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1700 1750 1800 1850

A literatura vista de longe


Franco Moretti
ISBN 978-85-6017-104-0

%
ARQUIPÉLAGO
lilM TORl AI.
9 788560 17 1040
Se o leitor se intrigou com o título deste
belo estudo e reagiu pensando “Mas
literatura é sempre algo a ser visto de
perto!”, seja bem-vindo: é exatamente este
contraste o ponto de partida para apreciar
e fruir adequadamente as teses de Franco
Moretti sobre estudar literatura hoje.

Autor de alguns trabalhos de grande


poder descritivo, muitos dos quais
traduzidos no Brasil, Franco Moretti
é talvez o mais original fòrmulador das
aproximações entre estudos de literatura
e geografia. Estudioso do romance, forma
narrativa moderna que domina o cenário
das letras há mais de dois séculos, ele
procede a levantamentos documentais
da geografia presente no romance e dá a
ver quão estruturante é o papel do espaço
nos relatos ficcionais, para muito além
do aspecto meramente paisagístico que
habitualmente se concebe.
A literatura vista de longe
De outra parte, seu trabalho lida com
os espinhosos temas da história
da literatura, em especial do romance.
Sabemos que ninguém tem mais
serenidade de falar ingenuamente
em histórias nacionais de literatura,
menos ainda com a crescente
mundialização dos mercados
e o consequente entrecruzamento
de tendências, estilos, enredos; mas quase
ninguém ainda havia atinado com
premissas sólidas para uma história
mundial da literatura. E aí entra Moretti
em cena: tomando por base uma
perspectiva materialista mezzo
darwinista, postula, em particular para
o romance, alguns princípios capazes
de descrever a origem
e o desenvolvimento dessa forma
narrativa em todo o mundo.

Utopia? Sim, mas ao alcance do debate,


senão mesmo da escrita, como está
provando sua obra. No livro que o leitor
tem agora em mãos, Moretti oferece três
modelos abstratos para a história
da literatura. Abstratos, quer dizer: que
lidam com a literatura como um objeto
passível de uma perspectiva científica
aparentada das ciências da natureza. Ele
mesmo explica que seu marxismo tem
pouco a ver com as sutilezas filosofantes
das tradições francesa e alemã e muito
em comum com a tradição empirista
inglesa (Moretti, italiano, especializou-se
em romance inglês, justamente).

Gráficos, mapas e árvores, então, são


as figuras abstratas que Moretti mobiliza,
aqui, para pensar (de longe, de cima,
panoramicamente) sobre literatura,
e o leitor vai logo apreciar o enorme
rendimento que ele obtém, ao lado
do não menos interessante ritmo de
sua argumentação, marcante em mais
de um sentido, que ajuda a arejar
a conversa sobre história da literatura,
aqui e em toda parte por onde já circula.

L u ís Augusto Fischer

ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM BELL E MYRIAD


Franco M oretti é professor de
E IMPRESSO PELA GRÁFICA NOVA PROVA Literatura Comparada na Universidade
SOBRE PAPEL PÓLEN BOLD 90 GRAMAS PARA Stanford, nos Estados Unidos, onde fundou
ARQUIPÉLAGO EDITORIAL EM JANEIRO DE 2008.
o Centro de Estudos do Romance. E autor
de Atlas do romance europeu e Signos e estilos
da modernidade, entre outros, e editor do
compêndio em cinco volumes II Romanzo.
F ra n c o M o re tti

A l i t e r a t u r a v i s t a d e lo n g e

TríiduVilo
Anselmo Pessoa Neto

Porto Alegre - 2008


I l .1111 o M o re tli, '2005. Sumário
I liilu original: La letteratura vista da lontano

t ii|t,i, l ’rn|elo Gráfico e Editoração


Itihlorns Associadas G ráficos, m apas e á r v o r e s .......................................................7
(<'ilitiíln Kicling e Marta Castilhos) G rá fic o s......................................................................................11
i' cpai-ação M a p a s ....................................................................................... (> 1
I ito Montenegro
A r v o r e s ....................................................................................109
It 'v isão
I*i(rfcia Rocha.I* Posfácio
A evolução v ista de p erto (AIIht Id I ’iii / / h ) .................... 1,0,0

M844I Moretti, Franco


A literatura vista de longe / Franco Moretti; trad. de Anselmo
Pessoa Neto. - Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008. ín d ice de figuras. . . . . . . . . . . . . . . . 180
184 p.: il.; 14 x 21 cm.
índice onom ástico . . . . 18'2
Inclui bibliografia, gráficos, mapas e índices.
Posfácio de Alberto Piazza.

I. Literatura - história. 2.Teoria literária. I. Pessoa Neto, Anselmo, trad.


II. Título.

CDU 82.09

CIP - Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229

,\ H LH JIP ÉLA G O E D IT O R IA L L T D A .
Avenida Getúlio Vargas, 901 / 506
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Porto Alegre - RS
Telclonc 51 211 1.3701
v ww.nrq uipclagoeditorial.com.br
Gráficos, mapas e árvores

O homem que quer a verdade torna-se erudito;


o homem que quer liberar sua subjetividade torna-se,
talvez, escritor; mas o quefa rá um homem que
quer qualquer ro/sa entre esses dois pólos?

Kobert Musil, O homem sem qualidades.

título deste breve livro merece algumas palavras de

O explicação. Antes de mais nada, aqui se fala de lite­


ratura: o objeto permanece mais ou menos aquele de
sempre, diferentemente da recente virada do new historicism
e, depois, dos cultural studies em direção a outros âmbitos de
discurso. Mas a literatura é, não obstante, “vista de longe”
no sentido de que o método de estudo aqui proposto substi­
tui a leitura de perto do texto (o close reading da tradição de
língua inglesa) pela reflexão sobre aqueles objetos artificiais
com os quais se intitulam os três capítulos que se seguem: os
gráficos, os mapas e as árvores. Objetos diferentes, mas todos
resultado de um processo de deliberada redução e abstração.
Em suma, de um distanciamento em relação ao texto em sua
concretude. Distant reading, chamei uma vez, um pouco por
brincadeira e um pouco não, a este modo de trabalhar1 em 1

1 "Conjecturas sobre a literatura mundial". In: Contracorrente: o melhor da New Left


Reviewem 2000. Rio de Janeiro: Record, 2001.
H I t.m< n MtircUi Gráficos, Mapas e Árvores 9

ii distância não é um obstáculo, mas sim umaforma especí- veio depois, repare bem, quer continuar mudando. Estudar
j/<i) dc conhecimento. A distância faz com que se vejam menos cinema, televisão, publicidade e quadrinhos está na ordem
os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, do dia. O crítico norueguês que escreveu o excelente ensaio
os paliem, as formas. sobre a narrativa contemporânea para 11 rornanzo deixou há
alguns meses sua cadeira de Literatura e foi trabalhar em um
I )o texto ao modelo, então, ou, melhor ainda, aos modelos, no centro de estudos sobre videogames. E eu acredito que o que
plural, como no título, talvez um pouco duro, severo, das três ele fez foi correto.
conferências proferidas em Berkeley, na primavera de 2002, e
que formam a base destas páginas: Modelli astrattiper la sto- E agora? Agora, como em Palmos, onde surge o perigo sur­
ria lelteraria pVlodelos abstratos para a história literária)]. E ge também a salvação? Uma disciplina que está perdendo o
os modelos, além do mais, foram retirados de três disciplinas seu fascínio pode tranquilam ente arriscar tudo e procurar um
com as quais a história literária teve, no curso de sua existên­ novo modo, um novo método para tornar significativo o seu
cia, pouco ou nada a ver: os gráficos da história quantitati­ próprio trabalho. E se aqui, como já disse, os métodos serão
va, os mapas da geografia e as árvores da teoria da evolução. abstratos, as suas conseqüências são, porém, todas concretas.
As razões remotas desta escolha remetem à minha formação Gráficos, mapas e árvores nos colocam, literalmente, diante
marxista que tbi muito influenciada por Galvano delia Volpe e dos olhos (a literatura vista de longe...) o quanto é imenso o
comportava (senão na prática mesmo, pelo menos em teoria) campo literário e como sabemos tão pouco dele. E uma dupla
um grande respeito pelo método das ciências naturais. En­ lição, simultaneamente de humildade e euforia: humildade em
quanto a teoria literária dos últimos 20 anos - a Teoria, com relação àquilo que fizemos até aqui (bem pouco), e euforia
T maiusculo, das universidades americanas —reverberava a em relação àquilo que ainda temos que fazer (muitíssimo). E,
metafísica franco-alemã, para mim continuava a parecer que então, comecemos.
aquelas com as quais tínhamos verdadeiramente que aprender
alguma coisa (melhor: muitas coisas) eram as ciências naturais
e sociais. E este livro é também, na sua brevidade, uma tenta­
tiva de iniciar um diálogo em uma direção diversa.

Às razões que vieram de longe, se associa uma outra, muito


próxima: o fato, evidente e inevitável, de que o interesse pelo
estudo da literatura está diminuindo a olhos vistos. Quando
entrei na universidade, e não foi um século atrás, no curso de
Letras existiam quatro professores de Latim para um de In­
glês. No ciclo de uma geração, tudo mudou. E a geração que
Gráficos
Gráficos 13

ntes dos Annales, Krzysztof Pomian escreveu: “o compor­

A tamento dos historiadores parecia-se com aquele dos


colecionadores: uns e outros recolhiam somente as coi­
sas raras e curiosas, deixando de lado tudo o que era banal, coti­
diano e normal a história era uma ciência idiográfica, isto é,
uma ciência que tinha como objeto aquilo que não se repete”2.

J“A história era...” Pomian aqui fala no passado como, talvez, seja
o correto para a história social, mas certamente não para a his­
tória literária, em que o colecionador de coisas (ou obras) raras
e curiosas, que não se repetem, excepcionais —e que o close rea-
ding torna ainda mais excepcionais quando sublinha o caráter
único daquela palavra e daquela frase ali - é ainda, de longe, a
figura dominante. Mas o que aconteceria se os historiadores da
literatura decidissem também “mudar a direção do olhar” (ainda
Pomian) “do extraordinário para o cotidiano, dos acontecimen­
tos excepcionais para a grande massa dos fatos”? Que literatura
terminaríamos por encontrar na “grande massa dos fatos”? J

2 K. Pomian. "L'histoire des structures". In: J. Le Goff (org.), La nouvelle histoire. Paris,
1978, p. 115-16.
14 1rmico Moretti Gráficos 15

Todas c\stas eram perguntas que comecei a fazer-me alguns


unos atrás, quando o estudo dos repertórios bibliográficos
de vários países europeus fez-me entender em que minúscu­
la fração do campo literário se desenvolve, normalmente, a
atividade da crítica. Tomemos o século 19 inglês: um cânone
de 200 ou 300 romances ecoa qualquer coisa, menos que seja
exíguo (e seria, com efeito, muito mais amplo do que o câno­
ne corrente), mas cobriria, porém, somente cerca de um por
eento dos romances efetivamente publicados: 20 mil, 30 mil
ou mais, ninguém sabe precisamente. E o close reading aqui
não ajuda muito. Se você fosse ler um romance por dia, por
todos os dias do ano, seria preciso pelo menos um século para
ler todos... E depois não é nem mesmo uma questão de tempo, I.
mas de método-, um campo assim tão vasto não é possível ser
entendido apenas colocando lado a lado o que sabemos deste
ou daquele outro caso isolado. Porque não é a soma de tantos
casos isolados: é um sistema coletivo, um todo, que deve ser
visto e estudado como tal. Ou, para citar a conferência sobre a A quantificação da análise literária pode assumir formas di­
história que Fernand Braudel proferiu em 1941, em Lubecca, versas, que vão da história do livro à estilística computacio­
para os seus companheiros de prisão: nal, dos bancos de dados temáticos à análise multivariada do
léxico, entre outras. Eu aqui me limitarei à prim eira destas
U m núm ero incrível de dados, sem pre em movimento, domina formas, a história do livro, e iniciarei a argumentação a partir
e decide o caso de cada existência em particu lar £../]. In certe­
do trabalho feito por McBurney, Beasley, Raven, Garside e
za, portanto, no campo da h istória individual, mas no outro, no
Block para a Inglaterra; M artin, M ylne e Frautschi para a
campo da história coletiva, simplicidade e coerência quase total.
França; Zwicker para o Japão; M unch-Petersen para a Di­
A história é, sim, “um a pobre pequena ciência co njetural” quan­
namarca; Ragone para a Itália; M artí-Lopez e Santana para
do tem por objeto indivíduos isolados do grupo, quando tra ta de
a Espanha; Joshi para a índia e Griswold para a Nigéria. E
acontecim entos, mas é m uito menos conjetural e bem mais racio­
começo dando essa série de nomes com a intenção de m ostrar
nal, seja nos procedim entos, seja nos resultados, quando recolhe
como a pesquisa quantitativa é, antes de qualquer outra coisa,
para exam inar os g ru p o s e o repetir-se dos acontecim entos'’.
cooperação. Um pouco pela razão, banal, de que é preciso uma
Uma história literária mais racional. Esta é a idéia. eternidade para recolher os dados, mas sobretudo porque es­
tes dados são (pelos menos em teoria) independentes da in­
1 1. Braudel. "Uhistoire, mesure du monde". In: Les écrits de Fernand Braudel, vol terpretação do pesquisador individual e podem, portanto, ser
II. Paris, 1997.
Ifi I r.iiuo Moretti Gráficos 11

recolhidos por outros pesquisadores e usados em contextos


diferentes. O que, de fato, foi o que eu fiz na figura 1, a qual
nlcrece um quadro sintético da ascensão do romance na In­
glaterra, no Japão, na Itália, na Espanha e na Nigéria.

Cinco países, três continentes, dois séculos e meio e a traje­


tória é sempre a mesma: a venerável metáfora dq rise o f the
nove! —a ascensão do romance —feita imagem. ÍEm 20 anos
(para a Inglaterra, 1720-40; para o Japão, 1745-65; para a
Itália, 1820-40; para a Espanha, 1845 ao começo dos anos
60; e para a Nigéria, 1965-80), o número de novos romances
salta de cinco, dez títulos por ano —o que quer dizer um ro­
mance a cada um ou dois meses —para cerca de um romance
por semana. E, quando se chega a esse nível, o horizonte de
expectativa dos leitores muda. Enquanto sai somente um pu­
nhado de romances por ano, ele é um produto pouco confiável
que vai e vem sem pré-aviso e sobre cuja presença não se
pode contar com segurança. São mercadorias, sim, vendidas F ig u ra 1. A ascensão do rom ance, séculos 18 a 20.
por tipógrafos e livreiros, mas mercadorias ainda à espera Número de novos títulos por ano, média qüinqüenal.
de um mercado verdadeiro. Com um novo romance a cada
fontes: para a Inglaterra: W.H. McBurney. A check list ofenglish prose fiction, 1700-1739. Cambridge: Har-
semana, ao contrário, estamos já no pleno oximoro moderno vard U. P., 1960 e J. C. Beasley. The novels ofthe 1740s. Charlottesville: University Press ofVirginia, 1972; os
da novidade regular, o inesperado que o mercado produz e ofe­ dois parcialmente revistos in: J. Raven. British fiction 1750-1770: a chronoíogical check-list of prose fiction
ptlnted in Britain andIreland. Newark: University of Delaware Press, 1987.
rece com tal pontualidade que os leitores passam a tê-lo como Para o Japão: J. Zwicker."ll lungo Ottocento dei romanzo giapponese”. In: II romanzo, vol. III, Storiae geo­
indispensável. Reading becomes a necessity o f life, soa o título grafia. Einaudi.Torino, 2002.
Para a Itália: G. Ragone. "Itália 1815-1870”. In: IIromanzo, vol. III, op. cit.
de um livro de William Gilmore-Lehne, e o segundo quarto Para a Espanha: E. Martí-Lopez e M. Santana."Spagna 1843-1900". In: IIromanzo, vol. III, op. cit.
do século 18 é precisamente o momento em que o romance Para a Nigéria: W. Griswold. "Nigéria 1950-2000". In: II romanzo, vol. III, op. cit.

torna-se uma necessidade da vida moderna. As lamúrias que I in Ia-se, portanto, de obter d.a história literária, como nós a conhecemos, uma conversão radical, aná-
de imediato se levantam por toda parte —os romances fazem lofia àquela que se deu quando se passou das crônicas reais para a história propriamente dita. Enrique-
t<‘r "S nossas crônicas literárias com alguns novos ingredientes históricos, aqui uma fonte inédita, acolá
com que os leitores se tornem preguiçosos, estúpidos, imo­
uma biografia revisada, não serviría para nada: é a impostação que deve mudar e o objeto, converter-se.
rais, loucos, rebeldes: exatamente como se levantarão para Imputar a literatura do indivíduo! Evidentemente é uma ruptura ou, até mesmo, um paradoxo. M as
lamentar os filmes dois séculos depois - atestam o sucesso do uma história da literatura só é possível a este preço. Necessário se fa z precisar que, reconduzida para
romance muito melhor do que qualquer elogio. ilcn/iv de seus limites institucionais, a história da literatura será história tout court.
Uni.tNl) Bauthks. História ou literatura?
Gráficos 19

um pouco distraído, ao invés de poucos livros, frequentemen­


te e com atenção (como era com a leitura intensiva dos textos
devocionários) —não podiam jamais bastar eompletamente as
novidades do ano em curso, e os leitores eram, então, obriga­
dos a buscar em outros lugares boa parte do próprio enter-
tainment: reimpressões de velhos best-sellers, resumos, livros
estrangeiros, alguns clássicos e também uns poucos textos da
Antigüidade. O mercado do romance era, em suma, um lu­
gar em que o passado, remoto e recente, tinha ainda um peso
considerável. Mas, quando o número das novidades anuais é
duplicado em relação à fase precedente - serão 80 em 1788; 91
em 1796 e 111 em 1808 —, a popularidade dos velhos livros cai
II. imediatamente45,e o público romanesco pode voltar-se resolu­
tam ente (e para sempre) em direção à estação corrente. Nestas
décadas, o romance torna-se definitivamente a forma do pre­
sente, como foi, de imediato, claro para os grandes românticos
alemães. O romance torna-se aforma do presente, creio, não so­
A ascensão do romance, portanto. Ou melhor, uma ascensão mente graças ao Meister do famoso aforismo de SchlegeP, mas
em uma história iniciada muitos séculos antes e que verá mui­ também em virtude deste subterrâneo, e até banal, processo
tos outros momentos de rápido crescimento. Acompanhando de crescimento quantitativo.
o romance inglês de 1710 a 1850, por exemplo (fig. 2), três
fases distintas emergem claramente do continuum histórico, Prim eira ascensão-, se constitui o mercado do romance. Se­
t ida uma dividida, por sua vez, em um primeiro momento de gunda: o romance volta-se para o presente. E na terceira
crescimento rápido e um segundo período de estabilização.
4 Na Itália também, escreve Giovanni Ragone, "nos primeiros vinte anos do sé­
culo 19 praticamente desaparecem os velhos best-sellers setecentistas" ("Itália
A primeira fase, de 1720 a 1770, inicia com a aceleração de 1815-1870". In: II romanzo, vol. III, Storia e geografia. Torino: Einaudi, 2002, p.
346). Dados análogos emergem também para a França, onde, porém, a fis­
1720-40, descrita acima, depois da qual o romance consolida sura revolucionária oferece uma possível explicação alternativa. 0 distancia­
suas próprias posições e se torna um dadò constante do sis­ mento definitivo (e freqüentemente traumático) em relação ao passado está,
naturalmente, no centro dos dois gêneros romanescos - o gótico e, depois,
tema cultural. Na segunda fase, que vai de 1770 até mais ou
o romance histórico - que foram os que mais contribuíram com a virada em
menos 1820, a empinada do fim de século produz um efeito direção ao presente.
diferente. Até aquele momento, à leitura extensiva que é típica 5 "A Revolução Francesa, a Doutrina da ciência, de Fichte, e o Meister, de Goethe,
do romance - ler muitos livros, uma vez somente, de modo são as maiores tendências da época". F. Schlegel. Frammenticriticie poetici. M.
Cometa (org.).Torino: Einaudi, 1998, p. 52.
20 I imi< o Morotti Gráficos 21

fase, que inicia em torno de 1820 e que, infelizmente, se pode


acompanhar só por uns 30 anos (após 1850, os repertórios
bibliográficos estão ainda em preparação), muda, finalmen-
te, a composição interna do mercado romanesco. Até aqui, o
típico leitor de romance tinha sido um generalista —alguém
que lê de tudo, por acaso, como escreveu, com um pouco de
desprezo, Thibaudet, em ha liseur de romans6. Agora, porém,
ía ampliação quantitativa do mercado é tal que perm ite toda
sorte de nichos de leitores e de gêneros especializados (histó­
rias de marinheiros, romances esportivos, de mistério, textos
escolares...): os livros voltados para os trabalhadores urbanos
no segundo quarto do século e depois para os rapazes (e para
as moças) em idade escolar na geração seguinte são apenas os
exemplos mais explícitos desta segmentação do público e do
mercado editorial, que culminará, no fim do século, nos dois
super nichos do policial e da ficção científica./

Uma literatura vista de longe, pelo prisma de modelos abs­


tratos... E aqui, claro, a abstração não falta: Pamela, The monk,
Persuasão, Oliver Twist onáe estão? Quatro pontinhos disper­
F ig u ra 2. O rom ance na In g la te rra , 1710-1850. sos cá e lá na figura 2, indistinguíveis em relação a todos os
Número de novos títulos por ano, média qüinqüenal.
outros pontinhos. Porém, os gráficos que estamos discutindo
não são, verdadeiramente, modelos, não deixam intuitivamen­
I ontes: W. H. McBurney. A check list o f Engüsh prose fiction, 1700-1739, op. cit.; J. C. Beasley. The novels of
thc 1740s, op.cit.; J. Raven. British fiction 1750-1770, op.cit.; P. Garside, J. Raven e R. Schõwerling (org.). The te visível um sistema teórico como os mapas e, sobretudo,
I nglish novel 1770-1829: a bibliographical survey of prose fiction published in the British Isles, 2 vol. Oxford: as árvores evolutivas dos próximos capítulos deixarão. A
Oxford University Press, 2000; A. Block. The English novel, 1740-1850. London: Dawsons, 1961.
pesquisa quantitativa visa a desvincular os seus dados da in­
terpretação específica, eu disse acima, e isto é, naturalmente,
também o seu limite: dá-nos dados, não interpretações. Que a
figura 2 m ostre uma primeira ascensão do romance (na qual
ele torna-se uma necessidade da vida), depois uma segunda (em
que ele desloca-se do passado para o presente) e uma terceira

6 A.Thibaudet. IIlettoredirom anzi. Napoli: Liguori, 2000, p. 49.


) } I titnto Moretti Gráficos 23

(em (juc se multiplicam os nichos de mercado) são, espero, in­


terpretações razoáveis, mas não inevitáveis. Os dados quanti­
tativos podem dizer-nos quando, na Inglaterra, sai um roman­
ce por mês, ou por semana, ou por dia e mesmo por hora, como
mais ou menos acontece nos dias atuais nos Estados Unidos:
mas quais são as fissuras significativas deste continuum - e por
que - são coisas para se decidir em bases diferentes.

III.

Ascensão, aceleração. Mas há o outro lado da medalha, que


emerge com particular clareza no caso do romance japonês
(fig. 3): após a empinada que inicia em torno de 1745 e depois
da qual, entre 1750 e 1820, no Japão publicam-se muito mais
romances do que na Inglaterra —um fato que antes ou depois
será preciso explicar bem! Mas [três crises, também rápidas,
ocorrem em 1780-90, nos anos 1830 e em torno de 1870. The
fa ü o fth e novel. E a razão desses declínios parece ser sempre a
mesma: a política. Nos dois primeiros casos, quando a fiction é
atacada com motivações muito semelhantes àquelas também
difundidas na Europa, mas com conseqüências concretas de­
cididamente mais drásticas, o nexo entre crise do romance e
censura política é de todo explícito.jNo caso da Restauração
Meiji, quando o comércio livreiro não foi objeto de uma repres­
são específica, a razão é, pelo contrário, de ordem mais geral e
} ‘1 I t.inc o Moretti Gráficos 25

Irm ;i ver com a incompatibilidade profunda, quase intranspo­


nível, entre tempos de crise política e escrita romanesca.

Com efeito, uma rápida observação de algumas literaturas


européias confirma tal incompatibilidade. A publicação de
romances desaba na Dinamarca durante as guerras napoleô-
nicas (fig. 4), assim como tinha desabado na França depois
de 1789, quando a retração nas publicações atingiu cerca de
so%. Fnquanto em Milão, depois da prim eira guerra de in­
dependência, se chega a uma retração de 90%, com somente
três livros contra 43 de 1842 (fig. 5). A única exceção que eu
conheço em relação a esse estado de coisas é a importação
de livros ingleses pela índia, que dobra de repente depois
da grande revolta de 1837 (fig. 6). Mas uma relação colonial
segue uma outra lógica e essa empinada dem onstra somente
que a Inglaterra quer apressar o passo de sua hegemonia cul­
tural sobre a elite indiana (e, de fato, uma vez passada a emer­
gência, se volta rapidamente aos velhos padrões). Além do
mais, são livros em geral, não somente romances. A diferença
é importante: muitas publicações não são desencorajadas pela
crise política e algumas (como os jornais) tendem mesmo a se
multiplicar. Mas o romance não, o romance não sabe mesmo F ig u ra 3. O declínio do rom ance: Japão.
caminhar de acordo com o ritmo da política. Mais à frente
Número de novos títulos por ano, média qüinqüenal.
falaremos de novo sobre isso.
Fonte: J. Zwicker."ll lungo ottocento dei romanzo giapponese". In: IIromanzo, vol III, op. cit.

Em torno do fin a l do período Tempo (1830-44), a edição comercial sofreu [ . . .J um ataque legisla­
tivo [qu ej iniciou por tirar de circulação as publicações que representavam atores do teatro kabuki e
cortesãs A narrativa leve conhecida como gokan também fo i tirada de circulação, com a justifi­
cativa de que os seus entrechos e as suas ilustrações remetiam ao teatro kabuki e ostentavam luxuosas
capas coloridas. Aos atoresf o i sugerido que se dedicassem a histórias morais e textos de am orfilial ou
de castidade, os quais eram, porém, um tanto quanto estranhos à tradição da literatura popular
As principais vítimas destas novas regrasforam os romances de amor conhecidos como mnjobon.
P r/ra t K o h n ic m . The book in Japam a cultural historyfrom lhe begmnings to the nineteenth century.
2fi | r.mro Moretti
Gráficos 27

F ig u ra 5. O declínio do rom ance: F ra n ç a e Itália.

Figura 4. O declínio do romance: Dinamarca. Número de novos títulos por ano, média quinquenal.

Número de novos títulos por ano, média quinquenal. Fontes:


Para a França: A. Martin, V.G. Mylne e R. Frautschi (org.), Bibliographie du genre romanesque frarçais 1751-
Fonte: E. Munch-Petersen. Die Übersetzungsliteraturals Unterhaltung dês romantischen Lesers. Wiesbadem: 1800. London: Mansell, 1977.
Otto Harassowitz, 1991. Para a Itália: G. Ragone. "Itália 1815-1870". In: llromanzo, vol. III, op. cit.

O romance tem uma relação ambígua com a política e os movimentos sociais. Os escritores radicais
tendem a usar formas mais curtas e mais diretamente públicas: o teatro, a poesia, ojornalismo, o con­
to. Os romances pedem tempo [...] Os grandes romances sobre os movimentos revolucionários do iní­
cio do século sóforam aparecer nos anos 1850 e 1870, quando aquela políticajá estava exaurida.
M ic h a e i . D en n in g . IJinternazionale dei romanzieri.
Gráficos 29
2H t r.in< t> Morotti

IV

í"Uma antipatia profunda entre romance e política^M as se­


ria absurdo im pingir à política a responsabilidade por todas
as crises do romance. Na França, o declínio dos anos 1790
foi muito nítido, sim, mas outros já tinham ocorrido nos
F ig u ra 6. Im p o rtação de livros ingleses pela índia. anos 1750 e 1770-co m o , de resto, tinham existido também
na Inglaterra, apesar de sua m aior estabilidade política. A
Milhões de libras esterlinas por ano.
guerra de independência americana e as guerras napoleô-
Fonte: Pria Joshi. In another country: colonialism, culture and the English novel in índia. New York: Columbia nicas, escrevem Raven e Garside, em seus recentes estudos
Unlversity Press, 2002.
bibliográficos, foram provavelmente as causas das crises de
1775-83 e 1810-17 (claram ente visíveis na figura 2); mas ao
fator político acrescentam “uma década de romances saídos
de qualquer jeito”, o peso das “reim pressões”, a (possível)
"crescente popularidade de outras formas ficcionais”, “o can­
saço diante de narrativas de terceira ordem ”, o aumento do
1(1 Franco Moretti Gráficos 31

preço do papel...7. E, como as possíveis causas se m ultipli­ 1Evento, ciclo e longa duração: três dimensões tem porais
cam, alguém se pergunta: mas o que estamos procurando que tiveram diferentes sortes no âmbito da história literá­
explicar aqui, dois eventos singulares sem nenhum a relação ria. A leitura textual tem, norm alm ente, m uita facilidade
entre eles, ou dois m om entos de um pattern recorrente? Por­ para tra tar com o evento, ou seja, com o texto que não se
que se as crises são eventos singulares, então a pesquisa de repete, raro. No extrem o oposto, a longa duração de estru ­
causas, também essas singulares —os maus romances, Na- turas quase imutáveis desenvolveu um papel im portante em
poleão, o preço do papel, o que quer que seja - está excelen­ numerosos ensaios de teoria literária. Mas o tempo de meio,
te. Mas se são, ao contrário, fases de um pattern recorrente, isto é, o.tem po do ciclo, permaneceu, ao contrário, em boa
então a coisa que se deve explicar é, exatam ente, o pattern medida inexplorado. E não é porque a crítica literária não
no seu todo, e não somente um de seus momentos. tenha trabalhado m uito neste nível, é que não se compreen­
deu ainda verdadeiram ente toda a sua especificidade: o fato
O pattern no seu todo, ou melhor, talvez, o ciclo no seu todo. de que os ciclos constituem estruturas temporárias internas ao
A reflexão histórica desenvolveu “uma noção cada vez mais fluxo contínuo da história. Aqui está, de resto, a lógica da tri-
precisa da multiplicidade do tempo”, escreve Braudel no en­ partição de Braudel: o período breve é todo fluxo e nenhum a
saio sobre a longue durée: estrutura; a longue durée é toda estru tu ra e nenhum fluxo; e
o ciclo é, por sua vez, inevitavelmente ancípite —a região
A historiografia tradicional, interessada nos ritm os breves do tem ­ de meio entre as outras duas. E strutura, porque um ciclo
po, no indivíduo, no événement, há muito tem po nos habituou à sua com porta repetição e, portanto, regularidade, ordem , form a
narrativa fabulosa, dram ática, de breve respiro. no decorrer da história. Tem porária, porque o seu curso é
A nova historiografia econômica e social põe em prim eiro plano, na breve (dez, 20, 50 anos, isto depende das várias teorias).
sua pesquisa, as oscilações cíclicas um recitativo da conjuntura
£...] de dez, 20 ou 50 anos. O ra] estrutura temporária é também um ótimo modo de definir
M uito além disto £...] coloca-se uma história de respiro muito mais uma coisa que, à primeira vista, parece não ter nada a ver
longo, de amplidão secular £...]: a história de longa, de longuíssim a com o ciclo, vale dizer, o gênero literário, o qual é também ele
duração8*. uma forma que dura no tempo - mas sempre só por um certo
(empo. [Espécie de Jano morfológico, com uma face voltada
para a história e a outra para a forma, o gênero é, portanto,
7 J. Raven. Historical introduction: the novel comes o f age. P. Garside. The English o verdadeiro protagonista desse tempo de meio da história
novel in the romantic era: consolidation and dispersai. In: P. Garside, J. Raven e lilerária, desse nível mais racional em que o fluxo encontra-
R. Schõwerling (org.). The English novel 1770-1829: a bibliographical survey o f
se com a forma. E no qual, de fato, se encontram as longas e
prose fíction published in the British Isles. Oxford: Oxford University Press, 2000,
vol, f, p. 27, e vol. II, p. 44. regulares ondas das formas hegemônicas do romance inglês
H F. Braudel. "Storia e scienze sociali: Ia "lunga durata". In: Scritti sulla storia. Mi- dos séculos 18 e 19 (fig. 7-8): o romance epistolar de 1760 a
lano: Feltrinelli, 2003, p. 39-40.
W I ranço Moretti Gráficos 33

1790; depois o gótico, de 1790 a 1815; e, enfim, o romance rom ance histórico publicado em 1800, como Castle Rackrent
histórico, de 1815 até mais ou menos 1850. (ou em 1805, como teria acontecido à prim eira redação de
Waverley), não teria podido gozar da ex traordinária opor­
Cada um dos três gêneros produz mais ou menos o mesmo tunidade oferecida a Waverley, em 1814, pelo desabam ento
núm ero de novos títulos por ano e dura cerca dos mesmos da produção g ó tica10.
25-30 anos. Sobretudo, cada uma dessas formas tem ver­
dadeiram ente início só depois que a form a precedente já se
tenha praticam ente esgotado. O bservem como ascensão e
queda cruzam -se em torno de 1790 e depois de novo, mais
ou menos em 1815. “As formas de a rte dão-se o tu rn o ”,
soa uma lapidar expressão de Sklovskij9, a quem, talvez,
não seria desagradável encontrar-se em companhia des­
ses gráficos. E, com efeito, o declínio da precedente forma
hegem ônica parece ser aqui a prem issa necessária para a
ascensão da seguinte. O que ajuda, entre outras coisas, a
explicar aqueles estranhos períodos de latência entre o apa­
recim ento da obra-protótipo e o início propriam ente das 10 "Uma nova forma é criada para substituir uma forma velha que tenha perdido
várias ondas: Pamela sai em 1740, o Castelo de Otranto em o seu valor artístico" se lê em V. Sklovskij, Teoria delia prosa. E em La mossa
dei cavallo: "Formas novas aparecem em arte para substituir as velhas que
1764 —mas os rom ances epistolares e, depois, os góticos deixaram de ser artísticas". Mas o que faz com que uma forma “deixe de ser
publicados antes de 1760 e de 1790 são, entretanto, sem­ artística"? Para Sklovskij, a razão está toda na dialética interna da produção
artistica, que tem início no estranhamento artístico e termina no automatis-
pre pouquíssimos. Por que estas décadas de espera? P ro­
mo banal: "Cada forma artística percorre o caminho inevitável do nascimento
vavelm ente porque enquanto uma form a hegem ônica não à morte; da visão e da percepção sensorial - quando cada detalhe do objeto
perdeu o seu valor artístico, as form as rivais não têm mui­ é saboreado e apreciado - ao mero reconhecimento, quando a forma se tor­
na um tedioso epígono que nossos sentidos registram mecanicamente, uma
tas cartas para jogar: sempre pode ocorrer um evento (ou mercadoria invisível até para o próprio comprador".
seja, um texto) excepcional, naturalm ente, mas a exceção f:5te “caminho das formas do nascimento à morte" pode, entretanto, ser ex­
plicado de outro modo, em que o essencial não é tanto a relação entre forma
não mudará o sistema. É som ente quando a astronom ia pto-
"jovem" e forma "velha" mas, sim, a relação entre forma e história. Um gênero
lomaica começa a produzir uma monstruosidade depois da literário perde o seu valor artístico - e dispara, então, a hora do gênero rival
outra, escreve T hom as Kuhn em A estrutura das revoluções quando a sua forma interna não está mais em condição de representar os
aspectos mais significativos da realidade contemporânea. Neste ponto, podem
científicas, que “chega o m om ento de oferecer uma chance ■Kontecer fundamentalmente duas coisas: o gênero renuncia à própria forma
a uma teoria rival”. E o mesmo vale para a literatu ra: um sol) o choque de realidade, acabando por desintegrar-se, ou dá as costas à rea­
lidade em nome da forma, se tornando, assim, tedioso epígono. Sobre isto, ver
o apêndice à nova edição do meu Romanzodiformazíone.Torino: Einaudi, 1999.
9 V. Sklovskij. La fattura e il "controrilieva". In: La mossa dei cavallo. Bari: Laterza, I , mais adiante, o final do próximo capítulo. Mas tem ainda uma outra, ainda
1967, p. 94. iriills drástica explicação da crise dos gêneros literários, que veremos em breve.
14 I t.tmo Morettl Gráficos 35

Dos textos individuais às séries quantitativas; destas aos ci­


clos e depois aos gêneros como equivalentes morfológicos dos
ciclos. E os três gêneros das figuras 7 e 8 parecem, verdadei­
ramente, seguir um ciclo de vida regular, como, talvez, fosse
chamado por algum economista. Esses três gêneros, ou todos Figura 7. As três formas hegemônicas do romance inglês, 1760-1850.
os gêneros romanescos? É possível que o ciclo funcione como
Número de novos títulos por ano.
uma espécie de metrônomo secreto da história literária? <
Fontes: Para o romance epistolar: J. Raven. Gran Bretagna 1750-1830. \n: II romanzo, vol. III, op. cit., p. 311-
32. Para o gótico: Maurice Lévy. Le roman "gothique" anglais. Paris: Albin Michel, 1995. Para o romance
Aqui o critério de obtenção dos dados é, obviamente, crucial. histórico tomei como base o trabalho de Rainer Schõwerling (Sir Walter Scott and the tradition of the his­
E porque a todo mundo é agradável encontrar o que se está tóricaI novel before 1814- with a checklist. In: U. Bõker, M. Markus e R. Schõwerling (org.), The living middle
age. Stuttgart: Belser, 1989), e retirei também os textos que estão na bibliografia do gótico de Lévy; para
procurando, nas páginas seguintes me servirei inteiramente o período sucessivo servi-me de A. Block. The English novel, 1740-1850, op., cit.
de materiais já recolhidos, de forma independente, por ou­
tros estudiosos. Com a observação de que esta é, na verdade, A anomalia constituída pelo declínio do romance epistolar nos anos 1770 é só aparente, devida ao
declínio da publicação de romances em geral. N a verdade, como mostra afigura seguinte, naqueles
a prática em quase todas as disciplinas (mas não na crítica
anos o romance epistolar reforçou sua posição sobre o mercado - como em 1776, quando um insen­
literária). Ater-me aos resultados de program as de pesquisa sato 71 % de novos títulos teve caráter epistolar.
to I MiKo Moretti
Gráficos 37

completamente diferentes do meu, e conduzidos por especia­


listas das formas em questão, me pareceu um bom modo de
frear os meus desejos. Dessa forma, Brad Pasanek, em Stan-
ford, e depois eu mesmo, consultamos mais de uma centena
de estudos sobre gêneros romanescos ingleses, entre 1740 e
1900, encontrando, por vezes, alguns casos discutíveis, claro,
e alguns (não muito significativos) desacordos sobre a perio­
dização11. E mesmo que se trate ainda de w ork-in-progress,
especialmente nos dois extrem os do arco temporal, os 44
gêneros da figura 9 são já suficientemente numerosos para
perm itir ao menos algumas conjecturas.

Quarenta e quatro gêneros em 160 anos. Uma distribuição


aleatória daria um novo gênero a cada quatro anos, mais ou
menos. Mas, ao contrário, dois terços deles adensam-se em
mais ou menos 30 anos, distribuídos em seis principais fases
criativas: 1766-70, 1789-1791, 1825-30, 1846-51, 1868-73 e
1885-88. E, além do mais, com exceção do turbulento perío­
do entre 1790 e 1810, os gêneros tendem a desaparecer mais
ou menos em grupo, em uma espécie de mudança regular de
guarda em que, a cada quarto de século (mas o período pare­
ce abreviar-se à medida que se aproxima do século 20), uma
F ig u ra 8. C ota de m ercado das form as hegem ônicas do rom ance meia dúzia de formas saem de cena, enquanto outras tantas
inglês, 1760-1850.
aparecem e ficam em atividade por 20-30 anos. 'Ao invés de
Percentual dos romances publicados, média trienal.
mudar um pouco por vez, mas sem interrupção, a história
dos gêneros romanescos é feita, em suma, de décadas de en­
A medida que cresce o número de romances publicados, torna-se mais difícil para uma única forma exer­
torpecimentos p o n tu a d o s por breves explosões inventivas:
cer uma hegemonia incontestável: enquanto o romance epistolar atingiu (ou superou) os 30% de mer-
cado por uns bons 25 anos e tocou os 50% ao final dos anos 1770, o romance gótico ultrapassou os 30% as formas mudam rapidamente, todas de uma vez, e depois
somente por alguns anos e permaneceu em torno dos 20%. E ao romance histórico tudo foi pior ainda-
todos os sinais daquela fragmentação do mercado em nichos de que falei antes.
11 Quando os especialistas estavam em desacordo entre eles mesmos, optei
sempre pela periodização mais bem sustentada pela análise formal. No caso
Não só a paródia, mas toda obra de arte surge eomo paralelo ou antítese de algum modelo. Uma
dos romances industriais, por exemplo, segui Gallagher ao contrário de Ca-
nova forma não é criada para exprimir um novo conteúdo, mas para substituir uma forma velha
zamian (mesmo se o 1830-50 de Cazamian fosse-me mais tranqüilo do que o
t/ue tenha perdido o seu valor artístico.
1832-67 de Gallagher...).
V ii , m u S klovskij . Teoria delia prosa.
Í8 Franco Moretti Gráficos 39

Kailyard School
New Woman novel
se repetem mais ou menos invariáveis até desaparecerem. Gótico imperial
Romance naturalista
I ransformam-se em literatura normal, se poderia dizer, por Decadent novel
analogia às ciências normais, de Kuhn. Ou se pode pensar no Nursery stories
Romance regional
horizonte de expectativas, de Jauss: uma metáfora que norm al­ Cockney school
Utopia
mente é utilizada somente de forma negativa (isto é, quando Invasion literature
Romances imperiais
uma obra transcende o horizonte dado), mas que esses gráficos School stories
Children's adventures
apresentam, ao contrário, aquilo que é: as figuras 7-8 mostram Fantasia
o quanto realmente é difícil transcender o horizonte do gêne­ Sensation novel
Romance provinciano
ro dominante. A figura 9 m ostra como cada momento histó­ Romance doméstico
Romance religioso
rico possui horizontes múltiplos e assim por diante. O que os Romance de formação
Multiplot novel
gráficos nos fazem ver são, em suma, os vínculos e a inércia Mysteries
do campo literário —os limites do imaginário, por assim dizer. Chartist novel ■
Romance esportivo
Este é um tema que atravessará todos esses capítulos. Romance industrial
Romance de conversão
Newgate novel
Nautical tales
Romance militar
Silver-fork novel
Romantic farrago
Romance histórico
Romance evangélico
Village stories
Fábulas nacionais
Romance anti-jacobino
Gótico
Romance jacobino
Ramble novel mm
"Spy" novel
Romance sentimental
Romance epistolar
Oriental tale
Picaresco
Courtship novel

— I-----
1700 1750 1800 1850 1900

Figura 9. Os gêneros romanescos ingleses, 1740-1900.


Por razão de espaço, as fontes desta imagem encontram-se como apêndice ao final deste capítulo.

A literatura, sustentavam os formalistas, não ê um sucetkr-se de obras-primas. N ão se pode en­


tender a evolução literária ou dar um ju ízo sobre um determinado período sem levar em conta os
escritores de segunda ou terceira ordem.
V ic t o r E k l ic h . R u s s ia n fo r m a lis m .
40 I r.tnro Moretti Gráficos 41

histórico preciso —como, por exemplo, o gótico que ocupa


o posto do romance epistolar em torno de 1790 —é, de fato,
razoável levantar a hipótese de que a causa seja historicamente
específica e interna aos dois gêneros em questão. Coletâneas
de cartas de amor têm muito menos sintonia com uma
época revolucionária do que dramas sanguinários de vítimas
inocentes e senhores cruéis. Mas, quando um grupo inteiro
de gêneros que são entre eles totalmente diferentes desaparece
completamente do campo literário e é substituído por um
outro na mesma medida heterogêneo, a explicação não pode
mais ser aquela. Que tantas formas diferentes encontrem-
se simultaneamente e independentemente em harmonia (ou
VI. em desarmonia) com os tempos é, de fato, algo totalm ente
implausível. A causa do revezamento deve, logo, ser externa
aos vários gêneros e comum a todos eles. Alguma coisa seme­
lhante a um terrem oto ou a um cataclismo que mude de
maneira repentina e completa o ecossistema literário. O que
quer dizer que muda de modo súbito e total o público literário.
A literatura normal permanece em seu posto por 20-30 anos... Os livros sobrevivem se são lidos e desaparecem se não o
Mas de onde vem este ritmo tão uniforme? A hipótese de são. E se um grupo inteiro de gêneros sai de repente e por
Sklovskij, mesmo remanejada, não é suficiente para explicá- completo de cena, a explicação mais verossímil é que saíram
lo: que uma nova forma decole somente depois do declínio de cena, antes e mais do que os livros, os seus leitores.
da precedente não implica de modo algum que isso deva ve-
rificar-se com tanta pontualidade. E, além do mais, com uma As gerações, eis de onde vem aquele a ltern ar tão regular
pontualidade que não envolve só as (poucas) formas hegemô­ das formas romanescas. Conceito m uito discutível, natu­
nicas, mas se estende a (quase) todos os gêneros ativos em um ralm ente, este de geração, mas tam bém o único que parece
dado período. em condição de explicar a figura 9. De fato, já no grande
ensaio de M annheim , os resultados mais convincentes fo­
O aparecimento e o desaparecimento dos gêneros em grupo ram mesmo aqueles que diziam respeito à esfera estética:
que é, à prim eira vista, a coisa mais bizarra de todas, é pro­ “um ritm o no suceder-se das gerações”, se lê, com um ace­
vavelmente a chave da questão. Quando um gênero particular no explícito às Génêrations sociales, de M entré, publicado
substitui um outro gênero particular em um momento alguns anos antes:
42 Franco Moretti Gráficos 43

C-H parece m u ito mais evidente no âm bito das séries libres absurda. Assim, fecho com uma nota de perplexidade. Ainda
—a g ru p am en to s livres como os salões ou as escolas lite rá ria s — hoje, algum mecanismo de geração parece ser o único modo
do que no âm bito das instituições, as quais tendem , g eralm en te, de explicar a duração do ciclo romanesco, mas o processo de
a fixar a p r io r io m odo de agir, q u er com re g ra s explícitas, quer formação das gerações é ainda um tanto quanto obscuro. No
com em p reen d im en to s de n a tu re z a coletiva, im pedindo assim futuro, precisaremos fazer m elhor14.
a nova g eração de m o s tra r a sua o rig in alid ad e [f.-D a esfera
estética é, talvez, aquela que m elh o r reflete a m udança g eral
do clim a m e n ta l12.

A mudança geral do clima mental. Os cinco, seis abalos no


sistema do romance inglês entre 1740 e 1900. Mas as pessoas
(incluindo os leitores de romances) nascem todo dia, não a
cada 25 anos. Em que base, então, é segmentado o continuum
biológico? De novo Mannheim:

Que um novo estilo de geração apareça a cada ano, a cada 30


anos, a cada cem anos, ou não apareça absolutam ente, depende
to talm ente do processo social e cultural, que fornece a “centelha
da p artida” [f.-H Portanto, nós falarem os de geração efetivamente
existente só quando um vínculo concreto for instituído en tre os
seus m em bros por um processo de desestabilização dinâm ica e
por suas consequências sociais e intelectuais” .

14 Uma possível solução: em um determ inado momento, uma desestabilização


Um vínculo de geração devido a um processo de desesta­
particularm ente nítida dá vida a uma geração de contornos bem definidos,
bilização dinâmica; e alguém que tinha 18 anos em 1968 que ocupa o palco por 20-30 anos, atraindo para a sua órbita indivíduos
entende imediatamente. Mas, de novo, isto não explica a um pouco mais velhos ou um pouco mais jovens. No momento em que o
processo biológico de envelhecim ento impele esta geração à periferia do
reg u la rid a d e do suceder-se das gerações, a não ser que se le­
sistema cultural, se cria espaço para uma nova geração, a qual toma forma
vante a hipótese de que as desestabilizações ocorram, por sua simplesmente porque há possibilidade para isto, quer se tenha ou não ve­
rificado uma desestabilização unificante. E assim por diante, geração após
vez, pontualm ente a cada 25 anos. Coisa que é, obviamente,
geração. Uma série regular emergiria, dessa forma, mesmo na ausência de
causas específicas para cada geração: seria mais ou menos como dar corda
em um relógio e, depois, vê-lo bater as horas enquanto durar a corda. (No
12 K. Mannheim. "II problema delle generazioni". In\ Sociologia delia conoscenza.
Bologna: il Mulino, 2000, p. 244-45. longo capítulo das Générations sociales em que traça a série ininterrupta das
gerações literárias francesas de 1515 a 1915, Mentré parece optar por uma
13 Ibid., p. 278,270. solução deste tipo).
44 I m i k o Moretti Gráficos 45

entrevê, de novo, a presença da política: romances jacobinos


e anti-jacobinos (depois evangélicos) na época da Revolução
Francesa; cartismo e controvérsias religiosas nos anos 1840;
romances sufragistas ( N e w W o m a n novels) ao final do século
19. E, como acontece freqüentemente entre romance e polí­
tica, o resultado é uma grande enfiada de coisas de abstra­
tas asserções ideológicas: os romances jacobinos que querem
“reformar os seus v illa in com discussão e raciocínio”, como
escreveu G ary Kelly a propósito da última daquelas formas; o
culto da rig h t reason, a razão que se quer verdadeira e justa ao
mesmo tempo, faz-lhe eco M arilyn Butler em A u ste n a n d the
w a r o f ideas. Escolha “enigmática”, acrescenta ela, que pro­
VII. vocou a grande “oportunidade perdida” do romance jacobino
no plano formal. E que a oportunidade foi perdida é certo,
mas que a escolha foi enigmática eu não diria. Se um romance
quer intervir diretam ente em uma esfera pública dominada
por pam phlets polêmicos e de declaração de principio, a rig h t
A literatura normal fica em seu lugar mais ou menos por uma
reason é uma escolha sensata. E, depois, a ideologia permite
geração... K o grupo central da figura 10, que reordena os 44
colher em pleno vôo aquela “narrativa fabulosa, dramática,
gêneros romanescos (listados na figura 9) tendo como base
de breve respiro” de que fala Braudel para os tempos breves,
a sua duração, na qual cerca de dois terços deles mensuram
colocando o próprio livro em sintonia com os fatos do mo­
entre 25 e 35 anosA A única verdadeira exceção a este ritmo
mento: A tale o f the times, A tale o f the day, T h e philosophy o f
assim tão regular é aquela meia dúzia de formas à extrem a
the day, como soam alguns significativos subtítulos dos anos
esquerda da imagem - nove, dez, 12 anos - atrás das quais se
1790. Mas naturalm ente esta concentração tem poral é uma
faca de dois gumes, porque se aquilo que um romance tem
15 Uma rápida olhada no romance francês entre os séculos 17 e 19 faz notar um
para oferecer de melhor é a emoção do dia, então, quando o
ritmo trintenário que muito se assemelha àquele inglês: o romance pastoral e
heróico, a nouvelle historique, os romans galantes e os contes philosophiques, dia passa...
os romances sentimentais, o romance de formação, o roman gai, as duas fases
("heróica" e "sentimental") do feuilleton-roman... Por outro lado, Sandra Guardi-
ni Vasconcelos fez-me observar que, quando uma cultura encontra-se a impor­
tara maior parte de seus romances - como o Brasil no curso do século 1 9 -a o
invés de produzi-los, o suceder-se das gerações parece seguir um ritmo muito
mais acelerado do que aquele inglês, e também muito mais irregular. Se os
dados derem razão a ela (como creio), o ritmo de geração europeu-ocidental
terminaria por ser a exceção, ao invés da regra, da literatura mundial.
46 Irunco Morettl Gráficos 47

VIII.

Por que existem gêneros romanescos que duram só uma


dezena de anos, ao invés dos habituais 25-30 anos? Porque
aqueles gêneros subordinam a própria estrutura narrativa à
lógica do breve período, como escrevi acima, e se encontram,
assim, na condição de terem de dividir a mesma sorte do bre­
ve período. Bom, mas o ponto mais interessante aqui não é
Por razões de espaço, as fontes desta imagem encontram-se como apêndice ao final deste capítulo.
tanto o conteúdo específico da resposta quanto, ao contrário,
N e s te g r á f ic o , a exceção m a is v is to s a é c o n s titu íd a p e lo s 80 a n o s a s s in a la d o s p o r K a th e r in e S o b b a a absoluta heterogeneidade de pergunta e resposta. O fato de
O reen à courtship novel. P a r a a m a io r p a r t e d o s h is to r ia d o r e s , p o r é m (e e m p a r t e p a r e c e q u e que, para explicar as cifras da figura 10, não se pode per­
m e sm o p a r a G re e n ), e sta f o r m a con h ece d u a s f a s e s c la r a m e n te d is tin ta s : a p r im e ir a , d e 1740 a 1780,
manecer no interior do universo quantitativo, mas é preciso
d o m in a d a p e lo p r in c íp io tr a n s c e n d e n te d a c a s tid a d e ; e a s e g u n d a , d e 1780 (o u m elh o r, d e 1782,
q u a n d o B u rn ey, em Cecília, a b a n d o n a a f o r m a e p is t o la r ) a 1820, d o m in a d a p e l a n o ç ã o c o m p le ta ­
sair dele e procurar uma resposta no âmbito, completamente
m e n te im a n e n te d a s b o a s m a n e ir a s. S e a c e ita r m o s t a l d is tin ç ã o , a a n o m a l ia d e sa p a rece. diferente, da reflexão morfológica16.

16 Neste sentido, uma história quantitativa da literatura é, mais do que nunca,


uma história formalista, sobretudo no início e no final do processo de pesqui­
sa. No final, pelas razões que se acabou de ver e, no início, porque - dado que
uma série quantitativa deve ser composta de unidades homogêneas - uma
categoria morfológica (romance jacobino, filme cômico e assim por diante) é
a premissa necessária da própria quantificação.
Gráficos 49
4H I idiii o Mt>n'Uí

A lorma que explica os números. Aqui, os números do m er­ não era nada claro. No entanto, me senti no dever de dizer
cado literário. Mas, em um breve estudo sobre exportação de alguma coisa e, assim, no artigo, ofereci uma “explicação
lilmes americanos publicado alguns anos atrás na New Left (que a New Left Review, estoicamente, publicou); mas er­
Uc\ iew, deparei com o mesmo, idêntico, problema: na déca­ rei, porque, naquele caso, a verdadeira (pequena) descoberta
da de amostra (1986-95), os filmes cômicos constituíam 20% consistia propriam ente em ter encontrado u m problem a do q ual
dos sucessos de bilheteria nos Estados Unidos, enquanto em ignorava a solução. Problemas sem solução são exatam ente

outros paises, como m ostra a figura 11, o seu sucesso era niti­ o que precisamos na história literária, onde nos colocamos,
damente inferior (especialmente na Ásia e no M editerrâneo). ao contrário, somente aquelas perguntas das quais já conhe­
As cifras eram claríssimas. Mas se depois alguém se pergun­ cemos a resposta - e, dessa forma, não devemos jam ais nos
tasse p o r que as coisas eram daquele modo —isto é, por que medirmos de verdade com os limites e os vazios dos nossos
razão os filmes cômicos eram tão mais difíceis de exportar do conhecimentos. “Já percebi”, disse o senhor K. de Brecht,
que, para dar um exemplo, os filmes de ação —os percentuais “que afastamos muitas pessoas dos nossos ensinam entos
não serviam mais para nada. E seria necessário procurar a por term os uma resposta para tudo. Não poderiamos, no
explicação mais uma vez no plano formal: visto que os filmes interesse da propaganda, preparar uma lista das questões
cômicos contemporâneos fazem largo uso de frases espiritu­ que nos parecem completam ente irresolvidas?”11.
osas, as quais não sobrevivem nunca muito bem quando são
traduzidas para uma outra língua, esses filmes tornam-se,
inevitavelmente, muito menos divertidos em japonês, egíp­
cio ou espanhol do que em inglês. (Não por acaso, a idade de
ouro para as exportações de filmes cômicos —Chaplin, Kea-
ton, Lloyd, Laurel e Hardy... —coincide, fundamentalmente,
com época do cinema mudo.)

A qu antificação põe o problema, e a morfologia encontra a


soluç ão. Mas gostaria de acrescentar: se correr tudo beinj A
assirr etria entre exp la n a n d u m quantitativo e exp la n a n s qua-
litativ o é, de fato, tão marcada que se encontra muito fre-
qüentem ente com um problema perfeitamente definido —e
nenhuma idéia de como resolvê-lo. Trabalhando em P la n e t
H o llyw o o d , por exemplo, percebi que, na Itália, durante
aquela década, somente a produção italiana de filmes cômi­
cos figurou nos top J iv e . Por que isso ocorreu, entretanto,
17 B. Brecht. Storiedacalendário.Torino: Einaudi, 1998, p. 139.
Gráficos 51
50 I ronco Moretti

IX.

Duas rápidas conclusões teóricas. A primeira é de novo sobre O Percentual maior Percentuais menores Percentuais maiores

o ciclo como possível fio condutor da história literária. Para do que o dos EUA 30%
Sérvia 0% República Tcheca
★ Mesmo percentual Malásia 0% Hungria 29%
que pudesse realizar-se a “elevação” ético-estética do roman­ dos EUA Taiwan 0% Áustria 27%
Chile 0% Israel 27%
ce, escreveu W illiam W arner, “deveria primeiro desaparecer A Percentual menor
5% Bulgária 25%
do que o dos EUA México
Colômbia 25%
o romance de intriga amorosa”. É aquilo que April Alliston Egito 7%
Dinamarca 22%
Espanha 9%
chama the great gender shift, “a grande reviravolta dos gêne­ Japão 9% Eslováquia 22%
Jamaica 10% Porto Rico 21%
ros” dos anos em torno de 1740: o desaparecimento daqueles Grã-Bretanha 21%

romances centrados sobre o desejo feminino, em que eram


especializadas as escritoras inglesas, e o correspondente au­ Figura 11. Cota de m ercado dos filmes cômicos americanos, 1986-95.
mento de romancistas hom ens18. E é tudo verdade, tirando
Fonte: Franco Moretti,"Planet Hollywood". In NewLeft Review, n° 9,2001.
o artigo definido: “a” reviravolta? “Nos anos 40, 50 e 60 do
século 19 se nota uma crescente hostilidade em relação

18 W. B. Warner. Licensing entertaiment: the elevation o f novel reading in Britain,


1685-1750. Berkeley: Califórnia U.P., 1998, p. 44; A. Alliston.“Love in excess". In:
llromanzo, vol. I, La cultura dei romonzo. Torino: Einaudi, 2001, p. 650.
>; i i.ttu o Morettl Gráficos 53

;is ( scritoras mulheres” que são, enfim, “expelidas” do cam- à Scott atrai de preferência autores homens, enquanto uma
literário pelos seus rivais homens, escrevem Tuchman inundação de histórias domésticas, sensation novels e roman­
e Fortin em E d g in g w om en o ut19. Verdade. Mas é claro que ces provinciais atrai, ao contrário, escritoras mulheres, e as­
uma agressividade tão forte assim lá pela metade do século sim por diante.
1!) pressupõe que a reviravolta ocorrida no meio do século
18 tenha sido, p o r sua vez, revirada. E, de fato, se entre 1750 e Entendamo-nos: dizer que todas estas pesquisas descrevem o
1780 os homens publicam efetivamente o dobro de romances retorno do mesmo ciclo literário não é uma objeção em rela­
cm relação às mulheres, as coisas mudam, entretanto, já no ção aos ciclos, ao contrário, a m inha tese depende da validade
curso dos anos 1780, quando um segundo s h i f t - c \ i ] o s traços desses estudos e, em certo sentido, confirma-os também, su­
ainda perceptíveis no início do século 19 (fig. 12) - revira gerindo que um princípio comum subjaz a todos os proces­
as relações de força, levando para a ribalta uma geração de sos descritos. Mas é também verdade que, quando aquilo que
romancistas mulheres (Burney, Radclifí, Edgeworth, Austen) parecia tantos casos individuais é interpretado como fases de
permanece em primeiro plano até que uma terceira revira­ um mesmo ciclo, a natureza do problema muda. Para citar de
volta, em torno de 1820, desequilibra de novo o campo para novo Pomian:
os homens (Scott, depois Bulwer, Dickens, Thackeray). Pela
metlade do século, um quarto sh ift recoloca as mulheres no Os acontecim entos não interessam a Lucien Kebvre por suas
primeiro plano (as Bronté, Gaskell, Braddon, Eliot) e é segui­ unicidades, [m a s] enquanto elem entos de uma série, enquanto
do, quinta reviravolta, pela “exclusão” dos anos 1870. revelam as variações conjunturais das relações entre duas clas­
ses sociais cujo conflito perm anece constante ao longo de todo o
Dados semelhantes estão começando a aparecer para a Fran­ período estudado20.
ça, a Espanha e os Estados Unidos. E é fascinante ver como os
resultados da pesquisa são sempre apresentados como casos Variações dentro de um conflito que permanece constante: é
úniços - a reviravolta, a ascensão do romance, a nobilitação, isto que se “vê” no nível do ciclo romanesco. E, se o conflito
a invenção de Alto e Baixo, a feminização, a educação sen­ permanece constante, então o im portante não é quem tenha
timental, a invasão - enquanto se trata, ao contrário, quase vencido esta ou aquela batalha, mas, sim, o fato de que nenhu­
certamente, do mesmo cometa que continua a atravessar para m a vitó ria f o i ja m a is, na verdade, d efin itiva e o romance inglês
a frçnte e para trás o céu da narrativa romanesca. Do mes­ continuou, portanto, a oscilar entre homens e mulheres sem
mo ciclo literário, em suma, que, provavelmente, oscila entre que nenhum dos dois grupos conseguisse jamais “conquis-
homens e mulheres em sintonia com o sistema dos gêneros tá-lo” de uma vez por todas. E se pode parecer que, então,
ronjanescos em seu conjunto, no qual uma geração com mui­ não aconteceu nada, isto não é verdade, aquilo que aconteceu
tos romances de guerra, nautica l tales, e romances históricos foi justam ente a oscilação. Tal oscilação perm itiu ao romance

19 G. Tuchman e N. Fortin. Edging women out. New-Haven: Yale U. P, 1989, p.7-8. 20 K. Pomian. Storia delle strutture, op. cit.; p. 92.
54 Franco Morettl Gráficos 55

envolver um duplo pool de talentos e de formas, coisa que,


sem dúvida, contribuiu para sua extraordinária produtivida­
de, dando vantagem ao romance, de modo irreversível, sobre
formas literárias rivais. Mas, repito, tudo isso se pode ver so­
m ente no nível do ciclo e de sua oscilação periódica. Os mo­
mentos individuais de ascensão e declínio não revelam este
sentido, mas, neste caso, ao contrário, o obscurece. E é só o
pattern abstrato, no seu conjunto, que deixa intuir a verdadei­
ra natureza do processo histórico21.

F ig u ra 12. O rom ance inglês, 1800-29: hom ens e m ulheres.


21 Uma oscilação análoga liga entre si as formas romanescas "altas” e "baixas",
Percentual de romances escritos por homens e mulheres. cuja coexistência é um fato bem conhecido (mesmo se normalmente ignora­
do) da história do romance: dos inícios helenísticos (gêneros "subliterários"e
Fonte: Garside, Raven e Schõwerling (org.). The english novel 1770-1829 cit. gêneros “idealizantes"), através do Medievo, do século 17 (a Biblioteque Bleue
e o romance aristocrático), do século 18 (o par entertaimeot/elevation descrito
N o s a n o s d e z d o século 19, o d o m ín io d a s r o m a n c is ta s to r n a - s e a in d a m a is e v id e n te e a s m u lh e re s por Warner), do século 19 (feuilleton, railway-novel - e "realismo sério") e do
p u b lic a m m a is ro m a n c e s d o q u e os h o m e n s to d o s o s a n o s [...J O s d a d o s d e m o n s tr a m q u e a p u b lic a ç ã o século 20 (pulp fiction - romances experimentais).Também nesse caso, a força
d o s ro m a n c es d e J a n e A u s te n n ã o aco n teceu e m u m p e r ío d o a d v e r s o , m a s e m a n o s d e n ít id a s u p re m a ­ do romance não está em uma das duas posições, mas no seu contínuo oscilar
c ia f e m in in a . N o te - s e ta m b é m q u e o s p r im e ir o s ro m a n c e s h is tó r ic o s d e S c o tt f o r a m la n ç a d o s e m u m entre uma e outra. O romance não deve o seu triunfo ao fato de ter sido final­
m o m e n to e m q u e a s p u b lic a ç õ e s d e r o m a n c is ta s h o m e n s e s ta v a m p a r tic u la r m e n te e m q u e d a . mente admitido na alta cultura, mas exatamente à razão oposta: não esteve
I ’ l' I l;U G ar s id e . The english novel in the romantic era: consolidation and dispersai. nunca só na alta cultura e pôde assim sempre jogar em dois tabuleiros em quê
sublime e vulgar tornaram-se quase inextricáveis.
')í> I i.tiuo Morottl Gráficos 57

Bem, os 44 subgêneros da figura 9 sugerem uma imagem di­


ferente da teoria literária. Uma imagem em que o romance
não se desenvolve absolutamente como uma forma unitária
- onde se encontra “o” romance, naquela imagem? - mas com
o inventar, periodicamente, todo um grupo de subgêneros
entre si diferentes e depois um outro e depois mais um ou­
tro... Seja em sentido sincrônico, seja em sentido diacrônico, o
romance é, em suma, o conjunto dos seus subgêneros: o diagrama
apreendido como um todo, não uma parte privilegiada. Al­
guns desses subgêneros são naturalm ente mais significativos
do que outros no plano formal (como o romance de forma­
ção), ou mais populares (o gótico), ou as duas coisas ao mes­
X. mo tempo (o romance histórico). E é claro que é preciso per­
ceber isto, mas não fazendo de conta que estas são as únicas
formas que existem. Ao invés, as grandes teorias do romance
fizeram exatamente isso: reduziram o romance a uma só for­
ma de base (o realismo, o romance, o dialogismo, o meta-ro-
mance...). E se esta redução lhe conferiu elegância conceituai
Será que com os ciclos e os gêneros se explica toda a histó­ e força teórica, terminou também por fazer desaparecer nove
ria do romance? Não, naturalmente. Mas com os ciclos se décimos da história literária. É muito.
entrevê o seu ritm o escondido e se coloca em evidência algu­
mas perguntas sobre aquilo que chamaria de a forma interna Iniciei este capítulo sustentando que os dados quantitativos
de todo o processo. Explico-me. Para muitos historiadores são úteis porque são independentes das interpretações do
literários existe uma diferença categórica entre “o roman­ pesquisador individual; depois, que são interessantes porque,
ce de uma parte e os diversos “gêneros romanescos” (ou às vezes, exigem uma interpretação que emana do universo
subgêneros, como no inglês subgenres) de outra. O romance quantitativo; agora, mais radicalmente, os vemos falsificar as
ê, por assim dizer, a substância da coisa e justifica, então, um teorias existentes e sugerir a necessidade de uma teoria, não
tratam ento teórico de tipo geral. Os vários subgêneros são, tanto do romance, mas de uma fam ília inteira de formas ro­
ao contrário, um pouco como “acontecimentos imprevistos”, manescas. Uma teoria da diversidade. O que isto pode querer
cuja análise, por mais rica e interessante que seja, é sempre dizer, procurarei explicar no terceiro capítulo.
limitada, local’, privada de consequências teóricas próprias
e verdadeiras.
SR h»n< o Mnretti Gráficos 59

Sn! a sobre a Laxionomia romanesca 1996. "SPY" NOVEL, 1770-1800: Christopher Flint, "Speaking objects:
the circulation of stories in eighteenth-century prose fiction". PMLA II3
On gêneros das figuras 9 e 10 foram catalogados do seguinte modo: defi­ (2), March 1998, pp. 212-26. RAMBLE NOVEL, 1773-90: Simon Dickie, The
mid-century "ramble"novels, PhD dissertation, Stanford 2000. ROMANCE
n i-lo corrente, em maiuscula e frequentem ente em inglês; datas de início
JACOBINO, 1789-1805: Gary Kelly, The english jacobin novel 1780-1805,
c de fim; estudo crítico do qual tirei a (nem sempre explícita) periodização.
Oxford1976. GÓTICO, 1790-1820: Peter Garside, "The english novel in
As duas figuras são som ente os prim eiros esboços de um territó rio m uito the romantic era", in Garside, Raven and Shõwerling, The english novel
vasto. Como o conhecimento desse vasto territó rio é destinado a m udar 1770-1829, vol.ll. ROMANCE ANTI-JACOBINO, 1791-1805: M. O. GRENBY,
muito rapidamente, é bom acrescentar algum as premissas. E m primeiro The anti-jacobin novel, Cambridge 2001. NATIONAL TALE, 1800-31: Katie
lugar, com exceção daqueles (pouquíssimos) casos em que já existem es­ Trumpener, "National Tale", in Paul Schellinger, The encyclopedia o f the
novel, Chicago 1998, vol.ll. VILLAGE STORIES, 1804-32: Gary Kelly, English
tudos quantitativos, ou bibliografias completas, a data de início indica o
fiction ofthe romanticperiod, 1789-1830, London 1989. ROMANCE EVAN­
prim eiro texto que se pode inscrever como de um determ inado gênero e
GÉLICO, 1808-19: Peter Garside, "The english novel in the romantic era".
não a ascensão do gênero propriam ente, a qual acontece, como dem onstra ROMANCE HISTÓRICO, 1814-48: Nicholas Rance, The historical novel and
a figura 7, vários anos mais tarde; ao mesmo tempo em que nosso conhe­ popular politic in nineteenth-century England, New York 1975. ROMANTIC
cim ento avança, a duração dos gêneros rom anescos deveria abreviar-se em FARRAGO, 1822-47: Gary Kelly, English fiction o fth e romantic period. SIL-
VER-FORK NOVEL, 1825-42: Alison Ad b urgha m, S/7ver fo/Jc soc/efy, London
relação à duração aqui indicada. Por outro lado, alguns gêneros conhecem
1983. ROMANCE MILITAR, 1826-50: Peter Garside, "The english novel in
rápidos, mas intensos renascimentos, depois de uma certa distância de seu
the romantic era". NAUTICAL TALES, 1828-50: Michael Wheeler, English
ápice originário, como a oriental tale em 1819-25, o gótico depois de 1885,
fiction o f the Victorian period:!830-90, London 1985. NEWGATE NO­
o romance histórico (mais de uma vez). “Ressurgim ento” fascinante, mas VEL, 1830-47: Keith Hollingsworth, The Newgate Novel, 1830-47, Detroit
cuja explicação ficará para outra ocasião. Por fim, as figuras 9 e 10 não 1963. ROMANCE DE CONVERSÃO, 1830-53: Sarah Gracombe, Anxieties
incluem nem o policial, nem a ficção científica, embora um e outro atinjam ofinfíuence: jewishness and english cuiture in the Victorian novel, PhD dis­
a sua forma m oderna em 1890 (Doyle e Wells) e sofram depois uma rele­ sertation, Columbia University 2003. ROMANCE INDUSTRIAL, 1832-67:
Catherine Gallagher, The industrial reformatíon o f english fiction, Chicago
vante transform ação em to rn o de 1920 - em boa sincronia com o ritm o
1985. ROMANCE ESPORTIVO, 1838-67: John Sutherland, The Stanford
seguido pela maior p arte dos outros gêneros. A peculiar duração desses
companion to Victorian literature, Stanford 1989. CHARTIST NOVEL, 1839-
dois gêneros parece pedir uma abordagem diferente. 52: Gustav Klaus, The literature o f labour, New York 1985. MYSTERIES,
1846-70: Richard Maxwell, The mysteries o f Paris and London, Charlottes-
ville 1992. MULTIPLOT NOVEL, 1846-72: Crisi Benford, The muitiplot no­
COURTSHIP NOVEL, 1740-1820: Katherine Sobba Green, The courtship vel and Victorian cuiture, PhD dissertation, Stanford 2003. ROMANCE DE
novel 1740-1820, Kentucky 1991. PICARESCO, 1748-90: F.W. Chandler, The FORMAÇÃO, 1847-72: Michael Minden,'Bildungsroman', in Schellinger,
literatureofroguery, London 1907. ORIENTAL TALE, 1759-87: Emest Baker, The encyclopedia ofthe novel, vol.ll. ROMANCE RELIGIOSO, 1848-56: Whe­
The history o fth e english novel, London 1924, vol.V. ROMANCE EPISTO- eler, English fiction ofthe Victorian period. ROMANCE DOMÉSTICO, 1849-
LAR, 1766-95: James Raven, "Historical introduction", in Garside, Raven 72: Sutherland, Stanford companion to Victorian literature. ROMANCE
and Schõwerling, The english novel 1770-1829, vol.l. ROMANCE SENTI­ PROVINCIANO, 1850-73: lan Duncan, "The provincial or regional novel",
MENTAL, 1768-90: John Mullan, "Sentimental Novels", in John Richetti, in Patrick Brantlinger and William Thesing, A companion to the Victorian
The Cambridge companion to the eighteenth-century novel, Cambridge novel, Oxford 2003. SENSATION NOVEL, 1850-76: Nicholas Rance, Wilkle
f>0 I r.itn « Morettl

l olllns and other sensation novelists, London 1991. FANTASIA, 1850-95:


C„N. Manlove, Modem fantasy: five studies, Cambridge 1975. CHILDREN'S
ADVENTURES, 1851-83: Sütherland, Stanford companion to Victorian lite-
rature. SCHOOL STORIES, 1857-81: Isabel Quigly, Theheirs ofTom Brown,
London 1982. ROMANCES IMPERIAIS, 1868-1902: Joseph Bristow, Em-
pire boys, London 1991. INVASION LITERATURE, 1871-14: I.F. Clarke, The
taleofthenextgreatw ar, 1871-1914, Liverpool 1995. UTOPIA, 1872-1901:
Wheeler, English fiction o fth e Victorian period. COCKNEY SCHOOL, 1872-
97: Sütherland, Stanford companion to Victorian literature. ROMANCE RE­
GIONAL, 1873-96: Duncan, "The provincial or regional novel". NURSERY
STORIES, 1876-1906: Gillian Avery, Nineteenth century children, London
1965. DECADENT NOVEL, 1884-1906: A. A. Mandai, "Decadent Novel", in
Schellinger, The encyclopedia o fthe novel, vol.l. ROMANCE NATURALIS­
TA, 1885-1915: William Frierson, Uinfluence du naturalisme français sur les
romanciers anglais de 1885 à 1900, Paris 1925. GÓTICO IMPERIAL, 1885-
1916: Patrick Brantlinger, Rule o f darkness, Ithaca 1988. NEW WOMAN
Mapas
NOVEL, 1888-99: Ann L. Ardis, New women, new novéis, New Brunswick
1990. KAILYARD SCHOOL, 1888-1900: Sütherland, Stanford companion to
Victorian literature.
Mapas 63

ervem, de fato, para algum a coisa os mapas literá­

S rios? As páginas que seguem procuram responder a


essa pergunta. A qual, de resto, não é, absolutamente,
uma pergunta retórica. Peguem o ensaio de Bakhtin sobre
cronotopo: é a coisa mais inteligente que foi escrita até hoje
sobre a relação espaço e literatura e não há nem mesmo
um mapa. G eo g ra fia e sto ria delia letteratura ita lia n a , de Cario
D ionisotti, tam bém não. T h e co u n try a n d the city, de Ray-
mond W illiams, também não. E spaces rom anesques d u X V I I I
siècle, de H enri Lafon... Servem, de verdade, para alguma
coisa as cartas literárias?
(>4 ( ranto Moretti Mapas 65

como um mero ponto de passagem entre localidades mais im­


portantes, como a Kessin de E f f i B riest (o trem diretíssimo
Gdansk-Berlim “não pára aqui para nós”). Claro.

Depois, alguém faz um mapa do livro, e tudo muda (fig. 14). A


primeira coleção de O u r village, de 1824, tem a forma de um
pequeno sistema solar, com a vila bem no centro do quadro
e em torno do centro dois anéis narrativos mais ou menos
concêntricos. O primeiro, feito de três ou quatro histórias,
coloca-se a algumas centenas de m etros da vila e é, funda­
mentalmente, dedicado às relações pessoais, de amizade ( El-
len”, “Hannah”, “a prima M ary”); o segundo, mais nutrido,
I. é situado, ao contrário, a alguns quilômetros de distância e
ali predomina a relação com a natureza (“gelo” e “degelo”,
“Violetas”, “A prím ula”), mais alguns eventos coletivos, como
o cricket e o m a y in g (a festa da primavera). Mas em um caso,
A narrativa local”, de pequenas cidades ou vilas, era uma for­ como no outro, a estrada de “B —a S —”, com todos os seus
ma muito difundida na Inglaterra do primeiro quarto do sé­ carros, cavaleiros e carroças, desapareceu completamente. O
culo 19, cujos cinco volumes de O u r village, escritos por M ary espaço narrativo não é linear aqui, e sim circular. E isto é
Mitford, entre 1824 e 1832, constituem, talvez, o exemplo estranho. Quando trabalhava no A tla s do romance europeu e
mais bem acabado. A vila, de 200 ou 300 pessoas, chamava- passava os dias reconstruindo a lógica espacial do romance
se T hree Mile Cross, e localizava-se em Berkshire, alguns oitocentista, encontrei p a tte rn de toda sorte (trajetórias linea­
quilômetros ao sul de Reading, ao longo da estrada “de B —a res, campos binários, triangulações e histórias multipolares),
S que levava ao Hampshire (fig. 13). E a estrada é coloca­ mas figuras circulares, nenhuma. De onde será que vêm os
da, de fato, explicitamente em primeiro plano no capítulo de anéis de O u r villa g e P
abertura do livro e dali oferece a perspectiva de onde a vila é
avistada, com as suas poucas casas alinhadas ordenadamente,
de ambos os lados da estrada, uma depois da outra. Dessa
forma, alguém pensa: “Yonville”22, e imagina “a nossa vila”

22 "Não existe nenhuma outra coisa para ser vista em Yonville. A estrada (a única
que existe), tão longa quanto um tiro de fuzil, e ladeada por alguns comér­
cios..." (Madame Bovary, II. I).
66 Franco Moretti Mapas 67

F ig u ra 13. T h re e M ile Cross.

Fonte:Thomas M<j>ule, The english counties delineated, 1837. London: Bracken Books, 1994.

U m p e q u e n o lu g ía r é tã o a g r a d á v e l n a r e a lid a d e q u a n to n a p o e s ia o u n a p r o s a ; u m p e q u e n o m u n d o
c o m o e sta n ossa v ila d e B erk sh ire, n a q u a l e sto u e sc rev e n d o [ . . J co m u m a e s tr a d a q u e a a tr a ve s sa ,
se m p r e ch eia d e a r r o s , c a v a le ir o s e c a r r o ç a s e, u ltim a m e n te , e n r iq u e c id a p o r u m a d ilig ê n c ia q u e v a i
d e R - a S - [ ... Q ite r a tr a v e s s a r c o m ig o a n o ssa v ila , g e n t i l le ito r ? N ã o s e r á u m a lo n g a v ia g e m ...
M ahy M it f o h d . O u r villa g e.
F ig u ra 14. M a ry M itfo rd . O u r v illa g e , vol. I (1824).
68 Franco Moretti Mapas 69

De uma geografia circular a um sistema linear de coordena­


das: é a reorganização do campo inglês produzido pela demar­
cação ( enclosure ) do início do século 19 e visualizada por Bar­
rei nos dois mapas de Helpston em 1809 e 1820 (figs. 15-16’).
De um sistema produtivo (e perceptivo) em que a vila é ainda
uma realidade largamente auto-suficiente e pode, portanto,
sentir-se no centro de um espaço “seu”, passa-se a um sistema
dominado pelas redes viárias das comunicações de médio e
longo raio em que Helpston não é mais que uma “perolazi-
nha” entre tantas que estão alinhadas ao longo da estrada.

Tendo como pano de fundo as pesquisas de Barrell, o crono-


II. topo de O u r villa g e torna-se a um só tempo mais claro e mais
interessante. Abrindo a narrativa com uma perspectiva line­
ar, para depois passar para um esquema circular, M itford vira
de ponta-cabeça a direção do processo histórico e transporta
Entre o fim do século 18 e o início do século 19, a paisagem rural o seu público, largamente urbano ( O u r villa g e foi publicado
inglesa sofre i profundas transformações. No caso de uma open-field pela W hittaker, Ave-Maria-Lane, London), para o campo in­
p a r is /f', confo é aquela de O ur village, escreve John Barrell: glês de antes das demarcações ( enclosures). A chave de retorno
desta reviravolta de perspectiva é o episódio mais típico e
A té parece que a geografia muda segundo o observador. Para mais freqüente do livro: as “country walks”, os passeios pelo
aqueles habitantes que passam só de vez em quando os lim ites da campo que foram por longo tempo a parte mais popular de
parish , esta constitui, por assim dizer, o centro da paisagem f...] O u r village (e que foram freqüentem ente impressas separa­
M as para aqueles que a ultrapassam frequentem ente, assim como damente, enquanto todo o resto desaparecia no nada). Histó­
p ara aqueles que a atravessam no curso de uma viagem, a parish ria após história, a jovem narradora sai da vila, cada vez em
não é mais, ao co n trário £...] definida como um a geografia circu­ uma direção diferente, chega até o seu destino pré-fixado, dá
lar sim como um sistem a linear de coordenadas2 meia-volta e retorna para casa. E, ao fazer assim, “desenha”
no campo circundante aqueles anéis que vimos em ergir da
23 Na Ingl,laterra parish, paróquia, é um termo administrativo e designa uma (peque-
figura 14, que são também, veremos, o cronotopo em que se
na) unid.lade, nais ou menos correspondente às antigas paróquias eclesiais. Quan-
to ao te rmo tpen-fie/d, este indica que naquela determinada parish não ocorreu resume o sentido profundo de toda a literatura de viagem.
ainda a dem, reação (endosure) das terras cultivadas do município iopen-fíelds).

24 J. Barre I. Thí idea o f iandscape and the sense ofplace 1730-1840. London-New
York: C, mbridge U. P„ 1972, p. 95.
70 Franco Moretti Mapas 71

para Nunton e Maxey

para Stami

•-"■para Etton
•fej(4t

A neve (comum a
para Ufford Etton e Helpston)

para Peterborough

j Terras públicas
náo cultivadas
| Florestas para Wansford para Castor

F ig u ra 15. H e lp sto n em 1809, an tes das dem arcações.


F ig u ra 16. H e lp sto n em 1820, depois das dem arcações.
Fonte: J. Barrell, The idea of landscape and the sense ofplace 1730-1840. London-New York: Cambridge
University Press, 1972.
Fonte: J. Barrell, Theidea of landscape and the sense o f place 1730-1840c\X.

A to p o g r a f ia e a o r g a n iz a ç ã o d e u m a o p e n f i e l d p a r i s h p r o m o v e m u m s e n tid o d o e sp a ç o tip ic a m e n ­
S e g u n d o P r ie s t , u m a e s tr a d a d e v e r ia “e n f il e ir a r ” u m a v i l a d e p o is d a o u tr a , c o m o p e r o l a z i n h a s
te c irc u la r, e n q u a n to a p a is a g e m , c r i a d a p e la s d e m a r c a ç õ e s a u t o r i z a d a s p e l o p a r l a m e n t o e x p r im ia
e m u m c o rd ã o : p a r a e le a e s tr a d a v e m a n te s d a s v i l a s q u e s ã o j u n t a d a s p o r ela , e lh e é im p o s s ív e l
u m a p e r c e p ç ã o lin ea r... [ E m , 1809fj a v i l a d e H e lp s to n e n c o n tr a -s e n o c e n tr o d a p a r is h , lá o n d e
c o n c eb e r a s v i l a s c o m o r e a li d a d e s in d e p e n d e n te s e d is tin ta s .
se e n c o n tr a m o s tr ê s c a m p o s q u e a c o n s titu e m : e ste s d is p õ e m - s e e m to r n o d a v i l a n u m a e sp écie d e
John B a h r k i .i .. T h e id e a o f la n d s c a p e a n d the sense o f p la c e 1730-1840.
c irc u n fe rê n c ia , d e n tr o d a q u a l o s h a b ita n te s d a v i l a m o v e m - s e e tr a b a lh a m .
Jo h n B a r r e i .l , T h e id e a o f la n d sc a p e a n d th e sense o f p la c e 1730-1840.
T I Franco Moretti Mapas 73

o futuro e intuído aquela relação “de fim-de-semana” com o


espaço do campo que emergirá na segunda metade do século
19 e que permanece tal qual até hoje.

A semelhança das figuras 14 e 15 esconde, então, dois mo­


dos completamente diferentes de atuar no espaço rural. A
circunferência reconstruída por Barrell colima com a cultura
submersa das routine diárias - posição dos campos, caminhos,
sentido das distâncias, horizonte, tempos de deslocamento
—que hoje chamamos de m entalitê t. que se entrelaça, norm al­
mente, com o cumprimento do trabalho material. A estiliza-
ção do espaço rural operada por Mitford, ao contrário, com
III. a sua alquímica transm utação do trabalho em passatempo,
não é m entalitê, e sim ideologia. E ideologia de um ator social
diferente, que prefere afastar o olhar da penosa realidade da
vida no campo para associar a esta realidade, ao contrário,
conotações simbólicas totalm ente diferentes.
Uma ge ografia circular em Helpston antes das demarcações,
uma )grafia circular em O ur village. Mas com uma diferen- Um mapa da ideologia, que emerge de um mapa da m entalitê,
ça importante: nos passeios de Mitford, o que em Helpston que emerge do substrato material do território. Certo, con­
é “a cincunferência dentro da qual os habitantes da vila cordo, as coisas não são sempre assim certinhas. Mas quando
movem se e trabalham ”, é redefinido como espaço de distração acontece, é um prazer.
e não d e trabalho. São caminhadas agradáveis, as “country
walks” da protagonista de O ur village: lentas, despreocupadas,
em cotrílpanhia de um galgo de nome May. Em torno dela, um
campo rico de espetáculos naturais, mas onde quase ninguém
faz algu ma coisa. Caminhadas decorativas: para cada página
sobre o trabalho nos campos, existirão trinta sobre as flores
e as ár\ ores, descritas com implacável zelo. Se o público ur-
bano é colocado no meio do belo campo pré-moderno, este é,
por sua vez, completamente limpo, cortês, g en trified, como se
diria em inglês. Quase como se M itford tivesse viajado para
74 Franco Moretti Mapas 75

utilizados nos numerosos pontos dispersos”25. Quanto mais


um serviço é especializado, em suma - escola fundamental,
universidade, centros de pesquisa... mais central será a sua
colocação no interior da hierarquia dos centros urbanos. A
figura 17, colhida do trabalho de Christaller, sintetiza esta
subdivisão geométrico-funcional do espaço social.

A reg ra aqui é simples: em torno de cada centro “G” da or­


dem mais alta, com muitos serviços, e muito especializados,
estende-se uma “área de mercado” hexagonal que abarca seis
centros “B” de segunda ordem, com menos serviços, e me­
nos especializados; em torno de cada centro “B”, existem seis
IV centros “K”, de terceira ordem, e assim por diante, até que no
limite inferior da hierarquia encontramos... O u r village-, a “re­
gião central da ordem mais baixa”, como a chama Christaller,
cujo raio (dois-três quilômetros) coincide perfeitamente com
a distância percorrida pela protagonista do livro em uma de
suas country walks. A figura 18 m ostra, exatamente, os ser­
Estilização do espaço”, eu disse a propósito de Mitford. E é, viços oferecidos pela vila de M itford e pelos outros centros
sem dúvida, a fórmula justa também para o grande estudo de urbanos mencionados no livro.
Wal ter Christaller sobre as localidades centrais da A lem a n h a
m e n dional. Escrito no início dos anos 1930, o livro se pro- Na vila: sapateiros, ferreiros, marceneiros, pedreiros; em Lon­
põe a explicar a distribuição geográfica dos centros urbanos dres e nas outras cidades: cabeleireiros, professores de francês,
e en lontra ali “o princípio ordenador que ficou até aqui des- corridas de cavalos, costureiras da moda. De uma parte, as sé­
coní ecido” da divisão espacial do trabalho. A especificidade ries necessárias à vida de cada dia; da outra, superficialidades
da c dade, escreve Christaller, consiste em oferecer serviços
especializados: “atividade bancária []...]] atividade administra­ 25 W. Christaller. Le località centrali delia Germania meridionale. Milano: Franco An-
tiva estatal, a oferta de bens culturais e espirituais (igreja, geli Editore, 1980, p. 47, 48. A teoria de Christaller pressupõe um espaço "iso-
trópico" (onde se pode mover com igual facilidade em toda direção), o que é,
esco as, teatro etc.), as organizações profissionais e econômi­ naturalmente, uma abstração teórica e que possui uma imediata validade em­
cas []... o setor)] sanitário”, os quais, com o fim de reunir o pírica somente em planícies agrícolas homogêneas (como era, exatamente, boa
parte da Alemanha meridional). A idéia de um espaço isotrópico é o ponto de
maio:rr número de consumidores possível, são colocados em
contato entre a teoria de Christaller e a estrutura narrativa dos romances de vila,
“poucos pontos necessariamente centrais para serem, depois, de pequenas cidades. Mais à frente, na nota 33, retorno sobre esta hipótese (e
sobre os problemas que ela comporta).
76 Franco Mor!stti Mapas 77

e frivolidades um pouquinho bobas. É um contraste afável,


porém nítido, e que faz de Our village um exemplo perfeito de
narração idílica. “O amor, o nascimento, a morte, o matrimônio,
o trabalho”, escreve Bakhtin no grande ensaio sobre cronoto-
po: “somente um escasso número de realidades fundamentais
da vida [l..^ Este pequeno mundo auto-suficiente,
não £../] ligado substancialmente a outros lugares [1..J”26.
Um mundo auto-suficiente: eis uma outra razão da afinidade Centro - G
entre pattern circular e narrativas de pequenas cidades: um
Centro - B
círculo é uma forma simples, “natural”, em que o “pequeno
m undo” do idílio recolhe-se sobre si mesmo, virando tran­ O Centro - K
quilamente as costas para o universo que jaz para lá de suas
O Centro - A
fronteiras. ‘Açúcar, café e sal: nada, além disso, nos servia do
mundo externo”, declara, orgulhosa, a protagonista de uma • Centro - M

outra narrativa de vila, a Brigitta, de Berthold Auerbach. Mas


o passado daquele “servia” sugere que os dias de auto-sufi­ Limite de região:

ciência estão contados.

F ig u ra 17. O sistem a dos “lugares c e n tra is ”, seg u n d o C hristaller.

P o r q u e e x is te m c id a d e s g r a n d e s e c id a d e s p e q u e n a s e p o r q u e a s u a d is tr i b u iç ã o é tã o ir r e g u la r ?
N ó s p r o c u r a m o s d a r u m a r e s p o s ta a t a l in te r r o g a ç ã o e p r o c u r a m o s ta m b é m o m o tiv o q u e e x p lic a
p o r q u e u m a c id a d e é g r a n d e o u p e q u e n a , p o r q u e a c r e d ita m o s q u e a d is tr i b u iç ã o d e v a s e r d e a lg u m
m o d o r e g u la d a p o r u m p r i n c í p i o o r d e n a d o r q u e a i n d a n ã o in d iv id u a m o s .
[ . . . E m r e la ç ã o à c e n t r a l i d a d e j n ã o se t r a ta ta n t o d e u m a s im p le s p o s iç ã o c e n tr a l e m te r m o s d e
e sp a ç o , q u a n to d e u m a f u n ç ã o c e n tr a l em s e n tid o tr a n s la d o . [ . . . ] o s b e n s e o s s e r v iç o s c e n tr a is sã o
p r o d u z i d o s e o f e r ta d o s s o m e n te e m p o u c o s p o n to s n e c e s s a r ia m e n te c e n tr a is p a r a ser e m d e p o is u t i l i ­
z a d o s n o s n u m e r o s o s p o n to s d is p e r s o s.
W ai.tkk C iiristau.ek. L e lo c a lità c e n tra li d e lia G e r m a n ia m e rid w n a le.
26 M. Bakhtin." _e forme dei tempo e dei cronotopo nel romanzo". In: Estética e
romanzo, 1975.Torino, Einaudi, 2003, p. 372-73.
78 Franco Moretti Mapas 79
v

C id a d e d e B-
chapeleiro
militares
R o se d a le
dançarinas itinerantes
inquilinos sofisticados
teatro
feira

H a ze lb y
farmacêutico
Ascof
raças

Lo n d re s
sócio de grande empresa
alfaiate fashion
V
"madame falante"
Sr. Lua, o feiticeiro

“Idílio” 6 o term o usado, em regra, para uma outra obra do


início do século 19, Annals o f the pansh, de John Galt, de
Figura 18. Mary Mitford. O u r v illa g e : a divisão espacial do trabalho. 1821. A parish, mais ou menos do tamanho da vila de Mitford,
é aquela de Dalmailing, perto da costa ocidental da Escócia,
Em O ur village, o p a d r e , o s a p a te i r o e a p e n s ã o s ã o s e r v iç o s “c e n tr í p e to s ”, e n q u a n to o p e g a - r a to ,
o p e g a - to u p e ir a e o p e g a - p a s s a r in h o - q u e n ã o p o r a c a s o a p a r e c e m f o r a d a v i l a e tr a b a lh a m , ta n to da qual o livro conta o meio século que vai de 1760 a 1810.
n o s e n tid o p r á t i c o q u a n to n o s im b ó lic o , n a f r o n t e i r a e n tr e m u n d o h u m a n o e m u n d o n a tu r a l - s ã o A cada ano um capítulo, em que o m inistro Balwhidder relata
e x e m p lo s d e tip o c e n tr ífu g o m a is a n ti g o ( C o m o o in e s q u e c ív e l r e d d le m a n q u e se e n c o n tr a n o in íc io
os eventos mais notáveis daqueles 12 meses no modo desor­
de R eturn o f the native, d e H a r d y ) . A f r a c a d i v i s ã o d o tr a b a lh o e x is te n te n a v i l a to r n a ta m b é m
n e c e s s á r ia s a q u e la s r e a li d a d e s “m u l t i u s o ”, c o m o o “b a z a a r ” d e seu co m é rc io , o f e r r e i r o q u e tr a b a ­
denado e freqüentem ente caótico que é típico do registro em
lh a ta m b é m c o m o p o lic ia l, o u n u m e r o s o s p e r s o n a g e n s c o m o u m c e r to J o h n W ils o n , “u m tip o c a p a z , anais - e de que os primeiros dez anos do livro, sintetizados
q u e s a b ia f a z e r m i l c o isa s — m a r c e n e ir o , p in t o r , ja r d i n e i r o , f i s c a l d e ca ça , c o lo c a d o r d e p e d r a s ... na figura 19, oferecem um ótimo exemplo.
E x i s t e m d o is m o d o s fu n d a m e n ta is d e d is tr ib u iç ã o d e m e r c a d o r ia s e s e r v iç o s p a r a os co n su m id o res:
o fe rec e r e m u m lu g a r cen tral, o n d e o s c o n s u m id o r e s s e r ã o o b r ig a d o s a ir; o u le v a r co n sig o , s e r v in d o ,
Aqui, três espaços de base emergem do fluxo narrativo. O
d e ssa f o r m a , o c o n s u m id o r “e m d o m ic ilio ”. O p r i m e i r o m o d e lo c o n d u z n e c e s s a ria m e n te a o d e se n ­ primeiro é aquele da vida cotidiana em Dalmailing, que re­
v o lv im e n to d e lo c a is c e n tra is o u m e rc a d o s f ix o s ; o s e g u n d o não. H o u v e u m te m p o , d e resto, e m q u e o
portei na segunda coluna à esquerda, e que é ainda larga­
v e n d e d o r a m b u la n te e ra m u ito m a is d ifu s o d o q u e hoje. O a m b u la n te , o a m o la d o r d e f a c a , o c o n ta d o r
mente penetrado de materiais idílicos (“nascimento, trabalho,
d e h is tó r ia s , fr e q u e n te m e n te ta m b é m o p a d r e : to d o s le v a v a m s u a s m e r c a d o r ia s a o co n su m id o r.
W alther Christaller. E e lo c a lità c en tra li d e lia G e r m a n ia m erid io n a le.
80 Franco Moretti Mapas 81
I

amor, matrimônio, morte...”). O segundo sistema espacial une, que jamais se reproduzirá: um asno, um coco, um papagaio...),
ao contrário, Dalmailing, Irville (isto é, Irvine), Glasgow e a antítese entre casa e mundo é radical e totalm ente irrele­
Edimburgo, e m ostra como funciona concretamente a hierar­ vante: as maravilhas são admiradas e depois desaparecem no
quia dos “lugares centrais”: escola em Irville, universidade nada (à parte o chá, naturalmente). E o idílio de Dalmailing
em Glasgow, advogados e médicos famosos em Edimburgo; prossegue do mesmo modo: “não ligado substancialmente a
notícias de segunda mão em Irville, e notícias de primeira outros lugares”.
mão em Glasgow; almoço de inauguração, lua-de-mel e lá­
pide funerária... A medida que um serviço torna-se mais in­ Mas, em 1788, tudo muda. A poucas milhas de distância é
sólito, a narração desloca-se em direção à ponta da pirâmide, construída uma fiação de algodão, em torno da qual surge a
e se distancia de Dalmailing. Mas porque o mundo de Galt cidade industrial de Cayenneville, e as coordenadas espaciais
é ainda, em certo grau, dominado pelas simples necessida­ de Dalmailing são alteradas para sempre. Confrontando a
des da existência cotidiana, os lugares centrais ficam, de fato, prim eira década dos Anais com a última (fig. 20), é impossível
às margens do relato (especialmente aqueles de “nível mais não apreender a drástica reorganização do espaço produzida
alto”, como Edimburgo ou Londres). pela instalação da manufatura. O sentido do “local”, tão forte
no início do livro —a vida cotidiana de Dalmailing, a Irville
Tudo, menos marginais, são, ao contrário, as “novidades” onde os meninos vão à escola, as vilas onde se vai procurar
listadas na prim eira coluna à esquerda, que chegam a D al­ mulher... - agora tudo desapareceu no nada. No seu lugar,
mailing das Antilhas, do Báltico e de vários outros lugares como na Helpston de Barrell, se estabeleceu a grande “rede
deixados mais ou menos indefinidos. Aqui entra no jogo o de relações comerciais” (Cayenneville-Glasgow-Manchester-
império colonial britânico, naturalmente, mas também uma Londres), em que “cada sobressalto provoca contragolpes até
mais antiga, e quase mítica, geografia da pura e simples dis­ aqui no nosso canto” (ano: 1808). A nossa vila não é mais o
tância. Em Dalmailing, um papagaio, o licor e o cocker-nut (a centro de gravidade da narrativa: foi destronada pelo m er­
soletração meio holandesa de Balwhidder para coco) são coi­ cado nacional do século 19 industrial, cujas distâncias inter­
sas que chegam literalm ente de um outro mundo. Maravilhas. mediárias (nem Casa, nem Mundo) são atravessadas toda se­
Ou, mais prosaicamente, objetos de luxo: produtos exclusivos mana, se não todo dia, por aqueles produtos —livros, jornais,
do comércio de longa distância, que brilham por um momen­ eventos políticos: todos plurais —que encarnam o novo “novo’
to no horizonte do cotidiano, e que deixam atrás de si o sabor inventado pelo século 19 industrial. O novo que te prende
de dois universos incomensuráveis. Aqui, nascimento, traba­ mesmo sem nada de extraordinário; o novo como ingrediente
lho, matrimônio e morte; lá, coco, bálsamo de Riga, papagaios do cotidiano, ao invés de sua antítese. Da Idade das M aravi­
e aguardente de Gdansk. A Casa, e o Mundo. Mas como o lhas, não ficou nada além de uma tartaruga solitária.
mundo não se intromete, de fato, na vida de todos os dias
(as suas maravilhas são sempre no singular, como a sugerir
82 Franco Moretti Mapas 83

América: boatos de rebelião (ndía: uma pessoa com posses


Irla n d a
"irlandeses selvagens à procura de trabalho" N o ru e g a : expansão
do comércio de carvão

lr v ille [2 -3 milhas] [25 milhas]


G la sg o w
crianças vão à escola vai para universidade 60 milhas]
E d im b u rg o [
notícias [segunda mão) cunhado vai para faculdade consulta médica
manteiga para mercados [regularmente] notícias [primeira mão] aluno antigo se torna advogado
hotel proporciona jantar de celebração queijo para mercado [ocasionalmente] túmulo de mármore
hotel proporciona carruagem nova diretora da escola
mestre da dança lua-de-mel
barca de carvão de Belfast várias coisas úteis
A ro tin a d e D a lm ailin g confecção de manto
chegada do pastor
chegada da Senhora Malcoim
casamentos
filhos ilegítimos nascem Vilas p ró xim a s
gêmeos nascem ciganos
[raio de 5 10 mil ias]
bezerros gêmeos nascem encontra primei a esposa
D a lm ailin g. N o v id a d es varíola encontra segund.ia esposa
chá "maravilha natural" (um sapo) contrabando
árvore da pêra (pereira) padrinho do pastor morre
papagaio marinheiros
antigo diretor da escola morre capitão perdido no mar
coco a mulher do pastor morre Lo n dre s
burro minas de carvão afundam Lorde Eglesham visita as terras dele
destilador de ervas morre
confecção de manto diretora da escola morre F ran ça
novos nomes para crianças incêndio do moinho prisioneiro retorna
bálsamo de Riga fogo na fazenda local homem volta da academia militar
Rososolus escola fecha/reabre "artifícios dos chapéus franceses"
Dantzick cordial contrabando
primeiro marinheiro de Dalmailing "armarinho"abre
cervejaria estrada do rei consertada

F ig u ra 19. John G alt. Annals o f theparish: p rim eiro s dez anos


(1760-69).
84 Franco Moretti Mapas 85

G la sg o w :
Igreja católica abre
gerente do moinho de algodão vai a Glasgow
companhia compra moinho

milhas]:
C a y e n n e v ille [2 -3
uma tartaruga
livraria
jornais diários de Londres
Jacobinismo
Igreja católica abre/fecha VI.
trabalhadores pagam por sua própria igreja M a n c h e s te r:
companhia pára de efetuar pagamentos supervisor do moinho de algodão
supervisor se suicida

"engenheiro inglês"

L o n d re s:
D a lm a ifin g : interesse em possuir parte de Caynenneville
Uma última coleção, alemã desta vez, as Histórias de, vilas da
poeta paroquial gerente do moinho de algodão vai a Londres Floresta Negra, de Berthold Auerbach. Escritas entre 1843 e
hotel compra sua própria carruagem órfão do supervisor é enviado
passeata da vila 1853, essas Dorfgeschichten foram um dos grandes best-sellers
relaxamento dos ensinos religiosos
assentos vazios na igreja alemães do século, e a figura 21 apresenta cerca de um terço
novos hábitos em funerais
casamentos França: daquela coleção, em 1940, nos dez volumes da edição Cotta.
medo de invasão
Também aqui, como em Galt, três espaços - local, nacional,
mundial —dividem entre si o universo narrativo. O primei­
F igura 20. John Galt. Annals o f theparish. últimos dez anos (1801-10). ro, composto por N ordstetten e pelas outras vilas da Floresta
Negra, tem os traços que já nos são familiares: routine coti­
diana, horizonte de poucas milhas, serviços essenciais —tudo
contido dentro do mesmo cronotopo circular das coleções in­
glesas. Mas se o âmbito geográfico do idílio é mais ou menos
o mesmo em todo lugar (provavelmente porque o caráter ele­
m entar de sua narrativa limita as possibilidades de variação),
o espaço internacional de Auerbach é bem diferente daquele
Mapas 87
86 Franco Moretti

Stuttgart (50 milhas) Ludwigsburg: Crailsheim:


de Mitford ou Galt. No lugar de esporádicas maravilhas ou Tbingen: exército exército 90 milhas
universidade tribunal de apelação penitenciária velho amigo
de algum personagem menor de passagem, o grande mundo suicídio jornal
Alsazia: Rottenburg: especulação falsa Schw bish Hall:
é aqui uma presença constante e com muitas faces: das fre­ imigração processo pintar 80 milhas
rival no amor velho amigo
quentes recordações das guerras napoleônicas (a Alemanha
Baden-Baden:
como “o campo de batalha da Europa”, de Thom as Mann) à grande hotel

dura realidade da concorrência econômica internacional, até


o baixo contínuo da emigração de além fronteira (a América,
naturalmente, depois a Suíça, a França, a Grécia, a Rússia, a
Espanha...). Tirando a Suíça, que fica logo ali na esquina e
onde se fala alemão, o entrecho não se desloca nunca concre­
tamente nestes países estrangeiros, mas as vozes daqueles que
partiram ressoam em quase todas as histórias, como uma es­
pécie de grande coro escondido. Nostálgico, como regra, mas
nos momentos melhores —como a fundação de “Nordstetten,
Ohio” —capaz também do otimismo um pouco melancólico de
quem recomeça a própria vida em um país distante. Horb:
exército
Neustadt prisão
velho amigo prisão
Freiburg:
Terceiro sistema espacial destas Dorfgeschichten, a dimensão processo tribunal
dissecação de cadáver ensino fundamental
nacional (que na Alemanha da metade do século é, obviamente, médico
agrimensor
oficial de recrutamento
injiert)-. Horb, Freiburg, Rottenburg, Sttutgart e os outros “lu­ roupas de casamento
perdas em jogos
gares centrais” introduzidos por Auerbach no decorrer dos vá­
rios contos. Onde, porém, não encontramos as realidades eco­
nômicas da sociedade civil com que nos habituaram as coleções 2 milhas França: Suíça:
USA:
imigração exército invasor imigração
britânicas (manufatura, serviços, bancos e assim por diante), mas imigração concorrência imigração
imigração concorrência
sim ofícios, tribunais, casernas e prisões. O Estado. Melhor, o imigração Espanha:
Rússia:
imigração irmão morre
Estado comoforça repressiva-, uma firme determinação de asse­ amado foge imigração
trapaceiro imigração fazendeiros morrem
áj| Nordstetten imigração relógio especial
gurar-se o monopólio da violência legítima que coloca fora da
Brasil:
Outras vilas processo judicial Grécia: Bálcãs.
lei as tradições locais, recruta os jovens contra suas vontades, fazendeiros arruinados especulação falsa fazendeirovira turco
processa-os se tentam escapar, prende-os... “Vocês promulga­
ram tantos editais e diretivas que não sobrou nada para ordenar”,
protestam os homens de Nordstetten para o juiz do condado F ig u ra 21. B erth o ld A uerbach. Histórias de vilas da Floresta Negra
na história Bom governo-, “vocês vão term inar colocando um (l 843-53).
88 Franco Moretti Mapas 89

guarda debaixo de cada árvore para que não briguem com o identidade coletiva. Que a prim eira incline-se em direção à
vento e para que não bebam muito quando cai a chuva”27. Aqui, acepção “inclusiva” do pronom e (nós = eu + vocês), e o hino,
até mesmo os rivais no amor - guardas florestais, soldados, ao invés, em direção à acepção “exclusiva” (nós = eu + eles
agrimensores - estão associados de um modo ou de outro às contra vocês: guerras, inimigos, glória...), é o toque final de
estruturas repressivas do poder. suas oposições simbólicas.

No conflito entre “fidelidade local” e “fidelidade nacional” Em sua hostilidade contra a centralização estatal, as histórias
que acompanhou a formação dos estados-nação europeus28, de vila distinguem-se nitidam ente do romance de província,
a D o rflite ra tu r perfila-se com as mais antigas, com as me­ com o qual são freqüentemente confundidas, e se assemelham
nores “pátrias”, que não vêem de bom grado a própria sub­ à narrativa regional, como é de resto evidente em Auerbach,
missão à Alemanha no futuro. É o dissídio, m uito alemão, e depois em Hardy. “A região []...]] define por si mesma os
entre H e im a t e Vaterland: o apego aos ritos coletivos tran s­ parâm etros do próprio significado e da própria identidade”,
mitidos de geração a geração, e m uito difuso em Auerbach escreve Ian Duncan, “enquanto a província é definida por sua
(mas também em M itford). A nossa vila, a nossa sociedade (as diferença (Ma capital)]”30. Exatamente. Vila e região foram
prim eiras palavras de Cranford, de Elizabeth Gaskell. Um por longo tempo, e são ainda em parte, possíveis p á tria s a l­
livro cuja última palavra é “nós”). “T er o direito de dizer: tern a tiva s em relação ao estado-nação; a província marca, ao
nós!”, exclama, por sua vez, M itford em A co u n try cricket contrário, a capitulação da realidade local à cidade capital. A
m atch (Uma partida de críquete no campo). Com efeito, se­ idéia de Emma Bovary, de que a vida é “quelque chose de subli­
guindo a fortuna deste pronome na cultura oitocentista, as me” em Paris (ou em Madri, ou em Moscou), e um deserto al-
duas formas que se separam de todas as outras são as histó­ gures31. Como as antigas provinciae, subordinadas ao domínio
rias de vila e os hinos nacionais29: as duas formas rivais da
ra” (15),"inimigo"e"natureza"(13), enquanto "Deus" chega a apenas 12 vezes. É
27 Depois, mais ameaçadoramente:"Vocês querem tirar-nos absolutamente tudo, também significativo que os três hinos que precedem no tempo a Marselhesa
mas saibam que existe uma coisa que não permitiremos que nos seja tirada". - Guilherme de Nassau, holandês; Deus salve a rainha, inglês; e Rei cristão, dina­
Levantando o machado e rangendo os dentes, continuou: "Mesmo que tives­ marquês - se refiram todos os três à figura do soberano e não mostrem ne­
se que arrebentar com este machado toda porta que existe entre mim e o rei, nhum interesse pela primeira pessoa plural (à exceção de Deus salve a Rainha,
não permitirei jamais que ele me seja arrancado. É nosso direito andar com o que a usa, porém, somente em forma subordinada:"que Deus salve-nos todos",
machado desde o início dos tempos...". "que reine por longo tempo sobre nós" "que defenda nossas leis"). A diferença
entre o antigo fundamento dinástico da identidade nacional e aquele coletivo
28 C. Tilly. Coercion, capital, and european States. Cambridge-Oxford: Blackwell,
do nacionalismo moderno emerge claramente deste detalhe gramatical.
1990, p. 107.
30 I. Duncan. "The provincial or regional novel". In: P. Brantlinger e W. Thesing
29 De 28 hinos europeus que pude verificar, 22 estabelecem um campo semân­
(org.). A companion to the Victorian novel. Oxford: Blackwell, 2003.
tico significativo em torno do pronome de primeira pessoa plural, a partir, na­
turalmente, da primeira palavra - Allons - do maior de todos. Nada parece ser 31 Em relação ao resto da Europa, a assimetria entre província e capital é muito
tão essencial para um hino nacional (europeu) do que este signo gramatical menos marcada na Inglaterra, onde Londres (que, porém, era o centro
de identidade coletiva. Até mesmo o nome do país é menos mencionado (20 financeiro do planeta) não gozou jam ais do status mítico das outras capitais
vezes), e da mesma forma o campo semântico de"glória"(19),"passado"e"guer- européias. A razão está provavelmente no melhor conceito de si mesmas das
90 Franco Moretti Mapas 91

à distância de Roma, a província é uma realidade “negativa”,


definida por aquilo que não existe-, o que explica, entre outras
coisas, porque não se pode fazer mapas decentes de romances
de província - não se pode fazer um mapa daquilo que não
existe. Acontece, existem formas narrativas das quais não é
possível uma tradução geográfica (as histórias de Natal, na
metade do século 19, são um outro exemplo). Esses peque­
nos fracassos, se bem que desagradáveis, são o sinal de um
método que permaneceu com os pés na terra. A geografia é
útil, e explica tanta coisa - mas não todas. Para isto, já existe
a astrologia.

VII.

I Servem os mapas literários? Antes de mais nada, são um bom


modo de preparar um texto para análise. Você escolhe uma
unidade narrativa - passeios, processos, bens de luxo, o que
quer que seja - , encontra suas ocorrências, as coloca no es­
paço... ou, em outras palavras, você reduz o texto a poucos
elementos, os abstrai do fluxo narrativo, e os usa para cons­
truir um desses objetos artificiais que vimos até aqui. E, com
um pouco de sorte, estes últimos resultam ser mais do que
a soma de seus componentes-, possuem qualidades “em ergentes”
que não eram visíveis no nível inferior.TPodos, do primeiro
leitor em diante, tinham, obviamente, percebido os passeios
cidades da província inglesa, especialmente depois que decolaram "suas" de Our village, mas nenhum havia refletido sobre a forma
revoluções industriais (Manchester, Birminghan, Leeds, Sheffield...). O surdo circular que eles projetam sobre o campo inglês, porque ne­
desespero de Emma Bovary, ou de Ana de Ozores, em Regenta, ou das irmãs
Prozorov, de Tchekhov, é, portanto, inconcebível em lugares como Milton nhum - na ausência de uma carta geográfica do livro - jamais
(North and south) ou Middlemarch, onde a vida é frequentemente muito havia conseguido vê-la. Não, que fique bem entendido, que
amarga, mas nunca esvaziada de realidade.
92 Franco Moretti Mapas 93
4,

os mapas constituam já em si mesmos uma explicação, mas, os jovens protagonistas viviam (quase) todos de um mesmo
pelo menos, nos oferece um modelo do universo narrativo lado do Sena, e suas amantes do lado oposto (ou no mundo à
que reordena, de modo não óbvio, as componentes e destas parte de Faubourg Saint-Germain). Paris como diagrama-, eis
pode fazer em ergir os p a tte rn ocultos. o que me impressionou naquele momento. Paris como matriz
de relações, não como sistema de lugares específicos. Enten-
E dos p a tte rn foi exatamente do que falei neste capítulo e em damo-no, não é que não percebesse que o espaço dos homens
precedentes trabalhos de geografia literária. G eografia literá­ era o Q u a rtier L a tin , e o das mulheres, a meia-lua que ia de
ria? Em uma inteligente e generosa crítica ao A tla s do ro m a n ­ Fauborg Saint-Germain a Chaussée d’Antin (o “favo cheio de
ce europeu, Cláudio Cerreti expressou suas dúvidas em relação mel” desejado ardentem ente por Rastignac ao final de O p a i
a isto. Concentrar-se sobre os p a ttern , escreve, significa redu­ G oriot), mas isto me interessava muito menos. Estas localida­
zir o espaço à mera “extensão”, onde “os objetos analisados des específicas pareciam-me uma premissa da pesquisa, mais
o são prevalentemente em term os de posições recíprocas e do que o seu resultado. Os lugares em si e p o r si pareciam-me,
de distâncias £...)]: os fatos observados são próximos ou são em suma, muito menos significativos do que as relações que o
distantes entre eles ou a respeito de alguma outra coisa, são m apa/diagram a tinha trazido à luz.
associados de um certo modo”32. Isto, porém, não é geografia,
continua Cerreti, mas, se for o caso, geom etria. E as figuras As relações entre os espaços como mais significativas do que
do A tlas, por sua vez, não são exatamente mapas, mas, sim, os espaços em si e para si... Mas, para a geografia, os espaços
diagramas. Os diagramas assemelham-se a mapas, sim, por­ em si e para si são significativos. Porque a geografia não
que no livro eu os obriguei “a um plano cartográfico”. Mas trata só da “extensão” cartesiana do espaço, mas também,
a verdadeira natureza deles emerge no momento da análise, e talvez sobretudo, de sua “intensidade” (ainda Cerreti): “a
quando minimizo, tranquilamente, as “qualidades” específi­ estratificação de qualidades intrinsecam ente diferentes e de
cas dos vários lugares, para concentrar-me, ao invés, sobre fenômenos heterogêneos”. O Q uartier Latin enquanto Q u a rtier
suas relações recíprocas. Que é, precisamente, o modo justo L a tin , em suma, e não só em sua oposição à Chaussée d’Antin.
de analisar um diagrama, mas não uma carta geográfica. Não há dúvida de que C erreti tem razão, e o motivo pelo
qual eu continuava a “esquecer” a geografia pela geometria
Um exemplo. A figura 22, reproduzida do A tla s do rom ance eu­ era, em primeiro lugar, a ignorância: para escrever o A tla s
ropeu, m ostra as habitações dos protagonistas dos romances eu tinha estudado a linguagem da cartografia, mas a tinha
parisienses de Balzac (e Flaubert), e aquelas dos seus objetos aprendido somente até certo ponto, e a coisa se percebe.
de desejo. Ora, eu me lembro perfeitamente da pequena epi- Todavia, por trás dos erros ditados pela ignorância existia
fania que tive ao trabalhar esse mapa: foi quando percebi que também um elemento de escolha, e, quem sabe, talvez até de
boa escolha: se o A tla s é cheio de diagramas - mas, de resto,
32 C. Cerreti. "In margine a um libro di Franco Moretti. Lo spazio geográfico e Ia o é também este capítulo, onde decidi não sobrepor nem
letteratura". In: Bolletíno delia Societâ Geográfica Italiana, 1998, n. I, p. 141 -48.
94 Franco Moretti Mapas 95

mesmo os diagram as aos mapas de Berkshire ou da Floresta


N egra para que a coisa ficasse totalm ente evidente - se ‘i 'ü ★

continuo a fazer diagramas é porque para mim a geometria
“significa ” mais do que a geografia:a. Significa no sentido de
que uma forma geométrica é coisa por demais regular para
ser fruto do acaso. Se a encontram os diante de nós, é sinal de
que alguma coisa estava em segredo na obra, e de que deu a *■*■* ; V:'".-V
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este fenômeno a forma que tem. &
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Alguma coisa estava na obra... Mas que coisa?
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Lucien 2 Rastignac

33 A geometria significa mais do que a geografia: mas raramente significa sozi­ ★ Objetos de desejo
nha. Neste sentido, a escolha da narrativa de vila como objeto dessas refle­
xões metodológicas corre o risco de ser, talvez, um pouco despropositada,
visto que o espaço isotrópico que a caracteriza tende a exagerar o papel da
Figura 22. Os protagonistas do romance parisiense e os seus objetos
geometria em detrimento da geografia: coisa de que me dei conta só depois de
uma série de trocas de correspondência com Cláudio Cerreti e Jacques Lévy de desejo.
(aos quais agradeço de coração, e que, bem entendido, não têm nenhuma
responsabilidade pelas teses aqui expressas). Mais do que aos mapas de Our F ic a n d o s o z in h o , R a s ti g n a c c h e g a a t é a p a r t e m a is e le v a d a d o c e m ité r io e v ê P a r i s e s te n d id a a o s
village, então, os mapas literários assemelhar-se-ão, normalmente, àqueles
seu s p é s a o lo n g o d a s m a r g e n s d o S e n a . A q u i e a c o lá , a lg u m a s lu z e s c o m e ç a v a m a a cen d er-se . O seu
dos romances parisienses da figura 22, onde um pattern geométrico é bem re­
o lh a r f i x o u - s e a v id a m e n te s o b re a q u e le e sp a ç o q u e se e n c o n tr a e n tr e a c o lu n a d a P l a c e V en d ô m e e
conhecível, mas é também distorcido em relação à específica geografia social
a c ú p u la d o s I n v a lid e s : a l i e s ta v a a q u e le m u n d o p le n o d e f a s c í n i o q u e ele h a v ia q u e r id o co n q u ista r.
de Paris - como é particularmente evidente para aqueles três personagens
O lh o u a q u e la c o lm é ia z u m b in d o c o m u m o lh a r q u e p r e s s e n tia a e sp o lia ç ã o , c o m o se j á s e n tisse em
que partem do lado oposto do Sena com respeito a todos os outros. (Para Du
Tillet e Popinot, a razão é simples: os dois pertencem ao espaço do comércio, seu s lá b io s o d o c e d a q u e le m el. E d is s e c o m o u m a to d e d e sa fio : “A n ó s d o is , a g o r a ! ’’.

antes de que ao mundo intelectual do Quartier Latin; para Wenceslas, não E c o m o p r i m e i r o a to d e seu d e s a f io à s o c ie d a d e , R a s ti g n a c f o i a o j a n t a r d e M a d a m e d e N u c in g e n .
saberia realmente que explicação sugerir.) H onohé de Bai./.ac. O p a i G o rio t.
96 Franco Moretti Mapas 97
V.

impressão digital deixada pela história. “A forma de um obje­


to é um ‘diagrama de forças’”, prossegue D ’Arcy Thompson,
“no sentido de que delas podemos extrair as forças que
£...] agiram sobre o próprio objeto”. E xtrair da forma de um
objeto ‘as forças que o fizeram ser o que é: eis a definição mais
elegante de todas as que jamais foram dadas à sociologia da
literatura. E, para D ’Arcy Thom pson, estas forças são sem­
pre fundamentalmente de dois tipos: internas e externas. “A
estrutura na sua forma final é, por assim dizer, o núcleo in­
terno forjado de várias maneiras pela natureza do elemento
externo”, escreveu Goethe em um daqueles estudos morfoló-
gicos que D ’Arcy Thompson bem conhecia: “e é exatamente
VIII. por isto que o animal pode sobreviver no mundo externo: é
formado do de fora assim como do de dentro”.

Formado do de fora assim como do de dentro... Mas é assim


também com a literatura. Sobre isto, os cinco volumes de Our
“A forma de todo objeto concreto, vivo ou m orto que seja”, rillage parecem quase uma experiência de laboratório. No pri­
escreveu D ’Arcy Thom pson no estranho, extraordinário li­ meiro volume, aquele de 1824 (figura 14), a vila era, como vimos,
vro intitulado On growth andform, “pode ser sempre descrita o centro indiscutível do campo ao seu redor. Os efeitos centrípe-
como o resultado da ação de uma força. De modo conciso, a tos da força “de dentro” eram onipresentes, enquanto as forças
forma de um objeto é um ‘diagrama de forças’”34. Diagrama: “de fora” eram quase inativas: a narrativa movia-se livremente
espaço cartesiano. Mas diagrama de forças. A distribuição dos em todas as direções e se fazia marchas a ré era só pelo puro
eventos narrativos entre as vilas da Floresta N egra e os lu­ prazer de voltar para casa, mas nunca porque coagida por uma
gares centrais representados por Auerbach é o diagrama de força contrária (como acontece, por exemplo, a Jude, o obscuro,
um conflito entre forças locais e aquelas protonacionais; os em Oxford, onde a arrogância do mundo universitário o empur­
anéis de Mitford, a força gravitacional da vila que age so­ ra para Wessex).” Tudo aquilo que se encarna com uma certa
bre os movimentos da narradora e os mantém dentro de uma liberdade tende à forma redonda”, se lê em um outro aforismo
órbita regular em torno de si; a Paris dividida de Balzac, o goethiano, e a circularidade da figura 14 era precisamente o si­
campo de batalha entre os novos ricos e os jovens intelectuais nal de uma forma literária - uma mentalité, uma ideologia - para
ambiciosos. Cada configuração é um sinal, um indício —uma a qual a vida de vila era ainda livre de toda pressão externa.

34 D. Thompson. On growth and form. New York: Dover, 1992, p. 16.


98 Franco Moretti Mapas 99

Isto em 1824. Dois volumes mais tarde, em 1828 (fig. 23), o


campo gravitacional estava já enfraquecido: os passeios são
menos freqüentes, e suas formas são como que alargadas,
afrouxadas. As histórias ambientadas na própria vila dimi­
nuem nitidamente, enquanto crescem aquelas colocadas fora
de Berkshire, longe, em cidades sem nome (e freqüentemente
no passado). Existe alguma coisa que não funciona, na força
de dentro de Our village; mas visto que no horizonte não há
ainda nenhuma força de sinal oposto, a configuração inicial,
se bem que um pouco oscilante, continua em pé. Mas com o
quinto volume, de 1832 (fig. 24), o pattern cai em pedaços: a
força centrípeta da vila é agora zero, e a maior parte do livro
desenrola-se em outro lugar, a 30 milhas de distância, 60, ou
mais, entre insípidos jogos de sociedade nas casas de campo
da elite (e cada vez mais freqüentemente no passado). O velho
diagrama de forças vai pelos ares, e duas histórias indicam
claramente o porquê: é o rick-burning, a queimada das colhei­
tas que foi a marca da luta de classe no campo inglês. “Oh, o
horror daqueles fogos que surgiam do nada, noite após noi­
te, improvisadamente, mas não que não fossem esperados...”,
lê-se na prim eira parte do volume O incendiário-, “vivíamos
em meio às zonas tum ultuadas”, acrescenta O jovem Ben, “e
ninguém que estivesse ao alcance do fogo dos camponeses
em armas [)...)] podia deixar de ter sobre os ombros o vago
pressentim ento de um perigo que podia atacar a qualquer
momento...”. Os camponeses em armas das revoltas de 1830:
eis a “força de fora” que agiu sobre o cronotopo idílico, mo-
dificando-o até fazê-lo irreconhecível (fig. 25). A figura 26, F ig u ra 23. M a ry M itford. O u r v illa g e , volum e III 1828).
que põe os três volumes um ao lado do outro, parece quase
fotografar a desintegração centrípeta deles.
100 Franco Moretti Mapas 101

Londres (30 milhas)


Caroline Cleveland
O legado de resíduos

O condado vizinho
Os incendiários

Cranley (30 milhas):


Os primos

Haddonleigh Hall (60 milhas)


F ig u ra 25. G eografia do ludism o (1811-12) e dos m otins de
Entretenimentos natalinos, i “C aptain S w ing” (1830).
Um aventura à luz da lua
Entretenimentos natalinos, ii
(60 milhas)
Entretenimentos natalinos, iii
1 milha Fonte: J. Langton e R. J. Morris (org.). Atlas ofindustrializing Britain. London-New York: Methuen, 1986.
Entretenimentos natalinos, iv
Memórias marítimas
Entretenimentos natalinos, v
(100 milhas)
Entretenimentos natalinos, vi

F ig u ra 24. M ary M itford. Our village, volum e V (1832).


Mapas 103

IX.

Concluo voltando rapidamente ao início. O mapa de Berkshire

2 milhas
• !• II feito por Moule em 1837, e reproduzido na figura 13, mostrava
o tipo de geografia social que se harm oniza com a (moderna)
Vila
forma do idílio: bosques, rios, grandes casas de eainpo, poucas
cidades (e 15 anos antes de 1837, quando M itford começa a
F ig u ra 26. M a ry M itford: q u ad ro sin tético dos volum es I, III e V escrever, a ferrovia, naturalm ente, não existe). A figura 27
de Our village. reproduz um outro mapa de Moule, o Cheshire dessa vez,
e Knutsford, perto do centro da imagem, é a “Cranford” em
N o â m b ito d a m o r f b b g ia , a a t i v i d a d e e s s e n c ia l c o n s is te f r e q u e n te m e n te e m \o n f r o n t a r e n tr e s t que, em 1853, Elisabeth Gaskell ambientou a sua reescritura
f o r m a s que, d e a lg u m k m a n e ir a , a s s e m e lh a m -s e , d o q u e e m d e f in i - la s c o m o tc L to s c a so s is o la d o s;
de Our village. Neste caso, o mapa de Moule precede o texto
e p o d e ta m b é m a c o n te c e r q u e a d e fo r m a ç ã o d e u m a f i g u r a c o m p le x a s eja u m f e n ô m e n o d e f á c i l
c o m p re e n s ã o , m e s m o q u e a f i g u r a e m s i e p e r s i p e r m a n e ç a d i f í c i l d e s e r d e f in i d a [ . . J A c o n d iç ã o
em cerca de 15 anos, porém já lança uma sombra sobre o
e s s e n c ia l é q u e to d a a e s tr u tu r a m o d if iq u e - s e d e m o d o m a is o u m e n o s u n ifo rm e. projeto idílico de Gaskell: a urbanização aqui c muito mais
D A kcy T hom pson . Ongrowth andform. avançada. M anchester fica a somente 15 milhas de distância,
e por uma sinistra coincidência a típica country walk de
Mitford chegaria mais ou menos à Grand Junction Railway,
Mapas 105
104 franco Moroltl

onde um dos melhores personagens do livro, todo inspirado


no último fascículo de Pickwick —a “novidade regular” que
acabou de chegar de Londres term ina m orto por um trem.
A geografia social não está mais de acordo com o cronotopo
idílico, e a Gaskell só resta hibernar a sua vila: em Cranford
vive-se como se em estado de sítio, ou em letargia. Ninguém
quer mais nada, ninguém ousa sair, todas as coisas são
economizadas (tanto as velas como os tapetes, os vestidos
como os contos) para durar o máximo possível; e, mesmo
assim, só o deus ex machina de um improvável nababo indiano
pode prolongar a sua existência, destroçada pela bancarrota
de um banco de Manchester.

Para todo gênero literário, chega o momento em que a sua


forma não está mais em condições de representar os aspectos
mais significativos da realidade contemporânea, eu escrevia
no capítulo precedente, e, quando chega este momento, o
gênero renuncia à própria forma sob o choque da realida­
de, term inando por desintegrar-se, ou renega a realidade em
nome da forma, tornando-se assim, nas palavras de Sklovskij,
um medíocre epígono. M itford em 1832, e Gaskell 20 anos
depois, exemplificam as duas possibilidades extremas: Our
village explode, e Cranford termina no museu de cera.

F ig u ra 27. C ranford.

Fonte: T. Moule. T h e e n g lis h c o u n t ie s d e lin a te d . London: Bracken Books, 1994.


106 Franco Moretti Mapas 107
V

podemos discernir a grandeza e a direção daquelas forças que


intervieram e transform aram um a form a em o u tra 95.

Na comparação das formas afins de Our village em 1824, 1828


e 1832, e das décadas inicial e final de Annals o f theparish, e
das histórias de vila inglesas e alemãs, podemos discernir a
grandeza e as (diversas) direções em que a luta de classe no
campo, a ascensão industrial e o processo de centralização
estatal transform aram (e desarticularam) a forma do idílio
oitocentista. No grande laboratório da história, do qual os
mapas nos fornecem ao seu modo um diário de bordo, a força
“externa” destes grandes processos sócio-políticos é a variá­
X. vel independente que age sobre a estrutura narrativa e revela
a relação direta - de qualquer modo tangível - entre conflito
social e forma estética. D ’Arcy Thom pson tem razão: a forma
é verdadeiramente um diagrama de forças. Talvez não seja,
realmente, nada mais do queforça.
Mapas, intitula-se este capítulo. Mas existem mapas e mapas.
Os de Moule (figuras 13 e 27), Barrell (15-16), Langton e
M orris (25) são todos mapas de espaços realmente existentes
e reproduzem traços salientes do contexto material inglês;
eu fiz, ao contrário, m apas/diagram as de mundos inventados,
onde o real e o imaginário coexistem em proporções m utá­
veis (e frequentemente fugidias). São coisas diferentes. Mas
se confrontarmos entre si os dois tipos de imagem e as so­
brepusermos uma sobre a outra, conseguiremos de qualquer
modo entrever aquilo que D ’Arcy Thom pson tinha em mente
no grande capítulo de Ongrowlh. andform sobre a “Teoria das
transformações”:

Podemos alçar-nos de uma idéia da forma à com preensão das for­


ças que a constituíram £...j e na com paração de formas afins [...]
35 D. Thompson. O ngrow thand form, o p.cit., p. 1027.
*
Árvores 111
'■vm

figura 28 reproduz a única árvore - “uma coisa um

A tanto bizarra, mas indispensável", escreve Darwin


ao seu editor, com indisfarçável preocupação, a pou­
cos meses do lançamento do livro,B - que encontram os em
A origem das espécies. Aparece no quarto capítulo, “A seleção
natural” (que nas edições sucessivas tornar-se-á “A seleção
natural; ou a sobrevivência do mais apto”), na seção dedicada
à “divergência de caracteres”. M as quando a figura é introdu­
zida pela prim eira vez, Darwin não a chama de “árvore”3 637:

Vejamos agora como tenderá a agir o princípio da divergência de carac­


teres, combinado com os princípios da seleção natural e da extinção.

36 "É uma coisa bastante bizarra, mas é indispensável", continua a carta a John
Murray de 31 de maio de 1859, "para mostrar a natureza das - demasiada­
mente complexas - afinidades entre os animais do passado e aqueles do pre­
sente". In F. Burkhardt e S. Smith (org.). The correspondence o f Charles Darwin,
vol. VII (1858-59). Cambridge: Cambridge U.P., 1991, p. 300.

37 A palavra "árvore" só aparece na recapitulação de fim de capítulo, entre mil caute­


las, e quase contra a vontade ("As afinidades entre todos os seres da mesma classe
foram, às vezes, representadas por uma grande árvore. Creio que esta semelhança
expresse em boa medida a verdade"), provavelmente por causa das conotações
religiosas assumidas no curso dos séculos pela imagem da Árvore da Vida. Charles
Darwin, L'origine delle specie.Torino: Bolati Boringhieri, 2003, p. 195.
112 Franco Moretti Árvores 113

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A s s u m a m o s q u e A s e ja u m a e sp écie c o m u m , la r g a m e n te d ifu s a , e p r o p e n s a à v a r ia ç ã o , a q u a l p e r ­
te n c e a u m g ê n e r o d e d im e n s õ e s b a s ta n te a m p lo . O p e q u e n o le q u e d e lin h a s tr a c e ja d a s q u e d iv e r g e m
a p a r t i r d e A r e p r e s e n ta r ia m a s v a r ia ç õ e s e n tr e o s seu s d e sc e n d e n te s f . . . j S ó a s v a r ia ç õ e s q u e s ã o d e
q u a lq u e r m o d o v a n ta jo s a s s e r ã o p r e s e r v a d a s , ou seja , “s e le c io n a d a s ”. E a q u i a v a n ta g e m o c a s io ­

F ig u ra 28. A divergência de caracteres. n a d a d a d iv e r g ê n c ia d e c a ra c te re s r e v e la Io d a a p r ó p r i a im p o r tâ n c ia ; p o r q u e is to f a r á , d e n o r m a ,


q u e a sele ç ã o n a tu r a l p r e s e r v e , e a c u m u le , a s v a r ia ç õ e s m a is d ife r e n te s , o u d iv e r g e n te s ( o b s e r v a r a s
Fonte: Charles Darwin, tlo r ig in e d e lle s p e c ie [A origem das espécies], 1859. Torino: Bollati Boringhieri, 2003. lin h a s tr a c e ja d a s n o s e x tr e m o s d o leq u e).
C harles D a r w in . A o r ig e m d a s espécies.
114 Franco Moretti Árvores 115

O diagram a incluído nos ajudará a com preender este ponto algo morfoespaço - o espaço-das-formas: um conceito im portante
enigm ático...1'*. nas páginas que seguem - em contínua expansão. De res­
to, é exatamente este incessante afastar-se das formas que
Diagrama, de novo. Depois dos diagramas quantitativos do confere às árvores morfológicas a sua força intuitiva. 'Uma
primeiro capítulo, e dos espaciais do segundo, as árvores evo­ árvore pode ser vista como a sim plificação visu a l de um a m a tr iz
lutivas constituem d iagram as morfológicos, em que se estabe­ de d istâ n cia s”, escrevem Cavalli-Sforza, Menozzi e Piazza no
lece uma correlação sistemática entre a forma e a história. Ao prelúdio metodológico à S to ria e geo g ra fia dei g e n i u m a n i (His­
contrário dos estudos literários —em que as teorias da forma tória e geografia dos genes humanos); e a figura 29, em sua
não têm muito interesse pela história, e a pesquisa histórica apresentação espelhada de bifurcações genéticas, à esquerda,
não tem, de sua parte, interesse algum pela forma - , na teoria e lingüísticas, à direita (em um “paralelismo 'jju e j é notável,
da evolução a análise morfológica e a reconstrução histórica mas não perfeito”, como é dito com admirável apatia)41, de­
são, de fato, as duas dim ensões de um a m esm a árvore-, onde o m onstra à perfeição aquilo que entendem.
eixo vertical acentua, de baixo para cima, o regular transcor­
rer do tempo (a cada intervalo, escreve Darwin, “um milhar Mas se as línguas tornam-se aquilo que são afastando-se umas
de gerações”), enquanto o eixo horizontal mede, por sua vez, das outras, por que não também com as formas literárias?
a consistência da diversificação morfológica, que conduzirá,
com o tempo, a “variações nitidamente distintas”, ou a espé­
cies completamente novas.

O eixo horizontal mede a diversificação morfológica... Mas


Darwin usa palavras mais fortes: fala “deste ponto algo enig­
mático”, “this rather p e rp le x in g subject” - algures, “p e rp le x in g
o princípio gerai das bifurcações evolutivas, mas, sobretudo, para explicar o
& u n in telh g ib le"iS - segundo o qual as espécies não se limi­ princípio de divergência. A sua solução [...] consiste em supor que a seleção
tam a “mudar”, mas mudam sempre e somente distanciando-se natural tenderá a favorecer as formas mais extremas, diferentes e divergentes
[...] Observe-se como só duas das espécies de partida (A-L) deixam descen­
umas das outras (a árvore, recordemo-lo, ilustra as páginas
dentes - a espécie A, colocada na extremidade à esquerda, e a I, que está
sobre a “divergência de caráter”)383940, dando assim vida a um próxima à extremidade direita. Observe-se como - apesar de que cada episó­
dio de diversificação produz um cacho de variações distribuídas em leque em
torno à forma do meio - só as populações extremas do leque sobrevivem e
38 Ibid., pp. 179-80.
se diversificam posteriormente. Observe-se, enfim, como o morfoespaço total
39 "Você achará o quarto capítulo enigmático e incompreensível", escreve Darwin (representado pelo eixo horizontal) expande-se logo após a divergência, ape­
a Lyell em 2 de setembro de 1859, "sem o auxílio do bizarro diagrama do qual sar de que só duas das espécies originárias deixam descendentes". S. J. Gould.
incluo velhos e atualmente inúteis rascunhos de desenhos". Burkhardt and The structure ofevolutionary theory. Cambridge: Harvard U. P., 2002, p. 228-29,
Smith (org.). The correspondence o f Charles Darwin cit., p. 329. 235-36.

40 "O sentido do famoso diagrama de Darwin foi quase sempre subentendido", 41 L. L. Cavalli-Sforza, P. Menozzi e A. Piazza. Storia e geografia dei geni umani.
observa Stephen Jay Gould: "Darwin não construiu essa figura só para ilustrar Milano: Adelphi, 1997, p. 191-92 (grifo meu).
116 Franco Moretti
Arvores 117

ÁRVORE GENÉTICA POPULAÇÃO FAMÍLIAS LINGUÍSTICAS


Pigmeu Mbuti ---- Língua originária desconhecida
Africano ocidentaí -
Bantu ----------- - Nigéría-kordofaniano
Milotic ------------ Nilo-sahariano
Sam (Bushmen) Khaisan
E t í o p e -----------
Berber, norte da África Afro-asiático
Sudoeste da Àsia 1
Iraniano —----------- -
A

SUPERFILO NOSTRATICO
Europeu -------- Indo-europeu
Sandiniano --------
I n d i a n o ------------
c Sudeste da índia - Oravidian .
Lapp --------------
Som oyed------------ Uralic-yugakin
Mongoliano----------
Tibetano ------------ - • Sino-tibetano
Coreano -------------
A Japonês -------- - Altaic
Ainu — ------------ I.
Turco do norte

EE Esquimó •---------
Chuckchi ------ —
Esquimó-aleut
Chuckch -Kamachatkan
Sui Ameríndio
Centro Ameríndio — Ameríndio
Norte Ameríndio
Noroeste Ameríndio N a -d e n e
Em A origem das espécies, divergência de caracteres, seleção na­
Chinês do sui - ------— Sino-tibetano tural e extinção são como as três Parcas da história natural:
Mon khmer — Austroasiático
Tailandês -------- Daic — ---- na medida em que as variações divergem umas das outras, a
Indonésio —
Austríaco seleção intervém e condena à extinção a grande maioria. E
Malaio —
Fiiipino — Austronesiano
Polinésio —
visto que também em literatura os textos que sobrevivem no
EE Micronésio
Melanésio


tempo são poucos, aliás, pouquíssimos, em um seminário de
Guineano ---- Indo-pacífico alguns anos atrás decidi verificar se os três fatores individua­
Australiano ---- Austraííano
lizados por Darvvin conseguiam explicar também a dizimação
das obras literárias. Pegamos umas 20 histórias escritas nos
Figura 29. Árvores literárias, árvores lingüísticas. primeiros anos do gênero policial inglês (a metade de Conan
Doyle, a outra metade de outros autores), individuamos os in­
P ° r q u e e n tr e a á r v o r e lin g u ís tic a e a á r v o r e g e n é tic a e x is te u m a e str e ita s em e lh a n ç a 'i £ ..J A co r­ dícios como o caráter morfológico potencialmente mais revela­
rela ç ã o n ã o é d e v i d a a um efe ito d o s g e n e s sobre a s lín g u a s; p e lo c o n tr á r io , é p r o v á v e l u m a in flu ê n ­
dor e acompanhamos as metamorfoses por meio das várias bi­
c ia in v e rsa , is to é, q u e b a r r e ir a s lin g u ís tic a s reforcem o is o la m e n to g e n é tic o e n tr e g r u p o s q u e f a l a m
h n g u a s d ife r e n te s A e x p lic a ç ã o d o p a r a le lis m o e n tr e a á r v o r e g e n é tic a e a á r v o r e lin g u ís tic a
furcações, das quais surgiu a (modesta) árvore da figura 30'-.
d e v e s e r p r o c u r a d a n o efe ito c o m u m d e f a t o r e s qu e f . J c a u s a m a sep a r a ç ã o d e d o is g r u p o s , o s q u a is
p e rm a n e c e m p a r a a l m e n t e ou c o m p le ta m e n te is o la d o s u m d o o u tro , a p ó s a f i x a ç ã o e a m ig r a ç ã o d e 42 Nos parágrafos que seguem faço um resumo e atualizo o ensaio "The
u m a o u a m b a s a s p a r t e s em d ir e ç ã o a lu g a r e s d ife ren te s. O is o la m e n to recíp ro co d e te r m in a ta n to a Slaughterhouse of Líterature", in Modem Language Quarterly, março de 2000.
d ife r e n c ia ç ã o g e n é tic a q u a n to a lin g u ís tic a .

U "W' UíVA ( ’ avai.i .i -S|'-o kz .\, P aoix , M fxo zzr K A cbkrto P ia z z a . S lo r ia e g e ó g r a f a d e , g e n , u m a m .


Árvores 119
118 Franco Moretti

U m e s t u d o e m v e r m e lh o (Doyle)
(Doyle)
0 s o lte ir ã o n o b r e e o u t r a s h is t ó r ia s
Aqui, desde a primeira bifurcação, na margem inferior da ár­ T h e B o s c o m b e V a lle y m y s t e r y (Doyle)
A c a s e o f id e n t it y (Doyle)
T h e a d v e n tu r e o f t h e s p e c k le d b a n d (Doyle)
T h e Tive o r a n g e p ip s (Doyle)
vore (se os indícios estão presentes ou não),lSuas coisas ficam T h e a d v e n tu r e o f th e b lu e c a r b u n c le (Doyle)

imediatamente claras: o fato “morfológico” que numerosos


rivais de Conan Doyle não se servem dos indícios —e o fato | "' + (talvez)

“histórico” que todos foram esquecidos^lÉ a lei do mercado Decodificáveis

literário: uma competição sem quartel - mas uma competição


d ecid id a p e la fo rm a . O público descobre que gosta de um certo U m e s c â n d a lo n a b o ê m ia e o u t r a s h is t ó r ia s (Doyle) T h e B o s c o m b e V a lle y m is t e r y (Doyle)
T h e m a n w ith th e t w is t e d lip (Doyle)
procedimento, como aqui os indícios, e se uma história não o The five orange pips (Doyle)
A n o v a c a ta c u m b a e o u t r a s h is t ó r ia s(Doyle) U m e s t u d o e m v e r m e lh o (Doyle)
T h e a d v e n t u re of the C o o p e r B r e e c h e s (Doyle)
possui, não é lida (e então se “extingue”). O que explica, tal­ H o w h e c u t s h is s t ic k (M. McDonnell Bodkin)
A c a s e o f id e n t it y (Doyle)
T h e a d v e n tu r e o f th e s p e c k le d b a n d (Doyle)
T h e r e d h ill s is t e r h o o d (Catherine L. Pirkis)
vez, a segunda bizarra bifurcação, em que os indícios estão, 0 s o lte ir ã o n o b r e e o u t r a s histórias (Doyle)
A n o n y m o u s L e t t e r s (Balduin Groller)
sim, presentes, mas não desenvolvem nenhuma verdadeira
I +
função no entrecho; como, por exemplo, em R ace w ith the sun, I
onde o protagonista descobre que o sonífero está na terceira Visíveis

taça de café e, depois, quando os agentes inimigos lhe ofere­


cem a terceira taça, ele a peg a e bebe. O que é, de fato, “p erp le- As a v e n t u r a s d e S h e r lo c k H o lm e s (Doyle)
H o w h e c u t s h is s t ic k (M. McDonnell Bodkin)
x in g & unintelligible ”, e a única explicação possível parece ser T h e D u c h e s s o f W ils h ire s d ia m o n d s (Guy Boothby)
T h e r e d h ill s is t e r h o o d (Catherine L. Pirkis)
Anonymous L e tte r s (Balduin Groller)
que Meade e Halifax tinham, de algum modo, percebido no C liffo rd H a lifa x , R a c e w ith th e s u n (L.T. Meade)

ar a popularidade dos indícios e tinham decidido usá-los tam­ j +


bém; mas dado que não tinham entendido bem como usá-los,
Necessários
acabaram fazendo uma enorme confusão.
As a v e n t u r a s (Doyle)
d e S h e r lo c k H o lm e s
Terceira bifurcação: os indícios existem, têm uma função, mas H o w h e c u t s h is s t ic k(M. McDonnell Bodkin)
(Catherine L. Pirkis)
T h e r e d h ill s is t e r h o o d
T h e a s s y r ia n re ju V e n a to r (Clifford Ashdown)
não são visíveis. O detetive fala deles na explicação final, mas A s e n s ib le c o u r s e o f a c tio n (Palie Rosenkranz)
A n o n y m o u s L e tte r s (Balduin Groller)
T h e D u c h e s s o f W ils h ire 's d ia m o n d s (Guy Boothby)
a história nunca os mostrou diretamente. Aqui desaparecem T h e r o b b e r y a t F o x b o r o u g h (Alice Williamson)
R a c e w ith t h e sun (L.T. Meade, Clifford Halifax)
In M a s q u e r a d e (Huan Mee)
os últimos rivais de Conan Doyle (exatamente aquilo que,
mais cedo ou mais tarde, todos nós esperávamos acontecer)
- porém desaparece também metade das A ven tu ra s de Sherlock Presença de indícios

F ig u ra 30. O s indícios e a gênese da n a rra tiv a policial.


Tenha-se presente, porém, que um processo de seleção determinado por u m só
c a ra cte re , como aquele que ilustro aqui, é quase certamente atípico: funciona
(creio) para a narrativa policial, porque os indícios nesse gênero desenvolvem D o p o n to d e v i s t a d a té c n ic a , o s p r o c e d im e n to s d a s n a r r a t iv a s d e ( o n a n D o y le s a o n a tu r a lm e n e
um papel estrutural de extraordinário relevo - mas esta "condensação” da m a is s im p le s d o q u e a q u e le s d o r o m a n c e in g lê s d e m is té r io , m a s em c o m p e n sa ç ã o s a o m a is c o n c en ­
estrutura em um só elemento é, de fato, atípica. Em geral, as árvores literárias tra d o s í . 1 O s in d íc io s m a is im p o r ta n te s sã o d e s e g u n d a o r d em , c o lo c a d o s d e t a l j o r m a q u e o le ito r
deverão ser baseadas sobre uma multiplicidade de caracteres morfológicos. n ã o o s n o te ] . . . sã o in d ic a ç õ e s ,] s o b re a s q u a is o n a r r a d o r n ã o se d e té m [ . . . c o lo c a d a s ] e m u m a

p r o p o s iç ã o a c e s s ó r ia [ . . . ] d a d a d e h b e r a d a m e n te d e m o d o v e lo z .

V ik t o r S k lo v sk u . T e o r ia d e lia .p ro sa .
120 Franco Moretti Árvores 121

IIolm.es, coisa que, ao contrário, nós não esperávamos absolu­ de qualquer dúvida, a superioridade técnica de Doyle - acres­
tamente. E quando, depois, se chega ^últim a bifurcação —os centaram dois novos ramos à árvore do gênero policial (fig.
indícios devem perm itir ao leitor encontrar por si mesmo a 31), tornando-a mais complicada e surpreendente. Quanto
solução —, as coisas tornam -se ainda mais surpreendentes: mais se olhava para o arquivo dos livros desaparecidos, mais
mesmo sendo generosos, esta forma de apresentar os indícios “darwiniano” tornava-se o morfoespaço literário.
encontra-se, de fato, em apenas quatro de 12 A ven tu ra s —e
55R5SSM86S

sendo severos, em nenhuma. Neste diagrama, onde a espessura da linha indica o número
de narrativas publicadas de ano em ano, os dois novos ra­
Por que esta incerteza final por parte de Conan DoyleP Ten­ mos são respectivamente o segundo (“indícios evocados”) e o
tei explicar isto em Slaughterhouse o f literature e não repetirei terceiro (“sintomas”), a partir da esquerda. O primeiro deles
o raciocínio aqui. Mas me deterei, ao contrário, sobre uma compreende as histórias em que os indícios, mesmo estan­
objeção levantada durante o seminário em relação à figura do ausentes, são, exatamente, evocados (ou, talvez, invoca­
30. Esta árvore, observou um dos participantes, coloca a hi­ dos: “Se tivéssemos ao menos um indício!”; “Por acaso, você
pótese de que a sobrevivência literária explica-se em primei­ encontrou indíciosP”) por um dos personagens, naquilo que
ra instância com a morfologia: se ainda lemos Doyle hoje, e é, provavelmente, uma ulterior, mal-arranjada, tentativa de
os outros não, é porque Doyle é melhor do que eles no uso “contrabandear” o procedimento. No outro ramo, os indí­
dos indícios (embora seja, também ele, tudo menos perfeito). cios estão, ao contrário, presentes, mas sempre e somente na
Mas por que dar tanta importância à forma, e não deter-se, forma de sintomas corpóreos, como a render homenagem à
ao invés, sobre o tato de que Doyle escrevia na Strand Ma­ antiga arte da semiótica médica (que, naturalmente, foi, des­
gazine, que era uma revista de um certo prestígio, e os seus de o início, o modelo de Doyle: Holmes imita Bell, o famoso
rivais não? Não é verdade que a posição social conta, às vezes, clínico de Edimburgo. Ele tem sempre um doutor ao seu lado,
muito mais do que a técnicaP estuda os próprios clientes como se fossem também pacien­
tes, e por aí vai).
Sim, às vezes é verdade; mas não neste caso, como desco­
bri algumas semanas depois na biblioteca: no curso dos anos
1890, de fato, a Strand tinha publicado 108 narrativas poli­
ciais (uma por mês, praticamente), além daquelas de Sherlo-
ck Holmes. Com tantos autores assim, que escreviam todos
na mesma revista, a idéia de que a sobrevivência de Doyle
fosse devida a uma posição de privilégio podia ser tranqui­
lamente descartada; mas a coisa mais interessante era que
aquelas cento e tantas histórias —além de confirmar, para lá
122 Franco Moretti Árvores 123

Ausente Evocado Sintomas Presentes, mas Necessários, mas Visível, mas Decifrável
não necessários não visíveis indecifrável
1900

1899

1898

1897

1896

II.
1895

1894 I I
Necessários, mas Visível, mas Decifrável
não visíveis indecifrável
Vale também, em literatura, o princípio da divergência?
1893 Pesquisas como esta sugerem uma (cautelosa) resposta afir­
Sintomas Presentes, mas
não necessários
mativa. Mas o que produz a divergência do morfoespaço li­
1892 terário? Os textos? Francamente, não diria isto. Os textos
distribuem-se nos vários ramos da árvore, é verdade, mas os
“nós” dos próprios ramos não são definidos pelos textos, mas
1891
Ausente Evocado pelos indícios (as suas ausência, presença, visibilidade etc.):
por alguma coisa que é m u ito m enor do que qualquer texto
—uma frase, uma metáfora (“A banda! A banda pintada!”), às
vezes (“Só consegui, na rapidez, entender um pedaço da coi­
F ig u ra 31. O s indícios e a gênese da n a rra tiv a policial: S tranc sa”) nem mesmo uma palavra inteira. E, por outro lado, esta
M agazine, 1890-99. rede de microdiferenças acaba por dar vida a um conjunto
que é m uito m a io r do que qualquer texto que se queira, e que,
no nosso caso, é, naturalmente, a árvore —vale dizer: o gêne­
ro —da narrativa policial.
V.

124 Franco Moretti Árvores 125

O muito pequeno e o muito grande: são estas as forças que dão convenção afirmou-se ainda como “central”, o espaço-
a história literária a sua forma característica. Os procedimen tos das-formas está, normalmente, aberto aos mais diversos
e os gêneros; não os textos.JXs textos, bem entendido, sao os experimentos. E, depois, existe a pressão da concorrência: os
objetos reais da literatura (na Strand você não encontra os ipdí- autores da Strand estão todos brigando pelo mesmo nicho de
cios” ou o “romance policial”, mas encontra Sherlock Holmec,:, ou mercado e o girar pelo morfoespaço deles tem, provavelmente,
Hilda. JVade, ou T he adventures o f a m an o f Science); os textos são muito a ver com o desejo de vencer a disputa de uma vez por
objetos reais, mas não são os objetos de conhecimento certos para todas; de resto, quando determinados escritores apresentam
a história e a teoria literária. Tomemos o conceito de gên ero. um “aeronauta” que (por engano) engancha um sujeito com
De regra, a crítica literária o define segundo aquilo que Er nst a âncora do balão, ou um pintor assassino e sonâmbulo que
Mayr chamou de “pensamento tipológico”43: escolhe-se um enquanto dorme pinta a face do homem que acabou de matar,
“indivíduo representativo”, um “tipo”, e baseado nele se teo riza ou uma poltrona construída de propósito para catapultar
o gênero em toda a sua complexidade. Sherlock H olm es e o poli- quem nela se sentar do outro lado da praça - bem, é claro
ciai; W 'lh e lm M eister e o romance de formação. Alguém an alisa que eles todos estão procurando a Idéia Genial que os leve
o romance de Goethe e a coisa vale como uma análise do gt ne- ao sucesso. Mas é também claro, ai de mim, que a estão pro­
ro como tal, porque para o pensamento tipológico não ex iste curando de modo desesperadamente casual, procedendo por
descontinuidade entre objeto real e objeto de conheciment y o tentativas, às cegas, exatamente como quer a random ness da
objeto real ê j ã em si um objeto d'e conhecimento. Mas quaj ido teoria evolucionista: no sentido de que aeronautas e catapultas
o objeto de conhecimento toma a forma de um a árvore, ou se-ja, não demonstram nenhuma capacidade de previsão —nenhuma
de um abstrato “espectro de variações” (ainda Mayr), en ão, idéia, digamos a verdade - daquilo que poderia favorecer a
claramente, as coisas mudam: a sua estrutura não tem, de fito, sobrevivência literária. E a divergência torna-se assim, como
mais nada em comum com qualquer dos objetos reais de que em Darwin, inseparável da extinção.
ele é composto —e não pode, então, “emergir” de nenhum deles
tomados individualmente. E, assim, também Escândalo na Bo­ Existem muitos modos de estar vivo, escreve Richard
êmia torna-se só uma entre tantás folhas da árvore do gênero Dawkins em O relojoeiro cego, mas muitos mais modos de
policial: uma delícia, naturalmente, mas não mais capaz de re­ estar morto, e as figuras 30 e 31, com todos aqueles textos
presentar o gênero no seu conjunto. que foram esquecidos, lhe dão total razão. Trabalhar sobre
esses livros dá, freqüentemente, a sensação de que se está em
Um espectro de variações. Bastante amplo, nas figuras 3 p e um laboratório de patologia literária (e o prazer da pesquisa,
31, porque, quando um gênero está iniciando, e nenhuma conseqüentemente, também muda: mais do que belas páginas,
busca-se absurdos significativos). Mas,[ao invés de repisar
por inteiro o veredicto do mercado e, dessa forma, reforçar
43 Ver E. Mayr. Populations, species, andevalution. Cambridge: Harvard U. P„ 1 370;
Evolution and the diversity oflife. Cambridge: Harvard U. P., 1976; e Towdfi’d a o absoluto esquecimento decretado pelos leitores do final
new philosophyofbiology. Cambridge: Harvard U. P., 1988.
126 Franco Moretti Árvores 127
I

do século 19, a razão de ser de todas essas árvores está em


querer reintegrar as formas “extintas” ao interior da história
literária, permitindo-nos, finalmente, “vê-las” (e mudando,
assim, de fato, a p r o p r ia fo r m a da história literária). É, de novo,
a problemática do primeiro capítulo - o um por cento do
cânone, e os 99% de literatura desaparecida —mas observada
de um angulo diferente: enquanto os g réS ico s f a z e m desaparecer
toda diferença qualitativa entre os seus dados, as árvores
procuram, ao invés, articular essa diferençauNo gráfico do
romance inglês entre 1710 e 1850 (fig. 2), ou melhor, O rgulho
epreconceito e T h e life o f P ill Garlick: rather a w h im sica l so rt o f
fe llo w eram dois pontos absolutamente idênticos na coluna
de 1815; e, ao contrário, as árvores das figuras 30-31 miram, III.
de fato, d istin g u ir A liga dos cabeças verm elhas de A ssyria n
rejuvenator e de H o w he cut his stick, instituindo uma relação
inteligível - e dentro de um mesmo modelo teórico - entre
ramos canônicos e não-canônicos. As árvores, ou da divet gência em literatura. Mas a idéia não é
nem um pouco pacífica Entre as muitas diferenças de prin-
cípio entre a evolução natural e a mudança cultural”, escreve
Stephen Jay Gould, aq[uela que se exprime na sua “topologia”
- ou seja, na forma ab itrata dos respectivos processos evolu-
tivos —é particularm e:hte marcada e reveladora:

A evolução darw iniana £...] é a história de uma contínua e irre ­


versível proliferaçfo £../] um processo de separação e distinção
sem fim. A mudan* a cultural recebe, ao invés, um fortíssim o im-
pulso do amalgam ar-se e da anastom ose de tradições diversas,
Um viajante que c escobre a roda em um país estrangeiro pode
im portar a invençã o para o seu próprio país e m udar a sua cultura
radicalm ente e par a sem pre''4.

44 S. J. Gould. F u ll h o u s e : th e s p r e a d o fe x c e lle n c e fro m P la to to D a rw in . New York:


Harmony, 1996, p. 220-21
128 Franco Moretti Árvores 129

Como exemplo concreto, o viajante e a roda não são lá gran­


de coisa (é um caso de simples difusão espacial, não um amál­
gama de tradições diversas); mas a idéia de fundo é clara e
volta de modo particularm ente insistente nas histórias da
tecnologia. George Basalla:

As diversas espécies biológicas norm alm ente não se m isturam ,


e nos raros casos em que isto acontece os seus descendentes são
estéreis. M as os produtos da técnica são, ao contrário, re g u la r­
m ente levados a uma convergência que objetiva produzir novas e
fecundas entidades [...J O ram o evolutivo do m otor a com bustão
interna, p or exemplo, foi unido ao da bicicleta e ao da carruagem
para p roduzir o ram o do autom óvel, o qual, por sua vez, se uniu
com o da carroça para dar vida ao ram o dos caminhões A

As “espécies tecnológicas” que se m isturam para dar vida a


novos produtos. Em apoio a sua tese, Basalla reproduz a “ár­
vore da cultura” desenhada, ao seu tempo, por Alfred Kroe- A árvore da vida e a árvore do conhecimento
ber (fig. 32), que, com os ramos de A lice no p a ís das m aravilhas, sobre o bem e o mal - isto é, da cultura humana.
torna evidente a idéia da convergência e absolutamente ines­
F ig u ra 32. A árvore da vida e a árv o re da cu ltura.
quecível. O que é justo, porque se trata, sem dúvida, de um
fator im portante da evolução cultural. Mas assim tão impor­
O c u r so d a e v o lu ç ã o o r g â n ic a p o d e se r r e p r e s e n ta d o , p a r a d i z e r co m D a r w i n , c o m o u m a “á r v o r e
tante que elimina completamente do quadro a divergência? d a v i d a ”, co m m u ito s tro n c o s, g a lh o s e p e q u e n o s ra m o s. M a s o d e s e n v o lv im e n to h is tó r ic o d a c u ltu ra
h u m a n a n ã o p o d e s e r r e p r e s e n ta d o d o m e sm o m o d o n e m m e sm o m e ta fo r ic a m e n te . H á u m p r o c e s s o
d e c o n tín u a r a m ific a ç ã o , é v e r d a d e , m a s o s r a m o s v o lta m in c e s s a n te m e n te a r e u n ir -s e , no to d o ou
“A cultura diverge, mas também faz obra de sincretismo e de
em p a r te . A c u ltu ra d iv e r g e , m a s ta m b é m sa b e f a z e r u m a o b r a d e s in c r e tis m o e d e a n a s to m o s e . A
anastomose”, escreve Kroeber no comentário à sua própria ár­ v id a , p o r é m , n ã o f a z n a d a a lé m d e d iv e r g ir : a s s u a s o c a s io n a is c o n v e r g ê n c ia s s ã o s e m e lh a n ç a s d e
vore; enquanto Basalla fala, do seu lado, de “uma série contí­ s u p e rfíc ie , n ã o v e r d a d e ir a s u n iõ e s o u r e a s sim ila ç õ e s . U m r a m o d a á r v o r e d a v i d a p o d e m u ito b em

nua, m terconedada e ram ificada por produtos do trabalho hu­ a p r o x im a r - s e d e u m o u tr o ra m o : d e n o r m a , p o r é m , u m n ã o se u n ir á a o o u tro . A á r v o r e d a c u ltu ra
é, a o c o n tr á r io , d e f a to , u m r a m if ic a r - s e d e ss a s a s s im ila ç õ e s e a c u ltu ra ç õ e s. E s t e d ia g r a m a e sq u e -
mano”. lnterconectada e, ao mesmo tempo, ramificada; sincretis­
m á tic o v i s u a l i z a t a l co n tra ste .
mo e, ao mesmo tempo, divergência: mais do que a inconciliável A i .c h k i ) L . k k o f .b k r . A n th r o p o lo g y .

45 G. Basalla. The evolution o f technology. Cambridge: Cambridge U.P., 1988, p.


137-138.
130 Franco Moretti Árvores 131

“diferença de princípio” de que fala Gould, passos como estes ninguém nos deixe desviar da forma abstrata e “topológica”
(que poderiam facilmente ser multiplicados) sugerem uma coe­ da controvérsia: a sua substância, concretíssima, diz respeito
xistência entre convergência e divergência - talvez, quase uma ao próprio modo que imaginamos a história da cultura. Se,
espécie de divisão do trabalho. A convergência só pode reali- de fato, o seu mecanismo de base é a divergência, então, essa
zar-se sobre a base de um preexistente processo de divergência história será plena de tentativas casuais, falsos inícios e becos
e obtém, aliás, resultados tanto mais notáveis quanto mais dis­ sem saída; em uma árvore cujos ramos não se unem nunca de
tantes (ou seja, divergentes: bicicletas e motores de combustão novo. Além disso, uma vez que ela tenha pego uma direção,
interna) estavam os ramos que ela soube reunir. Em contra­ torna-se dificílimo mudar essa direção, e a cultura enrijece-se
partida, uma convergência bem-sucedidf produz, por sua vez, em uma “segunda natureza” - uma metáfora nada consola-
um novo, fortíssimo, impulso à divergência: como quando, para dora. Se, pelo contrário, o mecanismo de base constitui-se
citar um outro exemplo de Basalla, a lançadeira de W hitney a partir da convergência, a mudança será freqüente, rápida,
para trabalhar o algodão foi o ponto de partida “de uma nova deliberada, reversível: a cultura torna-se mais plástica, mais
série evolutiva [).(] composta por um grupo de produtos total­ controlável - mais humana, se quisermos. Mas a história hu­
mente novos”. mana é realmente humana tão raram ente, que esse argum en­
to não é, talvez, assim tão sólido como pode parecer.
A divergência prepara o terreno para a convergência, a qual,
por sua vez, dá início a uma nova fase de divergência: esta
parece ser a seqüência típica. E a força dos dois mecanismos
varia muito de um ponto ao outro do sistema cultural, esten­
dendo-se do extrem o tecnológico, onde a convergência é par­
ticularmente difusa e eficaz, até o seu oposto, a linguagem,
onde a divergência (lembrem-se da árvore genético-lingüís-
tica da figura 2 .9 ) é claramente a força que puxa; enquanto a
posição da literatura - esta estranha tecnologia-da-lingua-
gem - permanece ainda amplamente por ser definida46. E que

46 Em Lapenséedu roman, deThom asPavel (Paris: Gallimard, 2003), que é a mais


ambiciosa tentativa de teoria geral do romance desde o tempo das obras-
primas de entre as duas guerras, a divergência entre os vários gêneros roma­
nescos é a força impulsionante nos 15 primeiros séculos de história do ro­
mance, e a convergência, nos três últimos. A interpretação destes dados não
é, porém, nada óbvia. Por um lado, impressiona a supremacia quantitativa do
princípio de divergência (até na forma notoriamente"sincrética"do romance);
por outro, a tendência histórica parece sugerir que a divergência é um meca­
nismo morfológico mais "primitivo", e a convergência, um mais "maduro".
132 Franco Moretti Arvores 133

em seus materiais. As árvores dão uma nova forma à história, eu


dizia logo acima, e forma é efetivamente a palavra que brota da
garganta diante desta simetria palladiana, onde não há nem mes­
mo uma casa vazia, um adjetivo a mais, uma articulação díspar ou
enviesada... Ou, para ceder a palavra para o próprio Orlando:

Eis a árvore semântica. O leito r nela divisará conjuntos de sime­


trias, invisíveis no curso da construção: no nível quarto, o para­
lelismo das duas neutralizações ao centro, entre duas bifurcações
aos lados; no nível quinto, na série das oposições term inais, a re­
gular alternância de contraditórios - com os contrários no limite
—e de contrários. Em um caso como no outro, não o fiz de pro­
IV pósito, e não sugiro nada que esta eurritm ia de abstrações feitas
palavras e linhas possa significar1'.

“Não o fiz de propósito, e não sugiro nada”... Eis aí, quando


Em um capítulo sobre árvores e a história literária, é impossível o teórico da negação freudiana enfileira não uma, mas três
não falar de Gh oggetti desueti nelle immagini delia letteratura (Ob­ negações em nove palavras, isto quer dizer com certeza que
jetos fora de uso na imaginação literária), de Francesco Orlan­ ele aprontou alguma, e grande. Tom ara seja mesmo verdade
do. Com as suas centenas de exemplos, tirados de três mil anos que “não o fiz de propósito”, como escreve Orlando com a
de história e de uma vintena de literaturas diversas, o trabalho candura que lhe é própria, mas, em suma, uma “eurritm ia de
de Orlando é, sem dúvida, o maior estudo temático desde os abstrações” de tal neoclássica perfeição não aparece do nada:
tempos de Praz e de Curtius: e exatamente no centro da obra alguém, ou alguma coisa, deve tê-la , de algum modo, plane­
—fio de Arianna que permite que não percamos a orientação no jado —e eu creio que se trata do desejo (não só de Orlando,
meio da grande massa de materiais —encontramos a “árvore naturalmente) de encontrar uma lógica na história. Para lá das
semântica”, aqui reproduzida na figura 33. específicas categorias que articulam a árvore semântica, é
esta, de fato, a mensagem que emerge de sua impecável sime­
Não posso resumir aqui o modo como Orlando construiu a sua tria: apesar da profusão e da confusão de superfície, três mil
armação categorial (de resto, ele próprio explica isso muito bem anos de literatura perseguiram um caminho perfeitamente lógico.
no livro). Digamos, porém, pelo menos, que a árvore demonstra E esta árvore oferece a chave.47
como, para Orlando, o aspecto essencial da pesquisa temática con­
siste em construir uma matriz conceituai capaz de colocar ordem 47 F. Orlando. Gli oggetti desueti nelle immagini delia letteratura. Torino: Einaudi,
1993, p. 260.
134 Franco Moretti Árvores 135

imagens de
corporeidade não-funcional,

em cujo efeito imaginário em cujo efeito imaginário


prevalece a percepção prevalece uma incidência
de um decurso de tempo sobre o tempo atual

sentido sentido que acontece em uma que acontece em uma


coletivamente individualmente ordem sobrenatural ordem natural,

i — I
por determinação não por determinação (seja ela rude <ainda ou de novo>rude' elaborada,
(por determinação
pertinente pertinente pertinente ou não), ou elaborada)
(caducidade) (historicidade),

e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada e apresentada sem e apresentada e apresentada e e apresentada e apresentada e apresentada
em modo em modo não como como com condescendência com expectativa com expectativa apresentada como não-recurso como como
sério sério exemplar inconveniente condescendência (no limite, com ativa passiva como recurso (no limite ameaça) sugestões sugestões ingênuas
(no limite cômico) repugnância) escolhidas
+ - + + + _ + - + -
, a ° roto- 0 venerando- 0 desgastado- o agradecido- o o mágico- o desastre - o precioso- o estéril- o prestigioso- o pretensioso-
admoestaçao grotesco regressivo realista afetivo desolado-incoerente supersticioso terrível potenciai nocivo ornamental fictício
solene

F ig u ra 33. A árv o re sem ântica de F ran cesco O rlando.

Fonte: F. Orlando. Gli oggetti desueti nelle immagini delia /efferafura.Torino: Einaudi, 1993.
136 Franco Moretti Árvores 137

Que a história tenha uma lógica própria sabe-se que é uma


idéia fascinante, mas, sabe-se também, que é extremamente
improvável. Aqui, a teoria darwiniana - assim como é resu­
mida e visualizada nas árvores evolutivas - dá ao processo
histórico uma forma completamente diferente: compreensível,
naturalmente, mas também sempre assimétrica. Nas árvores
evolutivas, de fato, diferentemente do que nos Objetos fora de
uso-nos quais “não se apresentará nunca mais de uma bifurca­
ção, na mesma altura, em cada ramo, Isto é, não será formado
do que por oposições binárias”4" - as bifurcações morfológicas
não são quase nunca binárias e excluem, portanto, já de partida
o princípio de simetria adotado por Orlando45'. E, depois, as
bifurcações são sempre sobredeterminadas pela contingência V
histórica e geográfica: as populações dividem-se em grupos de
dimensões diversas; os habitats têm características físicas e cli­
máticas diversas; as pressões seletivas resultam, por sua vez,
diversas —e todo traço de simetria termina assim, prematu­ Uma última árvore, antes de concluir (fig. f34). Desta vez, não os
ramente, por desaparecer do caminho da evolução. A história “muitos modos de estar morto” dos rivais de Conan Doyle, mas
tem uma forma, sim, mas não tão bela'".48950 os quase outros tantos “modos de estar vivo”, descobertos entre
1800 e 2000, daquela grande técnica narrativa chamada “estilo
48 Ibid., p. 84. indireto livre”: uma “peculiar mistura de discurso indireto e di­
49 "As pesquisas mais recentes sobre o processo de especiação” escreve Ernest reto”, como se lê no primeiro artigo que a ela faz menção, “que
Mayr, "indicam que uma simples divisão em duas espécies 'filhas' não constitui assume daquele os tempos verbais e os pronomes, e deste, o tom e a
a norma. As espécies politípicas dividem-se quase sempre em mais de uma
subespécie", dando vida, assim, a norma de um processo de ramificação assi­ ordem dafrase”5'. Um exemplo, de um romance de Austen:
métrica" (E. Mayr."Cladistic analysis orcladistic classification?". In: Evolutionand
thediversityoflife. Cambridge-London: Harvard U.P., 1976, p. 452,454). e desenvolvimento histórico efetivo: se uma certa classe for cem vezes mais
Em relação a Orlando, a escolha de operar por bifurcações sempre e somente biná­ frequente do que uma outra, não é de se prever que ela se subdivida, por sua
rias não é propriamente argumentada, mas remetida simplesmente à "lógica aris- vez, em novas classes? Seria possível que, de forma geral, fortíssimas variações
totélica e escolástica" (p. 85), e à concepção dos contrários e dos contraditórios. de tipo quantitativo não tenham consequências no plano morfológico?
Que fique claro que estas não são perguntas retóricas. Talvez, em literatura, a
50 Expondo esta objeção a Orlando, ele me respondeu, ampliando um motivo já
coisa seja efetivamente possível. Para mim é difícil acreditar, tendo em vista o
presente no livro, que um importante elemento de assimetria estava contido
modo como se dá a evolução em outras áreas. Mas entre o implausível e o fal­
na diferente frequência das várias categorias (o "desgastado-realista", para
so existe uma diferença grande. E quanto ao mais vasto problema da relação
dar um exemplo, sendo imensamente mais difundido do que o "prestigioso-
entre lógica e história, ele nos acompanhará ainda por muito tempo.
ornamental"). É um esclarecimento importante (e do qual seria interessante
tentar uma visualização), mas que, olhando bem, apenas torna ainda mais 51 A.Tobler."Vermischte beitràgezurfranzõsischen grammatik". \n:Zeitschriftfür
agudo o problema de fundo, que é aquele da relação entre subdivisão lógica romanische philologie, 1887, p. 437.
138 Franco Moretti
Árvores 139

2000 E ra a m orada do barulho, da desordem e da falta de educação.


Roa Bastos
Garcia Márquez N inguém nunca estava no lu g ar certo, nada era feito como se
Carpentier
Vargas Uosa deveria fazer. Ela não conseguia respeitar os seus pais como tinha
esperado (M a n s fie ld P a rk ).

“Ninguém nunca estava no lugar certo, nada era feito como se deveria
fa z e r : o tom da frase é aquele de Fanny Price, a jovem protagonis­
1950
Asturias ta do livro, de quem sentimos toda a frustração e, às vezes, o quase
desprezo pelo comportamento dos próprios familiares. “Ninguém
nunca estava no lugar certo [...] E la não conseguia respeitar os seus
Woolf
Maran
Joyce pais”: os tempos verbais (no passado) e os pronomes (de terceira
Proust
pessoa) indicam a distância de uma voz narradora, ao invés da
Lawrence proximidade de quem está envolvido diretamente nos aconteci­
1900
Mann mentos. Emoções, maior distanciamento: é esta a estranha M is-
Zola James
PerezGaldós Ver9a , Clarín chu n g á o estilo indireto livre. E é graças a esta sua natureza com-
/ irônico
pósita que ele conseguiu entender-se perfeitamente com aquela
// irônico outra curiosa mistura que é a socialização moderna: ao deixar à
Dostoiévski 1 voz individual as suas vibrações, mesmo que a fechando dentro
i de uma moldura impessoal e abstrata, o indireto livre encarnou,
Flaubert de fato, aquela “véritable transposition de 1’o b je c tf dans le subjectif™
1850 que está no centro do processo de socialização. E disso emergiu
uma “terceira” voz, intermediária e quase neutra, entre aquela do
personagem e aquela do narrador: a voz composta, adulta e um
tantinho conformada do indivíduo socializado, da qual as heroínas
Goethe Austen
de Austen —essas moças que falam de si mesmas em terceira pessoa,
como de fora - são exemplos verdadeiramente extraordinários51.
irônico
1800 52 C. Bally. "Lê style indirecte libre em français moderne". In: Germanisch-Ro-
Segunda pessoa / Oralidade / Coletividade Primeira pessoa / Pensamento / Indivíduo manischeMonatschrift, 1912, segunda parte, p. 603.

53 Analisei em detalhe o nexo entre indireto livre e socialização no ensaio "O sé­
Esta figura reflete trabalho em andamento e, portanto, ainda é bastante experimental, especialmente culo sério". In: Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, 2003. Não estou procurando,
no caso das literaturas não-européias e da duração diacrônlca dos vários ramos. fique entendido, sustentar que o estilo indireto livre seja usado só para re­
presentar o processo de socialização (o que seria absurdo), mas que entre os
dois existe - especialmente no período formativo da técnica - uma fortíssima
t ig u ra 34. O estilo indireto livre na n a rra tiv a m oderna, 1800-2000. afinidade eletiva.
140 Franco Moretti Árvores 141

Colocado como está a meio do caminho entre social e indi­ prom eter a elas para ter sem elhante direito? Vais dedicar todo
vidual, o estilo indireto livre constitui um ótimo índice de o teu destino, todo o teu futuro a elas q u a n d o t e r m in a r e s o c u r so

suas tensões - que no romance europeu-ocidental do século e a rra n ja re s u m em p re g o ? Nós já ouvimos falar disso, são h is to r ia s

19 pende, de resto, muito cedo para a d oxa social, culminan­ d e b ic h o - p a p ã o , mas e agora? Porque é preciso fazer algum a coi­
do na bêtisepequeno-burguês eternizada por Flaubert. Mas no sa agora mesmo, estás entendendo?” ]...] Fazia m uito que [(es­
momento em que o indireto livre parece estar a ponto de ser sas p e rg u n tas] haviam começado a atorm entá-lo e lhe tinham
engolido pela ideologia, uma imprevista “mutação” estilística atorm entado o coração. H á m uito tem po essa m elancolia de hoje
revira a tendência. O discurso interior de Raskolnikov, escre­ su rg ira nele ]...] Estava claro que não era hora de tom ar-se de
ve Bakhtin, é pleno | melancolia, de ficar sofrendo passivam ente só de pensar que as
questões não tinham solução, mas de fazer algum a coisa sem falta
de palavras do outro, por ele apenas escutadas ou lidas [... E le] se e já, o mais rápido possível. Precisava decidir-se a qualquer custo,
constrói como um conjunto de réplicas vigorosas e apaixonadas fosse lá pelo que fosse, o u . . . { C r i m e e c a s li g o p ”

pelas palavras do outro ]...] Ele não analisa os fenômenos, mas fala
com eles ]...] ele se dirige a si mesmo (frequentem ente com o uso Esplêndido. A parte final do trecho, especialmente, mostra o
do tu, como se falando com um outro), procura convencer a si mes­ que acontece quando uma técnica “m igra” (por assim dizer)
mo, castiga a si mesmo, se desmascara, escarnece a si m esmo” . para um habitat diferente do usual: uma vez introduzido no
mundo de C rim e e castigo, cujo centro de gravidade estilístico é
Uma língua plena de “palavras do outro”, como aquela de constituído pelo dialogismo, o indireto livre é como que “atra­
Emma Bovary, ou de Bouvard: mas onde essas palavras não ído” para a sua órbita e torna-se assim muito mais intenso e
são mais repercutidas passivamente e, sim, ao contrário, pro­ dramático (“Estava claro que não era hora de tomar-se de me­
vocam réplicas vigorosas e apaixonadas. Ou, para citar o passo lancolia, de ficar sofrendo passivamente...”) do que na tradição
escolhido pelo próprio Bakhtin para ilustrar a sua tese (trata-se precedente. Torna-se, digamos, quase dialógico. Quase. Porque
da reação de Raskolnikov ao anúncio do matrimônio da irmã): o fato é que o indireto livre exprime sempre uma perspectiva
narrativa de algum modo completa, acabada: por quanto “dialó­
gico” possa tornar-se, não conseguirá nunca revelar o sentido
“N ão vai acontecer? E que tu vais fazer para que isso não acon­ de uma discussão ainda aberta em direção a o fu tu ro como aquelas
teça? Vais proibir? Com que direito? Por sua vez, o que podes frases “com o tu, como dirigidas a um outro” que se encontram
no início do trecho —e que são, naturalmente, com a permissão
de Bakhtin, um claríssimo exemplo de discurso direto.5
54 M. Bakhtin. Dostoevskij:poéticae stilistica.Tormo: Einaudi, 2002, p. 312. A inter­
pretação dialógica do estilo indireto livre delineada por Bakhtin foi desenvol­
vida porVolosinov nos capítulos sobre o "discurso quase-direto"de Marxismo
e filosofia dei linguaggio. Bari: Dédalo libri, 1976, p. 234-63. Ver também G.
Morson e C. Emerson: MikhailBakhtin: creation o fa prosaic. Stanford: Stanford 55 Usei a tradução para o português do Brasil de Paulo Bezerra de Crime e castigo.
U. P., 1990, especialmente as páginas 343-44. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 60-1 (N. doT.).
142 Franco Moretti Árvores 143

Um ramo da árvore da vida pode muito bem aproximar-se


de um outro ramo, mas, como norma, não se unirão, soava a
frase de Alfredo Kroeber citada como explicação poucas pá­
ginas atrás. E, às vezes - por força do princípio de divergên­
cia —, acontece o mesmo também na árvore da literatura: até
mesmo uma técnica tão extraordinariam ente flexível como o
estilo indireto livre (e nas mãos de um escritor genial) encon­
tra, a um certo momento, uma outra técnica com a qual, por
mais que se aproxime, não consegue unir-se, mas somente (e
a custo) conviver. É como se aqui encontrássemos uma bar­
reira, um limite ao processo de "mistura” cultural: para ter,
de fato, réplicas vigorosas e apaixonadas de que fala Bakhtin,
Dostoiévski não pode “unir” o indireto livre ao dialogismo, YI.
mas deve dispensar um em proveito do outro. E alguma coisa
muito semelhante, veremos, acontecerá também em Joyce.

Um estilo que faz ecoar até nos pensamentos mais íntimos a


linguagem do social. Mas como nos diz a bifurcação seguinte,
que aconteceu em torno de 1880, a linguagem do social assume,
por sua vez, muitas formas diferentes. Se na França (e, um pouco
menos, na Inglaterra) a doxa que ressoa no indireto livre é um
quê de abstrato e silencioso, que emerge quase por si mesma dos
jornais, dos livros, de uma vastíssima e anônima opinião pública,
o estilo indireto livre do sul da Europa adquire, ao contrário, a
forma do concretíssimo e rumoroso “coro” (Spitzer) aldeão de Os
Makvoglia, ou dos bisbilhos escarnecidos que correm no confes­
sionário (e nas intrigas) da Regenta; algumas décadas mais tarde,
no sul do mundo, se entrelaçará aos grandes mitos coletivos de
fíalouala, ou Hombres de rnaiz, ressoando descontinuamente qua­
se como um grande canto coral.""’56

56 Dois exemplos. "Hoje em dia os velhacos inventam toda sorte de esperteza


para dar os seus golpes; e aTrezza viam-se faces que nunca tinham sido vistas
144 Franco Moretti Árvores 145

Em todos esses casos, a ideologia que preside a coesão social Esses m iseráveis ali eram jogados como ração p ara as m áqui­
é, ao mesmo tempo, mais invasiva do que na Europa Oci­ nas, eram am ontoados como anim ais nos bairros operários, que
dental e imensamente mais débil: fundada como está sobre as grandes com panhias pouco a pouco absorviam , legalizando a
a oralidade, mais do que sobre a interiorização inconsciente, escravidão, ameaçando de arreg im en tar todos os trabalhadores
ela exige que os seus porta-vozes (conterrâneos, confessores, da cidade, milhões de braços, para fazer a riqueza de mil vadios.
chefes de tribo) estejam sempre ali, fisicamente presentes, M as o m inerador não era mais o ignorante de antigam ente, o
prontos a reafirmar os seus valores em alta voz. E, olhan­ anim al que se m anda m o rrer nas vísceras da terra. Do fundo das
do bem, nem mesmo isto é ^suficiente. Porque os princípios minas um exército em purrava; uma seara de cidadãos-sem entes
desta cultura hierárquico-comunitária de longa duração são brotando e que fendería a te rra em um dia de m uito sol. E então
regularm ente desautorizados pelo individualismo possessivo se veria... ( G e r m i n a l , I V )
—econômico e erótico —que se afirma irresistível dentro do
entrecho. Como uma grande mancha de óleo na superfície do Aqui, todos os elementos vistos até agora retornam . Há a
mar, o estilo indireto livre encontra-se, dessa forma, a flutuar centelha emotiva (ces misérables...) que dá à técnica a força de
sobre uma história que ele julga e condena rumorosamente, empreender vôo. Há a m istura de personagem e narrador
mas que não consegue, de nenhum modo, dirigir - e, frequen­ (com a metáfora do exército vingativo que volta de modo
temente, nem mesmo entender. memorável na última frase do romance), como também a
identificação entre o indivíduo e a classe com o “nós” do dis­
Uma outra voz coletiva, mas de natureza diferente, ressoa curso direto que se torna terceira pessoa plural. E há, como
naqueles mesmos anos no Germinal, de Zola: a voz da clas­ fundamento de tudo, a metamorfose da língua popular em
se operária. Etienne Lantier, na grande reunião noturna de “francês”. Eugen Weber:
Plan-des-Dames:
O francês, que privilegia os term os abstratos em detrim ento dos
term os concretos refina a língua elim inando todos aqueles
detalhes tão im portantes na língua popular e o rico florescer de
antes sobre os penhascos. Com o pretexto de pescar, vão e roubam toda a
roupa estendida no varal, se a oportunidade aparecia. À pobre Nunziata ti­ term os descritivos típicos do p a t o i s . Prefere in terp re tar a realida­
nham roubado, desse jeito, um lençol novo. Pobre moça! Roubar logo a ela, de mais do que descrevê-la; exprim ir idéias, não apenas rep o rtar
que trabalhava para dar de comer aos irmãozinhos que seu pai tinha deixado
em suas costas quando a deixou para ir procurar dinheiro em Alexandria do fatos. Como conscqüência, induz quem o usa a dar menos im­
Egito!"Giovanni Verga. OsMalavoglia. portância ao “o que” de fatos e eventos, e mais im portância ao
"É um bom homem, o sol, e muito justo! Brilha para todos o homens, dos mais
“porquê”.’757
potentes aos mais humildes. Não diferencia rico e pobre, ou branco e negro.
Qualquer que seja a cor de suas peles, ou o volume de suas riquezas, todos os
homens são seus filhos. Ama a todos do mesmo jeito; ajuda nas plantações; afu­
genta, para dar a todos alegria, o frio e a neve insistentes; reabsorve a chuva;
e afugenta a sombra. Ah! A sombra. Desapiedado, incontido, o sol a persegue 57 E. Weber. Peasants into frenchmen: the modernization ofrural France 1870-1914.
onde quer que ela esteja. É a coisa que mais odeia."René Maran. Batouala. Stanford: Stanford UP, 1976, p. 93.
146 Franco Moretti Árvores 147

De camponeses a franceses, se intitula o livro de Weber; de


mineradores a franceses, se poderia parafrasear um título
para o trecho de Germinal visto acima: depois da socialização
individual da classe média, a “nacionalização das massas” do
final do século 19. Não por nada, quem fala é Etienne Lantier,
que é um dos mineradores e, ao mesmo tempo, o "represen­
tante” deles: aquele que se destaca em meio a sua classe social
justam ente porque sabe fala^ bem” (e a quem não desagra­
daria, de fato, usar dessa sua capacidade para trilhar uma car­
reira —em Paris, possivelmente). O antagonismo de classe,
mesmo assim tão claramente exposto, se m istura à ambição
do indivíduo e, ainda mais, a alimenta. Colocando assim ainda
uma vez o estilo indireto livre em uma posição de implícita, e VII.
quase invisível, mediação social.

Até aqui a vertente social e “objetiva” do estilo indireto li­


vre comandou: as “verdades’ do narrador neoclassico, a doxa
da opinião, o conflito das idéias em Dostoiévski, a voz das
pequenas comunidades e das classes sociais, a longa perma­
nência dos mitos orais... Mas, em torno de 1900, é desper­
tado também o pólo “subjetivo” da técnica. Inicia-se, como
talvez fosse inevitável, com um conjunto de estilizações de
cunho alto-burguês (James, M ann, Proust, Woolf...), onde a
distância entre voz individual e norma social permanece ain­
da quase imperceptível; depois, mais radical, a generalização
de Joyce desfaz-se, sem muita cerimônia, da cultura das boas
maneiras, e desloca o seu campo de observação para dentro
dos estratos secretos e inconscientes da vida psíquica. O lado
“objetivo” do indireto livre está ainda bastante atuante. Se­
não por outro, pela pesada estrutura de lugares-comuns que
148 Franco Moretti Árvores 149

B o u v a rd e Pécuchet deixa como herança a Ulisses. Mas Joyce No romance de Roa Bastos — assim como em O recurso do
aprende logo a pôr de ponta-cabeça suas funções, colocando- método, de Carpentier, e em O g en era l em seu labirinto, de G ar­
as a serviço das acrobacias centrífugas da mente de Leopold cia M árquez, os outros dois romances de ditador saídos em
Bloom. E, ao fazer isto, Joyce segue a mesma estrada já per­ 1974, o ano sucessivo ao putsch militar contra Allende —o
corrida por Dostoiévski em C rim e e castigo : da mesma forma “Eu” de E l Suprem o é muito superior, e o indireto livre per­
cjue, nas reflexões de Raskolnikov, a terceira pessoa do indire­ manece inevitavelmente circunscrito a um papel periférico.
to livre terminava, como regra, por ceder o passo à segunda Com M ario Vargas Llosa, porém, a técnica desloca-se para
pessoa do dialogismo, em pU lisses ela resvala - ou talvez fosse o centro do quadro e libera todo o seu potencial polêmico.
mais exato dizer precipita-se - para a p rim e ira pessoa (e para Apresentando-nos a mente do ditador sem o filtro de um
o tempo presente) do stream o f consciousness, com a sua galáxia ponto de vista julgador” —para repetir a nítida definição do
de associações particulares e, aliás, euforicamente idiossin­ indireto livre dada por Ann BanfieldM - Vargas Llosa pega o
cráticas58*. pútrido substrato de que se alimenta o terror político e con­
fere a ele uma obviedade inesquecível:
Ultima bifurcação, uns 30 anos atrás: os “romances de dita­
dor” latino-americanos. Aqui, a alternância gramatical per­ Os E stados Unidos tinham tido um amigo mais sincero do que
manece aquela entre terceira e primeira pessoa, mas a direção ele nos últim os 31 anos? Que governo tinha apoiado mais os
está de cabeça para baixo em relação a Ulisses-, ao invés de E stados U nidos na ONU? Que governo tinha sido o prim eiro
uma nari ação em terceira pessoa que modula rapidamente a declarar gu erra à A lem anha e ao Japão? Que governo tinha
em direção do eu, o ditador ambiciona objetivar a própria lubrificado com mais dólares representantes, senadores, governa­
(e patológica) interioridade nas poses monumentais de uma dores, sindicatos, advogados e jo rn alistas dos E stados Unidos? A
pessoa publica. A minha dinastia começa e termina em mim, recom pensa: as sanções da OEA, para agradar aquele n e g r ito do
em EU -ELE , escreve Augusto Roa Bastos em E u o supremo-, Rômulo B etancourt e continuar a sugar o petróleo venezuelano.
e quase ao fim do livro: Se Johnny Abbes tivesse feito m elhor as coisas e a bomba tivesse
decapitado aquele viado do Rômulo, não e x is tir ía m sanções e os
C"0 ELE, ereto, com a sua norm al vivacidade, a soberana potên- g r in g o s escrotos não rom periam com a soberania, a dem ocracia e
i ia do prim eiro dia. Uma mão atrás, e a outra na gola do casaco os direitos humanos. (A f e s t a d o bode)

C -J é ELE, definitivam ente. E U -O -SU PR EM O . Im em orá-


vel. Imperecível. i l i u o su p rem o )

58 "Olhou seus sapatos, que tinha engraxado e dado brilho. Ela tinha sobrevivido a
ele. Perdeu o marido. Mais morto para ela do que para mim. Um deve sobreviver
ao outro. Dizem os sábios. No mundo existem mais mulheres do que homens.
Dar a eia os pêsames. A sua terrível perda. Espero que o siga logo. Só para viúvas 59 A. Banfield. Unspeakable sentences. Boston: Routledge and Kegan Paul, 1982,
hindus. Casaria com um outro. Ele? Não. Mas, quem sabe."James Joyce. Ulisses. p. 97.
150 Franco Moretti Árvores 151

o que fez em ergir o nexo entre o espaço e a forma, ou melhor,


entre a descontinuidade espacial que separa as várias tradições
narrativas e as inovações morfológicas, que se tornam assim
possíveis. “
Allopatric speciation”, para citar ainda uma vez E r­
nest Mayr: a idéia de que a gênese de uma nova especie (aqui,
mais modestamente, de uma nova variante estilística) este­
ja em conexão com o deslocamento em uma nova pátria ,
í onde só se sobrevive aprendendo a mudar muito, e muito ra­
pidamente. Exatam ente como o indireto livre quando deixa
o campo inglês, ou Paris, e deve aprender a falar a língua de
Petersburgo, Aci T. rezza, Oviedo, Dublin, Ciudad Trujillo...

VIII. O espaço e a forma. Penso nas reflexões de Gide ao tempo


de Os moedeiros falsos-, é verdade, o romance é uma tranche de
vie, escreve - mas por que cortar sempre “no sentido do com­
prim ento”, sublinhando assim quase unicamente o passar do
tempo? Por que não operar, ao contrário, um “corte na largu­
Da casa do barulho e da má educação, onde ninguém nunca ra”, que ponha em relevo a contemporaneidade de eventos múl­
estava no lugar certo, aos gringos escrotos que não rompe­ tiplos? Comprimento mais largura: é precisamente jogando
ríam com a soberania, a democracia e os direitos humanos: com estas duas dimensões que uma árvore consegue signifi­
eis o que podería ser a literatura comparada no dia em que car”. E alguém olha a figura 34, ou as outras, e se pergunta:
souber unir a literatura mundial, de uma parte, e a morfologia qual dos dois eixos é mais im portante aqui, o vertical ou o
comparada, de outra. Pegar uma forma, acompanhá-la de es­ horizontal? O suceder-se das formas —ou o seu dispersar-se no
paço em espaço e procurar entender as razões de suas meta­ morfoespaço? E esta incerteza perceptiva entre as duas di­
morfoses: as razões oportunistas e, logo, imprevisíveis” da mensões - esta impossibilidade, com efeito, de “ver” tempo e
evolução, nas palavras de E rnest M ayrfi0. A multiplicidade (morfo) espaço com um só olhar —é o sinal de uma literatura
dos espaços é o grande desafio e a maldição, quase, da litera­ que vai avante e de lado ao mesmo tempo; às vezes, mais de
tura comparada: mas é também a sua força secreta. Porque só lado do que avante. A jogada do cavalo: a grande metafora de
em escala realmente ampla é possível conduzir experimenta­ Sklovskij para a produção artística.
ções significativas em história da cultura. Como na figura 34,60

60 E. Mayr. Toward a new philosophy o f biology: observations o f an evolutionist.


Cambridge: Harvard U. P„ 1988, p. 458.
152 Franco Moretti Árvores 153

obras-prim a e arquivo; e daí por diante) por novas partições


temporais, espaciais e morfológicas.

Em segundo lugar, os modelos que discuti (e outros, aná­


logos, que se poderia incluir) partilham todos de uma clara
preferência pela explicação em relação à interpretação. Esta, na­
turalmente, é uma distinção de grande importância, e merece
uma discussão particular. Mas por ora, e para que nos enten­
damos, digamos pelo menos que aqui não procurei estabele­
cer o significado específico desta ou daquela obra individual,
e sim reconstruir as estruturas abstratas, de validade geral,
que estão por baixo tanto da existência de W averley coiw o das
IX. H istó ria s de vilas da Floresta N e g ra ou de Os M a la v o g h a : os
ciclos temporais que governam a ascensão e a queda dos gê­
neros literários; os p a ttern s circulares da velha cultura rural;
o sistema de possibilidades (e vínculos) dentro do qual o indi­
reto livre desenvolveu a sua função simbólica. O caso indivi­
T rês capítulos. Três modelos. T rês diferentes “seções” do dual orientado no sentido de descobrir uma norm a geral, em
campo literário. Primeiro, o sistema dos gêneros romanes­ suma, e não, como habitualmente, o contrário.
cos em seu complexo; depois, a parábola de um cronotopo
específico “do nascimento à m orte”; e agora, o micronível das Terceiro denominador comum entre os três capítulos: uma
mutações estilísticas. Porém, com todas as diferenças de esca­ concepção m aterialista da fo r m a literária. Um eco distante, e tal­
la, algumas constantes permanecem. Em primeiro lugar, uma vez também obsoleto, do marxismo dos anos 1960 e 1970?
concepção, se não propriamente instrum ental, certam ente Sim e não. Sim, no sentido de que a idéia-guia daquela tase crí­
pragmática e operativa do conhecimento teórico (a teoria tica - a forma como o aspecto mais profundamente social da
como um historiador gosta, digamos). “A s teorias são redes”, atividade literária: a fo r m a como fo rça , como ecoa o fechamento
escreveu Novalis, “e somente quem as joga pesca”. Sim, as do capítulo precedente - permanece para mim perfeitamente
teorias são redes. E devem ser avaliadas não como fins em válida. Não, porque não estou mais convencido de que uma
si mesmas, mas como m udam m aterialm ente o nosso m odo de única teoria possa explicar os vários níveis da produção lite­
trabalhar, e como conseguem, não somente “alargar” o cam­ rária e as suas múltiplas ligações com o sistema social em seu
po literário, mas também emoldurá-lo diversamente, substi­ conjunto: daí um certo ecletismo teórico destas páginas e a
tuindo as velhas e atualmente inúteis distinções (alto e baixo; natureza hipotética de muitas das conjecturas propostas.
154 Franco Moretti

M uito ainda resta por fazer, naturalmente. Especialmente em


relação à compatibilidade dos modelos conceituais e os dife­
rentes níveis de explicação histórico-literária. M as para isto
temos tempo. Aqui queria, no entanto, iniciar o caminho. Há
muito por fazer...

A evolução vista de perto


A lb e rto Piazza
A evolução vista de perto 157

Prólogo

1. Comecei a ler este livro pelo capítulo final, graças ao inte­


resse suscitado pelo título e pelo nome do autor. O título do
capítulo, Arvores, e a segunda figura que aparece nele (fig.29)
me envolvem profissionalmente desde que dediquei muitos
anos de minha vida a análises de árvores evolutivas extraídas
de dados biológicos das populações humanas. A elaboração
daquela árvore é o resultado de tais análises. Aos outros escri­
tos de Franco M oretti não pude, infelizmente, dedicar maior
tempo; mas II romanzo diformazione e Atlas do romance europeu
já me tinham, no seu tempo, impressionado pelo empenho em
contar “histórias” de estruturas literárias, ou a evolução no
tempo e no espaço de traços culturais considerados não em
sua singularidade, mas em sua complexidade. Uma evolução,
por isso, “vista de longe”, análoga, pelo menos em alguns as­
pectos, àquela que aprendi e cultivei nos meus estudos de ge­
nética. A curiosidade, depois, me solicitou a completar a lei­
tura do tríptico, a fazer algumas reflexões gerais e a oferecer
aos leitores novos estímulos. O que segue é uma tentativa de
158 Alberto Piazza A evolução vista de perto 159

colocar minhas reflexões em ordem e de contribuir para uma o lugar com carne. 22 Depois, da costela tirada do homem, o Senhor

discussão transversal de disciplinas diferentes. Ampara-me a Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem.
convicção de que a literatura pode constituir-se em sistema
não vinculado aos instrum entos específicos que ela mesma Depreende-se da mensagem que o modo mais primitivo de pos­
criou e está, por isso, em condição de metabolizar metáforas suir um objeto é dar a ele um nome, o mais rico de informações
e ambiguidades pertinentes a mais de um sistema de conheci­ possível: sem informação não se possui a vida. Entretanto, para
mento. Acrescento que o sistema de conhecimento científico, fazer com que o objeto entre em relação conosco e coopere, em
em particular o de biologia molecular m oderna que está na suma, para fazer o objeto “conviver”, não é suficiente dar a ele
base da evolução das estruturas biológicas, é, paradoxalmen­ um nome. À informação é preciso associar um mecanismo de
te, o mais apropriado para em prestar tal função metabolizan- “transcrição” (a costela) que a transmita de um organismo a
te à escritura. Basta pensar que em linguagem técnica fala-se outro, oxalá inserindo neste algum mínimo elemento de trans­
comumente de “tradução” e “transcrição” do DNA. Enfim, formação. Entre os elementos de transformação ofertados pela
me perdoem a escassez de citações bibliográficas: me limito natureza, o mecanismo da recombinação sexual (a troca de seg­
àquelas essenciais e de mais fácil leitura. mentos cromossômicos entre homem e mulher) é um dos mais
eficazes. A metáfora literária da costela (não importa o quanto
seja consciente), ela mesma transcrição, introduz do modo mais
elegante o conceito de transmissão da informação. Hoje se sabe
A evolução biológica em uma metáfora literária que as seqüências de DNA são cadeias de moléculas químicas,
cuja função é conter as informações que regulam a vida de cada
2. Na base da evolução biológica está a estrutura química do célula e transmiti-las, de uma geração à outra, com mudanças
DNA, que é a memória biológica de todos nós: humanos e mínimas, mas evolutivamente muito importantes.
não humanos. Cito Gênesis ( 2 :1 8 - 2 2 ) :
3. Para que a informação possa ser transm itida do modo mais
18 E o Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou eficaz (sem erros), é indispensável um código. Código lingüís-
fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda”. 19 Então o Senhor tico e código de DNA, nomes e genes, apresentam algumas
Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves analogias com as regras de transmissão: mutação, seleção e
do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada derivação são mecanismos comuns. Ambos os códigos são
ser vivo tcria o nome que o homem lhe desse. 20 E o homem deu ambíguos, redundantes e degenerados. A presença de muitos
nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a to­ nomes, de muitas informações torna necessária a sua discri­
dos os animais selvagens, mas não encontrou uma auxiliar que lhe minação. É preciso, em outras palavras, um mecanismo que
correspondesse. 2 1 Então o Senhor Deus fez vir sobre o homem um garanta uma variabilidade suficiente, mas não limitada dos
profundo sono, e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou significados. É útil saber que no nosso genoma existe cerca
160 Alberto Piazza A evolução vista de perto 161

de 30-50 mil genes (isto é, unidades de informação), número deve ser transcrita fielmente, sem erros. M uita energia de
que equivale ao dos vocábulos existentes em um dicionário nossas células é destinada a reparar eventuais erros de trans­
de italiano. crição: só uma mínima parte desses erros são erros “felizes”,
no sentido de que possam favorecer e não prejudicar o nosso
4. A informação codificada se organiza dando-se uma estru­ organismo e, portanto, lãtu senso, a nossa especie. E ntretan­
tura. A estrutura evolui no tempo: o texto pede um contexto. to, a presença do contexto induziu no homem —um animal
A escrita pede o texto do contexto, constituindo dele (do con­ tipicamente cultural - uma evolução dos circuitos nervosos
texto) a memória. No caso do DNA, o alfabeto já se conhece, que estamos descobrindo com maravilhosa e atônita surpre­
o texto também (é uma descoberta dos últimos anos e tem sa. A técnica da ressonância m agnética funcional nos permite
um nome: sequência do genoma humano), mas o significado visualizar a ativação dos circuitos ceiebrais que presidem os
é desconhecido, e constitui o desafio dos próximos anos (os vários percursos cognitivos. Aqui vou acenar a somente um
anos do “pós-genoma”, em metáfora literária o “pós-moder- fascinante campo de pesquisa sobre o nosso sistema de leitu­
no”). A escrita no momento não é, portanto, reproduzível, ra. Se a um indivíduo se pede para ler uma palavra, e depois,
mas é dotada de tfma memória muito longa e precisa (o, assim ao mesmo indivíduo, em um momento em que ele não podia
chamado, “relógio molecular”). recordar a palavra em questão, essa mesma palavra e lida,
o confronto das duas imagens emitidas com a ressonância
No caso do texto literário, a sua função muda com o tempo, magnética revela que a ativação dos circuitos cerebrais diz
constituindo freqüentemente a memória do contexto mais do respeito a regiões do cérebro bem distintas'' . Sem entrai em
que de si mesmo. Ivan Illich em N ella vigna de testo, P er uma etolo- particulares sobre a anatomia funcional implicada na leitura
g ia delia lettura (1.994), discute e comenta o Didascalicon, de Ugo e sobre aquela, distinta, implicada na audição das mesmas pa­
di San Vittore, teólogo e místico do século 12, escrito em torno lavras lidas, basta sublinhar ainda uma vez a importância do
de 1128. Ugo di San Vittore testemunha uma transformação da contexto: o mesmo significado é percebido por dois sistemas
velha arte da memorização do manuscrito monástico, concebido cognitivos diferentes segundo o meio com que é transm iti­
para a recitação em alta voz, à arte nova do livro estruturado a do. A ambigüidade, a alusão e a redundância, freqüentemente
serviço da história. Ler equivale a recriar o tecido histórico no vilipendiadas como códigos de empobrecimento cultural, se
coração do leitor. Logo, um texto que é memória do passado e vingam reclamando percursos que não pertencem somente
que preanuncia as transformações futuras de seu contexto. ao campo literário, mas se introm etem naquele sutil jogo que
começa com a representação pré-lexical e pré-semântiea de
5. Leitura e escritura no mundo biológico do I4NA pertencem um texto visto como uma pintura, para term inar na elabora­
a dois sistemas diferentes, mas complementares. O fato de ção contexto-dependente de seu significado.61
que o DNA se configure como uma dupla hélice e não como
uma hélice simples, obedece à regra de que a leitura do DNA 61 S. Dehaene et al. "The visual form area: a prelexical representation of visual
words in the fusiform gyrus". In: NeuroReport, 2002, n. 13, p. 321 -25.
162 Alberto Piazza A evolução vista de perto 163

6. O papel da variabilidade na memória do passado e na cons­ A evolução biológica (m uito) brevem ente
trução do presente é fundamental para a evolução de nossa es­
pécie: as interrogações sobre os modos em que tal variabilidade 7. Como reconhecer o papel da variabilidade biológica na re­
produz-se na natureza por longo tempo constituíram a aflição construção da memória de nosso passado (biológico)? E inte­
de Darwin que, por uma estranha brincadeira do destino, não ressante examinar a distribuição geográfica de tal variabilidade
tinha podido ler o trabalho revolucionário de Mendel. visualizando e filtrando a informação oferecida pelos dados ge­
néricos hoje disponíveis. Com esta finalidade, consideramos em
Franco M oretti, em seu I I ro m a n zo d ifo rm a zio n e , nos manda primeiro lugar um gene (um segmento de DNA ao qual se pode
uma mensagem muito interessante e, em minha opinião, im­ atribuir uma função biológica específica e reconhecível) e, para
portante: nem mesmo os gêneros literários podem sobreviver cada gene, analisamos separadamente as diferentes variantes
sem variedade cultural. O gênero do romance de formação que podem ser identificadas, os alelos do gene. A proporção de
- nos ensina - nasceu na Europa depois da Revolução Fran­ indivíduos que leva um determinado alelo pode variar (e muito)
cesa como resposta a uma precisa necessidade social: a media­ de uma localidade geográfica à outra. Se for possível examinar a
ção das exigências contrastantes de liberdade e estabilidade. presença ou ausência daquele alelo em um número adequado de
N arrar a juventude perm ite transcendê-la simbolicamente. indivíduos que habitam uma área geográfica circunscrita e uni­
N arrando a minha juventude já como homem maduro, repre­ forme, torna-se possível desenhar mapas geográficos traçando
sento a indeterrmnação de meu passado com a voz determ i­ linhas que juntam os pontos em que as proporções dos alelos
nada e estável de um homem agora tornado adulto. E ntre­ (frequências alélicas ou gênicas ) tenham igual valor.
tanto, no momento em que se intermedeia uma tensão com a
sua distensão, se determina, pelo menos em chave narrativa, A distribuição geográfica das freqüências gênicas pode forne­
uma situação de equilíbrio que prenuncia a perda da tensão cer indicações e instrum entos de medida de extrem o interesse
criativa original, daí à progressiva extinção do gênero. Em para o estudo dos mecanismos evolutivos que geram diferen­
um ambiente completamente diferente, etnicamente mais he­ ças genéticas nas populações humanas; mas é preciso enfren­
terogêneo, como os Estados Unidos, eis que renasce, com O tar problemas de interpretação bastante complexos. Quando
a p anhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, um romance duas populações humanas são geneticamente semelhantes,
de formação em que o próprio jovem conta a sua formação. tal semelhança pode ser o resultado de uma origem histórica
M oretti nos sugere que a variabilidade cultural do contexto comum, mas pode ser também devida ao seu assentamento
americano perm itiu transplantar um gênero literário que na em ambientes físicos (por exemplo, climáticos) semelhantes.
Europa já tinha exaurido a sua função social. E não devemos esquecer que estilos de vida e comportam en­
tos culturais análogos (por exemplo, o comportam ento die-
tético) poderiam favorecer o aumento ou a diminuição, até o
desaparecimento, de certos genes.
164 Alberto Piazza A evolução vista de perto 165

Por que razão os genes (por isto também suas freqüências) relativa de cada tipo genético transm itido de uma geração à
variam no tempo e no espaço? geração seguinte.

8. Os genes variam porque as seqüências de DNA que os cons­ A d eriva genética aleatória define um outro mecanismo evolu­
tituem podem m udar por acaso. Tal mudança, que é chamada tivo: é conseqüência do fato de que cada nova geração é pro­
de mutação, acontece no homem muito raram ente e, quando duzida a p artir de uma am ostragem aleatória dos genes pre­
acontece, da mesma forma raram ente tem condições de durar sentes na geração precedente. Considere-se o caso dos funda­
por muito tempo no interior de uma população. Para a maior dores de uma nova colônia em uma ilha rem ota (isto é, com
parte dos genes que se conhece, manifesta-se uma mutação poucos contatos). Se, por puro acaso, acontece que aos funda­
aproximadamente a cada milhão de gerações. Do ponto de dores falte um gene, este gene desaparecerá completamente
vista evolutivo o mecanismo de mutação é muito im portante da população da ilha. Porque cada geração pode considerar-
porque introduz inovações, mas porque a nossa espécie de se uma am ostra de população que funda a geração sucessiva,
H o m o sapiens existe somente há alguns milhares de gerações, quanto menor é a dimensão de uma população e maior é o seu
é muito improvável que mutações exclusivas de nossa espécie isolamento, tanto mais amplas poderão ser as flutuações das
tenham contribuído de modo decisivo para criar diferenças freqüências de um gene de uma geração à outra. Ao contrário
que tornam uma população geneticamente diferente de ou­ da seleção natural, que favorece ou desfavorece genes singu­
tra, ou um indivíduo de outro. Deveriamos, ao contrário, pen­ lares, a deriva genética aleatória influi sobre todos os genes
sar em versões diferentes dos mesmos genes que preexistiam do mesmo modo, mudando as suas freqüências ao acaso.
na origem de nossa espécie e que, com o tempo, assumiram
proporções diferentes nas diferentes populações. Também a migração, o mecanismo pelo qual duas populações físi­
ca e geneticamente separadas se unem, age simultaneamente so­
O mecanismo evolutivo em condições de m udar mais rapi­ bre todos os genes, mas de modo mais coerente em comparação
dam ente a estrutura genética de uma população é a seleção com a deriva. Indivíduos da população 1 que migram para a po­
natural, a qual favorece os tipos genéticos mais aptos a pulação 2 modificarão as freqüências gênicas da população 2 tor-
sobreviver até a m aturidade sexual, ou aqueles que ma­ nando-a geneticamente mais semelhante à população 1. E todas as
nifestam uma fertilidade superior. A seleção natural, cuja freqüências gênicas mudarão do mesmo modo naquela direção.
ação é contínua no tempo e que deve eliminar as mutações
que são danosas em determ inado habitat, é o mecanismo Dos mecanismos evolutivos que foram aludidos, a deriva ge­
que adapta uma população a modelar-se ao ambiente que nética é o único consistente com uma representação filogené-
a circunda, seja ele tropical, tem perado ou polar. Trata-se, tica que se vale graficamente de uma árvore da evolução, isto
então, de um processo “adaptativo”, cuja velocidade pode ser é, com um processo de separações sucessivas das populações.
prevista quantitativam ente tendo como base a distribuição Uma árvore da evolução das populações humanas é uma boa
166 Alberto Piazza A evolução vista de perto 167

representação do processo evolutivo só quando a população pulações). Pelas razões históricas antes apresentadas, as po­
associada a cada um dos ramos da árvore evolui (isto é, muda pulações européias estão entre aquelas que revelam uma das
as suas freqüências gênicas) independentemente da mudança taxas evolutivas mais lentas em relação às outras, e também
que acontece nas populações dos outros ramos. Há uma boa por este motivo poderia ser enganoso reconstruir a sua evolu­
afinação estatística entre os dados genéticos e algumas árvores ção no tempo mediante uma simples estrutura de árvore.
evolutivas de diferenciações humanas. A afinação é tanto me­
lhor quanto mais as populações consideradas são geográfica e
geneticamente distantes, consequência não inesperada porque
quanto mais duas populações são distantes, tanto menos as Evolução daforma literária
suas evoluções podem resultar correlatas depois de suas sepa­
rações. Se, por exemplo, se examina as populações européias 9. Para compreender em que ponto a metáfora biológica deixa
entre as quais são conhecidas migrações pré-históricas e his­ de ser tal e torna-se um instrum ento de trabalho adequado
tóricas com misturas que tornam muito inverossímeis hipó­ a inquirir a história da forma literária, é preciso verificar se
teses de mudanças independentes entre elas, a representação os mecanismos evolutivos que produzem as mudanças bioló­
da árvore não é um bom modelo de evolução. Uma outra indi­ gicas - mutação, seleção natural, deriva genética e migração
cação que as nossas análises sobre dados reais nos dão é que - encontram suas correspondências naqueles mecanismos
os ramos das árvores que representam o processo evolutivo que mudam as formas literárias. Tento algumas hipóteses.
das populações humanas têm tamanhos diferentes, como se os
tempos de mudança de cada população fossem medidos com Em prim eiro lugar, os mecanismos evolutivos biológicos e
relógios com velocidades diversas. Isto reflete a observação de culturais de nossa espécie m ostram correspondências de cer­
que a deriva genética produz uma mudança maior em popula­ to interesse. Considerando a linguagem como fenômeno cul­
ções isoladas e pouco numerosas, enquanto a migração pode tural por excelência, dos quatro mecanismos evolutivos que
retardar tal mudança “misturando” os genes das populações controlam a nossa mudança genética pode-se afirmar que:
que são encontradas no mesmo território e pode, por isto, re­ a migração influencia genes e linguagem do mesmo modo,
duzir as diferenças geradas pela deriva genética. Em outras induzindo fenômenos de difusão; a seleção age em ambos os
palavras, as taxas evolutivas podem ser diferentes de popula­ campos - a seleção natural favorecendo o fenótipo biológico
ção a população. Uma população que sofreu muitas migrações mais apto a sobreviver, e a seleção cultural favorecendo a
(e por isto é muito variável internamente, mas provavelmente recíproca inteligibilidade lexical e fonética da linguagem; a
menos diferente de outras populações) evolui menos rapida­ mutação e a inovação linguística desenvolvem a mesma função
mente - na árvore é associada a um ramo mais curto - do que - trata-se de mudanças que, uma vez verificadas casualmen­
uma população isolada (e por isto pouco variável internamente, te em indivíduos particulares, são depois adotadas por ou­
mas provavelmente bem mais diferente do que as outras po­ tros indivíduos.
168 Alberto Piazza A evolução vista de perto 169

Passando de modo mais específico da linguagem ao gênero lite­ que geram variabilidade, mas tam bém para o mecanismo por
rário, a migração é certamente um fator de mudança. Este livro meio do qual tal variabilidade é transmitida. Enquanto em
não nos diz quanto a tradução em línguas diferentes do mesmo biologia a transmissão da informação só pode acontecer de
romance pode mudar a percepção e o sucesso de um gênero li­ pais para filho, a informação cultural pode servir-se de outros
terário no país de destinação do romance traduzido, mas as pes­ mecanismos de transmissão. Seguindo o esquema de Cavalli-
quisas publicadas por IVIoretti em A tlas do romance europeu (refi­ Sforza e Feldman62, podemos pôr em relação o sujeito e o obje­
ro-me ao terceiro capítulo, sobre difusão literária e a correlação to da transmissão de informação de quatro modos:
entre modelo literário e espaço geográfico) sugerem um papel
importante da migração (não de homens, mas de “formas”), pelo a) D e p a i pa ra filh o {vertical). É o mecanismo de difusão da in­
menos na Europa. Como a seleção natural em biologia denota formação biológica, lento mas selecionado para conservar
a seleção de tipo biologico que melhor sobrevive ao ambiente, a variabilidade interindividual.
também não há dúvida de que algumas formas literárias tenham b) D e um in d ivíd u o a outro {h o rizo n ta l). É um mecanismo aná­
mais sucesso do que outras e sobrevivam por mais tempo graças logo ao do contágio em uma epidemia, por isto a informa­
aos múltiplos fatores culturais e economicos, e disso os gráficos ção difunde-se rapidamente.
do primeiro capítulo deste livro (por exemplo, as figuras de 3 a c) D e um in d ivíd u o a m ais in d ivíd u o s {por exemplo, de u m p ro ­
1°) fornecem ampla e preciosa documentação. Não é necessário fessor aos seus alunos, ou de u m líder social aos seus discípulos').
gastar muitas palavras sobre a mutação que, por analogia com o É o mecanismo mais eficiente para difundir uma inovação
mecanismo biológico, poderia consistir naqueles fatores capazes em um grupo social.
de originar uma nova forma literária: como em biologia (as mu­ d) D e m ais de u m in d ivíd u o a um único in divíduo. E o mecanis­
tações de DNA são causadas por vários e numerosos agentes) mo de pressão social: comumente impede a difusão de uma
tais fatores são presumivelmente diferentes, mas é importante inovação.
estabelecer não tanto a natureza desses fatores, mas estarmos
certos de sua existência. O exame da figura 1 do primeiro capí­ Qual é o mecanismo de transmissão que mais interessa ao gê­
tulo parece mais do que convincente. Permanece, para ser veri­ nero literário? Mesmo se o mecanismo A teve no passado um
ficada, a existência, ou não, de um mecanismo evolutivo análogo papel proeminente e fornece uma explicação das associações
ao da deriva genética aleatória. Verificação extremamente delica­ entre genes e línguas que ainda hoje estamos em condições
da porque - como já foi dito - o significado biológico das árvores de identificar, é claro que a difusão de um gênero literário não
evolutivas em biologia depende substancialmente da presença pode prescindir de um mercado que favorece um mecanismo
ou ausência deste mecanismo. de tipo C. A família, que garantiu até hoje a transmissão não só
dos genes, mas também da cultura, dá lugar à figura do leader.
10. Um caráter genético pode ser profundamente diferente de
uma tipologia cultural não só para os mecanismos evolutivos 62 L. L. Cavalli-Sforza e M. W. Feldman. Cultural transm/ssíon and evolution: a
quantitativeapproach. Princeton: Princeton University Press, 1981.
170 Alberto Piazza A evolução vista de perto 171

Neste caso, o autor do romance, se o gênero literário exami­ que tende à inovação é condição, bem estudada em nível teó­
nado é o romance. A transmissão da informação acontece do rico, nos casos de patologias hereditárias em populações iso­
indivíduo para mais de um indivíduo. O mecanismo evolutivo ladas. A realidade biológica, como sempre, é mais complexa,
que em genética recebe o nome de deriva genética assume neste porque também a seleção natural entra no jogo se a patologia
contexto uma relevância toda particular. Foi dito antes (§8), hereditária é letal (ou se, menos dramaticamente, mas mais
que em genética a deriva é o fenômeno pelo qual quanto menor raramente, existe uma terapia) com resultados que dependem
forem as dimensões de uma população, tanto mais frequente­ do peso relativo dos fatores. É fácil imaginar que também a
mente os genes tendem a manifestar-se com uma só varian­ realidade do gênero literário sofra a influência de fatores sele­
te. E um fenômeno claramente observável na distribuição de tivos culturais, os quais devem ser estudados em seu contexto
sobrenomes, que podem ser considerados na mesma medida histórico-social. Veja-se, por exemplo, o problema da mudança
dos genes situados sobre o cromossomo masculino Y: nos paí­ de público literário levantado para interpretar o aparecimento
ses com poucos habitantes, a proporção de sobrenomes iguais e o desaparecimento, depois de um período regular de cerca de
tende a aumentar, até torna-se cem por cento no caso limite 20, 30 anos, dos vários gêneros de romance inglês (fig. 9). O
em que a população fosse constituída por um só indivíduo. Em desafio encontra-se em identificar o significado e decompor os
termos evolutivos, a deriva reduz a variabilidade genética da vários estratos do termo “ambiente”, que os estudiosos, sejam
população, daí a sua capacidade adaptativa. de evolução biológica, sejam de outras disciplinas, adoram usar
com indiferente imprecisão. Um desafio mais radical, que vai
Ora, o mecanismo cultural de um indivíduo a mais indivíduos além do problema de identificação dos fatores evolutivos e põe
representa precisamente o caso mais extrem o de deriva antes em crise a formulação de eventuais modelos quantitativos, é
exemplificado. É como se só um indivíduo transm itisse os colocado, enfim, pela possível natureza não-linear da composição
seus genes para toda uma população, com a conseqüência de de tais fatores. A existência de comportamentos cíclicos, como
reduzir, e progressivam ente fazer desaparecer, a variabilida­ aqueles colocados em evidência nas figuras 7 e 8 sobre as formas
de genética. Em outras palavras, a derivação cultural poderia hegemônicas do romance inglês dos séculos 18 e 19, é sempre
tornar muito mais veloz a difusão das informações culturais, um sinal - mesmo em biologia - da presença de fenômenos não-
mas ao preço de possuir menos informações culturais para di­ lineares. O fato de que os fenômenos não-lineares constituam a
fundir. Os dados disponibilizados neste livro induzem a acre­ norma e não a exceção (pense-se, por exemplo, no simples fenô­
ditar que a evolução das formas literárias tenha sido possível meno do crescimento em qualquer disciplina) constitui, hoje, um
até hoje, ou até ontem, por causa de sua elevada capacidade dos maiores limites para a elaboração de modelos quantitativos
de inovação (mutação), bem ilustrada pelo gráfico da figura 9, em todos os campos do conhecimento.
que se refere ao romance inglês de 1740 a 1900. A situação de
equilíbrio èvolutivo que se cria entre derivação genética que
tende à homogeneidade (e por isto à não evolução) e mutação
172 Alberto Piazza A evolução vista de perto 173

A rvores. cessiva pode, analogamente, ser representado por um nó, do


qual se origina uma bifurcação e a árvore em seu conjunto é
11. As árvores geralmente, como as representadas nas figu­ uma sucessão de bifurcações que, ao fim delas (isto é, à extre­
ras 28 e 29, são representações gráficas constituídas por uma midade da árvore que comumente representa o tempo atual)
série de bifurcações sucessivas para descrever do modo mais teremos tantos genes mudados, em relação ao original que
economico possível todas as distancias” recíprocas — ou a aparece na raiz, quantas são as bifurcações mais 1, a menos
diversificação total - entre quaisquer objetos. Por exemplo, que algumas dessas bifurcações sejam extintas por causa da
a prim eira árvore (terceiro capítulo, figura 28) que se encon­ seleção natural. Os genes não-extintos que aparecem na ex­
tra no livro, uma árvore evolutiva de não fácil leitura para tremidade da árvore são chamados tecnicamente de folhas
o leitor que se defronta com essas representações pela pri­ da árvore. O que foi descrito acima é a “árvore filogenética”
meira vez, ilustra um caractere que, no tempo, “diverge” ou do gene, no sentido de que de um gene inicial descreveu-se a
muda em uma sucessão de variantes (na figura de baixo para sua filogênese evolutiva no tempo. A realidade dos dados e,
cima) das quais somente algumas percorrem todas as diver­ todavia, uma outra. Conhecem-se os genes como se apresen­
sificações tornadas possíveis pela seleção natural até hoje (na tam hoje (as folhas da árvore) e se quer inferir, sem que se co­
figura é representado pela linha horizontal mais ao alto). É nheça, as várias passagens que, a partir da raiz, conduziram a
uma árvore que representa a divergência de um caractere no situação atual. A árvore filogenética é, por isto, “reconstruí­
tempo, ou a distancia do caractere em exame no momento da” por meio de um processo de inferência rev ersa, na base da
da observação inicial até o momento da observação final de­ qual dever ser formulado um modelo evolutivo. Por exemplo,
pois de certo tempo. Para tornar mais clara a representação, admite-se comumente que a evolução proceda com a mesma
suponha-se que o caráter seja um gene e que este gene seja velocidade de mudança em todos os ramos da árvore; que as
constituído peda seqiiência de ONA de cinco elementos que mudanças de um nó a outro sejam as menores possíveis; que
indico com AATTC (o nome real a que se refere a letra é não- a seleção natural não aja; que não se possa verificar a mes­
mfluente). O gene evolui no tempo, isto é, muda. Para repre­ ma mudança contem poraneamente em ramos diferentes da
sentar esta mudança em forma de árvore, defino um ponto de árvore. É muito im portante saber que uma estrutura de ár­
partida (que se chama “raiz” da árvore) e uma linha que une vore (tecnicamente chamada de topologia ) pode não refle­
a raiz ao ponto que representa o momento em que acontece a tir a filogênese do objeto em exame, enquanto a sua história
prim eira mudança, que imaginamos no terceiro elemento de não for consistente com as assunções realizadas na origem
T a G. Aconteceu uma mutação do gene AATTC para gene do processo de inferência. Tal conhecimento é ainda mais
AAGTC, por isto, a p artir daquele momento coexistem dois importante hoje, desde que o uso intenso e freqüentemen-
genes AATTC e AAG I C: representa-se tal coexistência com te inconsciente dos computadores tornou possível produzir,
uma bifurcação da árvore, e tal ponto (ou tempo) de bifurcação com facilidade, árvores de qualquer conjunto de objetos de
chama-se “nó” da árvore. Cada episódio de diversificação su­ que seja conhecida uma medida de distancia recíproca. Com
174 Alberto Piazza A evolução vista de perto 175

a maioria dos algoritmos hoje em uso, a árvore se lim itará a interior de muitos genes e não de um só gene. Entretanto,
reproduzir uma topologia em que os objetos mais próximos esta distinção importante entre árvores de genes e árvores de
serão separados por um número menor de nós, e os mais dis­ populações é pouco interessante se as folhas são constituídas
tantes, por um numero maior; mas não podería haver nenhu­ por traços culturais como os dos gêneros literários. Mais in­
ma pretensão de descrição filogenética se o algoritmo usado teressantes são, ao contrário, duas propriedades das árvores
não for congruente com um modelo racional de evolução do filogenéticas usadas na evolução biológica:
qual tenham sido explicitados os mecanismos.
a) Se a árvore é usada para inferir os tempos das bifurcações,
12. A árvore reproduzida na figura 29 é diferente da prece­ é preciso que as mudanças que se verificam ao longo de to­
dente. As suas folhas não são diferentes variações do mesmo dos os ramos, da raiz às folhas, aconteçam com velocidade
caráter ou gene, como na árvore reproduzida na figura 28, constante no tempo. Isto é bastante realístico nas árvores
mas são populações ou famílias lingüísticas diferentes, dis­ de genes, onde o gene especifico varia no tempo com taxa
tribuídas sobre todos os continentes. Quais relações existem aproximadamente constante. Mas não é, ao contrário, rea­
entre os dois tipos de árvores e quais exames devem ser for­ lístico nas árvores de populações, onde genes e indivíduos
mulados para provar a validade filogenética da árvore evolu­ acumulam suas variabilidades e onde a demografia de po­
tiva das populações e/ou famílias lingüísticas humanas? pulações específicas pode acelerar ou atrasar a mudança.
Em outras palavras, cada ramo individualmente tem a sua
E preciso considerar que todo indivíduo da nossa espécie tem taxa de variabilidade específica.
cerca de 30-50 mil genes e que toda população é constituí­
da por muitos indivíduos, cuja história supõe-se comum, pelo b) A árvore da vida real deveria prever não só bifurcações, mas
menos sob o aspecto do assentamento geográfico. Porque todo também trifurcações, quadrifurcações etc. e, ainda mais im­
indivíduo é diferente de outro indivíduo por cerca de dois por portante, a eventualidade de que, uma vez diversificadas, duas
mil (ou 0,2%) do seu DNA, é razoável pensar que a evolução ou mais populações possam reunir-se em uma tram a reti-
no tempo de um gene, de um indivíduo, de uma população, te­ cular onde genes e culturas não só divirjam, mas também
nha taxas de mudança diferentes e, portanto, também árvores convirjam, assim como é mostrado na árvore da cultura de
evolutivas diversas, certamente correlatas entre si, mas de um Kroeber reproduzida na figura 32. Que a árvore da figura
modo imprevisível. A única relação certamente verdadeira é 29 seja uma descrição bastante realística da evolução das po­
que a árvore das populações apresenta bifurcações que tem­ pulações e das línguas humanas, depende do fato de que as
poralmente devem acontecer depois das bifurcações dos genes populações são geograficamente distantes e distintas, e que
dos indivíduos que as compõe: este desajuste temporal é devi­ as famílias lingüísticas têm um número de “empréstimos”
do ao fato de que os indivíduos de uma população diferenciam- recíprocos razoavelmente pequenos. Se alguém quisesse apli­
se dos indivíduos de uma outra por acúmulo de mutações no car a mesma estrutura de árvore às populações européias
176 Alberto Piazza A evolução vista de perto 177

percebería que o modelo das bifurcações sucessivas é in­ tidos em consideração: a prudência também sugeriría que
completo porque a rede das migrações entre os diversos não se incorresse em um sutil vício de acertam ento, no sen­
países imporia uma estrutura reticular que não pode ser tido de que a escolha dos romances policiais e a escolha dos
confinada em uma estrutura de árvore. De um ponto de vis­ indícios deveríam ser não só as mais completas possíveis,
ta prático, entretanto, a elaboração de modelos reticulares é mas também independentes uma da outra.
muito mais complexa, para não dizer que atualmente é im­
possível. E no momento nos contentamos em experimentar A árvore semântica proposta por Orlando em sua obra G li
a hipótese de que os dados sejam explicáveis a partir de oggetti desueti nelle im m a g in i delia letteratura e reproduzida na
uma estrutura de árvore, com a consciência de que se esta figura 33 pode também ela considerar-se como a árvore de
hipótese não for estatisticamente provada a hipótese alter­ um gene, o gene “semântico”, mas não é, pelo menos em mi­
nativa de uma estrutura reticular seria a mais verossímil. nha opinião, uma árvore filogenética. A dimensão do tempo
é substituída pela articulação lógica, e uma correlação muito
13. Os elementos metodológicos precedentes permitem, estreita liga os caracteres tidos em exame com os textos li­
agora, um comentário específico sobre as árvores apresenta­ terários que os documentam. A elegância do edifício lógico e
das no terceiro capítulo. A figura 30 representa a filogênese a sua simetria estão implícitas na seleção do tema (os objetos
da narrativa policial inglesa, e os indícios constituem o ca­ desueti) e na relação dos textos: na metáfora biológica equiva­
ráter morfológico (em biologia, se falaria de “fenótipo”) que le a selecionar um gene raro (por exemplo, o que dá origem a
muda com o tempo. T rata-se de uma árvore do tipo “gene uma doença) e procurar todas as mutações que neste causam
que muda e se pode facilmente reconstruir a sua imagem a doença. Elaborando uma “ra tio ’ capaz de unir uma mutação
biológica imaginando um gene que muda com o tempo. Em à outra. O objetivo final é o de provar a validade da “ratio”,
correspondência a cada mutação, os nós da árvore, enume­ não o de provar o desenvolvimento de uma forma literária.
ram-se as populações (ou os indivíduos) em que se observou Objetivo perfeitamente legítimo e fascinante, desde que se
o gene mudado. A p artir de um exame da distribuição das po­ tenha presente que a representação em forma de árvore não
pulações ou dos indivíduos associados a cada nó - isto é, com desenvolve uma história, mas sim um raciocínio, que deve ser
a mutação que o nó representa - , infere-se o valor “adaptati- organizado e iluminado, prática pouco usual.
vo” da mutação referido ao indivíduo ou à população, ou seja,
se a mutação foi ou não escolhida” pela seleção natural para A última árvore proposta e analisada neste livro diz respeito à
conferir uma vantagem (que é a sua própria presença), ou evolução, de 1800 até os nossos dias, da técnica narrativa cha­
uma desvantagem (a sua ausência) àquele indivíduo ou àquela mada “estilo indireto livre”: reproduzida na figura 34. Retorna
população. Na árvore dos indícios e na árvore do gene, o pro­ o audacioso experimento de descoberta da morfologia compa­
blema reside não na topologia, mas, como o próprio M oretti rada, idéia já expressa a propósito do romance de formação
reconhece, na seleção e na inteireza dos indícios (mutações) (ver §6) de que existe uma relação entre descontinuidade
178 Alberto Piazza A evolução vista de perto 179

espacial e inovação morfológica. Trata-se de um dos resulta­ casual. Isto não porque a seleção natural seja tida como um
dos mais estimulantes deste livro. Nas palavras de M oretti, “a efeito de pouco peso, mas porque ela pode manifestar-se de
idéia de que a gênese de uma nova espécie (aqui, mais modes­ muitos modos diversos e o seu efeito sobre os ramos da ár­
tamente, de uma nova variante estilística) esteja em conexão vore pode ser tanto para fazê-los divergir como para fazê-los
com o deslocamento em uma nova pátria, onde só se sobrevive convergir. Em uma situação tão ambígua e imprevisível as­
aprendendo a mudar muito, e muito rapidamente. Exatamente sim, prefere-se admitir que a seleção natural não tenha efeito e,
como o indireto livre quando deixa o campo inglês, ou Paris, depois, verificar ou falsificar estatisticamente tal hipótese. Ao
e deve aprender a língua de Petersburgo, Aci Trezza, Oviedo, contrário, todas as árvores neste livro representam a evolução
Dublin...” Trata-se, na metáfora literária, daquela “allopatric de diversas formas literárias. São, substancialmente, árvores
speciation, que E rnst Mayr tinha levantado como hipótese nos que fazem seleção natural - sob a forma de sobrevivência ou
anos 1940-1950 para documentar o nascimento de espécies di­ extinção de uma forma mais do que de uma outra - , que é o
versas de pássaros no mesmo habitat por efeito exclusivo da principal manipulador delas. Esta diversa abordagem, respon­
distância geográfica e da falta de trocas genéticas. A adoção de, provavelmente, a várias perguntas. Ao estudioso da evolu­
de um modelo semelhante para novas variantes estilísticas, ou ção biológica interessa de modo particular a raiz da árvore (o
mesmo para traços culturais, pressupõe que os vários ramos tempo de origem), por causa desta inferência a consideração
da árvore não podem trocar informações: no caso em exame direta da seleção natural constitui um obstáculo a ser engana­
do estilo indireto livre, a assunção é garantida pelas desconti- do estudando o efeito de muitos genes cujo peso relativo é mais
nuidades lingüísticas, mas em outras aplicações deve ser docu­ ou menos transcurado para que divergências e convergências
mentada caso a caso. anulem-se alternadamente. Para quem estuda a evolução da
morfologia .literária, interessa não tanto a raiz da árvore (por­
que se situa em uma época histórica conhecida) quanto o seu
Kpilogo percurso, a sua metamorfose. É, por isso, muito mais afim ao
estudo da evolução de um gene do qual se queira saber a na­
14. Os estímulos suscitados pelo livro de Franco M oretti são tureza das mutações particulares e o crivo operado pela sele­
numerosos e fascinantes, e as minhas considerações preceden­ ção natural. Somente hoje, conhecendo o genoma humano e
tes pretendem dar a este livro um testemunho consciente tam­ podendo tirar proveito de tecnologias de biologia molecular
bém de quem, como eu, não pratica a mesma área de conheci­ muito potentes, pode resultar não ilusória a possibilidade de
mento, mas pretende igualmente aceitar os desafios. Com esse percorrer a história de todas as mutações de um gene através
espírito, gostaria de term inar com uma reflexão. As árvores fi- da sua (e da nossa) evolução. Como um grande desafio, as hipó­
logenéticas que representam a evolução biológica pressupõem teses apresentadas neste livro constituem para mim um estí­
uma ausência e uma presença: a ausência do efeito da seleção mulo para afinar os instrumentos de leitura de nossa evolução.
natural e a presença de mutação, migração e derivação genética Ficaria muito contente se o fosse também para os leitores.
180 Franco Moretti índice de figuras 181

índice de figuras 21. Berthold Auerbach. Histórias de vilas da Floresta Negra


(1 8 4 3 -5 3 ).................................................................................................... 87
22. O s p ro ta g o n is ta s do ro m a n c e p a risie n s e e os seus

G rá fic o s o b je to s d e d e se jo .................................................................................... 9,7


23. M a r y M itfo rd . O ur Village, v o lu m e III (1 8 2 8 )........................... 99
1. A a scen são d o ro m a n c e , sécu lo s 18 a 2 0 ...........................................17 24. M a r y M itfo rd . O u r V illa g e , v o lu m e V (1 8 3 2 )............................ 100

2. O ro m a n c e n a In g la te r ra , 1710-18.50................................... 20 25. G e o g ra fia do lu d ism o (1 8 1 1 -1 2 ) e d o s m o tin s

3. O d eclín io d o ro m a n c e : Ja p ã o ............................................................... 25 de “C a p ta in S w in g ” (1 8 3 0 )............. !01

4. O d eclín io d o ro m an ce: D in a m a rc a .................................................... 26


26. Mary Mitford: quadro sintético dos volumes I, III e V
5. O d eclín io d o ro m a n c e : F ra n ç a e I tá lia ................................ 27 de O u r village. ...................................................................... 102

6. Im p o rta ç ã o d e liv ro s in g le se s p ela ín d ia .........................................28 27. C ra n fo r d ................................................................................................... 11

7. A s tr ê s fo rm a s h e g e m ô n ic a s d o ro m a n c e ing lês,
1 7 6 0 -1 8 5 0 .................. 35
8. C o ta de m e rc a d o d as fô rm a s h e g e m ô n ic a s do A rv o re s
ro m a n c e in g lês, 17 6 0 -1 8 5 0 ................................................................. 36
9. O s g ê n e ro s ro m a n e sc o s in g leses, 1740-1.900................................ 39 28. A d iv e rg ê n c ia d e c a ra c te re s ........... 112

10. O s g ê n e ro s ro m a n e sc o s in g leses, 17 4 0 -1 9 0 0 29. Á rv o re s lite rá ria s , á rv o re s lin g u ís tic a s ........................................ 1 16


30. O s in d ício s e a g ên e se da n a rr a tiv a policial. 119
(d u ração , em a n o s)....................................................................................46
1 1. C o ta de m e rc a d o d o s film es cô m ico s a m erican o s, 31. O s indícios e a g ên ese da n a rr a tiv a policial:

19 8 6 -9 5 ........................................................................................................ 51 S tra n d M a g a z in e , 1890 -9 9 .......... 122

12. O ro m a n c e in g lês, 1800-29: h o m e n s e m u lh e re s ..........................54 32. A á rv o re da v id a e a á rv o re d a c u ltu r a ......................................... 129


33. A á rv o re se m â n tic a de Francesco Orlando..........................
34. O e stilo in d ire to liv re na n a rr a tiv a m o d e rn a ,

M apas 1 8 0 0 -2 0 0 0 ................................................................................................ 138

13. T h r e e M ile C ro ss................................................................................... 66


14. M a r y M itfo rd . Our village, vol. I (1 8 2 4 ).......................................... 67
15. H e lp s to n em 1809, a n te s d as d e m a rc a ç õ e s......................... 70
16. H e lp sto n em 1820, d ep o is das d e m a rc a ç õ e s.................................. 71
17. O siste m a dos “lu g a re s c e n tra is ”, se g u n d o C h ris ta lle r. 77
18. M a r y M itfo rd . Our village : a divisão espacial d o tra b a lh o .........78
19. Jo h n G a lt. Annals o f the parish: p rim e iro s d e z an o s
(1 7 6 0 -6 9 )...................................................................................................... 82
20. Jo h n G a lt. Annals o f the. parish: éiltim os d ez an o s
(1 8 0 1 -1 0 ) ................................................................................................ 84
182 Franco Moretti (ndice onomástico 183

índice onomástico James, Flenry, 147 Pasanek, Brad, 37


Jane Austen and the war of ideas, 45 Pavel, Thomas, 130
Jauss, Hans Robert, 38 Peasants into Frenchmen, 145
Adventures o fa man ofScience, The, 124 Darwin, Charles, 111,112,113,114,1 1 7 , Joshi, Pria, 15, 28 La pensée du roman, 130
Allende, Salvador, 149 121, 125, 127, 129, 136, 162 Joyce, James, 142,147,148 PerezGaldós, Benito, 138
Alliston, Abril, 50 Dawkins, Richard, 125 Persuasão, 21
Annals ofthe parish, 79,82,84,107 delia Volpe, Galvano, 8 Kelly, Gary, 45, 59 Piazza, Alberto, 115,116,155
The assyrian rejuvenator, 126 Denning, Michael, 27 Kroeber, Alfred, 128,129,142,175 Pomian, Krzysztof, 13,53
Asturias, Miguel Angel, 138 Dickens, Charles, 52 Kuhn, T., 32, 38 Proust, Marcei, 147
Atlas do romance europeu, 65,92,157, Dionisotti, Cario, 63
168 Dostoiévski, Fiodor, 142,147,149 Lafon, Henri, 63 Race with the Sun, 118
Auerbach, Berthold, 76, 85,86,87,88, Doyle, Arthur Conan, 58,117,118,119, Langton, John, 101,106 Radcliff, Ann, 52
89,96 120,121,137 Lawrence, D. H., 138 Ragone, Giovanni, 15,17,19,27
Austen, Jane, 45,52,54,137,139 Duncan, lan, 59,60,89 Lévy, Jacques, 35, 94 Raven, James, 15,17,20,29, 30, 58
Aventuras de Sherlock Holmes, As, 118 Edgeworth, Maria, 52 Licensing Entertainment, 50 Regenta, La, 90,143
Edging women out, 52 Life of Pill Garlick, The, 126 The return ofthe native, 78
Bakhtin, Mikhail, 63, 76,140,141,142 Eliot, George, 52 Liseurderomans,Le, 21 Roa Bastos, Augusto, 148,149
Balzac, Flonoré de, 92,95, 96 The english novel in the romanticera, 30,59 Londres, 75,80,81,89,104 II romanzo, 9,17,19,25,27, 35,50,139,
Banfield, Ann, 149 Erlich, Victor, 39 157,162
Barrell, John, 68,69, 70, 71, 73,81,106 Eu o supremo, 148 Madame Bovary, 64
Barthes, Roland, 17 Malavoglia, Os, 143,144,153 Salinger, J.D., 162
Basalla, George, 128,130 Febvre, Lucien, 53 Mann, Thomas, 86,147 Scott, Walter, 35, 52,53, 54
Batouala, 143 Feldman, Marcus, 169 Mannheim, Karl, 41,42 Sklovskij, Viktor, 32, 33, 36,40,104,119,
Histórias de vilas da Floresta Negra, 84,87, Flaubert, Gustave, 92,140 Mansfield park, 139 151
96,153 Fortin, Nina, 52 Maran, René, 144 Spitzer, Leo, 143
The Book in Japan, 25 Mayr, Ernst, 124,136,150,151,178 Strand Magazine, 120,122,124,125
Bouvard e Pécuchet, 140,148 Gallagher, Catherine, 37, 59 Meade, L. T„ 118 A estrutura das revoluções cientificas, 32
Braddon, Mary Elizabeth, 52 Galt, John, 79,80, 82,84,85,86 Mendel, Gregor, 162
Braudel, Fernand, 14,30, 31,45 Garcia Márquez, Gabriel, 149 Menozzi, Paolo, 115,116 Teoria delia prosa, 33,36
fI
Brecht, Bertolt, 49 Garside, Peter, 15, 20,29,30, 54,58,59 Mentré, François, 41,43 Thackeray, William Makepeace, 52
Brigitta, 76 Gaskell, Elizabeth, 52,88,103,104 Mitford, Mary, 64,66,67,69, 72, 73,74,75, Thibaudet, Albert, 21
Bronté (irmãs), 52 O general em seu labirinto, 149 78, 79, 86, 88, 96, 99,100, 102,103,104, Thompson, D'Arcy, 96,97,102,106
Bulwer-Lytton, Edward, 52 Générations sociales, Les, 41,43 Moedeiros falsos, Os, 151 Tilly, Charles, 88
Burney, Francês, 46,52 Geografia e storia delia letteratura italiana, 63 TheMonk, 21 Tuchman, Gaye, 52
Butler, Marilyn, 45 Germinal, 144,145,146 Morris, R. J., 101,106
Gide, André, 151 Mossa delcavallo, La, 32, 33 Ugo di SanVittore, 160
Carpentier, Alejo, 149 Gilmore-Lehne, William, 16 Moule, Thomas, 103 Ulisses, 148
Castelo de Otrano,0, 32 Goethe, Johann Wolfgang von, 19,97,124 Musil, Robert, 7, 66, 105,106
Castle Rackrent, 33 Gould, Stephen Jay, 114,115,127,130 Vargas Llosa, Mario, 149
O apanhador no campo de centeio, 162 Green, Katherine Sobba, 46,58 Novalis, 152 Vasconcelos, Sandra Guardini, 44
Cavalli-Sforza, Luigi, 115,116,169 Verga, Giovanni, 144
Cazamian, L., 37 Halifax, Clifford, 118 Oliver Twist, 21
Ceeilia, 46 Flardy, Thomas, 48, 78,89
í Warner, William, 50, 55
On growth and form, 96,102,106
Cerreti, Cláudio, 92,93,94 Hilda Wade, 124 Orgulho e preconceito, 126 Waverley, 33,153
Christaller, Walter, 74, 75, 77, 78 História e geografia dos genes humanos, 115 Origem das espécies, A, 111,117 Weber, Eugen, 145,146
Clarín, Leopoldo Alas, 138 História ou literatura?, 17 Our village, 64,65,66,67,68,69,72, 75, Wilhelm Meister, 124
The country and the C ity, 63 Hombres de maiz, 143 76, 78, 91, 94,97,98,99,100,102,103, Williams, Raymond, 63
Cranford, 88,103,104,105 í
104,107 Woolf, Virgínia, 147
Crime e castigo, 141,148 The idea oflandscape and the sense of
Cultural transmission and evolution, 169 place, 68, 70, 71 Pamela, 21,32 Zeitschrift für romanische philologie, 137
lllich, Ivan, 160 Paris, 89,93,94,95,151,178 Zola, Émile, 144

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