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Os furos de currículo

Estudos Clássicos, de dois semes- do país: cada professor usava um


A falta de metodolo- tres. Eles leem textos, depois têm método próprio, inviabilizando
gia adequada ainda a poesia lírica e o teatro. É uma que o aluno acompanhasse a mes-
matéria que geralmente eles gos- ma linha de raciocínio por todo o
é um dos fatores que tam bastante”, observa. A refor- curso. Foi para resolver esta ques-
desistimula os estu- mulação foi eficaz: com índices de tão que Furlan apostou na inova-
40%, em 1998, a desistência caiu ção do . “Cada um usava
dantes universitários para apenas 9%, seis anos depois. seu método, e a gente percebeu
a darem início ou Os dados são da dissertação que havia diferença. Por sugestão
da pesquisadora Charlene Miot- minha, padronizamos um pouco
continuidade aos es- ti, da Universidade Estadual de mais”, conta. Além de permitir
Campinas (Unicamp). O peque- uma uniformidade no ensino, o
tudos do latim no vínculo que os alunos criam método causou uma revolução
POR MARIANA HILGERT com o passado romano durante na própria relação com os alunos.
os estudos e até mesmo a desor- “O latim que era dado demorava
ganização do corpo docente são muito tempo para dar uma noção

E
m 1996, mais de 30 anos
após o lançamento de sua alguns dos problemas levantados do sistema ao aluno. Agora, já na
primeira versão, foi apro- pela pesquisadora. Mas foi a fal- primeira fase, ele começa com a
vada a nova LDB, concedendo às ta de uma metodologia de ensino leitura de uma comédia de Plauto
universidades, o direito de decidir unificada, outro desmotivador dos e a língua já é apresentada de uma
sobre o ensino da língua latina alunos, que deu origem ao objeto forma mais completa”, garante.
nos cursos de Letras. Enquanto principal de pesquisa de Miotti: o A baixa carga-horária do latim
algumas excluíram a disciplina, método . em grande parte dos cursos de Le-
diversas instituições, como USP, Lançado em 1986 pelos profes- tras seria um fator que poderia jus-
Unicamp, Unesp e UFSC, man- sores Peter Jones e Keith Sidwell, tificar os poucos alunos que se in-
tiveram-na no quadro curricular. a estrutura dele se baseou na do já teressam, ao fim do curso, por uma
Mas havia, entre elas, um proble- existente . A ideia área tão específica. Na tentativa de
ma comum: a desistência por par- dos dois projetos era a mesma: criar ir contra esse fluxo, a UFSC é um
te dos alunos. uma forma de ensinar os idiomas exemplo único no país: hoje, ela
Para tentar melhorar os ín- para adultos e “quase-adultos” estabelece, no currículo do curso
dices, a USP, única universidade que permitisse um acesso rápido e de Letras, 72 horas-aula de Latim,
no Estado de São Paulo que pos- eficaz a obras originais de autores diferente do padrão, que é de 45
sui um departamento destinado da época. Escrito, inicialmente, horas. Mas, segundo a professora
exclusivamente aos estudos clás- em inglês, o método continha um Maria Helena de Moura Neves,
sicos, repensou a forma de in- conjunto de textos e um livro de a carga-horária não explica o bai-
troduzir o latim aos alunos. Para exercícios, teorias gramaticais e xo número de estudiosos da área.
isso, a instituição criou, em 1998, vocabulários. Em 1994, a ideia foi Para ela, o que não acontece hoje
a disciplina de Introdução aos Es- adotada pela Universidade Fede- é, justamente, o que aconteceu na
tudos Clássicos (IEC). Apesar de ral do Paraná (UFPR). Mais tarde, sua época: o incentivo ao estudo
já estar aposentada quando a IEC outras instituições também opta- do latim ainda antes do ensino su-
foi implantada, a professora Zélia ram pela novidade, como a UFSC, perior. “Um aluno começando na
de Almeida Cardoso reconhece a que, em 2002, passou a aplicar a universidade, vai sair com umas
validade da escolha feita pela ins- metodologia em sala de aula. pinceladas”, opina. “Não é ques-
tituição. “Os alunos que entram Um dos maiores obstáculos tão de carga horária, é questão de
em Letras têm algumas matérias dentro da universidade catarinen- tempo de formação, é questão de
obrigatórias, como a Iniciação aos se se repetia em outras instituições período que a pessoa fica exposta

De repente, latim

ulo O tênis de solado baixo, as meias listradas – sutil-


mente à mostra –, e o casaco de moletom enquadram
Fernando Coelho, 29 anos, no estereótipo perfeito de
aluno universitário – coisa que ele realmente é. Mas
dois de anos de existência do grupo, os três se reu-
niam semanalmente para estudar duas horas de la-
tim, seguidas de duas horas de grego. Para ele, que
era estudante de Ciências Sociais, esse interesse por
será que também o encaixariam dentro da imagem idiomas teve uma razão bem pontual. “Quando um
usualmente feita acerca de professores de Latim e professor me falou que os professores de Ciência So-
Grego? Ele mesmo reconhece que não. ciais não sabiam falar e não conseguiam ler em outras
Quando entrou para o curso de Economia da Uni- línguas, comecei a estudar Grego sozinho. Comecei a
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aos 21 me entusiasmar. Queria ler Platão e perguntei para a
anos, Coelho já se interessava pela cultura e história professora se ela conseguia ler sozinha. Ela riu”, re-
do latim, mesmo sem saber por quê. “Eu sempre tive corda.
uma afinidade inexplicável com o mundo antigo, em O estudo do Latim rendeu frutos para cada um de-
especial com o mundo romano. As imagens de Roma les. Costa disse que sentiu muita diferença no uso do
e a língua de Roma me fascinavam e eu sabia que, de português. Já Coelho levou mais adiante o gosto. Aca-
alguma forma, um dia eu as estudaria”, conta. Foi o bou terminando Filosofia e pediu retorno para o curso
que decidiu fazer um ano depois do vestibular: trocou de Letras-Francês, que concluiu em 2008. Ao mesmo
os cálculos pela Filosofia e mergulhou no latim. tempo, entrou no mestrado em Estudos da Tradução,
Coelho aprendeu o idioma sozinho, mesmo saben- na própria UFSC, defendendo a sua dissertação no co-
do que ele era oferecido como disciplina optativa no meço desse ano. Hoje, ele é professor substituto de
curso de Letras. Ele até chegou a assistir a uma aula Grego, aluno do curso de Letras-Italiano, tem um gru-
de cada professor. “Mas essas aulas me fizeram saber po de extensão de Latim iniciante e já está com ideias
que o meu ritmo de estudo era muito diferente dos de aulas para o próximo semestre. Nada planejado,
alunos”, relembra. Em 2005, ele comentou com um como ele admite. “Eu não tinha ideia dos impactos e
amigo do interesse que tinha em criar um grupo de consequências que o estudo do latim e grego teria na
estudos de Latim. Os dois levaram adiante a ideia, que minha vida. As pessoas que são levadas a ele por um
atraiu outros interessados. conselho não se dão conta, de fato, do que significa
Paulo Costa foi um deles. Ele relembra que, nos aprendê-lo.”

a este estudo. De fato, vai haver direcionar pessoas para um certo professor, eles ainda não têm uma
aqueles fatos de vocação. Eles po- rumo. “A questão não é dar estudo “combinação ideal de abrangência
dem se tornar muito bons, mas pra elite, é conseguir dar alguma vocabular e apresentação sistemáti-
como formação, eu acho tarde”, coisa da elite pro povo. Eu gostaria ca das diversas acepções, constru-
conclui. que o povo fosse elitizado. Eu acho ções, regências e exemplos”.
que isso é acrescentar”, reflete. Mas quando há muitas lacunas
Dificuldades No blog que criou para com- – não há tradução e os dicionários
Além de questões pontuais refe- plementar suas aulas, o professor são confusos – e recorrer a obras es-
rentes a escolhas de cada instituição, Adriano Scatolin, da USP, aponta trangeiras se torna inevitável, surge
há outros motivos que dificultam o outros fatores, de cunho mais prá- mais um entrave: o idioma. Scato-
ensino do latim na graduação, tanto tico, que também inviabilizam o lini afirma que é possível se dedicar
no curso de Letras, como disciplina fortalecimento do ensino e da pes- aos estudos de latim sem conhecer
obrigatória, quanto no próprio cur- quisa na área do latim. Em primeiro outras línguas, embora, como ex-
so de licenciatura. Para Neves, um lugar, ele cita a falta de traduções. plica, “isso represente uma grande
dos entraves é a elitização do latim. Segundo ele, muitas obras de auto- limitação, pelo menos com nossa
“No Brasil, não tem jeito de não ser res romanos ainda não existem em disponibilidade atual de material
considerado de elite. Todo mundo português – o que há, normalmen- básico de trabalho”. A responsabili-
vai dizer: para quê? E a explicação te, são versões feitas a partir de ou- dade, dessa vez, recai sobre o aluno,
do ‘para quê?’ é de elite mesmo”, tra língua. que deverá trabalhar com uma si-
afirma. Essa explicação, segundo Outro empecilho seria a falta tuação irônica: antes de entender a
a professora, diz respeito aos obje- de dicionários bons à venda, hoje, língua-mãe, terá que compreender
tivos do latim. Ensiná-lo significa nas livrarias brasileiras. Segundo o as línguas-filhas.


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