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PARTE 1 Essa coisa chamada sono CAPITULO 1 Dormic... ‘Voc? acha que dormiu o suficiente nessa semana que passou? Consegue se Jembrar da iiltima vez. que acordou sem despertador sentindo-se revigorado, nao tendo que recorrer a cafeina? Sea resposta a qualquer dessas perguntas for negativa, vocé nao esté sozinho. Dois tercos dos adultos em todos os pafses de- senvolvidos no seguem a recomendagao de ter oito horas de sono por noite.* Duvido que esse dado tenha surpreendido voce, mas talvez.as suas conse- quéncias o espantem. O habito de dormir menos de seis ou sete horas por noite abala o sistema imunolégico, mais do que duplicando 0 risco de cdncer. Sono insuficiente é um fator de estilo de vida decisivo para determinar se um indi- viduo desenvolverd doenca de Alzheimer. Sono inadequado — até as reduces moderadas por apenas uma semana — altera os niveis de agticar no sangue de forma tio significativa que pode fazer com que a pessoa seja classificada como pré-diabética. Ele também aumenta a probabilidade de as artérias corondrias ficarem bloqueadas e quebradigas, abrindo assim 0 caminho para doengas cardiovasculares, derrame cerebral e insuficiéncia cardfaca congestiva. Confir- mando a sabedoria profética de Charlotte Bronté de que “uma mente agitada faz um travesseiro inquieto’, a perturbagao do sono também contribui para to- das as principais enfermidades psiquidtricas, incluindo depressio, ansiedade e tendéncia ao suicidio. Talvez vocé também tenha reparado que sente mais vontade de comer quando esta cansado. Isso nao é coincidéncia: a insuficiéneia de sono eleva * Tanto a Organizagio Mundial da Saide quanto a National Sleep Foundation dos Estados Unidos estipulam uma média de oto horas de sono por noite para os adultos. a concentragdo de um horménio que nos faz. sentir fome ao mesmo tempo que refreia um horménio complementar que, ao contrétio, gera satisfagio mentar. Apesar de estar satisfeito, vocé ainda quer comer mais — uma receita ‘comprovada para o ganho de peso tanto em adultos quanto em criangas com deficiéncia de sono, Pior, quando tentamos fazer dieta, mas nao dormimos 0 bastante, ela se prova imiitil, j que a maior parte do peso que perdemos é de massa corporal magra, nao gorda. ‘Ao somar as consequéncias para a saiide jé citadas, fica mais facil aceitar uma relagdo comprovada: quanto mais breve é 0 seu sono, mais breve ser a sua vida. Portanto,a velha maxima “Dormirei quando estiver morto’é intel adote tal atitude e voce estar morto mais cedo e a qualidade dessa vida (mais curta) ser4 pior. O elastico da privacao de sono s6 pode se esticar até certo ponto antes de arrebentar. Infelizmente, os seres humanos sao a tinica espécie {que se priva deliberadamente de sono sem obter um ganho legitimo. Todos os componentes da satide fisica, mental e emocional e incontéveis costuras do tecido social esto sendo erodidos pelo nosso oneroso estado de negligéncia do sono: tanto humano quanto financeiro, A Organizagao Mundial da Saide (OMS) inclusive jé declarou que ha uma epidemia de privagio de sono em to- dos 0s pafses industrializados.* Nao por acaso, os pafses onde o tempo de sono diminuiu de forma mais acentuada durante o tiltimo século — como os Estados Unidos, o Reino Unido, o Japdo e a Coreia do Sul e varios na Europa Ocidental — so também os que sofrem 0 maior aumento nas taxas de doengas fisicas ¢ de transtornos mentais ja mencionados. Cientistas, como eu mesmo, comecaram até a pressionar os médicos para {que passassem a “prescrever o sono”. Em matéria de conselho médico, talvez esse seja.o mais indolor e agradavel de se seguir. Mas nao confunda isso com um apelo para que os médicos passem a prescrever mais comprimidos para dormir —trata- -se justamente do contrério, considerando os indicios alarmantes que cercam as consequéncias deletérias do uso de tais medicamentos para a satide. Mas é possivel chegar ao ponto de afirmar que a falta de sono pode simples- mente levar & morte? Na verdade, sim — pelo menos de dois jeitos. Primeiro, hé * Sleepless in Ameria, National Geographic. Disponivel em: . 16 MATTHEW WALKER um transtomo genético muito raro que comega com uma insOnia progressiva que surge na meia-idade. Vérios meses apés o inicio da doenga,o paciente para de dormir por completo. Nesse estigio, ele comega a perder muitas fungdes cerebrais e corporais basicas. Nenhum dos medicamentos dispontveis atual- ‘mente o ajudara a dormir, Depois de doze a dezoito meses nessas condigées, 0 paciente morrerd. Embora seja rarissimo, esse transtorno comprova que a falta de sono pode matar um ser humano. Segundo, hé a situagdo fatal de estar ao volante de um veiculo motorizado sem ter dormido o suficiente. Dirigit com sono éa causa de centenas de milha- res de acidentes de trinsito e tragédias todos os anos. E nese caso nao é s6 a vida dos privados de sono que esté em risco, mas a de quem esta a sua volta. ‘Tragicamente, a cada hora nos Estados Unidos uma pessoa morre em um aci- dente de transito em virtude de erros relacionados & fadiga. £ alarmante saber que 0 niimero de acidentes causados por sonoléncia ao volante excede o dos causados por dlcool e drogas combinados. ‘A apatia da sociedade em relagdo ao sono se deve, em parte, ao fracasso histérico da ciéncia em explicar por que precisamos dele. O sono ainda é um dos tiltimos grandes mistérios da biologia. Todos os poderosos métodos de solugao de problemas na ciéncia — genética, biologia molecular e tecnologia digital de alta poténcia — foram incapazes de destrancar 0 resistente cofre do sono, Mentes rigorosfssimas — incluindo o ganhador do prémio Nobel Francis Crick, que deduziua estrutura de escada torcida do DNA, 0 famoso educadore retérico romano Quintiliano e até Sigmund Freud — tentaram em vio decifrar o enigmético cédigo do sono. Para melhor expressar esse estado de ignordncia cientifica anterior, ima- gine 0 nascimento do seu primeiro filho. No hospital, a médica entra no quar- to e diz: "Parabéns. £ um menino saudavel. Fizemos todos os testes prelimi- nares e parece que est tudo bem” Entdo dé um sorriso tranquilizador e se dirige para a porta; mas, antes de sair, vira-se e completa: “86 tem uma coisa. De agora em diante e pelo resto da vida, seu filho ird cair repetida e rotineira- mente em um estado de coma aparente. As vezes pode até parecer que mor- eu. E, embora seu corpo permanega imével, com frequéncia sua mente serd povoada por alucinagdes impressionantes, bizarras. Esse estado consumird uum terco de sua vida e ndo fago a menor ideia de por que ele fara isso ou para que serve. Boa sorte!” POR QUE Nés DORMIMOS 7 E espantoso, mas até muito recentemente essa era a realidade: 0s médicos © os cientistas nao tinham como dar uma resposta coerente ou completa sobre por que dormimos, Considere que ja conhecemos as fungdes dos trés outros impulsos basicos na vida — comer, beber e se reproduzir — ha muitas deze- nas, se nao centenas, de anos, Entretanto, o quarto principal impulso biolégico, comum a todo o reino animal — 0 desejo de dormir —, permanece além da compreensiio da ciéncia por milénios. Abordar a questo de por que dormimos de uma perspectiva evolucio- néria aumenta ainda mais © mistério. Qualquer que seja 0 ponto de vista que se adote, dormir parece ser 0 mais estiipido dos fendmenos bioldgicos, Quando se estd dormindo, nao é possivel obter comida. Nao é possivel so- cializar. Nao é possfvel encontrar um parceiro e se reproduzir. Nao € pos- sivel se alimentar ou proteger a prole. Pior ainda, 0 sono deixa o individuo vulnerdvel aos predadores. Dormir & sem dtivida um dos comportamentos humanos mais intrigantes, Por quaisquer dessas razdes — quigé por todas elas combinadas —, deve ter havido uma forte pressio evolucionéria para impedir o surgimento do sono ‘ou de qualquer coisa remotamente parecida. Como declarou um cientista do sono: "Se o sono nao serve a uma fungio absolutamente vital, ele €0 maior erro jd cometido pelo processo evolucionério’* Entretanto, 0 sono perseverou — e o fez. heroicamente. De fato, todas as espécies até hoje estudadas dormem.** Esse simples fato estabelece que o sono ‘evoluiu com a prépria vida em nosso planeta ou muito pouco depois dela, Além disso, a subsequente persisténcia do sono ao longo de toda a evolugo significa que deve haver beneficios enormes que superam muito todos os riscos e pre- jufzos ébvios Em tiltima analise, perguntar "Por que nés dormimos?” era a questo er- rada, pois implica que haveria uma tinica fungao — um santo graal de uma razio pela qual dormimos — e insistimos em desvendé-la. As teorias variavam do légico (um tempo para conservar energia) ao peculiar (uma oportunidade para.a oxigenagio do globo ocular), passando pelo psicanalitico (um estado nio consciente em que realizamos desejos reprimidos). "Dr: Allan Rechtschatfen, Kushida, C. Encyclopedia of Sleep. Volume 1 (Esever,2013). 18 MATTHEW WALKER

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