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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
ESTUDOS CULTURAIS ANGLO-AMERICANOS

ANÁLISE SOBRE “ALWAYS COMING HOME” DE URSULA K. LE GUIN

Dayana Hornig

“Always Coming Home”, de, é uma utopia em um cenário pós apocalíptico que se
passa na Califórnia do Norte, conforme se demonstrará abaixo, o livro é composto por uma
narrativa principal que é entremeada por diversas outras histórias e essas, por sua vez, são
compostas por poemas, músicas, contos e mitos (sendo boa parte deles a transcrição da
oralidade) além de mapas e desenhos. Neste sentido, a análise dos três planos da narrativa
proposta por Luiz Gonzaga Motta em “Análise crítica da narrativa” demandaria analisar cada
seção individualmente, considerando em cada uma suas particularidades, o que tornaria o
presente trabalho demasiadamente extenso, como este não é o objetivo, por ora, a análise
ficará adstrita à narrativa principal.

No que tange ao plano da metanarrativa, é importante mencionar que se trata de


uma obra ecoliterária contemporânea estadunidense que aborda diversas temáticas, entre
as principais, cita-se a consciência ecológica, a igualdade social e de gênero, o equilíbrio
com a natureza, a sustentabilidade e a necessidade de pertencer. Além disso, conforme será
melhor explicado adiante, a autora critica fortemente a sociedade machista atual e coloca
em xeque suas estruturas a partir da subversão dos padrões e da sua representação no
povo Condor que, ao final da história, se autodestrói. Importante mencionar ainda, a forte
relação com a antropologia e a arqueologia, que podem ter relação com o pai da autora, o
antropólogo e arqueólogo Alfred Louis Kroeber, cujos trabalhos foram de extrema
relevância.
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Nesta obra, Ursula k. Le Guin faz a relação do fantástico e do ficcional da história


com a antropologia e arqueologia do mundo real, ela fala um pouco sobre isso na introdução
que escreveu para o conto “May’s Lion” – a relação entre Na Valley do livro com Napa Valley
de sua infância e também sobre como construiu a conexão entre o real e o ficcional. Além
dessa conexão – que por si só já traz um ar de intriga ao leitor – a maneira como a obra é
construída e organizada também causa certa estranheza, pois representa um afastamento
do estilo mais comum de narrativa (linear) e cria um modelo complexo que poderia ser
definido pelo conceito de “heyiya” criado pela autora, que significa espiral; movimento.

Acerca deste último ponto, Ursula K. Le Guin escreve em “The Carrier Bag Theory of
Ficction” que os escritores contemporâneos foram envolvidos por essa forma linear de
narrativa, a “jornada do herói” voltada para o masculino e seus comportamentos, e critica
essa convenção literária pontuando que a primeira invenção da humanidade foi
provavelmente uma cesta e não uma lança. Neste sentido, tendo em vista que um livro é
um tipo de recipiente, a construção de uma narrativa com base nessa ideia (de cesta) faz
muito mais sentido do que uma história contada de forma linear. E foi dessa maneira que a
autora construiu “Always Coming Home”, o livro carrega diferentes tipos de narrativas em
seus diversos formatos, a história principal é dividida em três partes e entremeada por
histórias paralelas que representam justamente essa descontinuidade (característica da vida
real – qualquer mundo tem coisas que não são necessariamente ligadas entre si, mas são
essencialmente parte do todo), o que vai perfeitamente ao encontro da proposta de
narrativa feita em “The Carrier Bag Theory of Ficction”.

Não obstante isso, ao escrever todas essas histórias, Ursula K. Le Guin subverte as
convenções masculinas estabelecidas pela sociedade atual por meio de um discurso
feminino autêntico. No livro, a cultura masculinizada do mundo real é representada pelo
povo Condor (agressivos e exploradores) e, com isso, as experiências humanas
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estabelecidas como as principais pela sociedade atual são marginalizadas enquanto as


experiências hoje marginalizadas ganham importância e são colocadas no centro. Essa
subversão tem o efeito de diminuir a carga de significados das teorias filosóficas e
epistemológicas dominantes, desestabilizando o poder masculino e colocando o sexismo
como um sistema que deve ser repensado.

Para que esse discurso verdadeiramente autêntico aconteça, a autora se afastou


completamente do discurso masculino padrão e das repetições do senso comum sobre o
comportamento feminino, seus estereótipos e paradigmas e criou um novo sistema, um
sistema não corrompido pela sociedade predominantemente machista. Ela inventa uma
nova língua, novos significados, novas metáforas, novos mitos, novo sistema de números e
letras, ou seja, desvincula o discurso machista do mundo real do discurso feminino autêntico
da história. E é essa desvinculação que promove a subversão da ordem patriarcal a que
estamos habituados.

A criação desse novo mundo remete-nos ao conceito de fantasia de J. R. R. Tolkien,


para ele a fantasia é um processo artístico de sub-criação de um mundo secundário pelo
autor (que se assemelha ao Criador), um trabalho essencialmente linguístico, a
potencialização de algo que já existe por meio da linguagem. Tolkien fala sobre isso no texto
“Sobre Histórias de Fadas”, bem como dessa sensação de estranheza criada pela fantasia,
a qual não vem do fato de ela ser irreal, mas de permitir a libertação do que se tem como
padrão e possibilitar uma outra maneira de olhar a realidade. Para ele, o mundo real (ou
primário) é o fundamento da fantasia e, quanto mais distante dele, mais difícil será produzir
uma realidade verossímil crível, o que acabaria com a fantasia, pois sua existência depende
da percepção aguçada da realidade empírica do fato, a fantasia não desconhece o fato,
apenas se liberta dele, pois, segundo ele “se não fossemos capazes de distinguir entre
homens e sapos, histórias sobre reis-sapos não seriam possíveis”. Neste sentido, “Always
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Coming Home” exemplifica perfeitamente tudo que Tolkien descreve, pois, Le Guin cria um
novo mundo (secundário) sem se afastar em momento algum do mundo real, pelo contrário,
deixando clara para o leitor a conexão entre os dois.

Dito isso, passa-se ao plano da expressão. A autora utiliza na obra uma linguagem
coloquial, narrada em primeira pessoa, é uma reprodução da oralidade, e essa característica
é corroborada pelos discursos diretos que são trazidos entre aspas, bem como, pelo trecho
com mensagens sobre o povo Condor, que foram sendo contadas de pessoa para pessoa
até chegar à narradora. Ademais, o livro traz também diversas ilustrações e mapas, a parte
final, “The back of the book”, traz o alfabeto Kesh – suas representações gráficas e seus
fonemas; a forma de pontuação; um dicionário; um mapa de parentesco e diversas
explicações sobre a cultura Kesh, inclusive alguns textos etnográficos, todos essenciais para
a compreensão da obra, já que, conforme mencionado anteriormente, a autora subverte
todo o contexto social que estamos habituados e cria uma nova sociedade, com cultura e
língua próprias, e sem essas explicações não é possível compreendê-la.

Por fim, em relação ao plano da história, trata-se de uma narrativa não-linear e


complexa, que se passa em Na Valley, Norte da Califórnia, muito tempo no futuro, narrada
em primeira pessoa, pela narradora-personagem, com ponto de vista essencialmente
feminino e conta a história de um povo que “poderá ter vivido há muito, muito tempo no
futuro” (utopia com algumas características de distopia). Stone Telling, personagem
principal, é uma personagem redonda, uma vez que muda seus objetivos e opiniões por
diversas vezes durante sua trajetória. Ela é filha de uma Kesh e um Condor, dois povos
totalmente diferentes entre si, aqueles extremamente equilibrados e harmoniosos
(representação de características ligadas à mulher), enquanto esses violentos, agressivos,
hierarquicamente organizados e exploradores (características relacionadas ao masculino e
que representa a sociedade atual).
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A narradora-personagem conta sua trajetória vivendo a infância com a mãe e o povo


Kesh e depois migrando para uma temporada em meio aos Condor, para só então, após a
auto-destruição deles, voltar para suas origens. Momento no qual escolhe para si o nome
de Stone Telling e começa a narrar a prórpia história e a história desse povo que destruiu a
si mesmo, o que faz com que o tempo cronológico se confunda com o tempo psicológico da
personagem. As demais narrativas do livro, que entremeiam a narrativa principal, têm uma
sua característica textual e sua própria história, as quais dão sentido à narrativa principal,
uma vez que explicam a cultura, a língua, as metáforas e toda a vida do povo que foi criado
pela autora para esse novo mundo utópico. Entretanto, não há a tentativa de construir um
mundo objetivo no livro, apenas contextos, histórias e relações estabelecidas por diferentes
sujeitos, da mesma maneira que a trajetória vivida pela narradora-personagem em nada se
confunde com a jornada do herói, demonstrando, novamente, a adequação da obra com a
teoria da sacola transportadora criada pela autora.

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