EDIÇÃO 1 | OUTUBRO_2006
histórias da história
L
á se vão quase 50 anos desde que o jornalista Herbert L. Matthews
partiu, sem saber, para o seu último compromisso com a História.
Matthews era um jornalista americano que, como correspondente de
guerra do New York Times, testemunhara todos os grandes conflitos da
época. Numa manhã de fevereiro de 1957, ele saiu da redação do jornal
que dá nome a Times Square e emergiu, quatro dias depois, numa
clareira da inóspita Sierra Maestra, em Cuba. Tinha encontro marcado
com um homem dado como morto, Fidel Castro. Três meses antes, o
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Três meses antes, Fidel Castro havia cruzado o Golfo do México com
82 compañeros num iate americano recauchutado ─ o mítico Granma ─
para deslanchar o cerco ao regime de Batista. A operação fora um fiasco.
“Não foi um desembarque, foi um naufrágio”, diria mais tarde um dos
participantes. O Granma tinha atolado na costa cubana em plena luz do
dia, o bote com mantimentos e armas emborcara, e a força aérea de
Batista começara a caçar os insurretos assim que pisaram em solo pátrio.
No dia seguinte, a notícia divulgada pelo exército cubano correra o
mundo: o guerrilheiro fora aniquilado ao tentar invadir a ilha com seu
irmão Raul e quarenta outros guerrilheiros.
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A
fidelidade de Matthews à sua reportagem não teve a contrapartida
que talvez esperasse. Os dois homens de egos equivalentes
seguiram seus próprios interesses. Para Fidel, uma vez esgotada a
repercussão da empreitada comum, o jornalista americano perdeu
utilidade. “Estou cansado daquele velho que pensa que é meu pai”,
queixava-se. “Ele está sempre me dando conselhos.”
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idel passou entre as guaguasís altas e esguias e os arbustos espessos
para saudar o surpreso correspondente americano que fizera
esperar durante a noite. O dia começava a nascer e Matthews estava
enlameado, faminto, com frio e precisando fazer a barba e tomar um
banho quente. Mas para isso viera de Nova York, o motivo pelo qual
havia abandonado uma carreira confortável na universidade: era o tipo
de encontro com a história que sempre o fazia sentir-se mais vivo. Fidel
entrou na clareira quando o sol acabava de irromper através das nuvens,
inaugurando o dia. Vestia uniforme novo e um boné cinza-oliva e
carregava um rifle longo com lente telescópica.
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M
atthews foi submetido ao talento teatral de Fidel. No decorrer da
entrevista, o líder cubano agachou-se perto dele e sussurrou que
colunas de soldados de Batista cercavam a área onde estavam,
uma pequena crista no sítio miserável de um morador local chamado
Epifanio Díaz. A área estava envolta em densa folhagem e havia nas
proximidades um riacho. Ele sabia que o Exército pretendia liquidar os
remanescentes de suas forças rebeldes antes que se desse o término do
período de censura, marcado para primeiro de março. Fidel inclinou-se
na direção de Matthews, que usava um sobretudo escuro e um boné
comum, e pôs os lábios perto do ouvido do correspondente. Falava num
sussurro rouco e com uma intensidade que fazia com que tudo o que
dizia parecesse possível.
Matthews não se deu conta, mas não havia penetrado fundo na Sierra. O
local do encontro estava a apenas 40 quilômetros da cidade de
Manzanillo, longe do coração da floresta. No entanto, o terreno era
selvagem o bastante para dificultar a chegada de uma patrulha do
governo. A principal linha de cerco do Exército estava montada a cerca
de 25 quilômetros do ponto em que se encontravam, e no terreno
acidentado que os separava não havia estrada pavimentada, apenas
algumas trilhas marcadas pelos sulcos de carros de bois. Era um território
perigoso para os soldados, porém uma boa região para os guerrilheiros.
A floresta densa oferecia também camuflagem para escondê-los das
patrulhas aéreas.
O
s rebeldes esticaram cobertores no chão para Fidel e para Matthews
e deram ao americano um pouco de seus víveres: suco de tomate,
café, bolachas e presunto. Fidel disse que os camponeses locais que
os abasteciam com seus produtos eram pagos com generosidade e
elogiou vigorosamente o apoio que davam à revolução. Os US$ 300
trazidos por Matthews seriam usados para esse fim e havia muito mais
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Fidel poderia falar em inglês, mas deixou claro que preferia responder às
perguntas em espanhol. Matthews concordou, embora registrasse a maior
parte de suas anotações em inglês. No decorrer da conversa, Fidel falou-
lhe de seu objetivo mais amplo de um país livre e independente,
governado pelo império da lei e o respeito pelos direitos de todos os
cubanos. Enquanto escutava com atenção o plano de batalha de Fidel,
Matthews pôde perceber como a coragem e a liderança dele animavam
aqueles que o seguiam.
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R
elatos posteriores não mencionam nenhuma tentativa dos rebeldes
de marchar em círculos, ao redor de Matthews, para fazê-lo crer
que eram em número maior. E a topografia do local do encontro
torna improvável a ocorrência dessa encenação. A clareira em que Fidel
se reuniu com Matthews era uma crista que se projetava sobre um
pequeno riacho, chamado pelos camponeses da região de rio Tio Lucas.
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Como o rio cercava o lugar por três lados, os soldados de Batista não
poderiam se aproximar sem que fossem detectados pelos rebeldes. Mas
isso significa também que não havia espaço para que os homens
marchassem em torno de Matthews sem que ele notasse a manobra.
Matthews escreveu que Fidel acreditava que Batista tinha 3 mil soldados
em campo fazendo o cerco aos rebeldes, enquanto seus homens
caminhavam em células de sete a dez, “algumas de 30 ou 40”. Segundo
ele, Fidel teria dito: “Não vou lhe revelar quantos somos, por razões
óbvias. Ele [Batista] trabalha em colunas de 200; nós, em grupos de 10 a
40, e estamos vencendo. É uma batalha contra o tempo e o tempo está do
nosso lado”.
M
atthews tinha de comparar aquela informação com as estimativas
independentes que já conhecia a respeito das forças rebeldes.
Durante a semana que passara entrevistando fontes em Havana,
disseram-lhe que o grupo original de 82 homens do Granma fora
reduzido a não mais de 15, mas que havia se reconstituído e atraído gente
suficiente para montar uma força combatente de várias centenas, além de
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Fidel deixou claras suas ambições nesse terreno, embora não fosse capaz
de descrever como pretendia alcançar seus objetivos. O nacionalismo
estava no cerne de sua revolução, e isso significava que ele se posicionava
contra as forças do colonialismo e do imperialismo que, em suas
palavras, oprimiam Cuba. Estava com raiva dos Estados Unidos pelo
apoio que davam a Batista e as armas que lhe forneciam para combater os
rebeldes na Sierra e contra os cubanos em toda a ilha. Mas isso não
significava que fosse antiamericano, disse a Matthews: “Pode ter certeza
de que não temos nenhuma animosidade contra os Estados Unidos e o
povo americano”. Matthews não o contestou, ainda que tivesse captado,
nas entrevistas feitas em Havana, laivos de sentimentos ambivalentes de
Fidel em relação aos Estados Unidos.
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orém, não hesitava em se vangloriar de sua perícia em alvejar
aqueles mesmos soldados com seu rifle telescópico e 50 outros
iguais que disse que seus homens carregavam. Nesse ponto,
Matthews foi obviamente pouco crítico. Se tivesse pedido para ver os
outros rifles, Fidel teria sido pego numa flagrante mentira. Naquela
época, não havia outros e, mesmo depois que os rebeldes obtiveram esse
tipo de arma, jamais houve 50. Fidel disse mais: quando a revolução
triunfasse, os soldados receberiam US$ 100 por mês, bem mais do que os
72 mensais que ganhavam então. Ele dispunha de dinheiro para bancar
todos seus outros planos; como prova, mandou um de seus homens
trazer um pacote embrulhado num pano marrom. Dentro havia uma
grande pilha de notas de pesos. Matthews estimou que ali deveria haver
cerca de US$ 4 mil.
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“Você assumiu um risco e tanto ao vir aqui”, disse Fidel, e pela primeira
vez reconheceu a missão de Matthews. Se fosse possível definir o
momento em que nasceu uma relação pessoal entre os dois, foi aquele. O
fato de compartilhar o perigo, assim como haviam partilhado comida e
charutos naquela manhã, os uniu em um pacto sem palavras. Matthews
já havia demonstrado a disposição de acreditar em Fidel. Suas perguntas
durante a entrevista foram diretas e até gentis, desprovidas da intenção
de prejudicá-lo ou surpreendê-lo em contradição. Ele não contestou as
afirmações de Fidel, nem mesmo aquelas que devem ter parecido
improváveis, como a alegação de que suas tropas esfarrapadas haviam
vencido muitas batalhas contra o Exército bem equipado de Batista. E
agora, no final do encontro, Fidel expressava preocupação pelo bem-estar
do americano. Com grande sinceridade, assegurou a Matthews que ele
seria devolvido sem problemas: “Temos toda a área coberta e tiraremos
você em segurança”.
A
ntes de partir, Matthews fez um último pedido, o qual mais uma
vez os uniria num só lado, movidos pelo mesmo objetivo. Mostrou
as folhas dobradas em que fizera as anotações e pediu-lhe que
assinasse seu nome nelas. Haveria quem duvidasse, explicou, mas a
assinatura autenticaria a entrevista com o líder rebelde que se acreditava
estar morto. Pediu também que um dos homens de Fidel os fotografasse
juntos, fumando charutos e conversando sobre as raízes da revolução.
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correspondente local do New York Times o incitou a cair fora antes que
alguém descobrisse o que ele havia feito —, Matthews insistiu em
permanecer na cidade por mais um tempo, a fim de entrevistar líderes
estudantis, entre eles José Antonio Echeverría, presidente da Federação
dos Estudantes Universitários, um rival em potencial de Fidel que nem
sempre estava de acordo com ele. Matthews foi levado ao esconderijo dos
estudantes no bairro de El Vedado para um encontro secreto
com Echeverría e outros jovens fanáticos dedicados a derrubar Batista.
“Estamos acostumados com lutas clandestinas”, disse o estudante de
arquitetura de 24 anos, cujos amigos o chamavam de “El Gordo”. “Os
estudantes cubanos não têm medo de morrer”, gabou-se. Não demoraria
muito para que tivessem a chance de provar isso.
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E
nquanto Matthews descia a montanha, Fidel mandou vários homens
procurar Guerra e trazê-lo para uma clareira perto do local da
entrevista. Quando o revistaram, acharam uma pistola, três
granadas de mão e uma carta do comandante local do Exército
dando-lhe salvo conduto na região. Para completar, Guerra estava
usando um par de botas novas do Exército, recompensa pelas
informações que dera sobre os rebeldes e símbolo inconfundível de sua
traição.
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