução do verso “Komm, wir
wollen uns näher verbergen...” para se ajustar à rima com o último verso do terceto (“Vem,
escondamo-nos juntos em plenitude.../ A vida está no coração de todos/ como em ataúdes.”).
Se considerarmos esta tradução, o que passa a estar em jogo é o vislumbre de uma saída na
morte: a plenitude. Mas, se nos mantivermos no original, vergeben poderia ser traduzido
como “perdoado”, “absolvido”, então, com isso, a morte também não deixa de assumir aqui
um sentido de salvação. Seria a morte, então, a fuga que está para além e fora do tempo, a
possibilidade de plenitude, de absolvição, de perdão, de salvação, a única saída possível para
um mundo que não tem saída. A ideia de uma possibilidade só se instaura aqui por uma
impossibilidade, por um fim que é previamente instituído: o da vida.
Seria a morte a redenção final, em que passa a ser ela mesma a concessão da justiça
divina? Seria, então, a morte, enquanto possibilidade de plenitude ou absolvição, a única saída
possível para uma vida e um mundo que não têm saída? Seria, portanto, isso mesmo que
alimenta esta saída, a impossibilidade de qualquer saída? Vemos que o que está em jogo nisso
é o vislumbre de uma saída que está para além e fora da relação ativa do homem com o
tempo, em que a saída torna-se o mesmo que não saída. E isso tanto aponta (depositando toda
sua crença nisso, cultivando como promessa de plenitude) para um ponto – final (o fim, a
morte) – quanto pressupõe que este ponto está para além do tempo e da própria vida.
Lasker-Schüler, a única mulher dentre os poetas expressionistas, foi muito importante
na literatura alemã, exercendo influência em poetas de outras gerações e sendo considerada
como musa pelos poetas expressionistas. Foi uma das fundadoras da revista Der Sturm e
publicou seus primeiros poemas em 1899. Em 1932, recebeu o prêmio Kleist de Literatura.
Teve uma vida em constantes dificuldades financeiras, ilustrava seus próprios livros e
circulava com extravagância pelos cafés de Berlim. Sua poesia é marcada por um lirismo que
não é comum ao expressionismo, parte do qual é percebido pelos temas amorosos dedicados
principalmente ao poeta Gottfried Benn e, além disso, pelos elementos religiosos oriundos de
sua tradição judaica. Em 1933, ela fugiu para a Suíça e se exilou na Palestina e em Jerusalém,
na Terra Prometida, que tanto cantou em sua poesia, onde viveu em total miséria, até lá
falecer, em 1945.
Ora, para o messianismo na tradição judaica, a mudança trazida pelo Et ketz, o tempo
do fim, significa um começo, a criação de um mundo inteiramente outro. “O advento do
Messias no fim dos dias estabelece (ou restabelece) uma era de harmonia entre o homem e
Deus, entre o homem a natureza, e dos homens entre si.” (LÖWY, 1989, p.23). A escatologia
generalizada aparece, portanto, como destruição dos poderes deste mundo em benefício da
37

teocracia de Deus, do poder do próprio Deus, e não em sua ausência, em seu fim aniquilado,
como parece expor o poema. A ideia judaica de Tikkoun ou Tiqqun, “termo cabalístico,
polissêmico, significa a uma só vez redenção [Erlösung], restituição, reforma,
restabelecimento da harmonia perdida” (LÖWY, 1989, p.10), e conceberia o fim ao mesmo
tempo como um começo, como “advento de um mundo da unidade” em que a escatologia
seria condição do Novo Mundo onde as coisas retornariam à origem, entendida como o lugar
inicial antes da Queda, ao restabelecimento da ordem cósmica e não da ordem histórica
(LÖWY, 1989, pp.31-65). Levando-se em conta este sentido, o que há no poema não é este
tom otimista da escatologia, mas um “choro” pela constatação do fim. Pela constatação do fim
do próprio Deus e do fim não redentor de tudo. Uma constatação da perda até mesmo da
tradição, da experiência, do que lhe conferia integração. Se atentarmos para os últimos versos
de cada estrofe, teremos: “Em peso sepulcral”, “como em ataúdes” e “da qual morreremos”,
respectivamente. O sentido, que esperamos estar estabelecido ao lermos “Vem, escondamo-
nos juntos em plenitude.../ A vida está no coração de todos”, é solapado no enjambement pelo
verso seguinte: “como em ataúdes”, que finaliza a estrofe, não coincidindo com o sentido
fechado esperado na consecução dos dois primeiros versos, mas recaindo exatamente em uma
alusão a não salvação, à morte. Se repararmos também na estrutura do poema como um todo,
veremos que não existe o segundo quarteto que se esperaria em um soneto padronizado.
Como se existisse no poema uma incompletude, como se uma parte lhe faltasse, eis que a
lírica no “Fim do Mundo” está ela mesma também submetida ao choque. Em sua
incompletude, em seu vazio, um mundo amputado diante da possibilidade da finitude de
Deus.
Talvez, o que fica mais evidente em Else seja um niilismo negativo. Na extensão
disso, poderia até ser especulado um traço de conservadorismo, de um suposto desejo de
restauração da tradição, o que não parece, contudo, condizer com os relatos sobre ela e com o
restante de sua obra. A morte de sua mãe, em 1897, causou-lhe grande abalo, significando
para si “a expulsão do paraíso”, marcando assim o restante de seus escritos – além disso, seu
irmão preferido morreu quando ela tinha treze anos, em 1882 e, seu pai, em 1890. Mesmo
tendo nascido em uma família em que o pai e o irmão eram banqueiros, ela passou por
dificuldades financeiras, recebendo o apoio dos amigos. Ao contrário de pensarmos que ela
pudesse ser uma judia ortodoxa, o que se conta é que era uma figura ousada, extravagante,
autêntica, e não parecia seguir padrões nem estar dentro dos conformes. Seu judaísmo mais
marcou sua poesia de um lirismo do que de fortes convicções. No entanto, o poema citado,
sem dúvida, esboça frustração com o mundo vigente, como Trakl, em forma de perda, de não
38

redenção (ambos, inclusive, tornaram-se grandes amigos desde quando se conheceram, em


1913, quando Trakl foi a Berlim visitar a irmã doente – que também morreu ao cometer
suicídio, anos depois dele).
O que podemos pensar como reflexão na leitura deste poema, após as observações
tecidas, é o possível entrelaçamento de diferentes formas de perceber o tempo. A análise
começou com o pressuposto do judaísmo da poeta como um fator que permitiu diferenciar o
Fim messiânico e o Fim que ela compôs. Mesmo sendo judia, o Fim que escreveu não parece
ser a vinda do Messias, mas o fim sem redenção, sem salvação, o que a aproximaria, talvez,
mais da concepção apocalíptica cristã – que não possui o porvir ativo do messianismo –, ou
talvez de uma frustração total, que não aponta saída; a desolação do homem que sucumbe ao
se deparar com os fracassos, em todos os âmbitos, da industrialização e do progresso; o
deparar-se com a soberania das coisas, não mais de Deus; o deparar-se com o desordenado em
demasia e em desmedida, muito longe de uma harmonia da justa medida.
O homem moderno, como Lasker-Schüler, vive em função do instante, do agora
desesperado e único. Os versos “Tu! Profundamente nos beijemos -/ No mundo palpita uma
saudade/ Da qual morreremos” permitem-nos estabelecer uma relação causal entre eles
(“profundamente nos beijemos, porque no mundo palpita uma saudade da qual morreremos”),
denotando este instante único que, sendo um instante, está sempre morrendo. Como a
fotografia, a captura do instante único da técnica emergente neste período, este parece ser o
tempo e o espaço finais de tentar as possibilidades de ser o máximo de coisas que a liberdade
permitir, do tempo que urge, matando, simultânea e paradoxalmente, o tempo, no tempo da
máquina que também trouxe fome, miséria, precariedade, péssimas condições de trabalho e
alienação. O medo, o perigo, a luta pela sobrevivência, o intenso rompimento de valores
tradicionais e de amarras morais, pautavam-se também no lema de “viver o aqui e o agora”.
O instante, para a temporalidade messiânica, porém, poderia ser sinônimo do fim
redentor. Esse “poderia e deveria ser realizar já no próximo instante e mesmo neste instante”
(LÖWY, 1989, p.56). Para Rosenzweig, “a diferença entre o adorador do progresso e o crente
do Reino está em defender-se ou não contra a perspectiva e o dever de antecipar o ‘fim’ no
próximo instante” (LÖWY, 1989, p.56):
Sem essa antecipação e a pressão interna para realizá-la, sem ‘o desejo
de antecipar a vinda do Messias’ e a tentação de ‘forçar o Reino dos
céus’, o futuro não é futuro, mas apenas um passado que se estende
numa duração infinita, um passado que se projeta adiante. Sem essa
antecipação, o instante não é eterno, mas algo que se arrasta
interminavelmente sobre a longa estrada estratégica do tempo.
(ROSENZWEIG apud LÖWY, 1989, p.56).
39

Como afirma Löwy, para o teólogo Rosenzweig, “a aspiração a ‘precipitar a vinda do


Messias’ é um elemento integral da concepção judaica da temporalidade” (Cf.: LÖWY, 1989,
p.182, nota 34). Logo, o “instante” moderno diferencia-se completamente do “instante”
messiânico. O instante que pode e deve trazer o fim, no messianismo, aconteceria na própria
história, com a participação dos homens, mas para interrompê-la, para interromper o curso do
tempo retilíneo, como o Jetzt-Zeit, o “tempo-agora” benjaminiano.
De acordo com Agamben, as noções de instante e de contínuo estão presentes em
diferentes concepções de tempo e história – na antiga, na moderna, na cristã, na hegeliana e
até na concepção marxista – e são, portanto, os elementos fundamentais que orientam a
experimentação do tempo e a compreensão da história. Formuladas pela metafísica clássica,
as instâncias de instante e de contínuo determinaram por dois mil anos a representação
ocidental do tempo, e são estas instâncias as responsáveis por fazer do tempo “um continuum
pontual, infinito e quantificado” (AGAMBEN, 2005, pp.111-128).
Foi na Física de Aristóteles que o contínuo [continuum] e o instante [tò nyn] passaram
a ser definidas como categorias fundamentais. Retomando a definição aristotélica do tempo
como o “número do movimento conforme o antes e o depois”, ratifica-se a importância
fundamental da categoria de instante para o pensamento grego. O filósofo italiano diz que foi
Aristóteles que atribuiu ao instante a função de garantir a continuidade do tempo. Portanto, a
dimensão do instante como o agora imediato que separa o antes e o depois é a maior dívida
que as concepções de tempo vindouras possuem com a metafísica aristotélica. O instante é
justamente o que permite o antes e o depois, é o agora que divide passado e futuro. A
combinação dessas duas noções, contínuo e instante, fez do tempo um “continuum pontual
infinito e quantificado” (AGAMBEN, 2005, p.113).
O “tempo-agora” benjaminiano não trata do instante aristotélico, pois o presente
pensado como Jetzt-Zeit não condiz com aquele ponto que conjuga passado e futuro. No
“tempo-agora” prevalece a ideia de imobilidade como abertura, uma espécie de fenda, de
ruptura, de irrupção na estrutura cronológica. Ele pode ser entendido como uma instância
temporal que quebra a continuidade do tempo, uma vez que interrompe a estrutura preservada
pela cadeia de instantes que se substituem sucessivamente. Este “agora” não é o agora
instantâneo do tempo cronológico, organizado em passado, presente e futuro, em que o
instante é apenas a dimensão que separa o já vivido daquilo que ainda está por viver. O que
este tempo original visa é desativar toda a potência do continuum homogêneo e vazio que
40

encontra representação no tempo da máquina, no tempo do progresso, no tempo do futuro, no


tempo cronológico.
Benjamin chama de Kairós, como Paulo, o apóstolo, ou “tempo messiânico”, um
presente saturado de “agoras” que faz explodir o continuum da História, tal qual Robespierre e
a Revolução Francesa fizeram com a Roma Antiga: citou-a como a moda cita um vestuário
avelhantado sem parecer inatual; “um salto de tigre em direção ao passado”; a origem
[Ursprung] como alvo. “Origem” entendida não como gênese, mas como o que “emerge do
vir-a-ser e da extinção” (BENJAMIN, 1984, pp.19-21), como aquilo que salta ao fluxo da
história contínua e se salva na forma de um objeto-mônada – tal como foi analisada a obra de
Baudelaire a fim de compreender a modernidade, que pode ser vista como parte que contém a
totalidade, mas que também pode ser entendida em sua unidade primordial, apresentando a
sua própria possibilidade de interpretação. Salvando-se, portanto, na forma de um fragmento
que, enquanto ruína, se abre como possibilidade e como história. Como cristal de tempo
(unidade mínima do tempo), Benjamin atribuiu ao “tempo-agora” a capacidade de abreviar a
história de toda a humanidade.13 Segundo Löwy, “esse ‘messianismo histórico’ situa-se nos
antípodas de todo historicismo progressista: ‘O Messias rompe a história; o Messias não vem
ao final de uma evolução’” (LÖWY, 1989, 108).
Messianismo judaico e utopia libertária, de acordo com a interpretação löwyana,
fundem-se nas acepções benjaminianas de um modo propositivo, construtivo, ativo, o que não
o assemelha a um nostálgico, como muitos ainda acham. Benjamin constata o perigo da
modernidade, mas não anseia por um retorno ou restauração, nem vê no futuro a salvação: a
vinda do Messias figura-se exatamente como a revolução – o Messias, a própria revolução.
Como disse Adorno e como reafirma Löwy, Benjamin encontra-se “distante de todas as
correntes, mas ao mesmo tempo no cruzamento de todas as estradas” (LÖWY, 1989, 85). Para
o sociólogo, “a singularidade de sua obra situa-o à parte das principais tendências intelectuais
ou políticas da Europa no início do século: neokantismo ou fenomenologia, marxismo ou
positivismo, liberalismo ou conservadorismo.” (LÖWY, 1989, 85). Ele concebe em Benjamin

13
“O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa
estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de
uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido”. (BENJAMIN, 1984, pp.230-231). Esta
distinção do ‘tempo-agora’ benjaminiano e o ‘agora’ adotado pela concepção temporal moderna não é ponto
consensual entre os comentadores de Benjamin. Danrlei Azevedo (2011) vê uma relação entre jetztzeit e o agora
da modernidade: “ao ter incorporado a assinatura temporal por excelência do período moderno, o agora (jetzt), o
tempo messiânico (Jetztzeit) automaticamente confessa a ligação entre salvação e modernidade” (AZEVEDO,
2011, p.45). Agamben compreende que, para Benjamin, a modernidade, além de toda a crise da experiência,
representa também uma possibilidade de repensar o modo de fazer experiência. Contudo, para o filósofo italiano,
isso não significa manter os pressupostos dela, que não seria mais do que recair nos princípios da tradição
metafísica.
41

uma utopia libertária que está fundada em uma sensibilidade neorromântica, um anarquismo
que só pode ser compreendido em relação com o messianismo judaico, ambos sustentados por
uma raiz neorromântica. 14
Certamente, um dos pontos de partida dos escritos de juventude de Benjamin, como
para vários judeus alemães de sua época, foi o romantismo. Sua tese, O conceito de crítica de
arte no romantismo alemão, de 1919, baseou-se, sobretudo, em Schlegel e Novalis. Não se
pode compreender o messianismo de Benjamin sem esta influência romântica, principalmente
em seus escritos iniciais. Segundo a visão de Löwy, Benjamin busca “o ponto de
convergência possível entre messianismo judaico e internacionalismo proletário, crítica
romântica da civilização burguesa e humanismo esclarecido” (LÖWY, 1989, 87). Apesar de
haver discordâncias sobre esta leitura, o ponto em comum em que concordam os
comentadores é a crítica que Benjamin faz ao progresso. Crítica essa que permeia quase toda
sua obra, sobretudo seus escritos a partir dos anos 20, que opõem o que seria a revolução à
continuidade catastrófica do progresso. Como coloca Löwy,
o que ele recusa obstinadamente é o mito mortalmente perigoso de
que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhora da
condição social e da liberdade dos homens, e de que os socialistas têm
apenas que seguir o movimento irresistível do progresso material para
estabelecer uma sociedade antecipada (LÖWY, 1989, 97).

Com isso, para Benjamin, o progresso precisa ser submetido urgentemente a uma
crítica. Isso nos propicia perceber um modo de repensar o tempo a partir do que ele critica
sobre o progresso e sobre a concepção de tempo que pressupõe a continuidade, o processo, a
evolução, ao que nos atemos com a interpretação de Agamben, cujo enfoque difere do de
Löwy. Enquanto esse enfatiza o aspecto anarquista ou utópico libertário, tecendo um
fundamento do pensamento de Benjamin a partir disso e da junção com o messianismo,
aquele oferece antes o desdobramento possível de conceber uma nova forma de compreender
o tempo e a história, a partir da crítica de Benjamin.
Nas teses Sobre o conceito de História, Benjamin faz uma proposição sobre a história
e sobre o tempo – a qual embasará a hipótese agambeniana de que toda concepção de história
é sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita –
completamente destoante da concepção que a modernidade procurava consolidar (LÖWY,

14
“[...] para Benjamin os objetivos messiânicos e anarquistas estão estreitamente associados: em carta a Scholem
ele fala de uma identidade entre observância religiosa e política ‘que se manifesta somente na transformação
paradoxal de uma na outra (não importa a direção)’. Essa inversão/reversão paradoxal do anarquismo em
messianismo e vice-versa é talvez uma das chaves essenciais para compreender a visão do mundo
social/religioso esotérica de Benjamin, desde o ‘Fragmento teológico-político’ até as teses ‘Sobre o conceito de
história’.” (LÖWY, 1989, p.92).
42

1989, p.111). O continuum, reificado na ideia de progresso, é a própria catástrofe para


Benjamin. O progresso, para ele, significa mais que um modo de postergar toda atualidade do
presente ao futuro – que nunca se concretiza –, mas um total descompromisso com o passado.
É contra essa avassaladora fé no progresso que Benjamin propõe uma concepção de história
contrária àquela que se apresenta como marcha. “A ideia de um progresso da humanidade é
inseparável da ideia de marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia
do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha” (BENJAMIN, 1994,
p.229). É formulando uma singular concepção de presente e de passado que a concepção de
redenção só se faz possível na atualidade do presente, jamais em uma resolução futura. O
presente, como promessa do novo, na perspectiva do progresso, está sempre no futuro, como
já foi discorrido, sendo, portanto, um presente irrealizável. Logo, em oposição ao continuum,
Benjamin apresenta um presente que não é transição, mas que para no tempo e se imobiliza.
Diante das teorias abordadas, podemos perceber que as concepções cristã e moderna
relacionam-se de forma muito íntima, uma vez que as duas partem de um modo contínuo e
linear de conceber o tempo, pressupondo um ponto inicial e um ponto final. O tempo cristão
possui dois marcos como início e fim do tempo: a Gênese e o Juízo Final, sendo indiscutível
ainda nesta doutrina, com a fé no fim dos tempos, a crença no advento da eternidade. Com
isso, a ênfase recai, sobretudo, no aspecto direcionado do tempo que se dá na perspectiva
apocalíptica: em contraste com a repetibilidade dos eventos no mundo clássico, a perspectiva
cristã dota a história de um sentido. O sentido e a direção do tempo são a orientação divina, o
caminhar para o dia do Juízo Final.
Ao contrário da ideia de escatologia, que pressupõe salvação, redenção, o que se faz
presente no último poema é a destruição absoluta: um Deus enfurecido que abandona os
homens, um tempo do fim em que Deus não os salvará e esses não terão redenção. É por
partir de uma concepção direcionada de tempo, em que deposita, no futuro, a salvação, que,
quando o futuro chega, a fúria de Deus não salva, mas destrói tudo aquilo como punição às
pretensões do homem de se equiparar a um deus, de querer dominar a natureza. Há um poema
de Trakl, “Aos emudecidos”, composto pelos seguintes versos: “A puta, em gélidos calafrios,
pare uma criança morta/ A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,/
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes./ Oh, o terrífico riso do ouro.” 15

15
“Aos emudecidos” [An die Verstummten], 1914. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2010, na íntegra: “Oh, a
loucura da cidade grande, quando ao entardecer/ Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro/ Que o
espírito do mal observa com máscara prateada;/ A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea./ Oh, o
repicar perdido dos sinos da tarde./ A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta./ A cólera de Deus
chicoteia enfurecida a fronte do possesso,/ Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes./ Oh, o terrífico
43

O motivo da cólera de Deus que condena o homem à desgraça foi o sádico riso do
ouro, que destrói e debocha depois em cima do que foi destruído. O terrífico riso do ouro é
este novo mundo que não mais enterra seus mortos porque a capacidade de velar durante dias
e dias é engolida pelo tempo que urge. O terrífico riso do ouro é o novo que se dá a cada
instante em que algo é produzido. É o efeito do progresso que também gera “a puta em
calafrios”, o bastardo que já nasce morto, a fome que despedaça. É a constelação da vivência
do choque. O terrífico riso do ouro não é senão a ironia do tempo, da História. É o chicote do
Deus cristão punitivo e vingativo que lança estes homens nas próprias falhas do tempo,
colocando-os assim “em seu lugar”, de pecadores, de submissos. Colocado em seu lugar, de
impotente, de vencido, além de abandonado, o homem está fadado a seguir como o que
ocorreu séculos depois do Êxodo: o cativeiro babilônico – a experiência do exílio que o
retornava à condição de estrangeiro, não tendo nem mesmo a unidade da língua.
Apesar das diferenças entre a experiência de tempo judaica e a cristã, o que está em
jogo também em ambas é a pressuposição de um evento pontual. Na modernidade, o tempo
foi secularizado e, para Agamben, houve uma dissociação da ideia de fim, ao passo que o
primeiro foi esvaziado de qualquer sentido que não fosse o de um processo estruturado
conforme o antes e o depois como o processo de produção da mercadoria, conforme uma
finalidade. Assim, a concepção moderna de tempo não é nada mais que uma manutenção do
tempo retilíneo e irreversível cristão, mas laicizada. A modernidade, por investir todos os seus
esforços e fé no progresso, desvirtua-se de uma concepção de história teleológica e ancora-se
no movimento da história em que o próximo instante é sempre uma superação do imediato
anterior. Deste modo, ela está sempre a superar a si mesma num fluxo infinito, existindo em
função do progresso, da superação infinita.
O único sentido do tempo moderno passa a ser o agora instantâneo, homogeneizando a
experiência temporal humana. Neste aspecto, a referência a Benjamim e sua definição do
tempo na modernidade como “homogêneo e vazio” aparece claramente: “esta representação
do tempo como homogêneo, retilíneo e vazio nasce da experiência do trabalho nas
manufaturas e é sancionada pela mecânica moderna, a qual estabelece a prioridade do
movimento retilíneo e uniforme sobre o movimento circular” (AGAMEBN, 2005, p.117).

riso do ouro./ Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,/ Constrói de duros metais a cabeça
redentora.” Versos no original: O, der Wahnsinn der groβen Stadt, da am Abend/ Na schwarzer Mauer
verkrüppelte Bäume starren,/ Aus silberner Maske der Geist des Bösen schaut;/ Licht mit magnetischer Geiβel
die steinerne Nacht verdrängt,/ O, das versunkene Läuten der Abendgloken./ Hure, die in eisigen Schauern ein
totes Kindlein gebärt./ Rasend peitscht Gottes Zorn die Stirne des Besessenen,/ Purpurne Seuche, Hunger, der
grüne Augen zerbricht./ O, das gräβiche Lachen des Golds./ Aber stille blutet in dunkler Höhle stummere
Menschheit,/ Fügt aus harten Metallen das erlösende Haupt.
44

Retomando a definição de instante anteriormente apresentada, pode-se concluir que há, na


modernidade, uma ultravalorização dessa categoria, uma vez que o sentido do tempo moderno
é o próprio processo, e este processo é estruturado por instantes.
O poema de Trakl, entendido muito mais como uma crítica ao progresso do mundo
moderno ocidental, pode proporcionar uma reflexão acerca da concepção mesma de tempo da
modernidade, do impacto que transformou a forma do homem perceber o mundo a partir da
durabilidade e da duração relativas às invenções técnicas e seus tempos de produção. Para
Agamben, esta concepção origina-se com a experiência de trabalho instaurada pela Revolução
industrial do século XVIII. É o tempo da produção fabril que configura a experiência
temporal humana na modernidade ocidental. O referente moderno para o tempo é a simples
estruturação de um processo a partir do antes e do depois desvirtuados de qualquer sentido
que não seja o processo em si. Estas instâncias (o antes e o depois) “tornam-se agora em si e
por si o sentido e este sentido é apresentado como verdadeiramente histórico” (AGAMBEN,
2005, p.117). De modo geral, o sentido do processo é vislumbrado no desenvolvimento e no
progresso.

O sentido pertence apenas ao processo em seu conjunto e jamais ao


agora pontual e inapreensível; porém, visto que este processo não é,
na realidade, mais do que uma simples sucessão de agoras conforme
o antes e o depois, e a história da salvação tendo-se tornado nesse
ínterim uma pura cronologia, um resquício de sentido pode ser salvo
apenas com a introdução da ideia, em si desprovida de qualquer
fundamento racional de um processo contínuo e infinito (AGAMBEN,
2005, p.117).

A crítica agambeniana a esta concepção de tempo torna-se evidente tendo em vista que
o problema presente nas noções de tempo anteriormente citadas está na aniquilação de uma
experiência humana do tempo. A supremacia do instante faz do tempo algo sempre exterior ao
homem e lhe dá um caráter de inapreensibilidade. Na modernidade, o instante é a dimensão
do tempo que garante a constituição de algo como um processo retilíneo e irreversível. De
modo que aquilo que Agamben chama de “historicidade autêntica”, ou seja, uma experiência
do tempo e da história que se realiza no homem (como na concepção heideggeriana do
Dasein, na qual a historicidade é o princípio ontológico da existência humana), está
absolutamente expropriada das possibilidades humanas. É, pois, contra o instante como ponto
temporal, que se deve colocar aquele que procura pensar o tempo de um novo modo. O
filósofo italiano considera que é a pontualidade o caráter que domina toda a concepção
45

ocidental do tempo, da clássica à moderna. O ponto foi, durante toda a tradição do nosso
pensamento, a representação do tempo vivido.
Esta representação é, para ele, o instrumento que impossibilitou uma experiência do
tempo vivido efetivamente, ou seja, de um tempo humano próprio. O ponto geométrico como
representação do ponto temporal (o instante) “é o passo através do qual a eternidade da
metafísica se insinua na experiência humana do tempo e a dissocia irreparavelmente”. A
manutenção do instante resulta sempre numa inapreensibilidade do tempo, talvez possamos
falar, numa inexperiência do tempo, já que toda experiência possível nestas concepções é
sempre uma experiência imprópria (para o homem). Por essa razão, “toda tentativa de pensar
o tempo de maneira diversa deve, portanto, defrontar-se fatalmente com esse conceito”
(AGAMBEN, 2005, p.122).
Vemos então que, na modernidade, as formas de conceber o tempo partem de um
ponto em comum. A concepção de salvação entra em descompasso com o modo de perceber o
tempo calcado na vivência do choque, uma vez que a realização do progresso produziu mais
instantes que suprimiam a possibilidade de experimentação do tempo, ao mesmo tempo em
que a concepção tradicional em que se baseavam era linear, e a mercadoria não rompeu com
isso, mas só reforçou, na medida em que atestava a linearidade de um processo constituída por
instantes em que um estava a serviço do outro para o produto final. Nisso recai então a
principal semelhança entre a concepção cristã e a moderna: em ambas o instante está presente
de uma maneira impossível de experimentá-lo, ambas pressupõem tanto um direcionamento
quanto um ponto, um evento, para o qual o sentido se estabelece, se orienta. Desta forma, o
tempo nunca está para o homem, é sempre expropriado dele.
46

II

FIM, COMEÇO
47

2.1 Tempo das coisas, não-lugar do homem – “O Crepúsculo” e o “Ocidente”

[...]
Não há cela que aperte o pensamento
em gelo como este caminhar
entre muros, que só muros podem olhar.

Vistas tu penitência ou sacro paramento –:


Esmaga-te sempre o pesado sudário
Do anátema divino: turno sem horário.16

De acordo com o judaísmo, o futuro estava vinculado a um lugar, a uma paragem, e


este lugar perdeu proeminência na relação com o sagrado, apresentando-se como um não-
lugar em que o homem continuou a se sentir estrangeiro, transferindo, por isso, a promessa,
calcando-a, por conseguinte, em alguém, isto é, em um enviado de Deus. Na modernidade,
um tempo que não é mais regido por um Deus reforça ainda mais a culpa e o desespero dos
fiéis: seria o fim de todo vínculo, o fim de todo sentido e da possibilidade de salvação.
O mundo moderno, em suas configurações espaciais tal como se mostrava, não seria o
lugar, o topos, do futuro, de acordo com a concepção de salvação, mas o lugar do futuro de
acordo com o progresso que se mostrou, por sua vez, não como um lugar de pertença, mas
como um lugar de negação que institui o espaço das coisas e o espaço dos homens em função
das coisas. Um lugar em que os homens são aprisionados, engolidos e alienados pelas coisas e
pelo tempo que passa a se dar em função delas. É o que vemos nos versos de Paul Zech.
O lugar da modernidade, além dos cabarés e dos cassinos, onde se tem promessa de
pequenos prazeres, de fuga, a fim de matar o tempo e obter um instante de felicidade, também
é a rua com a configuração de uma rua industrial. Um olhar limitado por muros e que aponta
justamente para esses. O muro como princípio e fim. Um olhar, portanto, estreitado, retilíneo,
automatizado. Muitos muros serão encontrados pelos poemas expressionistas afora, como
elemento final em que sempre esbarram e se deparam com o nada a não ser a fria concretude
da construção. Atentando para última estrofe, notamos que as categorias “tempo” e “divino”
ocupam a mesma oposição: “Esmaga-te sempre o pesado sudário/ Do anátema divino: turno

16
“Rua industrial, de dia” [Fabrikstraβe tags], 1911. Tradução de João Barrento. Na íntegra: “Só paredes. Sem
verde nem vidraça,/ A rua estende a cintura malhada/ Das fachadas. Os carris sem zoada./ Brilha o asfalto
molhado da praça.// Roça por ti alguém, um frio olhar/ Penetra-te a medula; passos duros/ Fazem saltar faíscas
de altos muros / E fica a nuvem de um breve respirar// [...].” Versos no original: Nichts als Mauern. Ohne Gras
und Glas/ zieht die Straβe den gescheckten Gurt/ der Fassaden. Keine Bahnspur surrt./ Immer glänzt das Pflaster
wassernaβ./ Streift ein Mensch dich, trifft sein Blick dich kalt/ bis ins Mark; die harten Schritte haun/ Feuer aus
dem turmhoch steilen Zaun,/ noch sein kurzes Atmen wolkt geballt.// Keine Zuchthauszelle klemmt/ in ein Eis
das Denken wie die Gehn/ zwischen Mauern, die nur sich besehn.// Trägst Du Purpur oder Büβerhemd –:/ immer
drückt mit riesigem Gewicht/ Gottes Bannfluch: uhrenlose Schicht.
48

sem horário”. Esta não é senão a exposição mais privilegiada que temos do poder soberano
instituído ao tempo. Tal como o poder de Deus, com toda punição e lei que nele estão
implícitas, o tempo já se apresenta atemporal, justamente talvez por estar em tudo ao mesmo
tempo. É aí que ele se apresenta de todo externo ao homem, em que esse, alienado do próprio
tempo, está submetido a ele, uma vez que agora a experiência do tempo é cumprir um turno
que, já sem horário, se faz eterno.
Cumprir um turno sem horário como uma penitência, como algo a ser pago. O tempo
de produção, de fabricação, do esforço vendido, o tempo da indústria em que pessoas e
objetos, equiparados, estão submetidos ao mesmo processo automático, mecanizado, estando
aquelas a serviço desses para a concretização ou a realização de um processo. Um tempo que
aniquila no homem a própria experiência de tempo. Inapreensível como o produto que se
produz e do qual não se tem posse, mas que da existência dele a sobrevivência depende.
Diante de tal expropriação da experiência de tempo, percebemos também um
desencaixe na percepção quanto ao espaço: o longe torna-se perto, as distâncias diminuem, os
espaços comprimem-se, os muros esmagam como celas, o lugar na rua é sempre o da primeira
e última vista. O desencaixe do tempo e do espaço, deste mundo que passa a ser o mundo das
coisas e do instante em que viram realidade, é exposto de maneira ímpar no poema a seguir,
de Alfred Lichtenstein, “O Crepúsculo” [Die Dämmerung]:

Um rapaz gordo brinca com um lago.


O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.

Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,


Arrastam-se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta.
Um cavalinho tropeça num seio.

O gordo está colado ao guardavento.


Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bebê grita. 17

Há no poema uma impossibilidade de transmitir por ângulos retos uma realidade que
mais se parece distorção. É uma linguagem em que nada coincide, nem mesmo os elementos
17
“O Crepúsculo” [Die Dämmerung], 1911. Tradução de João Barrento. Original: Ein dicker Junge spielt mit
einem Teich/ Der Wind hat sich in einem Baum gefangen./ Der Himmel sieht verbummelt aus und bleich,/ Als
ware ihm die Schminke ausgegangen.// Auf lange Krücken schief herabgebückt/ Und schwatzend kriechen auf
dem Feld zwei Lahme./ Ein blonder Dichter wird vielleicht verrückt./ Ein Pferdchen stolpert über eine Dame.//
An einem Fenster klebt ein fetter Mann./ Ein Jüngling will ein weiches Weib besuchen./ Ein grauer Clown zieht
sich die Stiefel an./ Ein Kinderwagen schreit und Hunde fluchen.
49

extraídos da realidade, sendo uma crítica mesmo ao racionalismo e, talvez, às instâncias que
vão se servir dele em prol do progresso. Há no poema uma ausência total de medida ou justa
medida e lei. É o lugar do não cabimento. Medida e lei, que antes garantiam unidade, passam
a ser, na sociedade moderna, as instâncias principais garantidoras de identidade, de
estabilidade e de controle. Ora, em se tratando de grandes cidades, elas não são menos que os
grandes pilares inerentes à constituição de todo projeto de civilização ocidental, sobre os
quais precisa se fincar para estabelecer a manutenção de sua existência, de sua ordem.
A sensação de inverossimilhança conflui à noção de desencaixe de tempo e espaço,
experimentada na conjunção de elementos impossíveis de serem apostos na realidade. Ao
manipular literariamente elementos do mundo real (o rapaz gordo, o lago, o campo, o poeta, o
18
seio, o vento, o céu, um bordel etc.) e compor cenas que só existiriam talvez na loucura, a
deformidade, ao ser assim transmitida, evidencia um homem que não só a vivenciava como
tal, desfigurada, deformada, mas porque o ímpeto era exatamente o de expressar, desta forma,
este estranhamento que compunha um cotidiano real em que as coisas estavam fora de lugar.
E é aí que a linguagem encontra exatamente o seu limite. A capacidade de elaboração e
ordenação racional da fala é vencida perante a fragmentação generalizada, ao mesmo tempo
em que irá denunciar um modo de vida e por em xeque as noções de razão e normalidade.
O título do poema, inclusive, não é à toa: crepúsculo é o período mais longo do
entardecer, mais marcante no outono europeu, em que o momento do pôr do sol é a transição
entre a longa tarde e a noite, em que a cor do céu não é bem definida, mas em gradiente, na
passagem do claro do dia para o escuro da noite. Ora, a indefinição do tempo, que deixa
marcas visíveis no espaço (como bem diz os versos “O céu, de ar tresnoitado e de tom vago/
Parece que tirou pintura, a medo”), é o não-lugar mais propício para as coisas “fora de lugar”.
Até mesmo o poeta, ao se dar conta da possibilidade de que estivesse enlouquecendo
(“Enlouquece talvez louro poeta”), acusa com isso um desajuste da normalidade, do tempo,
do espaço em que as coisas estão fora de lugar. Uma leitura mais aprofundada sobre este
poema será feita mais adiante. Por ora, além do que foi dito até aqui a respeito dele, parece
não ter sido à toa que Trakl intitulara um poema seu de Abendland [Ocidente] – e que poderia
ser uma continuação de “O Crepúsculo” – o lugar do tempo em que as coisas se põem; o lugar
próprio da escuridão da noite, do poente: o lugar onde se cai:

18
Atentando para um detalhe da tradução, é possível perceber que, para adequar à rima, Barrento traduziu o
substantivo Dame, dama, por “seio”, no quarto verso do segundo quarteto, já que o seu alternado termina com
“cavaqueio”, no segundo verso. No sentido literal, o verso “Ein Pferdchen stolpert über eine Dame” seria “Um
cavalinho tropeça em uma dama”. Mas a opção criativa de recorrer a um elemento do corpo feminino para se
aproximar do sentido (feminino) tornou o poema mais absurdo, mais irreal ainda, o que confere mais força à
interpretação tecida.
50

[...]
Oh, grandes cidades
De pedra, construídas
Na planície!
Tão sem-fala
O sem-pátria segue
Com fronte sombria o vento,
As árvores nuas na colina.
Oh, distantes e crepusculares rios!
Com violência amedrontam
Aterrador rubor da tarde
Em nuvens de tempestade.
Oh, povos agonizantes
Pálida onda
Esmagando-se na praia da noite,
Cadentes estrelas. 19

Antes que a guerra viesse como um fato histórico que iria lhes atribuir a condição
oficial de sem-pátria, eles – e Trakl especificamente – já eram estrangeiros de si, do tempo e
do mundo moderno; portanto, triplamente deslocados, desterrados, como visto logo no título
do primeiro poema (“Canto do Desterrado”). É certo que a vida de Trakl talvez já o fizesse
como pária, uma vez que ele teria sido filho bastardo e sempre distante de sua família,
somente mantendo contato com a irmã. Sem a intenção de adentrar em uma abordagem
psicanalítica, o que se faz interessante realçar é a sensação de desterrado, de deslocado, que
marcou muito os judeus que se assimilavam à cultura alemã na primeira metade do século
XX. Não à toa, Trakl dedicou o poema “Ocidente” “em honra a Else Lasker-Schüler” [Else
Lasker-Schüler in Verehrung]. No capítulo Párias, Rebeldes e Românticos, Michael Löwy
desenvolve sobre a situação da população judaica que deixará os guetos e as aldeias da
Prússia e do Império Austro-Húngaro, no fim do século XIX, para se instalarem na capital:

O surto do capitalismo criou um espaço favorável para o desabrochar


da burguesia judaica [...]. Nas cidades irá formar-se uma grande e
média burguesia que ocupa um lugar crescente nos negócios, no
comércio, na indústria e nos bancos. À medida que ela enriquece e as
antigas restrições civis e políticas são levantadas (na Alemanha em
1869-71), essa “classe média judaica” passa a ter uma só aspiração:
assimilar-se, aculturar-se, integrar-se na nação germânica. [...] A única
cultura válida era a alemã: restavam do judaísmo apenas algumas
sobrevivências rituais e o monoteísmo bíblico. As figuras ideais e
exemplares da sabedoria não eram Moisés ou Salomão, mas Lessing e
Goethe, Schiller e Kant.

19
“Ocidente” [Abendland], 1914. O poema possui mais de uma versão e é divido em partes. O trecho destacado
corresponde à terceira parte da quarta versão, traduzida por Claudia Cavalcanti, 2010. Versos no original: Ihr
groβen Städte/ Steinern aufgebaut/ In der Ebene!/ So sprachlos folgt/ Der Heimatlose/ Mit dunkler Stirne dem
Wind,/ Kahlen Bäumen am Hügel,/ Ihr within dämmernden Ströme!/ Gewaltig ängstet/ Schaurige Abendröte/ Im
Sturmgewölk./ Ihr sterbenden Völker!/ Bleiche Woge/ Zerschellend am Strande der Nacht,/ Fallende Sterne.
51

Talvez isso ajude a compreender o “resto” de judaísmo que sobrevivia na poesia de


Lasker-Schüler, da qual se alimentava muito mais de romantismo. Tendo nascido em 1869
(ano em que as restrições civis e políticas começam a ser abolidas), no distrito de Elberfeld,
atual Wuppertal, cidade alemã da Renânia do Norte, mudou-se para Berlim em 1894, aos 25
anos, indo para o epicentro da jovem intelectualidade judaica que se formava caracterizada,
sobretudo, pelo “romantismo anticapitalista”, pela crítica romântica da civilização industrial
(LÖWY, 1989, p.35). Todavia, os judeus não eram de todos assimilados. Havia uma barreira,
a social, que era intransponível. Eram excluídos de cargos administrativos, do Exército, da
magistratura, do magistério, por um crescente antissemitismo desde 1890. “A segurança
econômica e a igualdade (formal) de direitos cívicos haviam sido adquiridas com a
emancipação. Mas, do ponto de vista social, o judeu continuava ser um pária [...].” (LÖWY,
1989, p.34).
Assim, a universidade, como meio de respeitabilidade e de reconhecimento social
alemão, tornou-se o caminho para a busca de prestígio da burguesia judaica que enviava seus
filhos aos estudos universitários. Assim, como diz Löwy, “a condição é eminentemente
contraditória: ao mesmo tempo profundamente assimilados e largamente marginalizados”.
Desenraizados, em ruptura com seu meio e voltado aos negócios; rejeitados pela aristocracia
rural tradicional e excluídos do meio social em que viviam. “Muitas opções políticas então
serão seguidas, muitos tendo como referência o racionalismo, o evolucionismo progressista, a
Aufklärung, o esclarecimento iluminista, e a filosofia neokantiana.” (LÖWY, 1989, p.35).
Para outros, porém, isto é, a maioria, não havia senão duas saídas possíveis: ou um retorno às
raízes ancestrais, ou a adesão a uma utopia romântico-revolucionária de caráter universal; ou
os dois simultaneamente”. O que se forma, segundo o sociólogo, é “uma religiosidade nova”,

impregnada de espiritualidade romântica alemã e muito diversa do


tradicionalismo ritualmente conservado por certos meios judaicos
ortodoxos não-assimilados. O paradoxo é que é através da mediação
do neo-romantismo [anticapitalista] alemão que esses jovens
intelectuais judeus irão descobrir sua própria religião: o caminho em
direção ao profeta Isaías passava por Novalis, Hölderlin ou
Schelling... (LÖWY, 1989, p.37).

E assim a condição de desterrado remonta talvez à condição judaica presente desde


tempos remotos: do terror que assolava o povo judeu por não se sentirem parte do mundo que
os escravizava. Estrangeiros por todo reino que passavam, tudo era sentindo com um
sentimento de não pertencimento. A constatação “meu reino não é deste mundo”, proferida
pelo que acreditaram, posteriormente, se tratar do Messias ou do próprio Deus encarnado,
52

reforçaria a projeção de uma terra prometida. No entanto, no novo mundo, a terra prometida
da modernidade, o lugar da realização, seria senão o Ocidente, o lugar, paradoxalmente, onde
as coisas findam, onde se põem. Na expressão “lugar do futuro”, o que se tem é,
curiosamente, “lugar”, uma instância espacial, como propriedade de “futuro”, uma instância
temporal – que sabemos, no entanto, que nesse caso acopla o significado de progresso. Este
lugar, portanto, podendo assim dizer, que “apreende o tempo”, continuaria a ser meramente
um lugar de eterna promessa, a ser preenchido ininterruptamente por vazios. O homem – não
só judeu, mas o homem moderno – continuaria a se sentir estrangeiro, na condição de errante
em busca de um lugar em que pretendia parar e se fixar. E certamente o mundo ocidental
moderno, como o lugar prometido, o lugar do novo, não se assemelharia ao paraíso; ao
contrário disso, reforçava a condição de errância. Como o hebreu errante, o sem-pátria, o
homem nas massas seria peça de uma pálida onda à deriva, tendo todos os vestígios humanos
apagados pela massificação e homogeneização.
Trakl, nascido em família austríaca protestante, não experimentou o desterro como um
judeu, mas esboçou-se sempre na mesma condição de estrangeiro, de apátrida, como se não
pertencesse a esse mundo, o mundo moderno, assim como expressaram os outros poetas – de
origem judaica ou não. No mais, é preciso salientar que tanto “Ocidente” como “Canto do
desterrado” foram escritos em 1914, ano em que iniciou a Primeira Guerra; fator esse que
reforça e reitera, oficialmente ou não, toda a sensação de fim, de desencaixe do tempo e do
espaço, de exílio. Sobretudo para os que serviram na Guerra, como Trakl.
Neste encontrar-se fora de lugar, a utopia, como imagem de um espaço perfeito, de um
viver harmônico, aparece nos poemas como nostalgia, como perda, sem salvação. Os projetos
arquitetônicos que impulsionaram a construção do novo mundo ocidental, com construções de
pedra, na planície, partiram de uma configuração em que o caminho matemático, retilíneo,
contínuo e acelerado, orientado para o futuro, escapava, vacilava e fracassava com o que fugia
à sua lógica, atestando sua fragilidade. O fim podia se dar, então, em apensas um instante, o
tempo mesmo em que as coisas eram criadas pelo homem que, enquanto criatura, parecia
querer competir com o Criador. Em dívida com Esse, aquele seria então penalizado, punido e
talvez sua não remissão do pecado fosse a manutenção de sua condição de escravo – da
mercadoria, agora; do tempo; do tempo da mercadoria. E assim o homem moderno via-se
alheio da sua própria condição de humano, de sua individuação, no automatismo
homogeneizante do tempo e do espaço da máquina e do progresso.
É desse modo que “Ocidente” refere-se então a um efeito, ou uma condição, do
processo da construção das grandes cidades no mundo ocidental, estabelecendo um fim, a
53

destruição, no lugar próprio de onde as coisas são “naturalmente” destruídas. Tal destruição
no poema, entretanto, possui um início (a construção das granes cidades) e um lugar (o
Ocidente). Sabemos que o motor da tempestade que assola este mundo é o progresso e os
efeitos de suas pretensões.
No entanto, no poema de Trakl, a destruição se conclui efetivamente como um retorno
à supremacia das forças mais naturais, irremediáveis e incontroláveis da natureza, que a tudo
devasta. Ao contrário da destruição que viria do próprio Deus que a tudo havia criado, a
destruição aí veio da própria natureza, como catástrofe generalizada, tão características do
messianismo profético judaico, a um retorno ao estado primitivo das coisas. Um mundo de
“povos agonizantes” em que a sua construção teria, desde o início, caminhado para o seu
destrutivo fim. A mudança trazida pelo fim não poderia vir como um “aperfeiçoamento do
mundo, mas a destruição dos poderes deste mundo” (LÖWY apud DOS ANJOS, Nilton). 20.
Foi em 1911 que Jakob van Hoddis compôs o segundo fim, aquele que seria o mais
emblemático dos poemas expressionistas:

O chapéu voa da cabeça do cidadão,


Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhados e se despedaçam
E nas costas — lê-se — sobe a maré.

A tempestade chegou, saltam à terra


Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes. 21

Ao contrário do “Fim de Mundo” de Lasker-Shüler, esse não menciona um deus. O


que anuncia o fim do mundo não é a fúria e o abandono do Deus judaico cristão. Neste aqui, o
fim vem do novo. O fim vem da promessa fracassada que atesta não a redenção, não a
salvação, mas a destruição, senão a condição última possível de frear, e mais que isso, de dar
fim ao movimento dos trens, o bastião da velocidade, e às construções pretensiosas da grande

20
DOS ANJOS, Nilton. O futuro como libertação e redenção no contexto bíblico (conteúdo produzido para aula
expositiva da disciplina “A literatura filosófica – sombras do futuro”, ministrada no programa de pós-graduação
em Ciência da Literatura, no primeiro semestre de 2014, na Faculdade de Letras da UFRJ).
21
“Fim do Mundo” [Weltende], 1911. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2000: Versos no original: Dem Bürger
fliegt vom spitzen Kopf der Hut,/ In allen Lüften hallt es wie Geschrei,/ Dachdecker stürzen ab und gehn
entzwei/ Und an den Kusten – liest man – steigt Flut.// Der Sturm ist da, die wilden Meere hupfen/ An Land, um
dicke Dämme zu zerdrücken./ Die meisten Menschen haben einen Schunupfen./ Die Eisenbahnen fallen von der
Brücken. O poeta nasceu em Berlim, em 1887, e seu nome é pseudônimo de Davidsohn Hans. Van Hoddis,
assim como os outros poetas, também tivera a oportunidade de estudar em várias cidades da Alemanha:
Munique, onde estudou arquitetura, Jena e Berlim, onde estudou grego e filosofia, respectivamente. Seu fim ao
certo é desconhecido, só se sabe que foi deportado de uma clínica para doentes nervosos de Koblenz para local
desconhecido, em 1942, o que leva a crer que provavelmente foi eliminado em uma câmara de gás num campo
de concentração nazista.
54

cidade. E é fazendo uso deste movimento veloz que o poema de Hoddis expõe uma imagem
da destruição. A simultaneidade de acontecimentos aleatórios na vida nas grandes cidades
parece comparecer na velocidade, no dinamismo, no simultaneísmo dos versos. Não dispostos
em frases coordenadas obedecendo a uma ordem sintática e semântica, os versos vão
implodindo visões aleatórias que não se conectam em um sentido. Ligados apenas pela rima,
isso não oferece, porém, uma garantia de sentido, mas aumenta o impasse, uma vez que as
imagens vão se sobrepondo em ritmo truncado, tornando difícil a apreensão de uma coerência.
Cada verso poderia ser captado em sua singularidade, pois cada um aponta um mal de um
mundo fragmentado, doente, caótico, ao mesmo tempo em que, vistos em totalidade, vão
formando um cenário de horror, à medida que uma imagem se desintegra na formação da
seguinte, em tudo aponta, porém, para um único sentido: fim do mundo, destruição.
A tradução de Claudia Cavalcanti parece ser mais fidedigna ao poema original,
22
alterando-o menos e sendo mais concisa e mais contemporânea do que a de João Barrento.
Por exemplo, o primeiro verso, conforme a tradução portuguesa, seria “Voa o chapéu do
bicocéfalo burguês” (BARRENTO, 1976, p.235). Na tradução de Claudia, ela suprime o
adjetivo “spitzen” e traduz “Bürger” por “cidadão”, não por “burguês”, uma vez que o sentido
deste substantivo não tem, na Alemanha, a conotação política que se remete à interpretação da
luta de classes, sendo entendido simplesmente como “cidadão”. Mas quanto ao adjetivo, se a
opção pela palavra “bicocéfalo” dificulta a compreensão, ainda que resguarde um caráter
fantasioso que possa condizer com o poema, “spitzen” poderia ter sido mantido, sendo
traduzido, por exemplo, como “pontudo”. Se levarmos à risca o original, o chapéu não voa da
cabeça do cidadão, mas da cabeça pontuda do cidadão [“Dem Bürger fliegt vom spitzen Kopf,
der Hut,”]. Considerando a interpretação da tradução portuguesa, isso manteria o tom crítico
que seria incidido na figura do burguês, levando-se em conta o sentido negativo de “Bürger”,
ou seja, a visão política negativa sobre o burguês. Por este lado, o adjetivo “spitz” relativo à
cabeça (Kopf) poderia indicar uma esperteza soberba, arrogante, presunçosa, em seu pior
sentido, vil. De uma forma ou de outra, não se pode deixar de considerar que a palavra
“Spitzkopf” existe e significa literalmente “cabeça pontuda” ou “cabeça pontiaguda”, o que
permite a percepção de um cruzamento de sentidos em que a deformação, segundo a

22
Barrento modifica, por exemplo, o último verso da primeira estrofe, “Und an den Küsten – liest man – steigt
die Flut.”, mudando o sentido ao traduzir por “E – segundo as notícias – sobem as marés.”, não considerando a
primeira parte (“Und an den Küsten”) que indica que a evidência da subida da maré não está em notícias, mas
nas costas, no litoral. Para fins comparativos, segue a tradução integral de Barrento: “Voa o chapéu ao bicocéfalo
burguês./ Os ares enchem-se de gritos e rumores./ Desintegrando-se, caem telhadores,/ E – segundo as notícias –
sobem as marés.// Chegou a tempestade, mares irados saltitam/ Para terra: esmagar diques é sua intenção./ Em
quase toda a parte grassa constipação./ Das pontes os comboios se precipitam.”
55

designação literal, e a posição de destaque, no topo, segundo a conotação anterior, não se


excluem, mas coexistem, complementam-se e corroboram o uso da deformação como um
meio do teor crítico do expressionismo. Não é à toa que determinadas interpretações usam o
termo “Spitzbürger” para se referir à crítica que o expressionismo fazia ao filisteu em seu
significado pejorativo, ao homem que ostentava um status social, que se empoderava de bens
materiais, ou seja, que se identificava com a bem aparentada figura do burguês.
Sarcasticamente, “cabeça pontuda” é uma crítica ao status que poderia ser remetido à nobreza
ou aos poderes soberanos aos quais o burguês aspira ascender. 23
Diante do que foi analisado a respeito das traduções, vemos então que, por um lado, a
de C.C. dá mais fluidez na leitura, mas, por outro lado, suplanta inchamentos que, justamente
por dificultarem mais o ritmo e deixarem o poema mais denso, poderiam condizer mais com o
sentido caótico deste fim apocalíptico que põe em xeque a realidade em sua normalidade.
Todavia, preservados os recursos da inversão e da parataxe, amplamente usados pelos
modernos e pelos modernistas, o importante é ver que esta linguagem representa um mundo
fragmentado como denúncia social também da falsa harmonia que regia o mundo burguês, de
sua lógica, de sua ordem. Assim, o “Fim do Mundo” de Hoddis poderia ser lido também
como o fim desta ordem, desta lógica, alicerçada em um movimento, em uma velocidade, que
não apontava para uma vitalidade, mas, como os próprios versos, mostrava-se como vetor
rumo à destruição.
Sem recorrer a uma subjetividade e a um lirismo, diferente de Lasker-Schüler, o “Fim”
de Hoddis já parte do homem abandonado, sozinho, das turbas entregues ao caos, à desordem
e a doenças. Há quem diga que Lichtenstein se inspirou neste poema de Jakob van Hoddis
para escrever “O Crepúsculo”.24 Sem dúvida, a linguagem paratática, as imagens sobrepostas,
a ausência de construção de um sentido se assemelham, todavia, parece que Lichtenstein
privou o leitor do único sentido anunciado que Van Hoddis não impôs senão pelo título.
Talvez “O Crepúsculo” não esteja tão facilmente anunciado nos versos que o seguem. Isso,
porém, será discorrido em outro capítulo. De todo modo, notou-se que o poema de Hoddis

23
Quanto a esta interpretação sobre o “Spitzbürger”, cf.: Jakob van Hoddis - Weltende (Interpretation #67),
sobretudo a passagem “Diese Schilderung scheint eine Metapher für den häufig im Expressionismus kritisierten
Spießbürger zu sein, dessen spitzer Kopf sarkastisch sein Emporstreben oder seine Orientierung an Kaiser und
Adel kritisieren könnte.”
Disponível em: http://lyrik.antikoerperchen.de/jakob-van-hoddis-weltende,textbearbeitung,67.html
24
“Alfred Lichtenstein hat sich im wesentlichen von Jakob van Hoddis inspirieren lassen, ebenfalls ein
expressionistischer Lyriker. Von van Hoddis stammt das sehr bekannte Gedicht ‘Weltende’, auch hier kann man
den Reihungs und Zeilenstil sehen. Würde man abschätzig über Lichtenstein reden wollen, so könnte man sein
Werk auch als Plagiat oder Epigone bezichtigen”. Cf.: Alfred Lichtenstein - Die Dämmerung (Interpretation
#129). Disponível em:
http://lyrik.antikoerperchen.de/alfred-lichtenstein-die-daemmerung,textbearbeitung,129.html
56

realiza exatamente o seu título, que o define. A catástrofe, a desintegração, a destruição que
vai se anunciando nos versos não causa espanto diante daquilo que já se sabe que será o “Fim
do Mundo”. Catástrofes e caos são muitas vezes esperados, inclusive, quando se fala em fim
do mundo. E assim este “Fim” veio acompanhado destas imagens de pânico e desastres
naturais. As forças incontroláveis da natureza, que o homem teve a pretensão de achar que
seria capaz de controlar, atestariam seu poder irrefreável sobre o mundo fabricado e resistente
da civilização. Este fim pressupõe antes o fracasso de uma ideia, de um projeto de sociedade
que não abarcou suas expectativas. Foi, portanto, pelo poder irrefreável do futuro ditado pelo
progresso que o fim chegaria não pela realização ou pela salvação, mas pela destruição. O
progresso, como o propulsor do novo, teria causado ele mesmo o fim.
Se em 1905 Lasker-Schüler anuncia o “Fim do Mundo”, dando a entender a
constatação de que o bom Deus haveria chegado ao final, em 1911, aquilo que inaugurou o
novo (o progresso), mostrava-se como o fator principal – da direção – do fim. Certamente há
algo em comum nos poemas que possuem como título “Fim do Mundo”, “O Crepúsculo” e
“Ocidente”, sendo os dois primeiros escritos em 1911 e, o terceiro, em 1914, com o deflagrar
da Grande Guerra, que pôs tantos fins e que prometeu tanto o novo.

2.2 Trágico, tempo trágico

Como o herói trágico, o homem moderno, cindido, “pobre de experiência” no mundo


capitalista moderno, passa a ser um homem solitário, que se vê apátrida, estrangeiro,
desterrado, apartado dos deuses e do mundo, daquilo que conferia uma justificativa da vida
em um sentido total e acabado. A condição de abandono do homem moderno remete a uma
condição trágica. A compreensão da que partimos aqui é que a modernidade em sua condição
trágica é entendida enquanto a “existência trágica” do homem moderno enraizado em si
mesmo, separado dos deuses e do mundo, em total solidão. Embora não haja mais tragédia na
modernidade, poderíamos dizer que figuras do trágico se inscrevem em um mundo no qual a
tragédia já não existe mais.
Segundo Claudia Castro em Benjamin, a tragédia e o trágico (2009), “é silenciando
que o herói trágico quebra os laços que o ligam a Deus e ao mundo” (CASTRO, 2009, p.27).
Então, na tragédia, o silêncio atestaria o abandono do homem aos abismos da impossibilidade
de narrar e transmitir a experiência. Isso se apoia na concepção da autora quando afirma que
“o sentido da existência trágica está inscrito na experiência dos limites, tanto os da vida física
57

quanto os da vida linguística.” (CASTRO, 2009, p.28). Com isso, submetido à “experiência
dos limites”, à tensão de forças, ao choque, o homem moderno poderia ser, como o herói
trágico, aquele que teria sua mais próxima possibilidade de expressão no silêncio.
A interpretação de Claudia é baseada nas reflexões de Benjamin em Origem do drama
barroco alemão e de Hölderlin em Observações sobre o Édipo, em que a cesura se insere
numa questão rítmica que diz respeito ao todo da construção trágica: “o trágico se insere
numa ordem linguística na qual a tragédia desapareceu, onde a linguagem do silêncio emerge
na cesura, condição de possibilidade de toda verdade histórico-filosófica, gesto mudo de
ruptura salvadora” (CASTRO, 2009, p.34). É na exposição da cesura, na ruptura que fraciona
e fragmenta, que emerge tudo que é possível. A cesura seria, então, o tempo trágico mesmo, a
quebra antirrítmica cujo silêncio se apresenta nada mais como abertura ao que vem. Assim é
que, não mais inserido na tragédia clássica politeísta, uma vez que o silêncio desafiador
anuncia a quebra radical com o domínio do mito, configurações do trágico poderiam aparecer
no homem moderno se o silêncio que emergisse na cesura se apresentasse como condição de
possibilidade.
Também a partir da ideia de que o herói trágico é aquele que é “enraizado em si
mesmo”, como dito no primeiro parágrafo desta sessão, Ernani Chaves, em “O ‘silêncio
trágico’: Walter Benjamin entre Franz Rosenzweig e Friedrich Nietzsche” (2007), faz uma
leitura sobre o “silêncio trágico” a partir do pensamento de Benjamin afinado ao de
Rosenzweig e diferenciado do de Nietzsche. Segundo Ernani, o herói antigo é aquele que está
enraizado no “si-mesmo”. Este “si-mesmo”, no entanto, não se atrela a uma “individualidade”
[Individualität], como poderíamos supor, nem a uma “personalidade” [Persönlichkeit], pois a
primeira teria um nascimento natural e a segunda um nascimento social. Diferenciando-se das
duas, o “si-mesmo” nasceria então da luta de Eros contra Tânatos (CHAVES, 2007, p.120).
Logo, este “si-mesmo” está diretamente atrelado a uma tensão, a uma tensão entre forças
contrárias de vida e morte. Considera-se que ele seria, por isso, um “homem metaético”, para
além do bem e do mal. “E o que melhor o herói da tragédia caracteriza como incorporação do
‘homem metaético’ é o silêncio”, uma vez que ele está enraizado apenas nesta luta,
“inteiramente separado dos deuses e dos outros homens” (CHAVES, 2007, p.122). Enquanto
o destino da individualidade seria inevitavelmente a morte, o destino do si-mesmo está
“ligado ao fato de que seu nascimento se dá no reencontro do homem com Eros”, e “se Eros
se revela, posteriormente, mais radicalmente como Tânatos, é porque é apenas diante da
morte que o homem descobre a singularidade e a irredutibilidade da existência. Por isso, o ‘si-
mesmo’ sempre supõe a solidão.” (CHAVES, 2007, p.121). Diante da força de Tânatos ou da
58

morte, em tensão com a de Eros ou da vida, o destino do si-mesmo pressupõe então um


incessante encontro com o último, com a vida, e é sempre no deparar-se com a morte que a
vida se apresenta em sua maior força. É neste impasse que a solidão se mostra como um
pressuposto deste “si-mesmo”, pois maior do que a morte como um destino inevitável, em que
Tânatos assume aí toda a força, é a morte apresentando a irredutibilidade da vida, ou seja, não
havendo a soberania de Tânatos, mas, por esse e desse, também a revelação de Eros.
Diante disso que caracteriza a solidão trágica do herói antigo, a expressão desta
solidão só é possível pelo silêncio. Segundo Benjamin, “o herói trágico tem apenas uma
linguagem que lhe corresponde plenamente: o silêncio.” (BENJAMIN apud CHAVES, 2007,
p.122). Conforme Ernani Chaves apontou, foi isso que determinou a referência de Benjamin
ser Rosenzweig e não Nietzsche, pois enquanto o primeiro demarcou que a diferença entre a
tragédia antiga e a moderna é o monólogo naquela e o diálogo nessa, o segundo colocou
Shakespeare em continuidade com os gregos, assemelhando-o aos monólogos das tragédias
antigas. Para Rosenzweig, o processo de decadência da tragédia e do herói-trágico começou
depois de Ésquilo: quando o herói deixou de silenciar e começou a dialogar. Logo, é na
“incapacidade verbal” do herói solitário da tragédia, destacada pelo teólogo, que Benjamin
encontra uma distinção entre tragédia e drama barroco: o silêncio correspondendo à primeira e
o debate aos heróis modernos (“[...] esses não aprenderam a falar, não ganharam uma língua:
aprenderam senão a debater.” (ROSENZWEIG apud CHAVES, 2007, p.125)).
Se pensarmos no trágico de acordo com o ponto-chave de Claudia Castro depositado
no silêncio da cesura como condição de possibilidade, pelo que foi analisado até aqui vimos
que os poemas, ao contrário de exporem uma abertura a toda possibilidade de sentido, selam
um único sentido. O silêncio talvez se apresente mais como uma impotência seguida da
tentativa de um grito, e não como a cesura, que está a serviço da linguagem do silêncio como
uma abertura, um dar passagem a possibilidades. Isso significa que estes poemas se
aproximam mais de uma tentativa de falar do que de um acolhimento do silêncio.
Estreitamente vinculados à impossibilidade de narrar, mas parecendo às vezes tentar narrar
um mundo que se perdeu, como o “Canto do Desterrado” de Trakl; ou descrevendo um
mundo que se encaminha para o fim, como o poema de Lasker-Schüler em que a ruptura
presente no enjambement não se apresenta como uma abertura a possibilidades que adviriam
da interrupção entre o som e o sentido ou entre o significante e o significado, mas desemboca
na continuidade de estabelecimento de um sentido que indica o fim, a morte; ou como nas
descrições do “Fim do Mundo” de Hoddis que, mais radical do que os dois anteriores, não se
imbuindo de lirismo, constitui-se, porém, de descrições que também não são estruturalmente
59

aberturas ao silêncio identificado com o tempo trágico, uma passagem de ruptura salvadora. O
de Hoddis expõe uma destruição ressonada de gritos e, se há a possibilidade de existência de
um silêncio, ele não vem como elemento estrutural do poema, mas ao fim da leitura e de
forma impotente, como uma reação provocada pela leitura. Os outros se assemelham a um
canto, a um choro, a uma prece, a um barulho cuja força não vem do silêncio, mas da
exposição aguda de um lamento. Deste modo, a condição trágica que os poemas apresentam
talvez se limite somente a uma compreensão da tragicidade presente no homem moderno no
que diz respeito especificamente à questão do abandono.
O homem que rompeu sua ligação com o divino se aproxima com o trágico de
Sófocles aos olhos de Hölderlin, que o definiu como um trágico bastante singular. Como disse
Jean Beaufret em prefácio às Observações sobre Édipo e Antígona, “digamos numa palavra
que é o trágico do retraimento ou do afastamento do divino. Hölderlin dirá: Gottes Fehlt: a
falta de Deus.” (HÖLDERLIN; BEAUFRET, 2008, p.16). Para Hölderlin, a relação do
homem com este luto será o que diferencia Édipo e Antígona das outras tragédias, como
elemento primordialmente trágico. A proximidade da morte seria uma questão trágica por
excelência. Lacan, no Livro 7 d’O Seminário sobre A ética na psicanálise já teria atentado
para a relação do homem com a morte e com o desamparo a partir de Antígona; Heidegger,
em Ser e Tempo, também falaria sobre o trágico a partir do que seria o maior limite humano,
isto é, a morte. É quando o homem se vê como um “ser-para-a-morte” que ele afirma a sua
dimensão trágica perante a única certeza que tem: a de que vai morrer. É esta consciência que
leva o ser humano a perceber a sua finitude diante do tempo. O tempo torna-se então uma
questão importante no momento imediato em que a morte é vislumbrada; a relação do homem
com o tempo constrói-se exatamente a partir de sua relação com a morte, com um fim
inevitável.
Nesta esteira, o fim é um tema comum a tragédias. Mais que isso, o fim acompanhado
de destruição. Seja nas Troianas, de Eurípedes, em que o encontro do deus com o homem
sempre se dá pela morte, sempre implica um conflito, uma violência, uma destruição, seja em
Filoctetes, de Sófocles, em que este fim é mais intenso, apontando para o fim da existência. O
“fim”, de Lasker-Schüler, dar-se-ia com o fim de Deus. É certo que o “fim” nos poemas
expressionistas possui um vínculo estreito com a concepção de temporalidade da tradição
judaica e da cristã, no entanto, talvez o tempo mesmo deste homem que se vê abandonado
pelo divino é o que não assume senão a face trágica de destino, de acaso. O que há de
nostalgia há também de constatação de que o retorno a um passado mítico é impossível.
Assim, estar entregue ao destino ou ao acaso é o que faz também conceber-se já fora de uma
60

ordenação, já fora de uma justificativa, em que o abandono atesta a própria impossibilidade de


um tempo dotado de sentido; é conceber-se a serviço do tempo. Paradoxalmente, ou na
própria tensão disso, o fim que atestam (como pressuposto de uma concepção de
temporalidade que parte de um sentido linear) denota, antes, a ausência de sentido.
Na compreensão da teologia, quando a falta que uma criatura comete ultrapassa os
limites, até a cólera de Deus a abandona (AGAMBEN, 2012, p.68). Ou seja, neste momento
extremo em que se ultrapassa a medida, até os pecados não são mais punidos:

“o Deus enciumado esquece todo o seu zelo em relação a nós: ‘O meu


ciúme abandonar-te-á’, diz Ele, ‘e já não ficarei irado por tua causa.’
Esse abandono, esse esquecimento divino, é, para lá de todo castigo, a
mais refinada das vinganças, aquela que o crente teme por ser a única
irreparável [...].” (ORÍGENES apud AGAMBEN, 2012, p.68).

De acordo com as considerações de Beaufret a respeito da interpretação hölderliana,


ao afastamento divino o homem corresponderia como um traidor: “ao afastamento categórico
do deus que nada mais é do que o tempo, o homem deve corresponder afastando-se ‘como um
traidor’” (HÖLDERLIN; BEAUFRET, 2008, p.58). Segundo Hölderlin (2008, p.71), o tempo
trágico seria sem distinção entre passado, presente e futuro, mas isso não equivale à redução
de todos esses no instante: o tempo trágico seria propriamente um hiato, entre o divino e o
humano, no momento em que este Deus indiferente lança o homem no mais absoluto vazio,
deixando-o só consigo mesmo. É um tempo vazio de uma ordenação, de governo; ou melhor,
é a própria suspensão do tempo: uma vez que o tempo se encarnava no deus, o afastamento do
deus nada mais é do que o afastamento do tempo, conforme é possível depreender da citação
acima. Este é um momento desvinculado, marcado por uma ruptura, por uma interrupção, por
um hiato no qual não há a identificação de um tempo, de nenhum tempo específico. Não há a
ideia nem de fim nem de começo nele; não há um tempo cronológico; não há a eternidade
como tempo; não há a presença de Deus por meio de sua ira, que sequer aparece: há apenas o
vazio no qual os humanos são lançados. Mas, no poema de Georg Heym, não há a indiferença
do deus: depois de já ter sido constatado o abandono ou o fim do Deus cristão em 1905 por
Lasker-Schüler, em 1910 Heym expressa a fúria de um deus irado sobre as grandes cidades:

Escarrapachado sobre um quarteirão,


À sua volta acampam negros ventos.
Ele olha irado, ao longe, a solidão
De últimas casas em campos nevoentos.

Baal, ao pôr-do-sol, pança luzindo,


À volta ajoelham as grandes cidades.
61

De um mar de negras torres vem subindo


O eco monstruoso das trindades.

Na rua, a multidão música entoa,


Em dança coribântica exaltada.
Das chaminés fabris o incenso ecoa
E sobe até ele, em fragrância azulada.

No seu sobrolho crepitam temporais.


Narcotiza-se em noite o escuro dia.
Como os abutres, esvoaçam vendavais
Em cabeleira irada, que arrepia.

Estende no escuro a mão de carniceiro.


Um mar de fogo varre, num estremecer,
Toda uma rua, que acaba num braseiro,
Até que o dia tarde a amanhecer. 25

Baal é um deus que teve representação em várias religiões, desde os fenícios até os
cristãos. No Antigo Testamento, ele foi mencionado como o principal deus pagão dos
fenícios, e, de “senhor”, segundo o significado hebraico, tendo sido originalmente adorado
como “deus da fertilidade”, foi retratado como demônio na Bíblia. 26 Em Heym, as cidades e a
natureza estão submetidas à sua fúria: personificados, as cidades ajoelham à sua volta (“Baal,
ao pôr-do-sol, pança luzindo,/ À volta ajoelham as grandes cidades.”); os ventos acampam ao
seu redor (“À sua volta acampam negros ventos.”); os vendavais possuem “cabeleira irada”
(“Como os abutres, esvoaçam vendavais/ em cabeleira irada, que arrepia.”); em contrapartida,
há também uma inversão, os vendavais são animalizados (“Como os abutres”), e pela
semelhança da “cabeleira irada” vir dos abutres, a esses, por sua vez, já foi conferida uma
caracterização humana (“cabeleira”). Por meio de uma linearidade discursiva, de imagens
sendo descritas com uma força visual, o poema vai montando um cenário catastrófico,
misturando, assim como o “Fim do Mundo” de Hoddis, elementos fantásticos e reais. Mas, ao
contrário de Hoddis, Heym não opera com quebras sintáticas e semânticas. Os substantivos
vão sendo minuciosamente guiados pelas ações dos verbos, criando imagens que vão
reforçando a ira e o poder destruidor de uma figura mítica sobre as cidades. Essas vão se
reduzindo a um mínimo: “toda uma rua, que acaba num braseiro,”. E o final desastroso não
25
“O Deus da Cidade” [Der Gott der Stadt], 1910. Tradução de João Barrento. No original: Auf einem
Häuserblocke sitzt er breit./ Die Winde lagern schearz um seine Stirn./ Er schaut voll Wut, wo fern in
Einsamkeit/ Die letzten Häuser in das Land verirrn.// Vom Abend glänzt der rote Bauch dem Baal,/ Die groβen
Städe knien um ihn her./ Der Kirchenglocken ungeheure Zahl/ Wogt auf zu ihm aus schwarzer Türme Meer.//
Wie Korybanten-Tanz dröhnt die Musik/ Der Millionen durch die Straβen laut./ Der Schlote Rauch, die Wolken
der Fabrik// Ziehn auf zu ihm, wie Duft von Weihrauch blaut.// Das Wetter schwelt in seinen Augenbrauen./ Der
dunkle Abend wird in Nacht betäubt./ Die Stürme flattern, die wie Geier schauen/ Von seinem Haupthaar, das im
Zorne sträubt.// Er streckt ins Dunkel seine Fleischerfaust./ Er schüttelt sie. Ein Meer von Feuer jagt/ Durch eine
Straβe. Und der Glutqualm braust/ Und friβt sie auf, bis spat der Morgen tagt.
26
“Quem era Baal?” Disponível em: http://www.gotquestions.org/Portugues/Baal.html
62

evidencia senão as forças destrutivas conjugadas na intenção de um retardo do tempo: “até


que o dia tarde a amanhecer.”, antecipando a escuridão da noite que já se anuncia com o deus
“ao pôr do sol”, retardando a luz do dia nesta atmosfera que poderia ser caracterizada como
trevosa, paganizada, demonizada. Na contramão da crença iluminista do sujeito esclarecido
senhor de si, da convicção das faculdades humanas e racionais como construto do mundo
moderno desde o Renascimento, os habitantes das grandes cidades seriam lançados em nada
mais desordenado e irracional que “danças coribânticas”. “[O]s coribantes eram divindades
míticas gregas que executavam danças em movimentos frenéticos e desordenados, em rituais
que só aconteciam quando estavam em transe.” (CERQUEIRA, 2011, p.91). A multidão que
executasse estas danças não estaria provida de lucidez, mas fora de si, fora do comando do
intelecto. E ela estaria sob as ordens deste deus, como na mitologia, em que o deus é
responsável pelos desastres que acometem os homens.
Como reação ao abandono do deus, a solidão, por parte dos homens, seria um
elemento trágico; a vulnerabilidade e a fragilidade da existência ante o poderio de forças
contrárias; a impotência humana frente à soberania do destino, à força maior do incontrolável.
Dada a ruptura com o divino, ruma-se então para o abismo. A criatura está só, lançada, sujeita
à imprevisibilidade do mundo e do poder destruidor e irrefreável da natureza. Mas o poema
mostra um deus irado, não um deus indiferente. O tempo assume uma face tirânica do próprio
deus que à escuridão da noite tudo submete (“Narcotiza-se em noite o escuro dia.”; “Toda
uma rua, que acaba num braseiro, /Até que o dia tarde a amanhecer.”). A transformação
marcada do tempo, portanto, é um elemento que aqui aponta para a destruição. A marcação
temporal não é suspensa, mas aparece como instância superior identificada às vontades do deus:
o tempo aqui aparece em sua total presença – destruidora, catastrófica, sombria. Não é o
abandono do deus, mas sua represália, à afronta do homem que ousou, que ousou ultrapassar
limites, que ousou pela razão desmedida, que ousou ser semelhante a um deus, que ousou ter
o domínio, inclusive o da natureza. O homem, tal como Édipo, que não ultrapassou limites
senão contra si mesmo, assente sua impotência frente à soberania divina, “o eco monstruoso
das trindades”. Mas em Édipo, de acordo com Hölderlin, o afastamento categórico é visto de
forma mais evidente do que em Antígona: é ele o desertado tanto quanto possível pelo deus
que dele se separa e se afasta. Apesar de não haver este afastamento categórico do deus no
poema de Heym, mas sim sua presença furiosa, não se pode descartar o sentimento de
abandono, sobretudo em relação ao Deus cristão, que não comparece no poema. Estando os
humanos entregues a todo abismo, “O deus da cidade” toma as rédeas do destino.
63

A condição de apátrida, de desterrado, de abandonado, que vimos nos poemas de


Trakl, de Lasker-Schüler, de Heym, é então um modo pelo qual o trágico se configura na
poesia expressionista, que se identifica mais com os poemas que foram escritos antes da
Guerra. De maneira diferente, o trágico nesta poesia pode se configurar mais no que ela se
aproxima de efervescências subjetivas, que transbordam em uma violência das próprias
emoções e da subversão da própria forma. Esse segundo aspecto relaciona-se mais às efusões
dionisíacas de que fala Nietzsche, que terá grande influência sobre o expressionismo e estará
mais presente nos poemas que foram escritos após a Primeira Guerra, quando vemos maior
presença de um viés pragmático, político, ativista, incitando um pacifismo humanista, em que
a ruptura de um mundo que se perdeu não é vista como nostalgia, mas sim como elogio e
como otimismo, negando enfaticamente toda forma de tradição, de poder.
Como esta dissertação se concentra no período antes da guerra, os poemas que
assumem este tom não serão de todo analisados. No entanto, é preciso considerar que houve,
no teatro, desde o início do século, muitas tragédias expressionistas, algumas das quais,
depois da guerra, foram inspiradas em Édipo e em Antígona, representando no palco o
conflito geracional e a luta contra a autoridade. O Estado e o humano aparecem em conflito,
aquele como símbolo da medida, da ordem, da política, da razão, e esse como o humano em
sua desmesura, em seus impulsos e desejos submetidos a normas sociais e à lei, traduzindo
assim uma luta conta o poder autocrático e autoritário, característica dos poemas pós-guerra e,
antes, de parte da juventude alemã que no “romantismo anticapitalista” se rebelava contra a
tradição. Portanto, uma análise do trágico nos poemas destes anos deveria levar em conta a
difusão do impacto das tragédias que estavam sendo encenadas, sobretudo por Hasenclever.
Não poderíamos deixar de mencionar, também, no que diz respeito ao instinto contra a
norma, a importância de Gottfried Benn, que antes de Hasenclever já teria escrito a peça
Ítaca, no emblemático ano de 1914. A peça centra-se em uma discussão na sala de aula entre
um professor emérito e seu jovem assistente, cuja crítica geracional se estende ao empirismo e
ao racionalismo do mestre. Esta será, pois, uma polaridade que terá inspiração contundente na
filosofia de Nietzsche, afirmada pelo próprio Benn: “Nós queremos o sonho. Nós queremos a
embriaguez. Nós invocamos Dionísio e Ítaca!”. 27 Nietzsche, já em O nascimento da tragédia
(2007) como exemplo maior de crítica radical à cultura alemã tal como se apresentava em
suas tradições, influenciou, sobretudo, na crítica à oposição entre aparência e essência, aquela
significando a justa medida – da objetividade, da ciência, da razão, do poder, da tradição – e

27
Fragmento da peça “Ithaca”, publicada no jornal Die Weissen Blätter, em Leipzig, em 1914. In:
CAVALCANTI, 2000.
64

essa a desmesura – da subjetividade, da dor, do sofrimento humano, contra a primeira –, no


rechaço ao socratismo, à razão, ao conhecimento, que na Grécia aniquilou o mito e expatriou
a poesia na preponderância de uma consideração teórica, e que no mundo moderno começava
a vacilar diante do otimismo depositado na ciência:
Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura
alexandrina e reconhece como ideal o homem teórico, equiparado com
as mais altas forças cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo
protótipo e tronco ancestral é Sócrates [...]. E agora não vamos ocultar
de nós mesmos o que se acha oculto no regaço dessa cultura socrática!
O otimismo que se presume sem limites! [...] O sinal característico
dessa “fratura”, da qual todo mundo costuma falar como sendo a
doença primordial da cultura moderna, é, isto sim, que o homem
teórico se assusta diante de suas consequências e, insatisfeito, não
mais se atreve a confiar-se à terrível corrente de gelo da existência:
angustiado, corre pela margem, para cima e para baixo.
(NIETZSCHE, 2007, pp.106-109).

Esta citação talvez sintetize toda a crítica que os poemas, direta ou indiretamente,
fizeram ao baluarte desta cultura socrática, pautada no conhecimento sem limites, no
desenfreio da razão, no otimismo do progresso. Junto ao progresso, seus fracassos, efeitos que
ultrapassaram a lógica, apresentando suas consequências ilógicas, que fugiram ao controle da
teoria, da ciência. Contrário ao que havia destituído o mito, substituído pelo otimismo
socrático, a ambição de Nietzsche era ser o primeiro filósofo trágico ou o inventor do
ditirambo dionisíaco em uma Alemanha já ambientada por ideias sobre a tragédia e o trágico
desde o final do século XVIII, quando a arte grega é retomada no jogo de construção da
própria nação. Muitos poetas expressionistas foram leitores do filósofo intempestivo que
morreu em Weimar, em 1900. A subversão da forma, da tradição, da moral e de valores
judaico-cristãos, expressões de sua filosofia refletidas em uma escrita “a golpes de martelo”,
são alguns pontos em comum que podemos alçar à sua influência. O grupo de artistas
plásticos formado em 1905, em Dresden, composto por Ernst Kirchner e Erich Heckel, por
exemplo, foi denominado Die Brücke [A Ponte] por referência a uma passagem de Assim
Falou Zaratustra – escrito, por sinal, em uma linguagem poética. Eles tinham o objetivo de
fazer com que a arte estabelecesse um contato íntimo entre realidade e natureza, ao mesmo
tempo em que rejeitasse todo cânone até então existente na arte alemã.
As efusões dionisíacas, entretanto, ficaram muito mais manifestas no teatro do que na
poesia, tendo aparecido muito mais nesta última como inspiração, seja na crítica que subjazia
ao mundo moderno, seja na própria estrutura da linguagem, subversiva contra qualquer
medida, escancarando a desmesura, o desencaixe, o desequilíbrio. Assim, ficou evidente nos
poemas o apelo de voltar-se às pulsões, de constatar, criticar e reagir contra tal ordem, tendo
65

aí a filosofia de Nietzsche exercido um papel decisivo. Do mesmo modo como disse Roberto
Machado, “a experiência dionisíaca é a possibilidade de integração da parte na totalidade”
(MACHADO, 2006, p.213). No mundo moderno desintegrado onde só havia lugar para um
deus, “O Deus da Cidade”, se a ele fosse dado um culto, esse não deveria ser senão totalmente
catártico, num expurgo até que os homens caíssem em exaustão: “[...] Na rua, a multidão
entoa,/ Em dança coribântica exaltada./ Das chaminés fabris o incenso escoa./ E sobe até ele,
em fragrância azulada.”. 28
Uma “dança coribântica exaltada” não executada pela comunidade harmônica – que
assim se assemelharia com o princípio de individuação das massas, em que a totalidade alude,
antes, a um uno coeso – mas pela multidão, na desmesura de cada um. É preciso sublinhar que
as danças coribânticas gregas não eram um puro transe, mas eram uma espécie de catarse, de
purificação: “músicas eram tocadas para diferentes deuses e as pessoas reagiam aos sons. Se a
pessoa doente reagisse a determinado ritmo, significaria que sua doença derivava da
possessão de determinado deus.” (HUXLEY, 1992, p.132). No final da dança, elas
executavam os ritos e sacrifícios necessários, para que assim pudesse finalizar o ritual e obter
absolvição dos males e consumação da cura. Logo, o incenso purificador de epidemias era o
que deveria substituir a fumaça enferma presente nas cidades. À maneira de Dioniso – o deus
estrangeiro que chegara à Grécia vindo do oriente asiático pela “epidemia” de tais danças –, o
ritmo selvagem e embriagador deste mundo de estrangeiros deveria ressoar pela cultura da
justa medida e da ordem, que em sua forma saudosa e naïf ansiava pelo retorno do apolíneo.
Para outros poetas seria, ao contrário, a experiência dionisíaca que os proporcionaria à
libertação dos instintos e à integração de cada subjetividade na totalidade, à reconciliação
entre os homens e a natureza.
Apesar de Nietzsche não defender a preponderância do dionisíaco em detrimento do
apolíneo ou vice-versa, apesar de sabermos que ele não optava por dualismos, mas pela
afirmação da vida trágica, ou seja, da vida em suas tensões mesmas, sempre sob o efeito das
duas forças, parece ter havido uma supervalorização do dionisíaco, associado à essência, pelo
expressionismo. Isso está ligado ao impulso de mostrar as efusões subjetivas que estavam
sendo ocultadas e reprimidas pelo racionalismo e cientificismo vigentes. Como bem localiza
Jorge Almeida, “a busca da expressão pura e imediata das excitações subjetivas costuma ser
vista como o traço comum que reúne os poetas expressionistas da década de 1910”

28
Georg Heym, op. cit., 1910. Tradução de Barrento. Continuação dos versos, no original: Wie Korybanten-
Tanz dröhnt die Musik/ Der Millionen durch die Straβen laut. Der Schlote Rauch, die Wolken der Fabrik/ Ziehn
auf zu ihm, wie Duft von Weihauch blaut.
66

(ALMEIDA, 2007, p.34). A subjetividade exacerbada reagiria então à perda do sentido de


totalidade, como se ele só pudesse ser construído com impressões interiores singulares que
deveriam ser postas para fora, expressadas. Voltando-se contra a representação da aparência
externa que planifica e permanece na superficialidade, a busca seria pelo elemento essencial
da “impressão interior, recentemente denominado expressão” (KANDINSKY, 2000, p.95). A
título de exemplo, um trecho do poema “A sentença”, de Ernst Stadler, expõe a busca pela
essência:
Num velho livro topei com uma palavra
Que me veio como um golpe e ainda arde em brasa:
E quando me entrego a um turvo prazer
Preferindo brilho, mentira e jogo em vez do puro ser,
Quando acho melhor com supérfluos me enganar,
Como se fosse claro o escuro, como se a vida não tivesse milhares de
portas a fechar,

[...]
Quando um sonho bem-vindo me acaricia com mãos de veludo
Aliviando-me do cotidiano sobretudo,
Longe do mundo, alheio ao mais profundo eu,
Então ergue-se em mim a palavra: Homem, torna à tua essência! 29

Vemos no poema o prazer supérfluo do qual já foi falado, que se deixa enganar como
fuga da realidade. Realidade essa que é sugerida (“Aliviando-me do cotidiano...”) em
oposição ao sonho (“Quando um sonho bem-vindo...”), como se o cotidiano mesmo assumisse
um lugar turvo, obscuro, e o sonho se apresentasse como fuga à fuga que se realiza na e à
própria realidade. E como diria Hannah Arendt, “o que é esse sonho senão o antigo sonho,
anelado pela Metafísica ocidental de Parmênides a Hegel, de uma esfera intemporal, fora do
espaço e suprassensível como a região mais adequada ao pensamento?” (2014, p.37). No
último verso se dá a contraposição da aparência do mundo sensível – que foi aludida desde o
início do poema na sequência “E quando me entrego a um turvo prazer/ Preferindo brilho,
mentira e jogo em vez do puro ser,/ Quando acho melhor com supérfluos me enganar,/ Como
se fosse claro o escuro, como se a vida não tivesse milhares de portas a fechar,” em que
“turvo prazer”, “brilho”, “mentira”, “supérfluos” referem-se ao cotidiano – com o sonho como

29
“A sentença” [Der Spruch], 1914. A tradução de Claudia Cavalcanti (2000) do último verso seria “Homem,
procura o teu apogeu!”. Todavia, optou-se aqui por manter o sentido literal do alemão “Mensch, werde
wesentlich”, em que wesentlich possui o significado de essencial, substancial. João Barrento também o traduziu
por “torna à tua essência”. Assim, com exceção deste verso, a tradução de C.C foi mantida nos demais, porque
seguem mais fielmente o sentido. Versos no original: In einem alten Buche, stieβ ich auf ein Wort,/ Das traf
mich wie ein Schlag und brennt durch meine Tage fort:/ Und wenn ich mich an trübe Lust vergebe,/ Schein, Lug
und Spiel zu mir anstatt des Wesens hebe,/ Wenn ich gefällig mich mit raschem Sinn beluge,/ Als ware Dunkles
klar, als wenn nicht Leben tausend wild verschlossene Tore trüge,/ […]/ Wenn mich willkommner Traum mit
Sammethänden streicht,/ Und Tag und Wirklichkeit von mir entweicht,/ Der Welt entfremdet, fremd dem tiefsten
Ich,/ Dann steht das Wort mir auf: Mensch, werde wesentlich!
67

fuga do mundo sensível (“Longe do mundo, alheio ao mais profundo eu,”), e com a essência,
referida como “puro ser” na primeira estrofe e novamente ao fim da última estrofe, quando a
emerge como “A sentença” que se direciona ao “Homem”. Completamente totalizante, o
vocativo parece concentrar em si toda a substancialidade humana; afim ao humanismo
englobalizador que reduz todos ao termo “Homem” como expressão própria do humanismo
renascentista em que o “Homem” passa a ser o centro do conhecimento, em oposição a Deus.
A palavra com a qual o eu lírico se depara não vem senão de um “velho livro”, símbolo do
saber e do conhecimento. Apesar de centralizar a ideia no “Homem”, o que ele reivindica não
é o pensamento racional ou a ciência, mas se atribui de um elemento do conhecimento, o
livro, que o remete à exigência de que o “Homem” tornasse à essência. Esta recuperação da
essência responderia à perda de totalidade, ao mesmo tempo em que recairia em dualismo ao
não deixar de partir da pressuposição de que a realidade seria aparente e falsa, em oposição a
uma essência que resguardaria o sentido verdadeiro do homem.
Kandinsky teria sido um dos primeiros a afirmar a diferença entre as artes feita pelos
naturalistas e pelos impressionistas (a primeira desejando representar a natureza de forma
objetiva e fiel, e a segunda captando-a em superfície aparentemente borrada) e os artistas
plásticos expressionistas, que pretendiam ir contra a representação da natureza em sua
aparência, como um fenômeno exterior. Assim é que há uma valorização da essência, também
impulsionada pelos princípios de “tempestade e ímpeto” [Sturm und Drang], que valorizam
os sentimentos, a motivação pela paixão, a passionalidade, em consonância com a desmesura
dionisíaca, o êxtase e a abolição das fronteiras entre a natureza e o homem, aspirando à ideia
de totalidade.
Segundo Wolfgang Welsch, “os modernos reagem à perda do sentido de totalidade
com o trágico, a melancolia ou o heroísmo” (WELSCH apud ANZ, 2009, p.10). Todavia,
uma subjetividade extremada, inflada de um pathos ilimitado, seria também interpretada
como uma arte alienada, que teria mais se afogado no sonho ou no pesadelo do que
denunciado a realidade, como Adorno veria o expressionismo (ADORNO, 1998, pp.261-262).
Certamente esta ânsia poderia pender mais para uma ascese religiosa e a um verdadeiro
aniquilamento das tensões constitutivas da existência humana. Nietzsche não propunha tal
aniquilamento, tampouco defendia a representação da vida na monopolização do mito de
Dioniso; pelo contrário, a afirmação da vida em sua sabedoria trágica eliminaria a
transcendência metafísica. Ele rechaçava a substituição de uma tradição por outra que
recoloria o suprassensível como verdade, rechaçava o retorno idealizado de uma sociedade
grega primitiva e rechaçava igualmente a mimeses, como os românticos também já a haviam
68

rechaçado (ao contrário dos classicistas pré-românticos, Goethe, Schiller e Winckelmann, que
se empenharam em uma “nobilíssima luta pela cultura” – como ironizaria Nietzsche (2007,
p.118)). A crítica nietzschiana recaía na Zivilization alemã e no que “a vida guiada pelo
conceito, pelo otimismo socrático, tão inartístico quanto corroedor da vida” apagava a tensão
trágica e se mostrava como verdade, velando o lúdico, o fenômeno estético, “o prazer da
aparência e, simultaneamente, de negá-la em um prazer ainda maior, o prazer do
aniquilamento do mundo da aparência visível” (NIETZSCHE, 2007, p.138).
Foi com base no filósofo e em sua crítica à cultura alemã e à cultura moderna que
muitos passaram a negar o racionalismo cientificista juntamente com a tradição prussiana
imperialista, belicista, o que fez com que muitos vissem esse abandono como necessário. O
mundo da epopeia, guiado pela medida, pela harmonia do equilíbrio, pela simetria, ordem e
proporção, não deveria ser visto como modelo para os mais afirmativos, porque se
assemelhava às vigências dos padrões clássicos, tudo aquilo que repudiavam os poetas quando
proclamavam a subversão da forma: “Primeiro foi preciso forma e ferrolho arrebentarem/ E
por canos abertos no mundo entrarem:/ Forma é volúpia, paz, divina contenção,/ Mas me atrai
cuidar de cada plantação./ A forma quer-me amarrar e limitar,/ Mas quero meu ser pelos ares
espalhar”.30 A crítica da aparência, da harmonia, da medida, de tudo o que seria
exclusivamente apolíneo, estendia-se à própria estrutura formal da escrita, contra uma
linguagem objetiva e contra a visão da forma como um ajuste, como uma garantia de salvação
tal como Friedrich viu em Baudelaire. Stadler continuaria a sentenciar “Forma é volúpia”: “A
forma é rigor claro e sem piedade,/ Mas sou levado aos pobres, por fraternidade.”.31 A ideia
do rompimento com a forma estaria intrínseca à ruptura de um modo de estar no mundo,
apontando para outro modo de estar em sociedade, na relação com o outro. É possível
perceber, sobretudo neste trecho, o tom humanista, que esteve muito presente nos poemas
escritos durante a Primeira Guerra. A forma, aqui, está em oposição à palavra fraterna, como
se a primeira retesse a segunda, impedindo a palavra de chegar ao outro.
Para muitos expressionistas, na esteira da subjetividade como modo de conhecimento
do eu, em um momento em que o sujeito já fora alçado à categoria de problema por Kant,
pensado como condição de possibilidade do conhecimento, toda ideia de perfeição como
forma passa a ser nociva na medida em que suprime o caráter subjetivo. Eu e mundo, já

30
“Forma é volúpia” [Form ist Wollust], 1914. Tradução de Cavalcanti, 2000. Versos no original: Form und
Riegel muβten erst zerspringen,/ Welt durch aufgeschlossene Röhren dringen:/ Form ist Wollust, Friede,
himmlisches Genügen,/ Doch mich reiβt es, Ackerschollen umzupflügen./ Form will mich verschnüren und
verengen,/ Doch ich will mein Sein in alle Weiten drängen- […].
31
Continuação dos versos no original: Form ist klare Härte ohn’ Erbarmen,/ Doch mich treibt es zu den
Dumpfen, zu den Armen
69

apartados, são concebidos conceitualmente de maneira dualista. E é de forma não objetiva e


não canônica que o eu, agora individualizado, é concebido em sua subjetividade;
subjetividade que permite compreendê-lo como apartado de um mundo externo. À ocultação
da essência desmesurada do homem pelo parnasianismo burguês com tudo o que tinha de
tradicional e ordeiro, lei e medida seriam agora negadas pelos mais radicais, seriam nada mais
que “os lunares atalhos do desterrado” (como no último verso do “Canto do Desterrado”:
“Medida e lei, e os lunares atalhos dos desterrados”) que não deveriam ser resgatados.
Os poemas mais programáticos se imbuiriam então de um grito que ressoaria como um
elogio ao crepuscular de um mundo, o mundo da tradição. Ao mesmo tempo em que este grito
era uma denúncia às tantas mortes e o instante mesmo da morte, ele também era uma urgência
de gritar pela necessidade de uma morte específica. Em forma de grito, eles anunciavam o
crepuscular, o movimento de morrer: o morrer da ordem antiga, o morrer dos deuses, do Deus
cristão, dos ídolos. Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo é a declaração
de guerra de Nietzsche contra os padrões modernos, contra a moral cristã; de uma vez por
todas, contra os juízos da tradição ocidental e o nível de “verdade” que eles designam. Suas
marteladas são os movimentos de destruição deste mundo, e a constatação de que são ocos
esses ídolos. Os juízos morais de que se prendem a lei são os mesmo juízos religiosos que
instituíram a capacidade de inferioridade e impotência do homem diante de verdades
absolutas. A destruição dessas verdades é a afirmação do “eterno criar-se a si próprio”, é o
que se expressa como vontade de potência. E isso não se encontra na rigidez da verdade, mas
na mobilidade, na imperfeição, no conflito de forças que constitui a própria realidade.
No entanto, como foi dito, muitos poemas que foram escritos até a guerra constatam a
perda de um mundo e não a apresentam com elogio, mas com a fúria de deuses ou com o
abandono de Deus. Vimos que o primeiro poema exposto de Trakl foi um canto, um canto de
lamento. Há um outro poema dele, de 1912, composto pelos seguintes versos: “[...] Há uma
ilha do mar do sul/ Para receber o Deus Sol. Rufam os tambores./ Os homens executam
danças guerreiras./ As mulheres balançam os quadris em trepadeiras e flores de fogo/ Quando
canta o mar. Oh, nosso paraíso perdido.”32 Se o primeiro poema se revela como um canto, é
na forma de “Salmo” (título do poema) que este aponta para o “paraíso perdido”. É a partir de
um elemento cristão que se evidencia desde o título, que ele aponta para o que seria nada mais
que o Deus Sol como elemento integrante. Apolo, por excelência, como o princípio de

32
“Salmo” [Psalm], 1912. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2010. Versos no original: [...] Es ist eine Insel der
Südsee,/ Den Sonnengott zu empfangen. Man rührt die Trommeln./ Die Männer führen kriegerische Tänze auf./
Die Frauen wiegen die Hüften in Schlinggewächsen und Feuerblumen,/ Wenn das Meer singt. O unser
verlorenes Paradies.
70

harmonia e da justa medida, “no qual se realiza, e somente nele, o alvo eternamente visado
pelo Uno-primordial” (NIETZSCHE, 2007, pp.34-39), que exige dos seus a medida, a lei, o
comedimento necessários para manter a existência em sua aparência, em sua beleza e brilho,
encobertando todo o sofrimento, toda a dor, todo o desmesurado para os quais, na épica, não
havia lugar. Junto aos outros elementos que poderiam denotar os cultos que os gregos faziam
aos deuses, podemos intuir que Trakl se refere a um mundo épico, a um mundo integrado com
deuses – que, no último verso, se apresenta liricamente como “oh, o paraíso perdido”. O que
salta em preponderância aqui é exatamente o resgate do princípio apolíneo e o resgate da
cultura grega como um mundo perdido, o que se conecta a uma leitura do trágico com a
influência dos pré-românticos, sem que essa perda apareça como elogio, mas novamente
como um lamento.
Na transição do século, no advento da racionalidade científica, da mecanização e da
massificação da sociedade, este momento do expressionismo aponta como protagonista o
indivíduo solitário pela sua desintegração em relação a si e ao mundo, como instâncias
separadas (eu e mundo), e pela ruptura de si com o divino. Assim, o trágico abandono não
vem senão acompanhado da trágica solidão. Mas apesar deste elemento trágico comparecer,
há uma distância de todos os modos em que o trágico se configurou aqui: o silêncio da solidão
trágica não se mostra como ruptura salvadora do tempo trágico como discorreu Claudia
Castro, em que esse não significa um fim, mas resguarda uma tensão que aponta para a
potencialidade de um começo, uma abertura, uma possibilidade; não se mostra tampouco
como o tempo trágico conforme Hölderlin formulou, que seria uma suspensão do tempo, a
suspensão do deus ou de Deus, sem a sua presença, sem que com isso se conotasse um fim,
mas apenas o vazio. Nos poemas é visto o contrário, a conotação do fim, que aparece em
alguns explicitamente desde o título, a fúria do deus, apresentando-se catastrófica. Na
afirmação da vida constituída de uma tensão irremediavelmente trágica, como na acepção
nietzschiana, vimos que houve tanto a valorização de uma essência contra o mundo das
aparências, quanto a ânsia de resgatar um mundo idealizado perdido; nas duas opções, em
alguma medida há um desequilíbrio na valorização de um aspecto em detrimento do outro, e
de alguma forma o aspecto valorizado passa a ocupar um lugar de verdade, o que Nietzsche
rebateria ao criticar a supervalorização do mundo suprassensível ou das ideias em detrimento
do mundo sensível ou das aparências. Com suas críticas ao mundo moderno das aparências,
eles acabariam por recair em dualismos e reproduzir a bipolaridade de forças, sem que elas
fossem afirmadas em tensão, eliminando a tensão trágica. Com relação à leitura de Ernani
Chaves, em sua diferenciação quanto às formas de expressão do herói antigo e do herói
71

moderno, o objeto em questão não se encaixaria no drama moderno só por também ser
moderno: de modo diferente do diálogo no drama moderno, não há um debate. Nisso, talvez,
aproximá-lo-ia mais do monólogo antigo, mas que também não pode ser por ele caracterizado,
já que esta solidão não é afirmativa como a do herói antigo que assume a vida em sua tensão
constitutivamente trágica. Parece então que, diante do tempo do fim em que o elemento
trágico é o abandono, poderíamos vislumbrar a possibilidade de um solitário monólogo
moderno em que os poetas nem monologam afirmativamente nem debatem dialogicamente,
mas antes se debatem para falar.

2.3 Fim – de Deus, da Arte, da História

“Deus está morto!” – gritou o louco (NIETZSCHE, 2012, pp.137-138). Friedrich


Nietzsche atestou algumas vezes a morte de Deus. A primeira vez foi em A Gaia Ciência
(2012), primeiramente publicado em 1882, cuja sentença acima se encontra no parágrafo 125,
“O homem louco” (2012, p.137). Mas já n’ O nascimento da tragédia, de 1870, ele já
reivindicaria a morte de deuses, no plural: “[...] todos os deuses precisam morrer”
(NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2003, p.476). Em A Gaia Ciência, “o homem louco”
também diria “[...] também os deuses apodrecem!” (NIETZSCHE, 2012, p.138), mas o que
passamos a saber no parágrafo 343 (“O sentido de nossa jovialidade”), é que o Deus que está
morto é, sobretudo, o Deus cristão: “O maior acontecimento recente – o fato de que ‘Deus
está morto’”, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas
primeiras sombras sobre a Europa.” (2012, p.207).
Ao reivindicar a morte de deuses e ao atestar a morte do Deus especificamente cristão,
Nietzsche não faz mais que o colocar em questão, esse que regia o pensamento desde Platão e
que fundamentava o modo de se relacionar com a vida e com o próprio tempo. A constatação
nietzschiana sentencia então o modelo platônico de pensamento que desde o início dissociou o
mundo sensível ou material do mundo suprassensível. O “platonismo cristão” de Santo
Agostinho, uma síntese entre o pensamento cristão e a filosofia grega na Idade Média, viria
reforçar esta dissociação, difundindo o cristianismo no Ocidente com sua moral em
dualismos, como bem e mal, paraíso e inferno, corpo e alma etc. (MARCONDES, 2001,
pp.109-113), como podemos ver nesta passagem de um aforismo de Ecce Homo (2008):
O descobrir da moral cristã é um acontecimento que não tem igual,
uma verdadeira catástrofe. [...] Tudo o que se chamava “verdade” é
reconhecido como a mais nociva, pérfida e subterrânea forma de
mentira [...]. A noção de “Deus” foi inventada como noção-antítese à
72

vida – tudo nocivo, venenoso, caluniador, toda a inimizade de morte à


vida, tudo enfeixado em uma horrorosa unidade! Inventada a noção de
“além”, “mundo verdadeiro”, para desvalorizar o único mundo que
existe – para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim,
nenhuma razão, nenhuma tarefa! A noção de “alma”, “espírito”, por
fim “alma imortal”, inventada para desprezar o corpo, torná-lo doente
– “santo” –, para tratar com terrível frivolidade todas as coisas que na
vida merecem seriedade [...] (NIETZSCHE, 2008, p.108).

Logo, promulgar “Deus está morto” significa colocar toda uma tradição judaico-cristã
ocidental em questão, significa constatar a invalidez das categorias suprassensíveis ancoradas
na dicotomia metafísica que postula um mundo verdadeiro em oposição a outro, aparente.
Colocar em xeque esta tradição significaria então questionar os pilares que a fundamentavam
e que retornavam em diversas instâncias como aparatos de poder que governavam a vida,
fazendo uso das mesmas noções religiosas como o bem, o certo, o justo, a verdade. A mesma
tradição que também postula a culpa – culpa que veremos presente em um poema de Franz
Werfel no próximo capítulo – servirá de base às esferas políticas pautadas nos valores
ocidentais da moral cristã, já que o dispositivo mais eficaz do poder soberano, o único
realmente necessário para a soberania, é a culpa (AGAMBEN, 2010, p.128). Assim, a
soberania da religião que postula a culpa é também a soberania da lei regida pelos mesmos
princípios.
Com o cristianismo, o suprassensível representará a verdade divina, e com o início da
Idade Moderna, com o antropocentrismo, com a valorização da razão, Deus deixa de ocupar o
lugar de pressuposto para a explicação dos fenômenos e a ciência passa a ser alçada ao
estatuto de verdade, mas com o princípio de estar à imagem e perfeição de Deus. O
cartesianismo consiste em um ponto central neste processo, e o sujeito cartesiano fundamenta
uma teoria que vê na possibilidade de um sujeito pensante, de um sujeito do conhecimento, as
bases sólidas de um conhecimento verdadeiro. O sujeito instaurado pelo cogito então deverá
garantir uma verdade como a garantida por Deus. Então, a sentença de sua morte, além de
significar a ruptura com toda a tradição modelada pelo pensamento platônico, significará
também a ruptura com o conhecimento cartesiano na sua pretensão de verdade, já que, no
lugar da autoridade de Deus, impõe-se a autoridade da razão. O progresso entra aí então
ocupando o lugar da promessa de felicidade como uma variação do mundo suprassensível
interpretado pela tradição cristã. Desta forma, “Deus, as ideias, a lei moral, a autoridade da
razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização perdem o seu poder
edificador e transformam-se em nada.” (HEIDEGGER, 2003, p.483), pois se colocam no
73

lugar do mundo suprassensível, preservando-se ainda como autoridade, como garantia de uma
verdade, então uma autoridade é apenas substituída pela outra.
Segundo Heidegger, “a tentativa de esclarecer a sentença nietzschiana ‘Deus está
morto’ é equivalente à tarefa de interpretar o que Nietzsche entende por niilismo” (2003,
p.479), que o primeiro definirá como “um movimento histórico, não um ponto de vista e uma
doutrina qualquer defendidos por alguém” (2003, p.480), pois o niilismo, enquanto uma
desvalorização dos valores, uma anulação, um tornar sem valor, é o princípio normativo da
história que instituiu o mundo suprassensível como o sensor determinante da vida. Assim, o
niilismo não é a consequência da história, mas parte constitutiva da “‘lógica interna’ da
história ocidental” que, nos momentos em que valores foram desvalorizados, o lugar de
autoridade esvaziado – que antes era ocupado por eles – foi preenchido por outros valores
(HEIDEGGER, 2003, pp.484-487). Esta substituição só indica que este não é um movimento
de escapar do niilismo, mas senão de sua manutenção, uma vez que os valores não são apenas
substituídos. Ou seja, suas posições mesmas de verdade não são questionadas, postas em
xeque, ao passo que um valor só irá ocupar a mesma posição de verdade que o valor
substituído tinha. É deste modo que o niilismo se mostra no motor dos processos históricos
quando esses não fazem mais que reinstaurar dogmas ou doutrinas a orientar a vida. E é por
isso que Nietzsche falou da necessidade de “transvalorar os valores” em A Genealogia da
Moral (2002), contrariamente ao mero movimento de desvalorizá-los e substituí-los.
O “niilismo plenificado” seria aquele então em que se “coloca de lado até a própria
posição dos valores, o suprassensível enquanto âmbito” (HEIDEGGER, 2003, p.487), ao
contrário do “niilismo não-plenificado” cujo princípio não cessa de preservar o suprassensível
como base vital. Foi neste sentido que foi dito no capítulo anterior que o poema de Lasker-
Schüler se aproximaria de um niilismo negativo, o “niilismo não-plenificado”, pois a morte de
Deus significaria o fim do mundo. Este fim não é o mesmo que uma constatação de que toda
uma tradição foi posta em questão; se pensarmos na crítica que a lírica do poema poderia
incidir sobre o seu tempo, talvez esta constatação se assuma na forma de lamento pela
substituição de uma onipotência por outra, a onipotência de Deus pela da razão e do
progresso. A desvalorização de um valor não significa, neste caso, que a necessidade mesma
de valorá-lo deve ser questionada e, ao ser preenchida por outro que irá ocupar o mesmo lugar
de verdade, não sinaliza aqui o otimismo no progresso, mas a aniquilação da vida pelo fim de
Deus, pela ruptura da unidade da esfera metafísica. Sinaliza, portando, uma vontade de
verdade e a experimentação do niilismo enquanto experimentação da morte desta verdade que
era encarnada em Deus. Mas ao contrário de afirmar a redução da verdade a nada, ao
74

contrário de atestar que o erro humano mais longo foi a instauração do nada como parâmetro
da vida, ao postular dicotomias em nome da verdade, ao contrário de afirmar este niilismo
como conservação da vida terrena, Lasker-Schüler e outros sucumbem ao sentimento de
ausência do valor de Deus, levando a crer que recaíam na necessidade de verdade.
O fim do suprassensível não coincidiu com a vontade de potência como princípio da
transvaloração de todos os valores, superando, finalmente, a metafísica. O niilismo apontado
no desmoronamento de Deus como valor supremo não se seguiu nem, como seria esperado,
de uma vontade instauradora de novos valores: “Após a morte de Deus, uma das
consequências imediatas é a tentativa de manutenção desse espaço que ficou ‘vazio’,
preenchendo-o com outros elementos que poderíamos identificar contemporaneamente como,
por exemplo, a ciência e a crença na ‘comprovação científica’, ou como uma manutenção da
ideia de essência humana, por meio de expressões como ‘direitos fundamentais do homem’”
(MELO, 2013, p.68). Certamente, apesar de ter sido a alternativa para muitos, sobretudo se
levarmos em conta o teor totalizante do caráter humanista que esteve ainda mais em voga com
a Primeira Guerra, essa não seria a melhor opção, já que recairia na substituição, reincidindo
na repetição do mesmo movimento metafísico de atribuir verdades. No momento no qual o
valor supremo foi desvalorizado, o pensamento deveria se questionar pelo valor desse, pelo
valor do valor supremo que deu origem a tantos outros, mas, no caso dos mais pessimistas, a
redução de tudo a nada se transformou na pior força niilista que se impulsiona contra a
vitalidade, aniquilando a própria vontade. E isso, para Nietzsche, seria a eliminação da vida.
O poema de Lasker-Schüler sucumbe ao princípio constitutivo da metafísica na
medida em que alude à necessidade de uma verdade para além do mundo fenomênico, e a
possível substituição da posição soberana de Deus pela razão, pelo progresso, ou pelo efeito
dos dois em conjunto, mostra que a crítica a esses não se dá só por eles mesmos, mas por
terem destituído o lugar de Deus; evidência disso é que o mundo suprassensível continua
sendo tomado como perfeição, em que plenitude é salvação e as leis e as medidas idílicas são
atalhos para o mundo idealizado. Deus é, neste sentido, tomado como um a priori, como um
ente supremo que possibilita a vida e o mundo, como princípio estruturador da totalidade que
dava unidade e sentido a tudo. Mas quando “o homem louco” diz “Deus está morto” e
complementa com “E nós o matamos!” (NIETZSCHE, 2012, p.138) há a possibilidade de
inversão deste princípio: se “nós o matamos” é porque Deus não está invencivelmente para
além das pessoas, mas é por ele ser resultado de uma indagação humana, por ele ser uma
resposta que os próprios humanos criaram às suas necessidades de explicação da origem da
vida e do mundo. Então, a morte de Deus como um ato humano aponta acima de tudo para
75

uma virada do conhecimento, sendo ao mesmo tempo um ato de conhecimento e uma


necessidade de superar um determinado modo de compreensão do mundo, assumindo uma
nova tomada de posição. Esta necessidade viria, assim, não de um homem específico, mas do
próprio movimento histórico, dos próprios desdobramentos da metafísica que atestariam o seu
limite. Uma vez que a figura de Deus simboliza as categorias suprassensíveis, sua morte
significa a supressão do conhecimento pautado na dicotomia entre sensível e suprassensível,
evidenciando sua insuficiência.
Encarar a morte de Deus tanto frearia o processo de pressupostos pelos quais toda a
história ocidental se moveu quanto abriria caminhos para se pensar a necessidade de se
admitir o fim de uma ideia de sucessão evolutiva, linear e progressiva que desembocaria em
um marco e que fundamentou toda a concepção do tempo. Em 1917, o poeta Wilhem Klem
33
escreveu em “O Meu Tempo”: “[...] A arte está morta. As horas reduzidas.” Antes de
Nietzsche, Hegel atestaria alguns fins que estariam direta ou indiretamente atrelados ao modo
como o tempo ocidental era compreendido. O fim em Hegel não seria nenhuma morte nem
muito menos o fim da arte; ele seria a aniquilação da arte enquanto fenômeno histórico: todos
os fins em Hegel indicam uma crítica a uma concepção de história que não leva em conta a
ideia de superação presente na compreensão dialética, de modo que o fim neste filósofo já
significa um começo. Fim da arte seria nada mais que o fim de uma determinada arte, a arte
como entretenimento, como meio de satisfação contemplativa, como meio para se alcançar
alguma finalidade. O fim da arte estaria diretamente atrelado à crise da representação na
emergência do sujeito autorreflexivo que transforma os modos de percepção sobre a realidade
e a verdade.
Uma vez que “o homem moderno não se contenta mais apenas com a contemplação
estética imediata como um modo suficiente de acessar essa verdade, ele criou por si e para si
mesmo a necessidade de refletir e de pensar sobre a arte.” (GONÇALVES, 2004, p.50). O fim
da arte em Hegel significa então o nascimento da reflexão sobre a arte; melhor dizendo, o
nascimento de uma filosofia da arte. Este pensamento será para o filósofo um pensamento
reflexivo que deve dar um sentido à obra, mas um novo sentido: não aquele da evolução
histórica que marca com precisão os diferentes momentos, mas aquele que dá um novo
sentido aos objetos já existentes, retirando-os de seus contextos específicos. Como Márcia
Gonçalves diz, a intenção do filósofo da arte não deverá ser “preservar uma obra”, mas
“dinamizar seu sentido, abrindo-lhe ambivalências, descobrindo-lhe contradições, fazendo

33
“O meu tempo” [Meine Zeit], 1917. Tradução de João Barrento. Versos no orginal: [...] Tot ist die Kunst. Die
Stunden kreisen schneller.
76

eclodir e explodir uma nova vida de dentro e a partir da própria obra.” (2004, p.52). O caráter
reflexivo da arte proporcionou também uma extrapolação dos limites estabelecidos entre os
gêneros e entre a arte e outros do conhecimento, como a filosofia.
A arte bela seria, para Hegel, a arte realista, que nos leva a crer que o corpo humano é
real e vive. Mas nisso também há uma idealização do sensível, pois sua referência será a
escultura clássica no que tange ao corpo do deus grego, que já é um corpo ideal, diferente do
corpo humano representado realisticamente. Haveria ainda aí, portanto, uma idealização da
forma. Todavia, o que o filósofo aponta é para uma contradição entre a forma e a ideia a partir
de um detalhe da representação dos olhos do deus grego:
Ele percebe um certo recuo geométrico antinatural dos olhos em
relação à face, o que demonstraria a necessidade de acentuar um
caráter de interioridade. É como se o deus esculpido não olhasse para
fora, mas voltasse o seu olhar para si mesmo; é como se ele refletisse,
dando origem, pela primeira vez na história fenomênica da arte, a uma
importante contradição dialética: “O espírito aparece totalmente
mergulhado em sua figura exterior, mas está ao mesmo tempo voltado
para si.” (GONÇALVES, 2004, p.54).

Tal interpretação, para Márcia, seria já “a primeira figura estética da morte de deus.
Uma morte que ainda não se realizou por completo, pois é salva pela beleza e harmonia
propiciadas pela forma sensível idealizada.” (2004, p.54). Mas, para a comentadora, isso já
significa uma luta entre espírito e matéria, pois ela acredita que a interioridade representada
no olhos voltados para dentro, para si, poderia ser compreendida como um aprisionamento do
espírito, infinito, na natureza, finita. Este próprio conflito presente no deus esculpido seria
para ela o germe do herói trágico: a infinitude e a finitude presentes como tensão. No lugar do
corpo esculpido do deus, o corpo vivo do humano, ao mesmo tempo em que estaria se
movendo, falando, sofrendo, compartilharia do mesmo luto interno e contraditório da
escultura do deus aprisionado na finitude da matéria bruta do mármore, pois sua solidão ainda
denotaria que estava preso aos antigos deuses que o tinham abandonado. Assim, ambos
estariam abandonados, mas, acima de tudo, o deus esculpido é que morre como constituição
originária da arte, não a arte. Essa passa a ser humana e profana, não mítica, admitindo o
dissonante, os conflitos de um mundo fragmentado. E aí é que o fim de uma arte em Hegel, ou
de um modo de compreender a arte, aponta assim para uma abertura da arte, para o começo de
uma nova arte.
O lar do belo na arte ficara no mundo do ritual, da tradição. É disto que trata também a
“perda da aura” em Benjamin. A aura e a tradição estavam em íntima relação, pois ainda
havia o culto à obra, à vida, aos mortos, à arte. Com o estágio da técnica e com a reprodução
77

técnica das obras de arte, a função do culto começa a desaparecer. O exercício criativo se
mostra como um efeito da desordem do eu, da confusão entre imaginário e real, loucura e
realidade, assim como a dor e o corpo ganham uma nova dimensão. “A arte como vingança de
Orfeu: eis o novo contexto das representações da dor nas artes, no qual prazer e morte, Eros e
Tanatos, misturam-se.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, pp.48-49). O artista passa a ser não
mais o gênio como fora no século XVIII, mas o excluído, o sujeito fragmentado, o “outro”.
Este “outro” em si mesmo, alienado de si e, os “outros”, em relação ao diferente, ao múltiplo
presente na sociedade que uniformiza e esconde a heterogeneidade das pessoas. E se para
Hegel a arte passa a não ser mais a configuração de uma obra acabada, mas uma produção na
qual o sujeito dá-se a conhecer a si mesmo (HEGEL, 2000, p.335), a arte expressionista,
conhecida como a arte do feio, a arte do grito, coloca-se contrária ao belo, dando lugar ao
obscuro: acusados, injustiçados, desesperançados. A percepção intensiva da fragilidade da
condição humana será um dos objetos da arte, cujos temas abordados serão a sexualidade, a
enfermidade, a morte, a solidão, revelando um sujeito excluído como agente social e fraturado
de si mesmo. O poeta expressionista Ludwig Rubiner, conhecido por seu ativismo político,
autor do ensaio Der Dichter greift in die Politik [O poeta interfere na política] – que irá
pertencer a um dos manifestos publicados pela Die Aktion – é conhecido por acreditar que a
arte deveria liberar as intensas energias destrutivas psíquicas acumuladas pelo cotidiano. Ao
se perguntar “Quem são os camaradas?”. Sua resposta autorreflexiva não poderia ser mais
clara:
Prostitutas, poetas, sub-proletários, coletores de objetos perdidos,
ladrões ocasionais, ociosos, casais de amantes em meio a um abraço,
desatinados religiosos, bêbados, desempregados, comilões,
vagabundos, assaltantes, críticos, dorminhocos, canalhas. E em alguns
momentos todas as mulheres do mundo. Somos a escória, a ralé, o
desprezo [...]. (in GROSSE apud CAVALCANTI, 2000, p.20).

A ênfase recai na singularidade, na diferença, marcando as várias esferas de excluídos


sociais e até mesmo de excluídos morais – ou de uma determinada moral, a cristã –, como
“ociosos”, “comilões”, “dorminhocos”, já previamente inseridos nos sete pecados capitais e
prejulgados por isso, pela mesma sociedade que se rege por esta moral. “A arte surge como
‘espaço marginal’ onde tanto aquilo que é posto de lado, para baixo, na sociedade voltada
para a produtividade, pode se manifestar ‘livremente’, como também, ao fazê-lo, volta-se
contra esse recalque que sustenta a vida social cotidiana.” (SELIGMANN-SILVA, 2005,
pp.47-48). À arte bela tem-se uma nova arte, uma arte que contém desde já uma crítica
incisiva sobre o seu tempo. O fim de uma atesta então sua superação e o começo de outra, não
78

como uma ruptura radical, mas como se esta transformação não fosse possível sem que tivesse
tido a arte bela, sem que o deus esculpido já apontasse para o que Hegel identificaria depois
no herói trágico moderno, já que a ideia de “superação” em Hegel, a aufhebung, sempre
pressupõe uma conservação daquilo que foi superado, preservando algo daquilo. Isso esteve
na base da compreensão hegeliana de tempo e, nesta compreensão, não se poderia deixar de
lembrar que as tragédias estiveram na fundamentação do sistema filosófico deste filósofo, que
usou a dialética do trágico na formulação de sua fenomenologia. O caráter trágico acima
discorrido, que leva em conta a catarsis da dor, da perda, do abandono, já faz parte da
compreensão dialética hegeliana.
O outro fim postulado pelo filósofo em questão, o fim da história, insere-se então neste
sistema no qual a concepção de agora não pode ser compreendida sem que se atribua uma
visão negativa à negação, pois, para Hegel, a diferença de um instante para o outro é que o
segundo é aquilo que o primeiro não foi; mantendo-se o primeiro ou o que ele foi, o instante
seguinte é a superação daquele a partir do que nele ainda não havia. Por isso é que, segundo
sua formulação, o agora imediato para a certeza sensível só é amanhã se negar o que é hoje,
superando o hoje. Ou seja, só há uma transformação se, na manutenção do estágio anterior,
nega-se o que é, tornando-o outro dele mesmo. Assim, esta concepção de tempo se funda em
uma negação do agora, como instante – em que cada instante será superado, mantendo,
porém, uma origem localizada –, no qual jamais se faz uma experiência do presente. Deste
modo, “assim como o tempo, cuja essência é pura negação, a história não é jamais apreendida
do átimo, mas somente como processo global.” (AGAMBEN, 2005, p.120). A representação
espacial da concepção moderna de tempo como uma linha marcada por pontos que sucedem
uns aos outros reaparece então também aqui, como uma sucessão contínua de “agoras”. O
presente só é, portanto, o marco de uma transição, o instante entre o que foi e entre o que não
é mais, e entre o que é e o que ainda não é: “o presente só é por isso que o passado não é,
inversamente o ser do agora tem a determinação de não ser, e o não ser de seu ser é o futuro; o
presente é esta unidade negativa.” (HEGEL, 2008, p.87).
Na linha conjugada pelos pontos que vão se sucedendo, Hegel estabeleceu um fim,
onde está o saber absoluto, que é quando nenhuma superação dialética é possível, não
havendo mais passado nem futuro, mas apenas um presente como eternidade, o agora como
“verdadeiro presente”, uma vez que, para o filósofo alemão, só o absoluto é verdadeiro.
(AGAMBEN, 2005, p.119). Para Agamben, um modo de conceber o tempo que tivesse como
princípio a negação, estaria lado a lado a uma forma de temporalidade em que o agora está a
serviço de uma experiência nulificada do tempo, isto é, como ele se dá na modernidade:
79

Aquilo que, no sistema hegeliano, exprime-se na identidade formal do


tempo e do espírito humano, ambos entendidos como negação da
negação, é o vínculo – que ainda está por interrogar – entre a
experiência nulificada do tempo do homem ocidental e a potência
negadora da sua cultura. Somente uma cultura com tal experiência do
tempo podia fazer da negação a essência do espírito humano, e não
compreendemos o verdadeiro sentido da dialética hegeliana se não a
relacionamos à concepção de tempo com a qual é solidária. Pois a
dialética, antes de mais nada, é aquilo que permite conter e recolher
em unidade (dia-légesthai) o continuum dos instantes negativos e
inapreensíveis (AGAMBEN, 2005, p.119).

Uma cultura que possui uma experiência nulificada do tempo é a mesma da tradição do
homem ocidental, em que a pura negação subtrai a experiência vivida do indivíduo e o tempo
se reduz a um mero processo.
O fim da história em Hegel geralmente é interpretado como um momento histórico em
que se teria alcançado a liberdade, com a afirmação das democracias liberais frente aos
regimes totalitários. A interpretação sobre esta tese até hoje é controversa e na década de 90
recebeu leituras de Francis Fukuyama e Perry Anderson, sob o impacto histórico do
acontecimento da queda do muro do Berlim. Todavia, uma vez que a ênfase sobre a esta
discussão recai mais comumente nestes dois autores, aqui será dada uma atenção à crítica de
Hannah Arendt, pois essa parte de um ponto fulcral que tem mais a ver com uma importante
questão que também foi cara ao expressionismo e que está diretamente vinculada à luta contra
a posição soberana de uma verdade: a filósofa toma como ponto de partida em sua crítica
sobre “A tradição e a época moderna”, em Entre o passado e o futuro (ARENDT, 2014,
pp.43-68), a percepção de que Nietzsche, Kierkegaard e Marx foram os primeiros que
romperam com a autoridade, que “desafiaram os pressupostos básicos da religião tradicional,
do pensamento político tradicional e da Metafísica tradicional invertendo conscientemente a
hierarquia tradicional dos conceitos” (2014, p.53), todavia, ficaram reféns ao sistema de
Hegel.
Hannah Arendt considera que toda a luta contra a tradição travada no século XIX
permaneceu ainda no interior de um quadro de referência tradicional, e que Kierkegaard,
Marx e Nietzsche situam-se no fim da tradição, antes da ruptura, antes do que, para ela,
provocou a efetiva quebra na história: a experiência dos regimes totalitários, cujo ineditismo
evidenciou que as categorias usuais do pensamento, em seus padrões políticos e morais
tradicionais, não dariam mais conta de compreender e julgar de maneira tradicional isso que
se mostrava como um fato inédito, que teria quebrado a continuidade da História Ocidental
80

(2014, pp.53-54). Antes de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, ela diz que Hegel teria sido quem,
“pela primeira vez, viu a totalidade da história universal como um desenvolvimento contínuo”
(ARENDT, 2014, p.55), cujo fio da continuidade histórica, a linha já mencionada, teria sido o
primeiro substituto para a tradição. Em sua compreensão, os valores mais divergentes e
contraditórios “foram reduzidos a um desenvolvimento unilinear e dialeticamente coerente, na
verdade, não para repudiar a tradição como tal, mas a autoridade de todas as tradições.”
(ARENDT, 2014, p.55).
Hegel, então, pôs em xeque a autoridade das tradições ou o lugar de verdade que elas
ocupavam, pois, “ao vislumbrar o desdobrar completo da História Mundial numa unidade
dialética, minou a autoridade de todas as tradições, sustentando a sua posição apenas no fio da
própria continuidade histórica.” (LAFER in ARENDT, 2014, p.11). Porém, fazendo da
dialética um sistema universal, Kierkegaard, Marx e Nietzsche permaneceram hegelianos “na
medida em que viram a História da Filosofia passada como um todo dialeticamente
desenvolvido” (ARENDT, 2014, p.55). Para a filósofa, a grande radicalização deles está na
nova abordagem do passado, questionando a tradicional hierarquia conceitual e sendo os
primeiros a pensar sem orientação de nenhuma autoridade. Contudo, ela identifica apenas
uma substituição em suas tentativas de superação, por exemplo, Kierkegaard inverteu a
resolução de Descartes ao saltar da dúvida para a crença, resolvendo a falta de fé moderna “a
partir da distorção da relação tradicional entre razão e fé”; Marx, por sua vez, teria saltado da
filosofia para a política, “da teoria para a ação e da contemplação para o trabalho”; o salto de
Nietzsche, finalmente, seria do transcendente e do suprassensível das ideias para “a
sensualidade da vida”, inversão essa que Hannah Arendt chamou de “platonismo invertido”,
apesar de dizer que a “transvaloração dos valores”, como sinônimo de “platonismo invertido”,
“foi a derradeira tentativa de se libertar da tradição e [que] teve êxito unicamente ao pôr a
tradição de cabeça para baixo” (2014, pp.56-57).
Por um lado, a compreensão da história ou da filosofia da história como um
movimento dialético teria ajudado a desconstruir as rígidas polarizações entre mundo das
aparências e mundo das ideias verdadeiras, por outro lado, a linha de continuidade histórica
na unidade dialética se fundamentaria em um processo de ininterrupta superação. Ao ser o
primeiro a se afastar de todos os sistemas de autoridade, ele se coloca frente a toda tradição
metafísica anterior que desde Platão buscara a verdade, mas, para Hegel, a verdade reside e se
revela no próprio processo temporal. Por isso é que Hannah Arendt diz que “o conceito
central da metafísica hegeliana é a História” e que pensar uma verdade que se revela no
processo temporal é característica de toda a consciência histórica moderna (2014, p.101).
81

Mas, como o que há de verdadeiro para Hegel é o absoluto, então este é um processo no qual
é a verdade do absoluto que se revela gradativamente. Dessa forma, a ininterrupta superação e
a revelação gradativa apontariam inevitavelmente para um limite, para um fim, que seria nada
mais que uma etapa constitutiva do próprio processo sucessivo de superação.
Todavia, apesar de toda crítica necessária às suas noções que fazem da história um
processo sucessivo, linear e contínuo, não se pode desconsiderar que se formos pensar
isoladamente no que o fim da arte significa, veremos que é a superação da arte anterior,
representativa, contemplativa, em que a reflexão e a quebra de limites entre os gêneros se
assumem como importantes características desta transformação; além disso, quando
pensarmos em fim da história, não podemos deixar de levar em conta o entendimento de que a
compreensão do absoluto em sua totalidade, para Hegel, só se dá depois de encerrado o seu
processo. Então, o que vem com o “fim da história” é a reflexão crítica, o conhecimento do
processo como um conhecimento de si mesmo. Haja vista que em Hegel a finalidade da
história é o espírito conhecer a si mesmo, quando o espírito conhece a si mesmo nada mais
resta a ele e, com isso, a história tem o seu fim. Não há dúvida de que isso é problemático,
pois de acordo com isso “o tempo apresenta-se simplesmente ‘como a necessidade e o destino
do espírito em si não cumprido’” já que nem “a origem do tempo nem o sentido de sua
identidade formal com o espírito são interrogados como tais” (AGAMBEN, 2005, p.120); o
espírito simplesmente “cai” no tempo, e toda uma “alma do mundo” se encarna em uma
individualidade neste “conhecimento de si mesmo”. Nisso, é igualmente problemática a ideia
de que a reflexão só vem a posteriori, de que o conhecimento sobre a história só vem com o
seu fim, pois isso certamente reitera a ideia prejudicial de que a história é uma totalidade feita
de processos cujo momento de efetiva reflexão pressupõe o seu encerramento, como se a
experiência estivesse separada da reflexão, em que essa só viesse depois. Como Hannah
Arendt e Agamben criticariam, as noções básicas constitutivas de seu fundamento nulificam a
experimentação do tempo e todo o presente passa a ser reduzido a uma linha de instantes;
suprimido o vivido, o que se preserva de marcos sucessivos de uma história concebida em
processos não é senão os grandes feitos, ou os “grandes homens”, que “não são mais que
instrumentos na marcha progressiva do Espírito universal.” (AGAMBEN, 2005, p.120). Não
se pode deixar de reconhecer, porém, que o fato de Hegel e, de forma muito mais radical,
Nietzsche, para citar os mais abordados aqui – ainda com dúvidas se o último teria recaído em
um sistema hegeliano; principalmente, ainda que não somente, se pensarmos em suas críticas
diretas ao modo de compreensão da história ocidental na Segunda Consideração
Intempestiva; ainda com dúvidas se sua “transvaloração dos valores” seria o mesmo que um
82

“platonismo invertido”, já que isso seria pressupor uma verdade em Nietzsche –, terem
rompido com a hierarquia dos conceitos tradicionais (no caso de Hegel) e com a tradição
ocidental mesma (no caso de Nietzsche), já é uma evidência de que seus “fins” devem ser
compreendidos em seus limites, mas também no que se mostraram como propositivos à
época, no que se mostraram como abertura: os fins de Hegel, à reflexão – se ponderarmos a
morte da arte e a morte da história, talvez a compreensão da primeira tenha menos ônus do
que a segunda, pois a reflexão aqui (ainda que sob a concepção do “conhecimento de si
mesmo”) estará presente não só na crítica a posteriori, mas na própria constituição da arte, em
que a indistinção de fronteiras entre os gêneros já implica também a reflexão – e o fim ou a
morte de Deus, de Nietzsche, à derrocada da autoridade – da tradição – da verdade.
83

III

FORA DO TEMPO
84

3.1 Crepúsculo, o tempo mais cedo; “Ocidente”, lugar de travessia

Vimos que o tempo que se inicia na modernidade é um tempo que aniquila no homem
a própria experiência de tempo: inapreensível como o produto que se produz e do qual não se
tem posse, mas que da existência desse a sobrevivência depende. Diante da expropriação da
experiência de tempo, podemos perceber um desencaixe na percepção quanto ao espaço: o
mundo ocidental, lugar das mil possibilidades, apresenta-se hostil e longe de representar a
paragem idealizada do lugar de promessas. Na seção 2.1, observamos que o desencaixe do
tempo e do espaço pôde ser lido em Die Dämmerung [O Crepúsculo], de Alfred Lichtenstein,
em uma leitura estendida a Abendland [Ocidente], de Georg Trakl. Como se um pertencesse
ao outro, o ocidente como o lugar do crepúsculo seria talvez o único encaixe possível. Longe
de indicar aberturas a múltiplos sentidos, a interpretação tecida de ambos os poemas colou os
significados que seriam os mais esperados a esses viventes inseridos em suas condições
históricas, levando em conta a percepção temporal com base nas tradições. Por este viés, as
noções de “crepúsculo” e de “ocidente” não ofereceriam uma leitura otimista.
Todavia, como quem furasse concretos para abrir caminhos possíveis, Heidegger
envereda pela poesia de Georg Trakl para pensar a linguagem, essa na qual e pela qual, para o
filósofo, a vida se realiza. Em uma interpretação certamente original, “ocidente” e
“crepúsculo” assumem um novo significado em A linguagem na poesia – Uma colocação a
partir da poesia de Georg Trakl, no livro A caminho da linguagem [Unterwegs zur Sprache]
(2012). Crepúsculo passa a ter um sentido muito mais complexo do que um mero entardecer
ou do que um mero pôr do sol: ele é tempo de passagem, de travessia. É um tempo de
transição: o longo entardecer que prepara para a noite. É um tempo que antecede, é a véspera
de um acontecimento. Crepúsculo, para Heidegger, não é o fim, não é o tempo em que as
coisas findam, mas um tempo que antecede e prepara outro.
A essa interpretação, é imprescindível considerar os sentidos que a palavra
Dämmerung assume em alemão: ela agrega tanto o significado de “alvorecer” como o de
“entardecer”; é usada tanto para se referir ao período do dia em que está anoitecendo, isto é, a
passagem da tarde para a noite, como para se referir ao período em que o dia está
amanhecendo. Ou seja, é a mesma definição para os momentos em que o dia nasce e morre,
como se o processo do anoitecer fosse o mesmo que o do amanhecer, como se estas diferenças
se apagassem, como se o tempo permanecesse sempre definido pela indefinição.
85

É por isso que a tradução escolhida por Márcia Schuback para “crepúsculo” foi
“lusco-fusco”, pois, no uso corriqueiro do português, aquela está diretamente associada ao
período vespertino, quando o sol se põe, enquanto o significado desta se atrela tanto ao
período vespertino quanto ao matutino, pois se refere mais literalmente à sensação incômoda
aos olhos de quando são incididos pela luz do sol, o que pode ser quando ele nasce, mas
também quando se põe. O cerne do significado do segundo é a incidência de luz e a
possibilidade de a luz ofuscar em qualquer desses momentos do dia, então pode se referir
tanto à transição do dia para a noite quanto ao alvorecer. Nas palavras do filósofo, “‘Adentrar
o lusco-fusco’ significa inicialmente escurecer”. Mas,
O “lusco-fusco” não é um simples declínio do dia, no sentido de que a
sua claridade decai e cai na escuridão. O lusco-fusco não se refere
necessariamente ao crepúsculo. Também a manhã conhece o lusco-
fusco. Com ele amanhece o dia. O lusco-fusco é também o lusco-
fusco da aurora (HEIDEGGER, 2012, p.32).

Este crepúsculo, então, que o filósofo alemão prefere chamar de “lusco-fusco”, não
seria o lugar da “queda”, o lugar onde se cai. E esta concepção também está relacionada à
leitura de Heidegger de uma estrofe do poema Sebastian im Traum [Sebastião no sonho], em
que a palavra Untergang – que Claudia Cavalcanti, em sua antologia De Profundis (2010,
p.45), traduziu por “ocaso” – foi traduzida por “declínio” por Márcia Schuback
(HEIDEGGER, 2012, p.31). Untergang, que também poderia ser traduzida por “queda”,
“ruína”, “declínio”, aparece no verso Die Drossel ein Fremdes in den Untergang rief. Com o
intuito de adequar a tradução à interpretação de Heidegger, Schuback não manteve a tradução
de Cavalcanti, então, o verso traduzido como “O melro chamava ao ocaso um desconhecido.”
(CAVALCANTI, 2010, p.45) foi traduzido por aquela como “O sabiá chama algo de estranho
para o declínio.” (HEIDEGGER, 2012, p.31). Optamos por manter a tradução de Schuback,
que traduziu Drossel por “sabiá” 34 e que manteve o tempo verbal da construção no presente,
como no original, e não no passado, como optou Cavalcanti. Todavia, podemos considerar
que a tradução de Claudia de “ein Fremdes” por “um desconhecido” pode não ser descartada,
se tivermos em mente o que Heidegger diz sobre “ein Fremdes”.
O verso em que o filósofo se baseia como ponto de partida de sua leitura é Es ist die
Seele ein Fremdes auf Erden. Pertencente ao poema Frühling der Seele [Primavera da alma],
tal verso, em tradução literal, seria “É a alma um estranho na terra” ou “a alma é um estranho
na terra”. Ou seja, como se a alma, metafísica, suprassensível ou supraterrena, não

34
Considera-se aqui que a palavra equivalente a “melro” poderia ser Amsel, já que a mesma aparece em outro
poema de Trakl, Geistliche Dämmerung, e possui tradução direta como “melro”.
86

pertencesse à terra. Mas Heidegger diz: “A alma não é de modo algum primeiro a alma e
depois, por alguma razão, o que não pertence à terra [...]. A frase não contém nenhum
enunciado sobre a natureza já conhecida da alma” (2012, p.31). Sendo assim, para se
distanciar do primeiro sentido, que seria uma constatação da natureza da alma, e adequar à
interpretação de Heidegger, Márcia traduziu o verso como “Algo de estranho, a alma na
terra”. Como foi dito, optar por “um desconhecido” não comprometeria o entendimento, pois
a compreensão deste caráter de estranheza recai no significado que Heidegger se utiliza de
Fremd a partir da etimologia da palavra:
No alto alemão, fremd vem de fram e tem propriamente o significado
de: adiantar-se rumo a outro lugar, estar a caminho de..., o que se
movimenta em direção ao que foi resguardado, reservado. O estranho
está em travessia. Sua errância não é, porém, de qualquer jeito, sem
determinação, para lá e para cá. O estranho caminha em busca do
lugar em que pode permanecer em travessia (HEIDEGGER, 2012,
pp.30-31).

De acordo com isso, basta que entendamos que estranho ou desconhecido não é aquele
ou aquilo que busca por um pertencimento, mas aquele ou aquilo que busca estar sempre em
movimento sem pretensão de encontrar um lugar de pertença. Ao contrário da acepção
discorrida no primeiro capítulo, em que a condição de errante dos judeus foi estendida ao
modo de compreender a condição de exilado do homem moderno, o estrangeiro [Ausländer]
aqui não é o desterrado [Abgeschiedenen], expatriado da terra natal, da língua materna, fadado
a seguir sem fala, expropriado do tempo e seu escravo. Da mesma forma que Fremder não
teria o sentido pejorativo de “não genuíno”, “não verdadeiro”, “ilegítimo”, em que “algo de
estranho” estaria na condição de impróprio, de “bastardo”, de alguém que precisasse procurar
um paradeiro por não ser aceito. Pelo contrário, o mais próprio ao desconhecido, ao estranho,
não seria nada mais que o estar em busca do lugar que lhe permitiria estar em permanente
travessia.
Percebemos então que Heidegger se afasta dos usos comuns, recupera a origem da
palavra e revela um antigo significado, que se torna novo ao mudar toda a compreensão que
se dará a partir deste deslocamento. Sendo assim, a alma como “algo de estranho” ou como
“um desconhecido” na terra é ela corresponder à sua essência que lhe é própria: sendo “um
estranho”, ela está “sempre a caminho, seguindo em travessia” (HEIDEGGER, 2012, p.31).
De acordo com isso é que crepúsculo deve ser entendido como um tempo de passagem, de
travessia, pelo qual o estranho adentrará. Neste sentido, o próprio crepúsculo ou “lusco-fusco”
não significa destruição nem catástrofe nem decadência. Heidegger inclusive adjetiva tal
“lusco-fusco” de “entusiasmado”.
87

Trakl usa muitas vezes as variações do termo geistlich, como por exemplo: “Geistlich
dämmert”, em “Sebastião no sonho”; “geistlichen Jahre”, em “Declinar de verão”
[Sommersneige]; “Geistliche Dämmerung”, título de um poema no qual contém “geistliche
Nacht” no último verso. Como bem apontou a tradutora em nota de rodapé, geistlich vem de
Geist, ou seja, “espírito”, então o sentido literal de geistlich seria “espiritualmente” (in
HEIDEGGER, 2012, p.32). Mas Heidegger estabelece uma diferença entre geistlich e geistig,
o que fez com que Márcia optasse por traduzir o primeiro por “entusiasmo” ou
“entusiasmado” e o segundo por “espiritual” ou “espiritualmente”. Esta opção se justifica
porque o filósofo recupera o uso antigo de geistlich: segundo a etimologia da palavra,
geistlich seria aquele que estaria tomado, possuído, arrebatado por deus, seria aquele que
carrega deus dentro de si. Em português se dá do mesmo modo, cuja origem de “entusiasmo”
vem do grego “en theos”, literalmente, “em Deus”. Segundo Heidegger, geist pressupõe
necessariamente a dicotomia entre duas esferas, a suprassensível, à qual pertenceria o
“espiritual”, e a sensível. Isso significa que a possibilidade de recair nesta dicotomia já é cair
no abismo de termos platônicos e ocidentais (2012, p.49). Assim, “entusiasmo” não é
“espiritual” no sentido metafísico, é “o fora de si” que há no entusiasmo e no entusiasmado, é
o estar fora de si, em êxtase, que literalmente que dizer sair de si, desprender-se.
(HEIDEGGER, 2012, p.49). Geist passou a ter o significado de “mente”, ou “intelecto”, em
alemão, mas originalmente podia significar tanto Ekstase [êxtase] quanto “fantasma”,
“espírito”, a partir das influências do grego e do latim, que no primeiro significava “pneuma”,
“sopro”, no sentido de sopro de vida e, no segundo, que sofreu influência daquele, “sopro” e
35
“alma” relacionados a Spiritus. Então é esta concepção que Heidegger recupera, na qual o
desprendimento é determinado pelo espírito, mas não é espiritual no sentido metafísico; mas
sim no sentido de extasiado, entusiasmado, como na acepção grega.
É depois de “Es ist die Seele ein Fremdes auf Erden”, em Primavera da alma, com os
versos que se seguem imediatamente, “...Geistlich dämmert/ Bläue über den verhauenden
Wald”, que Heidegger passa a caracterizar o crepúsculo de “entusiasmado”. Ele diz: “O ‘com
entusiasmo’ caracteriza o lusco-fusco.” (2012, p.32). Logo, a tradução de Márcia da passagem
acima é “... com entusiasmo o azul/ Adentra o lusco-fusco por sobre a floresta abatida”.
Crepúsculo é, portanto, um declínio [Neige], “o declínio do percurso do sol” (HEIDEGGER,
2012, pp.32-33), na medida em que não tem o sentido de findar, de acabar. Isso decorre do
sentido atribuído a “declínio”; sentido espacial, quase literal, de “inclinar-se para baixo”, de

35
O estudo da etimologia da palavra Geist foi baseado na consulta ao dicionário online Das Digitale Wörterbuch
der deutschen Sprache (DWDS), disponível em: http://www.dwds.de/?qu=Geist
88

declive, de uma descida: “No entardecer, o dia se põe num poente que não é nenhum fim, mas
somente a inclinação para preparar aquele declínio pelo qual o estrangeiro adentra o começo
de sua travessia.” (HEIDEGGER, 2012, p.41). Deste modo, declinar não seria mais que
inclinar [neigen], inclinar-se para, saltar para, descer para (HEIDEGGER, 2012, pp.31-32;
pp.40-41). Não seria uma queda [Verfall] que desembocaria em destruição nem em
“decadência”, como muitas vezes é traduzida a palavra Untergang nos poemas de Trakl para
indicar a Untergang der Kultur [Decadência da Cultura], o modo como este período é
caracterizado. Untergang aqui tem o significado literal de “ocaso”, de poente, de declínio do
percurso do sol e não de queda.
Este declínio não é a decadência, ele atravessa a decadência. Declínio seria, portanto,
um caminho [Unterweg] cuja destruição seria atravessada e superada, ultrapassada:
“Atravessando a destruição, ele [o estranho] desliza e escapa para o lusco-fusco do azul, para
a ‘véspera’, para o entardecer” (HEIDEGGER, 2012, p.41). Depreende-se disso que se o
“declínio” não é o fim, tampouco ele é consequência do começo. O começo mesmo é o que
ainda está por vir, é um tempo que ele considera como “mais cedo”, o que ele entende como
“a outra infância”: “a essência originária, sempre velada, do tempo” (HEIDEGGER, 2012,
p.47). Apesar de não adentrarmos nesta discussão por não constituir o escopo deste estudo,
para o filósofo, a infância seria o tempo em que seria possível fazer uma nova experiência
com a linguagem. E ao fazer uma nova experiência com a linguagem, se faria uma nova
experiência de tempo. Tal proposição será cara à filosofia de Agamben, que também herdará
da filosofia de Benjamin o conceito de “experiência” [Erfahrung] para pensar a “infância”
como o lugar em que a experiência se realizaria. Seria então em direção a este tempo mais
cedo, ao tempo que resguarda a infância, ao começo que ainda está por vir, que se daria a
travessia.
Mais do que o declínio de um dia, este declínio é o começo de uma profunda
mudança: “nessa mudança esconde-se uma despedida da ordem até agora predominante dos
tempos próprios aos dias e anos.” (HEIDEGGER, 2012, p.41). É o próprio entardecer que
precisa ser pensado de maneira diferente. Baseado no verso “a tarde muda sentido e imagem”
[Abend wechselt Sinn und Bild], do poema Herbstseele [Outono da alma], Heidegger
praticamente propõe que devemos pensar a tarde de um novo modo: a partir de uma outra
imagem e outro sentido. Ele diz: “a partir de uma outra imagem e outro sentido, a tarde
transforma o dizer da poesia, do pensamento e a saga de seu diálogo. A tarde só o consegue
porque ela mesma sofre uma mudança.” (HEIDEGGER, 2012, p.41). Ou seja, a percepção
temporal mesma sofre uma mudança. Mudar a concepção de tarde significa pensar o tempo de
89

maneira diferente, romper com o padrão estabelecido até então. Uma transformação do dizer
da poesia e ao modo como a pensamos está diretamente relacionada ao modo de pensar a
tarde, isto é, ao modo de pensar o tempo e as marcações temporais. A partir da própria tarde,
que muda imagem e sentido, que carrega em si a indefinição do tempo, que é a transição do
entardecer para o anoitecer, que é em gradiente, em cores não definidas, que é crepuscular,
precisa-se mudar o pensamento sobre a tarde, sobre o tempo. Só a partir desta mudança no
pensamento o dizer da poesia será também transformado.
O que Heidegger reivindica com isso é, antes de tudo, uma transformação da
representação aristotélica do tempo, pois o modo como compreendemos o tempo se dá na
linguagem. Então é a partir de uma nova experiência com a linguagem que todo o pensamento
será transformado e o tempo poderá ser pensado de outra forma. A interpretação que faz da
poesia de Trakl é desde já a reivindicação de Heidegger por esta mudança; enunciando-a e, ao
mesmo tempo, fazendo-a desde a poesia. Seu pensamento sobre a linguagem e sobre a poesia,
e sobre a linguagem da poesia, está inserido indiscernivelmente desta crítica:
Enquanto permanecer válida a representação aristotélica do tempo,
por toda parte paradigmática, a essência vigorosa do tempo continuará
velada para o pensamento dominante. Segundo essa representação,
seja ela mecânica, dinâmica ou atômica, o tempo é tão somente a
dimensão do cálculo quantitativo ou qualitativo da duração
transcorrida numa sucessão (HEIDEGGER, 2012, p.47).

A travessia seria então em direção a este começo, a esta transformação do pensamento,


da linguagem, do tempo. E, nesta leitura, o Ocidente também não é visto como o lugar em que
as coisas caem ou findam. É um lugar de promessa, mas não da promessa do progresso.
Ocidente, para o filósofo, é a terra mais antiga; mais antiga no sentido de mais primeva.
Primevo no sentido literal do termo: o tempo mais antigo, mas que por isso mesmo é o mais
cedo: o tempo primitivo. Assim, Ocidente, como “terra do poente” [das Land des
Untergangs], do crepúsculo, é o lugar onde também se dá o tempo da travessia, aquele que
ainda encobre o “cedo mais cedo” [frühesten Frühe] (HEIDEGGER, 1965, p.59). “Cedo é um
tipo especial de tempo, o tempo dos ‘anos entusiasmados’” (HEIDEGGER, 2012, p.46). Cedo
é um começo, é uma infância que ainda nasceu, é uma outra infância que ainda está por vir
(HEIDEGGER, 2012, p.46). Ocidente, portanto, é um lugar de promessa ao que virá. Em
alemão, abend, além de significar “noite”, significa “entardecer” e, também, “véspera”. Nas
palavras do filósofo alemão: “A terra do ocaso e declínio é a transição [Übergang] [grifo
meu] para o começo do cedo aí encoberto” (HEIDEGGER, 2012, p.65). Abendland, terra do
90

entardecer, terra da véspera, seria o lugar cujo aquilo de mais próprio a ele seria o “dar
passagem” ao tempo mais cedo que nele se encobre: a infância que ainda está por vir.
Nesta travessia, o estranho ou o desconhecido que segue por ela, que é chamado para o
declínio, é o desterrado. E aqui a concepção de “desterrado” de Heidegger também se afasta
da que foi apresentada no capítulo anterior a partir do poema “Canto do desterrado” [Gesang
des Abgeschiedenen]. A tradução usada por Márcia Schuback para Abgeschiedenen foi
“desprendido”, uma vez que a palavra usada por Heidegger foi Abgeschiedenheit. Como disse
a tradutora em nota de rodapé, esta palavra “compõe-se a partir do verbo scheiden, cortar,
separar, guardando a experiência da despedida, Abschied. O prefixo ab, que corresponde ao
latino des, indica a separação como um desprendimento e não como uma perda.”
(HEIDEGGER, 2012, p.42). É neste sentido que o desterrado não é aquele que sofre com não
pertencimento, mas aquele que segue desprendido. Aquele que segue desprendido pelo
“atalho lunar”, como traduziu Claudia, ou pela “vereda lunar dos desprendidos”, como
traduziu Márcia. Portanto, “travessia”, “declínio”, “vereda lunar” e, agora, “ocidente”, são
sinônimos para o caminho por onde o “estranho” ou o “desconhecido” ou o “desprendido”
segue em direção ao começo mais cedo.
Este desprendido não deixa de ser solitário, porém. O poema de Trakl canta a canção
do entardecer, mas esta canção, para Heidegger, é o silêncio. Segundo esta leitura, Trakl não
estaria lançando um forte canto de lamento em que o que se conotaria seria um solitário
debater-se para falar. O silêncio, como canção do entardecer, seria um chamado, um chamado
à infância mais quieta. Seria de um modo muito sossegado [so leise] que o desprendido
deslizaria [gelisian] para o entardecer, retraindo-se para a suavidade do tempo de travessia
(HEIDEGGER, 2012, pp.33-35). A vereda do estrangeiro seria então uma vereda solitária e
silenciosa, que o conduziria “para o que não mais o acolhe como hóspede”, sendo portanto
“um caminho ao largo e não mais através” (HEIDEGGER, 2012, p.46). Como este tempo
mais cedo é a infância mais quieta, o caminho do desprendido é um recolhimento, ele se
recolhe em um recolhimento “que reúne com suavidade e convoca com quietude”. “Reunir e
recolher” seria, a um só tempo, abrigar a batida que daria ritmo à geração futura, à geração
ainda não nascida. É assim que o desprendimento tem o modo de vigorar o cedo de um outro
começo, abrigando uma batida que ainda não se sustenta, mas que, em seu recolhimento, em
seu silêncio, reúne e recolhe, convoca, enquanto o desprendido segue seguindo na vereda, os
passos dos que o seguirão em um canto em escuta, em um canto que só se ouve seguindo,
permanecendo impronunciado (HEIDEGGER, 2012, pp.46-48; pp.56-59).
91

Segundo Heidegger, o “Canto do desprendido” seria o chamado silencioso, o apelo


àquela geração, não só a alemã, mas a ocidental, “essa geração que esqueceu a infância mais
quieta enquanto o começo ainda preservado”, de retorno “para o cedo mais cedo” (2012,
pp.60-62). Assim, o desprendido também não pertence a este tempo – esse que se sustenta na
representação aristotélica –, o chamado dele é feito do “cedo mais cedo”. É na infância que
vive o desprendido, o estranho, o desconhecido, o estrangeiro. Neste tempo mais cedo que
ainda não nasceu. E se o chamado dele vem de um tempo que ainda nasceu, o desprendido
também ainda não nasceu. É por isso que Heidegger diz: “O ‘Ocidente’ abriga o nascer cedo
de ‘uma geração’” (2012, p.67). A transformação das ordens não vem de um vivente que irá
chegar no futuro, tampouco se dá em direção ao passado ao se recuperar a memória de um
morto que um dia existiu, mas de algo outro, em um tempo, em um espaço e em uma geração
que ainda não nasceram.
Ao desprendimento nada pertence senão começos: o cedo da infância que ainda não
veio, as veredas noturnas (“atalho lunar” ou “vereda lunar”) do estrangeiro, o lusco-fusco
como a porta do declínio, isto é, como a porta da transição, da travessia, sendo ele mesmo
transição (HEIDEGGER, 2012, p.48). É por isso que o desprendimento também é
caracterizado como “entusiasmado”, porque ele é extasiado, fora de si (HEIDEGGER, 2012,
pp.48-50). Como podemos analisar, se ao desprendido não é destinado a fixação em algum
lugar, o ocidente não corresponde a uma paragem. O ocidente é o espaço que dá passagem a
um tempo. É, então, um lugar de abertura, é uma abertura. Ele não apreende ou detém o
tempo, não é o “lugar do futuro”, é a transição para um tempo primevo, que não é passado
nem futuro, mas um tempo outro.
A localidade do lugar, recolhida pela poesia de Trakl, é o vigor
encoberto [verborgene Wesen, “essência oculta”] do desprendimento
[Abgeschiedenenheit]. Seu nome é “ocidente”, em alemão Abendland,
literalmente terra do ocaso, do entardecer. Esse ocidente é bem mais
antigo, ou seja, mais primevo e cedo, sendo por isso mais promessa do
que a sua representação platônico-cristã e mesmo europeia. Pois
desprendimento é “começo” [Anbeginn] de uma era crescente de
mundo e não abismo da decadência [Verfalls] (HEIDEGGER, 2012,
p.65).

Desta forma, como evidenciou a passagem acima, este ocidente é desde já descolado
de sua representação tradicional – ocidental. “O ocidente encoberto no desprendimento não se
põe. [...] A terra do ocaso e declínio é a transição para o começo do cedo aí encoberto.”
(HEIDEGGER, 2012, p.65). Faz-se interessante notar que o adjetivo verborgen [encoberto],
além de “oculto”, pode ter também o sentido de “clandestino”. Isso reforça mais ainda a ideia
92

de um ocidente que, se é entendido como promessa, esta promessa não é garantia de um


pertencimento, mas sim abertura, abertura de um não pertencimento, só podendo ser vista se
for endereçada a todos, a qualquer um, como um caminho que só existe enquanto passagem
para outros caminhos, como um caminho que só se encaminha para total abertura.
Compreende-se então que o ocidente mesmo já seria clandestino, “clandestino no
desprendimento”, não seria (um lugar) próprio a algo ou a alguém. Aquilo de lhe mais próprio
seria o seu vigor/sua essência clandestino/clandestina. Ocidente, como lugar do entardecer, da
travessia, é o lugar que dá passagem ao começo, é o lugar do desprendimento, do estrangeiro.
A terra do entardecer é uma localidade clandestina de um tempo clandestino, ambos
impróprios, espaço e tempo, onde nada pertence, onde se realiza uma outra experiência de
espaço e tempo, de linguagem.
Em uma leitura diferente ao poema “Ocidente”, sobre o qual já se falou no capítulo
anterior (ver página 50), Heidegger considera que a parte final do poema, “quando ‘as grandes
cidades’ cidades são chamadas de ‘construções de pedra sobre pedra!’ [Ihr groβen Städe/
Steinern aufgebaut/ In der Ebene!] – na tradução de Claudia, “grandes cidades/ De pedra,
construídas/ Na planície!”(CAVALCANTI, 2010, p.69) –, já havia sido absorvida na parte
central do próprio poema (2012, p.67). De acordo com a quarta versão, a mesma que foi
utilizada pelo filósofo e a única traduzida para o português, Abendland possui três partes (cf.:
CAVALCANTI, 2010, pp.66-69). A parte central a que ele se refere não é a segunda parte,
como se suporia, mas corresponde aos dois últimos versos da segunda estrofe pertencente à
primeira parte: “Quando na colina verdejante/ Ressoa primaveril a trovoada.”
(CAVALCANTI, 2010, p.67) [Wenn am grünenden Hügel/ Frühlingsgewitter ertönt].
Segundo Heidegger, a terceira parte do poema (“Oh, grandes cidades/ De pedra, construídas/
Na planície!/ Tão sem-fala/ O sem-pátria segue/ Com fronte sombria o vento,/ As árvores
nuas na colina./ Oh, distantes e crepusculares rios!/ Com violência amedrontam/ Aterrador
rubor da tarde/ Em nuvens de tempestade. Oh, povos agonizantes!/ Pálida vaga/ Esmagando-
se na praia da noite,/ Cadentes estrelas.” (CAVALCANTI, 2010, p.69)), especificamente, “as
grandes cidades”, já teriam sido absorvidas pela “colina verdejante”:
As cidades e construções de pedra já têm o seu destino. Trata-se de
um outro destino relativamente àquele que se diz “na colina
verdejante”, onde “ressoa tempestade primaveril”, em que se estatui
uma “medida correta”, também chamada de “colina da tarde.”
(HEIDEGGER, 2012, p.67).

É possível notar, conforme esta passagem, que à violenta destruição que vem dos
“distantes e crepusculares rios” e das “nuvens de tempestade”, presentes na última parte do
93

poema, é dado um tom salvacionista. De acordo com a leitura de Heidegger, a tempestade


ressoa primaveril, absorvendo as grandes cidades na “colina verdejante”, transformando-as.
Mas ele vai além deste poema, e faz a leitura da parte final não só modificada pelos dois
versos finais da primeira parte, mas por mais dois fragmentos de versos de outros dois
poemas: “medida correta” e “colina da tarde”, como consta ao final da passagem supracitada.
A primeira, gerechtes Maβ [medida correta], faz parte do verso “Versunken in des Hügels
gerechtes Maß”, pertencente ao poema Anif, ainda não traduzido. Anif é uma região do sul de
Salzburgo, que Trakl provavelmente conheceu em suas caminhadas, e o verso acima poderia
36
ser traduzido como “Imerso na justa medida da colina”. Já a segunda palavra, “colina da
tarde” [Abendhügel] está inserida no verso “Der sanfte Gesang des Bruders am Abendhügel.”,
que finaliza o poema Frühling der Seele [Primavera da alma]. 37 Também ainda não traduzido
e adequando a tradução de Márcia àquela palavra específica, em português poderia ser “O
doce canto dos irmãos na colina da tarde.”. Ora, como podemos perceber, Heidegger
transformou o sentido final do poema “Ocidente” ao considerar que o final do poema não
corresponde ao ocidente como o fim mesmo das grandes cidades, não corresponde ao
ocidente como destruição. Para ele, o final do poema não fecha o sentido do poema, não
estabelece o sentido final – de destruição, tal como o esperado, pelas próprias palavras usadas
na estrofe que finaliza o poema. A destruição que há não equivaleria ao fim de tudo, mas a
uma transição cujo “destino” [Schicksal] das “grandes cidades/ De pedra, construídas/ Na
planície”, do “sem-pátria sem fala” [“So sprachlos folgt/ Der Heimatlose], corresponderia a
serem absorvidas na medida exata de um mundo que, por ser o mais natural (ao contrário da
construção das grandes cidades), teria em si a medida exata, a justa medida.
É possível considerar que Heidegger estaria concebendo este “destino” à “colina
verde” de um modo figurado, ou seja, simplesmente como uma metáfora a um tempo outro,
mais “primaveril”, alegre, harmônico. Mas também não há como desconsiderar do aspecto

36
As palavras aparecem ao final da na primeira estrofe: “Erinnerung: Möwen, gleitend über den dunklen
Himmel/ Männlicher Schwermut./ Stille wohnst du im Schatten der herbstlichen Esche,/ Versunken in des Hügels
gerechtes Maß;” (TRAKL, 2012, p.63). Também disponível em:
http://www.kulturvereinigung.com/fileadmin/user_upload/downloads/Georg_Trakl_-_die___Salzburg__-
Gedichte.pdf Tradução livre: “Memória: Gaivotas, deslizando sobre o céu escuro/ Robusta melancolia./ Em
silêncio vives na sombra das cinzas do outono,/ Imerso na justa medida da colina;”.
37
Este título foi dado a dois poemas diferentes. Um foi achado depois da morte de Trakl, e supõe-se que foi
escrito entre 1909 e 19012 (cf.: TRAKL, 2012, p.162), o outro poema, que é este do qual Heidegger fala, sabe-se
da existência desde quando o poeta ainda estava vivo. A última estrofe em que a palavra mencionada aparece é:
“Leise tönen die Wasser im sinkenden Nachmittag/ Und es grünet dunkler die Wildnis am Ufer,/ Freude im
rosigen Wind;/ Der sanfte Gesang des Bruders am Abendhügel.” (TRAKL, 2012, p.77). Também disponível em:
http://www.lyrikwelt.de/gedichte/traklg3.htm Tradução livre: Suave, a água entoa no afundamento da tarde/ E
desabrocha mais escura a vegetação silvestre na margem,/ Alegre nos bons ventos;/ O doce canto dos irmãos na
colina do entardecer.”.
94

escatológico de sua interpretação – isto é, uma destruição que traria em si a salvação – um


possível sentido naturista, como se o “destino” redentor do mundo dos povos agonizantes
fosse o retorno à lei da natureza, como se a medida da natureza fosse a mais certa, a mais
correta, como se o mundo precisasse voltar a um estágio primitivo. Em um sentido naturista,
essencialista e purista, a redenção deste mundo seria estabelecida pela harmonia mais
naturalmente dada, pela lei natural. Talvez esta leitura seja afim à que foi feita do “Canto do
desterrado” no primeiro capítulo, afim à concepção de que há uma nostalgia romântica na
narrativa do poema, uma ânsia de retorno a um mundo que outrora havia sido integrado,
regido pela natureza, como se discorreu tomando com um dos exemplos o verso “Medida e
lei, e os lunares atalhos do desterrado”. Todavia, com relação ao poema “Ocidente”,
discorreu-se que não caberia nele uma redenção. Heidegger certamente criticaria isso, pois,
para ele, escolher falar sobre o poema com base na terceira estrofe seria uma cegueira, ou, nas
palavras dele, uma surdez: “Como se ouve mal, como se está surdo ao se escolher citar
somente a última e terceira parte do “Ocidente”, passando por cima da parte central desse
tríptico, já preparado na primeira parte.” (HEIDEGGER, 2012, p.67).
No entanto, sustentar isso é o menos importante, porque esta afirmação vai contra ao
princípio de liberdade de interpretação que ele mesmo se atribuiu ao estabelecer livres
conexões através de fragmentos de diferentes poemas. Dizer que a última parte é absorvida
em dois versos que antecedem a última parte mesma, e entrecruzar a análise com mais dois
versos de outros poemas para reiterar isso, é só mais uma possibilidade de leitura. Leitura essa
que enxerga uma redenção. Podemos ponderar, talvez, que para propor um novo tempo, um
novo pensamento, uma transformação do dizer da poesia, Heidegger sai da materialidade
mesma do poema, do tempo mesmo do poema. Talvez, seja essa mesma a sua proposta, um
caminho possível, uma vez que para a construção de seu pensamento a respeito da linguagem
da poesia ele se utilizou de vários e diferentes fragmentos de poemas de Trakl, sendo poucos
os que ele se deteve por inteiro. Talvez isso denote que para a construção de um pensamento
não seja necessário seguir a risca a leitura do começo ao fim de um poema, mas que se possa
passear livremente por versos extraídos, como se cada um pudesse ser lido como abertura e
em sua abertura. No entanto, deve haver quem considere a liberdade de Heidegger um tanto
arbitrária, sendo possível questionar também se ele não coloca o poema a serviço do seu
pensamento filosófico e não o contrário, como se o pensamento dele orientasse previamente a
leitura do poema e não como se o poema construísse o pensamento. Pode-se questionar,
igualmente, a implícita noção escatológica que permeia sua interpretação (implícita noção
porque ele não usa a palavra “escatologia”) e a ideia de “destino” [Schikcsal] presente
95

explicitamente, ponderando em que ponto fazer uso destas concepções não torna mais difícil
romper com a tradição aristotélica que ele mesmo critica. De todo modo, não há como não
reconhecer que, não fosse a leitura de Heidegger, seria difícil enxergar uma salvação no
“Ocidente”.
Heidegger faz uma reflexão sobre a linguagem lendo com otimismo um Trakl que
poderíamos ler completamente inserido na concepção mesma que o filósofo critica, a cristã.
Ele transforma o peso que há na poesia de Trakl, desloca o poeta do peso que as palavras
teriam atreladas a seu tempo, desloca o poema do poema, e dá novo uso às palavras, fazendo
novo uso da linguagem, do poema. É difícil ler este poeta com otimismo, porque à primeira
vista seus poemas não são abertos, o sentido sempre coincide com o fim, como destruição, e
ao fim do poema mesmo, ao final. Além disso, Trakl sucumbiu à própria tradição a que
pertencia por não ver mais saída. Ao pensar na leitura de Heidegger, parece que sair disso só
foi possível porque ele efetivamente resgatou novos sentidos às palavras, recorrendo às suas
etimologias, deslocando os significados comuns e os transformando, mudando assim a
imagem e o sentido. Desta forma, ele dá a ver que fazer novo uso da poesia se relaciona com
torcer os usos habituais da linguagem. E de acordo com isso, Trakl só passa a ser lido como a-
histórico se se entende por História a representação do passado. Como diria o filósofo, “Se
por história entende-se apenas ‘historiografia’, representação do passado, então Trakl é
mesmo a-histórico.” (HEIDEGGER, 2012, p.67). A proposta de linguagem de Heidegger
prescinde, portanto, de fazer um novo uso da História, e a transformação desta História, que
se atrela à representação do tempo retilíneo e cronológico, virá também de um novo uso da
linguagem. Mudar a concepção de entardecer é também transformá-lo em um tempo de
transição, em um “dar passagem”. Heidegger deu outra leitura ao “Ocidente” de Trakl e aos
crepúsculos presentes em sua poesia, e seu método de análise leva a crer que estar a caminho
da linguagem é estar em um caminho que necessariamente passa pelo poético. Melhor do que
dizer que seria a passagem do poético para o filosófico, talvez fosse dizer que ele se dá na
poesia e se abre para a filosofia, para o pensamento filosófico, mostrando que a poesia sempre
foi a base do caminho da filosofia, desde os gregos. Afastando-se dos significados prováveis
que seriam transmitidos do poema, a leitura de Heidegger constrói um pensamento filosófico
a partir da poesia. No entanto, um ponto que pode ser colocado em questão é que tudo indica
que ele construiu um novo dito em cima do que foi dito, ele operou com o sentido, apenas
com significados, não atentando para não ditos que pudessem retorcer o sentido do poema em
sua estrutura mesma. Talvez porque a estrutura mesma do poema não permite esta abertura,
não precipita uma tensão entre significante e significado abrindo-se para não ditos que
96

poderiam haver; uma tensão entre o que foi dito e o que, por uma abertura advinda da própria
estrutura do poema, se apresentaria, não estando dito, como possibilidade de ser dito.
Diferentemente disso, o filósofo extraiu da poesia de Trakl uma mudança incidida na ordem
do significado: o não dito não veio das próprias fissuras do poema, mas de uma interpretação
hermenêutica de Heidegger que atribuiu novos sentidos ao que já havia sido dito. Assim, o
suposto “não dito” que Heidegger recupera no poema parece ter sido mais uma nova forma de
significar, de dar sentido, do que, a partir das irresoluções existentes no poema, mostrar um
limite da linguagem ou a linguagem em seus limites. Por um lado, pode-se questionar se esta
proposta ainda está presa a uma concepção da língua como sistema de signos que veiculam
significados – ainda que estes sejam novos significados –, que veiculam novas transmissões,
construindo um novo dito em cima do foi que dito para mudar a forma de ver as imagens e
assim propiciar novos sentidos. Por este lado, esta proposta ainda está aquém de uma
proposição mais radical que irá pensar a língua não pela transmissão de novas formas do que
é dito, mas por aquilo que a língua não consegue dizer, naquilo que ela não comunica através
dos significados. Por outro lado, a interpretação de Heidegger está implicitamente ligada a um
novo modo de transmissão do passado: não reproduzindo o passado em uma análise à luz do
poema, ele salva o passado de um determinado modo de sua tradição.

3.2 “O Crepúsculo”: o “tempo-agora”

Pode-se especular que a leitura de Heidegger aos poemas de Trakl tenha ultrapassado
a materialidade mesma dos poemas e se colocado a serviço da construção de um pensamento.
Há um crepúsculo, porém, que não aponta para fins nem começos: “O Crepúsculo” de
Lichtenstein – exposto aqui (ver página 48) em uma leitura brevemente enunciada na primeira
seção do segundo capítulo –, em que a percepção do tempo é estendida à alteração na
percepção do espaço, se revela, por sua própria forma, como o mais instigante.
Na seção anterior, pudemos perceber que o cerne da compreensão temporal de
Heidegger é a transição. Mas não uma transição que prescinde de um passado e esteja rumo a
um futuro, mas uma transição que é em si uma abertura, em que passado e futuro não são
entendidos como uma cadeia temporal. Como foi dito, o desprendido que faz o chamado de
um tempo mais cedo, do cedo mais cedo, não está no passado nem no futuro, mas em um
tempo outro. Assim é que o tempo em Heidegger pode ser compreendido como um aberto.
Um aberto que se constitui também da falta, isto é, da possibilidade que há no que teria sido,
97

da potência presente naquilo que não existiu, que existe como ausência – ausência segundo
nossa concepção tradicional, mas melhor seria dizer que existe como possibilidade, como
potência. Neste sentido, o “estar presente” em Heidegger não significa o estar presente
conforme nossa dimensão temporal concebe, não diz respeito ao presente como instante
pontual ou um instante que se atualiza em cada novo instante, como um tempo imediato; ao
contrário disso, é uma ideia que entende uma dimensão dilatada, ampliada, em que formas de
temporalidades podem coincidir a partir do que poderiam ter sido. Não há, então, uma
concepção estanque entre passado, presente e futuro, mas sim é um presente que conjuga
todas as formas de tempo estando em termos de uma reivindicação, de uma escolha, de uma
decisão, a partir das possibilidades que estão em aberto.
Assim como Heidegger, Benjamin, como já foi exposto no capítulo um, foi um grande
crítico da concepção tradicional de tempo. Apesar de ser possível uma aproximação entre os
dois, e Agamben a faz de uma maneira ímpar, identifica-se que uma leitura de “O
Crepúsculo” poderia estar mais próxima da acepção benjaminiana do que da heideggeriana,
porque se considera que os versos deste poema estariam mais próximos de serem
compreendidos como alegoria de um Jetzt-Zeit, como se cada fragmento retesse uma imagem
que saltasse no tempo, não representando nem o presente nem o passado, nem como se o
passado lançasse luz sobre o presente, mas estando paradoxalmente entre os dois momentos
ou entre todos os tempos, saindo de uma linha cronológica, colocando-se fora do tempo
cronológico. Por isso, o objetivo aqui não será uma imersão na filosofia heideggeriana. Um
estudo fidedigno sobre a relação de reciprocidade em que estão o ser e o tempo em Heidegger
demandaria outro trabalho que se debruçasse tanto na dimensão ôntica quanto na ontológica
do eixo de seu pensamento, o “ser para a morte”.
O crepúsculo é um elemento literário importante na poesia expressionista alemã: foi
usado no título da primeira antologia de poemas, Menschheitsdämmerung [Crepúsculo da
humanidade], organizada por Kurt Pinthus em 1919, compondo outra edição, no ano seguinte,
em uma editora maior, a Rowohlt Verlag; além desta antologia, há vários poemas, sobretudo
de Trakl, em que Dämmerung aparece desde o título. Além disso, outros importantes
crepúsculos já haviam explodido na Alemanha: O Crepúsculo dos Deuses
[Götterdämmerung], a famosa ópera de Wagner que foi repercutida ao final do século XIX. A
catástrofe e o fim do mundo vinculados à mitologia já se faziam presentes deste então. Anos
depois desta ópera, teria a publicação de O Crepúsculo dos Ídolos – Ou como filosofar com o
martelo, quando Nietzsche romperia com Wagner, atestando que esse teria se tornado
decadente, submetido ao cristianismo redentor, não sendo mais a expressão trágica do
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dionisíaco na modernidade, da qual Nietzsche nutriu profunda admiração em O Nascimento


da Tragédia; não sendo mais um músico crítico perante a modernidade, mas o grande
redentor do cristianismo na arte ocidental, revelando sua decadência. A antologia de Kurt
Pinthus teve um subtítulo que, inclusive, alude a Wagner: Symphonie jüngster Dichtung
[Sinfonia da Nova Poesia]. Para além disso, o crepúsculo já era um elemento do romantismo,
lembrando que “os românticos eram definidos imageticamente como crepusculares, por
retratarem a passagem do dia à noite nas pinturas românticas” (HUCH apud CALIOLO, 2007,
p.55)
Os poemas de Lichtenstein foram publicados a partir de 1910 na revista Der Sturm e,
de 1912 em diante, na Die Aktion, paralelamente em que cursou Direito em Berlim, com pós-
graduação sobre legislação teatral, em 1913. Como para os outros, seu destino seria a
convocação obrigatória à guerra: serviu em Munique, em outubro de 1913, e morreu um ano
depois. Seus poemas foram destruídos durante a Segunda Guerra, com exceção de quatro
cadernos manuscritos que foram doados à Universidade de Berlim pela esposa de um amigo.
Em carta ao poeta, um amigo seu, o ensaísta Alfred Lemm, teceu a importante reflexão sobre
Lichtenstein:
Como um possesso, ouvias a mais leve brisa ranger todo o edifício do
mundo. Gritavas a sua desproporção com perversões, manicômios,
anatomias. Pintavas amplamente a sua distorção e o seu absurdo a
partir do cotidiano mais cinzento e amarelado, de cenas de família, de
tardes de domingo. Vingavas a tua dor amalgamando-a em palavras
que atiravas à cabeça do despreocupado burguês, fazendo-o acordar
[...]. Os versos não te saíam ligados em goetheana harmonia, mas
entrechocavam-se uns nos outros. Do mesmo modo que neste tempo
de ausência de Deus, no qual desapareciam as fronteiras entre as
coisas, o preto e o branco jazem lado a lado numa imoralidade sem
opções [...]. 38

O poema de Lichtenstein, à semelhança do que poderia ser uma exposição imagética a


partir de palavras, denota bem um ritmo em que forma e sentido não coincidem, em que o
leitor é retirado de qualquer zona de conforto e inserido em um desfilar de imagens que são
jorradas. Tal como fazia Baudelaire, parece que Lichtenstein também escrevia para um leitor
disperso, capaz de inserir-se na própria condição do choque. Como disse Alfred Lemm, “os
versos não te saíam ligados em goetheana harmonia, mas entrechocavam-se uns nos outros”.
Por um lado, os versos de “O Crepúsculo” podem ser tidos como golpes, no que são
inesperados, imprevisíveis, na sequência e no modo como aparecem, solapando toda
expectativa de um sentido que fosse ser construído. As imagens descritas de forma desconexa
38
“Almanach der Neuen Jugend”, 1917. In: Gesammelte Gedichte, ed. por Klaus Kanzog, Zurique, 1962 apud
BARRENTO, op. cit., p.297.
99

formam toda uma constelação do choque, como efeitos deste novo modo de existir no novo
mundo. Todavia, pode-se questionar se esta possível exposição do choque vem como grito,
como identificou Lemm. É certo que há uma referência a grito no poema, no verso “Cães
praguejam, carro de bebê grita.” [Ein Kinderwagen schreit und Hunde fluchen.]. Mas é um
grito que está amortecido, porém, em uma linguagem monótona da indiferença, como se a
indiferença de uma repetição automatizada de horrores fosse já a denúncia deste poema.
Dos poemas vistos até aqui, “O Crepúsculo” seria o mais antipoético. Já no princípio,
ele quebra com a expectativa de ser um poema romântico que exporia o pôr do sol, ou, na
extremidade oposta a isso, como seria esperado de um poema expressionista, de apresentar o
crepuscular do mundo, como se este estivesse chegando ao final. No começo do primeiro
verso, com o adjetivo “dicker” [gordo], ele destrói a visão romântica ao começar com “um
rapaz gordo”. Logo em seguida, o vento, que já foi a favor de muitas árvores em muitos
poemas românticos, tornou-se presa de uma árvore nesse. Continuando, imediatamente no
verso seguinte, o céu esperado no entardecer possuiria cores, mas este céu, no entardecer,
parece que ficou pálido: “Der Himmel sieht verbummelt aus und bleich,/Als wäre ihm die
Schminke ausgegangen”, que literalmente poderia ser “o céu parece perdido e pálido, como se
sua maquiagem tivesse saído” [traduzido por Barrento como “o céu, de ar tresnoitado e de
tom vago/ Parece que tirou pintura, a medo.”, ajustado para rimar com o segundo verso do
quarteto]. E a extensão disso é o palhaço, que por suposto seria maquiado e alegre, mas aqui
ele aparece “cinzento” [Ein grauer Clown].
Além de quebrar com a expectativa relativa à semântica esperada pelo título, ao longo
dele não há o recurso da metáfora como formadora de sentido. Ele não vai para o reflexo
direto das coisas, representando-as tal como as significamos, mas para o reflexo distorcido.
Há quase um tom irônico no modo de ver e perceber o mundo e na transmissão desta
experiência. Se estamos na rua e vemos um carrinho de bebê, mas não o bebê, e ouvimos um
grito, sabemos que é o bebê que está dentro do carrinho e que está gritando. Mas Lichtenstein
escreve o barulho que os olhos enxergam: o barulho vem do carrinho, que está ao alcance dos
olhos, então é o carrinho que grita. A estranheza do poema vem também disso que chega a
possuir um tom cômico. Referir-se às coisas estranhamente se atrela, com isso, à sensação de
como o cômico é experimentado como trágico e de como o trágico é experimentado como
cômico. Diferentemente dos outros poemas, não há um lirismo nesse, não há um eu, não há
uma organização em torno de um sujeito lírico, não há subjetividade. Há, ao contrário, a
imbricação e, até mesmo, a indistinção, entre sujeito e objeto. A preposição não é empregada
relacionada a um lugar, “em um lago”, mas a um instrumento “com um lago”. O lago vira
100

objeto, vira um brinquedo. Vemos com isso que há um intercâmbio entre sujeito e objeto: se
uma criança brinca com um lago, então o lago pode estar nivelado a sujeito. Se um cavalo
tropeça em um seio, ou em uma dama, como no original, é como se o cavalo fosse uma pessoa
que tropeça na outra. Há um pareamento do objeto com o sujeito ou uma inversão em que o
humano é nivelado à coisa ou a coisa ao humano, e, no caso, nivelado também ao animal e
vice-versa, havendo, portanto, uma coisificação e uma animalização do humano e uma
personificação das coisas.
Nele podem ser vistas evidências da crítica mallarmeana à autonomia da arte, contra
todo lirismo e elevação que colocassem os versos em uma expectativa de revelação. Contudo,
diferentemente da maioria dos modernos, os indícios desta crítica não aparecem atrelados a
uma crise de verso, o que atesta mais ainda a sua peculiaridade. O enjambement, por exemplo,
um dos recursos mais utilizados pelos poetas modernos, não está presente em nenhum
momento neste poema. Cada verso pode ser considerado autossuficiente e pode ser lido de
forma autônoma, uma vez que as pontuações não reivindicam uma leitura que lance um verso
no outro nem tampouco, como seria o contrário de uma leitura que fosse pelo enjambement,
há a formação de uma unidade semântica. Ou seja, aqui, o enjambement não é o elemento que
faz com que o poema escape de um sentido fechado, escape de uma transmissão de sentido
como em uma linguagem comunicativa. Em termos estruturais, a questão reside neste
paradoxo: ele obedece a um padrão clássico em termos formais, é um soneto com
decassílabos, possui métrica, rima simples em cadência alternada, em que os primeiro e
terceiro versos dos primeiro e terceiro quarteto são monossílabos, mais fracos, átonos, e os
segundo e quarto são mais fortes, tônicos. Mas, apesar de ser clássico na estrutura, ele rompe
com toda expectativa de um poema canônico e, ao mesmo tempo, de um poema moderno.
Acredita-se que “O Crepúsculo” permite outra leitura até então diferente das tecidas
até aqui, tanto da leitura de Heidegger a Trakl quanto das leituras dos outros poemas
mostrados ao longo desta dissertação, pois, na própria linguagem, este crepúsculo subverte
toda concepção de contínuo, de linear, de retilíneo e de sentido a ser concatenado e fechado.
No poema não há começos nem fins, não há uma busca por algo perdido, nostalgia ou tom de
perda: há versos como golpes que podem, cada um, ser estilhaços fixados como uma imagem
alegórica. Eles escapam ao fluxo contínuo de qualquer possibilidade de encadeamento de
sentido ou de narrativa à medida que fixam imagens sem uma conexão prévia ou necessária,
retendo-as. Para além de um registro, “O Crepúsculo” é ao mesmo tempo o expoente do
choque e a sua denúncia. É a percepção desencaixada de tempo e de espaço e a renúncia em
tentar encaixá-los. É o crepuscular de todo sentido, de toda ordem, em que a rima, aqui, talvez
101

não reforce senão essa previsão de repetição do absurdo, funcionando não como acabamento,
mas como um anúncio do nonsense já automatizado, que se repete como um deboche,
esvaziado de qualificação. Ele se utiliza da métrica e da rima como se as tivesse manipulando,
não em prol de obedecer à regra, mas com uma técnica que agora já está a serviço do poeta e
não mais o rege. Talvez, a forma nele não se mostra como salvação, mas como um elemento
que deve ser visto não sem ironia, ou, no mínimo, que a escolha por um uso canônico da
forma não seja solucionada como salvação, já que nada no poema indica isso.
Como foi enunciado no capítulo anterior, até pode haver semelhanças deste poema
com o “Fim do Mundo” de Van Hoddis. O estilo de encadeamento, por exemplo, o poema
fechado, composto por frases curtas e concisas, em que cada verso termina com um ponto
final. Mas ele se mostra diferente na medida em que nenhum desses recursos aponta para uma
revelação catastrófica ou para uma evidência anunciada desde o título. Os versos de “O
Crepúsculo” possuem a mesma estrutura gramatical, então o paralelismo em sequência tende
a uma monotonia na leitura, com todo começo iniciado por “Ein” [Um], dando processo a
uma descrição repetitiva, em série, de cenas incoerentes, em um paralelismo a partir de frases
curtas sempre em constante mudança, mas em mudanças desinteressantes, que nada revelam
senão uma justaposição de performances nonsense impossíveis de acontecerem, ao contrário
do de Hoddis, em que as imagens referem-se a elementos reais e vão coincidindo com um fim
destruidor. O caos presente no poema de Hoddis alude exatamente ao sentido de seu título,
mas os versos de Lichtenstein não se colam a um sentido tradicionalmente pressuposto do que
esperaríamos por crepúsculo. Quando este poema apareceu no capítulo anterior, foi dito que o
seu título não teria sido dado à toa, já que crepúsculo é o momento do pôr do sol e, no outono
europeu, é o período mais longo do entardecer, em que a transição da passagem do claro do
dia para o escuro da noite não é bem definida, mas em gradiente, em “tom vago”, como diz no
poema. Levando em consideração a denominação alemã, ele poderia remeter, inclusive, para
o amanhecer, cujo lusco-fusco refere-se à sensação incômoda da incidência de luz, que pode
acontecer nos dois momentos. Mas vimos que “O Crepúsculo” não representa o pôr do sol e,
com relação à transição (do dia para a noite, ou do período do alvorecer), a questão mesma do
poema não é a transição do tempo, mas a indefinição que se mostra muito mais como uma
alteração no espaço. Não há a passagem de um estágio temporal para outro, ou a superação de
um pelo outro. A indefinição do tempo, em um estágio não definido como uma palidez (“O
céu, de ar tresnoitado e de tom vago/ Parece que tirou pintura, a medo”) são os dois estágios
de loucura e de realidade em que o poema parece estar ao mesmo tempo.
102

Se há promessa ao que virá, em uma leitura heideggeriana “O Crepúsculo” poderia


indicar que tal promessa não viria senão de um tempo e de um espaço indefinidos e
transitórios, que acolhessem a indefinição e a transição como possibilidades de dar passagem.
Todavia, em nenhum momento há indicativo de promessa no poema, ou algo que nos faça
supor isso. A transição e a indefinição não apontam para começos e, como foi colocado em
questão, restituir ou recuperar novos significados dependeria de uma abertura que estivesse
constituída no próprio poema. Além disso, atribuir sentidos poderia tender para o
estabelecimento de uma transmissão. E Lichtenstein não comunicava. É sem canto e sem
lamento que a monotonia repetitiva aparece sem qualquer pathos, sem qualquer elevação, sem
qualquer alusão à metafísica. Ele se coloca fora do tempo cronológico e fora do tempo da
eternidade.
Como Heidegger reivindicaria, uma mudança na linguagem estaria vinculada a uma
mudança na forma de concepção do tempo e vice-versa. Abraçando justaposições e
entrecruzamentos não passíveis de nexo, Lichtenstein subverte a noção de continuum no
tempo mesmo da linguagem tradicional representativa, canônica, linear. Talvez, romper o
tempo retilíneo da/na linguagem seja mesmo uma forma de relacionar-se no/com o tempo em
sua historicidade, apropriando-se dele, servindo ao apelo do “tempo-agora”. Além disso, não
há um choro pelo Deus ausentado, um lamento pela perda, nem ânsia por um mundo
idealizado, o que denota que, além de ele romper com o tempo cronológico, não há tampouco
uma referência à tradição platônica, não há um ideal de salvação.
Em O homem sem conteúdo (2012b), no capítulo sobre “O Anjo Melancólico” de
Benjamin, Agamben faz referência a algumas proposições de Kafka sobre o Juízo Final: “‘Há
um ponto de chegada, mas nenhum caminho; o que chamamos de caminho não é senão a
nossa hesitação'. E: 'É somente a nossa concepção do tempo que nos faz chamar o Juízo
Universal com o nome de último juízo: em realidade trata-se de um estado de sítio
(Standrecht)'” (AGAMBEN, 2012b, p.181). A partir disso, vemos que em Kafka o juízo final
não está inscrito na ordem cronológica, em um caminho que se direciona para uma saída. A
passagem de Kafka mostra que o que faz com que a nossa concepção de tempo chame de
Juízo Universal o último juízo é a crença de que a redenção está resguardada em um futuro.
Em Ideia da prosa (2012a) este tema retorna em "Ideia do juízo final", através da
imagem de um julgamento em que Deus ocupa todos os lugares e se reveza entre as cadeiras
de juiz, réu, promotoria e defensoria. O culpado senta-se na cadeira do juiz para declarar
aberta a audiência, mas logo depois se posiciona no lugar da promotoria e segue se revezando
entre as cadeiras que compõe o tribunal assumindo os papéis de réu, defensor, juiz e promotor
103

até que, no segundo parágrafo, sabemos que a identidade desta figura que até então foi tratada
como “o culpado” é Deus. Trata-se, então, do julgamento de Deus por ele próprio. E o
julgamento segue ininterruptamente, mesmo com os homens pouco a pouco esvaziando a sala,
mesmo com a sala do tribunal já se desintegrando, tomada por teias de aranha e bolor. O Juízo
Final é o processo no qual Deus se ocupa de seu próprio julgamento. Mas este juízo não está
na ordem de uma dimensão histórica temporal, mas no modo como se faz a experiência da
linguagem. Agamben diz: "Ele é, antes, um juízo sobre a própria linguagem, que, na
linguagem, elimina a linguagem da linguagem" (AGAMBEN, 2012a, p.95). Deus e
linguagem estão, portanto, equiparados. O que se subverte com esse revezamento no tribunal
de julgamento da linguagem é a própria imanência das funções de significante e significado,
ou seja, sua função comunicativa. É assim que este juízo é, antes, um juízo sobre a linguagem,
em que o que está em questão é a implosão da ideia de linguagem como instrumento de
comunicar. A linguagem que se assume como face de Deus não é mais responsável pelo
julgamento do homem, pois o próprio julgamento perdeu sua função, uma vez que não há, no
final, uma sentença. É um julgamento que não pune ou sentencia, que jamais chega ao seu
objetivo, porque não há nenhum objetivo em jogo. Não é mais o juízo final que se adia, mas a
própria sentença que permanece suspensa. Esta ideia vai ao encontro do que Benjamin falaria
no ensaio “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” em Escritos sobre
mito e linguagem (2011): uma “língua pura”, ou seja, aquela que elimina a ideia de linguagem
como meio de comunicar algo.

3.3 Kafka – poeta – expressionista?

Se pensarmos em um nome que retorna nos pensamentos de alguns dos filósofos que
foram utilizados aqui, como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Hannah Arendt, como
expoente de uma escrita que rompeu com todo modo tradicional de conceber o tempo,
seríamos remetidos imediatamente para Franz Kafka. Há autores que consideram a literatura
de Kafka como expressionista, ou a aproximam de características do expressionismo.
Todavia, esta aproximação sempre vem definida pela diferença, pelo que a diferencia da
produção literária expressionista. Marion Fleischer, em “A realidade precisa ser criada por
nós: rumos da prosa expressionista alemã” (2002), menciona-o, brevemente, ao final de seu
artigo, iniciando com a seguinte ressalva: “Franz Kafka pertence à geração dos
expressionistas no mais amplo sentido, no sentido da contemporaneidade, mas não pode ser
confinado nos limites relativamente estreitos que cercam o conceito ‘Expressionismo’” (2002,
104

p.156). O único aspecto em comum que a autora aponta é a dissolução das formas tradicionais
presente em suas narrativas, mas que só inicialmente se assemelharia aos procedimentos dos
expressionistas, pois, para ela, Kafka logo transcendeu concepções estéticas que um dia
possam ter norteado sua obra (FLEISCHER, 2002, p.156). Theodor Adorno, em “Anotações
sobre Kafka”, tece reflexões entre o escritor tcheco e o expressionismo em geral, em sua
extensão ao teatro, à pintura e, pontualmente, à literatura, e também evidencia diferenças entre
eles (1998, pp.239-271). Günther Anders, no subtítulo “Kakfa não se ‘expressa’ mais”, do
terceiro capítulo de Kafka pró e contra, discorre, levando em conta o conceito
“expressionismo”, sobre o motivo pelo qual ele não caracteriza Kafka como expressionista
(2007, pp.82-86). Nesta esteira, é preciso perguntar: o que faz de Kafka um expressionista?
Além disso, haveria um Kafka poeta?
Como Fleischer sublinhou, a delimitação pelo tempo parece ansiar por uma
aproximação entre Kafka e os expressionistas. Além de escreverem praticamente no mesmo
período cronológico, frequentavam círculos próximos, partilhavam inclusive os mesmos
amigos e editores, como Max Brod, Kurt Wolff, Franz Werfel, e também escreviam em
alemão, o que se faz importante ressaltar, pois partilhavam elementos comuns de quem
pertencia a uma cultura judaica assimilada, ou não, à alemã. Mas, se naquilo que os aproxima,
há sempre uma diferença, faz-se indispensável analisar uma declaração que atesta uma
opinião pessoal, aparentemente, mas que pode ser desdobrada em compreensões que mostram
quão diferentes são Kafka e Else Lasker-Schüler:
Não suporto os poemas dela. Sempre que os leio, sinto apenas tédio,
devido ao vazio, e repugnância em face do espalhafato artificioso.
Pelas mesmas razões, também sua prosa me causa aversão, pois nela
agem indiscriminadamente os espasmos do cérebro de uma excêntrica
mulher da metrópole (CANETTI, 2011, p.98).

Lasker-Schüler, que circulava extravagante pelos cafés de Berlim, foi relatada não só
por ele como “excêntrica”, mas, na contramão da opinião de Kafka, costumava ser elogiada
pelos poetas expressionistas, como já foi dito anteriormente. Se ele disse não suportar os
poemas dela “devido ao vazio”, talvez fosse porque o que eles expressavam era mesmo um
vazio. Um vazio afogado em um “espalhafato artificioso” que, por suposição, poderia talvez
se confundir com o lirismo específico do qual fazia uso: os temas religiosos do judaísmo, o
canto à Terra Prometida e os elementos amorosos – sobretudo direcionados a Gottfried Benn.
Todavia, os temas religiosos também tiveram lugar em outros poemas expressionistas, como
vimos, caracterizados mais por um pathos do que por uma sobriedade.
105

Haveria muitos poemas de Lasker-Schüler que poderiam servir para entender a


sensação de Kafka (“tédio, devido ao vazio” e “repugnância em face do espalhafato
artificioso”), mas a distância dela para ele, além de constatada pelo próprio relato desse, pode
ser vislumbrada em apenas algumas estrofes. Concentrando-nos nos poemas traduzidos por
Claudia Cavalcanti e por João Barrento, temos os seguintes títulos em ordem cronológica:
“Fim do Mundo” [Weltende], de 1905; “Minha canção de amor” [Mein Liebeslied] e “Uma
canção de amor” [Ein Lied der Liebe], de 1910; “O meu povo” [Mein Volk] e “A Giselheer, o
rei” [Giselheer dem König], de 1913; “Puro Diamante” [Lauter Diamant], de 1914;
“Despedida” [Abschied] e “Uma canção” [Ein Lied], de 1917. Considerando que o
testemunho de Kafka data do início de 1913, os cinco primeiros poemas poderiam ser aqui
expostos. Todavia, os dois de 1910, exatamente como evidenciam os títulos, reduzem-se a
dísticos de amor, o que certamente já os distancia da escrita de Kafka. Restam, assim, o
primeiro e os dois de 1913. O último, em tercetos, contém o nome de um rei da Borgonha do
século V no título. Inicia com um eu lírico solitário (“Estou tão só/ Se encontrasse a sombra/
De um doce coração.”), que teme o lugar ao qual pertence (“Tenho medo/ Da terra negra?
Como ir embora?) e parece querer dela fugir ou desaparecer (“Quero ser enterrada/ Nas
nuvens,/ Ali onde o sol cresce,”), terminando solitário e clamando por amor assim como
começou (“Amo-te assim!/ Também me amas?/ Diz, então...”).39 A fuga que se sugestiona no
poema, se partirmos da concepção judaico-cristã que atrela céu à morte, e à literalidade do
verbo begraben, “enterrar” ou “sepultar”, pode ser entendida como a própria morte. Este
aspecto pode ser encontrado de alguma forma na análise que foi feita sobre o poema Fim do
Mundo. Mas assim como nesse, pode-se denotar neste abaixo também um lamento, e a mesma
triste canção continua ecoando em “O meu povo” [Mein Volk]:
Apodrece o rochedo
De onde provenho
E a quem entoo os meus cânticos sagrados...
Subitamente, caio do caminho
E começo a brotar interiormente
Para a distância, só, sobre calhaus de lamentação,
Em direção ao mar.

Jorrei-me para tão longe


Do mosto mal fermentado
Do meu sangue.
E sempre e ainda o eco
Dentro de mim,
39
“Uma canção” [Ein Lied], 1917. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2000. Versos no original: Ich Bin so allein/
Fänd ich den Schatten/ Eines süβen Herzens.// [...] Ich fürchte mich/ Vor der schwarzen Erde./ Wie soll ich
fort?// Möchte in den Wolken/ Begraben sein,/ Überall wo Sonne wächst,// Liebe dich so!/ Du mich auch?/ Sag
es doch...
106

Quando, voltado para Oriente,


O corpo de rochedo apodrecido,
O meu povo,
Lança um grito terrível para Deus.40

Mais que judia expatriada, Lasker-Schüler se reconhecia, antes, como judia, sentia-se
pertencente a uma cultura, ainda que essa estivesse se desintegrando. Ela não se lamentava
por ser judia e não se reconhecer como tal: ela se lamentava como judia e pelo povo judeu, do
qual se sentia parte. A questão que se coloca, no entanto, é que ela parece habitar, sozinha, o
Muro das Lamentações, porque seu povo, que já perdeu a unidade, agora “lança um grito
terrível para Deus.” Grito que pode ser de afronta, de revolta, ou de socorro, mas o
significativo aí é a literalidade: um grito terrível que está sendo lançado para Deus. Sinal de
que ele pode estar chegando ao fim. O que se percebe até aqui, portanto, é um mundo que se
fecha em um fim, denotando uma não possibilidade, senão na morte, que aparece no poema
como promessa de plenitude. Um mundo que se fecha e o sentido que se fecha, na própria
escrita, no fim dos versos dos poemas.
Kafka, judeu que não se reconhecia judeu, que não se reconhecia pertencente, que não
se reconhecia pertencente a um povo, nem tcheco nem alemão, não assimilado em cultura
alguma, em lugar algum, apátrida desde a língua:
Como judeu, não pertencia de todo ao mundo cristão. Como judeu
indiferente – pois a princípio o foi –não se integrava inteiramente aos
judeus. Por falar alemão, não afinava a fundo com os tchecos. Como
judeu de língua alemã, não se incorporava por completo aos alemães
da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria.
Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores,
não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês,
não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao
escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém, também não era,
pois sacrificava suas forças pela família. Mas “vivo em minha família
mais estranho que um estrangeiro”(carta a seu sogro) (ANDERS,
2007, p.26).

Apátrida desde a língua, Kafka não indica uma saída, nem na morte: para ele não há
saída, a morte não é plenitude, é a ausência mesma de qualquer possibilidade. Sua escrita não
aponta, não se direciona para: ela mesma é a não-saída. Sua literatura busca sempre, mas não
chega nem aponta saída: está sempre em construção, em uma não-chegada; em anúncios, mas
não em uma chegada. E mais ainda: se a maioria dos poemas vistos indica um sentido

40
“O meu povo” [Mein Volk], 1913. Tradução de João Barrento. No orginal: Der Fels wird morsch,/ Dem ich
entspringe, Und meine Gotteslieder singe.../ Jäh stürz ich vom Weg/ Und riesele ganz in mir/ Fernab, allein über
Klagegestein/ Dem Meer zu.// Hab mich so abgeströmt/ Von meines Blutes/ Mostvergorenheit./ Und immer,
immer noch der Widerhall/ In mir,/ Wenn schauerlich gen Ost/ Das morsche Felsgebein,/ Mein Volk,/ Zu Gott
schreit.
107

estabelecido, Kafka não obedece a qualquer ordem. No movimento de sua escrita parabólica,
os ângulos podem ser interpretados a todo o momento, não se fecham em um sentido, não
rumam para um fim, para um significado assegurado. A obra do escritor praguense desafia a
pensar a forma e a pensá-la como configuradora de sentido. Como Adorno diz, ela é uma
“arte de parábolas para as quais a chave foi roubada” (1998, p.241). Se a parábola servia
como forma de transmissão de ensinamento para a tradição judaica, o enigma que ela assume
em Kafka atesta, pelo contrário, a intransmissibilidade: não mais transmite sabedoria, mas a
impossibilidade da transmissão da tradição (BENJAMIN, 1987, p.148). Impossibilidade que
aparece na inexistência de um lamento, de uma voz que roga. Não há um lamento como há
nos poemas acima: a literatura dele é sóbria, muito diferente destes outros que abraçam um
pathos exacerbado.
Lasker-Schüler parece ter o anseio de resgatar – enquanto indica e lamenta a perda,
enquanto indica e lamenta a ausência, enquanto indica e lamenta o vazio – a agregação, a
realização da imanência, o sólido que garante inteireza, a consistência de um elo, a voz que
chama e reconhece, o canto que evoca o sagrado, o ancoramento em uma terra, em um lugar,
em um povo. O vazio existe como algo que clama a ser preenchido. A poética de Kafka, ou o
que permeia o modo como podemos entendê-lo como poeta, é exatamente o contrário: sua
escrita está a serviço da “desagregação, do insólito, do irrealizável, da inconsistência, da
ausência da voz, do despertencimento, do desancoramento, do vazio, do nada, do espaço livre,
do inacessível, do inapropriável, do assignificante, do afônico, da avocalidade [...]. E em
tensão com eles.” (PUCHEU, 2015, pp.61-62).
Na mesma diferença que, se o fim se configura em Lasker-Schüler com a morte de
Deus, em Kafka o fim se configura no sentido garantido que só se dá na e com a morte. O
sentido garantido é que é a morte. Não a “morte” do Pai que se configura no conflito que o
filho trava com o pai como representação de autoridade máxima, tirânica, absolutista, imbuída
de todos os poderes como um Deus. Esta morte, esta perda, inclusive, apresenta-se não como
um choro final, mas sim no processo do confronto, na tensão. A morte, em Kafka, em sua
literalidade, é que é o fim, o fim mesmo de toda possibilidade. Não o fim de Deus, mas a
morte trágica humana, que também acontece pela existência ainda perene de figuras soberanas
que detêm o poder, como acontece em O Veredicto (1998). Considerado pelo próprio Kafka
como sendo “mais um poema que uma narrativa” (KAFKA apud PUCHEU, 2015, pp.59-61),
este texto, que parece ser uma carta, mas que, não sendo uma carta – uma vez que não chega
ao destinatário – assume a forma de um veredicto que atesta a extensão maior do
108

incomunicável, do intransmissível, evidencia então o lugar do poema, enquanto lugar do


incomunicável, do incomum.
Atestando que a “única comunicação passível em nosso tempo é a da palavra que
aniquila a vida em nome da morte, para a qual não há palavras possíveis” (PUCHEU, 2015,
p.79), o transmissível parece estar somente a serviço daquilo que se aniquila, que se destrói. E
assim este texto se faz crucial no modo como podem ser notados o fim e a morte: o fim do
veredicto, do texto mesmo, da narrativa, coincide com a morte de Georg, que cumpre a
literalidade da ordem tirânica do pai: “Eu o condeno à morte por afogamento!” (KAFKA,
1998, p.24). Se, durante todo o texto, os enunciados funcionaram como fantasmagorias, como
figura do enigma, o lugar da ambiguidade, da interpretação, da negatividade, isso cessa no
fim, com o veredicto, que realiza a morte: o único sentido assegurado que finda, por sua vez,
toda possibilidade. A única coisa comunicável, transmissível, neste caso, é aquilo que
certifica a morte, é a morte mesma, que impede toda a possibilidade de narrar, que garante a
impossibilidade de qualquer enunciação. Quando há morte literal, há morte do enigma, há a
morte da linguagem: só aí o significado cola-se à enunciação, só aí o sentido ajusta-se ao
veredicto: o veredicto é não-saída, nem pela linguagem. Fim da leitura, fim do texto, fim da
vida: os três coincidindo naquilo que atesta o limite irremediável. E é no fim, neste fim, que
Kafka incide sua crítica de forma mais literal, revelando o que é possível diante de poderes
tirânicos. É nesta literalidade, que aí só acontece no fim, que a força de sua crítica ganha
tamanha – e assombrosa – potência. O sentido literal assume uma forma perturbadora.
Com relação a estes poderes instituídos, divinos ou não, Kafka não chora por eles;
pelo contrário, ele revela tanto que eles não acabaram, quanto as consequências decorrentes
de suas existências. A impotência que aparece em Kafka, como o suicídio de Georg – que
morre oprimido e impotente em relação ao pai –, não é por, supostamente, eles não existirem
mais, não é o vazio pela ausência, mas é por continuarem existindo, transfigurados em
diferentes e diversas instâncias. A tradição que morre é só aparente: o poder do divino se
transfigura em máquina, a máquina burocrática do Estado moderno, a lei, e assim o poder só
se desloca e se perfaz.
Como bem colocou Modesto Carone, “por meio de uma prosa límpida, oriunda da
linguagem de protocolo, Kafka narrou o insólito” (2014, p.48). Desta forma compreende-se
melhor o que ele chamou de “espalhafato artificioso”, de “tédio, diante do vazio”, porque a
escrita de Lasker-Schüler ainda chora e reclama por um elo, por uma regência, por uma
tradição, por uma possibilidade de permanência, que só seriam garantidos, no entanto, com a
continuidade da existência de um poder maior, soberano, divino. O fim disso, para ela,
109

significa o vazio, a impossibilidade da vida, a morte, e não o contrário. A crítica dela,


impotente, afoga-se em um vazio existencial. O canto que ela entoa ainda são cânticos
sagrados (“Apodrece o rochedo/ De onde provenho/ E a quem entoo os meus cânticos
sagrados...”). Em Kafka, o canto é uma questão incólume:
O que interessa a Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre
em relação com sua própria abolição, som musical desterritorializado,
grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à fala,
sonoridade em ruptura para desprender-se de uma cadeia ainda muito
significante. No som, conta apenas a intensidade, geralmente
monótona, sempre assignificante: assim, no Processo, o grito em um
único tom do comissário que se faz fustigar ‘não parecia vir de um
homem, mas de uma máquina de sofrer’. Na medida em que há forma,
há reterritorialização, mesmo na música (DELEUZE; GUATTARI,
1977, p.11).

A música não aparece em Kafka. O que aparece é a possibilidade ou a iminência da


música, a não chegada de uma música; uma música que não se realiza. O que aparece é um
resíduo que não se articula, grunhidos, balbucios, resmungos, ruídos. O canto em Lasker-
Schüler, os cânticos sagrados que ela entoa, são enunciados e direcionados: ao rochedo que
apodrece, ao lugar de onde provém, ao lugar a que pertence, ao lugar que está se desfazendo,
se desintegrando. São direcionados a fim de uma reterritorialização, enquanto canto, na forma
que ele assumiu no poema. O canto assume, portanto, uma forma de expressão, assume um
significado (algo que se perdeu) e se fecha em um sentido (a desconfortável perda, somente).
Ao contrário disso, como dizem Deleuze e Guattari, em Kafka há uma “desterritorialização da
linguagem” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, pp.31-32).
Pode-se compreender que os filósofos partem da acepção de que uma função
específica da linguagem seria conferir integração, acolhimento, possibilitando, assim, uma
sensação de pertença em um território onde os significados estariam restituídos aos seus
signos ou imediatamente identificados a esses. Tal função, “reterritorializadora”, pressuporia,
deste modo, uma atribuição de sentidos que estabelecesse uma asseguração da comunicação,
uma garantia do entendimento de uma mensagem. No caso do escritor em questão, não ocorre
isso, uma vez que “o som ou a palavra que atravessam essa nova desterritorialização não são
uma linguagem com sentido”: essa passa a ser “atravessada por uma linha de fuga”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.32). Em Josefina, a cantora ou o Povo dos Camundongos
(KAFKA, 1991), o que seria, tradicionalmente, um assobio, é desterritorializado: “o som não
se constitui, então, como forma de expressão, mas como uma matéria não formada de
expressão” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.12). Assim é que a saída se configura em uma
não-saída, a busca não aponta para uma possível territorialização: ela anda em fuga, em linha
110

de fuga, que indicia saídas possíveis, mas que não chega e que não sai efetivamente por uma
via estabelecida. O som em Kafka não evoca o lar perdido com a intenção de a ele retornar,
com intenção de pertencimento. Se no som o que “conta é apenas uma intensidade,
geralmente monótona, sempre assignificante” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.11), como
um grito que não parece ser um grito, mas um barulho de uma “máquina de sofrer”, o barulho
que há em Kafka não se assemelha ao barulho de Lasker-Schüler, que é um canto, enquanto
significa, enquanto é designado por metáforas, enquanto designa, enquanto parece um
lamento, enquanto parece um barulho – ainda que um choro – humano. Do mesmo modo que,
se o poema é o lugar onde sentido e forma não precisam coincidir, se é o lugar da hesitação
entre o som e o sentido, o lugar da tensão, da intransmissibilidade, da linguagem que, não
findada em um significado, retorna a si mesma abrindo as possibilidades da crítica, então
Kafka é poeta na medida em que assegura todas estas potências. O poema não possui
propriedade de narrar, pelo contrário, ele abraça a impossibilidade de narrar, abraça a fala
interrompida, abraça a impotência, não conferindo segurança à língua, mas a expondo em sua
estranheza, em sua inarticulação, em sua inacessibilidade, fugindo à linguagem representativa,
essa que é linear, direcionada, que prescinde de um início e de um fim. Sendo assim, tudo isso
que está presente na escrita de Kafka, nessa que ele mesmo chamou de “prosa miúda”
(PUCHEU; TROCOLI, 2014, pp.23-25); nessa que Deleuze e Guattari qualificaram como
“literatura menor” na forma de um apelo à literatura geral, Por uma literatura menor; nessa
que exatamente assim, miúda, menor, inacessível, desarticulada, cheia de grunhidos e
balbucios não harmoniosos, muito longe dos padrões da grande eloquência, mostra-se ainda e
cada vez mais como uma forma de resistência aos poderes instituídos, revelando-se, em sua
impotência, em seus tons baixos, como potência maior; tudo isso faz com que possamos
considerá-lo poeta. Além disso, Modesto Carone se refere a Kafka como poeta em pelo menos
duas ocasiões: no posfácio de Carta ao pai (1997), ao dizer que Kafka “se tornou um poeta
(crítico) da alienação” (1997, p.80) e no posfácio de O Castelo (2008), quando o chama de
“poeta de Praga” (2008, p.353).
Em Conversas com Kafka, há referências, de alguma forma, ainda que breves e ao
longo do livro, a nomes do expressionismo: Franz Werfel; Walter Hasenclever; Georg Trakl;
Johannes Becher; Albert Ehrenstein; Alfred Döblin e até à revista Die Aktion que, todavia, é
mencionada muito rapidamente por Janouch como algo que o pai trouxera a ele, junto com
um bilhete de Kafka por meio do qual lhe comunicava sua ausência – questão cuja atenção do
parágrafo será toda direcionada (JANOUCH, 2008, pp.51-52). Atentando para os poetas,
comecemos por Georg Trakl. É quanto ao suicídio de Trakl que Kafka faz a seguinte menção:
111

“– Ele tinha uma imaginação criativa demais, e por isso não pôde suportar a guerra, que se
originava antes de tudo de uma enorme falta de imaginação” (KAFKA apud JANOUCH,
2008, p.115).
Assim como Lasker-Schüler, Trakl também entoou um canto. Cantou a
desterritorialização, a perda do pertencimento, em Canto do desterrado. Além de cantar o
desterrado, Trakl também cantou “A melancolia” [Die Schwermut], o “Lamento” [Klage], o
emudecimento (Aos emudecidos [An die Verstummten]), todos em 1914, ano em que morre.
Como já foi dito, Trakl não obedece sempre à mesma forma, que varia de poema para poema,
de soneto a versos livres. Mas, conhecido por ser imagético, ele sempre sugere imagens,
forma imagens: ainda que seja uma bela paisagem inicial, um mundo em comunhão,
integrado, que se transforma logo em seguida, de um verso para outro, em pesadelo; ainda que
seja uma imagem deformada, em que as coisas parecem estar fora de lugar, não condizentes
com a realidade. Em Trakl, assim como em Lasker-Schüler, há um choro por um mundo que
foi perdido. Há um eco do mito, de uma tradição, de uma transmissão, de uma integração que
não mais existem. As imagens a que Trakl se remete formam um sentido, assumem um
direcionamento que vai se estabelecendo do início para o fim do poema, assemelhado quase a
uma narrativa, como já foi analisado. E então, nos mesmos pontos que Lasker-Schüler – na
alusão a um pertencimento, no lamento, nos elementos cristãos referidos, nas metáforas, no
resgate de uma integração, na linearidade da escrita etc. – ele não se assemelha a Kafka,
apesar de certamente ele ter uma “imaginação criativa”, como disse o próprio Kafka.
Além de tudo isso, nem um mundo mítico nem o mito aparecem em Kafka como
possibilidade de salvação. Ele não se remete ao mito para resgatar um mundo. Como em O
Veredicto, o poema é o lugar da impotência maior, que não vem como elemento de resgate,
não vem para garantir ou restaurar alguma ordem e integração, não alude a uma linguagem
mítica. Em O Silêncio das Sereias (2002), por exemplo, há um processo de desmitologização
do próprio mito, o qual não aparece como garantia de transmissibilidade. Se no mito há canto,
o elemento que podemos evidenciar deste texto, neste caso, é o silêncio; logo, a
intransmissibilidade. E se Kafka parte de uma fidelidade ao mito de Homero, no início do
texto, isso é desestabilizado no final, com as duas exegeses que marcam a não
correspondência com o sentido do mito tal como está na Odisseia. Ele resgata um passado
para logo mudá-lo, para logo mudar o próprio mito, por meio do jogo de cenas, em jogo de
pontos de vista que a forma de escrita dele permite, não sendo fiel ao passado, não buscando
preservá-lo ou a ele retornar em garantia de um sentido. Em Kafka, as sereias, símbolo mítico
que cantaria por excelência, silenciam: elas dispõem de “uma arma ainda mais terrível que o
112

seu canto... o seu silêncio” (2002, p.104). Como disse Benjamin, “Talvez porque a música e o
canto são para ele uma expressão ou pelo menos um símbolo da fuga.” (1987, p. 143).
A fuga se apresenta de muitas maneiras em Kafka, mas somente na medida em que
assegura uma não-saída. Se a música ou o canto seria uma saída, uma vez que reterritorializa,
por outro lado, o grito, em Kafka, para não se constituir como fuga, talvez fosse um grito
distorcido de sua proveniência em si mesmo, um grito no que parece estar entre o barulho de
um som humano e de uma máquina. Deleuze e Guattari, em nota que compõe uma passagem
citada acima, identificam “aparições múltiplas do grito em Kafka”:
gritar para se ouvir gritar – o grito de morte do homem na caixa
fechada. ‘Bruscamente lancei um grito. Somente para ouvir um grito
ao qual nada responde, tirando-lhe a força, e que, sem contrapartida,
se eleva então sem fim, mesmo depois de ter-se calado...’
(Contemplações). (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.11).

Grito “ao qual nada responde”, grito “sem contrapartida”, grito que “se eleva então
sem fim, mesmo depois de ter-se calado...”. Este grito não visa uma resposta, um resgate; não
busca, porque já não há uma saída, porque já se está sem saída (morto, com a caixa fechada).
É um grito de morte, que não irá alcançar, que não irá se direcionar, e que, no entanto, grita
“só para se ouvir gritar”. Um grito que sabe que não terá um receptor, que não espera, porque
já não há espera. E talvez, por isso tudo, seja este o grito que se eleva sem fim, porque já
nasce sem pressupostos e sem expectativas, porque já está na morte. Grito que, só na morte,
se eleva sem fim, ecoa, porque já não tem nada nem ninguém presente para ouvir. Se em
Kafka há “aparições múltiplas do grito”, se há grito em Kafka, este é um grito solitário, não
direcionado e, já sabido, sem salvação.
O grito foi o barulho mais associado ao expressionismo. No que se relaciona com isso,
vale a pena se debruçar em uma problematização de Adorno:
A questão de resolver a quadratura do círculo e encontrar palavras
adequadas para o espaço da interioridade desprovida de objetos, ao
mesmo tempo que a abrangência de qualquer palavra transcende a
imediatidade absoluta daquilo que deve ser evocado – uma
contradição na qual toda a literatura expressionista fracassou –, foi
resolvida engenhosamente por Kafka através do elemento visual. Este
afirma sua prioridade por meio dos gestos. Somente o visível pode ser
narrado, mas nesse processo o visível torna-se completamente
estranho, transforma-se em imagem, no sentido mais literal da palavra.
(ADORNO, 1998, p.261).

Quando Adorno diz que Kafka resolve “engenhosamente, através do elemento visual,
a questão da quadratura do círculo ao encontrar palavras adequadas, ao mesmo tempo em que
a abrangência de qualquer palavra transcende a imediatidade absoluta daquilo que deve ser
113

evocado”, isso não deve ser entendido como se as palavras de Kafka se ajustassem. As
palavras adequadas são aquelas que, ao contrário, não se reduzem à forma daquilo no qual se
configura. Então, aquilo que é evocado nem mesmo assume, portanto, uma forma única e
rígida. As palavras do escritor praguense evocam enquanto convocam novas formas de olhá-
las, de lê-las, de interpretá-las. Se Adorno diz que a escrita de Kafka é gestual, não metafórica
e não se utiliza de referenciais para aludir a uma imagem nítida, mas sim de um movimento
inexato que chega ao olho, é porque são as distorções da própria imagem que são expostas à
vista, mas logo dissolvidas, implodidas. Cada fragmento delas, não uma imagem única,
escande o tempo, aproxima-o ao foco da visão e ao mesmo tempo mostra o que é, em sua
literalidade, e o que parece ser, devido às formas diferentes que vai assumindo, revelando,
assim, em múltiplos ângulos, uma realidade deformada. A arte de Kafka é este espelho que
propaga os ângulos e as deformidades que deveriam saltar à vista mais rapidamente do que no
tempo do relógio.
Afirmando mais ainda a diferença, o filósofo continua veementemente: “Kafka salva a
ideia do expressionismo não ao se esforçar em vão para escutar os sons primordiais, mas ao
transferir para a literatura os procedimentos da pintura expressionista.” (ADORNO, 1998,
p.261). Poderia se pensar que o expressionismo teria fracassado, para Adorno, porque o olhar
de pânico muitas vezes acabou se petrificando em sonho, “que se deixa apenas falsear”,
enquanto Kafka, ao contrário, faz “imagem enigmática dessa realidade, composta de seus
fragmentos dispersos”? No caso da poesia expressionista, as imagens raramente transcendem
à imediatidade absoluta daquilo que deve ser evocado: elas evocam, somente, não se
dobrando sobre si mesmas. A exceção vista aqui foi “O Crepúsculo”, que apresenta em si
imagens já inarticuladas, que nada evocam, que apresenta uma realidade fragmentada já em
uma deformação presente nas próprias imagens descabidas de nexo. Lasker-Schüler, ao
contrário, e como um exemplo marcante, certamente se esforçou em vão para escutar os “sons
primordiais” e, inclusive aludiu a eles, com metáforas imbuídas de inchamentos, artifícios e
carga afetiva, que não se transcendiam, mas apenas buscavam por uma transcendência. Até
mesmo o grito que comparece nela é um grito direcionado para Deus (“O meu povo,/ Lança
um grito terrível para Deus”). Um grito que é, ele mesmo, um esforço para escutar um som
primordial.
A pintura expressionista mais conhecida, O Grito, de Edward Munch, é o olhar de
pânico e uma boca escancarada de uma esquisita figura humana, aparentemente andrógina,
em um cenário crepuscular disforme. Conforme a continuação da passagem de Adorno,
114

Kafka se relaciona com a pintura expressionista da mesma maneira


que Utrillo com os cartões-postais, que teriam servido de modelo para
suas ruas cobertas de gelo. Diante do olhar de pânico que retira dos
objetos toda carga afetiva, estas ruas se petrificam em algo diferente:
nem sonho, que se deixa apenas falsear, nem macaqueamento da
realidade, mas sim imagem enigmática dessa realidade, composta de
seus fragmentos dispersos (ADORNO, 1998, p.261).

Como a rua, nas palavras-tinta de Kafka, não seria mais uma rua, o grito não seria
provavelmente uma pessoa apavorada com a boca escancarada, ou não somente. O que se
suporia evidente em Kafka, transcenderia para outro algo, compondo a permanente quadratura
do enigma. Talvez, no ponto em que tocou Adorno, o expressionismo, em sua crítica radical
ao racionalismo vigente em detrimento das emoções, tenha muitas vezes se despencado – e se
perdido – em uma irracionalidade desmesurada. Não é à toa que Peter Gay o caracteriza como
“a dança à beira do abismo” (1978, p.12). Talvez tenha mesmo se assemelhado a sonho que,
sim, por ser sonho, às vezes se deixa falsear; talvez as palavras tenham falhado para além de
funcionarem só como um grito; talvez tenham passado tanto da “quadratura do círculo” que o
que só ficou foi uma interioridade desprovida de objetos marcada na tentativa de um grito, na
boca escancarada de um grito que não chegou a se realizar. Todavia, é aí mesmo que Kafka e
os expressionistas se aproximam: em ambos o grito se fez presente como potência, tanto na
boca escancarada que evidencia a possibilidade de um grito quanto nas palavras-tinta de
Kafka que traçam um esboço de um grito que, igualmente, não se realiza. Se em um há um
grito de salvação, ou um grito como tentativa de comunicação, aproximando-se daquilo que
foi dito no capítulo anterior como o que seria um possível monólogo moderno em que o que
há não é um debate, mas um debater-se para falar, e se no outro há um grito que não intenta
comunicar, mas só grita para se ouvir gritar, em ambos, porém, há o grito solitário como
potência. É possível que seja também neste sentido o modo como Adorno concluiu: “Várias
passagens decisivas de Kafka podem ser lidas como se fossem descrições minuciosas de
pinturas expressionistas jamais pintadas.” (1998, p. 261). Há, portanto, um Kafka
expressionista aí, há a potência do expressionismo em Kafka, ainda que o que ele apresente
possa ser caracterizado como um outro expressionismo.
O Homem Grita. Esse é o título de uma coletânea de poemas de Albert Ehrenstein,
sobre a qual Kafka comenta com Janouch: “– Um livro tão pequeno e, dentro, um barulho tão
grande”. E quando Janouch pergunta se ele o conhece bem, responde: “– Bem... – disse dando
de ombros. – jamais conhecemos os vivos. O presente é mudança e metamorfose. Albert
Ehrenstein é da raça de hoje. É uma criancinha perdida no vazio, e que grita.” (KAFKA apud
JANOUCH, 2008, p. 96). Talvez o que incomode a Kafka seja mesmo um grito que finda,
115

porque se direciona, como uma “criancinha perdida no vazio” em busca de salvação. Em


outro caso, ao ver com o jovem amigo uma coletânea de poemas de Johannes Becher, Kafka
emite um interessante comentário que se faz definidor:
Não compreendo esses poemas. Há lá um tal barulho e rumor de
palavras que não se pode sair de si mesmo. Em vez se serem pontes,
as palavras se tornam altas muralhas intransponíveis. Nós nos
chocamos o tempo todo com a forma, tanto que é totalmente
impossível chegar ao conteúdo. As palavras, aqui, não se condensam
para formar uma língua. É grito. Nada mais. (KAFKA apud
JANOUCH, 2008, p. 108).

Becher provavelmente foi o poeta que mais teve repercussão e inserção efetiva na
política, e seus poemas assumiam um tom de conteúdo programático. Não sabemos a qual
coletânea Kafka estava se referindo, mas há alguns indícios, nos poemas que foram
traduzidos, que podem se encaixar em sua declaração. Em “Preparação”, de 1918 – ano em
que terminou a Primeira Guerra –, vejamos alguns dos versos que o compõem:

Oh, Trindade da Obra: Vivência Formulação Ato.


Eu aprendo. Preparo. Exercito-me
...logo os vagalhões de minhas frases se transformarão em inaudita
figura.
Discursos. Manifestos. Parlamento. O brilhante teatro político. O
romance experimental.
Declamar cantos tribunas abaixo.
Humanidade! Liberdade! Amor! 41

Estes versos compõem, cada um deles, uma estrofe dentro do poema, diferenciando-se
do restante que é, entretanto, de estrofes irregulares: a primeira com três versos, a segunda
com dez; sendo que, nessa, o sexto verso está entre parênteses, e o décimo possui,
literalmente, um acréscimo, um parênteses, completando o verso com um pensamento sobre o
42
que acabou de se dizer. Não é comum ver esta liberdade (in)formal nos poemas
expressionistas. Becher ironiza a forma e ironiza, na forma, a política. Essa, que mantém seu
lugar cativo em um palco de improvisações, que trata da sociedade deste jeito, como em um
jogo de experimentações. A pompa formal de conteúdos programáticos que atestava o caráter
tão rebuscado quanto hipócrita tornou-se elemento de deboche, foi retirada de seu pedestal

41
“Preparação” [Vorbereitung], 1918. Tradução de Claudia Cavalcanti, 2000. No original: O Trinität des Werks:
Erlebnis Formulierung Tat.// Ich lerne. Bereite vor. Ich übe mich// ...bald werden sich die Sturzwellen meiner
Sätze zu einer unerhörten Figur verfügen.// Reden. Manifeste. Parlament. Das sprühende politische Schauspiel.
Der Experimentalroman.// Gesänge Von Tribünen herab vorzutragen.// Menschheit! Freiheit! Liebe!
42
Continuação (segunda estrofe): “Eu aprendo. Preparo. Exercito-me./ Como trabalho – ah, apaixonadamente! -/
Contra o meu rosto ainda não plástico:/ Estico rugas./ O Novo Mundo/ (ou seja: o velho, o místico, exterminando
o mundo dos tormentos)/ Desenho nele, o mais corretamente possível./ Penso numa paisagem refletida,
extremamente ordenada, esculpida./ Uma ilha de bem-aventurada humanidade./ É preciso muito para isto. (Ele
também sabe faz tempo).”
116

todo sacralizado e profanada até o avesso da forma. Na primeira linha do poema, Becher já
assinala: “o poeta evita acordes cintilantes” [Der Dichter meidet strahlende Akkorde]. Era
preciso evitar os mesmos acordes que ressonavam no mundo sacralizado da tradição. Era
preciso destituir as cornetas e os órgãos que anunciavam ainda o mundo de veludo da realeza.
E a configuração majestosa sobre a qual se estruturava foi dissolvida, destruída na forma.
No entanto, Kafka estranha as palavras individualizadas, ele esbarra na forma (“As
palavras, aqui, não se condensam para formar uma língua. É grito. Nada mais.”). Que o grito,
enquanto um som direcionado possa parecer para Kafka uma fuga impotente, já deu para
compreender, assim como o otimismo de um Novo Mundo que há em Becher (“O Novo
Mundo/ (ou seja: o velho, o místico, exterminando o mundo dos tormentos)/ Desenho nele, o
mais corretamente possível./ Penso numa paisagem refletida, extremamente ordenada,
esculpida./ Uma ilha de bem-aventurada humanidade”), o vislumbre de um fim “do mundo
dos tormentos” aparecendo como uma “paisagem refletida, extremamente ordenada,
esculpida”. Tudo o que Kafka não faz é formar paisagens ordenadas e esculpidas. Mas, disso,
para a necessidade que ele demanda de formar uma língua, interpõe-se uma distância que
emerge aqui como um paradoxo, se considerarmos sua obra e as críticas que são tecidas a ela,
pelos diversos aspectos já apontados de ela não configurar um sentido, de não comunicar, não
significar, não designar. O escritor está exigindo aí uma forma que transmita necessariamente
um conteúdo, um conteúdo que caiba na forma. É certo que tanto suas narrativas quanto seus
textos em fragmentos não são como estes versos, mas, mesmo sem ser em versos, sua escrita
também não garante transmissibilidade, não garante comunicação, não limita a interpretação.
Seu conteúdo não se ajusta à forma como igualmente não se ajusta à segurança de que seja um
conteúdo determinado. Mas, talvez, seja mesmo a própria alusão a grito que as palavras
tenham conferido, o que pode ter se constituído uma barreira para ele. Se há alguma função
ou intenção nos versos de Becher, talvez seja exatamente esta: estilhaçar a forma, causar
estranhamento, não obedecer a uma escrita linear, distorcer qualquer narrativa, não se
assemelhar a um romance. Contudo, uma vez identificados como grito, por Kafka, muito
provavelmente são considerados versos-grito que gritam para algo ou para alguém, que
buscam um ouvido, que visam um alcance – e, portanto, não passam de grito, de canto, de
música. Teria sido o expressionismo uma boca que escancara e se fecha em um grito que só
existiu na iminência, só existiu enquanto potência, só existiu na possibilidade de?
Mesmo sendo diferente do tom dos primeiros poemas analisados, este último, de
Becher, também teria perdido sua força, porque, por ser só grito que almejava ser escutado,
acabou se tornando uma alta muralha intransponível para a ressonância de alguma
117

mensagem? Kafka teria estranhado o incomum na forma? Logo ele, a quem o incomum, o
incomunicável, o intransmissível, comparecem como elementos decisivos de sua escrita?
(PUCHEU, 2015, pp.70-71). Talvez seja muito radical, e pobre para o expressionismo,
apostar na leitura destes elementos como algo que tenha retirado toda sua força. Como
Adorno disse, Kafka era filho do iluminismo, a razão estava por trás de sua obra (ADORNO,
1998, p.263). Logo, se ele escrevia a partir de imagens, não era para formar um significado
através delas, mas para instigar a interpretação por trás delas. Sua escrita não pinta as imagens
como um fim, mas como meio: a imagem em Kafka é só um meio para deixar rastros. Por
isso, a imagem não se fixa, não se forma: ela é anunciada e implodida, e então se forma outra
imagem. Não há o impulso de implodir para esculpir uma imagem ordenada, de destruir com
a finalidade de construir algo que se dê como modelo. Na razão que há por trás de suas obras,
Kafka garante unicamente a possibilidade da permanência incessante do pensamento, da
crítica. A única coisa que resta como positividade é o poema no qual não terminam as
infinitas possibilidades de interpretação que sua escrita suscita. E estas infinitas possibilidades
não vem senão deste grito que não se realiza, deste grito que só existe como potência, deste
grito que só existe como possibilidade. É na impotência do grito que tanto Kafka como os
expressionistas gritaram.
Diferentemente de Lasker-Schüler e de Trakl – cujos gritos e choros e cantos eram de
lamento – Becher, no entanto, expõe outro aspecto, mais ativo, do expressionismo, que esteve
comumente presente em poetas mais engajados politicamente, pertencentes a grupos
clandestinos anarquistas e comunistas, que ansiavam pelo fim do mundo, daquele mundo, da
tradição, mas já anunciavam outro, o Novo Mundo, revolucionando ordens, padrões, formas.
A questão aí é que, todavia, eles já anunciavam algo, um outro mundo, um novo mundo, já
partindo de uma tradição, a judaica; já partindo de uma tradição de conceber o tempo; já
partindo de pressupostos bem fundamentados como as noções de início e de fim. É nesta
esteira de ativismo e de expectativa em algo – em um novo tempo, em um novo mundo, em
uma escatologia que aponta necessariamente o fim para que se tenha o novo – que também se
encontra Hasenclever. Ele aparece em um comentário de Kafka sobre o seu incrível drama,
“O Filho” [Der Sohn], escrito em 1913 e encenado em 1916 pelo Teatro Alemão em Praga e
em Dresden, tendo repercutido intensa e internacionalmente:
A revolta do filho contra o pai é um tema muito antigo na literatura e
um problema ainda mais antigo na realidade. Escrevem-se sobre isso
dramas e tragédias, mas na realidade é um assunto de comédia. O
irlandês Synge compreendeu bem isso. Em seu drama O Farsante do
Mundo Ocidental, o filho é um jovem tagarela que se vangloria de ter
abatido seu pai. Mas o pai chega e torna ridículo aquele juvenil
118

vencedor da autoridade paterna (KAFKA apud JANOUCH, 2008,


pp.37-38).

Já é imensamente conhecida e interpretada a revolta do filho contra o pai, o conflito


geracional, a revolta contra a autoridade, como tema tão caro à Kafka. O Veredicto –
publicado em 1916, no mesmo ano da encenação da peça –, aproxima-se ao que ele disse
sobre isso ser um “assunto de comédia”. Tragicômico, há momentos do diálogo de Georg com
o pai em que esse aparece quase como uma figura cômica. Hasenclever expressa esta mesma
revolta na poesia. Em 1917, compõe “O poeta político”:
Cai o poder. E nós vamos unir-nos.
Passamos o Atlântico em porões,
Nós, exilados, vemos já o céu da Pátria.
Europa à vista. Caem férreos portões.

Erguem-se jovens nas universidades


E os filhos que odeiam seus pais.
Partiu o tiro. Em cidades-fantasma
Os ministros não se banqueteiam mais.43

Tema que esteve em evidência também no expressionismo, o grande dramaturgo


talvez tenha sido o único poeta que expressou, em palavras literais, além da peça, o conflito
estabelecido entre os filhos e os pais, ao ter escrito o verso “E os filhos que odeiam seus pais”.
O poeta e dramaturgo aliou sua escrita ao ativismo e é lembrado por seu pacifismo fundido à
sua vontade de ação política. Seu drama pretendeu que o espectador visse pela visão do
“Filho” os “personagens” da sociedade. Seu poema refere-se provavelmente ao fim, à vista,
da Primeira Guerra, e apesar de parecer se assemelhar à literatura de Kafka por ser afim no
tema (conflito entre filho e pai), por ser sóbrio, ativo, por não findar em um vazio e por não
afundar em conflitos existenciais, ele ainda se apoia, todavia, em uma perspectiva ou
expectativa no fim deste mundo, no fim do poder, no fim do despatriamento.
Ora, é possível entender “O poeta político” como um impulso revolucionário, como
um convite para que todos os artistas, todos os poetas se tornassem poetas políticos, para que
a política estivesse atrelada à arte. Nisso, Kafka talvez pudesse ter muito apreço, pois, como
disse sobre Picasso, “a arte é um espelho que ‘avança’ como um relógio. Às vezes.” Dar um
close no tempo e escancará-lo como uma forma de ir cada vez mais contra ele certamente
seria função de uma arte não meramente contemplativa, mas sim politizada. E assim, junto
com a juventude que se revoltava contra os que permitiam a manutenção das condições, da

43 “
O Poeta Político” [Der Politische Dichter], 1917. Tradução de João Barrento. No original: Die Macht zerfällt.
Wir werden uns vereinen./ Wir, schaukelnd auf atlantischen Transporten,/ Auswandrer, denen Heimatwolken
scheinen./ Europa naht. Es sinken Eisenpforten./ Jünglinge stehn in Universitäten/ Und Söhne auf, die ihre Väter
hassen,/ Der Schuβ geht los. In ausgedörrten Städten/ Minister nicht mehr an den Tafeln prassen.
119

ordem, do poder, “O poeta político” seria a revolta contra a servidão, contra a subserviência,
contra toda forma de domínio, contra a submissão, contra a guerra, contra os exércitos, contra
o Estado, contra os mestres, contra os pais, contra todas as autoridades estabelecidas, contra
todos os modos de opressão. Mas, apesar da literatura de Kafka também ser uma crítica contra
todos os modos de tirania, ela não é otimista, porém, quanto ao vislumbre de um Novo
Mundo, de garantia de uma saída, nem ao vislumbre do “céu da Pátria”, como aparece em
Hasenclever. Diferentemente desse, aquele não visa um repatriamento, um estabelecimento de
uma nova ordem: como já foi visto, ele já parte de seu despatriamento, de seu desterro, de seu
não pertencimento, e das condições soberanas de poder que, de tão sólidas, persistem, que não
estão à vista de cair. Na verdade, não há esperança em Kafka, haja vista sua conhecida frase a
Max Brod: “há esperança suficiente, esperança infinita – mas não para nós” (BENJAMIN,
1987, p.142). A escrita de Kafka não assegura o otimismo, não se volta à pertença, não se
direciona para um novo mundo.
Ao contrário de Hasenclever, Franz Werfel, o poeta expressionista mais próximo ao
escritor praguense, na amizade, se aproxima, no entanto, mais aos primeiros poetas, na escrita.
Amigo de Kafka, ambos frequentavam o mesmo Café com Max Brod em Praga e, em 1911,
foi publicado seu primeiro livro de poemas, Der Weltfreund [O amigo do mundo], logo
elogiado por críticos como Karl Kraus, com quem brigou depois, por tê-lo acusado de ter se
distanciado do expressionismo. Em 1912, trabalhou para a editora de Kurt Wolff, editou o
primeiro livro de poesias de Trakl e conheceu Walter Hasenclever e Else Lasker-Schüler, com
quem manteve grande amizade. Janouch comentou ter lido a obra dramática O Homem-
Espelho de Werfel, da qual Kafka disse não compreender muito bem o tema, acrescentando:
“Werfel é um recipiente de tão forte espessura, que ressoa muito mais facilmente com batidas
mecânicas e exteriores do que com o fato de um fervilhar interior” (KAFKA apud
JANOUCH, 2008, p.159). E Janouch chega a perguntar se realmente Kafka gostava de
Werfel, ao que ele responde: “– Sim, gosto muito mesmo.” (KAFKA apud JANOUCH, 2008,
p.159). No depoimento de Dora, ela conta que Werfel foi visitá-lo, quando estavam em
Berlim, para ler trechos de seu novo livro – o romance do qual Kafka já havia comentado,
quando estava em Praga com Janouch –, cuja publicação aconteceria em 1924, com o título
Verdi. Romance da ópera. Dora relata que Werfel saiu da casa em lágrimas e que ela, ao
entrar no quarto, viu Kafka também arruinado, em lágrimas, repetindo: “Como é possível
escrever algo tão ruim!” (KAFKA apud DORA, 2011, p.14). Ainda que esta fala seja
relacionada especificamente à prosa e ainda que não tenhamos uma opinião de Kafka quanto
aos poemas, vejamos como Werfel compõe os seguintes versos, de 1913:
120

Quando o teu ser me enlevava em comoções


E eu em ti me extasiava no infinito,
Não viveu esse dia tanto ser aflito,
E os oprimidos, num inferno de milhões?

Quando o teu andar me punha em febril estado,


Outros trabalhavam; na Terra eram ruídos.
E havia o vazio, Homens sem Deus, despidos,
Nascia e morria tanto ser desgraçado.

Quando, prenhe de ti, me evolava em essência,


Havia tantos outros arfando em pedreiras,
Minguando à secretária, suando em caldeiras.

Vós, que arquejais em ruas e nos rios da vida!


Se há equilíbrio no mundo e na existência,
Como irá esta minha culpa ser paga? 44

Werfel era conhecido por um tom fraternal desde O Amigo do Mundo. Mas esta
fraternidade, este humanismo, acompanha-se de um peso. Sobriedade é o que não há no
soneto de Werfel: há um afogamento do eu lírico na culpa. Em todos os momentos em que o
eu lírico se concebe feliz, o autoflagelo pela chicotada da culpa bate às suas costas. Diante dos
explorados, o abandono sempre veio ao encontro; os olhos de Deus deles desviaram ou sequer
nunca enxergaram. Como então continuar vivendo ou tendo prazer em viver? Mas não é só
esta culpa, ou melhor, o modo como aparece esta culpa, que o diferencia de Kafka. Werfel, tal
como Lasker-Schüler, ainda clama pelo soberano, por Deus. A solidão, a angústia e a culpa,
se são percebidas quando lemos Kafka, não são evidentes nem diretas, não há um diálogo de
Kafka com Deus, não há indagações ao desamparo: há o desamparo como pressuposto e todas
as consequências sofridas pelo poder que oprime e não cessa de existir. Kafka parte do
homem já abandonado, sozinho em meio à opressão, submetido a leis cuja possível
misericórdia de um Deus já havia virado as costas há muito tempo.
Werfel também já tinha escrito sobre a vivência na máquina burocrática, sobre as
condições subumanas de sobrevivência, sobre os riscos de vida que acometiam
deliberadamente a classe proletária, sobre homens “arfando em pedreiras”, ou “minguando à
mesa de escritório, suando em caldeiras”, e já havia se direcionado aos seus leitores como
44
“Quando o teu andar...” [Als mich dein Wandeln na den Tod verzückt], 1913. Tradução de João Barrento. No
original: Als mich Dein Dasein tränenwärts entrückte/ Und ich durch Dich ins Unermeβne schwärmte,/ Erlebten
diesen Tag nicht Abgehärmte,/ Mühselig Millionen Unterdrückte?// Als mich Dein Wandeln na den Tod
verzückte,/ War Arbeit um uns und die Erde lärmte./ Und Leere gab es, gottlos Unerwärmte,/ Es lebten und es
starben Niebeglückte!// Da ich Von Dir geschwellt war zum Entschweben,/ So viele waren, die im Dumpfen
stampften,/ An Pulten schrumpften und vor Kesseln dampften.// Ihr Keuchenden auf Straβen und auf Flüssen!!/
Gibt es ein Gleichgewicht in Welt und Leben,/ Wie werd’ ich diese Schuld bezahlen müssen!? (No verso
“Minguando à secretária, suando em caldeiras” [An Pulten schrumpften und vor Kesseln dampften], Barrento
optou pela expressão “à secretária” para dar ritmo à tradução que fez do poema, mas equivale ao que seria
“minguando à mesa de escritório”, na literalidade da tradução).
121

pertencente a esses, com os quais compartilhava o mesmo sofrimento: “Eu vivi na floresta, fui
funcionário do Estado,/ Servi fregueses impacientes, andei curvado sobre livros de caixa,/
Estive como fogueiro em frente de cadeiras, de rosto intensamente incendiado,/ E, quando
moço de fretes, comi restos de cozinha, e o que mais se acha.”. 45 Mas o modo como conduz
sua escrita, deveras compassiva, não se assemelha ao modo como Kafka faz crítica, em
diversas obras, ao mundo dos oprimidos simplesmente por se estar vivo, simplesmente por já
nascer em um mundo opressor onde reina o aparato do poder, institucionalizado ou não.
O artigo de Marion Fleischer discorre sobre a prosa de Döblin: de “estilo pétreo”
(2022, p.148), sua forma de construir é neutra e despersonalizada, sem interferência do
narrador. Expondo um monólogo interior indireto, Fleischer – referenciando-se à narrativa O
Assassinato de uma Margarida, publicada em 1910 pelo outro periódico expressionista, a
revista Der Sturm [A Tempestade] – diz que Döblin apresenta “a vida em gestos e atos”, em
que o mundo exterior se reduz ao modo como é sentido nos estados mentais do protagonista,
como uma projeção da mente, de atitudes e comportamentos irracionais. O próprio Döblin
chega a caracterizar seu estilo de Kinostil [estilo cinematográfico], uma vez que lembra a
sequência ininterrupta de cenas em projeções cinematográficas: “nas narrativas moldadas pelo
Kinostil, que visam a registrar apenas os fatos, sem analisar as forças ou causas que os
produzem, a vida interior das personagens aflora em gestos e atos, mas também em diálogos e
monólogos interiores indiretos.” (FLEISCHER, 2002, p.148). Diante disso, é bem possível
que Adorno, quando fala “literatura expressionista”, esteja se referindo a Döblin, no que
compara, a partir do elemento visual, a literatura que perde a quadratura e beira ao sonho, à
escrita de Kafka, também gestual, mas completamente diferente, não efusiva de monólogos
interiores, e enigmática: “a interioridade que, sem resistência, gira ao redor de si mesma é
negada, e aquilo que poderia por termo ao movimento falsamente infinito transforma-se em
enigma.” (ADORNO, 1998, p.259).
Além disso, mais adiante em sua crítica, no tocante à subjetividade e ao caráter épico
em Kafka e no expressionismo, Adorno discorre: “[...] Quanto mais o Eu do expressionismo
volta-se sobre si mesmo, tanto mais também se assemelha ao mundo de coisas que ele exclui.”
Devido a esta semelhança, “Kafka obriga o expressionismo a uma épica tortuosa; a pura
subjetividade, necessariamente alienada e transformada em coisa, é levada a uma objetividade
que se exprime através da própria alienação.” (ADORNO, 1998, p.260). E aí a “épica” de

45
“Ao leitor” [An den Leser], 1911.Tradução de João Barrento. Versos no original: Ich lebte im Walde,/ hatte
Bahnhofsamt,/ Saβ gebeugt über Kassabücher und bediente ungeduldige Gäste./ Als Heizer stand ich vor
Kesseln, das Antlitz grell überflammt,/ Und als Kuli aβ ich Abfall und Küchenreste.//[…].
122

Döblin, da qual Fleischer fala, reduz-se a uma “descrição pura e simples”, mas mergulhada
em subjetividade. Quanto a esta “épica”, Adorno continua mais a frente:
Épica expressionista é um paradoxo. Ela narra aquilo que não se deixa
narrar, o sujeito inteiramente voltado sobre si mesmo e ao mesmo
tempo privado de liberdade, um sujeito que na verdade não existe
enquanto tal. Dissociado nos momentos compulsivos de sua própria
confinação e privado da identidade consigo mesmo, o sujeito ignora
qualquer tempo de vida. (ADORNO, 1998, p.262).

E então o filósofo toca em um ponto-chave que marca uma diferença crucial da obra
de Kafka para a expressionista: o tempo. Ele segue falando da relação da obra de Kafka com
um espaço e tempo a-históricos, incapaz de ser vista dentro de um tempo com unidade de
sentido interno, pois a interioridade, esta interioridade, desprovida de objetos, passa a ser o
espaço que obedece ao tempo da repetição infernal. Assim, “Kafka executa a sentença que
pesa sobre a grande épica.” Kafka não leva ao fim, não narra uma aventura, não totaliza em
sua escrita uma determinada forma de experimentar o tempo: ele parte consciente da nulidade
do sujeito, ciente do elo perdido, da unidade perdida, e não peregrina, do mesmo modo que
não lamenta, que não busca o eu perdido, como nos romances, apenas escancara os absurdos
do mundo: “o monstruoso torna-se o mundo inteiro, torna-se norma” (ADORNO, 1998,
p.263).
Tanto Kafka como os poetas expressionistas fazem crítica à modernidade. As
aproximações entre eles podem ser feitas, sem dúvida, pelo que expressam de não-
pertencimento ao mundo, de desenraizamento, de despatriamento, não só pela condição de
judeu que já os colocava como expatriados, mas também de homens e mulheres não
adaptados ao mundo moderno, à experiência de tempo e espaço moderna, às leis do mundo
moderno, às condições subumanas de vida na era do capitalismo. Além disso, o conflito
geracional na tensão entre filho e pai; a morte da figura soberana de poder, encarnada no pai,
em Deus ou na lei; a automatização da existência e muitas outras características que vão ser
comuns à época de crise do sujeito moderno, podem compor as semelhanças entre os
expressionistas e Kafka. Com relação aos aspectos em que eles se diferenciam, um crucial é a
forma como o tempo aparece na escrita. Na maioria dos poemas, há um tempo cronológico,
uma marcação temporal, partindo de uma concepção judaico-cristã de conceber o tempo: ora
o fim do mundo, que se dá com a morte de Deus, ora o início de um novo mundo, que se dá
com o advento do Messias, com um fim necessário para que se tenha um começo. Partem de
pressupostos e de expectativas, como um direcionamento, ou como algo que visa a resgatar.
123

Poeta, como pôde ser constatado, mas, ao que tudo indica, diferenciado de uma
caracterização que o definiria como expressionista tal como a maioria dos poemas vistos aqui,
Kafka poderia ser um poeta expressionista para além dos poetas expressionistas, um poeta que
tem uma potência expressionista, mas que faz do expressionismo – ou deste expressionismo
que foi exposto aqui – outra coisa. Talvez “O Crepúsculo” se assemelhe em pontos que
exatamente diferenciaram Kafka dos expressionistas. A intenção não é igualar o poema à
produção de Kafka, mas perceber que algumas aproximações entre “O Crepúsculo”, poema
que se destacou diante de todos os demais poemas que são considerados expressionistas, e a
leitura feita sobre o escritor tcheco, acontecem em pontos-chave que foram privilegiados tanto
no decorrer da leitura feita acima quanto em diversos momentos desta dissertação: ambos
rompem com uma linguagem representativa formadora de um sentido; ambos partem de uma
realidade deformada sem inserir nisso qualquer subjetividade, qualquer expressão de uma
interioridade; em ambos não há um tempo que se direciona para um fim, o sentido do tempo é
solapado, nem mesmo a linguagem é linear; neles não há nem o fim do mundo, nem o
vislumbre de um novo mundo, nem qualquer salvação, não há tom nostálgico pelo mundo
idealizado nem o resgate no transcendental; neles, a linguagem de protocolo em Kafka e a
repetição automatizada em Lichtenstein eliminam todo o pathos; não há lirismo; não há
desespero pelo abandono de Deus ou do deus. O que é possível perceber diante destes
aspectos é que, se Kafka e o Lichtenstein d’“O Crepúsculo” se assemelham naquilo que
diferencia Kafka dos expressionistas e naquilo que em neles se preserva como uma potência
expressionista, então é possível ver Lichtenstein como um exemplo peculiar do
expressionismo, sobretudo, do expressionismo deste início de século.
Há algo em comum entre os dois textos sobre o Juízo Final presentes em O homem
sem conteúdo e em Ideia da Prosa, referidos no final da seção anterior: eles indicam que “o
dia do Juízo Final não deve ser encarado como o horizonte futuro de expectativas humanas,
conforme as correntes interpretações da previsão judaico-cristã, mas como a própria condição
histórica do homem. Segundo as palavras de Agamben, “[o] homem se encontra já sempre no
dia do Juízo, o dia do Juízo é a sua condição histórica normal, e somente o temor de enfrentá-
la o impele a ter a ilusão de que ele esteja ainda por vir” (AGAMBEN, 2012b, p.181). O dia
do juízo final é, desta forma, o próprio estado histórico do homem. É isso que Benjamin
expressa através do conceito de Jetzt-Zeit, o modelo do tempo messiânico que abrevia em si
toda a história da humanidade e em que cada segundo é a porta estreita pela qual o Messias
pode entrar. Jetzt-Zeit não é de modo algum a esperança em um futuro redentor. A promessa
124

moderna que coloca sua fé no progresso ou as teologias que preveem um destino para a
humanidade são o exato oposto do que indica a paragem messiânica da qual Benjamin fala.
Colocar-se no “tempo-agora” é já não esperar pela salvação nem na eternidade, nem
em um mundo idílico, nem no mundo secularizado; é já não ser soterrado pela frustração da
impossibilidade de uma saída; é frear o curso do tempo, colocando-se não no passado nem no
futuro, mas em um tempo abreviado que escapa ao tempo do relógio, que contém todos os
tempos. Como o Anjo da História que, com olhos arregalados, olha para a montanha de
escombros que emerge do passado, mas, com o corpo voltado para frente, é impelido para o
seu tempo, “O Crepúsculo” expõe uma tempestade encadeada de horrores que, por sua carga
nonsense, potencializa o estranhamento, por estar ao mesmo tempo imbuída de elementos
irreais que jamais aconteceriam mas que, exatamente por isso, deslocam a realidade a um
limite extremo, mostrando que a barbárie em um exagero inatingível na verdade indica que o
exagero é o estado no qual a barbárie se mantém no cotidiano, revestida de um automatismo,
de uma repetição monótona e indiferente, evidenciando que “o monstruoso torna-se o mundo
inteiro, torna-se norma”, como disse Adorno mais acima, evidenciando que todo dia é estado
de sítio, que “O Crepúsculo” é um tempo indefinido de uma realidade distorcida, de uma
linguagem incomunicável, que “O Crepúsculo” nada mais é que o Juízo Final.
125

CONCLUSÃO

Esta dissertação teve como enfoque principal os anos iniciais do expressionismo


alemão e partiu de uma instigação quanto à concepção de tempo que poderia ser estudada nos
poemas expressionistas, sobretudo por esta poesia ter dois de seus mais famosos poemas
intitulados “Fim do Mundo”. Acredita-se que, até então, os estudos sobre o tema ainda
tenham dado pouca ênfase a uma compreensão do expressionismo que efetivamente leve em
conta as questões relativas às noções temporais presentes nos poemas como uma forma de
interrogar mais a fundo sobre o que teria sido este “fim do mundo”, como ele poderia ser
pensado na poesia expressionista por diferentes leituras, quais noções estariam em jogo nisso,
como esta poesia permitiria uma reflexão sobre o tempo e sobre demandas filosóficas que
compareciam à época, e como perceber isso contribui para nuançar complexidades que
estiveram muito presentes no início do século XX, ainda sob influência da transição entre os
séculos, e que ganhariam outras configurações por todo o século.
Haja vista que a modernidade alemã é considerada tardia frente a outras nações
europeias e suas capitais, como Londres e Paris, geralmente os estudos se incidem sobre
temas que giram em torno da vida nas grandes cidades, contemplando o período que abrangeu
o auge da modernidade em Berlim. O expressionismo, assim, é enfatizado em aspectos que o
caracterizam diretamente, como o grito, a loucura, a arte do feio, a explosão das pulsões
subjetivas, a realidade deformada, relacionados exclusivamente a aspectos que abrangeram as
inovações gerais que estiveram presentes com o advento das metrópoles, como as multidões,
o indivíduo alienado, os hospitais psiquiátricos, a redução do homem à mercadoria, as formas
subumanas de vida. Todos estes aspectos de algum modo foram contemplados aqui e
retornaram em diversos momentos, mas o objetivo não foi apresentar uma única compreensão
que se determinasse por uma mera interpretação sobre as condições de vida nas grandes
cidades. Se assim fosse, bastaria que fosse feita uma crítica ao modo de vida emergente e,
desta forma, nenhuma leitura seria apresentada além de uma interpretação colada exatamente
àquilo que os poemas pareciam expressar. Optou-se, portanto, por apresentar, além desta
visão, outras perspectivas que acabaram por retorcer os próprios poemas, apontando para
percepções que colocaram suas próprias tradições em xeque.
Problematizações estiveram conjugadas no exercício de perceber de que modo as
amarras da tradição coexistiam com os princípios fundamentais que orientavam o tempo do
progresso. Ao mesmo tempo em que os poemas são uma denúncia ao novo tempo do
126

progresso, vimos que há também uma íntima relação entre o modo moderno e secularizado de
conceber o tempo e a concepção ocidental judaico-cristã, e que essa imbricação, longe de
apontar para uma liberdade das pessoas em relação ao tempo, antes as colocou a serviço dele.
Desde logo, foi possível constatar que um estudo que quisesse interrogar sobre o tempo
estaria irremediavelmente atrelado a questões filosóficas. Assim, a partir das discussões que
emergiram dos poemas, pretendeu-se desdobrá-las e aprofundá-las, inserindo-as em reflexões,
por exemplo, sobre uma das ideias configuradoras do homem moderno, como “o herói trágico
abandonado, solitário, exilado e silenciado”; ideia que se interligou, em seguida, com os
sentidos diferentes a que os “fins” filosóficos (“a morte de Deus”, de Nietzsche e o fim da
Arte e da História, de Hegel) passaram a estar atrelados, em que o “fim” de um apontava para
uma ruptura radical em relação à tradição, e, no caso hegeliano, para um novo começo ou
nada mais que uma superação que, no caso, apenas recairia na ideia de sucessão. Ao contrário
do Jetzt-Zeit benjaminiano que tem um caráter messiânico revolucionário, para o qual a
salvação não vem como o novo que chegará, mas com a interrupção feita no tempo já de
agora, os poemas que se mostraram mais otimistas tiveram um tom romântico, depositando a
salvação em um novo idealizado, apelando para um humanismo com aspirações para o Novo
Mundo livre das tradições. Muitas vezes estes poemas se apresentaram como programáticos e
pragmáticos, mais objetivos, mais diretos, motivo pelo qual também se optou por enfocar os
outros, menos diretos, menos panfletários. Todavia, foi possível perceber que os que
depositavam uma orientação para o Novo também já recairiam em um horizonte de
expectativa, em uma espera pela garantia, pela salvação, pela superação.
Se, por um lado, optou-se por abordar um aspecto pouco abordado em poetas que já
têm um destaque no expressionismo, que já são muito conhecidos, como Trakl e Lasker-
Scüler, por outro, optou-se também por ver este aspecto em um poeta que não tem tanta
evidência, como Lichtenstein. Viu-se, então, que “O Crepúsculo” foi o poema que se mostrou
como o mais diferente, tanto com relação à otimista leitura de Heidegger aos poemas de Trakl
– que vinculou “crepúsculo” e o “Ocidente”, o tempo e o lugar do entardecer, ao “começo
mais cedo” –, quanto com relação aos poemas analisados até então, que pressupunham a ideia
de fim que, por conseguinte, implica a de começo, como uma origem temporal – não como a
Ursprung benjaminiana que está relacionada ao salto [Sprung] para fora da cronologia, isto é,
uma modificação radical da habitual estrutura tradicional do tempo que permite uma outra
ligação com o passado, que não está na ordem de uma restauração, mas de uma atualização.
Inserido na primeira antologia expressionista cujo “crepúsculo” também esteve presente desde
o título (“Crepúsculo da Humanidade”), acredita-se com isso que dar atenção a este poema é
127

também perceber um elemento importante que esteve presente não só no expressionismo, mas
em toda a literatura desde pelo menos o romantismo, ainda ratificado com Wagner e
Nietzsche. Em outros poemas expressionistas, o “crepúsculo” também apareceria igualmente
desde o título, o que indica que este é um elemento possível de ser desdobrado em outros
estudos, proporcionando novas leituras sobre isso, com a possibilidade de um
entrecruzamento de interpretações que leve em conta as diferentes formas de aparecimento
deste elemento literário nos poetas expressionistas e em seus respectivos poemas.
Não menos importante, atenta-se também para o fato de que algumas imagens
retornaram em diversos momentos, como o “canto”, o “silêncio”, o “grito”, permeando as
discussões centrais como configurações que de alguma forma estiveram presentes nas
diferentes leituras acerca dos poemas que perpassaram os capítulos, como, por exemplo, em
maior visibilidade na discussão sobre o silêncio trágico; depois, na interpretação de
Heidegger; em seguida, na seção sobre Kafka. No que poderia ser tido como poeta, referido
como o expoente literário por vários filósofos que teceram críticas à modernidade e a toda
tradição ocidental, por romper com o tempo retilíneo, linear e continumm na linguagem
mesma, Kafka foi visto em suas aproximações e diferenças em relação ao expressionismo, em
seu grito intempestivo que se revela no esboço do grito, na potência do grito, como as sereias
que esboçam o gesto do cantar sem, entretanto, cantarem. Como uma espécie de
expressionista solitário para além dos expressionistas, como uma espécie de um pintor-poeta
expressionista que traça a imagem de um canto que não é lançado, o grito de Kafka ressoa no
que justamente ele não se direciona, no que ele não apela nem lamenta ao transcendental, na
salvação que ele não vê, naquilo que ele e Lichtenstein se aproximam, ao saírem ambos de um
tempo cronológico, ao saírem da referência de um deus ou do Deus que, encarnado no tempo,
a tudo submete. Ambos expõem sombriamente imagens inarticuladas de um horror que não
está datado ou que não se incide nenhuma marcação temporal, em ambos há a potência de
grito de horror que ressoa pela impotência de gritar, pela indiferença banalizada que está para
além de toda expectativa, mas à ordem do dia. É na peculiaridade que aproxima Kafka de “O
Crepúsculo” ou vice-versa que eles se apresentam na inarticulação de uma linguagem que não
comunica, que não se imbui de nenhuma elevação, de nenhum lamento por um mundo que
chega ao fim, mostrando que o último dia pode ser mesmo todo dia.
128

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