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UM ESPECTÁCULO FALHADO
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O MATEMÁTICO E ANDREI SEMIONÓVITCH
27
UMA INVESTIGAÇÃO APROFUNDADA
31
REABILITAÇÃO
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PÉTROV E MOSKITOV
37
A AULA
39
CADERNO AZUL N.º 10
41
SOBRE FENÓMENOS E EXISTÊNCIAS, N.° 2
43
PÚCHKIN E GÓGOL
47
MAKÁROV E PETERSEN, N.° 3
49
FÁBULA
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UMA PEÇA
55
MÁCHKIN MATOU KÓCHKIN
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O IMPEDIMENTO
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APRESENTAÇÃO DE DANIIL KHARMS
NOTA DO TRADUTOR
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A presente tradução foi feita a partir das seguintes obras:
Daniil Kharms, Incidences, Serpent's Tail, Londres & Nova Iorque, 1993,
edição, prefácio e tradução do russo de Neil Cornwell.
Daniil Kharms & Alexander Vvedenski, The Man With the Black Coat.
Russia’s Literature of the Absurd, Northwestern University Press, Evanston,
Illinois, E.U.A., 1997, edição, prefácio e tradução do russo de George Gibian.
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APRESENTAÇÃO DE DANIIL KHARMS
"Sou um estranho no seio do meu próprio povo. Em breve a minha hora soará."
Knut Hamsun, Mistérios
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Rússia central, numa prisão psiquiátrica, provavelmente de
fome. De seu nome de baptismo Daniil Ivanóvitch Iuvatchov,
era filho dum intelectual religioso, Ivan Iuvatchov, um adver-
sário do czarismo que passou muitos anos na prisão e no exí-
lio. O nome que Daniil Ivanóvitch adoptou, Kharms, deriva,
segundo ele próprio explicou, da curiosa tensão entre as pa-
lavras inglesas harm, mal, tormento, e charm, encanto, rela-
cionando-se também com a personagem de Sherlock Holmes
(pronunciado Kholmes em russo), à qual devotava um extra-
vagante interesse, chegando a vestir-se com trajes típicos dessa
figura, sem esquecer o cachimbo; Kharms, no entanto, é apenas
o seu mais frequente pseudónimo, tendo utilizado outros ao
longo dos anos.
O nosso autor frequentou a Peterschule, onde o ensino
era dado em alemão e onde aprendeu inglês, e depois o colégio
dirigido por uma tia materna, cujo ensino concluiu. Foi aos
19 anos, ao passar para um instituto de engenharia, o Elec-
trotechnicum, que o jovem Iuvatchov, atraído pela torrente
libertária de que Léninegrado ainda era palco, se decidiu pela
“carreira” de poeta, abandonando definitivamente a escola.
Mas Kharms, cuja actividade se centrará em Léninegra-
do, inicia-se nas lides artísticas e filosóficas numa fase política
já pouco propícia à exploração de um novo mundo, ou seja, em
1925 (tinha ele 20 anos), quando a vaga de fundo da liderança
do Partido Comunista começa a mostrar-se hostil à criativi-
dade de tudo o que não seja controlável pelas suas instâncias.
É nesse ano que o Partido publica uma importante resolução
oficial sobre a literatura, pondo pela primeira vez a questão
do seu direito a dirigi-la. Essa iniciativa visa a eliminação da
diversidade de tendências artísticas, que até então constituía a
dinâmica revolucionária na Rússia soviética, e a consequente
hegemonia dos “escritores proletários” (designação esta sem
conteúdo social, puramente ideológica, forjada pelo Partido).
Nesse sentido, pode dizer-se que Kharms e os seus compa-
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nheiros, agindo ao arrepio do que estava declaradamente a
instalar-se, representavam um dramático anacronismo. Já em
1923 os futuristas da LEF (3) de Maiakóvski tinham diagnosti-
cado a evolução em curso: “a arte revolucionária reduz-se uni-
camente ao conteúdo da propaganda, e no domínio da sua for-
malização eles continuam (os elementos da PROLETKULT) a
ser uns completos reaccionários.” (4)
Com efeito, entre 1917 e 1932, a corrente dominante do
que politicamente está a ocorrer na Rússia soviética vai ser a
do progressivo estabelecimento dum sistema tendente a fazer
da literatura uma instituição do Estado. O marxismo, reduzi-
do a uma doutrina pragmática, torna-se fundamento do po-
der estatal, criando um estatuto novo para a literatura, desi-
gnada como “superestrutura ideológica” que tem a obrigação
de reflectir as relações de classes; a literatura fica assim sob a
jurisdição do Partido, definido este como expressão do pro-
letariado e exercendo em seu nome uma ditadura legitimada
pela ideologia (a preparação duma sociedade sem classes).
Esta linha, iniciada já em 1917, será claramente posta em
execução a partir de 1932 e prosseguida até à morte de Stáline,
em 1953.
Kharms e os seus amigos são em grande parte uma
continuação natural do futurismo russo. Doze anos depois
da eclosão deste movimento (a Bofetada no Gosto do Público
data de Dezembro de 1912), os futuros criadores da OBERIU
(Associação para uma Arte Real) integram-se, onde ainda en-
contram portas abertas, na prática experimental que é a forma
russa do dadaísmo, a trans-racional poesia zaum (5), através de
recitais e encontros, acção essa, de resto, que quase não passa
pelo texto impresso. Uma tal prática é a da vanguarda dos anos
10, que começara a criar um sistema poético baseado na “luta
contra o sentido”, considerando o “não sentido” essencialmente
um acto libertador e o meio de aceder a uma categoria supe-
rior de sentido.
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Nos anos 20, portanto, Kharms participa “em tudo o
que se fazia de radicalmente moderno”: a Ordem Trans-ra-
cional de Aleksandr Tufanov, promotor dum sistema poético
exclusivamente fonético, o grupo informal dos Tchinari (os
poetas Kharms, Vvedienski, Nikolai Oleínikov, os filósofos
Leónid Lipávski e Iakov Drúskin) (6), o Flanco de Esquerda,
a Academia dos Clássicos de Esquerda, a preparação duma
colectânea que exprimia a vontade de colaboração com o que
restava da vanguarda histórica e com os Formalistas (7). Ao
mesmo tempo, pede a sua adesão à União dos Poetas, a asso-
ciação de Léninegrado que lhe publicará os únicos dois referi-
dos poemas.
Uma parte notável desta acção faz parte da arte te-
atral, tendo Kharms uma grande atracção pelo palco e pela
encenação. Em 1926, cria o colectivo teatral Radiks, com-
posto pelos futuros oberiuti, ligando-se a Kazímir Malevitch,
por quem Kharms nutre grande admiração e amizade, e ao
INKHUK, Instituto de Cultura Artística que ele dirige (de-
pois de Kandíski) e em Léninegrado constitui um verdadeiro
refúgio das forças de vanguarda, continuando a processar-se
ali um vivo debate e a realizarem-se encontros, ensaios, repre-
sentações teatrais.
Em fins de 1926 o grupo concebe ali uma peça cujo
título seria “A minha mãe toda em relógios”, cruzamento de
poemas de Vvedienski e Kharms ligados entre si como um
todo contínuo; devido ao posterior encerramento do Instituto
a experiência não se concretiza.
No teatro, Kharms e os seus companheiros rejeitam a
trama dramática usual, criando um tema cénico puramente
teatral, em sintonia, aliás, com a mudança de perspectiva
que então se operava um pouco por toda a parte. Artaud, por
exemplo, no seu manifesto sobre O Teatro da Crueldade,
em 1932, declara a necessidade primordial de se “romper com
a sujeição do teatro ao texto”. Deste modo, na dramaturgia
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de Kharms não se nos depara uma história, uma intriga, nem
necessariamente uma “mensagem”; do choque dos diversos
elementos teatrais é que deverá surgir um novo sentido, trans-
cendendo aquilo que a simples razão carreia. As peças de
Kharms aparentam assim uma grande desordem, misturan-
do-se nelas os géneros e as réplicas. “Rejeitando o modo de
representação de tipo realista, para o qual a realidade é uma
soma de objectos estáveis e delimitados, finitos, Kharms colo-
ca-se numa perspectiva metafísica: trata-se de mostrar uma
representação global do mundo. Tal como Malevitch, que
escrevia no seu tratado Do Cubismo e do Futurismo ao Su-
prematismo (1916) que “cada forma é o mundo”, Kharms quer
fazer da obra de arte a expressão do infinito real. Mas o que é
possível em metafísica não o é necessariamente em arte; será
pois necessário recorrer a um subterfúgio, e esse subterfúgio
chama-se cisfinitum. Ao juntar o prefixo cis (aquém), Kharms
torna o infinito representável.” (8)
A busca de infinito a que Kharms se lançara não poderá
porém realizar-se, vendo-se ele cada vez mais submerso pela
medonha realidade imediata que o cerca, nas temíveis cir-
cunstâncias da ascensão dum regime que se alicerça no arbi-
trário e emprega uma demagogia sistemática e eficaz. O mundo
que já está a edificar-se é um mundo sem significado, no sen-
tido em que nele reina uma tal arbitrariedade que tudo pode
acontecer, tudo acontecendo amiúde com uma forte mistura
de brutalidade e sordidez. Sob o cómico das narrativas de
Kharms, irrompe o trágico da promíscua agressividade do
“rebanho humano”, a debilidade do indivíduo, os sumiços
de gente, as detenções discricionárias, as doenças estranhas.
Naturalmente, o que Kharms retrata, no seu aparente absur-
do, é um mundo muitíssimo real, observado por um olhar
cirúrgico; mas esse absurdo, que oficialmente só poderia
decorrer da decadência do capitalismo ocidental, é inaceitável
na URSS, onde oficialmente o capitalismo está a ser abolido e
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o vastíssimo e novel país é a pátria do socialismo em processo.
É de notar aqui, no tocante à expressividade da arte literária
kharmsiana, que a inspiração de Kharms não vai beber apenas
à vanguarda artística, inspirando-se também profundamente
em formas de humor negro do folclore, nos contos populares
russos, nas cantilenas, nos bonifrates.
Em finais de 1927 surge a OBERIU. Esta representará a
última tentativa de congregar as forças “de esquerda” antes do
controlo definitivo de 1932, ano em que o Partido proíbe todas
as associações literárias com excepção da União dos Escritores
criada sob sua orientação. O período-chave da OBERIU situa-
-se entre 1928-30, fase em que se dissipam as virtualidades
criativas a que as vanguardas estéticas davam corpo na Rússia
desde o início do século XX. É extraordinário vermos como
Kharms e os seus companheiros, que tinham evoluído desde
os seus começos uns anos antes, sustentam ainda, no Mani-
festo da OBERIU, em Janeiro de 1928, em polémica com os
que estão na mó de cima, que são eles, os oberiuti, e não os
“escritores proletários”, que correspondem às necessidades da
nova sociedade em perspectiva, a sociedade sem classes; que
os “métodos artísticos das velhas escolas”, eivados de prosai-
co positivismo, não podem satisfazer o proletariado; que os
oberiuti “vão ao âmago” e “estão em busca dum conceito de
vida organicamente novo e duma nova abordagem das coisas”.
Mais: fazendo-se eco de grandes temas dos futuristas, cujo
programa consistia em “fundir a arte na vida”, a OBERIU
rejeita o puro formalismo, a arte pela arte, clamando que
a arte oberiu é realista e se empenha na vida real. Que não
vê a arte como uma esfera separada da vida, que a arte deve
ser uma representação da vida mas não uma servil imitação
dela ou sua mera reprodução. E após ter passado pela zaum,
que superara, declara até reprová-la: “Somos inimigos dos
que castram a palavra e fazem dela uma mistura impotente
e inútil.”
18
Mas tudo estava já a congelar-se sem retorno. Em 1928,
denunciado como “um mosteiro custeado pelo Estado” no
Pravda de Léninegrado, o Instituto de Criação Artística de
Malevitch é encerrado sob a acusação de “misticismo”. Nesta
fase, o drama final de Maiakóvski, futurista-comunista, é elo-
quente: em 1928 é levado a abandonar a Nova LEF, porque
outros futuristas, já encarreirados na estética da PROLET-
KULT, pretendem banir a literatura de ficção em proveito
exclusivo da literatura meramente documental. Dilacerado,
em Fevereiro de 1930 adere à RAPP (a oficial Associação dos
Escritores Proletários), suicidando-se dois meses depois.
Após ataques sucessivos na imprensa, em Setembro de
1929 Kharms é excluído da União dos Poetas, juntamente com
Vvedienski, Ossip Mandelstam e outros. Em 1930 os oberiuti
são declarados “inimigos de classe”, a sua poesia é definida
como “um acto de protesto contra a ditadura do proletaria-
do” e são denunciados. Em fins de 1931, Kharms, Vvedienski e
muitos outros colaboradores das Edições Infantis são presos; a
polícia secreta acusa-os de actividades contra-revolucionárias
e condena-os a vários anos de exílio. Kharms é libertado a 18
de Novembro de 1932. Volta a ser preso a 23 de Agosto de 1941,
dois meses após a invasão alemã, é declarado doente mental e
morre a 2 de Fevereiro de 1942 numa prisão psiquiátrica. A
maior parte dos seus companheiros teve destino semelhante.
Foi uma geração que não teve tempo de se tornar conhecida
antes de ser interdita e que, por isso, ficou soterrada pelo peso
da História.
JÚLIO HENRIQUES
19
BIBLIOGRAFIA
Jean-Philippe Jaccard, introdução e notas, in Daniil Harms, op. cit.
George Gibian, prefácio e notas, in Daniil Kharms and Alexander
Vvedensky, op. cit.
NOTAS
(1) Reabilitado em 1956 (apenas como autor para crianças), após o XX
Congresso do Partido Comunista da URSS, que iniciou a "destalinização"
do regime, Kharms teve direito em 1962 a uma primeira colectânea das suas
histórias infantis. Continuou oficialmente a ter esse estatuto literário até
finais dos anos 80; a primeira colectânea russa da sua obra "para adultos"
é editada na URSS em 1988. (Uma edição das suas Obras Escolhidas fora
publicada em russo em 1974 na Alemanha, por George Gibian, organizador
também, em 1971, da primeira selecção de textos em inglês.) Em português,
o primeiro livro com textos seus, uma pequena antologia, saiu na Hiena
Editora em 1994: Crónicas da Razão Louca, selecção e tradução de Sérgio Moita.
Em 2000, por iniciativa e organização de Patrícia Portela, a Fenda teve em vias
de publicação uma antologia substancial da obra teatral de Kharms que não
chegou a efectivar-se. Em 2007, saiu na Assírio & Alvim uma excelente colec-
tânea: A Velha e Outras Histórias, tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra.
20
(4) A PROLETKULT (Organizações da Cultura Proletária), dirigida por
A. Bogdanov, seu principal ideólogo, foi fundada em Agosto de 1917 e
manteve-se até 1932. Criou um grande número de revistas, círculos diversos,
grupos de teatro e de pintura, levando a cabo uma vasta actividade. Mas
o próprio Lénine chegou a reprovar os seus adeptos por quererem fazer tábua
rasa do passado, coisa que era um equívoco, visto a arte didáctica e propagan-
dística da PROLETKULT ser já o "realismo socialista" mais tarde teorizado por
Idanov (e muito antes preconizado por Plekhanov, que sustentava que a arte
devia ser "um meio para o ensino do marxismo", "clara, realista e didáctica").
(5) Poesia de além (za)-razão (um). A prática desta poesia, entre 1910-20, foi
obra de poetas futuristas como Velímir Khlebnikov, Aléksei Krutchonikh ou
Igor Terentíev.
(8) Jean-Philippe Jaccard, in “La prose d’un poète” (introdução aos Escritos
de Kharms), op. cit., p. 12.
21
TRÊS HORAS ESQUERDAS
UM ESPECTÁCULO FALHADO
Entra Pitríkin.
PITRÍKIN
O nosso estimado Petrákov-Gorbúnov deseja anunci...
(Vomita e sai a correr.)
Entra Makárov.
MAKÁROV
Iégor... (Makárov vomita. Sai a correr.)
Entra Serpúkhov.
SERPÚKHOV
Não irei demor... (Vomita, sai a correr.)
Entra Kúrova.
KÚROVA
Serei brev... (Vomita, sai a correr.)
25
Entra uma menina.
MENINA
O meu pai pediu-me que lhes viesse dizer que o teatro
vai fechar. Está toda a gente a vomitar.
PANO
[1934]
26
O MATEMÁTICO E ANDREI SEMIONÓVITCH
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Volta a pô-la no sítio.
Volta a pô-la no sítio.
Volta a pô-la no sítio.
Volta a pô-la no sítio.
O MATEMÁTICO:
Não, no sítio não.
Não, no sítio não.
Não, no sítio não.
Não, no sítio não.
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Então não ponhas.
Então não ponhas.
Então não ponhas.
Então não ponhas.
27
O MATEMÁTICO:
Ai não ponho não.
Ai não ponho não.
Ai não ponho não.
Ai não ponho não.
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Como queiras.
Como queiras.
Como queiras.
O MATEMÁTICO:
Eu ganhei!
Eu ganhei!
Eu ganhei!
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Pronto, ganhaste, mas acalma-te lá!
O MATEMÁTICO:
Não senhor, não me vou acalmar!
Não senhor, não me vou acalmar!
Não senhor, não me vou acalmar!
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Podes ser matemático, mas palavra de honra que não és
muito inteligente.
O MATEMÁTICO:
Sou sou, sou muito inteligente e sei montes de coisas!
Sou sou, sou muito inteligente e sei montes de coisas!
Sou sou, sou muito inteligente e sei montes de coisas!
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ANDREI SEMIONÓVITCH:
Montes de coisas, mas só parvoíces.
O MATEMÁTICO:
Não senhor, parvoíces não!
Não senhor, parvoíces não!
Não senhor, parvoíces não!
ANDREI SEMIONÓVITCH:
Estou farto de discutir ninharias contigo!
O MATEMÁTICO:
Não senhor, não estás nada farto!
Não senhor, não estás nada farto!
Não senhor, não estás nada farto!
PANO
29
UMA INVESTIGAÇÃO APROFUNDADA
IERMOLAIEV
Estive em casa do Blinov, que me fez uma demonstração
da força que tem. Nunca tinha visto nada assim. Aquilo
é força dum animal bravio! Foi medonho. O Blinov er-
gueu uma secretária, deu-lhe balanço e atirou com ela a
uns quatro metros de distância.
O MÉDICO
Seria interessante estudar este fenómeno. Tais factos são
conhecidos da ciência, mas as suas causas continuam
a ser incompreensíveis. Os cientistas ainda não sabem
explicar a origem de semelhante força muscular. Apre-
sente-me a esse tal Blinov, hei-de dar-lhe um comprimido
experimental.
IERMOLAIEV
E que comprimido é esse que quer dar ao Blinov?
O MÉDICO
Comprimido? Qual comprimido? Não tenciono dar-lhe
comprimido nenhum.
IERMOLAIEV
Mas ainda agora disse que queria dar-lhe um comprimido!
31
O MÉDICO
Não, não, está enganado. Não falei de comprimidos.
IERMOLAIEV
Peço desculpa mas eu ouvi-o falar num comprimido.
O MÉDICO
Não.
IERMOLAIEV
Não o quê?
O MÉDICO
Não falei!
IERMOLAIEV
Quem é que não falou?
O MÉDICO
Você não falou.
IERMOLAIEV
De que é que eu não falei?
O MÉDICO
Parece-me que você não diz tudo...
IERMOLAIEV
Não estou a perceber nada. Que é isso de eu não dizer
tudo?
O MÉDICO
O seu discurso é perfeitamente característico. Engole as
palavras, deixa as ideias a meio, apressa-se, gagueja.
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IERMOLAIEV
Quando é que eu gaguejei? Eu até falo de maneira bas-
tante fluente.
O MÉDICO
Ora aí está como se engana. Está a ver? Você está tão
tenso que já começa a ficar cheio de sinais vermelhos.
Ainda não sente as mãos frias?
IERMOLAIEV
Não. Porquê?
O MÉDICO
Por nada. É uma suposição. Creio que você já deve estar
com dificuldades respiratórias. Será melhor sentar-se,
não vá cair. Isso, isso. Agora descanse.
IERMOLAIEV
Mas porquê?
O MÉDICO
Chiu! Não canse as cordas vocais. Vou tentar aliviar-lhe
essa fatalidade.
IERMOLAIEV
Doutor! Você assusta-me.
O MÉDICO
Meu prezado amigo! Eu quero é ajudá-lo. Ora tome lá
isto. É só engolir.
IERMOLAIEV
Ai! Pff! Que sabor pestilento, açucarado! O que foi que
me deu?
33
O MÉDICO
Nada, nada, acalme-se. É um remédio infalível.
IERMOLAIEV
Estou com calor e vejo tudo verde.
O MÉDICO
Pois, pois, meu prezado amigo, você vai morrer.
IERMOLAIEV
O quê? Doutor! Aah, não posso mais! Doutor! O que foi
que me deu?
O MÉDICO
Tomou um comprimido experimental.
IERMOLAIEV
Salve-me. Aah! Salve-me. Aah! Ar, ar. Aah. Salve-m...
Aah! Ar, ar...
O MÉDICO
Pronto, calou-se. Já não respira. Quer isto dizer que
morreu. Morreu sem ter alcançado neste mundo respos-
tas às suas interrogações. É bem verdade; nós, os médi-
cos, temos de estudar em profundidade o fenómeno da
morte.
34
REABILITAÇÃO
35
terá havido da minha parte uma certa crueldade. Mas consi-
derarem um crime eu ter defecado em cima das minhas víti-
mas, isso, desculpem lá, é mesmo um absurdo. Defecar é uma
necessidade natural que nada tem de criminoso. Portanto, eu
posso compreender os receios do meu defensor, mas o que é
certo é que eu espero ficar completamente ilibado.
36
PÉTROV E MOSKITOV
PÉTROV
Eh, Moskitov, vamos lá caçar mosquitos?
MOSKITOV
Não, pra isso tenho os braços fraquitos. Vamos antes aos
gatitos!
37
A AULA
Púchkov disse:
– A mulher é uma máquina do amor.
E apanhou logo com um murro nas ventas.
– Para que foi isso? – perguntou Púchkov.
Mas como não obteve resposta, continuou:
– O que eu penso é o seguinte: a mulher deve ser abor-
dada por baixo. Efectivamente, as mulheres gostam disso e
apenas fingem não gostar.
Nesse momento Púchkov levou outra vez nas ventas.
– Mas o que é isto, camaradas? Se continuam assim, eu
interrompo já a aula – declarou Púchkov.
Porém, após uma pausa de uns quinze segundos, pros-
seguiu:
– A mulher é feita de tal maneira que é muito suave e
húmida.
Neste momento Púchkov levou outra vez nas ventas.
Tentou fingir que não tinha reparado e continuou:
– Basta cheirarmos uma mulher...
Mas neste momento Púchkov apanhou tamanha mur-
raça nas ventas que levou a mão à cara e declarou:
– Camaradas, é absolutamente impossível dar uma aula
nestas condições. Se voltar a acontecer, suspendo-a.
Púchkov aguardou uns segundos e prosseguiu:
– Ora, onde íamos nós? Ah, pois. Temos portanto que a
mulher gosta de se olhar. Senta-se diante do espelho toda nua...
39
Àquela palavra, Púchkov levou mais um murro nas ventas.
– Toda nua! – repetiu Púchkov.
Trás! Apanha ele nas ventas.
– Toda nua! – gritou Púchkov.
Trás! Leva ele nas ventas.
– Nua! Nua! Uma mulher nua! Uma gaja toda nua! –
pôs-se Púchkov aos gritos.
Trás! Trás! Trás! Apanha ele nas ventas.
– Uma gaja toda nua com um tacho na mão!
Trás! Trás! Choviam as pancadas em cima de Púchkov.
– O olho do cu duma gaja! – gritava Púchkov, desvian-
do-se da pancada. – Uma freira nua!
Mas neste momento Púchkov levou com tanta violência
que perdeu os sentidos e caiu por terra, como que abatido.
40
CADERNO AZUL N.º 10
Era uma vez um homem ruivo que não tinha olhos nem
orelhas.
Também não tinha cabelo, chamavam-lhe ruivo por
mera convenção.
Não falava porque não tinha boca. Também não tinha
nariz.
Nem sequer tinha braços ou pernas. Não tinha estôma-
go, não tinha costas, não tinha coluna, e também não tinha
vísceras. Não tinha mesmo nada! Por isso não podemos saber
de quem estamos a falar.
Diria mesmo que é melhor não acrescentarmos mais
nada a seu respeito.
41
SOBRE FENÓMENOS E EXISTÊNCIAS N.º 2
43
Concentremos todavia o nosso interesse unicamente no
espirituoso e em Nikolai Ivanóvitch Serpúkhov.
Imaginem só: Nikolai Ivanóvitch espreita para dentro
da garrafa de espirituoso, leva-a à boca, inclina-a e engole,
imaginem, todo o espirituoso.
Esperto! Nikolai Ivanóvitch bebeu o espirituoso e pes-
tanejou. Esperto! Como conseguiu ele fazer aquilo?
Impõe-se agora dizermos o seguinte: de facto, não havia
nada não só atrás, à frente ou em redor de Nikolai Ivanóvitch,
mas também dentro dele. Dentro dele também nada existia.
É claro, as coisas podiam muito bem ser como aca-
bamos de dizer sem que isso impedisse Nikolai Ivanóvitch de
existir. É certo, é óbvio. Mas a questão, para falar com fran-
queza, é que Nikolai Ivanóvitch não existia, nem existe. É esta
a questão.
Poderão certamente perguntar: então e a garrafa de es-
pirituoso? E sobretudo isto: onde foi parar o espirituoso, se foi
bebido por um Nikolai Ivanóvitch inexistente? A garrafa, diga-
mos, ficou. Mas onde estará então o espirituoso? Ainda há pou-
co aqui estava, e já desapareceu. E no entanto Nikolai Iváno-
vitch não existe, segundo vocês dizem. Como pode isso ser?
Chegados a este ponto, nós próprios nos perdemos tam-
bém em conjecturas.
Aliás, de que estamos nós a falar? Dissemos, por conse-
guinte, que nada existia, tanto no interior como no exterior de
Nikolai Ivánovitch. Ora, se nada existe, tanto no interior como
no exterior, quer isso dizer que a garrafa também não existe.
É assim ou não é?
Mas, por outro lado, prestem atenção ao seguinte: se
nós dizemos que nada existe, nem no interior nem no exte-
rior, põe-se forçosamente a questão de saber: no interior e no
exterior de quê? Vendo bem, haverá mesmo qualquer coisa
que existe? Talvez não. Nesse caso, por que razão dizemos nós
«no interior» e «no exterior»?
44
Ná, é óbvio que chegámos a um beco sem saída. E nós
próprios não sabemos o que dizer.
Adeus.
É TUDO.
45
PÚCHKIN E GÓGOL
PÚCHKIN
Que raio é ist...! Será possível: parece o Gógol!
GÓGOL (levantando-se)
Que azar o meu! Já uma pessoa não pode ter sossego.
(Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.)
Esta é boa: parece-me que tropecei no Púchkin!
PÚCHKIN (levantando-se)
Não há um minuto de sossego! (Dá dois passos, tropeça
em Gógol e cai.) Mas que raio! Parece-me que voltei a
tropeçar no Gógol!
GÓGOL (levantando-se)
É só incómodos, sempre e em todo o lado! (Dá dois pas-
sos em frente, tropeça em Púchkin e cai.) Mas que azar o
meu! Outra vez o Púchkin!
PÚCHKIN (levantando-se)
Isto é uma vadiagem, é o que é! Uma vadiagem! (Dá
dois passos em frente, tropeça em Gógol e cai.) Raios me
partam! Outra vez o Gógol!
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GÓGOL (levantando-se)
Isto é estarem a gozar com uma pessoa! (Dá dois passos
em frente, tropeça em Púchkin e cai.) Outra vez o Púchkin!
PÚCHKIN (levantando-se)
Mas que calamidade! Uma autêntica calamidade! (Dá dois
passos em frente, tropeça em Gógol e cai.) Gógol!
GÓGOL (levantando-se)
Que azar o meu! (Dá dois passos em frente, tropeça em
Púchkin e cai.) Púchkin!
PÚCHKIN (levantando-se)
Que calamidade! (Dá dois passos em frente, tropeça em
Gógol e cai nos bastidores.) Gógol!
GÓGOL (levantando-se)
Mas que azar o meu! (Sai para os bastidores.)
PANO
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MAKÁROV E PETERSEN N.° 3
MAKÁROV
Aqui neste livro fala dos nossos desejos e de como a
gente os pode satisfazer. Lê este livro que hás-de ficar
a entender como os nossos desejos são vãos. Também
hás-de entender como é fácil satisfazer o desejo de outra
pessoa e difícil satisfazer o nosso próprio desejo.
PETERSEN
Com que solenidade tu falas... São os chefes índios que
falam assim.
MAKÁROV
Este livro é um livro de que só podemos falar com pala-
vras nobres. Eu tiro o chapéu mesmo quando só penso
nele.
PETERSEN
E lavas as mãos antes de lhe tocares?
MAKÁROV
Lavo pois, é preciso lavar as mãos.
PETERSEN
Já agora podias também lavar os pés.
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MAKÁROV
O que disseste agora não tem nada de espiritual, até é
ordinário.
PETERSEN
Mas o que é esse livro?
MAKÁROV
O título do livro é misterioso...
PETERSEN
Ah, ah, ah!
MAKÁROV
Este livro chama-se Malguil!*
Petersen desaparece.
MAKÁROV
Meu Deus! Mas o que foi isto? Petersen!
VOZ DE PETERSEN
O que foi? Makárov! Onde estou eu?
MAKÁROV
Onde estás tu? Não te vejo!
VOZ DE PETERSEN
E tu, onde estás tu? Eu também não te vejo! O que são
estas esferas?
MAKÁROV
Que podemos nós fazer? Petersen, estás-me a ouvir?
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VOZ DE PETERSEN
Estou, estou! Mas o que foi isto? E o que são estas esferas?
MAKÁROV
Consegues mexer-te?
VOZ DE PETERSEN
Makárov! Estás a ver estas esferas?
MAKÁROV
Quais esferas?
VOZ DE PETERSEN
Larguem-me!... Deixem-me ir embora!... Makárov!
MAKÁROV (lendo)
«...Progressivamente, o homem perde a forma que tem e
torna-se uma esfera. E uma vez transformado em esfera,
o homem perde todos os seus desejos.»
PANO
[1934]
* Esta palavra mágica não significa nada de especial, mas foneticamente faz
lembrar o vocábulo moguila, que significa «túmulo» (Nota de Jean-Philippe
Jaccard).
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FÁBULA
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UMA PEÇA
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o Kúrov nem sequer sabe o que der Magen quer dizer. E
foi com semelhante papalvo que ela fugiu. Está-se mes-
mo a ver o que ela queria! Sabe, ela não me considera um
homem. Diz ela que eu tenho voz de mulher. Mas isto
não é voz de mulher, é voz de criança. Uma voz delicada,
uma voz de criança, de maneira nenhuma uma voz de
mulher. Que estúpida. Para que queria ela o Kúrov? O
pintor Kózlov até diz que eu sou perfeito para me fazer
o retrato.
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MÁCHKIN MATOU KÓCHKIN
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O IMPEDIMENTO
Prónin disse:
– Tem umas meias muito bonitas.
Irina Mázer disse:
– Gosta das minhas meias?
Prónin disse:
– Oh! Sim, gosto muito.
E agarrou-lhes com os dedos.
Irina disse:
– E por que gosta tanto das minhas meias?
Prónin disse:
– São muito macias.
Irina levantou a saia e disse:
– E está a ver como são altas?
Prónin disse:
– Oh! Sim, sim.
Irina disse:
– Mas acabam aqui. Daqui para cima é já a perna nua.
– Oh! Que perna! – disse Prónin.
– Tenho as pernas muito gordas – disse Irina – e as an-
cas muito largas.
– Ora mostre – disse Prónin.
– Não posso – disse Irina – estou sem cuecas.
Prónin ajoelhou-se à frente dela.
Irina disse:
– Por que se pôs você de joelhos?
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Prónin beijou-lhe a perna um bocadinho acima da meia
e disse:
– Por isto.
Irina disse:
– Por que está a levantar-me a saia ainda mais? Já lhe
disse que estou sem cuecas.
Mas Prónin continuou a levantar a saia e disse:
– Não faz mal, não faz mal.
– Que quer dizer com isso, não faz mal? – disse Irina.
Mas nesse momento alguém bateu à porta. Irina ajus-
tou rapidamente a saia, Prónin ergueu-se e afastou-se para a
janela.
– Quem é? – perguntou Irina do lado de dentro.
– Abra a porta! – respondeu uma voz brusca.
Irina abriu a porta e um homem de sobretudo preto e
botas de cano alto entrou no quarto. Atrás dele entraram dois
militares de graduação inferior, de espingarda em punho, e
atrás destes o porteiro. Os dois militares ficaram junto à porta,
o homem de sobretudo preto aproximou-se de Irina Mázer e
disse-lhe:
– Apelido?
– Mázer – disse Irina.
– O seu nome? – perguntou o homem de sobretudo pre-
to virando-se para Prónin.
Prónin disse:
– Chamo-me Prónin.
– Traz alguma arma? – perguntou o homem de sobretu-
do preto.
– Não – disse Prónin.
– Sente-se aqui – disse o homem de sobretudo preto,
indicando uma cadeira.
Prónin sentou-se.
– E você – disse o homem de sobretudo preto virando-se
para Irina – vista um casaco. Tem de nos acompanhar.
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– Aonde? – perguntou Irina.
O homem de sobretudo preto não respondeu.
– Preciso de mudar de roupa – disse Irina.
– Não – disse o homem de sobretudo preto.
– Mas eu preciso mesmo de vestir qualquer coisa – disse
Irina.
– Não – disse o homem de sobretudo preto.
Irina vestiu o casaco de peles em silêncio.
– Adeus – disse ela a Prónin.
– As conversas são proibidas – disse o homem de so-
bretudo preto.
– Eu também tenho de os acompanhar? – perguntou
Prónin.
– Tem – disse o homem de sobretudo preto. – Vista o
casaco.
Prónin levantou-se, tirou o casaco e o chapéu do cabide,
vestiu-se e disse:
– Estou pronto.
– Vamos lá – disse o homem de sobretudo preto.
Os militares e o porteiro começaram a andar fazendo
soar o calçado no chão.
Passaram todos para o corredor.
O homem de sobretudo preto fechou à chave a porta do
quarto de Irina e apôs-lhe dois selos judiciais de cor castanha.
– Toca a andar! – disse ele.
E todos saíram do apartamento, batendo depois rui-
dosamente com a porta do prédio.
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Os textos deste livro foram publicados pela primeira vez em 2001,
numa pequena edição artesanal realizada pela companhia de teatro
Marionet, que os levou à cena com o título “Três Horas Esquerdas”.
A peça estreou no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra,
no dia 12 de Março de 2001.
FLOP
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