Escola de Design
Belo Horizonte
2018
Pedro Henrique Lopes Ribeiro
Belo Horizonte
2018
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Antônio e Patrícia, que sempre me deram todo o suporte
necessário para uma formação de qualidade, por sempre acreditarem em mim e por
todo o carinho.
Aos amigos, que me acompanharam nos últimos tempos e foram cruciais para a
minha formação. Matheus, Luísa, Geraldo, Eduardo, Diego e João. Aos amigos de
longa data, Igor e Thayná.
À minha companheira, Dani, por todo o apoio e cuidado, assim como à sua família.
This paper aims to analyse the logical structure of the commodity aesthetics,
developing the categories of the capitalist mode of production that are articulated so
that it can operate. The logical and historical presuppositions of the commodity
aesthetics were also an object of study, in order to understand its genesis in depth
and to determine its raison d'être for the system. Beyond the analysis of the structure
of this category, what was tried here was to articulate it with the development of trade
(autonomisation of the commodity-capital) to better understand how it locates itself in
the social totality. It was also sought a historical approach that could capture the way
this dynamics were reproduced in the passage of the nineteenth century to the
twentieth, for this, the chosen limit was the emergence of supermarkets at the
beginning of the last century and the establishment of impersonality in relations of
exchange and the way the commodity aesthetics allows this to be consolidated. This
framing allowed an analysis of trade strategies in the period, especially the use of
self-service.
INTRODUÇÃO 7
3 - ESTÉTICA DA MERCADORIA 52
3.3. Conclusão 63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 64
!7
INTRODUÇÃO
Esse processo de compreensão do design não pode significar outra coisa se não o
esforço de compreender – de forma direta ou indireta – a sociedade na qual ele
opera. Se esse discurso já se tornou clichê, isso acontece graças a sua necessidade
e urgência. As responsabilidades atribuídas constantemente aos profissionais da
área dizem não só sobre uma incompreensão em relação ao design, mas também
sobre um certo desconhecimento sobre a forma como a sociedade funciona,
principalmente no seu nível mais elementar.
!1 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo:
Boitempo Editorial: 1998. p. 45.
!8
Isso não quer dizer que os designers são impotentes. Longe disso. Eles
ocupam uma posição nodal no modo de produção capitalista e serão
importantes para sair dele. Coisas – objetos, espaços, imagens, tecnologias
– desempenham um papel tão crítico na reestruturação das relações entre
as pessoas quanto na manutenção delas, e um fogão solar ou uma
aplicação de software gratuita exige muito mais trabalho de design do que
um espremedor de limão Philippe Starck. Mas qualquer tipo de trabalho
progressista é difícil se estamos iludidos sobre o que realmente fazemos.
Como designers, faríamos bem em abandonar as preocupações com nossa
própria capacidade de gerar soluções, e começar a ser mais conscientes
das formas como participamos dos problemas. 2
Nesse primeiro momento usamos a palavra design, entretanto, será curioso notar
como ela não volta a aparecer no resto do texto. Há, contudo, uma razão para isso.
O termo que será utilizado em seu lugar será “estética da mercadoria”, cunhado pelo
autor Wolfgang Fritz Haug, uma referência importante para esta pesquisa. As razões
dessa escolha passam pela abrangência do termo, que consegue englobar toda
uma dinâmica da sociedade que se apresenta na forma do design, da propaganda,
do marketing, do branding, além de várias outras. O uso do termo design limitaria o
nosso objeto e também deslocaria a discussão para fora do âmbito desejado.
A forma como este trabalho foi estruturado passa pelo desenvolvimento das
categorias da sociedade capitalista. Isso significa dizer que buscamos nos
elementos mais essenciais da sociedade respostas para compreendê-la. Há também
um estudo histórico das formas mais fenomênicas de reprodução dessa sociedade
ao longo do século XIX e XX, de acordo com os recortes que consideramos
adequados. A aparência que emana da mercadoria – a forma social da riqueza na
sociedade capitalista – é o objeto aqui analisado. O objetivo central do trabalho é
apresentar sua estrutura (o que a faz ser o que é, qual a sua razão de ser, como ela
se movimenta historicamente, etc.) e também analisar os pressupostos necessários
para a sua gênese. Por essa razão os fundamentos da sociedade burguesa e a sua
reprodução na história são, para nós, centrais.
Por mais que este trabalho pareça uma “ideia fora do lugar”, é justamente do interior
da formação dessa profissão que a sua crítica precisa partir. Os designers precisam
se apropriar da teoria, não para serem profissionais melhores, mas para
compreenderem mais profundamente como eles mesmos agem e como a sociedade
na qual atuam opera, em resumo, o que eles mesmos são. Isso não
necessariamente mudará o mundo, mas destruirá muitas ilusões infrutíferas.
!10
3MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital.
São Paulo: Editora Boitempo, 2017a.
4Cf. SILVA, Lucas Frazão. O Gosto da Embalagem. 2001. 230p. Tese (doutorado) - Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
<http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000219923>. Acesso em: 04 nov. 2018. Entretanto, há
vários outros autores que de forma direta ou indireta, tratam dessa ruptura.
!11
Ou seja, é somente na relação – na passagem de uma mão para outra – que o valor
de uso pode tornar-se o que deveria ser, justamente pela forma como se dá a
produção capitalista, como uma produção de valores de uso para outros indivíduos;
a mercadoria só pode existir se não for um valor de uso para o seu possuidor, e é
isso que permite a sua alienação. Se o valor de uso muitas vezes é um meio de
existência para os indivíduos, não se pode deixar de lado o fato de que são meios
de existência produzidos socialmente.13 Além do que foi mencionado, quando Marx
trata da força de trabalho e do capital como mercadorias (que possuem valor de
uso), fica ainda mais clara a determinação do valor de uso como produto de um todo
social.
É a partir das determinações tratadas acima que a mercadoria opera como uma
mediação social, ela é a passagem de um momento para outro no processo de
troca; mercadoria é um produto do trabalho abstrato, posta socialmente por meio da
12MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Expressão
Popular, 2008, p. 71.
13 Ibidem, p. 55.
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14 E sabemos que isso vem de Hegel, “[...] a ideia é antes algo ao mesmo tempo absolutamente
eficiente e também efetivo.” HEGEL, Georg W. F., 1995, p. 267.
15 FAUSTO, Ruy. Sentido da Dialética: (Marx: lógica e política): tomo I. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015,
p. 125.
16 MARX, 2017a. p. 149.
17 FAUSTO, op. cit., p. 125
18Abstração aqui não contém o sentido comumente utilizado, de retirar determinações, mas o sentido
de relação que não é imediatamente observável, metafísica.
!14
O trabalho é determinado por mercadorias que são produtos dele mesmo, e por
essa razão, tanto o trabalho quanto seus produtos constituem no capitalismo um
processo socialmente automediante. 24 A relação da causa (trabalho) e do efeito
(produtos do trabalho) precisa ser compreendida no fato de que o “efeito é a causa
tornada a outra de si”.25 O trabalho parece não ter um caráter social no capitalismo
por aparecer deslocado das relações imediatas dos indivíduos, porém, como
observamos, o trabalho constitui uma mediação social objetivada no valor.
Com o que foi trabalhado acima, ficou claro que a mercadoria não é apenas um
produto ou objeto, mas que ela constitui uma mediação social específica, que é
produto do trabalho abstrato. Ela é forma social da riqueza, produzida e reproduzida
socialmente enquanto tal. Quando se afirma que “a mercadoria rompe o conceito
inicial (ou original) da própria mercadoria. Ela não é mais o que se mercadeja, mas
sim a idéia de se mercadejar ilusões e esperanças”,26 parece haver uma confusão
conceitual. É evidente que os indivíduos continuam reproduzindo a si próprios, ou
seja, estão produzindo alimentos, roupas, entre outros objetos que são trocados
constantemente pela lógica da mercadoria, e que independente se o que está sendo
vendido é uma ilusão ou um alimento, o sistema continua mediado pela forma-
mercadoria, pouco importando a maneira como a mercadoria aparece enquanto
riqueza material imediata, porque não é isso o que ela é em essência; trata-se do
que é produzido por uma relação, o que está entre dois momentos, e não de um
produto fechado em si. A própria circulação expele as mercadorias – que deixam de
ser mercadorias – para fora de si constantemente, como podemos observar no
trecho abaixo:
Com isso, é possível concluir que a produção de valores de uso na nossa sociedade
opera ao mesmo tempo como a produção de mediações sociais, e a sua função
mediadora é independente da forma material particular. 28 As mercadorias se
relacionam entre si, e há a relação entre mercadoria e indivíduo, para o consumo,
que as retira da circulação. “A mercadoria, que enquanto tal é expulsa da circulação
O que esse processo demonstra é a forma como a totalidade social precisa ser
apreendida, não como uma sucessão de fatos históricos, porque
E é por essa razão que as categorias em Marx não são colocadas em ordem
cronológica, mas “a sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm
entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que
aparece como sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento
histórico.”43 O capitalismo não surge como e por meio de um mero encadeamento de
fatos, mas como um sistema que põe uma totalidade social que se reproduz
constantemente, exigindo uma compreensão da racionalidade própria ao sistema. O
que se apreende não é o objeto estático, fixado no tempo e na história, mas o seu
constante devir.
45 Há também o consumo produtivo, mas que não serve diretamente para o raciocínio aqui
desenvolvido.
46 MARX, 2011, p. 44.
47Importante mencionar também que quando tratarmos da circulação, trata-se da troca considerada
na sua totalidade.
!21
É curioso observar como todo o processo aparece como unidade, ao mesmo tempo
em que se diferencia. A divisão do trabalho – não apenas dentro das fábricas, mas a
divisão que ocorre em toda a sociedade – é a responsável pela capacidade desse
diferenciar-se, enquanto o capital opera como espírito que atravessa cada um
desses momentos como um aglutinador, eles são na verdade momentos de si
mesmo. O capital é força social combinada, e “próprio do capital é unicamente a
união das massas de mãos e instrumentos que ele encontra. Ele os aglomera sob
seu comando.”52
A realização do valor de troca (que opera como manifestação do valor, a sua forma
visível) das mercadorias só pode ocorrer com a efetivação da troca. Se a mercadoria
possui mais-valor pelo trabalho vivo que a produziu, esse mais-valor precisa ser
realizado enquanto tal. “As condições de exploração direta e as de sua realização
não são idênticas”,53 ou seja, a apropriação de mais-trabalho (na forma de mais-
51MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro III: O Processo Global da Produção
Capitalista. São Paulo: Editora Boitempo, 2017b, p. 283.
52 MARX, 2011, p. 417.
53 MARX, 2017b, p. 284.
!23
valor) por parte do capitalista na esfera produtiva precisa ser realizada pela troca;
trata-se de “valor prenhe de mais-valor (na forma de mercadorias)”.54
O que é possível perceber é que o capital comercial opera como parcela da taxa de
lucro média considerada pela produção. Há nesse sentido uma constante disputa, e
“quanto maior for o capital comercial em proporção ao capital industrial, menor será
a taxa do lucro industrial, e vice-versa.”57 Se é possível perceber que com a
autonomização do capital comercial o capital produtivo tem a capacidade de se
voltar mais rapidamente para a produção, pela redução do tempo de circulação, é
54MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro II: O Processo de Circulação do Capital.
São Paulo: Editora Boitempo, 2014, p. 110.
55“É evidente que o capital de comércio de mercadorias, na medida em que existe sob a forma do
capital-mercadoria – considerando o processo de reprodução do capital social total –, não é outra
coisa que a parte do capital industrial que ainda se encontra no mercado, sujeita ao processo de sua
metamorfose e que agora existe e funciona como capital-mercadoria.” MARX, 2017b, p. 316.
56 MARX, 2011, p. 551.
57 MARX, op. cit., p. 328.
!24
importante mencionar que é com o crédito que esse processo ganha uma grande
elasticidade. Porém, como o crédito não é o nosso foco, continuemos com a análise
do comércio.
Se, por um lado, a participação do comércio na taxa de lucro aparece como algo a
posteriori, como cálculo desenvolvido após a produção industrial, por outro lado,
A produção que comercializa somente o seu excedente tem com o comércio uma
relação muito distinta da produção para a troca; na última, o capital comercial
aparece como um apêndice do capital industrial. Mais uma vez podemos observar,
como já tratado anteriormente, que as categorias do sistema burguês aparecem pela
sua ordem na sociedade burguesa, que é o oposto da ordem em que elas aparecem
na história. A indústria parece um produto do comércio historicamente falando, mas
é justamente o contrário quando se trata da determinação categorial, da integração
sistemática entre os capitais.
Entretanto, isso não quer dizer que a revolução industrial não tenha representado
um avanço significativo, mas o que ela realmente fez foi abrir caminho para o
desenvolvimento posterior. O começo da indústria pode ser menos empolgante do
61 HOBSBAWM, E. J. A Era das Revoluções. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 45.
62 Ibidem, p. 46.
!27
que se espera, mas as novas possibilidades abertas naquele período são o que há
de mais importante para se analisar. A pré-história do desenvolvimento industrial
europeu viu diversas ofensivas, que datam do ano 1000 até o século XVII, que
tentaram superar os limites naturais do homem.63 A revolução industrial não foi um
movimento com início e fim, mas a consolidação de uma norma, que teve seu início
entre 1780 e 1800, e um momento de grandiosidade na década de 1840 com o
término de importantes construções de ferrovias e indústria pesada.
63 HOBSBAWM, 1979, p. 45
64 Ibidem, p. 47.
65 Ibidem, p. 48.
!28
Mas a grande virada desse mercado necessitava de alterações no comércio e da
completa integração da classe trabalhadora. A classe trabalhadora não nasce como
compradora passiva de mercadorias e como um operariado subserviente. Ao longo
do tempo ocorreu um processo disciplinatório para que os trabalhadores passassem
a trabalhar durante toda a semana, o que se estabeleceu como a jornada de
trabalho – uma integração forçada, que não garantia poder de consumo abundante,
mas os submetia ao sistema. As práticas capitalistas incluíam “pagar tão pouco ao
operário que ele tivesse que trabalhar incansavelmente durante toda a semana para
obter uma renda mínima”.67 A venda da “totalidade de seu tempo ativo”68 da classe
trabalhadora consolidou-se somente depois de uma luta de 400 anos entre
trabalhadores e capitalistas,
apesar de não se tratar de uma ruptura técnica com tudo o que havia sido feito até
então, o surgimento da maquinaria possibilitou a efetivação da transformação
anteriormente descrita, que permitiu a indiferenciação do trabalho, caracterizada
pela inversão dos agentes do trabalho.
Essa ampliação também teve como central o surgimento das ferrovias, que garantiu
avanços no crescimento da população que já não era mais refém da fome causada
pelas catástrofes que destruíam a capacidade de produzir e o acesso aos alimentos,
assim como possibilitou uma expansão dos meios de comunicação, e a
generalização do contato entre homens e mercadorias. “Entre 1816 e 1850, perto de
cinco milhões de europeus deixaram seus países nativos (quase quatro-quintos
uma droga nociva à população chinesa no mercado e pela guerra declarada contra a
China pela Inglaterra para permitir as importações.
80BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: KOTHE, Flávio (org.), Walter Benjamin. São
Paulo: Ática, 1985. p. 30-43, p. 31.
81 Ibidem, p. 32.
82 Ibidem, p. 43.
83ROBBINS, Richard. Global Problems and the Culture of Capitalism. 2ª Ed. Boston: Allyn &
Bacon, 2001, p. 12.
!33
84 É importante mencionar que daqui em diante o que será descrito trata de transformações ocorridas
nos EUA, em algumas regiões específicas. Há similaridades se compararmos a outros países, ao
mesmo tempo que em outros a situação era completamente distinta, porém, não é nosso objetivo
traçar essas diferenças ou estabelecer paralelos. Não se trata de generalizar um fenômeno regional,
mas de um recorte que permite compreender a dinâmica que pretendemos analisar.
85DEUTSCH, Tracey. Building a Housewife’s Paradise: Gender, Politics, and American Grocery
Stores in the Twentieth Century. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2010.
!34
ao seu grupo.88 Havia uma noção de que as mercearias, por serem um local de
comércio de produtos tão elementares à sobrevivência, precisavam desempenhar
um papel social referente ao grupo no qual o merceeiro pertencia. Pelo fato da
mercearia ser um espaço físico, era possível estabelecer laços mais diretos entre os
consumidores e comerciantes, diferente do que ocorria com os ambulantes.
Era preciso manter boas relações com o merceeiro para que fosse possível ganhar
crédito na sua mercearia, para que ele fornecesse os produtos mais frescos e para
que o preço cobrado também fosse diferenciado. Ressentimento e confiança
desempenhavam um papel importante nas negociações. As tensões sociais
presentes nas mercearias também se demonstravam na prática tanto pelo
atendimento ao cliente quanto pela contratação de empregados. Esperava-se que
uma mercearia onde o dono fosse judeu empregasse apenas outros judeus, em um
processo de ajuda comunitária. Mas esse tipo de situação intensificava conflitos
raciais e étnicos – altamente presentes em uma sociedade racista como a
americana. O caso da comunidade negra era ainda mais evidente pelo fato de os
negros serem donos de poucos estabelecimentos, mas quando o eram, tratava-se
de mercearias, que desempenhavam um papel político importante na tentativa de
autonomia da comunidade negra – o que intensificava ainda mais os conflitos
raciais.
88 Ibidem.
!36
O cenário das mercearias era muito diferente dos supermercados que surgiram
depois. Se no fim do século XIX começaram a surgir os primeiros alimentos pré-
embalados, eles ainda não haviam se generalizado no começo do século XX nos
EUA. Os clientes se aproximavam dos vendedores e escolhiam os produtos que se
localizavam atrás do balcão, ou que estavam nos fundos, onde não era possível que
o cliente tivesse qualquer controle sobre os produtos escolhidos. Não era comum
encontrar preços fixos nos produtos, o que permitia uma elasticidade no preço de
acordo com o cliente. Os grãos – e diversos outros produtos – eram pesados e
embalados pelos funcionários, e era nesse momento que a barganha e as relações
sociais operavam de forma direta nas trocas. Toda compra precisava ser
racionalizada – comprar em grande quantidade para economizar ou comprar em
pouca quantidade para ter alimentos sempre frescos. Os mercados públicos e as
mercearias nem sempre estavam próximos dos lares, o que significa que muitas
pessoas precisavam levar suas compras no transporte público ou arcar com os
custos da entrega.
Foi em meio aos conflitos aqui tratados que diversas transformações nos locais de
consumo começaram a operar. A segunda metade do século XIX foi o momento da
história em que podemos observar a produção para a troca se estabelecendo como
norma nos EUA, generalizando-se. As transformações que isso gera tanto nos
espaços de trocas quanto nos produtos trocados é imensa. É importante mencionar
que se a abordagem mais comum tende a valorizar o aspecto do “espetáculo” e da
“manipulação”, o nosso objetivo aqui é tratar como essas mudanças estavam
presentes no que havia de mais cotidiano e mundano e não meramente no
extraordinário. A nova forma de consumir alterava a vida das pessoas de forma não
tão empolgante, mas o fazia pela reconstrução da rotina e dos espaços públicos e
!37
89HUMPHERY, Kim. Shelf Life: Supermarkets and the Changing Cultures of Consumption.
Cambridge, United Kingdom New York: Cambridge University Press, 1998, p. 26.
!38
Voltemos à história. Os EUA no fim do século XIX e começo do século XX, como já
observamos com o caso de Chicago, tratava-se de um país permeado por relações
conflituosas. O ano de 1919 ficou marcado por um intenso conflito entre afro-
americanos e brancos, ao longo desse período foram registrados uma enorme
quantidade de roubos, pilhagem e ataques. Os bairros negros e de trabalhadores
brancos foram onde o conflito se concentrou. Muitos negros ficaram impedidos de ir
ao trabalho – que incluía a passagem por bairros brancos no caminho – durante
vários dias.90 Esse período escancarou ainda mais o racismo presente na sociedade
americana e considerando que se chegava no fim da Primeira Guerra Mundial, é
possível entender como os problemas se intensificaram e geraram uma sociedade
ainda mais cindida.
O custo de vida no ano de 1920 já era duas vezes maior que o de 1913.91 O pós-
guerra ficou marcado pela inflação, responsável pelo aumento dos conflitos descritos
anteriormente entre comerciantes e consumidores, por consequência, nos EUA, a
segunda década do século XX se apresentava como o momento ideal para o
surgimento das cadeias de lojas.92 Nos anos próximos à Primeira Guerra Mundial, as
cadeias de lojas transformaram completamente o cenário varejista de Chicago. Se
antes as vizinhanças eram dominadas por pequenas lojas, a operação destas era
feita localmente e os ambulantes faziam parte do cotidiano dos compradores, o
cenário se transformou com a chegada das corporações que geriam as cadeias de
mercearias.93 Com promessas de preços baixos (em um período pós-guerra),
independência do consumidor (que agora escolhia o seu produto) e garantia de
qualidade dos produtos (que em alguma medida, vinham pré-embalados), é possível
compreender a transformação causada pelas cadeias. As novas mercearias eram
menores que as mercearias tradicionais, mas agora eram bem planejadas e com a
sua operação centralizada – “pequenas lojas eram lugares de grandes negócios”.94
As cadeias de lojas surgiram como uma resposta para o problema da alta dos
alimentos que estava além do controle individual. As mulheres, responsáveis pelo
planejamento alimentar das famílias, foram culpabilizadas em alguma medida pelo
aumento do custo de vida, como se elas estivessem gastando de forma irracional.
Por essa razão, as cadeias surgiram com um grande apelo para as mulheres pela
sua capacidade de oferecer preços baixos. Entretanto, como podemos observar no
trecho abaixo, não se tratou de uma “solução” sem conflitos.
95KLEIN, Naomi. Sem Logo: A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido. Rio de Janeiro, Ed.
Record, 2002, p. 104.
96 MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Editora Boitempo, 2004, p. 50.
!40
O fenômeno descrito acima (em 1844) pode ser observado nas cadeias de lojas no
começo do século XX, mas também na segunda metade do século. Quando
pequenas empresas, concorrentes da rede de supermercados Wal-Mart, afirmavam
que pagavam mais caro nos produtos no atacado do que o supermercado vendia no
varejo,97 trata-se do mesmo processo observável em diversos momentos e locais na
história.
O surgimento das cadeias minou a barganha e disputas por preços dentro das
mercearias. Com o sistema de preços fixos, os funcionários não podiam mais
conceder descontos e também não estavam autorizados a disponibilizar crédito para
os consumidores. As animosidade e conflitos pessoais não influenciavam mais
diretamente a experiência do usuário como acontecia antes – instaurava-se, aos
poucos, as relações impessoais de troca na esfera do consumo.
Entretanto, o domínio das corporações deveio também das novas estratégias que a
centralização do controle das lojas permitia. Abrir uma nova loja era um processo
dispendioso e que não garantia um sucesso imediato. A padronização das lojas99
permitiu que a expansão das redes fosse feita com mais eficiência e menor custo; no
lugar de adaptar-se à região onde a loja atuaria, buscava-se locais onde já havia
chance de sucesso e a população tivesse uma boa aceitação dos seus termos.100
O processo de compra agora possuía uma dinâmica distinta: não era mais preciso
confiar no vendedor, era preciso confiar na mercadoria. A uniformização dos
produtos – levada a cabo pelo processo produtivo – também permitia a redução de
custos, porque significava o aumento da produtividade pelo aperfeiçoamento da
divisão técnica do trabalho.
101Com seus grandes estacionamentos, os supermercados deixavam claro o papel dos automóveis
nesse processo.
!42
HINE, Thomas. The Total Package: The Secret History and Hidden Meanings of Boxes, Bottles,
109
Cans, and Other Persuasive Containers. Boston: Back Bay Books, 1997, p. 2.
110 BOWLBY, 2001, p. 48.
!47
produto comercializado de forma mais imediata, mas que opera como material
complementar é possível alterá-lo com uma frequência maior sem grandes
problemas de logística e custo. Esse material de publicidade tinha a função de
“venda prévia” do produto para que o consumidor chegasse ao supermercado,
encontrasse o produto já “pré-vendido” e apenas concluísse a compra. Trata-se da
extensão da venda para um momento anterior à sua concretização, uma tentativa de
encaixar a dinâmica das trocas em toda a experiência social dos indivíduos.
Estimular desejos, criar sentimentos, construir toda uma narrativa sobre um estilo de
vida e associar a felicidade ao consumo são tentativas não de mera “manipulação”,
mas de vender bens de consumo antes da efetivação do ato de troca. Tudo isso é
feito mediante a diversos artifícios que trabalham com a sensibilidade dos
indivíduos. Vender um produto fora do local onde ele é comercializado significa
romper com as barreiras locais da negociação – não há mais necessidade de
convencer, porque a maior parte do serviço já foi feito fora do supermercado, a
confiança do consumidor já foi conquistada.
Mas como opera o self-service do ponto de vista da sociedade capitalista? Para que
ele serve na moderna sociedade burguesa? A principal função do self-service é a
transferência de atividades, que antes eram executadas pelo trabalhador (e eram
trabalho), para o consumidor, por meio de um objeto externo e ambiente mediador.
O vendedor não precisa mais buscar os produtos solicitados pelo comprador, o
próprio consumidor é quem faz todas as escolhas no supermercado e as coloca no
carrinho. Se antes ele era convencido pelo vendedor, agora o diálogo de venda é
feito entre o indivíduo e a mercadoria.
mais ser desempenhadas por eles. O trabalhador precisa cada vez menos de
habilidades para a execução de tarefas no seu ambiente de trabalho, porque sempre
que possível o capital irá transferir suas funções a objetos e máquinas que são mais
confiáveis, aumentam a produtividade e, principalmente, não dependem de salário
para operarem. Mas não se trata de uma transferência de trabalho de forma tão
mecânica e sempre com bons resultados, o self-service precisa de artifícios
tecnológicos para operar de forma adequada, precisa de um contexto favorável para
seu sucesso e de uma interface gráfica que torne familiar aquela relação entre um
indivíduo e um produto. Sabemos que esse processo não pode acontecer sem
enfrentar empecilhos e que ele possui limites.
Há várias razões para explicar esse fenômeno, mas a principal é a redução da família a um núcleo
112
desaparecimento das vitrines nos supermercados 114 foi outro fenômeno que
explicitava o novo papel desempenhado pelas prateleiras: o de ser local de
armazenamento e de exposição. Trata-se de uma função híbrida onde não apenas
se estocava, mas também se promovia vendas ativamente.
Ou seja, trata-se de “falsas despesas”, que tem origem nas funções autonomizadas
pela divisão do trabalho, como o comércio. Esse processo não tem como objetivo a
criação de valores117 (principalmente quando o processo se automatiza), mas de
reduzir os custos adicionais acrescidos aos valores criados para que os mesmos
fossem vendidos – reduzindo a negação dos valores criados, permitindo a sua
realização. Essa questão levanta muitos questionamentos, principalmente sobre a
possibilidade do setor se automatizar de forma completa, onde não haveria mais a
necessidade de se utilizar trabalhadores. Como não pretendemos nos aprofundar no
tema, segue uma citação que visa levantar alguns pontos importantes sobre o lugar
A rede de supermercados Big Bear foi uma das primeiras a consolidar essa tradição. Cf. BOWLBY,
114
2001, p. 142.
115 Tradução livre. BOWLBY, 2001, p. 157.
116 MARX, 2011, p. 517.
117Esse debate e suas complicações não serão tratados aqui, mas é importante mencionar a
complexidade da questão, que abre espaço para muitas divergências dentro da tradição marxista.
!50
grandes barreiras que, para além das questões técnicas, envolvem a experiência
dos usuários. Em outras palavras, o trabalho que será executado por eles precisa
estar claro o bastante para que aquela tarefa seja executada sem grandes
dificuldades.
Essa aparente cisão entre os capitais tem consequências nos aspectos mais
elementares do capitalismo. Trataremos disso a seguir.
3 - ESTÉTICA DA MERCADORIA
124 Ibidem, p. 6.
125 KURZ, Robert. Adeus ao Valor de Uso. 2004. Disponível em: <http://www.obeco-online.org/
rkurz165.htm>. Acesso em: 04 nov. 2018.
!54
126O aspecto social do trabalho é transferido ao capital, que trata de agir como “força social
combinada.”
127 Ibidem, p. 610.
!55
(do mesmo truste de X), oferece o mesmo chocolate com uma roupagem econômica
pela metade do preço. Um capital singular parece concorrer consigo mesmo, mas o
que ele faz é abocanhar uma maior fatia do mercado e acumular ainda mais.136
A mercadoria precisa subordinar a sua aparência aos ditames que a regem. Se “nos
anos 1950 e 1960 ninguém esperava encontrar ou discutir sobre a inovação artística
em um pacote de sabão em pó ou cereais”,141 agora isso torna-se realidade quando
as mercadorias dependem da sua aparência para terem sucesso nas venda. Os
produtos do trabalho, indiferentes uns dos outros, comparáveis quantitativamente,
agora precisam se diferenciar: “Marx compara o capital a um eunuco agindo como
um cafetão, procurando uma mercadoria para cada desejo: a indiferença
proclamando a diferença, a abstração real como concretização ilusória para os
outros.”142
Uma vez que muitos dos mais conhecidos fabricantes de hoje não
mais fazem os produtos e os distribuem, mas em vez disso compram
produtos e lhes dão sua marca, essas empresas estão
continuamente procurando por novas formas criativas de construir e
fortalecer a imagem das marcas. Fabricar produtos pode exigir
perfuratrizes, fornalhas, martelos e similares, mas criar uma marca
pede um conjunto completamente diferente de ferramentas e
materiais. Requer um desfile infindável de extensões de marca,
imagens continuamente renovadas para o marketing e, acima de
tudo, novos espaços para disseminar o conceito da marca.143
O fato do valor de uso só existir enquanto valor de uso para outrem é um dos
elementos chaves para a gênese da estética da mercadoria; em outras palavras, a
produção para a troca e não para o consumo lhe é essencial. Quando o valor de uso
se manifesta por meio da troca é possível que haja uma diferenciação aparente
entre ele e a sua manifestação (que é a promessa da realização do uso). Diferente
do que dissemos antes, a aparência não está simplesmente subordinada ao valor de
troca e apartada do valor de uso, porque esse valor de uso mesmo só o é enquanto
produto do valor de troca. Não há, como já colocamos, valor de uso como forma
“pura” da utilidade, mas sim como a utilidade que opera pela lógica do capital. O
valor de uso se manifesta pela troca, ou seja, só pode aparecer por meio da
comparação de uma mercadoria com a outra – isso significa dizer que a
manifestação do valor de uso, a sua promessa, é também uma manifestação que só
pode existir por meio da troca.
A cisão entre valor de uso e promessa de uso não é mero produto do valor de troca
agindo sobre o uso, mas do próprio valor de uso enquanto categoria negativa. A
estética da mercadoria, portanto, não é a estética do produto, mas a estética de uma
forma social da riqueza. Para que um produto seja valor de uso e tenha a
capacidade de manifestar uma promessa de realização do uso, ela precisa ser valor
de uso para outrem: “Para seu possuidor não é valor de uso, porque é valor de
troca. Como valor de uso, é preciso que chegue a sê-lo, em primeiro lugar para os
demais.”144
Em resumo do que foi dito até aqui, se o valor de uso só pode aparecer na relação,
então é essa mesma relação a responsável pela estética da mercadoria (como
manifestação do valor de uso) e se, como já demonstramos antes, a mercadoria é a
forma social da riqueza na sociedade capitalista, então a sua estética também é
produto da moderna sociedade burguesa.
3.3. Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: KOTHE, Flávio (org.), Walter
Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 30-43.
HINE, Thomas. The Total Package: The Secret History and Hidden Meanings of
Boxes, Bottles, Cans, and Other Persuasive Containers. Boston: Back Bay Books,
1997.
KLEIN, Naomi. Sem Logo: A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido. Rio de
Janeiro, Ed. Record, 2002.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro III: O Processo Global da
Produção Capitalista. São Paulo: Editora Boitempo, 2017b.