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19xx

victor h.
azevedo
dedicado a toda gente
nascida no ano de 19xx.
“Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. - é preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar”

-Herberto Helder

“item: Joy
description: This drug makes you feel nothing.
Use it in a pinch.”

- Lisa: The Painful

“[...]but the gun has no trigger.”

-Dirty Projectors
19xx

pequenos desleixos no cultivo de amores


ervas daninhas florescendo entre as artérias
e a varanda cerúlea que já não mais

(deseja cancelar o exilio


e sair do apartamento?)

andar de bicicleta: criar omoplatas de aeroplano


até que a corrente torne-se fluído
& os pneus murchem
& e os raios não saiam ao amanhecer.
então divorciar-se da bicicleta.
caminhar com as mãos bifurcadas
meses depois ver a bicicleta
abraçada pelo avanço irrefreável do hortelã
e chorar lágrimas de madrepérola.

cardume de sardas enviou uma foto:


um poodle está deitado sobre a cama de sua dona
o poodle está triste
o poodle escuta ao fundo uma música do Simon & Garfunkel
o poodle não sabe o significado da palavra agridoce.

segundas intenções escoltadas dentro da roupa.


teu cabelo carmim, os lábios abandonados de sal:
prata trêmula que escorre das minhas pernas.

números primos que se casam e formam um par


assim como Dostoiévsky
em um dia qualquer onde os cães comiam flocos de neve
contou nos próprios dedos
que 2 + 2 = 5.

coração maçã diz: por você faria dos meus braços travesseiros.

não sei te explicar o porquê


não sei te explicar o porquê desse nosso esgotamento
o que essas mãos fazem ainda em cima da mesa de jantar?
o que meu sexo faz guardado dentro da tua lista de afazeres?
se eu te contar uma piada você conserta meus ossos
sobressalentes?
tinha um arbusto e um polvo indo pra um bar
eles entram no lugar
o polvo pede um daiquiri
o arbusto pede uma cerveja
o polvo diz pro arbusto:
— todo oceano, apesar de seu obeso diâmetro, desagua num
copo de vidro, como esse.
o polvo sai de cena
o arbusto não tem folhas.

tua persona é um cristal de bismuto.


não sei explicar o porquê.

agora só consigo pensar em Herberto Helder


hospedado no quarto de um dos meus parcos amigos.
imagino ele sentado na cama, com as mãos sobre os joelhos
respirando ruidosamente
como um ar condicionador velho,
igual suas últimas fotografias davam a entender
pela sua expressão de lêmure, de matéria bruta,
de ex-presidente de uma pátria repleta de pimenteiros.

você sabia que a via láctea tem esse nome por ter a cor de
leite?
saber disso me lembra daquele dia,
quando nós ficamos sozinhos no meio do campo,
o sol bovino torrando nossos cabelos.
sem ninguém por perto
(talvez só um rouxinol ou um bezerro nos espionasse)
e você me disse que queria que voltássemos a ser nômades
como eram os nossos antepassados indigentes
que queria que fossemos criaturas nuas
queria que morássemos numa casa de taipa
e que tua pele
fosse como leite
para os terremotos.

tua voz: um dedilhado


em GMaj7.

teu tato: uma antologia


de novíssimos pássaros
recém-descobertos.

tua coragem: segue


em anexo todo teu inventário
que ficou aqui em casa.

não sou um hikikomori


porque não aguento o peso desse telhado
por mais de três dias sobre meu cocuruto
e também porque das minhas gengivas
sai um azedume nada apetitoso quando estou
sozinho acima da média desta instituição
que é a vida.
mas se não fosse por isso
eu viveria absolutamente feliz
num acampamento erguido sobre minha cama.

Monsiuer Merde caminha pelas ruas secundárias desta cidade


comendo amuletos de papeis coloridos
que chamamos costumeiramente de dinheiro.
dormindo no colo das mulheres de bronze
furtadas à noite por gatos estelionatários.
procurando gerânios nos cemitérios para abastecer-se
mas encontrando somente flores de isopor.

meu sonho seria que o Leos Carax dirigisse


uma temporada da minha existência.

arbusto sanguíneo diz: me desapeguei da recordação que tua


boca de ornitorrinco me traz.

quem me dera ter a coragem volátil desses poetas lusitanos


para poder tocar a cabeça de um leopardo louco.
não me basta esse medo pueril
de encontrar possivelmente num domingo qualquer
árvores repletas de lombrigas sobre suas copas.

cantarolo o hino municipal de rustboro city


enquanto caminho sob as nuvens desmanteladas
que os anônimos deuses com olhos de miçangas
pisotearam na catatônica noite de ontem.

o enxoval deste solilóquio contém:


tijolos com osteoporose
ouro de tolo
retratos do mar bravio
suco de goiaba
&
mobília cardiovascular.

queria te compor uma música no violão


sem a corda mizinha, Ian.
falar sobre Isabela enterrada
em alguma das ilhas do saaristomeri,
falar sobre a desistência
de ter um fac-símile das asas de ícaro
(mesmo que uma certa holandesa diga que “gosta de ícaro
que sabia que a cera se iria derreter
e no entanto voou em direção ao sol.”)
queria que a canção fosse breve, mas que
falasse sobre a burocrática odisseia
que é estar algemado a um nome impróprio,
que falasse sobre suas acerolas,
mas sobretudo, que falasse sobre como é difícil
beber cerveja em um canudinho.
córrego de urina diz: desculpe a ausência. ando passando por
algumas turbulência e não consigo dissecar nem mesmo as
cortinas do meu dormitório.

meu humor: uma fotografia de Roberto Bolaño


em frente a um fundo verdejantes de plantas
pingadas por flores nupciais.

quero um milk-shake de 5 cents


quero um revólver sem gatilho
quero um adeus em forma de hirudínea
mas o pálido minuto de agora não permite tais ostentações.

tenho uma saudade umbilical destas coisas bonitas


que tu falava quando estava mergulhada em lençóis até o
pescoço.
e quando digo pescoço só lembro de quando estou traduzindo
algo em espanhol
e me aparece a palavra cuello
que significa pescoço
e acho esse um dos desencontros mais bonitos

porque teu pescoço era como um colo pra mim


quando eu ainda calçava sapatos nº 38.
meu humor: uma fotografia de Julio Cortázar
sentado no chão com sua câmera analógica
e com os olhos sorridentes para um gato rajado.

estou triste
e não há material de construção
contido nessa pequena catástrofe corriqueira.

lá vamos nós de novo:


não guardo mais teus afetos bordados
palavras que serviam de petróleo a minha esperança
hoje são pequenos investimentos grisalhos
que não comportam nem os barulhos dos meus cílios quando
caem
maduros.
uma mamoeiro que nasceu no toalete.
o clitóris atado à garganta do sino
que geme baixinho
pra não despertar o vigilante noturno
que tem
entre o vão de cada morador da sua arcada dentária
um naco de uma escuridão quente.

diz que ama o glitch que meu rosto faz


quando noto que guardas um beijo
na minha caixinha de antidepressivos.
diz que meu pau é um monumento à feiura
dos brinquedos gelatinosos.
diz que pareço uma criança chuvosa quando estou distraído.
diz que meu abraço custa a acabar em sábados fantasmagóri-
cos
diz que eu trepo como se tivesse eletricidade
ao invés de sangue no meu corpo
diz que eu sou chato e não poeta

porque é isso que eu sou


e sempre vou ser.

às vezes a mudez é reciproca,


e está tudo bem.

dattebayo,
diria uma certa raposa enluarado
com beijos ainda inéditos em português pt-br.

você se lembra daquela noite, numa rua sem nome,


quando meus punhos tinham fome e estávamos
anestesiados de tanto chorar e beber escondidos?
nossas sombras de suor esgueirando-se no chão
os pés varrendo o silêncio tremeluzente
e a paisagem
era como um teste de rorschach
:
turvo

turvo mundo turvo.

comer amoras na parada de ônibus.


os dedos vermelhos, a Poesia Completa
de Cesárea Tinajero na mochila, a dúvida
de saber quantos gigabytes cabem
num umbigo.

não se preocupe com o destino dos teus cactos,


fevereiro se encarregará de murchar seus lábios amorangados.

esse idioma
esparramado por essas páginas
é meu encefalograma.
cavalo com perfume de água cristalina diz: por que
você fala como se estivesse escrevendo um poema?

vez em quando me esmurra uma saudade


do açúcar dos teus sorrisos — adoçante que usava
eu nas mágoas destiladas, ponte que me possibilitava
atravessar sete bairros e acariciar aquele teu manjericão
que até hoje guardo algumas folhas ao lado da minha cama
para quando me avizinhar uma esfinge pós diluviana
eu tenha com que temperar minha coragem.

paquidermes & microfones & capelas.

todos os meus amigos são tridimensionais


e fazem psicologia ou letras.
estou só e eles comem no restaurante universitário.
estou só e já não lembro que gosto tem a carambola.
estou só com um novo espaço vazio na minha escrivaninha.
antes de tudo comparsas. depois amantes.
conversas com germes que florescem nos meus bestiários.
cadernos calejados por tantas epígrafes e navalhas.
tramito pela mastigação desta maravilha
que é ter ouvidos reflorestados.
me cansei de desossar
este animal sentimental.

o sentido dessa tragicomédia são os aminoácidos.


a primeira versão deste livreto
foi publicada virtualmente
em fevereiro de 2017, pela la
bodeguita edições, e agora,
em janeiro de 2018, reeditado
em co-edição com a munganga
edições.

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