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Susan Grey, Martha Herr – Campus de São Paulo – Instituto de Artes – Licenciatura em Educação Musical –
susangrey@gmail.com – PIBIC/CNPq.
Palavras-chave: Dalcroze; Meredith Monk; flexibilidade; técnica vocal.
Keywords: Dalcroze; Meredith Monk; flexibility; vocal technique.
RESUMO
1. INTRODUÇÃO
A partir da década de 1950, a voz na música ocidental é caracterizada por uma nova estética.
A incorporação do ruído como parte integrante de linguagem vocal permite a exploração de todas
as suas possibilidades sônicas. A chamada voz contemporânea rompe com a tradição do bel canto e
cria, consequentemente, novas técnicas de emissão vocal. Ela apresenta um corpo que busca
integrar-se, rompendo com a tradição da dualidade corpo/mente, voz/corpo, interagindo, assim, com
outras linguagens artísticas e outras mídias na performance.
A concepção da voz contemporânea requer flexibilidade por parte de compositores,
intérpretes e ouvintes/espectadores. Entendemos esta flexibilidade como uma adaptação e busca por
auto-realização em um cenário de mudanças radicais devido a inovações tecnológico-científicas,
inovações estas que ocorreram a uma velocidade espantosa durante o curso do século XX.
A flexibilidade da voz é ainda hoje pouco explorada nas artes performáticas, e a relação
corpo/voz fragmentada. “Precisamos então começar por libertar a própria escuta e a concepção que
temos do corpo, para podermos entender e fruir a voz-música contemporânea” (BECKER, 2008, p.
13). Para investigar essa relação com o corpo entendemos que “A Rítmica tem vantagens musicais
específicas já que aborda o estudo da música através da escuta ativa com o uso dos instrumentos
musicais mais básicos e naturais da criança: o corpo e a voz” (VANDERSPAR, 2005, p. 4).
O presente trabalho investiga a flexibilidade da voz na música performática contemporânea
objetivando uma reflexão sobre a união de voz e corpo na performance. Para isso, dois artistas se
encontram: Meredith Monk e Emile-Jaques Dalcroze.
2. OBJETIVOS
3. METODOLOGIA
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Meredith Monk (1942-) é uma artista americana pioneira na chamada técnica vocal extendida
e na performance interdisciplinar. Em suas notas sobre a voz ela se refere a uma voz dançante, a voz
tão flexível quanto a espinha. A voz seria um corpo sólido e Monk um coreógrafo. Para a artista, a
voz é uma linha direta para as emoções, emoções para as quais não temos palavras (JOWIT, 1997).
Dalcroze (1865- 1950) foi um compositor e pedagogo austríaco. Ele acreditava ser possível,
através da música, unir o velho princípio de dualidade entre o Homem (inteligência, emoções) e a
Matéria (corpo, instintos) para que o homem pensante não fosse mais uma pessoa separada do
homem físico (BACHMANN, 1991, p. 12). Ele leva adiante seu ideal educacional e desenvolve
uma abordagem baseada na percepção dos elementos estruturais da música através do corpo: a
Eurritmia.
Monk tem contato com a Eurritmia em meados da década de 1940 quando aos 4 anos,
devido a uma deficiência na visão, ela passa a ter aulas dessa abordagem para coordenar os
movimentos do lado direito com os do lado esquerdo do corpo. Devido à sua limitação física, ela
precisou criar seu próprio vocabulário corporal para a performance. Por volta de 1965, através de
seu espírito investigativo, sua flexibilidade e sua curiosidade, ela fez o mesmo com a voz buscando
expressar emoções que não conseguimos expressar com palavras. Ela cria um vocabulário vocal
onde tudo é possível: cliques, gemidos, risadas, choros, uivos, alongamento da tessitura,
caracterização de gênero e idade, entre outros.
Através da bibliografia, de workshops (com Meredith Monk e no Institut Jaques-Dalcroze) e
de entrevistas analisamos duas das composições de Monk com o intuito de investigar a flexibilidade
vocal. Selecionamos uma peça para voz e piano, Biography, para ilustrarmos algumas das
características da voz contemporânea e uma peça para coro de vozes mistas, Panda Chant II, para
relacionarmos a flexibilidade com a abordagem da Eurritmia de Dalcroze.
Algumas Características da Voz Contemporânea em Meredith Monk. Em Biography
(composta em 1972 para a ópera de sua autoria “Education of the Girlchild”) identificamosalgumas
características da voz contemporânea: 1) rompimento com o bel canto: uso de sílabas, onomatopéias
e ruídos, ou seja, a música vocal não está mais associada `a palavra; canto sem vibrato (o vibrato é
utilizado para dar dramaticidade `a expressão e neste caso transmite angústia); uso de inspiração e
expiração; uso de diferentes regiões da extensão vocal; e uso dos registros voz de cabeça e voz de
peito (a junção dos dois registros é reconhecido na literatura sobre técnica vocal como sendo uma
dificuldade e, portanto, um trabalho necessário de ser realizado). 2) uso de técnicas vocais
extendidas: gemido; inspiração e expiração, ou seja, sons que produzimos para nos expressar (como
choro, risada, clique com a língua), Monk os usa musicalmente. 3) variação de timbre através de:
mudança de vogais; ressonância nasal e não nasal; alternância entre emissão com voz de peito e
emissão com voz de cabeça.
Panda Chant II e a Relação com a Flexibilidade na Eurritmia de Dalcroze. A segunda
composição selecionada, Panda Chant II, é uma peça para coro de vozes mistas, composta em 1987
para a ópera “The Games”. O cenário é um planeta imaginário onde seus habitantes, sobreviventes
de um ataque nuclear, praticam jogos como rituais para preservar a cultura da civilização. Nesta
peça identificamos o desafio de coordenar voz, percussão de pés e mãos, movimento dos pés e
deslocamento no espaço. Todos os elementos citados compõem uma polirritmia corporal e vocal. A
postura corporal deve ser rígida apesar de transparecer um ambiente divertido, característico de um
jogo. A peça tem início com todos os performers em roda cantando a palavra Panda, que se mantém
no mesmo pulso até o fim da peça. Em seguida os pés são adicionados alternadamente em
movimento lateral com durações de curto e longo (colcheia seguida de semínima alternando os
lados direito e esquerdo) marcando o compasso 6 por 8. Daí segue-se a entrada das outras vozes,
compondo uma polirritmia (por exemplo: Ah, Ahs têm seu ciclo em 11 por 8 e Pandas em 8ª. um
ciclo em 3 por 4 seguido de 5 por 8, considerado a partir do estabelecimento de um padrão
repetitivo). Em adição ao ritmo, o som é produzido de forma nasal (Ah, Ahs), com voz de peito e
voz de cabeça (beedileedeep didips), voz de peito (Baraupares) e voz nasal com articulação laríngea
(Ahs shot gun). Antes dos Ahs shot gun são adicionadas palmas (duas semicolcheias no tempo 5 do
6 por 8 percutido pelos pés, junto `a última batida dos pés). No final é adicionado um deslocamento
do círculo para o lado direito, conforme os pés vão se movimentando.
Nesta peça o performer, na relação com si mesmo e com o grupo, necessita de: atenção (os
novos elementos vão sendo adicionados ao longo da peça e tanto entradas como paradas devem ser
precisas); memória (saber quando entrar, com qual pé e para qual lado e lembrar a relação tonal
entre as vozes); coordenação motora; independência de cada lado do corpo; e independência da voz
em relação ao corpo (polirritmia entre voz e pés).
A Eurritmia de Dalcroze desenvolve a flexibilidade e a coordenação motora através de
estímulos musicais que demandarão do corpo respostas com relação a: adaptação (o corpo é
estimulado a adaptar-se constantemente em relação ao tempo, ao espaço e `a energia); associação e
dissociação (pés e mãos fazem o mesmo ritmo ou fazem ritmos diferentes, por exemplo); incitação
e inibição (o aluno deve dobrar a velocidade ou fazer 2 vezes mais lento); memória (responder de
forma exata a cada estímulo predeterminado, por exemplo: ao estímulo sonoro hop deve-se realizar
a tarefa 2 vezes mais lento e ao hip 2 vezes mais rápido); multitarefas (por exemplo: fazer cânone
com voz, pés e mãos). A improvisação e o estímulo à criatividade estão presentes e colaboram para
o desenvolvimento da flexibilidade do aluno. Na improvisação trabalha-se com o não determinado,
com o imprevisível, com o acaso e isso permite a busca por outros sons. A integração corpo-mente
preconizada pela abordagem do movimento de Dalcroze permite a todos que sejam verdadeiramente
eles mesmos e que atinjam o domínio pleno do seu potencial.
Discussão. Através da vivência e do estudo de bibliografia sobre Eurritmia percebemos a
influência dessa abordagem no trabalho de Monk, apesar de esta não ser uma influência consciente,
como ela mesma disse em entrevista para esta pesquisa. O movimento corporal está sempre presente
na Eurritmia, seja em exercícios rítmicos, melódicos, harmônicos, vocais (solfejo) ou na
improvisação. A Eurritmia se relaciona com o trabalho de Monk no sentido que proporciona
liberdade ao corpo e `a mente. Monk tem a habilidade de transpor musicalmente para a voz os
elementos básicos trabalhados através do corpo na abordagem de Dalcroze, elementos provenientes
da música: tempo, espaco e energia. Ela vai além e usa musicalmente sons que utilizamos para nos
expressar, como riso e choro e alia a elementos corporais (peso, formas) para expressar gênero,
idade.
A riqueza de elementos nas composições de Monk (como som e movimento, polirritmia,
polifonia) permite a ouvintes e performers se exporem a uma gama de cores, texturas, formas e
ritmos proporcionando uma aproximação com a voz contemporânea que interage com outras
linguagens artísticas (como a dança). O movimento também está associado ao corpo no trabalho de
Meredith Monk mas a voz tem tamanha autonomia que dança mesmo com o corpo parado. Ela é
verbo, é energia cinética e Monk, ao combinar a voz contemporânea, a danca e a flexibilidade
proporcionada pela Eurritmia `a sua sensibilidade e criatividade, alcança seu objetivo: expressar
sentimentos para os quais não há palavras.
Meredith tem seu trabalho solo mas também o trabalho com seu ensemble. Com os
integrantes do ensemble ela busca explorar o que cada um tem de particular para oferecer ao
trabalho. Este também é um ponto em comum com Dalcroze que buscava a integração de mente e
corpo para que o homem pudesse ser verdadeiramente ele mesmo e atingir plena satisfação. Ser
verdadeiramente si mesmo e atingir satisfação são características almejadas por Monk e Dalcroze e
inspiradoras para artistas e educadores atuantes em um mundo que nos exige constante adaptação
para atingirmos satisfação.
5. CONCLUSÃO
Concluímos que a Eurritmia, que tem sua base no trabalho do corpo, do solfejo e da
improvisação, é uma ferramenta que pode ser usada para integrar voz e corpo. Há potencial para a
utilização da mesma visando o desenvolvimento da expressão da voz, apesar de este não ser o
objetivo da abordagem de Dalcroze. Gostaríamos de ressaltar que a Eurritmia não dispensa o estudo
da técnica vocal e que a mesma funciona como uma educação global ao individuo, não só aos
artistas. Ela é de interesse especial para nós nesta pesquisa pois se dá por e para a música.
A flexibilidade da voz em Meredith Monk contém características da voz contemporânea e se
relaciona com a Eurritmia de Dalcroze através da adaptabilidade, da liberdade que proporciona a
corpo e mente. Entendemos que a escuta e performance das peças de Monk pode colaborar com o
estudo e apreciação da voz contemporânea, bem como instigar o artista a pesquisar sua própria
forma de expressão vocal e corporal. A voz flexível de Meredith Monk foi investigada nesta
pesquisa através de dois pontos: as características da voz contemporânea e a relação com a
flexibilidade adquirida através da Eurritmia de Dalcroze. Porém, a análise e entendimento da voz
flexível de Monk não se esgota com a investigação desses dois pontos, pelo contrário, nos permite
perceber a riqueza e complexidade dessa fonte criativa e nos instiga a continuar a investigar.
6. BIBLIOGRAFIA
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Vídeo
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