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HISTÓRIA& ...

REFLEXÕES

Monica Pimenta Velloso

História & Modernismo

....
autentica
.
(i°N·1RODUÇÃO .. ......... .... .. .... ..... ................... ............ .. .... ..... .... ... .. ..... .... ...... .. ...... ... .... ... ... ...... ... .... .... .

Moderno, modernidade e modernismo

Os termos "moderno", "modernidade" e "modernismo" são cor-


relatos, mas não têm o mesmo significado. Frequentemente assumem
caráter fronteiriço, devido ao incessante entrecruzamento de seus
sentidos. Um termo esclarece a razão de ser do outro, iluminando-
se reciprocamente. É necessário, portanto, entendê-los no contexto
histórico de origem rastreando-se toda essa polissemia.
Uma primeira dificuldade que enfrentamos refere-se à natureza
esquiva, ambígua e mutável do termo moderno. Ele é transitório
por natureza; é aquilo que existe no presente. O moderno do ano
passado seguramente não é o moderno deste ano. Nessa condição,
conforme observa Octavio Paz, em A outra voz, o contemporâneo
toma-se uma qualidade que se desvanece, assim que a enunciamos.
Isso nos faz concluir que existem tantas modernidades e antiguidades
quanto épocas e sociedades.
A cada época são criados novos valores, inventos e denomina-
ções. Quando nos referimos aos tempos modernos, à mulher moderna,
. ao espírito moderno, ao estilo moderno e ao mal moderno, mesmo
inconscientemente, estamos nos reportando à associação entre tempo e
história. Fica clara a abrangência do termo moderno. Ele se mostra de
tal forma flexível e ocupa tamanha extensão a ponto de poder integrar
uma cultura inteira. Em tempos de globalização o moderno atingiu
tamanha organicidade, caráter tão complexo, passando a ser de tal
maneira integrado ao circuito da nossa vida cotidiana que deixou de
.f!, um mero vocábulo. Tomou-se parâmetro de referências, moldando
pt:nsamentos e juízos de valores sobre artes e ciências, vida política,
social e econômica. Também no âmbito das relações internacionais,

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,.,_ MOOUNO, HOOO.N10,tDE l H()()fJI.NN'tO

0 tem10 confere sentido a visões, atitudes e sensibilidades em relação valores do antigo (greco-romano) e do novo. Durante o Renasci-
mento, a tradição clássica era considerada exempla r, estabelccendo-
',
a outros povos. outras culturas e outras etnias. '-'
Tais ideias revelam o grau de complexidade que envolve o tenno. é uma verdadeira cruzada em defesa dos ideais dessa cultura. O
É necessário entendê-lo, sempre, com base em um quadro de refe- imaginário literário da época traduz bem esse clima de tensão. Em
rências presidido pelas tradições. O par antigo/moderno apresenta-se A batalha dos livros (1704), Jonathan Swift (o autor de As viagens
como um dos pilares da história da cultura ocidental, e os seus sentidos de Gul/iver) recorria a metáforas curiosas para descrever a natureza
se mostram altamente variáveis. Quem conduz o par é o moderno, do trabalho realizado pela aranha associando-o ao moderno, e o da
por isso cabe aos indivíduos, às sociedades e às épocas o trabalho de abelha, relacionado ao antigo. Na realidade, o autor expressava a
defini-lo perante o passado, confonne alerta Jacques Le Goff ( 1984). sensibilidade da época que era marcada pela disputa entre duas visões
de mundo, consideradas antagónicas. Jonathan Swift mostrava-se
É a partir dessa intensa mutabilidade de sentidos que Hans Robert
bastante cético em relação ao trabalho da aranha. Observava que,
Jauss ( 1996) propõe uma genealogia histórica do moderno. O uso sis-
na sua espantosa rapidez, ela conseguiria articular teias g igantescas
temático do tem10 remonta ao século XVI, quando se corporificava, na porém muito frágei s. Todo esse trabalho monumental repousava em
cultura do Renascimento, um debate entre as forças identificadas com um só principio: a autoalimentação. Criando a partir de suas próprias
o antigo e com o moderno. No entanto, desde o século V, estabeleciam- entranhas, a aranha, acabava reduzindo a sua obra ao veneno e ao
se contrastes entre visões de mundo distintas já configurando tensões excremento destinado a aprisionar insetos. Em contraste, o trabalho da
entre o passado e o presente. É essa tensão que introduz historicamente abelha era exemplar; ela aparecia como verdadeira artesã de alcance
a autoconsciência do moderno (RooRJGUES, 2000). universal. Busca prolongada, julgamento e distinção entre as coisas
No entanto, é necessário esclarecer que as noções de antigo e seriam os seus atributos. A abelha produzia o mel, que nutria e ali-
de moderno não ex istiram sempre. São datadas e dotadas de histo- mentava. Jonathan Swift acreditava que os escritores antigos, aqueles
ricidade. modificando-se de acordo com o contexto em que tiveram que haviam produzido conhecimentos há dois mil anos, e ram como
origem. A cada novo século mudava-se a construção da identidade as abelhas. Portadores de verdadeiros tesouros, fruto de um trabal ho
dessas categorias. Em toda essa discussão uma ideia deve ser retida, incansável e de natureza coletiva, eles alimentavam a humanidade,
pois vai nos conduzir ao longo da exposição: o caráter indissociá- na sua imensa sede de saber.
vel que liga o moderno ao antigo. Na sua constituição, o moderno Essa querela entre o antigo e moderno também fora corpori-
necessita do antigo para adquirir sentido e apresentar-se como tal. ficada em uma outra imagem curiosa: a de um anão sentado sobre
Atravessando a história, mais nitidamente no período entre os séculos os ombros de um gigante. Oriundo da Idade Média, retomado por
XVI até o XIX, o tenno vai adquirindo diferentes configurações. Na Montaigne, tal imaginário reforçava a depreciação do moderno que
mente dos homens permanecia, no entanto, a importância do antigo marcaria os séculos XVII e XVIII. O moderno era representado por
corno modelo exemplar ou referência a ser considerada. um anão astuto. Alçado sobre os ombros do gigante, ele conseguia
manter-se em posição privilegiada. Tal posição, no entanto, não era
Uma panorâmica mostrando como se deu a genealogia do moder-
con$iderada meritória. O anão simplesmente utilizara o ombro dos seus
no na cultura ocidental é adequada. A partir dela podemos entender as
predecessores, os antigos, para galgar mais alto. Consequente mente,
prâticas. as representações e as sensibilidades soc iais que compunham
ele alcançava uma rica paisagem sem fazer esforços meritórios .'
cada época, singularizando no tempo homens e mulheres. Em tennos
de um_a pano~mica geral, a instauração do moderno pode ser pensada Tais narrati vas traduzem, de maneira expressiva, a tensão entre
a partir de tres momentos referenciais. formas distintas de viver e de interpretar o mundo. No e ntanto , não

. O primeiro abarca do sécu lo XV I a té finai s do século c ·11.


A ideia do moderno é po lê mi ca. marcando profunda tensão entre \.;,; narrativas estão em KA RL, 19f\R, p 2<>-JO

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Cou(.AO ..._,ou. .. R.IIUXOU° Hooei,,Q, (

,_ ._. s;;od~ diz;.: qu;' o visão ;mdefesa do clâss~co fosse co~o. com o rei, a paz e a guena. Arlette Farge (2005) observa que, embora a
Vários intelectuais começam a reivindicar a ltberdade do artista, palavra revolução, (no sentido utilizado pelos filósofos e pelas luzes),
entendendo-a como caminho necessári~ ~onhecimento em ~ -ão não estivesse ainda na boca do povo, este já vinha participando do
à inovação e ao progresso. Em tennos htstoncos, esboçam-se aMses clima das mudanças. Apesar de ainda estannos distantes, de um mundo
do pensamento inspirador do progresso e das luzes. É impo~te ~la- moderno, as ideias do novo começavam a penetrar nos domínios da
recer, no entanto, que a vitória da cosmovisão moderna nao 1mphcou vida pública e privada. Conclamava-se a consciência do presente e o
a derrota dos antigos. O debate que buscava definir o entendimento experimento do novo.
do moderno e do antigo mantém-se ao longo de todo o século XVlll. Foi durante o século XVIII que se instaurou o período iden-
Seguindo essa genealogia do moderno, nos fins do século XVlll, tificado como moderníté, compreendido, de fato, como um novo
ocorre cm Paris urna discussão que ficaria célebre e conhecida como "a tempo. O termo, cxtraido da sociologia, compreende o processo de
querela entre os antigos e os modernos". Essa conjuntura será decisiva dissolução dos modos de organização das sociedades tradicionais
cm tennos da herança civilizatória no seio da cultura ocidental. O debate face à emergência da sociedade industrial. Vínculos comunitários,
entre o antigo e o moderno adquiriu uma singularidade: não se tratava construidos com base em valores corporativos, religiosos; laços
mais de apontar inimigos da Antiguidade (como a aranha e o anão), fundamentados em lealdades pessoais e honra, enfim, todo esse
mas de considerar duas fonnas distintas de olhar para trás. O passado universo de crenças e valores perdeu sentido e fragmentou-se em um
continuou a ser a referência, mas o olhar sobre ele é que mudava. mundo que passava a ser regido por novos referenciais de ação e de
conduta. Fundamentado na raz.ão científico-pragmática, tal sistema
Os conceitos e as palavras-chave desses séculos são: progresso,
reforçava a racionalização dos comportamentos e o individualismo,
evolução, liberdade, democracia, ciência e técnica. Todas elas refor-
incentivando, em escala sem precedentes, o processo de urbanização
çavam o espírito crítico que era o traço diferencial da modernidade.
e da divisão do trabalho.
Ele invade o domínio da metafisica, através da reflexão de Kant e
1-lume. Também as percepções e os costumes sociais passaram a ser Na historiografia do moderno, esse periodo aparece diretamente
objeto de reflexão, suscitando os escritos de Rousseau, Diderot, Lados associado à figura do intelectual e critico de artes Charles Baudelaire.
e Sade, que examinaram lemas como as paixões, as sensibilidades e De modo geral, ele é identificado como verdadeiro arauto da moder-
a sexualidade. Foi nesse contexto que ocorreu o descobrimento do nidade. Essa ideia é, no entanto, simplificadora, pois se perde de vista
"outro": o chinês, o persa e o índio americano (PAZ, 1993). a dinâmica de um processo que já estava em curso.
Em tcnnos históricos, esse ideal crítico pode ser concretizado Ao eleger o século XVIlI como marco fundador do moderno,
nos episódios revolucionários como a revolução pela independência corre-se o risco de desqualificar as experiências que marcaram os sécu-
dos Estados Unidos, a revolução francesa e os movimentos de inde- los XVl e XVII. A atuação de Baudelaire se explica em função de um
pcndê~cia d~s domínios americanos da Espanha e de Portugal. Na contexto de ideias mais abrangente. Na realidade, ele reuniu, organizou
América Lalma, as revoluções fracassaram no plano político e social. e dialogou com um corpo de tradições intelectuais que o antecederam. A
Por circu~st~n_cia, a modernidade latina foi incompleta, gerando sua reflexão traduz o momento mais crítico e complexo de definição do
om h1bndo h1stonco", corno veremos adiante. moderno, quando o passado começa, de fato, a ser pensado como con-
tinuidade, deixando de ser mera oposição. Intuía-se que ele compunha
, . Ao longo _do século XVIJJ , começava a ser compartilhado 0
o elo de uma cadeia temporal que abarcava as várias temporalidades
scnllmenlo de v,~cr cm um tempo revolucionário, marcado por gran-
representadas pelo passado, pelo presente e pelo futwu.
des transformaçocs, que afetavam a vida politica, social e pessoal.
Nos n'.mores das ruas já se traduziam as necessidades de mudanças. Em O pintor e a vida moderna ( l 860-1863), Baudelaire enfatiza-
Questionava-se o abastecimento de água nas cidades a falta de liber- va a singularidade do moderno como uma qualidade em si, e não como

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dade nas corporações, a execução pela guilhotina, o d;scontenl111ls'!nto

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L,
algo que contrastava com o passado. Desfeita a relação de oposição.

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c=o " HIST.,... &._ Rm.Exoo" MODERNO, ~0.-.CE E HOOERNtSMO

cada onda do passado transformava-se na própria modernité trazendo seria o primeiro a vislumbrar o espaço da arte como um lugar capaz
sucessivas vanguardas, com qualidades singulares: "Cada época y;.':'J de traduzir as profundas tensões e contradições da modernidade.
o seu porte, o seu olhar, o seu gesto", afirmava o autor. w Resultado do desenvolvimento capitalista, do progresso científico-
Baudelaire ampliou o sentido do passado e do moderno, propondo \ tecnológico, da razão iluminista e pragmática, a modernidade impõe-
pensar ambos além dos limites temporais e cronológicos, fundamen- se em detrimento das subjetividades, tomando-se, por isso, uma
tados em uma concepção evolucionista e linear. O p~sado não se res- força opressora. Para Baudelaire, só a linguagem artística poderia
tringia mais ao que passou assim como o moderno detxava se ser mera traduzir essa face dupla da modernidade, que abrigava o transitório
atualidade. O poeta, o voyeur e o fiâneur- que coml)Õem distintas faces e o eterno, a opressão e a liberdade. É desse lugar limiar que nos
do mesmo homem -observam esse movimento subterrâneo da realida- chega a escrita de Baudelaire. Apresentando-se como artista, clown,
de, buscando compreender a dinâmica que rege o antigo e o moderno. marginal, ele ajudou a definir um momento cultural de extrema
Deve-se notar que Baudelaire teve o mérito de ter conferido importância no corpo da civilização ocidental.
à palavra modernité o seu sentido definitivo; percebeu-a como me- Para Walter Benjamin, Baudelaire prenunciara com arguta visão
diação entre duas percepções. A modernidade é passado/presente, e sensibilidade os efeitos arrasadores da sociedade industrial sobre os
integrando novidade e curiosidade à celebração do antigo. Logo, o homens. Assumindo a dicção lírica, ele buscara reavivar a força da
antigo deixara de ser configurado como exemplo, modelo e paradig- experiência, da tradição e da memória em um mundo assolado pelo
ma para transfigurar-se na historicidade do presente. A cosmovisão acúmulo de informações, sensações e velocidade. Cenário desse caos,
da modem ité ocasionou, portanto, a constituição de uma dualidade, a cidade moderna também propiciava novas liberdades obrigando os
porém uma dualidade que se definia como harmonia. homens a encontrar recursos de sobrevivência. Para superar o caos, o
O belo adquiriu outro entendimento ao compor-se dessa dupla homem moderno precisa adequar-se a ele. É necessário que seu corpo
face: tomou-se eterno e invariável, mas fez-se também relativo e cir- e sua mente estejam atentos ao movimento e aos sobressaltos. Mais
do que atento, o artista deve pressenti-los para conseguir responder
cunstancial. Combinou sucessivamente época, moda, moral e paixão.
Para Baudelaire, o elemento circunstancial tomava-se instigante e com precisão exata. Benjamin observa que Baudelaire colocara a
experiência do choque no coração do seu trabalho artístico. A imagem
cheio de vivacidade: funcionava como o "aperitivo do divino manjar" .
do esgrimista ágil atacando e se defendendo da agressão externa é ex-
Lembremos que cabe aos indivíduos o trabalho de definir o pressiva dessa atitude. Nesse duelo representava-se o próprio processo
moderno do seu tempo perante o passado. da criação artística. O grito de espanto do artista, antes de sucumbir,
Outro aspecto é chave na discussão sobre a modernidade: a revelava o fracasso na defesa contra os choques do moderno. 2
conciliação entre arte e ciência. Além de superar o antagonismo
No entanto, a modernidade baudelairiana nunca se fecha em
entre o passado e o presente, a modernidade deve suplantar a relação
tomo de um aspecto, preferindo o caminho das ambiguidades. Quando
de oposição entre arte e ciência. Assim como a natureza humana a
deixa cair incidentalmente a sua aura na lama do bulevar, o poeta sente
obra de arte pressupõe dualidade de valores ao agregar o eterno ; o
a perda da eternidade, mas se dá conta de que agora, como homem
efêmero, o que subsiste (a alma) e o variável (o corpo). A arte não
comum, poderá criar uma poética mais autêntica. Posto em contato
subsiste sem a ciência. Nos tempos modernos ambas se necessitam
com o mauvais lieu, percebendo a precariedade e o perigo da vida,
como garanti.a de sua existência.
ele pode encontrar nas ruas a fonte de criatividade.3
Inspirando-se na poética crítica baudelairiana, Walter Benjamin
(2004) construiu a sua reflexão sobre a modernidade. Reunindo
fragmentos do autor em um livro inacabado (Charles Baudelaire 2
Essas ideias fazem parte da reflexão de Walter Benjamin (2004) sobre o pensamento de
um poeta lírico no auge do capitalismo), Benjamin revelava a vis1i~ Baudelaire, se encontra nos ensaios "Sobre alguns temas de Baudelaire" e "A modernidade".
origina\ do poeta e do critico da arte moderna. Para ele, Baudet& ' A crônica " A perda da aura" está em Baudelaire (1991, p. 131-133).

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CoLfçAO "HISTôlUA &... I\Ef\.EXôES" MODERNO, l100EANIO'.DE E MODERNISMO

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Chamando a atenção sobre o papel soberano exercido pelo particularmente mobilizados a participar da construção da nova socie-
artista na discussão do moderno, enquanto agente da fonna: das dade. Acreditava-se que caberia às artes realizar uma dupla tarefa: a
ideias Frederick Karl (1988) observou a sensibilidade_ de ~ e- destruição e a criação, inspirando-se na intensidade do tempo presente.
laire ~ara compreender a mudança de consciência. Modifi~ava-se a Rimbaud era enfático: "Il faut être absolument moderne".
consciência que a humanidade tinha das cidades, dos ambientes, de O Modernismo abrigou o conjunto de transformações sofiidas no
coisas materiais, de pessoas como sujeitos e objetos e a autorreifica- campo das artes entre a década de 1870 e o início da Segunda Guerra,
ção de temas espirituais. Baudelaire buscava revelações e epifanias envolvendo toda a Europa e os Estados Unidos. Presenciando urna crise
projetando-as muito além do cenário de Paris. cultural sem precedentes, o movimento criou linguagens e expressões
A cultura da modernidade inscreve-se nesse quadro complexo artísticas que buscavam entender o caos social decorrente de uma mu-
de ideias e de valores. Ela foi a expressão artística e intelectual de dança radical de referencias e padrões civilizatórios. A crise afetava
um processo histórico reconhecido como modernização e produzido sobretudo a autoconfiguração dos intelectuais e dos artistas. Se eles se
pela transformação capitalista do mundo, confonne observou um sentiam estimulados a forjar uma nova consciência social e estética,
dos estudiosos de Walter Benjamin no Brasil, Willi Bolle (2000). A essa liberação se dava em um clima de forte tensão histórica. O poder
reflexão de Benjamin oferece um rico material para pensar a mo- imaginativo conjugava-se à consciência da contingência, vivenciada
dernidade nos países periféricos,já que a sua fisionomia é marcada como catástrofe gerando a sensação de desorientação e pesadelo.
pelo aspecto do inacabado e do fracasso . A geração modernista da virada do século XIX assistiu à derrocada
Na passagem do século XIX para o XX pode-se situar o terceiro da civilização e da razão, cujo marco simbólico fora a Primeira Guerra
momento dessa genealogia histórica do moderno. Nessa virada de Mundial. Em maio de 1913, estreava em Paris A sagração da Prima-
século se expande, se consolida e se internacionaliza o processo de vera, coreografia de Nijinski e música de lgor Stravinski. O espetáculo
modernização econômica e social, que integra e contamina de forma dramatizava o fim da velha ordem; expressava-se na dança o conflito
entre Eros e Thanatos. No momento mais tenso da guerra, em 1916,
decisiva o campo da arte e do pensamento.
foi apresentado um espetáculo que, reunido em torno do Balé Parade,
Os termos "Modernidade" e "Modernismo", apesar de insepa-
subvertia os cânones da estética acadêmica e unia os trabalhos de Eric
ráveis, constituem dois aspectos distintos do mundo moderno. Em Satie, Alfred Jarry, Apollinaire e Picasso. A dança tomava-se metáfora
síntese, podemos dizer, de acordo com Jacques Le Goff (1984), que da forte tensão social que dominava os novos tempos.
o conceito de modernidade constitui uma reação ambígua da cultura
Mas, ao longo do século, várias ideias já vinham contribuindo
à agressão do mundo industrial. Quanto ao termo "Modernismo"
abriga múltiplos sentidos, alguns deles contraditórios. Quando nos para a eclosão dessa nova ordem.
reportamos a ele o associamos de imediato aos movimentos artísticos Em 1848, Marx, no Manifesto Comunista, anunciava um mundo
que percorreram todo o século XX. Uma panorâmica demasiado regido pelas forças revolucionárias dando vitória à ordem secular e
~omplexa, considerando a ampla variedade de grupos artísticos materialista. Em 1859, Charles Darwin, em A origem das espécies,
mte~~ndo expressistas, cubistas, futuristas, simbolistas, imagistas, questionava a concepção cristã da origem humana e propunha uma
vorti:istas, d~daístas e ~urrealistas. Foram muitas as propostas e per- teoria da evolução, baseada na ordem natural. Bergson destacava o
cepçoes filosoficas em Jogo. A defesa do espírito moderno coexistia papel da intuição em detrimento da razão, chamando a atenção para
c?m val_orização do espírito decadentista; o apreço às forças irra- a atuação da memória e do tempo interior na construção e na apreen-
cionais e mconscientes disputava espaço com a razão instrumental são da realidade. Redimensionando as forças do inconsciente, Freud
o experimentalismo com o construtivismo. ' alertara para outras dimensões da realidade social. Burguês nos seus
gostos literários e artísticos, mostrara-se um modernista radical em
É nec~ssário enfatizar o caráter visceralmente social que mar-
relação à natureza humana. Em análise recentemente traduzida no
cava o conJunto dessas propostas. Artistas e intelectuais se~ n-se
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Cuoc,A••"t liit('lfoA & fhruJIN," 11, 4,;,-,H1), J-,;"'-l#,l-lit t 4oft:~~JIICIW;

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8rosil. Pcrer Gay (2009) desrnca o mergulho 0 11 subjctividnde como valoreH, o cxpcrimcntalíi;mo acrc<lítava ser fundarru,,>Jttal umaatítudc
singulnridacle muior do movimento que teria em Freud um dos seus _ de abertura e de dísponíbílidadc cm relação ao conhecím.ento, Em Le
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-....; gm;des inspiradores. l, roman experimental (1880) Émile Zola lançava tais ídcías, embora
A imaginação literária e artística rebelam-se contra a ordem naquele momento elas ainda esti vessem circunscritas ao âmbito cien-
cientifico-burguesa, ocasionando um enriquecimento da percepção do tífico. O estado de vulnerabilidade dos indivíduos, outra característica
mundo social que deixava de ser visto como algo exterior e consensual. modemista, já vinha anunciada nos escritos de Nietzsche.
A somatória desses acontecimentos nos aj uda a compreender O fato é que no interior do pensamento modernista o moderno
a historicidade do fenômeno modernista e a diversidade de formas e as tradições estavam profundamente imbricadas, constituindo-se,
e conteúdos de que se revestiu o movimento. Difundindo-se de um contaminando-se e esclarecendo-se mutuamente. Paul Valéry, que par-
pais para outro, conjugando distintas fontes e tradições intelectu- ticipou intensamente do movimento como um dos seus críticos mais
ais, o movimento ocorreu em contextos e temporalidades diversas, argutos, chamara a atenção para o fato, observando que a dimensão
convertendo-se na linha mestra da tradição ocidental. Nesse sentido, da tradição se impunha de tal forma que não era necessário reforçá-la.
configura-se como movimento estético que modifica de maneira A tradição era inconsciente, e o aspecto da continuidade fazia parte
indelével a consciência e a percepção do mundo; consequentemente, de sua natureza. Para ele, a proposta de retomar e reatar uma tradição
a própria compreensão da cultura. De acordo com Bradbury, o fim era uma simulação, já que jamais deixara de existir e de fazer parte
do movimento romântico seria um dos fatores explicativos dessa do universo cotidiano das pessoas. Mas a análise é que distingue no
crise na história do humanismo ocidental. Já Peter Gay percebe so- que resta de um passado o que deve ser respeitado e o que deve ser
brevivênc ias do romantismo na geração de literatos como Virgínia descartado (VALÉRY, 2003)
Woolf e James Joyce. Porém, é incontestável que o movimento tenha Tais ideias, no entanto, não eram consenso na época. Predomi-
reconfigurado a tradição artística ocidental e redirecionado toda a nava o imaginário da ruptura e da libertação do passado, visto como
imaginação de uma época. um fardo a ser abandonado. Esse imaginário acabou favorecendo uma
A historiografia vem enfatizando a necessidade de se reexamina- visão que privilegiava o espírito do novo, a partir do obscurecimento
rem os sentidos do " novo", redimensionado a partir dos vínculos que e da diluição de sua relação com as tradições. Essa percepção do
estabelece com as tradições em curso. Reflexões como as de Bradbury Modernismo como urgência de uma demanda - "tomar-se novo" - foi
( 1989), Bradbury e Mcfarlane ( 1989a; 1989b) e Karl (1985) são particularmente experimentada nos países da América latina.
referências-chave nesse processo reflexivo, e lembremos do texto de A partir de 1890, um conjunto de escritores e artistas latino-
Jacques Le Goff ( 1984) que analisa os termos-chave no discurso do americanos se engaja na luta em prol da renovação nacional dos
historiador e insiste na necessidade de considerar a dinâmica do par temas e das formas artísticas, deslanchando os movimentos literà-
moderno/tradição. O novo jamais é inteiramente novo. rios modernistas. Porém, esse conjunto de demandas pelo " novo"
Na virada do século XJX para o XX, o Modernismo se constrói não pode ser pensado de acordo com o quadro de referências que
com base em um conjunto de ideias que vinha transformando a cultura moldou o processo da modernidade europeia, simplesmente porque
e a sensibilidade europeias. Já estava presente no pensamento român- o vínculo dos países com o mundo europeu era de uma outra natu-
tico a ideia do artista como ser dotado de intuição especial capaz de reza. Impõe-se aí a mediação do sistema colonial, em torno do qual
ver além dos seus contemporâneos, trans formando-se, por isso, em se articulam as imagens do centro e da periferia. Em razão desse
agente livre no campo do conhecimento. Nos movimentos boêrnios de processo histórico, é necessário que se repensem os conceitos, para
Paris, desde 1830, a estética de uma cultura que se apresentava como adequá-los à dinâmica que lhes deu origem e conformação.
Rever a "estética da ruptura" foi uma das questões estratégicas
...... inteligência crítica aos ideais científico-iluministas defenden do a ex-
periência da arte unida à vida, também era um fat~. Reforçando na historiografia sobre o Modernismo brasileiro.

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A crítica ao paradigma de 1922 articulações que pudessem vir a estabelecer com o moderno. Exemplo
Durante muito tempo foi recorrente (e ainda é) o uso de det . ilustrativo ocorreu com alguns intelectuais simbolistas, caso de Ma-
minadas categorias como as de "pré-moderni_smo" e "antecede~t - nuel Bandeira. Convidado a participar da Semana de Arte Moderna,
ou a ideia de um "vazio cultural" para defimr o panorama artístico em São Paulo, Bandeira conta que se recusara a ir, alegando não ter
intelectual brasileiro da virada do século XIX para o XX. incompatibilidades com o parnasianismo e simbolismo. Já se sentia
Essa terminologia surgiu amparada por um referencial exter- moderno (BANDEIRA, 1957, p. 63). Enviou, porém, um poema no qual
no. Só um acontecimento de caráter inaugural seria capaz de ins- fazia uma crítica irônica à estética parnasiana. O Sapo foi lido por
taurar essa semântica de cunho anunciador, libertador e prometeico. Ronald de Carvalho sob vaias.

Em parte, a história da literatura contribuiu para difundir essa Hoje ainda desfruta de certo consenso a visão do movimento
visão. O ano de 1922 - ou o período imediatamente anterior a ele - modernista brasileiro, circunscrito à ambiência paulista e a um grupo
é considerado um verdadeiro divisor de águas na história literária. canônico de intelectuais. Na literatura os nomes de Mário de Andrade
O que aconteceu de moderno na sociedade brasileira nas primeiras e de Oswald de Andrade são referência obrigatória quando se trata de
décadas do século XX passa a ser considerado como uma espécie de ressaltar a tendência vanguardista inovadora do movimento. Também
premonição dos temas de 1922. Basta lembrar como foi construída a os intelectuais ligados à vertente conservadora, como é o caso de Plínio
historiografia das literaturas regionalistas nordestina, paulista, mineira Salgado e Cassiano Ricardo, são tomados como referenciais de análise
e gaúcha entre a virada do século XIX e a primeira década dq século para o estudo das bases do pensamento político autoritário. Na história
XX. A valorização dos dialetos locais, da cultura caipira, do folclore, nenhum acontecimento é neutro. Acontecimentos são construções
dos costumes e dos tipos rurais foi criada a partir da contraposição ao sociais fabricadas e apropriadas, de formas distintas, pelo conjunto
das camadas sociais (FARGE, 1989).
polo urbano, visto como cosmopolita e "estrangeirado". Não se cogi-
tava sobre o caráter compósito e ambíguo do modernismo, abarcando A narrativa hegemônica do Modernismo foi uma construção
pluralidades espaçotemporais. O resgate das tradições realizava-se em empreendida pelas vanguardas paulistas, que a atualizaram ao longo
nome de um Brasil moderno, que já se fazia anunciar. das décadas de 1930 e 1950. Heloísa Pontes mostra que a rede foi
ampla e diversificada, incluindo a Faculdade de Filosofia e Letras da
É nesse contexto que a literatura regional passa a ser identificada
USP, a imprensa através dos jornais (Folha de S. Paulo, O Estado de
nos livros escolares, nas antologias e nas histórias da literatura com a
S. Paulo) e revistas (Anhembi e Clima) e editoras (Nacional e Martins).
nomenclatura simplista e um tanto equivocada: "pré-modernismo".
Pelo viés dos acontecimentos fundadores, focando seja a ação
Tais ideias acabaram comprometendo a própria historicidade e
das vanguardas artísticas intelectuais seja a matriz oficial-estatal a
a conceituação do movimento. Deixaram de ser considerados aspec-
historiografia modernista vem reforçando antigos procedimentos do
tos fundamentais do processo como a heterogeneidade dos grupos
fazer historiográfico. Em suma, privilegia-se a ação das vanguardas
intelectuais e sua capacidade de combinar e adequar distintos valores
e os marcos cronológicos pautados pelos grandes acontecimentos. A
culturais. Em decorrência, ocorreram fortes tensões internas entre tra- Semana de Arte Moderna, que ocorreu em São Paulo, entre os dias
dições e modernidade, que geraram dinâmicas e arranjos específicos. 12, 13, 15 e l 7 de fevereiro de 1922, é tomada como acontecimento
O registro canônico agregou em um bloco indiferenciado dis- fundador do Modernismo brasileiro. O fato pode ser constatado na
tintas ~ensibilidades literárias e correntes de pensamento, a saber, própria adoção, na consagração e nos usos do termo Modernismo.
p~rnasianos,_ ~ecadentistas, simbolistas e regionalistas. Esse proce- A terminologia está de tal forma relacionada à cidade de São Paulo
~une~to fac1htou o ato do reconhecimento, pois tais grupos foram que frequentemente deixa-se de contextualizá-la na articulação com
identificados como supostos "antecedentes do modernismo". Em o conjunto da dinâmica brasileira. Quando mencionado, o termo
suma, perderam-se as especificidades de cada grupo e as dife~ :s não é adjetivado, nem pluralizado como se a sua carga semântica

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jt\ esti vesse i111plicirnmcntc cmbutidn. Anuiu-se, dessa fo rma, a rica causalidade entre economía e sociedade explicavam, em última
polissemia e a umbiguidado da qual se reveste o termo. .. instância, os acontecimentos sociais. A necessidade de reavaliar essa
. É importante lémbrur o aspecto emblemátic~ de que se rev
tiu O ano de 1922, ano de rev iravoltas que questionavam a ordem
visão se fez sentir a partir do momento em que se experimentou um
olhar indagativo em relação às formas da constituição da dinâmica
po litica vigente como as revoltas tene1~tistas, o Le_vante do .F~rte social. O fenômeno da circulação das ideias, a capacidade critico-
de Copacabana e a fundação do Partido Comunista Brasileiro. inventiva dos diversos agentes sociais na construção das represen-
Também fo i O momento de organização das forças conservadoras tações e práticas foram aspectos fundamentais para se proceder a
da Igreja católica, que posicionando-se a~ l_ad~ do Estado, ~~dava uma reconfiguração do social. A sociedade brasileira passou a ser
o Centro D. Vital e a revista A Ordem, re1vmd1cando seu direito de pensada a partir de uma reconceituação da temporalidade históri-
intervenção social. Em 1922 também se comemorava o centenário ca, em decorrência da qual foram reformuladas as categorias do
da independência política brasileira. Era um contexto favorável , moderno e da tradição. As reflexões de Eduardo Jardim de Moraes
portanto, aos exercícios da memória. (1978; 1983), de Silviano Santiago (1987) e de Flora Sussekind
(1987; 1988) levantaram um conjunto de questões fundamentais na
O Rio de Janeiro, cidade capital, comemorou a data com a abertura
condução desse debate.
de um grande evento ofi cial: a Exposição Internacional de 1922, que
ex ibia ao mundo o progresso da indústria brasileira. São Paulo escolhe Propunha-se pensar 1922 como um momento de confluência
outro caminho para celebração: a Semana de Arte Moderna. O evento de ideias que já vinham sendo esboçadas na dinâmica social. Nessa
foi patrocinado por Paulo Prado, homem culto e cosmopolita ligado à perspectiva, mostrava-se o movimento modernista dos anos de
aristocracia cafeeira, a partir de uma sugestão de Di Cavalcanti, que 1920, como resultado de um pensar filosófico já inscrito na tradição
propusera um acontecimento de impacto. Era a constituição de um cultural brasileira. Esse pensar estaria presente desde o início do
campo intelectual que estava emjogo. 4 No Rio de Janeiro, os eventos século XX através dos escritos de Graça Aranha, dentre os quais se
destacava "Estética da vida " (MoRAEs, 1978).
comemorativos foram objeto de intensa paródia nas revistas semanais
de humor. Questionava-se a precariedade civilizatória da nacionalidade A importância do papel inovador dos meios de comunicação
incompatibilizando-a com o moderno. "Veneza do Mangue" foi uma e das tecnologias como catalisadores na mudança dos padrões de
das denominações atribuídas à cidade-capital. 5 percepção e de sensibilidade sociais, constituiu outra vertente ex-
pressiva dessa reflexão (SussEKJND, 1987; HARTMAN, 1988).
Tais ideias mostram como a construção dos acontecimentos
passa à condição de memória hi storiográfica. A deliberação de fazer No conjunto, tais trabalhos apresentaram uma contribuição
do evento um marco cultural foi sem dúvida bem-sucedida. inovadora: a necessidade de reavaliar o conceito de tradição e as
articulações concretas no conjunto da vida cultural brasileira. Enten-
No in ício da década de 1980, o tema do Modernismo brasileiro der a dinâmica da tradição, os conceitos de continuidade e a ruptura,
passou a constituir objeto de problematização na área dos estudos reavaliando a questão da importação das ideias, foi um dos temas
hi~tóricos, o que se expl ica em função da própria visão que predo- que mobilizaram intensamente o debate intelectual nos anos 1980.
mmava até en_tão no campo da história. Naquela época, a maior parte Literatos, historiadores e filósofos foram chamados a refletir sobre a
dos estudos amda era estruturada em tomo do paradigma do Estado. temática do modernismo brasileiro, originando a produção de teses
Predominava a visão macroscópica da vida social ; as relações de acadêmicas, organização de simpósios e debates. Os próprios títulos
de alguns eventos, em particular, revelavam o quanto a questão susci-
' Uma boa panorâmica histórica da Semana de Arte Moderna pode ser encontrada em CA- tava indagações e polêmicas. No Rio de Janeiro, em 1985, a Funarte
MARGO, 2002.
r.
organizou o seminário Tradição e Contradição; em 1988 a Fundação
' A propósito, ver: Uma vertente humorística da modernidade: a revista D. Quixote.,í'Pl,'_ Casa de Rui Barbosa propôs o simpósio O Pré-Modernismo.
VELLOSO, 1996, p. 173-203. V

~--;-s,.,-~~
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24
25
CQUÇÃO "HIS'T6RJA &, .. REFLEXôES"

"" MoOEI\NO, MOOEAN1DAOE E MOO~ISMO

Neste debate, cabe lembrar a contribuição fundame?tal fie, No bojo do processo de reconceituação, o modernismo deixa
A Antonio Candido que publica, em 1965,, Li!er~tura e soczedc/ii,1 de ser identificado como momento-ruptura na vida sociocultural
'-" estudos de teoria e história literária. O propno titulo da obra traduz brasileira. Surgia como resultante de um processo histórico em que
a preocupaçao- de s,·stemat;",,r as bases teóricas do debate. Buscando
u,u • • se combinavam as mais distintas tradições, espaços, temporalida-
um diálogo interdisciplinar, Candido reahzou lei~ cruzada_s en~e des, atores e configurações. Ao longo da década de 1990, algumas
a história da arte (Hauser), antropologia (Malinowski) e a sociologia
reflexões, de caráter histórico-sociológico, reafirmando essas ideias,
(Weber). Em um contexto marcad? pela dicotomia _d~ proce.~i~en- apontaram outras possibilidades de articulação com o moderno (SILVA,
tos entre a "leitura externa" (condicionamentos soc1a1s) e a leitura
1990; liARDMAN, 1988; LUSTOSA, 1993; VELLOSO, 1996; ÜOMES, 1999).
interna" (autonomização do texto), o autor enfatizou a necessária
sensibilidade do pesquisador no trabalho interpretativo da formação O desenvolvimento dos pressupostos da École des Annnales e
da nova história cultural influenciou decisivamente os rumos dessa
social brasileira .
discussão que se iniciou, de forma sistemática a partir de Lucien Fe-
Foi de fundamental importância no processo de releitura do mo- bvre e de Marc Bloch. Um conjunto de questões teóricas, suscitadas
dernismo brasileiro a geração de literatos das décadas 1960/70, incluin- pela releitura de clássicos das ciências sociais, como Marcel Mauss,
do-se Luís Costa Lima, AlfredoBosi, Silviano Santiago. Enfatizando a Nobert Elias, Durhkein e Halbwachs, possibilitava aos historiadores
diversidade da cultura brasileira (universal/particular, cosmopolitismo/ o trabalho de reconceituação da cultura, do passado, da memória e da
localismo, vanguardas/tradições) esses autores contribuíram para o temporalidade histórica. Assinalando a dimensão concreta e coletiva da
entendimento da temporalidade múltipla que marcava a brasilidade.6 história, tais autores alertaram para a sintonia que algumas subjetivi-
Ao longo da década de 1980, foi importante rever criticamente as dades poderiam estabelecer com o conjunto, dada a sua capacidade de
ideias que reforçavam uma visão do modernismo baseada na estética representar as sensibilidades de uma época. Além disso, o significado
da ruptura. O eixo comum agregando essas distintas reflexões era claro: das práticas e das representações, no seio da vida cotidiana, adquiria
a elaboração de um pensar critico sobre o paradigma de 1922. crescente interesse (CHARTIER, 2006; PRosT, 1996).
A circunscrição do Modernismo aos limites de um único No Brasil, a tradução desses autores na década de 1970, por
acontecimento - a Semana de Arte Moderna - levava à perda da ocasião do início da abertura política, descortinara um novo panora-
dinâmica causada pelo impacto do movimento, que acionou uma ma: começava a surgir uma história social, tanto dentro do marxismo
vasta rede de representações, subjetividades, imaginários e práticas quanto fora dele. Priorizando seja os pressupostos da Escola francesa
culturais no conjunto do Brasil. O Modernismo não se restringira ao dos Annales, ou seja as teorias neomarxistas inglesas, o fato é que
eixo Rio-São Paulo, mas irradiara-se por vários estados do Brasil ocorrera uma reorientação decisiva no campo da história em relação
propiciando a composição de grupos em torno de discussões qu; às abordagens, aos temas e à escolha das fontes .7 Esse conjunto de
provocaram movimentos, manifestos, revistas além da difusão de ideias possibilitou uma leitura crítica da vida social, reavaliando-se
ideias e práticas na vida social. Revistas como Arco e Flexa de as formas de pensar a participação e a intervenção dos indivíduos e
Sa(':'ador ( 1928/1929), Madrugada , de Porto Alegre ( 1929), e M~ra- dos grupos. Modificou-se, enfim, a própria percepção da realidade
ca1a, d~ Fortaleza~ 1929)_tradu~iam tais anseios. Poucos sabem que histórica, com a intensificação do diálogo entre a história, as artes,
o Manifesto Futurista foi publicado pela primeira vez em junho de a literatura e a antropologia. A partir daí, redimensionou-se definiti-
1909, em jornais nordestinos como o Jornal de Notícias de Salvador vamente o papel da cultura como espaço estratégico na vida social.
e no A República, de Natal. '
,..

• Essas ideias foram discutidas na palestra "Littérature et histoire de sensibilité brésilie~,;,
7
Para uma panorâmica histórica das mudanças ocorridas no campo da história, ver LE
GOFF, 1984b. A propósito das repercussões das mudanças no contexto brasileiro, ver
apresentada no seminário Lire /e Brési/ organizado pela ARBRE. Paris/EHESS, 16/04/201 O. PESAVENTO, 2003.

26 27
MODERNO, MOOEA.Nl°"°E E MODEANISMO
C0t-1rln~ Ht<.1J'l• t• li, Rçn ~r"ln"

, reorientação sobre o Modernismo foi impor-.. Buscando obter uma compreensão mais acurada da cultura mo-
Noqueconceme a . , . ó· E
tante a distinção que se estabeleceu entre h~stona e m~m- n~. ss dernista, vários trabalhos passaram a dedicar atenção à dinâmica co-
. . _ tomou poss1ve , 1a "apropriação crítica das trad1çoes
_ . Unfà municativa da sociedade brasileira descentralizando o foco nas culturas
.....l distmçao .
letradas. Analisando os vínculos entre a linguagem falada e a escrita,
tradição morre quando permanece intac~a. Sã~ as mvenço:s _qu~ a
transformam e a vivificam, criando arttculaçoes com a d1~am1ca considerando as modalidades de comunicação sonoro-auditivas e as
presente. Cabe a cada geração herdar um passado e altera-lo em gestualidades corporais, tais trabalhos questionaram a exclusividade
função das exigências colocadas pelo presente . dos códigos visuais como referência organizacional e participativa.
A historiografia sobre o Modernismo b~as!leiro _enfrento~, ~e É necessário considerar que os modelos culturais dominantes
um lado a necessidade de empreender a ress1gmficaçao da trad1çao não anulam outros espaços de recepção. Se cada época constitui seus
como v~lor civilizacional, trabalho comum a todas gerações; de modelos e códigos narrativos, dentro deles também são gerados outros
outro lado, os historiadores que o fizeram, viveram em um contexto códigos de inteligibilidade de acordo com as filiações culturais. No
particularmente marcado pelas mudanças no panorama do fazer mesmo contexto social é possível a coexistência de diversos modos de
historiográfico. A releitura da tradição viu-se reforçada na própria narrativa. Na realidade, deve-se considerar o sistema de valores como
lugar que dá sentido ao texto. Tais ideias mostram quão complexa é
releitura da escrita histórica.
a atividade da recepção, na medida em que a comunicação não se
Contextualizando procedimentos historiográficos e suas implica- estabelece de forma linear ou a partir de um lugar fixo e hegemônico.
ções teórico-metodológicas, pode-se entender de forma mais apropriada Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, nos lembra que é na
como foi construída a visão critica sobre o Modernismo brasileiro. distância entre as normas e o vivido que se insinuam as reformulações,
Já se observou que o ponto de partida desses estudos foi o traba- resistências e artes de fazer. Privilegiando a análise das especificidades
lho de reavaliação do paradigma historiográfico de 1922. Realizada no culturais e o campo das sociabilidades cotidianas, toma-se possível
Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de perceber a rede de influências recíprocas entre o erudito e o popular
1922, a Semana de Arte Moderna assumiu o papel de acontecimento que modela a tessitura da vida social brasileira.
fundador do moderno brasileiro. Já assinalamos as consequências Em função dessas ideias que enfatizam o caráter complexo
teóricas desse enfoque que subestimara a complexidade do social. da experiência modernista brasileira toma-se procedente adotar o
Desde o início do século XX, movimentos culturais relaciona- termo "modernismos".
dos ao advento de uma sensibilidade modernista vinham acontecendo Não se trata de um mero jogo semântico, mas da afirmação de
em várias cidades brasileiras. Ocorre que as dinâmicas e os ritmos uma posição teórica que tem como premissa considerar a mutabilidade
culturais desses lugares necessariamente não condiziam com o perfil do social em constante processo de reelaboração e adaptações. De
urbano e industrial-tecnológico de São Paulo. A coexistência do acordo com essa visão confere-se mais atenção às suas contradições
arcaico e do moderno marcando distintas temporalidades era uma e ambiguidades do que propriamente às racionalidades. Em suma,
realidade na vida cultural brasileira. privilegiam-se na vida social os aspectos do deslocamento e da fluidez,
Outra questão que suscitou discussões foi o entendimento compondo-se à base de articulações (KALIFA, 2005).
do Mo_dernismo como movimento cultural organizado e dirigido Essa visão nos possibilita pensar o Modernismo brasileiro como
~xclus~v~mente por uma vanguarda artístico-intelectual. Erigido o desencadeamento de vários movimentos que, ocorrendo em distintas
a cond1çao de condutor da vida social, caberia ao grupo apontar de temporalidades e espaços, atingiram de forma diferenciada, é claro,
form d ., · ' todo o País. Captado nos seus vários momentos, configurações e es-
.ª _emmr~1ca, os novos rumos da nacionalidade. Tal percepção
restrmgiu drasticamente d' • · · · . paços, o movimento abarcou regiões, cidades e metrópoles brasileiras.
. . . .ª mamica participativa de outros indivíduos
e grudPl?ds dsocia1s, ~UJ~ '.ntervenção podia ocorrer através de outra~. Antes de entrar no campo específico da brasilidade, vamos
mo a I a es e sociab1hdades. (. explorar outras articulações com o moderno.

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MoDERNQ, MODERNID,l.[)E E HOOERNISMO

1~
"Só para nós vivem todas as .
coisas sob o sol"; o modernismo latino Ji . agrária, comunitária e estável em termos de valores cultu · p
outro d
~ ra1s. or
. la o, nao se sustentava. a ideia de uma sociedade comp 1exa,
reg1da_pelos va~ores econom1cos e _científico-tecnológicos. Nos paí-
A equivalência entre moderniza~ão e _ocidentali_zação foi u
questão estratégica para os intelectuais latmos-~e~<:_ano~. O prt ses latmo-am~~canos, as te~porahdades se entrecruzavam gerando
u-seJ·unto ao da constttu1çao e mvençao formas compos1tas de orgamzação e de cosmovisão. Alguns autores
blema d o mo derno configuro . ,
de uma identidade nacional. Defini-la significou cnar vmculos com se referem à existência de uma "pós-modernidade antes da moderni-
dade" (CANGLINI, 2000); outros preferem falar de uma mestiçagem
o paradigma do moderno ocidental.
de culturas, enfatizando a articulação e a justaposição de distintas
É nesse contexto que foi estabelecida a articulação entre o
visões culturais. Resultaria daí um constante processo de releitura
antigo e o moderno. e recriação do cotidiano (GRUZINSKI, 1990; 1999).
A faculdade de estabelecer diálogo com as tradições europeias,
Em decorrência desses fatores, a análise sobre o modernismo
selecionando adotando e relendo determinadas referências como
latino se complexifica. Forçosamente há que considerar outra ordem
norteadoras de sentido cultural, foi trabalho a que se dedicaram os
de sentidos e valores regendo essas sociedades. Detentores de his-
modernistas latino-americanos. Frequentemente a enunciação da
tórias distintas, que abrigaram distintos processos socioculturais, os
escolha pelo "novo" foi expressa de forma contundente. Defendendo
continentes também incorporaram temporalidades que não coincidem
a modernidade, em tom apaixonado, o poeta nicaraguense Ruben
entre si. Viver entre a racionalidade modernizadora e a tradição das
Dario, declarava: cosmogonias indígenas, o anseio de ser moderno e o sentido de existir
"Verlaine é para mim muito mais do que Sócrates!". em consonância com as raízes culturais latinas, acarretou um clima de
A Antiguidade clássica parecia muito mais distante aos olhos forte tensão. Frequentemente, o desejo do "novo" exerceu maior apelo
do continente americano. do que as próprias condições objetivas da realidade. Se era urgente
De modo geral, o modernismo latino-americano, integrou a a proposta de "acertar o relógio", como dissera Oswald de Andrade,
oposição que Baudelaire percebera existir entre a modernidade também a necessidade de conferir as tradições ganhava ênfase cres-
estética e modernidade social. Vários intelectuais endossaram uma cente. Na América Latina o imperativo da atualização cultural só se
atitude romântica de rebeldia e de protesto contra os valores que mostrou viável quando passou a incluir a bagagem indígena e negra.
sustentavam o processo da modernização burguesa. Reagia-se contra Considerar essa realidade "entre mundos" é de fundamental
o poder argentário, os ideais materialistas, pragmáticos e burgue- importância para compreendermos a dinâmica sociocultural do
ses, o imperialismo yankee e a guerra hispano-americana de 1898. modernismo latino-americano. Na realidade, tal duplicidade de
Concomitantemente, porém, condenava-se a irrupção das massas pertencimento conferiu um recorte singular e único ao continente.
no cenário da história. Acreditando-se responsáveis pelo destino do A experiência colonial ibérica e a globalização que ela subtende
conjunto da sociedade os intelectuais latinos autorrepresentavam-se impuseram um entrecruzamento incessante de patrimônios étnicos
como arautos do novo e das mudanças. Sentiam-se incumbidos de e culturais. No bojo deles, mesclaram-se sensações, desejos e gostos
uma missão redentora: salvar a nação (FUNES, 2006). que geraram novas sensibilidades, maneiras de ser, estar e participar
Essas ideias deixam entrever as diferenças que marcaram o do mundo (GRUZINSKI, 2006).
processo da modernização europeia e o da América latina. No con- Ao estabelecer contato com a cultura hispânica, os grupos
tinente sul-americano, a instauração da modernidade não implicou indígenas viram-se obrigados a inventar soluções de sobrevivência.
a passagem_d~ u~a sociedade claramente identificada com os parâ- Houve, portanto, uma capacidade de improvisar elos entre di,st~tas
metros trad1c1on~1s para o moderno. Em finais do século XIX, nãc referências culturais. Tal processo implicou um árduo exerc1c10 de
se pode falar, a ngor, de uma sociedade que se caracterizava co~ adequação em que a criatividade exerceu sua operância. Fato sinto-
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CC>lKAO "H,rrôAIA &... Rauxô<S" MOOfANO. " " " ' - E MOOW<ISHO
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- - t nh
- am apar-ecid;"como fundamento do
·· · tais aspectos e tradições po~ulares,_ conta:3ndo aspectos originais e imprevisíveis
rnat1co e que . d arda latino-americana: o criacionismo.
primeiro mov101ento e vangu " . ti "d ;_ de uma realidade amda nao desvelada. Abundância, dinamismo
. H .d b . telectual chileno, em conferencia pro en a ~10-
V1cente UI o ro, m " • a entusiasmo, fé, ingenuidade, vitalidade,juventude, sentidos, emoçã~
Ateneo de Buenos Aires, emjunho de 1916• afirrnav~ que.ª gnme e criação formam as palavras-chave da escrita desses intérpretes da
. ;- d oeta e· criar a segunda criar e a terceira cnar . A esse latinidade. Era patente a ideia de que as tradições só poderiam ser
con<li çao o P , , "S ,
pequeno deus cabia a arte de escutar e dizer a natureza: o para assimiladas e traduzidas em linguagem a partir de uma leitura crítica
nós vivem todas as coisas ao sol" (ScHWARTZ, 19~5, p. ?5-102). ~o das influências: "Martin Fierro tem fé em nossa fonética, em nossa
manifesto Non servian, o poeta equacionava a dtscussao do _anttgo visão, em nossas maneiras, em nossos ouvidos, em nossa capacidade
e do moderno através de uma imagem curiosa: o hermafrodita. digestiva e de assimilação".
Observava que a natureza humana era composta de duas forças No Man ifesto Antropofágico ( 1928), Oswald de Andrade tam-
distintas. A força de expansão (feminina) e a da concentração (masculi- bém alertava para a urgência desse trabalho de assimilação crítica.
na). Raramente ambas apareciam em perfeito equilíbrio em uma pessoa. Outro tema que mereceu a atenção especial foi a crítica à sociedade
Huidobro visava destacar o necessário convívio entre forças opostas burguesa capitalista, sobretudo, no que se referia à situação das
mas complementares na cultura literária: românticos e clássicos. artes. A revista Mural Prisma de Buenos Aires (1922), que tinha
Essa seria, na realidade, urna problemática comum aos países entre os seus colaboradores Jorge Luis Borges, declarava-se"[ ... ]
latinos: a necessidade de obter o equilíbrio entre distintas demandas farta daqueles que não contentes com vender, chegaram a alugar a
culturais. Tal equilíbrio só poderia ser obtido a partir da incorporação sua emoção e a sua arte, prestamistas da beleza dos que espremem
do duplo e da percepção de uma temporalidade singular. A revista a mísera idéia caçada por causalidade, talvez roubada" (ScHWARTz,
Martín Fierro ( 1923/24), criada em Buenos Aires, mostrava-se 1995,p. 112-115).
profundamente iconoclasta, transgressora, recorrendo amplamente Tais ideias possibilitam ver aproximações entre os intelectuais
ao humor corno forma de comunicação. modernistas brasileiros e latino-americanos. Havia várias questões
No manifesto Martin Fierro, publicado em 15 maio de 1924, culturais de fundo comum, entre elas, a busca de equilíbrio entre os
Olivero Girondo, proclamava as propostas do movimento. Para viver elementos da mudança e os da tradição. Alguns manifestos literários
inteiramente o presente, para expressá-lo, na sua inteireza, era pre- latinos alertavam contra as mudanças radicais e ilusórias:"[... ] não
ciso escutar as vozes dos antepassados e ter consciência do solo em mudar de cor, não deixar-se cegar pelas coisas fulgurantes, des-
que se pisava. Assimilar as influências das vanguardas europeias era confiar do 'supramaravilhamento' que pode levar ao inverossímil".
tão importante quanto manter vivas as raízes culturais. Mas o ato de Lidando com as próprias ambiguidades da modernidade, a
cortar os laços de dependência com a metrópole apresentava-se como revista de vanguarda mexicana Irradiador ( 1922) recomendava
~ adiável: "Martin Fierro acredita na importância da contribuição uma atitude de cautela frente as novas teorias: "Você pode extraviar
mtelectual da América, prévia tesourada a todo o cordão umbilical" nos corredores vazios de sua imaginação e não encontrar a saída"
(SCHWARTZ, 1995, p. 115). (SCHWARTZ, 1995, p. 166).
Embora seja complexo estabelecer conexões entre essas escritas A reflexão sobre a raça como categoria através da qual seria
que contemplavam questões diversas, é inegável que elas apontam possível compreender um novo éthos cultural foi outra ponte unindo
~ara um_terna comum: a contribuição latino-americana no cenário distintos autores modernistas, como o cubano Fernando Ortiz, o
10ternac1onal. peruano José Carlos Mariátegui e Gilberto Freyre.
É patente a ênfase no surgimento de uma nova sensibilidade A temática do modernismo latino-americano mostra-se extre-
~x~;::através de_pa~avras, metáforas e linguagens. Criar o "novo"
gn construir vmculos de pertencimento com o repertório e mamente rica possibilitando ao historiador retrabalhar suas bases
teórico-metodológicas. Entender a dinâmica do moderno através

32 33
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. agens e atores, com base na
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transposição desse imaginário, supostamente tão longínquo, para o


, • configuraçoes 1
de suas vanas ., '. mgu1 • 1 ibérica globa11zaç:
- -.. u e contexto social brasileiro do início do século XX?
- penencia co oma ' 'E '
articulaçao entre ª ex xercício de pesquisa inova~ e Uma das matrizes inspiradoras dos nossos intelectuais foi a
I
novas sensibilidades _resu t~ em ma da temporalidade histórica
1, Espanha. Marcando a influência francesa, fato inconteste na nossa
gratificante · Nessa d1scussao, o ese pense acontecimento,
. . dO que O
. a1em,
cultura modernista, praticamente nos esquecemos de conferir os
adquire centralidad:, exigm d • em Trata-se de considerar vínculos com a Espanha. Não a Espanha dos tempos de Cervantes
do momento cronologico que lhe eu ong . . .
.d d ,, que confere sentido aos aconteci- mas uma Espanha atualizada e mediada pela ação criadora dos
a "espessura da temporalI a e , . .
mentos. Um acontecimento social, ~ão imp~rta de natureza seJa, intelectuais latino-americanos. Em Modernismo no Rio de Janeiro
é criado e deslocado no circuito ativo da vida cot1diana, c~m?osta ( 1996) trabalhei com essa questão analisando as conexões entre os
por percepções, valores e comportamentos extremamente d1stmtos, imaginários brasileiro, latino-americano e espanhol. O ponto comum
a densidade é o lugar da história (F ARGE, 2002). é a situação periférica desses países e as contradições enfrentadas
Data de um período razoavelmente recente, a pr?~os~ de_ r~m- ao longo do processo de modernização.
per hiato que por tanto tempo isolou o Brasil ~aAmenca hispa~ca. Na virada do século XIX, a Espanha atravessava uma crise
O
Alguns estudos na área da literatura já vêm tnlhando esse cammho política sem precedentes. Abalado pelo fim das guerras coloniais e
entre os quais se destacam os de Raul Antelo ( 1979b), Belluzo ( 1990) pela intervenção dos Estados Unidos, o país vivia um momento de
e, mais recentemente, os de Silviano Santiago (2006). desencanto com a política, experimentando forte sentimento de perda
de confiança nacional. Condenavam-se os representantes políticos e
Geração de 1898: a luta inglória dos intelectuais seus métodos de administrar a coisa pública. Essa situação de deso-
Passado colonial, situação periférica, busca obstinada da rientação social seria particularmente vivenciada pelos intelectuais
identidade nacional são experiências históricas que aproximam o da denominada "geração de 1898". O grupo passou a considerar a
Brasil e os países da América Latina. Mas na virada do século XIX, arte e a literatura como instrumentos de transformação social.
quando ocorre de forma sistemática o processo de instauração da No Brasil ocorre um processo semelhante com a denominada
modernidade, é que encontramos algumas conexões inesperadas. geração dos "intelectuais mosqueteiros" conforme sugere Sevcenko
Nesse contexto, há uma vertente do imaginário brasileiro sobre (1992). Assim como nossos intelectuais tentavam resgatar as raízes
a modernidade, que retoma personagens da tradição clássica espa- populares, os espanhóis acreditavam que a "alma da Espanha" esta-
nhola, como Gil Blás e D. Quixote. Esses heróis pícaros inspiram os ria na vida cotidiana do povo, nos seus hábitos simples e não mais
títulos de algumas das nossas revistas literárias. Entre 1895 e 1903, nos acontecimentos espetaculares da história. O filósofo Miguel de
é publicada a D. Quixote, uma revista satírico-humorística sob a Unamuno enfatizava a vida dos milhares de homens sem história
direção de Ângelo Agosttini, um dos nossos maiores carica~stas. e Canivet destacava a classe operária como verdadeiro arquivo
Tendo como protagonistas Sancho Pança e D. Quixote, a publica- da nacionalidade, enquanto Pio Baroja estudava os costumes e os
ção comentava os acontecimentos cotidianos, conferindo particular
hábitos populares.
ênfase aos problemas políticos e sociais da nacionalidade. Com esse
Era consenso a ideia de que a política seria incapaz de lidar com
mesmo título e perfil, Bastos Tigre, dirigiu entre 1917 e 1927 outra
o complexo e frágil artefato que era a nação moderna. Caberia aos
publicação humorística.
intelectuais, através da pesquisa das tradições populares, desvendar
As questões ~ue se colocam são: como tais personagens oriun-
o enigma da nacionalidade.
., dos da moderna literatura europeia do século XVII conseguiriam
expressar elemen~os da nacionalidade brasileira? Qual apelo de
Miguel de Unamuno defendia essas ideias em Vida de Don
Quijote y Sancho, escrito em 1905, quando se comemorava o terceiro
liit· atualidade transmitiam ao público leitor?. Corno, enfi m, ocot\Jta
, a
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centenário da pu b icaç~0
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MODERNO, l'10DEl!.NIOAf>E E HOOEANtsMo

(mesmo que conflitante) da cultura latina é produto de um processo


iniciado durante a colonização espanhola.
. d tn· t figura que tivera 0 J 'Ili!!,," _ Tais ideias reforçam a necessidade do historiador de manter-se
cavaleiro a s e ' . i·dade espanhola. Para a geraçao
, b I dentor da nac1ona 1 atento à dinâmica processual da cultura. Rever a concepção de um
como sim o o re d 1 U amuno fazia parte, era urgente de-
intelectual de 1898, a qua n ,, d l tempo linear, cronológico e sucessivo para pensar em termos de uma
. d " eneração intelectual , que evo vesse
fender um movimento e reg temporalidade densa, agregadora, múltipla e particularmente fecunda.
a dignidade aos espanhóis. . . A partir desse quadro, pode-se entender a historicidade e as especi-
Tais. I"deias
. sao- a!tamente mobilizadoras para os mtelectua1s . ficidades que revestiram um modernismo comumente identificado
.
latmo-amencanos.. Como O personagem de Cervantes,. eles. tenam como "periférico".
·
uma mserçao - so ci·a1 problemática, devido a sua essencial
. . diferença
, . Na virada do século XIX e no início do XX, podemos vislum-
em relação ao conjunto. Considerados sonhadores e v1s1onanos, os
brar uma rede de influências abrangendo a Espanha, passando pelos
intelectuais, através da leitura de Miguel de Unamun~, eram rea-
bilitados como altruístas, justiceiros e idealistas. Essa imagem dos países latinos e alcançando o Brasil. Desencanto com o universo da
intelectuais capazes de sacrificar seus projetos de vida pessoal em política, visão estetizante do mundo, crença no papel transformador
função da coletividade era bem expressiva. da arte e na função redentora dos intelectuais são pontos comuns em
evidência. Se a demanda da "alma popular" com seus mitos, crenças
A figura paradoxal de D. Quixote servia para jogar com as fortes
e lendas adquire um tom beirando ao dramático este frequentemente
dificuldades que representava a entrada desses países considerados
combina com o satírico-humorístico.
periféricos na modernidade. Mas bem antes da obra de Miguel de
Unainuno, escrita em 1905, alguns latino-americanos já chamavam Seguramente, essa linguagem mobilizou o diálogo entre os mo-
a atenção para a simbologia do personagem cervantino. Sugeria-se dernismos. O fato de simbolizar e tornar risíveis determinados aspectos
que ele fosse tomado como exemplo para o novo continente, caso da problemáticos da realidade funcionou como poderosa identidade
obra do equatoriano Juan Montalvo Capítulos que se !e olvidaram agregadora. A visão crítica da nacionalidade, o aspecto excludente
a Cervantes (1898). da modernidade e principalmente o papel do intelectual como herói
A influência do autor no imaginário da América hispânica, já marginal destituído de missão figuram como os grandes temas.
no século XVII, era um fato. Apesar do rígido controle da censura, Transcontextualizado, atualizado e transformado em tipo carica-
a circulação das obras de Cervantes nesses países acabou ocorrendo, tural, o personagem clássico de Cervantes consegue expressar uma das
frequ_entemente pelas narrativas orais. Em 1911, Francisco Rodriguez questões-chave do modernismo latino-americano: a posição outsider
Marun, em E/ Quijotey Don Quijote enAmerica, registra a presença de do intelectual e da nacionalidade. Na virada do século XIX, quando
personagens cervantinos nas festas populares como a que ocorrera no está em curso o modernismo da América hispânica são lançadas várias
Peru, em 1607: por ocasião da posse do novo vice-rei. Pessoas masca- revistas, tendo como título D. Quixote e/ou Sancho Pança em Cuba, no
radas de D. ~ixote, de Sancho, de Dulcineia e do cura se misturavam à Chile, na Argentina, no México. Também na Espanha e em Portugal
dança dos natJ.vos. De alguma forma a obra adequara . . , . proliferam essas publicações. Através delas percebe-se claramente o
1 · , -se ao 1magmano
atmo, me_sc_la_ndo-se com aspectos da cultura indígena local. quanto fora difícil sustentar as teses iluminístas da razão, do progresso
No m1c10 do século XX · , e da alta cultura.
, · espanhol Cab 1 b ' Ja estavam em curso releituras do
c1ass1co

.
americano estava .acon; emdra: que o movimento modernista latino- Os quixotes metaforizam uma situação de profundo incômodo e
de D. Quixote entre oesc_ent º1 Justa_ment~nessaépoca.Asimbologia inadequação, expressando uma realidade de contrastes e ambiguidades.
,_,.. de uma hora para outra O
m e ectua1s lati ·
, ~o-amencanos não ocorre O personagem incorporava a oscilação entre os domínios da realidade
. aspecto h1bndo, plural e comb~ rio e os da ficção, situação familiar ao cotidiano desses países.

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li \\ COLEÇÃO " HISTORIA &... REFL.EXôES" ,..

1 '' ~ '-
Nesse contexto ganhou força o herói pícaro. Sua propriedad} 4'APÍTULO 1
é apresentar-se como anti-herói, confrontando com a adversidade.
Macunaíma, personagem da obra de Mário de Andrade dialoga com
esse contexto cultural.
No cenário da modernidade, o intelectual começava a despontar Em busca
como peça fundamental. Pode-se dizer que a atuação do intelectual
moderno, entendida como intervenção social, teve a sua origem no
\' Manifesto dos intelectuais, em 1897, através do movimento lide-
rado' pelo escritor Émile Zola. A partir desse momento ele passaria
a ser associado sistematicamente à luta pelas conquistas sociais.
Nos países onde a modernização ocorreu em clima de conflitos e
desigualdades sociais profundos, a linguagem humorística funcio-
A temática da bra
nou frequentemente como um recurso estratégico de simbolização.
11obilizando os mais ,
Nesse cenário marcado pela experiência colonial as querelas entre o <ompuseram a "geraçii
clássico e o moderno ganham novos sentidos e podem se transformar </e 1800/1920, inspirai
em apelo dramático, beirando o cômico. É o caso do personagem cécada de 1930.
D. Quixote, ao conclamar: "A vencer o a morir!... de ri;a".
Meio século ant<
A partir desse jogo instável de forças incessantemente recriadas e ;irte Moderna, ocorria
simbolizadas pode-se pensar a conformação dos modernismos latinos. ele "Modernismo" pel<
Mas voltemos agora para a trajetória do moderno brasileiro. <bra História da !itera
1
1 1ciocinannos em tenn
<onsiderando as várias I
<o moderno. É na conjw
\· <ue conformarão a cultu
< evolucionismo de Dar
1[ippolyte Taine e Renru
<o pensamento social bt
Endossando tais id<
eu partindo parn a polê
eorno chave interpretati 1
1 .ranha, Capistrano de Jl
s io referência obrigatóri,

---~
• A expressão "brasilidade modem
Moraes, que alertou para a impc
modernistas. O autor destacou o
estética da vida (1921), para a co
rentes antropofágica e verde-amar

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