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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

- 20 -
- 20 -
Ana

O seu turno de vigia, lá em cima na plataforma improvisada no pinheiro a três


metros de altura, está a terminar. Prepara-se para ser rendido no seu posto perfeitamente
dissimulado entre a ramagem repleta das características folhas em agulha e iniciar um
merecido descanso do corpo já torturado pelas posições incomodas a que foi obrigado
naquele reduzido espaço. Depois irá cuidar do seu armamento e colaborar no reforço da
estrutura defensiva e de disfarce da base de comando. Olha mais uma vez para o vasto
campo com início a cinco metros do posto de vigia, coberto de pés de espigas verdes
que dão pelos ombros, em algumas zonas acima, e que se estende a perder de vista na
direcção de nascente. Certifica-se de que não há nenhum movimento estranho ... tarefa
difícil porque qualquer pequeno grupo hostil conseguirá aproximar-se deles sem ser
detectado até praticamente à orla do pinhal, para cá da qual ele e os seus companheiros
de armas estabeleceram, e ocultaram – adequadamente, espera –, a sua base defensiva
de apoio. No interior desta, em local secreto, encontra-se o tesouro tão cobiçado por
todos naquela guerra sem tréguas. Formula o propósito, por sua iniciativa mas precisará
de ajuda, de desbastar aquelas espigas altas pelo menos quinze metros adentro, de modo
a tornar visível qualquer movimentação nas proximidades. Entende que é a beneficiação
prioritária a realizar naquela rústica e incipiente arquitectura defensiva. Decide falar
quanto antes sobre o assunto com o comandante, no sentido de que este aceite retirar
alguns efectivos das suas posições de combate, durante o tempo necessário, para que o
empreendimento se realize rapidamente sob a sua direcção.
Em princípio, pela retaguarda, por onde se estende o pinhal na direcção de poente,
não surgirá perigo algum. Segundo as últimas informações do destacamento de
reconhecimento, o inimigo terá concentrado todos os seus efectivos na banda oposta. A
atacar, só o poderá fazer por aí e frontalmente, uma vez que por ambos os flancos o
terreno é impossível de transpor; Do lado esquerdo, de tão acidentado que é e, do lado
direito, devido ao mato espesso e extremamente serrado que o cobre por inteiro. Desvia
o olhar do campo de espigas de todos os seu temores e olha para baixo para verificar se
a sua rendição já havia chegado. Aquele momento de troca de vigias é sempre delicado
uma vez que a plataforma tem que ser abandonada por alguns segundos porque nela
cabe apenas um guerreiro. O mesmo acontece com as escadas de acesso improvisadas e
que aguardam a construção de umas mais amplas. Por isso, por enquanto, é necessário

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primeiro que desça até ao solo o rendido antes do início da subida de quem o rende.
Esta troca, dependendo da agilidade dos dois intervenientes, demora sensivelmente
vinte segundos, quinze na melhor das hipóteses ... demasiado tempo com o flanco a
descoberto. Qualquer grupo de inimigos oculto pelas altas espigas transporia a correr
em menos do que esse tempo a distância que separa os primeiros pinheiros da pequena
barreira que demarca a periferia da base, passando no trajecto por baixo daquele posto
de vigia, tornado perfeitamente inofensivo nesse movimento. Uma vez o inimigo do
lado de dentro da periferia defensiva, a sorte da refrega estaria quase ditada e, pelo seu
maior número, seria muito provavelmente favorável ao contingente invasor. Na
eventualidade da penetração do inimigo, já não se aplicaria então a velha máxima
militar de que para defender uma posição fixa no terreno são necessários, a quem
defende, apenas um terço do número de efectivos de quem ataca.
Alguém se aproxima da base do pinheiro ... é a sua rendição. Expira aliviando a
tensão, pega na sua arma, levanta-se cuidadosamente, vira-se em silêncio para o início
das escadas, oferecendo as suas costas ao mar de pés de espigas que agora ondeiam
todos em uníssono ao sabor de uma suave e fresca aragem, reflectindo cintilantes no
cimo a luz do sol ... Com extremo cuidado faz menção de iniciar a descida alçando
ligeiramente a perna direita para baixar o pé para o primeiro degrau ... mas numa
rotação de cabeça para trás, resolve perscrutar pela última vez para nascente antes de se
dispor definitivamente a descer ... não descortina nada de suspeito. Inicia o movimento
de cabeça no sentido inverso ... e, pela visão periférica, inconscientemente portanto,
detecta uma irregularidade no movimento dos pés de espigas ... instintivamente o seu
olhar aponta num ápice para um ponto a dez metros da orla do pinhal onde aqueles não
ondearam em perfeita sintonia com os restantes, onde uma quase imperceptível
descontinuidade surgiu naquela uniforme cortina de verde em movimento oscilante
solidário ... algo estranho àquele cenário terá sido responsável. Sem desviar o olhar,
roda todo o seu corpo de novo para nascente, agacha-se e atenta naquela zona. O seu
companheiro, na base do pinheiro, apercebe-se e deita-se com muito vagar no solo, de
barriga para baixo, e olha na mesma direcção em completo silêncio ...

- “Alerta! Inimigo à vista pelas treze horas!”, grita Duarte com todas as suas
forças.

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Fernando, a sua rendição, levanta-se do solo de um salto, empunha a sua arma, e
pergunta:

- “Onde?”.
- “Ali, dez metros para dentro das espigas”, aponta Duarte.

Em poucos segundos um pequeno contingente defensivo acorreu à base do posto de


vigia e logo prosseguiu na direcção do inimigo sob o comando de Fernando, seguindo
as indicações em voz alta de Duarte que para isso se manteve no seu posto.
... Duarte observa os seus companheiros a chegarem à zona que lhes havia indicado
e logo começa a ouvir, sem conseguir ver, uma grande algazarra: ruídos das armas
embatendo uma nas outras, palavras de encorajamento de parte a parte, imprecações
lançadas nos instantes dos golpes desferidos e, em breves momentos, gritos lancinantes
e gemidos de dor ... Passados poucos minutos o contingente invasor retira. Duarte
apercebe-se disso pela longa sucessão em carreira dos movimentos de apartamento das
espigas nos topos, no sentido nascente, afastando-se do local do embate, ... Os seus
deveriam regressar a qualquer momento. Resolveu descer do seu posto para ajudar no
que fosse preciso. Haveria feridos, certamente. Enquanto desce e deixa o posto de vigia
desguarnecido, interroga-se se estará a agir correctamente ... não fosse aquele
movimento das tropas inimigas ser apenas uma manobra de diversão ... Resolve arriscar
e alcança o solo mas, hesitante, olha novamente de imediato na direcção nascente.
Decide continuar ... Acorre ao posto de recepção de feridos para se certificar de que Ana
tem tudo a postos para os que pudessem chegar, e dirige-se depois em corrida ao
encontro dos combatentes para os assistir no que fosse necessário.
... Um ferido. Fernando. Vem transportado por dois companheiros de luta, um deles
com ferimentos ligeiros que não o incapacitam. Fernando traz uma expressão de dor,
que se acentua por vezes com os movimentos de ressalto mais bruscos do transporte
numa maca improvisada. Quando isso acontece, reage também aumentando a pressão
das suas duas mãos em concha, a direita encobrindo a esquerda, sobre a ferida que
sangra do lado esquerdo do abdómen, meio palmo abaixo da última costela ... Poisam-
no em cima de um colchão estreito, depositado no chão da improvisada enfermaria. A
dor parece excruciante. Acentua-se ainda mais assim que Ana lhe retira as mãos de cima
da ferida, lhe afasta as vestes ensopadas, e tenta observar, palpando ligeiramente em
volta. As órbitas de Fernando reviram para cima, e a sua boca espuma por um dos

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cantos. Geme cada vez mais em descontrolo ... Contam a Duarte que no meio das
espigas tinha havido um combate de titãs entre Fernando e um forte oponente. Embora o
tivesse atingido gravemente e posto em fuga aos ombros dos seus parceiros,
eventualmente provocando-lhe complicações muito graves e irreversíveis, Fernando não
conseguiu também evitar ser ferido. Ao menos, o seu feito terá sido crucial para
desencorajar os invasores e levá-los à fuga porque, aparentemente, aquele inimigo seria
o comandante daquele destacamento furtivo, que era em número de efectivos superior
ao do que partiu da base ao seu encontro. O tesouro ficou, por ora, a salvo!
... Ana solicita o apoio de Dinis, um dos regressados do embate, para a assistir na
intervenção que decidiu levar a cabo sobre Fernando. É necessário agir correctamente,
com determinação e tão rápido quanto possível. Duarte sai para fora. Já nada de útil
pode ali fazer. Assim que assoma ao exterior olha para cima na direcção do posto de
vigia, por si e por Fernando abandonado, para se certificar de que alguém entretanto o
tinha ocupado. Verifica, com uma expressão de alivio, que sim ... Ana pede a Dinis que
lhe passe três folhas de eucalipto de uma tigela cheia delas poisada no chão, ali ao lado,
junto à parede feita de ramos de fetos secos. Coloca-as sobre a ferida de Fernando e este
de imediato exala um grande suspiro de aparente alivio da dor. De seguida cerra os
olhos e descontrai todo o corpo. Ana palpa-lhe o pulso, ouve-lhe a respiração e diz:
“Está a dormir. Agora só nos resta esperar.”

- “Que giro! Como é que os teus sobrinhos, tão novinhos ainda, se prestaram tão
compenetrados a estes papéis?”, perguntou Rita a João.
- “Eu fui o realizador e camara man, mas eles é que fizeram o argumento”,
disse-lhe ao ouvido, e acrescentou “A Margarida era ainda muito pequena para
participar com um papel activo”.

Acabaram de ver um pequeno filme feito por João há muitos anos, na Folgosa, com
uma câmara amadora, sem qualquer montagem e edição, e com os quatro sobrinhos
mais velhos de João como actores. Era suposto ter sido o primeiro episódio de outros
que se seguiriam, em continuação do enredo ... mas ficou episódio único! Em princípio
Fernando viria a sobreviver ao terrível ferimento que sofreu ... João divertiu-se imenso
na altura, tanto ou mais do que eles ... num papel por excelência de observador do
exterior, e também como captador e guardador de imagens, como lhe era usual à época
... E também no apoio à construção das rústicas infra-estruturas no interior do pinhal.

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- “Já naquela altura Ana se inclinava para a medicina ...”, comentou Rita.
- “Foi por sua iniciativa que escolheu aquele papel.”, sussurrou João.
- “O que era o tesouro que estava em local secreto?”, perguntou Rita.
- “Estava planeado que viesse a ser representado por um dos mais novos – talvez
a Margarida -, e que seria o herdeiro órfão da coroa do reino”, respondeu João,
manifestamente exausto de tanto já ter falado.

Ana, que agora já é médica ... acabadinha de o ser ... porque jurou ... há pouco dias
... De imediato todos passaram a consultá-la, ... e antes não ..., e era óptima aluna ...
sabia tanto com sabe agora, e muito responsável ... hoje e antes ... No entanto, só agora
lhe reconhecem o poder de perceber as doenças e, sobretudo, de curar... uns dias antes
não ... Os mundos dos adultos são como os das crianças ... alguém decide quem é o quê
e de imediato esse alguém passa a ser o que é ... instantaneamente ... por magia ... Como
no filme em que ficou decidido que Ana sabia curar ... e ela então decidiu de pleno
direito que o faria com folhas de eucalipto ... Se Fernando não se curasse isso seria do
seu grande mal ... impossível de curar ... pelo menos com as folhas de eucalipto ... que
teriam sido a melhor opção de Ana de entre as disponíveis naquelas difíceis condições
... Ana teria decidido bem uma vez que ficou decidido que seria a médica ... muitos
factores incontroláveis acorrem a estas coisas das doenças ... Mas se Ana se erigisse em
curandeira, sem a anuência dos presentes, e se Fernando não se curasse, ... a culpa seria
sua ... deveria ter pedido auxílio ... e não o havendo, Fernando desfaleceria
irreversivelmente porque ninguém estaria presente com os conhecimentos necessários ...
Mas se se curasse, não teria sido pela folhas de eucalipto, mas sim talvez porque o mal
afinal não era grave, ... nem por Ana, ... teria sido por sorte ... ou por um momento raro
de lucidez da parte de Ana, que dificilmente se voltaria a repetir porque Ana não era
médica, no filme ... A sorte toca-nos poucas vezes ... a responsabilidade pelos
acontecimentos indesejados toca-nos muitas vezes ... a não ser que sejamos médicos,
engenheiros, advogados, ... (mesmo que instantes antes ainda não o sejamos), ou
detentores de quaisquer certificações e acreditações conferidas por entidades por sua
vez acreditadas e certificadas por ..., porque então a competência em alternância com o
azar estão omnipresentes. Existem apenas condições objectivas altamente complexas e
incontroláveis que tornam os resultados indesejados impossíveis de evitar ... e os
desfechos, quaisquer, estão definidos à partida, por competência se são os desejados, ou

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por azar se são os indesejados ... E quanto mais exclusivistas e triunfalistas forem essas
profissões e acreditações, mais tudo isto será ... verdade.
E tem que ser assim, não existe outra forma. É necessário que em cada momento
saibamos em que filme estamos, e quais as personagens, para que possamos atribuir
sentido articulador de comportamentos - e de explicações – aos eventos, ao que
devemos esperar dos outros, se há culpados e quem são ... sobre quem devemos lançar
as nossas fúrias e as nossas absolvições, em articulação mínima com outros. Nestes
mundos apontados com as palavras que designam profissões, aliás como em todos, as
palavras preenchem-se de significados muito próprios, únicos ... O antónimo de azar
não é sorte, mas sim competência, e o inverso também é verdade, mas não tem que ser...
Por outro lado, nos mundos que aquelas palavras que apontam profissões excluem, o
antónimo de sorte é incompetência, ... mas só, sublinhe-se, para quem não é designado,
ainda que esteja só a breves instantes do o ser, por uma daquelas palavras que apontam
profissões. Depois de alguém ganhar a designação – ou de convencer os outros de que a
ganhou, é igual - as expectativas que os outros passam a ter são ou de competência, ou
de azar provocado por algo que por definição não é controlável. De alguma forma esse
alguém passa a ser personagem de um enredo já em grande parte escrito ... Se algum
evento não se conseguir encaixar perfeitamente num desses pólos, nesse enredo, ...
passa a ser não evento. Se esta obliteração não for conseguida, será necessário ficarmos
com um ex-designado ... coisa rara mas que por vezes é necessária para que se possa
manter o antónimo de competência claramente para as bandas difusas do azar ... Para
que não fiquemos com um mundo cheio de ex-designados cujas vidas passadas afinal,
por artes mágicas logo a seguir à entrada em vigor da retirada da ex-designação,
passaram a ser preenchidas retroactivamente em alternância por momentos ou de sorte
ou de incompetência, em substituição dos de competência ou de azar que tinham
permeado as suas vidas de designados, mas que afinal não tinham realmente sido ...
Seria um péssimo anátema sobre a designação ... passaria ela própria, arrastando todos
os seus designados, para a banda dos mundos das incompetências versus sortes ... As
designações ... o que quer que seja que signifiquem são, por absurdo, seguras, ... são as
únicas coisas que garantidamente temos, ... por isso há que cuidar delas.
... Mas, com a tendência para o excesso de titulares de certas designações, pode
ainda assim, qual tiro no próprio pé, sobrevir a tentação de se enviar alguns, quase
sempre com subterfúgios tecnicistas e formalistas, para o mundo da incompetência
versus sorte. “Ana e Margarida que se cuidem ...”, matuta, apreensivo, João.

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