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Sobre a relação entre memória e esquecimento

De acordo com o psicanalista Sigmund Freud, “o eu não é senhor em sua própria


casa”. No advento da modernidade e entre todas as questões políticas que acercam o mundo, o
entendimento sobre o que é o inconsciente golpeia os indivíduos, afirmando a eles que já não
é a sua consciência quem controla seus sentimentos, impulsos e pensamentos. Esse
conhecimento afeta a literatura, inclusive na obra de Proust, que tira o narrador da posição de
sujeito, destituindo-lhe a onisciência, e o põe como objeto da cena.

O trabalho do narrador é uma tradução do que se é interno ao indivíduo e, através da


linguagem, permite que esses aspectos se constituam numa obra. O livro, então, não é
construído pelo sujeito: ele já está interno e deve passar à luz, como um pano que se deve
tecer. O objeto da narrativa é a mente do indivíduo, que põe a si mesmo numa postura de
observador e busca externar questões internas ao seu viver. Tal trabalho se faz pelo processo
de rememoração de acontecimentos e situações, buscando preencher lacunas que a
consciência deixa vazias.

A rememoração, todavia, não se forma apenas pelas lembranças dos acontecimentos


vividos, como também de seu esquecimento. Por exemplo, no início de No Caminho de
Swann, a narrativa da cena em que o menino busca pelo beijo da mãe é elaborada a partir das
memórias que envolvem a casa da personagem, seu quarto, a figura paterna presente nesse
meio e a falta do beijo que possivelmente cobriria uma necessidade. Entretanto, ao lembrar-se
de tais aspectos, o narrador deixa de lado todo o resto da cidade de Combray em que passara
sua infância. Há uma seleção inconsciente do que será lembrado e de quais momentos serão
parte do tecido a ser feito.

Benjamin, portanto, afirma que o trabalho de Proust é o de tecer seu texto, tendo a
memória como trama e o esquecimento como urdidura. Os acontecimentos vividos são finitos
durante o seu instante, porém passam à infinitude no momento em que se tornam recordações,
pois há um leque de possibilidades a serem lembradas e conectadas a outros acontecimentos.
Essa obra de toda uma vida não se trata da vida tal como ela é e foi, mas da maneira como ela
vem à memória de diversos modos – tanto através da memória voluntária quanto da
involuntária. Junto a isso, as lacunas vazias deixadas pelo que a consciência esqueceu também
fazem parte da obra e constituem o mesmo tecido. A ausência da totalidade do saber, ainda
que de si mesmo, caracteriza o narrador moderno, apresentando-o problemático e angustiado
como o indivíduo se encontra nesses tempos.
Uma vez que a obra é constituída tanto pelo que se lembra quanto pelo que se
esqueceu, é possível perceber marcas dessas lacunas deixadas vazias na própria linguagem do
texto. A cena formada pela criança que, depois de buscar incessantemente pelo beijo da mãe,
recebe a possibilidade de dormir com ela e ouvi-la contar uma história possui muito mais
aspectos do que se pode visualizar superficialmente. Existem questões de ordem psicológica
que não estão aparentes pela linguagem deixada por Proust e que podem dizer muito mais
sobre essa cena do que ela, a princípio, se propõe. É válido questionar o que representaria essa
figura materna para o narrador a partir de elementos deixados pelo texto e por que razão tanto
ela quanto a paterna deixaram marcas em seus pensamentos conscientes na posteridade.

Essa vida descrita pelo Proust não se compõe apenas pelos acontecimentos factuais,
mas também pelos acontecimentos psíquicos em determinados instantes. Dessa forma, hábitos
considerados banais são recordados e transcritos na sua obra, e momentos que podem durar
alguns minutos se tornam em páginas inteiras desenrolando seus dramas internos. O
adormecer não é feito apenas por uma cama, trechos de um livro lidos para causar cansaço, a
penumbra noturna e os olhos fechados; ele se molda pelos pensamentos difusos de uma mente
perto de alcançar o sono, as angústias incontroláveis da solidão, a instabilidade temporal e as
lembranças que lhe surgem doutras camas que outrora dormira. Seu próprio tempo se desvia
do tempo imposto pelo relógio e se perde, desfazendo o imediato e destituindo a mecanização
da vida dada pela produção industrial.

De outro modo, como poderia uma narrativa feita por um processo de recordação abrir
mão das sensações passadas pelos sentidos e não tratar sobre o movimento dos problemas
internos que rodeiam o objeto? Não é apenas um menino que gostaria de dormir depois de
receber um beijo da mãe, mas um ser que se angustia quando a resposta que chega ao seu
alcance é uma resposta que não há e que anseia pela possibilidade de com a mulher cruzar no
corredor e requisitar aquilo que deseja. Os momentos não se resumem somente ao que é
concreto e palpável, mas englobam uma série de circunstâncias e emoções que fluem
inerentemente ao indivíduo, tornando-se parte daquilo que se é lembrado.

Assim, ainda que o eu não seja senhor sobre a sua própria casa, ele procura formular o
seu funcionamento e se põe numa posição crítica diante daquilo que a consciência lhe oferece
e daquilo que ela lhe toma. Não é possível resumir a vida a processos mecânicos e assim se
faz essa obra de toda uma vida, apresentando-se com mais profundidade do que aquilo que
está dado. Se a memória e o esquecimento juntos constituem um texto, então, segundo
Benjamin, “nenhum texto é mais ‘tecido’ que o de Proust, e de forma mais densa”.

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