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AULA 5

VERNANT, Jean-Pierre. “Aspectos míticos da memória e do tempo”. In: Mito e pensamento entre
os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.133-166.

Começa com a menção a um artigo de I. Meyerson (Le temps, la mémoire, l’histoire), o qual
“ressaltava que a memória, enquanto se distingue do hábito, representa uma invenção difícil, a
conquista progressiva do homem do seu passado individual, como a história constitui para o grupo
social a conquista do seu passado coletivo” (p.135).

A reflexão sobre a memória será desenvolvida no interior de um projeto de psicologia


histórica. Ela toma por fonte os discursos míticos sobre a memória produzidos nas sociedades
antigas. O pano de fundo é a noção de que “nas diversas épocas e nas diversas culturas, há
solidariedade entre as técnicas de rememoração praticadas, a organização interna da função, a sua
situação no sistema do eu (grifo do autor) e a imagem que os homens conservam da memória”
(p.135-136).
A referência aqui é, como era de se esperar, a cultura helênica, indo dos tempos arcaicos até
Aristóteles.
Mnemosyne. Divindade que tem o nome de uma função psicológica especial. A memória
atinge categorias complexas como o tempo e o eu, colocando em jogo operações mentais
complexas, que para serem dominadas exigem esforço, exercício, treinamento. Se a memória é uma
conquista, a sacralização de Mnemosyne foi o preço pago por uma sociedade de tradição puramente
oral (como era a Grécia entre os séculos XII e VIII).
“Deusa titânide, irmã de Cronos e de Okeanos, mãe das Musas cujo coro ela conduz e com
as quais, às vezes, se confunde, Mnemosyne preside, como se sabe, à função poética” (p.137).
Possuído pelas musas, o poete é o intérprete de Mnemosyne, como o profeta o é de Apolo. Não por
acaso já se ressaltou as proximidades entre o aedo e o adivinho, cujo ponto em comum é o de ambos
terem “vidência”, que recebem uma revelação divina – ao preço de se tornarem “cegos” (como
Homero e Demódoco). Por outro lado, essa vidência se refere às partes do tempo que não são
acessíveis aos mortais: o que outrora foi, e o que ainda não é.
Mnemosyne, nesse sentido, guarda uma sabedoria caracterizada como “onisciência
divinatória”. Em Hesíodo, ela sabe – e canta – “tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”
(p.138). Mas ao contrário do adivinho, o poeta dirige-se fundamentalmente para o passado. Mas não
o passado individual ou o passado em geral, mas o passado das origens, o tempo original.
Através de Mnemosyne o poeta tem experiência desse tempo porque adquire o poder de
estar presente no passado. “A memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos,
em seu tempo” (p.138). Mas isso não se dava de maneira aleatória, senão que através de um longo
aprendizado, iniciação, treinamento e técnicas de rememoração. É o que indica, como lembra
Vernant, os longos compilados de nomes de soldados, cavalos, posição das naus, etc., de gregos e
troianos mobilizados pelos aedos, que assim funcionavam como espécie de arquivo de uma
sociedade sem escrita. A busca aí era de dar ordem e exatidão ao mundo, e permitir ao grupo social
“decifrar” o seu passado em direção às “origens”.
Nesse sentido religioso, o passado que se apresenta aí “é muito mais que o antecedente do
presente: é a sua fonte” (p.141). E daí então o centro da tese de Vernant: “A rememoração não
procura situar os acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do ser, descobrir o
original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que permite compreender o devir em seu
conjunto” (p.141).
Assim, o passado evocado pela memória não faz reviver o que já não existe, mas é parte
integrante do cosmos, e abrange regiões do ser não acessíveis ao olhar dos mortais. A função da
memória aí não é de reconstruir o tempo, tampouco de anulá-lo, mas de fazer uma ponte entre o
mundo dos vivos e o além ao qual tudo retorna. “O passado aparece como uma dimensão do além”
(p.143).
Outro aspecto importante é que a inspiração dada por Mnemosyne efetua também um certo
esquecimento do presente – isto é, da raça de ferro decaída e miserável, em direção às raças antigas
e melhores. Por isso, o tempo de Mnemosyne não é da cronologia, mas da genealogia. A
rememoração do passado (cósmico, das raças antigas) tem como contrapartida o “esquecimento” do
presente. Daí a vinculação, posta no ritual de Lebadeya, entre Mnemosyne e Lethe, as duas fontes
de água que se encontram na boca do Hades – Lethe servia para o ingressante esquecer tudo de sua
vida humana, a segunda para fazê-lo lembrar de tudo que havia visto no outro mundo. Lethe é
associado à morte, Mnemosyne à imortalidade.
Há também, segundo Vernant, uma série de documentos de data e origem muito diversa que
associa o par rememoração-esquecimento no quadro de uma doutrina da reencarnação. Nesse
momento, Mnemosyne é deslocada do plano cosmológico para o escatológico. Não é mais aquela
que inspira o canto sobre o passado primordial e a gênese do cosmos, mas está agora ligada à
história dos indivíduos e suas encarnações sucessivas, e se torna o meio de se atingir o fim do
tempo, de por um término no ciclo das gerações.
A transição da cosmologia para a escatologia transforma o sentido da memória. As imagens
ligadas ao Hades passam agora a se referir à via terrena, enquanto lugar de provação e castigo. O rio
Lethe não fica na entrada, mas na saída da alma do Hades rumo à uma nova encarnação, apagando
as lembranças do outro mundo. Assim, ela não é mais símbolo da morte, mas do retorno à vida, ou
melhor, do ciclo sem télos das gerações.
Poetas desse período passam a associar Mnemosyne à recordação de vidas anteriores, e
quem possui essa sabedoria (por não ter saciado sua sede no rio Lethe) aproxima-se da condição de
semi-deuses. Ao não se esquecer de suas faltas em vidas anteriores, o caminho para a purificação
torna-se mais claro. Assim, a memória torna-se esforço de purificação, de ascese, um exercício
espiritual. Os pitagóricos compartilhavam dessa visão e fizeram dos exercícios de memória um
aspecto obrigatório de sua doutrina.
Assim, a anamnésis é centralizada na história das almas, e adquire um alcance moral e
metafísico que ele não tinha antes. “Ao encontrar a lembrança de toda a série das suas existências
anteriores e dos erros que cometeu, o homem pode conseguir pagar inteiramente o preço das suas
injustiças e com isso encerrar o ciclo do seu destino individual” (p.154). Quando se alcança tal
estado, a alma pode sair do ciclo das gerações e da morte para ascender à forma de existência
permanente e imutável dos deuses.
Assim, a rememoração das vidas anteriores traz a possibilidade de seu télos, por onde se
reconquista o tempo em sua totalidade, permitindo juntar o fim ao começo. Por sua vez, o
esquecimento se vincula ao tempo dos homens, mortal, finito, instável. “A situação central
concedida à memória nos mitos escatológicos traduz assim uma atitude de repulsa com relação à
existência temporal. Se a memória é exaltada, ela o é como força que realiza a saída do tempo e a
volta ao divino” (p.155).
De acordo com Vernant, essa transição do lugar da memória e do tempo tem a ver com uma
crise na representação do tempo, operada no século VII a.C. com o aparecimento da poesia lírica,
que fez nascer uma nova imagem do homem. “O abandono do ideal heroico, o advento de valores
diretamente ligados à vida afetiva do indivíduo e submetidos a todas as vicissitudes da existência
humana: prazeres, emoções, amor, beleza, juventude, têm por corolário uma experiência do tempo
que não se enquadra mais no modelo de um devir circular” (p.157). Isso porque ao voltar-se para a
sua vida afetiva, o tempo lhe parece uma força de destruição que caminha inexoravelmente para a
morte. A poesia lírica torna mais clara a consciência desse devir, o que leva a reações de duas
ordens: uma recusa desse tempo da existência humana, um mal de que é preciso livrar-se; e de
outro, um esforço para purificar a existência divina de tudo o que a liga à temporalidade, mesmo
cíclica. O “sempre”, que define a condição divina, deixa de significar um eterno recomeço, para
significar um estado de permanência eterna e imutável. Assim, ao fechar o ciclo das gerações e da
morte, não se trata então de recomeça-lo, mas evadir-se dele.
“Essas dissonâncias na representação do tempo e a inquietude que suscitam, em certos
meios, levam a uma maior compreensão do significado e da importância dos exercícios de memória.
O esforço de rememoração preconizado e exaltado no mito não traduz um despertar de um interesse
pelo passado nem uma tentativa de exploração do tempo humano. Da sucessão temporal, tal como o
indivíduo a apreende no desenrolar da sua vida afetiva, tal como ele a evoca sob a forma da
nostalgia e do pesar, a anamésis só se preocupa em evadir-se. Ela procura transformar esse tempo
da vida individual – tempo sofrido, incoerente, irreversível – em um ciclo reconstruído em sua
totalidade. Ela tenta reintegrar o tempo humano na periodicidade cósmica e na eternidade divina”
(p.159).
Nesse quadro, a função da memória se identifica não com uma exploração sobre o passado
particular de alguém concernente à continuidade de um eu, nem a construção de uma arquitetura do
tempo, mas se vê nela ou uma fonte de saber em geral, ou uma saída do tempo. “Em nenhum lugar
ela aparece ligada à elaboração de uma perspectiva propriamente temporal. Não se relaciona
também a nenhuma categoria do eu” (p.160-161).

Platão partirá dessa imagem mítica da memória-esquecimento, mas vai enquadrá-la no


âmbito de sua teoria do conhecimento. Nele, esquecimento é ligado à ignorância – as águas do
Lethe fazem os homens esquecerem das verdades eternas que elas puderam contemplar antes da
volta à terra. Cabe à anamnésis a possibilidade de reencontrá-las.
Em Platão, “Mnemosyne interiorizou-se para tornar-se no homem a própria faculdade de
conhecer” (p.161). De instrumento de ascese mística, ela se transfigura como pesquisa do
verdadeiro. Isso traz uma contrapartida: “para Platão, saber não é outra coisa senão lembrar-se, isto
é, escapar ao tempo da vida presente, fugir para longe da terra, voltar à pátria divina da nossa alma,
reunir-se a um ‘mundo das Ideias’ que se opõe ao mundo terrestre como este além com o qual
Mnemosyne estabelecia a comunicação” (p.161).
Assim, em Platão o pensamento mítico da memória mantém-se ao mesmo tempo que se
transforma. Ela também não tem a função de reconstituir a ordem dos acontecimentos passados, não
implica uma cronologia dos fatos, mas revela o Ser imutável e eterno. A memória não é um
pensamento do tempo, mas uma evasão para fora dele. Não visa elabora uma história individual do
eu, mas realizar uma união da alma com o divino. Ela não toma o passado como objeto do
conhecimento, mas se faz como instrumento de uma luta contra o tempo humano, em direção as
formas fixas das verdades eternas.

“Da análise dos mitos de memória e do que resta deles no início da filosofia grega, uma
conclusão se impõe: não há elo necessário entre o desenvolvimento da memória e os progressos da
consciência do passado. A memória é anterior à consciência do passado e ao interesse pelo passado
como tal. Percebe-se na aurora da civilização grega como que uma espécie de embriaguez diante da
força da memória – mas trata-se de uma memória orientada de modo diferente da nossa, e que
corresponde a outros fins” (p.164).
A partir desses distintos “quadros sociais da memória” (para usar a expressão de
Halbwachs), é que a memória e os exercícios de rememoração se davam e adquiriam sentido. Fora
dele, perde-se seu sentido e sua função. Elas não se situam mais em nossa forma de organização da
memória, direcionada para o conhecimento do passado individual do homem – (diga-se de
passagem que aqui Vernant parece ter esquecido da dimensão coletiva).
Para que essa transição fosse possível, foi necessário o desenvolvimento de instrumentos
mentais que permitissem um conhecimento mais preciso do passado, um ordenamento rigoroso do
tempo. A partir de então, a memória vai perdendo seu lugar tradicional de função cosmológica e,
depois, escatológica, para entrar de vez no domínio do tempo humano.
Isso se concretiza com Aristóteles, que propôs a distinção entre memória e reminiscência.
Mas ambas as formas estão estritamente ligadas ao passado, e são condicionadas por um lapso do
tempo, e portanto implicam a distinção entre anterior e posterior. “Em consequência, segundo
Aristóteles, é o mesmo órgão pelo qual nós nos lembramos e pelo qual percebemos o tempo”
(p.165). Assim, ela só se relaciona com a faculdade de pensar “por acidente”, pois é à faculdade
sensível que ela primeiramente se liga – o que explicaria porque, além do homem, muitos animais
possuem mnemé, mas não anamnésis.

O último parágrafo é perfeito para a tese e a disciplina:


“Não tendo mais o Ser como objeto, mas as determinações do tempo, a memória encontra-se
desse modo decaída da situação que ocupava no cume da hierarquia das faculdades” (p.166). Ela se
transporta para a dimensão do pathos. Em Aristóteles, nada mais lembra a Mnemosyne mítica que
visava libertar o homem do tempo. “A memória aparece agora incluída no tempo, mas em um
tempo que permanece, ainda para Aristóteles, rebelde à inteligibilidade. Função do tempo, a
memória não pode mais pretender revelar o ser e o verdadeiro; mas não pode também assegurar, no
que diz respeito ao passado, um verdadeiro conhecimento; não é tanto a fonte de um saber autêntico
quanto a marca da nossa imperfeição: reflete as insuficiências da condição mortal, a nossa
incapacidade em ser inteligência pura” (p.166).

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