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INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
EM SAÚDE: ARTICULANDO
TRABALHO, CIÊNCIA
E CULTURA

VOL. 8
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Presidente
Paulo Ernani Gadelha Vieira

ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO

Diretor
Paulo César de Castro Ribeiro

Vice-diretora de Ensino e Informação


Páulea Zaquini Monteiro Lima

Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico


Marcela Pronko

Vice-diretor de Gestão e Desenvolvimento Institucional


José Orbílio de Souza Abreu
INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
EM SAÚDE: ARTICULANDO
TRABALHO, CIÊNCIA E
CULTURA
VOL. 8

ORGANIZAÇÃO
Marcela Pronko
André Dantas
Anakeila de Barros Stauffer

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio


Rio de Janeiro
2014
© 2014 dos autores
Todos os direitos desta edição reservados á Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz

Capa e Editoração Eletrônica


Maycon Gomes

Conselho Editorial
Marcela Pronko (Coordenação executiva) José Roberto Franco Reis
Bianca Cortes Márcia Valeria Morosini
Carla Martins Márcio Rolo
Cláudio Gomes Maria Inês Bravo
Filipina Chinelli Selma Majerowicz
Grasiele Nespoli Paulo Guanaes
José dos Santos Souza Ramón Peña Castro

Catalogação na fonte
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Biblioteca Emília Bustamante

P965i Pronko, Marcela (org.)


Iniciação científica na educação profissional em saúde: articulando trabalho,
ciência e cultura, volume 8 / Organização de Marcela Pronko, André Vianna Dantas
e Anakeila de Barros Stauffer. – Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, 2014.

714 p.

ISBN: 978-85-98768-74-8

1. Educação profissionalizante. 2. Pesquisa. 3. Saúde. 4. Assistência à saúde.


5. Agente comunitário de saúde. 6. Iniciação científica. I. Título. II. Dantas,
André Vianna. III. Stauffer, Anakeila de Barros.

CDD 370.113
SUMÁRIO

Apresentação 9

Relação entre leitura e aprendizagem 11


de matemática
Anderson Gomes da Silva

Singularidade, ação e renovação de mundo: 45


a amizade na escola e suas potencialidades
Anna Luiza B. Martins

Sobre a criminalização da pobreza: 77


da “regeneração” ao extermínio dos pobres
Clarice Ramiro

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo 97


no Brasil: de JK à ditadura militar
Crislainy Ribeiro Pellegrine

Produção da imagem fotográfica no âmbito do 127


Curso Técnico de Vigilância em Saúde da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz
Cristopher Costa de Mattos

O tropicalismo na cultura brasileira 147


Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves

Precarização do trabalho em saúde: o caso dos 171


agentes comunitários de saúde no âmbito da
Estratégia Saúde da Família em Manguinhos
Diana Carolina dos Santos Teva
O neoliberalismo e a crise no mundo do 203
trabalho a partir dos anos 1990
Fabio Mathias da Silva Junior

Identificação dos aspectos bioquímicos do 227


veneno das serpentes do gênero Micrurus e
seus efeitos no corpo humano
Gabriel Gaspar Garcia

Os novos consumidores: a influência da 261


propaganda de alimentos direcionada
ao público infantil
Gabriela Fernandes Flauzino Santos

Uma história do Carnaval: o processo de 277


mercantilização da folia
Guilherme Estevão de Lima Maciel

A relação do surdo com a música 309


Isabel Cristina Lopes Barbosa

Trabalho e propriedade no Segundo tratado 339


sobre o governo civil, de John Locke
João Paulo Rodrigues dos Santos

As ações do Estado brasileiro na indução ao 359


consumo de agrotóxicos
Jorge Luis da Costa Silva

O uso da equoterapia no tratamento de 397


crianças autistas
Juliana Pereira do Nascimento
O processo de consolidação do Complexo da 423
Maré na metrópole carioca
Laís Clemente de Oliveira

Estudos de aspectos relevantes da 453


criação de primatas não humanos
usados na pesquisa científica
Maysa Leandro de Assis

Sertão brasileiro: para progredir e 479


educar é preciso sanear
Mônica Santos da Silva

Os efeitos da prática de exercícios físicos no 501


sistema imune em idosos
Raquel Pinto Nunes

A música punk como expressão de 535


um movimento jovem
Steffi Lema Suárez Penetra

O panorama histórico do hip-hop 563


Tais Almeida da Silva

Anotações sobre a história da oposição 593


conceitual entre Ocidente e Oriente
Talita de Andrade Ferreira

Resposta imune à leishmaniose 623


visceral humana e aspectos
imunopatológicos da coinfecção com HIV
Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves
Terapia gênica e bioética 651
Victoria Gomes Pereira dos Santos

Redação da bula de medicamentos: 681


uma análise interdisciplinar
Yuri Ferreira Coloneze
APRESENTAÇÃO

Idealizada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/


Fiocruz) como forma de reafirmar o compromisso, por mais este canal, com
a máxima publicização de sua produção científica, a série Iniciação Científica
na Educação Profissional em Saúde chega ao seu oitavo volume, trazendo
a público os primeiros trabalhos científicos de fôlego de nossos jovens es-
tudantes do curso de formação profissional de nível médio em saúde, no
âmbito do Projeto Trabalho, Ciência e Cultura (PTCC).
Criado em 2001, pensado e distribuído ao longo das três séries da
formação regular, o PTCC tem como culminância a elaboração e a defesa
de uma monografia, cuja escolha do tema é de responsabilidade do próprio
formando, e que se configura como um dos requisitos indispensáveis para a
integralização e finalização do curso. O que o leitor tem em mãos, portanto,
é uma pequena amostra dessa produção recente. Aos educandos que, em
um primeiro momento, tiveram o seu trabalho indicado para publicação pela
banca de defesa de monografia, foi solicitado que produzissem um artigo
simples que condensasse, em espaço mais estreito, o essencial do debate pro-
movido no trabalho original. Na sequência, todos os artigos enviados foram
submetidos à análise do Conselho de Política Editorial (CPE) da EPSJV. Desse
processo resultou o conjunto de artigos que integram o presente volume.
A todos, uma boa leitura!

Marcela Pronko
André Dantas

Iniciação Científica na Educação Profissional em Saúde: articulando trabalho, ciência e cultura - vol. 8
9
RELAÇÃO ENTRE LEITURA E
APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA

Anderson Gomes da Silva *

INTRODUÇÃO

A educação compreende os aspectos da formação dos indivíduos


seja na família, no trabalho, no convívio com outras pessoas ou na escola.
No que diz respeito ao desenvolvimento dos cidadãos na escola, tem-se
a expectativa de que as atividades desenvolvidas nessa instituição estejam
vinculadas ao cotidiano, na medida em que devem preparar os educandos
para o exercício da cidadania.
No Brasil, o marco legal para a educação básica é a Lei de Dire-
trizes e Bases (LDB), de 1996, que estabelece as regras para a organiza-
ção da educação escolar nacional. A educação básica está estruturada
em três níveis de ensino: educação infantil, ensino fundamental e ensino
médio, sendo esse último nível não obrigatório. “A preparação básica
para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo,
de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições
de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores” (BRASIL, 1996, p. 27.833) é
uma das finalidades do ensino médio. Tal finalidade merece destaque, pois
remete aos processos sócio-históricos que influenciaram a redação da lei.

*
Ex-aluno do Curso de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, com habilitação técnica em
Gerência em Serviços de Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Matemática na Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou
com a orientação dos professores-pesquisadores Fabiano Figueiredo Gomes (mestre em Matemáti-
ca) e Viviane dos Ramos Soares (mestre em Linguística), ambos do Laboratório de Formação Geral
na Educação Profissional em Saúde (Labform). Contato: andersongs@hotmail.com.br.

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


11
Na década de 1980, com a crise do Estado de bem-estar social,1 sur-
giram os primeiros governos neoliberais nos países centrais.2 A principal mu-
dança introduzida no cenário mundial com o advento do neoliberalismo foi
a não intervenção do Estado na economia. Na década seguinte, diversos
organismos multilaterais3 sugeriram mudanças na economia e na educação
de países periféricos4 para configurar governos neoliberais.
No Brasil, um país periférico, a implantação do neoliberalismo ocor-
reu com a chegada de Fernando Collor de Mello à presidência em 1990.
O país aderiu não somente à mudança na economia, mas também às
propostas sugeridas pelas organizações internacionais que diziam respeito
à educação, o que culminou na redação da LDB e de outros documentos,
como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),5 que serão analisa-
dos no decorrer do texto. O processo de elaboração desses documentos
legais não ocorreu a partir de construção coletiva, mas pela imposição de
organismos multilaterais. Houve uma diferença de prioridades entre as rei-
vindicações de trabalhadores e as dos empresários. Enquanto aqueles de-
sejavam a criação de centros de formação profissional, esses procuravam
intervir na educação geral, participando mais nos debates sobre a LDB
(SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
Como foram mais influenciados pelos empresários, a LDB e os de-
mais textos legais produzidos pelo Ministério da Educação (MEC) possuem
profunda relação com um tipo de pedagogia que pressupõe a existência de
uma relação entre educação e inserção no mercado de trabalho. Atualmente,
para conseguir um emprego, o profissional deve ser capaz de se adaptar com

1
Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado capitalista passou por uma fase conhecida como Es-
tado de bem-estar social, caracterizada pela intervenção do Estado na economia e na sociedade
(SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
2
Países centrais são aqueles cuja economia é mais desenvolvida e que, pela maior detenção de po-
der político, exercem influência sobre as nações menos desenvolvidas economicamente (COELHO e
TERRA, 2003).
3
Organismos multilaterais são organizações compostas por países membros para promover um
objetivo comum. É importante ressaltar que, como tais organizações são dominadas pelas potências
econômicas mundiais (principalmente pelos Estados Unidos), possuem o papel de atender às de-
mandas econômicas destes países (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
4
Países periféricos são aqueles que, devido ao menor desenvolvimento econômico, são dominados
economicamente por países centrais (COELHO e TERRA, 2003).
5
Os PCNs têm o objetivo de difundir a reforma curricular iniciada pela LDB. O documento traz o
perfil do currículo, que está baseado em competências (ver, por exemplo, BRASIL, 2000).

Anderson Gomes da Silva


12
facilidade às tecnologias, já que elas se tornam cada vez mais rapidamente
obsoletas e são substituídas por outras. O reflexo disso na educação brasileira
é a necessidade de aplicar avaliações aos estudantes a fim de aferir a adap-
tabilidade dos mesmos às tecnologias. O MEC aplica exames6 buscando
fomentar a melhoria da “qualidade do ensino” (aqui essa expressão refere-se
ao objetivo de formar cidadãos produtivos para o mercado de trabalho).
Os exames do MEC destacam duas disciplinas: a Língua Portuguesa e
a Matemática, pois, de acordo com o Plano de Desenvolvimento da Educa-
ção (PDE), documento do Ministério da Educação, os resultados alcançados
nessas áreas “refletem a aprendizagem de todas as áreas do conhecimento
trabalhadas na escola” (BRASIL, 2009, p. 5).
Cabe destacar que, como em todo exame, está implícito o contexto
no qual os alunos participantes estão inseridos, e é com base nele que o
processo de ensino e aprendizagem é construído. Como o contexto em
questão é o capitalismo, evidencia-se, nas provas do MEC, um forte víncu-
lo entre a matemática e o modelo econômico vigente. Segundo Ferreira,
“não se pode avaliar a competência matemática de um indivíduo ou de
um grupo fora de seu contexto sociocultural, pois as práticas matemáticas
são qualitativamente diferentes de um contexto para outro” (1994, p. 37).
Quanto ao processo de ensino e aprendizagem de língua portu-
guesa, um aspecto importante é a leitura – sendo que esse termo desig-
na não somente a decodificação de signos, mas também a atribuição de
sentido (ORLANDI, 2006). A leitura e, consequentemente, a interpretação
perpassam a aprendizagem de todas as áreas de conhecimento. Para a
matemática, em particular, os objetos de estudo da língua portuguesa po-
dem ajudar os alunos a entenderem definições, e suas consequências e/ou
resultados, textos e problemas matemáticos.

6
O órgão do governo responsável pela aplicação desses exames é o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). As principais avaliações voltadas para a educação bá-
sica são Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Programa Internacional de Avaliação de Alunos
(Pisa), Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), Provinha
Brasil e Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que é composto de duas avaliações com-
plementares: Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb) e Avaliação Nacional do Rendimento
Escolar ou Prova Brasil (Anresc).

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


13
Indicadores como o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf)7 e o
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb)8 sinalizam,
sob diferentes perspectivas, o nível crítico de grande parte da população
brasileira em relação à aprendizagem de matemática e de língua
portuguesa. A semelhança entre as avaliações consiste na constatação
de que há dificuldades na aprendizagem das disciplinas em questão.
Quanto à matemática, sabe-se que vários fatores podem interferir no
processo de aprendizagem, por exemplo, aspectos motivacionais.
Entretanto, devido às limitações desta pesquisa, os aspectos analisados
serão referentes apenas à leitura e aos conhecimentos prévios de
matemática necessários para resolver questões contextualizadas que
envolvam conteúdos referentes ao ensino médio. Cabe destacar que tais
aspectos não estão dissociados, visto que a leitura é importante para
o desenvolvimento de todas as áreas de conhecimento. As dificuldades
de aprendizagem da referida disciplina serão abordadas mediante a
análise de todas as questões (ou itens) do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem), propostas nos anos de 2006 e 2007,9 diretamente ligadas
à matemática, tendo em vista que estes são os anos mais recentes para
os quais foram disponibilizados os respectivos relatórios pedagógicos
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) (2006 e 2007).
As questões de matemática do Enem são contextualizadas, ou seja, são
feitas com base em situações-problema. Os elaboradores procuram avaliar
as competências e habilidades desenvolvidas especificamente com o auxílio

7
O Inaf foi criado em 2001 pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM), em parceria com a organização
não governamental Ação Educativa, com a finalidade de fornecer informações acerca das habili-
dades e práticas de leitura, escrita e matemática da população adulta brasileira entre 15 e 64 anos
(SOARES, 2003).
8
O Saeb é um mecanismo de avaliação do Ministério da Educação (MEC) composto pela Avaliação
Nacional da Educação Básica (Aneb) e pela Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc) ou
Prova Brasil. O primeiro exame é aplicado a alunos da 4ª e 8ª séries do ensino fundamental e do
3º ano do ensino médio e possui caráter amostral, ao passo que o segundo não avalia estudantes
do ensino médio, mas seu caráter é universal. O objetivo desse sistema é servir de subsídio para
a formulação de políticas voltadas para a educação, visando à melhoria da qualidade do ensino.
Aqui, o termo qualidade deve ser entendido tendo por base o modelo de educação que se busca
consolidar no Brasil (SOARES, 2003).
9
As provas do Enem referentes aos anos de 2006 e 2007 encontram-se disponíveis no seguinte
endereço eletrônico: http://portal.inep.gov.br/web/enem/edicoes-anteriores.

Anderson Gomes da Silva


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da escola e adotam uma concepção de conhecimento segundo a qual ele é
construído continuamente nas diferentes interações sociais e com o mundo
físico. Em outras palavras, de acordo com o modelo proposto pelo exame,
o conhecimento é interdisciplinar e dinâmico (INSTITUTO NACIONAL DE
ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2006).
O Enem é uma avaliação estruturada em torno de cinco competências
(ou qualificações gerais) comuns a todas as áreas de conhecimento. As com-
petências, por sua vez, são divididas em 21 habilidades ou qualificações espe-
cíficas. Em 2006 e 2007, vigorava o modelo composto por 63 questões (três
questões para cada habilidade) e uma redação. Em 2009, o Enem foi refor-
mulado, passando a ser composto por 180 questões, e a redação foi mantida.
Do total de habilidades, quatro se relacionam de modo mais direto à ma-
temática. As qualificações específicas demandam conhecimentos de funções,
estatística, geometria e probabilidade.

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO CONTEXTO


DO NEOLIBERALISMO

O processo de desenvolvimento de cidadãos que ocorre na es-


cola está relacionado ao contexto sócio-histórico neoliberal,10 de modo
que a educação escolar é influenciada pela disputa entre classes so-
ciais (ALGEBAILE, 2009). A classe dominante tem a expectativa de que
sejam formados cidadãos produtivos para o capital no seguinte sentido:
precisa-se de mão de obra qualificada para perpetuar a acumulação
de capital, mas não é necessário que os trabalhadores reflitam critica-
mente sobre o processo de trabalho. Nacional e internacionalmente,
observa-se a valorização das forças de mercado e sua repercussão
nas políticas educacionais, conforme foi expresso por diversos organis-
mos multilaterais especialmente na década de 1990. O que ocorreu

10
O neoliberalismo é uma fase do sistema econômico capitalista que teve início no início da
década de 1980, na Inglaterra, durante o governo de Margaret Thatcher (SHIROMA, MORAES e
EVANGELISTA, 2000).

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


15
nesse período é reflexo de mudanças que tiveram início na década
anterior (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
Nos anos 1980, durante o governo de Margaret Thatcher na Inglaterra,
o capitalismo iniciou uma fase conhecida como neoliberalismo, uma dou-
trina econômica. Há oposições entre o discurso neoliberal e o que ocorre
na prática, que se justificam pelas contradições inerentes a qualquer doutrina
econômica. O discurso do neoliberalismo é baseado em três características
principais: a) livre concorrência, embora os monopólios privados11 impeçam
que a concorrência seja, de fato, livre; b) Estado mínimo no setor social, ou
seja, são feitos poucos investimentos na área, o que na prática significou a
perda de muitos dos direitos adquiridos com as políticas de bem-estar social
do pós-guerra;12 e c) não intervenção do Estado na economia, permitindo que
o mercado regule a si mesmo pela lei da oferta e da procura.13 Sendo assim, são
mínimas as barreiras para que o capital acumulado por grandes empresas se
expanda (COELHO e TERRA, 2003).
O neoliberalismo se difundiu pelo mundo assumindo diferentes ca-
racterísticas, conforme o local onde era implantado. Na América Latina, o
modo encontrado para disseminar essa forma de atuação estatal foi
o Consenso de Washington, de 1989. A partir de uma reunião feita em
Washington, foi elaborado um programa prevendo políticas e reformas
necessárias para que o neoliberalismo fosse implantado nos países que
compõem a América Latina. O Consenso de Washington expressa, na
verdade, a visão estadunidense sobre o modo como os países perifé-
ricos – e, em especial, os latino-americanos – deveriam conduzir suas
políticas econômicas, porque seus participantes foram representantes

11
Monopólios privados ocorrem quando pequeno número de empresas voltadas para a mesma
área detém a maior parte do mercado consumidor. Com isso, a concorrência com qualquer em-
presa menor é desleal e, portanto, há uma inibição para empresários que queiram investir no setor
da economia em questão (COELHO e TERRA, 2003).
12
Quando havia investimentos dos Estados no período do bem-estar social na economia e na
sociedade, esses dois elementos não estavam dissociados. Quando eram feitos investimentos em
áreas como educação e saúde, por exemplo, o objetivo era o de que os indivíduos fossem formados
para, posteriormente, ser a força de trabalho. Desse modo, obtinha-se um retorno econômico do in-
vestimento feito na área social. As concessões estatais buscavam exclusivamente perpetuar a lógica
capitalista de acumulação de capital (COELHO e TERRA, 2003).
13
Segundo a lei da oferta e da procura, quanto maior a demanda, maior será, em geral, o preço em
que o produto estará disponível (COELHO e TERRA, 2003).

Anderson Gomes da Silva


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de organismos multilaterais dominados pelos Estados Unidos (SHIROMA,
MORAES e EVANGELISTA, 2000).

Vasta documentação internacional, emanada de importantes orga-


nismos multilaterais, propalou esse ideário mediante diagnósticos,
análises e propostas de soluções consideradas cabíveis a todos os
países da América Latina e Caribe, tanto no que toca à educação
quanto à economia. Essa documentação exerceu importante papel na
definição das políticas públicas para a educação no país. (SHIROMA,
MORAES e EVANGELISTA, 2000, p. 56)

Faz-se necessário explicitar as propostas de mudanças nas polí-


ticas educacionais, bem como mostrar os interesses das organizações
internacionais em elaborar tais propostas. Pelo fato de as organiza-
ções estarem subordinadas, em grande parte, aos Estados Unidos, e,
por isso, podem ser entendidas enquanto um auxílio à política externa
desse país. Como houve similaridades nas recomendações de mudan-
ças para os países periféricos, isso configurou um projeto internacional
educativo, caracterizado pela vinculação entre escola e mercado de
trabalho (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
O Banco Mundial, organismo de financiamento criado após a Segunda
Guerra Mundial e liderado pelos Estados Unidos, funciona de forma auxiliar
à política externa estadunidense, pois o país ocupa a presidência do banco,
possui poder de veto e detém cerca de 20% dos seus recursos. A existência
de um bilhão de pobres no mundo justifica a preocupação do Banco Mundial
com a educação, visto ser ela entendida como um mecanismo para conter
a pobreza. A expectativa é que, conforme as pessoas tenham acesso à edu-
cação, a taxa de fecundidade se reduza e as condições de saúde melhorem
(SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
Entre as recomendações do Banco Mundial, uma merece destaque:
a do investimento “em capital humano atentando para a relação custo-
benefício” (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000, p. 74). Isso sig-
nifica que a formação tem por objetivo capacitar o indivíduo para que
ele obtenha um emprego. Além disso, também se sugere que o ensino
contemple as inovações tecnológicas, pelo fato de vivermos na sociedade

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


17
da informação e do conhecimento (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA,
2000). Consequentemente, outra característica da educação deveria ser a
formação de trabalhadores adaptáveis, visto que as tecnologias se tornam
obsoletas rapidamente e necessitam ser substituídas.
Em suma, a ideia expressa pelo Banco Mundial é que a educação,
além de ser responsável pelo crescimento econômico, reduz a pobreza. E
essa ideia está de acordo com o projeto internacional educativo, o qual
relaciona educação e inserção no mercado de trabalho.
Em 1990, foi realizada em Jomtien, na Tailândia, a Conferência Mun-
dial de Educação para Todos. Dela participaram representantes da Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e do Banco Mundial, bem
como profissionais internacionalmente reconhecidos pelo seu trabalho
em educação. Na conferência, foi aprovada a Declaração de Jomtien,
mediante a qual, os nove países com maiores índices de analfabetismo
do mundo (entre eles, o Brasil), comprometeram-se a garantir educa-
ção básica de qualidade para crianças, jovens e adultos, e a adotar
ações visando reduzir a taxa de analfabetismo.
Segundo o projeto de educação defendido em Jomtien, as pessoas
deveriam ser capazes de satisfazer suas necessidades básicas de aprendi-
zagem, expressas em sete situações: “1) a sobrevivência; 2) o desenvol-
vimento pleno de suas capacidades; 3) uma vida e um trabalho dignos;
4) uma participação plena no desenvolvimento; 5) a melhoria da qualidade
de vida; 6) a tomada de decisões informadas; e 7) a possibilidade de con-
tinuar aprendendo” (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000, p. 58).
Observando-se essas situações, percebe-se que as atribuições da educação
são superdimensionadas e que os espaços onde ela deve acontecer são am-
pliados, pois, além da escola, a família e os locais de convívio social são
considerados instâncias educativas.
Na década de 1990, a Unesco convocou especialistas de todo o mun-
do para compor a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI,
cujo objetivo, como o próprio nome indica, era delinear o papel da educa-

Anderson Gomes da Silva


18
ção neste século. Como produto desse trabalho, foi publicado o Relatório
Delors, no qual é reconhecido o contexto de globalização, fato que acelera
a circulação de informações e aumenta a interdependência entre as nações.
Na sociedade da informação, como também é conhecido esse momento
sócio-histórico, as tecnologias são rapidamente superadas e necessitam de
outras que as substituam (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
O educando da sociedade da informação deve possuir como ca-
racterística a versatilidade a fim de adquirir e desenvolver competências
e habilidades durante a educação básica, para que suas capacidades se-
jam potencializadas nos níveis de ensino posteriores. A Unesco determi-
nou como competências da educação básica a “leitura, escrita, expressão
oral, cálculo, resolução de problemas e, no plano do comportamento,
possibilitar o desenvolvimento de aptidões, valores, atitudes” (SHIROMA,
MORAES e EVANGELISTA, 2000, p. 67). O objetivo das proposições da
Unesco é reforçar a ideia de que as qualidades dos alunos sejam desco-
bertas durante a educação básica, para serem aprimoradas posteriormen-
te visando à sua inserção no mercado de trabalho.
A concepção de educação defendida pelos supracitados organis-
mos multilaterais está centrada no papel econômico dela, ou seja, na
relação da educação com a produtividade e com a inserção dos alunos
no mercado de trabalho. As organizações internacionais levaram em
consideração o contexto de reestruturação produtiva, definindo que
o educando deveria ser flexível para se adaptar às novas tecnologias,
pois elas estão em constante processo de substituição.
No âmbito nacional, o primeiro governo neoliberal teve início em
1990, com Fernando Collor de Mello. O então presidente almejava a
inserção do Brasil na economia mundial, mas logo foi constatada a difi-
culdade de competição dos produtos brasileiros com os estrangeiros. A
desvantagem era justificada pelo fato de o fordismo1415ainda era a prin-

14
Sistema de produção em massa caracterizado pela divisão do trabalho em tarefas. Com a por-
menorização das atividades, cada trabalhador dever executar uma parte e, dessa forma, não tem
noção do processo produtivo em sua totalidade. A vantagem para os capitalistas dessa forma de
gestão e organização do trabalho é o fato de não ser necessário que o proletariado seja capa-
citado para entender todo o processo. Ele é treinado apenas para executar o mesmo movimento
repetidas vezes (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


19
cipal forma de acumulação capitalista no Brasil, enquanto alguns paí-
ses já haviam iniciado o processo de reestruturação produtiva.15 Diante
dessa situação, buscaram-se vantagens competitivas, entre as quais a
educação surgia como “um dos principais determinantes da competiti-
vidade entre os países” (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000,
p. 55). Isso significa que o avanço tecnológico estava sendo vinculado
à educação.
Nesse contexto, se inserem as medidas do Consenso de Washington,
visto que os organismos multilaterais que participaram da reunião eram favo-
ráveis ao pensamento de que cabe à escola formar cidadãos produtivos para
o capitalismo. Assim, em última instância, atribuía-se à educação a obrigação
de garantir a competitividade na década de 1990.
A Conferência Mundial de Educação para Todos influenciou a política
educacional brasileira, com a adoção de suas propostas. O Plano Dece-
nal de Educação para Todos, por exemplo, publicado no governo Itamar
Franco���������������������������������������������������������������
, estava em conformidade com as medidas tomadas em Jomtien. Ha-
via também uma identificação dessas medidas com alguns anteprojetos da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Com isso, os governantes
expressavam que o Brasil atenderia aos interesses das organizações interna-
cionais (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2000).
A repercussão das medidas sugeridas no país foi a implantação das
mesmas como se elas fossem consensuais. Outros documentos produzi-
dos na década de 1990 reforçam a visão internacional desses organis-
mos multilaterais sobre a educação. De acordo com Shiroma, Moraes e
Evangelista (2000), tais documentos continham recomendações diversas
quanto à educação, entre as quais valem ser ressaltadas as seguintes:

[...] implantação de sistema nacional de avaliação e de uma instân-


cia federal responsável pelos exames nacionais, integrada por
técnicos e professores dos sistemas públicos, por especialistas em

15
Durante os anos do segundo pós-guerra, a principal forma de acumulação de capital foi o for-
dismo. Entretanto, devido à crise de superprodução da década de 1970, foi necessário substituir
esse modelo. O toyotismo, cuja principal característica é a flexibilidade, foi a forma de gestão
que deu melhores resultados (COELHO e TERRA, 2003).

Anderson Gomes da Silva


20
avaliação e por representantes de segmentos da sociedade civil
organizada (sindicatos, pais de alunos); aplicação anual dos exa-
mes com divulgação ampla dos resultados e acompanhamento da
evolução de cada sistema. (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA,
2000, p. 78)

O Enem e outras avaliações aplicadas pelo Instituto Nacional de Estudos


e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira a partir do fim da década de 1990
atendem a essas propostas. Pode-se afirmar, portanto, que, no Brasil, as me-
didas sugeridas foram adotadas e influenciaram não apenas a redação de
documentos legais sobre educação, mas também a criação de instrumentos
avaliativos do processo de ensino e aprendizagem.
Com o advento do toyotismo, mudanças importantes, como a flexi-
bilização da produção e os avanços tecnológicos, foram introduzidas nos
processos produtivos. Na área da educação, a pedagogia das competên-
cias é o conceito que acompanha esse contexto de reestruturação produtiva
que norteia a elaboração dos documentos nacionais sobre educação. Isso
ocorre porque a pedagogia das competências16 pressupõe a existência de
uma relação entre educação e mercado de trabalho, como já foi menciona-
do, e porque, no Brasil, as propostas das organizações internacionais para
a educação foram aceitas e aplicadas.
No Brasil, o marco legal para a educação básica é a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, que estabelece as regras para a organiza-
ção da educação escolar, atribui responsabilidades aos entes federativos e
aborda os deveres do Estado. De acordo com essa lei, a educação escolar
é dividida em básica e superior. O primeiro nível é composto pela educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio.
Em um âmbito mais amplo, ou seja, o da educação nacional, tem-
se como uma das finalidades “o pleno desenvolvimento do educando, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”

16
Essa pedagogia refere-se ao desenvolvimento de competências e habilidades necessárias nos
processos produtivos, por um lado enfatizando-se a importância da aquisição das mesmas para a
inserção no mercado de trabalho, mas, por outro, desconsiderando-se a relevância dessas compe-
tências e habilidades no cotidiano (RAMOS, 2008).

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


21
(BRASIL, 1996, p. 27.833). Para o ensino médio, por sua vez, foram deli-
neadas quatro finalidades, entre as quais estão

[...] a preparação básica para o trabalho e a cidadania do


educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz
de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocu-
pação ou aperfeiçoamento posteriores; a compreensão dos
fundamentos científico-tecnológicos dos processos produti-
vos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada
disciplina. (BRASIL, 1996, p. 27.833)

Por essas finalidades, pode-se inferir que o projeto brasileiro de edu-


cação está em acordo com o projeto internacional e com a pedagogia
das competências, caracterizados pela instrumentalização do pensamento.
Cabe destacar que o entendimento do termo “instrumentalização” nesse
contexto tem o sentido de que as propostas para a área da educação es-
tejam vinculadas à utilidade que a aquisição de conhecimentos tem para o
aumento da produtividade.
Quanto às incumbências dos entes federativos, uma das tarefas
da União é “assegurar processo nacional de avaliação do rendimento
escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com
os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a me-
lhoria da qualidade do ensino” (BRASIL, 1996, p. 27.833). Para tanto,
foram criados instrumentos avaliativos como o Enem e o Saeb, por
exemplo, cuja finalidade é aferir o desempenho de alunos em diferentes
séries da educação básica.
O MEC, considerando o papel da educação na sociedade tecnológica,
elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais, que explicitam o novo perfil
definido para o currículo, considerando o papel da educação na sociedade
tecnológica. A visão apresentada no documento se apoia na ideia de com-
petências que devem ser desenvolvidas na escola com o objetivo de preparar
os educandos para a vida adulta e, consequentemente, para o mercado de
trabalho. Espera-se que as competências para o exercício pleno da cidadania
coincidam com as necessárias ao processo produtivo. Portanto, pode-se inferir
que os PCNs reforçam as sugestões defendidas pelos organismos multilaterais.

Anderson Gomes da Silva


22
Os PCNs apontam a existência de um acúmulo de informações
no ensino médio sem que elas sejam contextualizadas (BRASIL, 2000).
Durante as décadas de 1960 e 1970, o Brasil passou por um intenso
processo de industrialização; por isso, a política educacional valori-
zava uma formação de pessoas que pudessem ser produtivas para o
processo de produção em detrimento de um ensino contextualizado.
A proposta de mudança para a última etapa da educação básica, por
outra parte, contempla a atribuição de sentido ao conhecimento esco-
lar, reforçando o aspecto pragmático e utilitário do conhecimento.
Segundo os PCNs para o ensino médio, a revolução tecnológica
acelerou a circulação das informações, bem como a substituição de tec-
nologias nos processos produtivos. No âmbito escolar, o desafio é ofere-
cer uma educação que contemple as inovações, pois o “novo paradigma
emana da compreensão de que, cada vez mais, as competências desejá-
veis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das necessárias à
inserção no processo produtivo” (BRASIL, 2000, p. 11). Assim, o enten-
dimento de educação de qualidade exposto nos Parâmetros curriculares
nacionais: ensino médio compreende a transmissão de competências para
os discentes, de modo que eles posteriormente tenham uma vaga no mer-
cado de trabalho.
A escola “é uma ‘instituição social especializada’ à qual cabe re-
alizar uma forma determinada de educação” (ALGEBAILE, 2009, p. 39).
Entendendo qualidade de ensino como o cumprimento da finalidade
dessa instituição, pode-se afirmar que a classe dominante não tinha a
intenção de oferecê-la. Ao contrário, de acordo com o seu projeto de
sociedade, não era necessário universalizar o acesso à escola básica.
A burguesia buscou desenvolver uma escola que formasse um cidadão
produtivo para o mercado de trabalho.
Considerando a função específica da escola e o processo que nela
se dá, entende-se que o educando deve ser preparado para o exercício
pleno da cidadania. Oferecer educação de qualidade não implica prepa-
rar os discentes para o mercado de trabalho, como propuseram as orga-
nizações internacionais e como a pedagogia das competências reforça.

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


23
Pode-se dizer que a educação ofertada tem qualidade quando os discen-
tes formados são estimulados a refletir criticamente, favorecendo o exercí-
cio da cidadania.

INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE LÍNGUA


PORTUGUESA E MATEMÁTICA

A pedagogia das competências é o modelo pedagógico que em-


basa os documentos legais sobre educação já mencionados (LDB e
PCNs). Competências, em relação ao trabalho, designam as aptidões,
as habilidades e os atributos individuais necessários para desempenhar
qualquer função em uma organização de trabalho. Na conjuntura de
instabilidade de mercado causada pela rapidez da substituição de tecno-
logias obsoletas, as empresas passaram a privilegiar a qualificação real
dos trabalhadores (encontro entre as habilidades demandadas e as que
o trabalhador é capaz de mostrar na prática) em detrimento da qualifica-
ção expressa por diplomas (RAMOS, 2008).
Enquanto a qualificação é decorrente de uma formação, e, por-
tanto, é definitiva, as competências, por não dependerem de formação
escolar (podem ser desenvolvidas em diferentes situações, como nas ati-
vidades familiares, por exemplo) exigem instrumentos avaliativos para
serem validadas. “As competências, a partir de procedimentos de avalia-
ção e de validação, passam a ser consideradas como elementos estru-
turantes da organização do trabalho que outrora era determinada pela
profissão” (RAMOS, 2008, p. 300). Assim, percebe-se que a ênfase pas-
sou da qualificação para as competências.

Esse deslocamento da qualificação para as competências no


plano do trabalho produziu, no plano pedagógico, outro deslo-
camento, a saber: do ensino centrado em saberes disciplinares
para um ensino definido pela produção de competências verifi-
cáveis em situações e tarefas específicas e que visa a essa pro-
dução, que caracteriza a “pedagogia das competências”. Essas

Anderson Gomes da Silva


24
competências devem ser definidas com referência às situações
que os alunos deverão ser capazes de compreender e dominar.
A “pedagogia das competências” passa a exigir, então, tanto no
ensino geral quanto no ensino profissionalizante, que as noções
associadas (saber, saber-fazer, objetivos) sejam acompanhadas de
uma explicitação das atividades (ou tarefas) em que elas podem
se materializar e se fazer compreender, explicitação esta que revela
a impossibilidade de dar uma definição a essas noções separada-
mente das tarefas nas quais elas se materializam. (RAMOS, 2008,
p. 301)

A pedagogia das competências, assim como os organismos multi-


laterais, considera que a escola deve formar cidadãos produtivos para a
acumulação capitalista, atribuindo ao conhecimento somente um caráter
utilitário e pragmático para esse modo de produção da existência humana.
Em contraposição a esse tipo de pedagogia, defende-se que as re-
lações de complementaridade entre as disciplinas devem contribuir para a
construção de saberes relevantes em diferentes práticas sociais cotidianas.
Partindo do pressuposto de que a leitura perpassa todas as disciplinas,
será analisada a sua importância para a aprendizagem de matemática. A
articulação entre língua portuguesa e matemática consiste no fato de que
a “linguagem matemática não pode ser enunciada oralmente, ela depen-
de da língua materna.17 A inexistência de uma oralidade própria não per-
mite se pensar no ensino da matemática sem uma perfeita articulação com
o ensino da língua materna” (MOLLICA e LEAL, 2006, p. 40). Entretanto,
as duas disciplinas não são ensinadas de forma que os códigos ortográfico
e matemático sejam aprendidos em ação conjunta.
Faz-se necessária uma discussão sobre o ensino das duas matérias
de forma interdisciplinar. A leitura é o elemento norteador da relação entre
língua portuguesa e matemática, uma vez que, quando entendida como
prática sociocultural, ela perpassa a aprendizagem em todas as áreas de
conhecimento. Além disso, “a questão do ensino de matemática, como no

17
Primeiro idioma aprendido. Neste trabalho, quando a expressão língua materna é utilizada, ela
sempre faz referência à língua portuguesa.

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


25
caso de língua materna, reveste-se de interesse absolutamente geral, não
podendo permanecer adstrita ao universo dos especialistas” (MACHADO,
2001, p. 135).
Em diferentes práticas sociais são necessárias habilidades de leitura
e escrita. Para utilizar tais habilidades de forma efetiva, primeiro é neces-
sário ser alfabetizado. “Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o
domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e para es-
crever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para
exercer a arte e ciência da escrita” (SOARES, 2003, p. 91). O domínio
dessa tecnologia, entretanto, não garante que o indivíduo será necessaria-
mente capaz de fazer uso efetivo da língua escrita. Por isso, é necessário
fazer uma ampliação do conceito de leitura, designando com ele também
a atribuição de sentidos, e não apenas a decodificação de códigos.
O letramento refere-se ao desenvolvimento das habilidades adqui-
ridas por meio do processo de alfabetização, que permite ao indivíduo
a utilização efetiva da língua escrita em diferentes práticas sociais. Cabe
destacar que o letramento é um processo “contínuo de construção da
leitura e da escrita que não tem propriamente um ponto de chegada” (SILVA,
HORA e CHRISTIANO, 2006, p. 39).
A leitura também pode ser considerada uma prática histórica. Como
afirma Orlandi: “lemos diferentemente um mesmo texto em épocas (con-
dições) diferentes” (2006, p. 41). Essa variação da leitura diz respeito ao
fato de que cada leitor possui uma história específica de leituras, o que
contribui para a sua visão de mundo e determina a capacidade de leitura
do indivíduo.
A sociedade capitalista é composta pelas classes burguesa e prole-
tária, que lutam, respectivamente, para permanecer como e para se tornar
a classe dominante. A burguesia utiliza um discurso segundo o qual a sua
ideologia é universal. Independentemente da classe dominante, o discurso
apresentado por tal classe será o de que os seus interesses coincidem com
os de toda a sociedade (ORLANDI, 2006).
Em relação à aprendizagem de língua portuguesa, abordou-se a
leitura inserida no contexto capitalista. O modo como a LDB e os PCNs

Anderson Gomes da Silva


26
foram escritos pressupõe que todas as disciplinas devem contribuir para
a formação de cidadãos produtivos para o capitalismo, como já mencio-
nado. No que diz respeito à matemática não é diferente. Isso se verifica
principalmente quando é possível contrastar aquilo que se aprende na es-
cola a respeito dessa disciplina com outras sociedades, como faz Ferreira
(1994). A autora usa o termo etnomatemática, que diz respeito à conside-
ração de que diferentes grupos étnicos criam mecanismos de resolução de
problemas que se apresentam no seu cotidiano baseados em suas neces-
sidades. Os índios, por exemplo, em relação aos povos ditos civilizados,
têm outro modo de lidar com a matemática, pois as necessidades de
utilização dessa disciplina em seu cotidiano são diferentes. Um exemplo
é o fato de a ideia de “mais” e “menos” para as sociedades indígenas ser
diferente da ideia “dos brancos”:

Nesse sentido, o modelo capitalista a que a matemática moderna


está vinculada determina que comprar, ganhar, achar, tomar em-
prestado e mesmo roubar, implica em se ter ou ficar com mais. In-
versamente, vender, dar, perder, emprestar, doar, implica em se ficar
com menos [...]. Nas sociedades regidas por princípios de reciproci-
dade, como as sociedades indígenas de que estamos a tratar, “dar”
e “ganhar”, por exemplo, não implicam, necessariamente, em ficar
com “menos” e “mais”, respectivamente [...]. “Dar”, nessas socieda-
des, não significa “ficar com menos”; pode, ao contrário, ser equi-
valente a “receber” ou “ganhar”, já que coloca o receptor do bem
transmitido em posição de devedor, obrigado a retribuir e, portanto,
a “dar” de volta o que recebeu. (FERREIRA, 1994, p. 35)

O conhecimento de etnomatemáticas devidamente contextualizadas


oferece maior possibilidade de resolver problemas novos. “Isso é apren-
dizagem por excelência, isto é, a capacidade de explicar, de apreender e
compreender, de enfrentar, criticamente, situações novas” (FERREIRA, 1994,
p. 10). Dado o exposto, a expectativa não é a de ter uma etnomatemática
capaz de resolver todos os problemas. Parte-se, portanto, do entendimento
de que as demandas do cotidiano de diferentes grupos étnicos exigem uma
resposta, e que essa contribui para o pensamento matemático. Cada etno-

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


27
matemática é relevante desde que seja compreendida com base no contexto
sociocultural em que está inserida.
Feitas as considerações sobre a relação entre língua portuguesa, ma-
temática e sociedade capitalista, é necessário estabelecer os vínculos entre
as disciplinas em questão, pois, além de serem componentes curriculares
obrigatórios no ensino fundamental e médio, elas possuem a leitura como
ponto em comum, visto que ela perpassa a aprendizagem em todas as dis-
ciplinas. Nas palavras de Machado, “é importante que os objetos matemá-
ticos, como as palavras que utilizamos ordinariamente, sejam apreendidos
prenhes de significações e não como meras formas vazias, destinadas a
interpretações posteriores” (2001, p. 136). Isso significa que é necessário
atribuir sentido aos objetos matemáticos, o que se relaciona com a concep-
ção de leitura adotada neste trabalho.
No livro “Matemática e língua materna – análise de uma impreg-
nação mútua”, o autor afirma: “Nenhum assunto presta-se mais à explici-
tação da impregnação entre a matemática e a língua materna bem como
a uma estruturação compatível da ação docente do que a geometria”
(MACHADO, 2001, p. 137). Isso se justifica pelo fato de que o início do
desenvolvimento de conhecimentos geométricos começou de forma em-
pírica, isto é, baseado na experiência.
Os povos antigos tinham necessidades de fazer construções, medir e
calcular áreas ou volumes. A sistematização dos conhecimentos empíricos
de geometria só ocorreu posteriormente na Grécia, no século III, com o traba-
lho de Euclides intitulado Os elementos. A importância do trabalho de Euclides
foi a sua compreensão de que “a estruturação do conhecimento geométrico
deveria começar por uma assepsia na linguagem, com o esclarecimento das
noções utilizadas de modo intuitivo” (MACHADO, 2001, p. 138).
A relação estabelecida com a língua portuguesa, nesse caso, consis-
te no fato de que algumas noções intuitivas foram aceitas como noções pri-
mitivas. Para construir definições a partir delas, era necessário justificar por
meio de deduções, não sendo suficientes as evidências empíricas. Nota-se na
passagem das noções primitivas para as definições que foi necessário utilizar
a linguagem para justificar, de maneira lógica, as deduções. Nesse ponto,

Anderson Gomes da Silva


28
outras proposições denominadas postulados foram aceitas. A partir dos postu-
lados, utiliza-se a argumentação como base para a elaboração dos teoremas,
que são embasados na argumentação (MACHADO, 2001). “Euclides teve o
inequívoco mérito de evidenciar uma aproximação entre questões geomé-
tricas e questões linguísticas, antecipando, de forma rudimentar, questões
que só muito mais tarde seriam devidamente examinadas, no estudo das
propriedades dos sistemas formais” (MACHADO, 2001, p. 139).

A “VESTIBULARIZAÇÃO” DO ENEM

O Exame Nacional do Ensino Médio é uma avaliação anual aplicada


pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,
desde 1998, para concluintes ou egressos18 do ensino médio, com o obje-
tivo de fornecer aos participantes a possibilidade de autoavaliação a partir
das competências e habilidades que estruturam a prova. Desde o início de
sua aplicação, o exame é utilizado no acesso ao ensino superior. Por isso, a
quantidade de inscritos cresceu ao longo dos anos de realização do exame.
A avaliação reforça o projeto internacional de educação e se asse-
melha ao modelo da pedagogia das competências. De acordo com esse
projeto (defendido pelos organismos multilaterais) e com essa pedagogia,
a educação que se busca consolidar pressupõe a formação de cidadãos
produtivos para o capital. Assim, a reflexão crítica não é uma das caracte-
rísticas preconizadas por esse projeto de educação.
As competências norteadoras do exame justificam a relação entre o
Enem e o modelo de educação que se busca consolidar no Brasil, ou seja,
aquele que está a serviço das organizações internacionais. A aplicação
de conceitos das disciplinas (competência II) de forma integrada é uma
necessidade nos processos produtivos, pois eles são flexíveis e espera-se
que o trabalhador seja capaz de articular conhecimentos para solucionar

18
São os alunos que concluíram determinado nível de ensino em anos anteriores ao período con-
siderado. No caso do Enem, um egresso é qualquer estudante que tenha concluído o ensino mé-
dio anteriormente.

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


29
problemas do trabalho de forma criativa (competência III). Já o domínio
de linguagens (competência I) contribui para a argumentação (com-
petência IV) e, consequentemente para a elaboração de propostas
(competência V) (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS
EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2008a).
As quatro habilidades referentes à matemática, até o ano de 2008,
eram:

2. Em um gráfico cartesiano de variável socioeconômica ou


técnico-científica, identificar e analisar valores das variáveis,
intervalos de crescimento ou decréscimo e taxas de variação.
3. Dada uma distribuição estatística de variável social, eco-
nômica, física, química ou biológica, traduzir e interpretar as
informações disponíveis, ou reorganizá-las, objetivando inter-
polações ou extrapolações.
[...]
14. Diante da diversidade de formas geométricas planas e espa-
ciais, presentes na natureza ou imaginadas, caracterizá-las por
meio de propriedades, relacionar seus elementos, calcular com-
primentos, áreas ou volumes, e utilizar o conhecimento geométri-
co para leitura, compreensão e ação sobre a realidade.
15. Reconhecer o caráter aleatório de fenômenos naturais ou não
e utilizar em situações-problema processos de contagem, represen-
tação de frequências relativas, construção de espaços amostrais,
distribuição e cálculo de probabilidades. (INSTITUTO NACIONAL
DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA,
2008a)

O Enem pode ser compreendido como um dos elementos da


reforma educacional cuja perspectiva para a educação no Brasil foi
apresentada em um documento legal a partir da Constituição Federal de
1988 e que culminou na redação da LDB, em 1996. Segundo o Inep, a
lei estabelece

[...] que a educação de base responda aos desafios da vida con-


temporânea, em sua inédita dinâmica, demandando autonomia

Anderson Gomes da Silva


30
intelectual e capacidade de aprendizado permanente, o que não
se realiza com a retenção de informações ou a padronização de
atitudes por treinamento repetitivo. (INSTITUTO NACIONAL DE
ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA,
2008a, p. 31)

O fragmento citado evidencia que a avaliação não demanda dos par-


ticipantes exclusivamente a memorização, visto que um cidadão, utilizando-
se somente dela, na sociedade da informação e do conhecimento, não é
capaz de compreender a sociedade dada a rapidez com que as tecnologias
são substituídas. Portanto, em vez de enfatizar a memorização, o Enem tem
como metas a resolução de problemas, aspecto mais requerido no mundo
do trabalho (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCA-
CIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2008a).
O modelo de prova vigorou de uma maneira até 2008. Em 2009,
o Enem foi reformulado e, por isso, é preciso explicitar as principais dife-
renças entre o antigo e o novo Enem, bem como os motivos que levaram
o MEC a propor tal reformulação. Desde 2004, a participação no exame
é um dos critérios para o aluno ser contemplado com uma bolsa no Pro-
grama Universidade para Todos (ProUni)19 e, ao longo dos anos, diferentes
universidades passaram a utilizá-lo como meio de ingresso no ensino su-
perior. Por isso, pode-se afirmar que há uma “vestibularização” do Enem,
o que implica uma abordagem do exame como um tipo de vestibular.
Outra característica que confirma a tendência de “vestibularização”
do Enem é a expectativa das pessoas ao se inscreverem no exame. O
questionário socioeconômico é um formulário através do qual é possível
conhecer o perfil dos participantes, e uma das perguntas feitas se refere ao
motivo pelo qual o candidato estava fazendo o Enem. Nos anos de 2006
e de 2007,20 a opção mais escolhida, com 71% e 72% respectivamente, foi

19
O ProUni foi criado em 2004 e “tem como finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais
e parciais a estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica, em
instituições privadas de educação superior. As instituições que aderem ao programa recebem isenção
de tributos” (BRASIL, 2013).
20
A escolha dos anos se deve ao fato de eles serem anteriores à reformulação do exame; as infor-
mações sobre o questionário socioeconômico são disponibilizadas pelo Inep sob a forma de um
relatório pedagógico.

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


31
“para entrar na faculdade/conseguir pontos para o vestibular” (INS-
TITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
ANÍSIO TEIXEIRA, 2007). Com 18% em 2006 e 17% em 2007, o mo-
tivo “testar os conhecimentos” foi o segundo mais escolhido. Isso de-
monstra o interesse dos participantes em nivelar as suas competências
tendo como base o modelo de conhecimento inerente ao exame. A op-
ção “para ter um bom emprego/saber se está preparado para o futuro
profissional”, escolhida por 10% das pessoas nos dois anos, reforça a
visão internacional de que a educação deve preparar para a inserção
no mercado de trabalho. Os demais participantes declararam não saber
o motivo pelo qual fizeram o exame (INSTITUTO NACIONAL DE ESTU-
DOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2007). Nota-se
que, mesmo antes da reestruturação do Enem, os participantes já possuíam
uma expectativa de utilizar os resultados para ingressar no ensino superior.
A adesão ao exame é bastante elevada e o número de participantes
aumenta a cada ano. Em 2009, representantes da Assessoria de Comu-
nicação Social do Ministério da Educação21 elaboraram um documento
com a proposta de reformulação do exame. No documento, são apon-
tados como os principais motivos para o aumento da adesão ao Enem:
a) a utilização do exame como critério para concorrer às bolsas do ProUni;
b) o seu uso como um tipo alternativo de vestibular, já que diferentes uni-
versidades passaram a usar os resultados do exame em seus processos
seletivos; e c) a possibilidade de o participante adquirir certificação de
conclusão do ensino médio22 (BRASIL, 2009).
O documento da Assessoria de Comunicação Social do Ministério
da Educação (BRASIL, 2009) relaciona os objetivos do Ministério da Edu-
cação ao propor a reformulação do Enem, quais sejam: democratizar o
acesso ao ensino superior e utilizar o Novo Enem para contribuir com a re-
21
“A Assessoria de Comunicação Social é responsável pela divulgação da imagem, da missão e
das ações e objetivos estratégicos do Ministério [da Educação]. A Assessoria está estruturada em três
áreas de atuação: Jornalismo e Atendimento à Imprensa, Relações Públicas e Publicidade” (BRASIL,
2009).
22
Para obter a certificação de conclusão do ensino médio, o participante deve cumprir os seguintes
pré-requisitos: ter idade mínima de 18 anos completos até a data do primeiro dia de prova e obter
uma pontuação mínima estabelecida pela Secretaria de Educação à qual o certificado vai ser requerido
(INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2009).

Anderson Gomes da Silva


32
estruturação dos currículos de ensino médio. Segundo a Proposta à Asso-
ciação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior:

Os exames de seleção para ingresso no ensino superior no Brasil


(os vestibulares) são um instrumento de estabelecimento de mé-
rito, para definição daqueles que terão direito a um recurso não
disponível para todos (uma vaga específica em determinado curso
superior). O reconhecimento, por parte da sociedade, de que os
vestibulares são necessários, honestos, justos, imparciais e que
diferenciam estudantes que apresentam conhecimentos, saberes,
competências e habilidades consideradas importantes é a fonte
de sua legitimidade.
Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade, impor-
tância e legitimidade do vestibular. O que se quer discutir são os
potenciais ganhos de um processo unificado de seleção. (BRASIL,
2009, p. 1)

O “estabelecimento de mérito” supostamente garantido pelos ves-


tibulares não leva em consideração que, ao longo de sua vida acadê-
mica, os alunos tiveram experiências e oportunidades diversas, o que
contribuiu para a formação de conhecimentos de mundo distintos. O
pleito por uma vaga em um curso de graduação ocorre por meio de uma
avaliação que teoricamente seleciona os “melhores”. Parte-se do pres-
suposto que os estudantes com maior domínio de certas competências e
habilidades são superiores aos demais.
A proposta do MEC de reformulação do Enem equipara o exame às
avaliações para inserção no ensino superior e enfatiza o seu papel a serviço
do projeto internacional para a educação. Desse modo, pode-se falar em
uma “vestibularização” do Enem. Trata-se de uma adequação do exame aos
modelos tradicionais de vestibular, nos quais o pensamento geralmente é
compreendido apenas de modo utilitário, ou seja, não se pressupõe que as
questões necessariamente sejam contextualizadas em relação ao cotidiano.
Diante da reestruturação do Enem, mediante a qual o exame pas-
sou a ser um vestibular centralizado, faz-se necessário problematizar a
escolha da análise de questões, que é uma parte restrita da aprendiza-

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


33
gem de matemática, para abordar a relação entre dificuldades de leitura
e aprendizagem da disciplina em questão. Além de resolução de ques-
tões, a aprendizagem de matemática compreende outros aspectos, como
o entendimento de demonstrações e de definições e suas consequências
e/ou resultados, por exemplo. Parte-se da ideia de que “não se pode
avaliar a competência matemática de um indivíduo ou de um grupo fora
de seu contexto sociocultural, pois as práticas matemáticas são qualitati-
vamente diferentes de um contexto para outro” (FERREIRA, 1994, p. 37).
Na sociedade moderna, contexto em que o Enem está inserido,
a matemática é vinculada ao modo capitalista de produção da exis-
tência humana. Portanto, está implícito na elaboração do Enem que as
demandas a serem atendidas são as da sociedade capitalista, cuja pro-
posta educacional não pressupõe a formação crítica, mas a adequação
dos indivíduos ao capitalismo.

ENEM: UM ENSAIO PARA QUÊ?

Os resultados do Enem são analisados e divulgados sob a forma de


um relatório pedagógico. Esse consiste em um documento publicado pelo
Inep, que fornece informações sobre a proposta de avaliação e o perfil
dos participantes, explicita o processo de elaboração e correção da prova,
associa o desempenho a variáveis socioeconômicas e contém uma análise
pedagógica das questões.
Em 2006 e 2007 os motivos indicados para participar da avalia-
ção são três, a saber: “para entrar na faculdade/conseguir pontos para
o vestibular”; “testar os conhecimentos”; e “para ter um bom emprego/
saber se está preparado para o futuro profissional” (INSTITUTO NACIO-
NAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA,
2008a e 2008b). Pode-se constatar que o percentual de alunos que faz
o Enem para garantir vaga no ensino superior vem crescendo, em detri-
mento do percentual de participantes que busca testar os conhecimentos.
O terceiro motivo reforça o intuito do MEC de preparar os jovens para a

Anderson Gomes da Silva


34
carreira profissional. Por isso, o Enem, cujo slogan é “Um ensaio para a
vida”, prepara, na verdade, os seus participantes para o mundo do traba-
lho e para a inserção no ensino superior.
As quatro habilidades que dizem respeito à matemática abarcam os
seguintes conhecimentos: relação entre duas grandezas variáveis sob a forma
de expressão algébrica; pesquisas para a coleta de dados, resumo dos mes-
mos e interpretação dos resultados; estudo das formas planas e espaciais; e
eventos aleatórios para avaliar a chance de eles acontecerem. Tais conheci-
mentos se relacionam a funções, estatística, geometria e probabilidade.
As questões escolhidas serão analisadas na sequência. A análise
será feita com base nos conhecimentos de matemática necessários para
responder os itens, bem como nos aspectos linguísticos dos mesmos, re-
forçando a necessidade de uma parceria no processo de ensino e apren-
dizagem de língua portuguesa e matemática.

Habilidade 2
Das seis questões relativas à habilidade 2, três delas foram clas-
sificadas pelo Inep como de média dificuldade, duas difíceis e apenas
uma fácil, considerando apenas o índice de aproveitamento dos parti-
cipantes. Na questão 42 de 2007, apesar de o aproveitamento ter sido
relativamente alto (62%), ele não é tão satisfatório se considerarmos
que informações em gráficos e em tabelas são muito comuns no co-
tidiano e aparecem em diferentes meios de comunicação, em jornais,
por exemplo.
Em relação às principais dificuldades dos alunos nas questões da
habilidade 2, observou-se que parte dos participantes confunde os con-
ceitos de crescimento proporcional e crescimento absoluto. Entretanto,
no caso dessa habilidade, o que aparentemente provocou maiores difi-
culdades foi a elaboração dos enunciados e de alternativas. Na questão
25 do ano de 2006, por exemplo, a análise do gráfico disponível deveria
ser feita apenas visualmente, o que não permitia ao candidato afirmar
com certeza qual era a alternativa correta.
Na questão 23 de 2006, grande parte dos candidatos foi atraída
pelo distrator da alternativa C, provavelmente por não entender o sig-

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


35
nificado de “taxa de crescimento”. Considerando apenas o crescimento
absoluto, conclui-se que ele é maior nos Estados Unidos (114 milhões)
do que na Indonésia������������������������������������������������
���������������������������������������������������������
(99 milhões), porém suas taxas eram respectiva-
mente de cerca de 40% e 46%. Uma informação implícita na primeira
tabela é a de que a população do Paquistão em 2000 era inferior a 170
milhões. Sendo assim, a sua projeção de 344 milhões para o ano de
2050 representa um crescimento superior a 100%. A possível causa prin-
cipal para os alunos terem errado a questão foi a confusão dos conceitos
de taxa de crescimento e crescimento absoluto.

Habilidade 3
Das questões vinculadas à habilidade 3, três eram de média dificul-
dade e as outras três eram difíceis, de acordo com o índice de aproveita-
mento dos participantes. Não havia questões com percentual de acertos
que as caracterizasse como fáceis.
Houve, assim como nas questões relativas à habilidade 2, a necessi-
dade de leitura de gráficos e tabelas, como pode ser observado em todas as
questões relacionadas a essa habilidade. A última questão desse grupo (a de
número 50, do ano de 2007), apesar de ter sido classificada como perten-
cente à habilidade 3, seria respondida com maior facilidade se o participante
utilizasse conhecimentos de geografia, pois ela envolvia a análise de pirâmides
etárias e a interpretação de como seriam as projeções populacionais para o
ano de 2050.
Outra característica em comum com a habilidade 2 foi o fato de que
o distrator principal da questão 24 de 2006 era a confusão entre os concei-
tos de crescimento proporcional e crescimento absoluto. Isso se repetiu na
questão 24 do ano de 2007, na qual parte dos estudantes provavelmente
se equivocou ao utilizar a redução absoluta em vez de redução percentual.
Uma leitura atenta poderia ter feito uma pessoa diferenciar os conceitos de
crescimento proporcional e crescimento absoluto.
A questão 24 de 2006 exigia que o candidato, com base na análise
dos gráficos, calculasse a taxa de crescimento da Índia de 2000 para 2050
e aplicasse a mesma taxa nos cinquenta anos seguintes. O distrator conti-

Anderson Gomes da Silva


36
do na alternativa C, que atraiu 28% dos participantes, foi a dificuldade dos
mesmos em distinguir os conceitos de crescimento proporcional e crescimento
absoluto. O resultado nela indicado é encontrado aplicando-se o crescimen-
to absoluto de 2000 a 2050 (564 milhões) no período de 2050 a 2100,
encontrando-se o resultado de 2.136 milhões.

Habilidade 14
As questões relativas à habilidade 14 foram as em que os alunos
apresentaram pior desempenho nos dois anos. Pelo índice de aprovei-
tamento dos participantes, não houve questões fáceis, houve um item de
média dificuldade e as outras cinco foram classificadas como difíceis. O
problema principal dos estudantes em quatro questões provavelmente foi
a falta de conhecimentos de geometria, visto que os enunciados foram
elaborados de forma clara e objetiva. As outras duas questões referentes
a essa competência específica possuíam aspectos que podem ter con-
tribuído para o erro dos participantes. A análise dos itens nos permite
inferir que os conhecimentos de matemática necessários para a resolu-
ção das questões eram simples, referindo-se geralmente à aplicação de
fórmulas, por meio da visualização.
Os itens 59 e 62 de 2006 demandavam que o participante, a partir
da visualização do que o enunciado solicitava, aplicasse fórmulas para
calcular e comparar valores. O conhecimento de matemática era simples e
as questões foram elaboradas de forma clara, mas o percentual de acertos
foi baixo nas duas questões (respectivamente, 20% e 18%), indicando que
a principal dificuldade dos alunos foi, provavelmente, com os conhecimen-
tos de matemática.
O percentual de alunos que não acertou nenhuma questão dessa
competência específica quase atingiu 50% em 2006 e, embora tenha
diminuído para 39,96% no ano seguinte, continuou sendo a habilidade
com maior percentual de nenhum acerto (INSTITUTO NACIONAL DE
ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2008b).
Por sua vez, a evolução do percentual de participantes que acertou as
três questões dessa habilidade foi de 0,92% para mais, enquanto outras

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


37
competências específicas apresentaram melhoras muito mais expressivas
(em um caso, por exemplo, a mudança foi superior a 40% para mais).
Diante do pior índice de aproveitamento nos dois anos considerados, é
necessário tecer considerações sobre os conhecimentos de geometria.
Dentre as questões referentes à habilidade 14, a de número 5 de
2007 foi a que apresentou o maior percentual de acertos (38%). Ela
demandava uma boa capacidade de visualização, característica pouco
enfatizada no ensino de geometria, segundo Kallef, Rei e Garcia (2002).
O comentário sobre o item exposto no Relatório Pedagógico do Enem
afirma: “Não é necessário um conhecimento específico de geometria
para responder o item, mas sim uma percepção espacial adequada”
(INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
ANÍSIO TEIXEIRA, 2008b, p. 149). Essa frase desconsidera a visualiza-
ção como parte importante na aprendizagem de geometria e reflete o
que Kallef, Rei e Garcia (2002) afirmam sobre o ensino dessa área da
matemática. Segundo eles, é possível focar a visualização ou enfatizar
uma abordagem algébrica, mas a preferência durante as aulas, em
geral, é dada ao segundo foco do conteúdo:

Assim procedendo, ao se estudarem as formas geométricas


elementares, não tem havido preocupação em levar o aluno a
observar relações de simetria numa figura, nem a observar se-
melhanças entre figuras, nem a perceber se houve conservação
de uma forma após a realização de um movimento, pois tem-se
enfatizado o estudo de fórmulas relacionadas às figuras geométri-
cas em detrimento do entendimento de suas formas. (KALLEF, REI
e GARCIA, 2002, p. 1)

A geometria é uma área bastante abrangente devido à possibilidade


de ser lecionada enfatizando a visualização e privilegiando uma aborda-
gem algébrica do conteúdo. Além disso, diversas conexões podem ser
estabelecidas com a realidade.

Anderson Gomes da Silva


38
Habilidade 15
Houve predomínio de questões de média dificuldade referentes à
habilidade 15, com quatro questões nesse nível e duas difíceis, de acor-
do com o desempenho dos participantes. Observou-se que, embora
em alguns casos o conhecimento de matemática fosse relativamente
simples, os percentuais de acertos não foram tão elevados, o que nos
permite inferir que a principal dificuldade dos alunos nas questões de
habilidade 15 foi a falta de conhecimentos de probabilidade. Os itens
que mais se destacam pelo índice de aproveitamento insatisfatório são
os de número 26 de 2006, e 8 e 34 de 2007. Nos três casos, o conhe-
cimento específico de matemática era simples, referindo-se a cálculos
de porcentagem, princípio da contagem e probabilidade.
Na questão 19 de 2006, o participante devia, com base na com-
preensão das informações do enunciado, utilizar a lógica para montar
uma tabela com a classificação de times de futebol em 2004 e em
2005, e verificar, como o comando da questão pede, a probabilidade
de um dos quatro times ter ficado na mesma colocação nos dois anos.
Uma leitura adequada teria levado o estudante a construir a tabela e,
mesmo que ele não tivesse conhecimento de probabilidade, a chance de
o participante inferir que a resposta era 0 seria grande, por ser lógico.
Nesse caso, pode-se concluir que a dificuldade dos candidatos não
está relacionada à matemática, e sim ao entendimento do enuncia-
do (leitura), o que corrobora a ideia de Machado (2001) sobre a fonte
primária para o desenvolvimento do raciocínio, que

[...] não é a matemática, mas sim a língua materna. Isto signifi-


ca que a matemática, a despeito de sua contribuição singular,
de grande importância e irredutível à da língua materna, [...]
caracteriza-se como fonte secundária para o raciocínio lógico.
Por mais óbvio que possa parecer, insistimos que, neste contexto,
secundária não significa de menor importância, mas apenas
que surge em segundo lugar, inclusive sendo influenciada pela
fonte primária. (MACHADO, 2001, p. 77)

Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


39
O texto referente ao item 20, do ano de 2006, foi escrito de forma
clara e o índice de aproveitamento do mesmo foi de 28%. Logo, além
de se concluir que a questão foi difícil, infere-se que a dificuldade dos
participantes está relacionada ao conhecimento específico de matemática
demandado na questão, a saber, da probabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração de documentos legais sobre a educação no Brasil foi


fortemente baseada em sugestões de organismos internacionais. Tais or-
ganismos possuíam interesse exclusivo na relação entre educação e forma-
ção de mão de obra produtiva para a inserção no mercado de trabalho.
A LDB e os PCNs, dois dos principais documentos nacionais sobre
educação, foram embasados pela pedagogia das competências, a qual,
em consonância com as organizações internacionais, atribui à escola a fun-
ção de desenvolver nos estudantes a formação de competências necessárias
para a inclusão dos discentes no processo produtivo. Assim, espera-se a
adequação dos alunos ao sistema capitalista. No trabalho foi defendida,
entretanto, a visão de que a aprendizagem de qualidade é aquela em que
o discente é formado para ser um cidadão crítico e consciente de seu papel
na sociedade.
A elaboração e aplicação de alguns instrumentos avaliativos são da
alçada do Inep. Entre essas avaliações está o Enem, voltado para concluintes
e egressos do ensino médio. A avaliação é pautada em competências e ha-
bilidades, o que aproxima a perspectiva de educação inerente ao exame da
pedagogia das competências e do projeto internacional para essa área.
No ano de 2008, o Enem passou por uma importante reestrutura-
ção que passou a vigorar em 2009. A mudança principal foi a expectativa
de que o exame passasse a ser um tipo centralizado de vestibular. Por
isso, pode-se falar que o exame passou por um processo de “vestibulari-
zação”. A Assessoria de Comunicação Social do MEC, em um documento
intitulado Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições

Anderson Gomes da Silva


40
Federais de Ensino Superior, que trazia a proposta de mudança, afirmou
que os vestibulares tradicionais cumprem satisfatoriamente o papel a que
se propõem, a saber: selecionar os melhores candidatos para cada curso
dentre aqueles que se inscreveram no processo seletivo (BRASIL, 2009).
A análise das questões por habilidade permitiu a constatação de
semelhanças entre questões de competência específica igual ou diferente.
Em alguns casos, quando um percentual significativo de alunos se equivo-
ca, provavelmente pelo mesmo motivo, diz-se que a questão apresenta um
distrator, que consiste no motivo pelo qual o candidato é levado ao erro.
Uma primeira observação geral sobre as questões foi o fato de que,
em algumas, os problemas na elaboração podem ter contribuído para um
grande percentual de erros. Dados não utilizados e textos que não estavam
suficientemente claros são exemplos de enunciados que comprometeram a
compreensão e resolução das questões.
Outra consideração geral acerca das questões analisadas é o fato de
os alunos provavelmente terem tido problemas de leitura e isso os ter levado
ao erro. Em outros casos, o principal fator parece ser a falta de conhecimentos
prévios de matemática para resolver as questões. Como exemplo, pode-se
mencionar a dificuldade de grande parte dos estudantes de distinguir os con-
ceitos de crescimento proporcional e crescimento absoluto.
Desse modo, espera-se que o trabalho tenha contribuído para a dis-
cussão sobre a aprendizagem de matemática e da sua relação com a leitura,
suscitando o desenvolvimento de novas pesquisas sobre o assunto.

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Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


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Anderson Gomes da Silva


42
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Relação entre leitura e aprendizagem de matemática


43
SINGULARIDADE, AÇÃO E RENOVAÇÃO
DE MUNDO: A AMIZADE NA ESCOLA
E SUAS POTENCIALIDADES *

Anna Luiza B. Martins **

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho foi investigar as implicações e a impor-


tância das relações de amizade para a formação humana. No entanto,
sabendo que esse é um âmbito demasiadamente extenso e, ao mesmo
tempo, pouquíssimo estudado, pareceu-me mais adequado restringir
o estudo a um determinado espaço onde o estudo do desenvolvimento
das relações de amizade fosse mais acessível. O espaço escolhido foi
o escolar, onde pode ser observado um constante movimento de inte-
ração – do qual decorrem as amizades – que, aliado a diversas outras
experiências que o sujeito inserido nesse universo vivencia, parece con-
tribuir diretamente na sua formação.
Pensando nisso, decidi voltar meu enfoque para a própria instituição
em que estudo, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV),
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tendo em vista o seu projeto político
pedagógico (PPP) que, pautado na ideia de politecnia, propõe “a educa-
ção profissional em saúde [...] voltada para uma formação ética, política

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), sob o seguinte número de protocolo:
0018.0.0408.000-11.b.
**
Ex-aluna do Curso de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, com habilitação técni-
ca em Gerência em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Psicologia na Pontifícia Universidade
Católica������������������������������������������������������������������������������������
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). No trabalho de construção de sua monografia de conclu-
são de curso, contou com a orientação da professora-pesquisadora Grasiele Nespoli (doutora em
Educação em Ciências e Saúde), do Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde
(Labgestão). Contato: annaluizabm@gmail.com.

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


45
e técnica” (ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO,
2005, p. 7), afirmando também “na formação técnica, a educação dos
sentimentos, da sensibilidade e dos sentidos” (PEREIRA E RAMOS, 2006,
p. 59).
A EPSJV encara a educação como um “projeto de sociedade” (ESCOLA
POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO, 2005, p. 7) e busca
promover uma formação ampla cuja base social crítica dialogue com as
circunstâncias socioeconômicas vigentes, entendendo que a aquisição do
conhecimento serve como ferramenta de luta contra o modelo de dominação
imposto. Além disso, a EPSJV é uma instituição pública de ensino, cujo pro-
cesso seletivo para ingresso é um concurso público1 que se realiza anualmente,
o que contribui diretamente para a heterogeneidade no espaço escolar,
gerando um convívio contraditório e desafiador (ESCOLA POLITÉCNICA DE
SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO, 2005).
Essas diretrizes abrem espaço para pensarmos em inúmeras ques-
tões que estão envolvidas, direta ou indiretamente, na formação politécni-
ca que a EPSJV propõe. Dentre essas questões, podemos citar a amizade
que se desenvolve no campo das relações sociais travadas no espaço es-
colar e de trabalho, uma vez que o espaço escolar é também um espaço
de trabalho. No tocante a isso, um ponto importante definido no PPP da
EPSJV é a ideia de trabalho como princípio educativo, isto é, a concepção
de que os sujeitos se educam e se constroem, como trabalhadores, no
próprio exercício do trabalho, por meio de tudo o que envolve e constitui
o exercício desse – tal como as relações interpessoais desenvolvidas nesse
contexto. O objetivo é formar trabalhadores que, trabalhando, entendam
as bases sociais daquele seu exercício e que promovam, criticamente, as
mudanças necessárias no meio em que estão inseridos.
Surge, com isso, uma provável conciliação do meu desejo inicial de
investigar a amizade, e seu papel na formação de um sujeito, com o âmbi-
to escolar, que se apresenta rico e acessível para exploração desse tema.

1
O processo seletivo para ingresso na EPSJV ocorre por meio de prova de Português e de Matemá-
tica que habilita os candidatos que acertarem 50% de cada prova ao sorteio de vagas. Além disso,
a EPSJV trabalha com o sistema de cota, reservando 50% das vagas para alunos que realizaram o
ensino fundamental em escolas públicas.

Anna Luiza B. Martins


46
Cabe aqui falar, no entanto, de um conceito de amizade que difere daquele
mais usual, pautado na familiaridade e na semelhança, muito difundido pelo
senso comum. Trata-se, então, da amizade de caráter político, isto é, da
amizade que extrapola os limites da similaridade, que acontece com base
nas diferenças e que atua na renovação do mundo.
Este trabalho defende a amizade como uma produção sociocultural que
apresenta abertura para a mudança, para a criatividade. É um relacionamento
que carrega em sua essência a ideia de construção/renovação do mundo,
como entende Arendt (2010), por meio da relação eu–outro, e que, por isso,
é potencialmente um relacionamento poderoso para romper estereótipos
instituídos em nossa sociedade que reafirmam a exclusão, a intolerância e a
competição. Essa potencialidade torna-se ainda maior ao se tratar da amizade
desenvolvida na escola, que é formada pela/na diferença.
Diante disso, elegi a discussão da filósofa Hannah Arendt para
nortear o trabalho em questão. Mesmo que a sua obra não se aprofun-
de na problemática da amizade, sua discussão é extremamente rica e
possibilita a aproximação entre seus conceitos e a ideia de amizade na
escola (ARENDT, 2010 e 2011).
De forma geral, pode-se dizer, então, que este trabalho objetivou
investigar as implicações da amizade na formação humana e sua poten-
cialidade política, com base na análise da formação desenvolvida no âm-
bito da EPSJV, que possui um projeto político pedagógico que prevê a
formação ética e política, e a educação dos sentidos e sentimentos, além
de propor uma postura de aproximação das diferenças e de ruptura com
ações intolerantes e separatistas.
Com base nesse alvo, podem-se traçar alguns objetivos específicos
que auxiliem na análise dessa questão central, tais como: investigar de que
maneira as amizades na escola podem romper com estereótipos vigentes na
sociedade atual, especialmente num contexto escolar norteado pelo princí-
pio da politecnia, que questiona a conjuntura individualista instalada, própria
do sistema do capital; analisar a potencialidade que as amizades possuem
para a criação de projetos inovadores e de ações solidárias e cooperativas,
à luz da heterogeneidade e das singularidades evidentes no espaço

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


47
escolar; e, por fim, relacionar o processo de construção das amizades
na escola com a potencialidade referida.
O primeiro objetivo surgiu num momento em que, em um diálogo
com um amigo, percebi o quão fundamental para mim é esse tipo de
relacionamento. Fascinou-me a ideia de compreender o impacto que a
troca de experiências numa amizade exerce sobre as pessoas. E assim,
num segundo momento, lancei meu olhar para fora, em busca da com-
preensão dos outros eus e de seus laços de amizade, num esforço de
mapear, na medida do possível, as implicações desses relacionamentos
para a formação de cada pessoa.
Dentro de cada indivíduo parece haver um desejo de alcançar a
vida do outro; parece que em cada sujeito existe um espaço a ser com-
partilhado com outros sujeitos – e quem sabe até modificado, recons-
truído. Há quem diga que somente em relacionamento com um outro
é possível conhecer esse espaço em si mesmo. Questões como essas
motivam análises curiosas e buscas científicas de compreensão sobre
os relacionamentos humanos e seus fascinantes aspectos. Este trabalho
foi para mim como uma dessas análises curiosas que, inevitavelmente,
acabou encontrando o caráter científico da pesquisa.
No entanto, não só pela dimensão pessoal se justifica este traba-
lho. A amizade representa um constituinte fundamental para o quadro
das relações que permeiam a sociedade atual. Ela carrega consigo um
caráter político e um potencial de mudança, de ruptura com a ideolo-
gia dominante que só faz sentido se olharmos para ela de um ponto
de vista preocupado com o social. Pensar a amizade é também pensar
o coletivo, as formas criativas de relacionamento, uma dimensão de
construção dos sujeitos. Porém, são extremamente escassos os traba-
lhos preocupados com a análise sobre a amizade no contexto con-
temporâneo. Por isso, neste trabalho, me propus a trazer uma reflexão
sobre a importância deste tema. Escolhi o âmbito escolar como um
recorte, mas certamente o assunto não se esgota aqui. Esta análise é
apenas um pequeno esforço no caminho da compreensão da complexi-
dade desse relacionamento tão fundamental, mas tão pouco estudado.

Anna Luiza B. Martins


48
Dito isso, é necessário esclarecer o “caminho do pensamento”2 escolhi-
do para desenvolver este trabalho, aproximando-o de uma teoria já existente
que será apropriada ao se buscar compreender a realidade. No entanto, ne-
nhuma teoria é capaz de explicar perfeitamente a realidade, que é muito mais
rica do que se descreve. Dessa forma, cabe destacar que o presente trabalho
pretende fazer apenas uma aproximação da teoria que melhor se encaixa,
como uma lente pela qual a realidade será olhada, visto que pouco foi pro-
duzido em relação ao tema, cabendo nesse sentido classificar essa pesquisa
como exploratória (MINAYO, 2010).
De modo geral, este trabalho é uma pesquisa qualitativa, posto que se
propõe a uma análise voltada para o “universo dos significados, dos motivos,
das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2010, p. 21).
Além disso, este trabalho possui uma abordagem compreensiva da amizade e
de suas implicações para o processo de formação humana e, logo, de cons-
trução/renovação do mundo. De forma mais precisa, pode-se dizer que o refe-
rencial teórico para este trabalho consiste nas ideias da filósofa Hannah Arendt.
Quanto às técnicas, algumas foram consideradas mais adequadas
para a sondagem do problema em questão, a saber, a revisão bibliográfica
e o grupo focal.
A revisão bibliográfica é importante diante da necessidade de apro-
ximação do objeto escolhido, buscando-se conhecer o que já foi escrito
sobre o assunto, de modo a traçar um panorama geral a respeito do tema
e dos conceitos de amizade que melhor se aplicam à análise pretendida.
O grupo focal, por sua vez, fez-se necessário devido à escassez de
material científico sobre o tema, além do caráter qualitativo que o grupo
focal carrega, tendo em vista que “o valor principal dessa técnica funda-
menta-se na capacidade humana de formar opiniões e atitudes na inte-
ração com outros indivíduos” (KRUEGER apud MINAYO, 2007, p. 269).
Essa técnica é, assim, extremamente rica para a análise em questão, que
se volta para um tipo de relacionamento interpessoal.

2
Segundo Minayo, metodologia é o “caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem
da realidade. Ou seja, a metodologia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (o método), os
instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador
(sua experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade)” (2010, p. 14).

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


49
O objetivo do grupo focal foi debater a importância da amizade
no âmbito da escola, por meio da reflexão sobre as formas como as ami-
zades se constituem. O convite à participação foi limitado aos alunos
que cursavam o último ano dos cursos técnicos de Gerência em Saúde
e de Análises Clínicas, do ano de 2009, compreendendo que, em vir-
tude da trajetória mais extensa no contexto escolar, esses alunos po-
deriam contribuir de forma mais aprofundada para a pesquisa. Assim,
foi realizada uma reunião, em setembro de 2011, com duração de duas
horas, que contou com a presença de seis alunas e quatro alunos, na
faixa etária de 16 a 19 anos. As falas dos alunos foram gravadas e,
posteriormente, transcritas pela própria autora.
Por questões éticas, os participantes do grupo não foram identificados
por seus nomes, nem houve apresentação de nenhuma outra informação
específica, além da idade, uma vez que, para os objetivos da pesquisa, pri-
vilegiou-se o que está sendo dito e não quem o está dizendo, sendo que as
informações pessoais dos alunos não configuram variantes relevantes para
a análise pretendida. Em todas as informações verbais, os alunos foram
identificados com um número e a idade. O grupo procurou responder a
algumas questões: Como se escolhe o amigo? De que forma os amigos
se agrupam no âmbito escolar? As amizades são pautadas num projeto de
mundo? Os amigos compartilham um projeto de mundo? Existem diferentes
tipos de amigos? Como são percebidos e identificados? Qual a importância
da amizade na escola? O objetivo dessas perguntas foi investigar de que
forma a amizade na escola pode romper com estereótipos vigentes na so-
ciedade; como se formam os grupos de amizade no âmbito escolar; e se as
tendências de escolha dos possíveis amigos reafirmam o caráter solidário e
democrático que a amizade pode possuir.
Em um terceiro momento, fez-se necessária a realização de uma aná-
lise do discurso apreendido no grupo focal. Para isso, o presente trabalho se
baseia em uma perspectiva que valoriza o discurso como prática. Ou seja, a
análise será pautada na concepção de uma dimensão político-prática existen-
te no discurso, pois, como salientado por Hannah Arendt, “ao agir e falar, os
homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e
únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano” (2010, p. 224).

Anna Luiza B. Martins


50
Em outras palavras, este trabalho não se ocupou de buscar o sentido
subjacente ao discurso; antes analisou as falas dos alunos, procurando com-
preender as implicações e os efeitos daquilo que foi dito, numa perspectiva
menos voltada para a interiorização do que para o político. Nesse sentido,
foi possível fazer uma interligação com o conceito de renovação de mundo de
Hannah Arendt, que diz respeito a algo que se torna possível a partir da nata-
lidade, da singularidade e da ação de cada sujeito que se insere neste mundo
que “está fora dos eixos” (ALMEIDA, 2008, p. 470). Esses conceitos estão pre-
sentes nas obras A condição humana e A crise na educação. A busca foi por
apreender no discurso como as amizades podem implicar uma postura solidá-
ria voltada não só para a troca de experiências entre os amigos, mas também
para a renovação de um mundo inóspito, que é palco de muitas barbáries,
mas que pode e deve ser transformado por cada geração.

A AMIZADE NA ESCOLA COMO EXERCÍCIO DO POLÍTICO

A amizade na escola é uma amizade que se afirma por meio de um


incômodo que surge da necessidade de convívio com o outro. É uma amizade
que acontece mediante o acolhimento daquele que é diferente – que vem
de outros ambientes, que possui outras vivências e outros pensamentos. É a
amizade que busca o comum (que não é, nem deve ser, necessariamente,
igual) dentro das diferenças, incitando, assim, uma postura cooperativa e soli-
dária (GOMES e SILVA JÚNIOR, 2007).
Esse é um conceito de amizade que se aproxima muito daquele defen-
dido por alguns filósofos, como Arendt e Foucault (ORTEGA, 2000), que pro-
põem esse tipo de relacionamento como um instrumento de ruptura com os
limites impostos pela sociedade capitalista, que têm o intuito de difundir rela-
ções que reafirmem práticas de exclusão, de separação, de preconceitos e de
intolerância. Importa para o sistema que os relacionamentos que permeiam a
nossa sociedade sejam, sobretudo, frágeis, de forma a não permitirem a esta-
bilidade e a força dos sujeitos nelas envolvidos, para torná-los cada vez mais
manipuláveis e menos “perigosos e ameaçadores” da “ordem estabelecida”.

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


51
A ideia da amizade política proposta por esses teóricos (ORTEGA,
2000) parece se aproximar do fenômeno da amizade no espaço escolar.
Fala-se desse tipo de amizade porque a escola é um âmbito heterogêneo,
um lugar público que, por definição, deve estar preparado para acolher
sujeitos advindos de todas e quaisquer situações e contextos, um espaço
que deve estar aberto àquele que chegue, independentemente de onde
ele venha, e que, sobretudo, por consequência do exercício de seu papel,
deve promover a interação entre sujeitos tão diferentes que ali chegam. Por
isso, torna-se necessário falar de uma amizade fruto do encontro com o
desconhecido, com o estrangeiro, com aquele que nos confronta de algum
modo. É a amizade que se estabelece com base na necessidade de desen-
volver laços afetivos dentro de um ambiente de convívio coletivo.
Segundo Ortega (2000), vivemos em uma sociedade que propaga
uma ideologia da intimidade. Isso quer dizer que, num contínuo processo
de despolitização, fomos acostumados a construir nossa individualidade
na proximidade com o outro. Com isso, Ortega procura tecer uma crítica
à hegemonia dos relacionamentos pautados na semelhança. O autor de-
fende a ideia de que, em contrapartida a esse movimento hegemônico que
diz que a proximidade gera um valor moral nos relacionamentos, é preciso
cultivar a sociabilidade e a exterioridade. Em outras palavras, é neces-
sário manter certa distância do outro, a fim de se desenvolver o que
é chamado de sociabilidade e para que se possa enxergar o exterior,
rico em provocações construtivas. Ortega afirma que somente olhando
para fora, isto é, somente buscando a exterioridade, é possível haver
abertura para o novo, para o estranho, para o diferente, e torna-se
possível construir uma forma mais desafiadora de existência.
Além disso, Ortega (2000) denuncia que essa “sociedade íntima” inibe a
manifestação da capacidade criativa do homem. O homo ludens3 é suprimido,
de modo que a iniciação de algo novo, o rompimento da realidade estabele-
cida, enfim, a experimentação, não pode realizar-se plenamente. Para o autor,
a sociedade está sofrendo uma “psicologização total” (2000, p. 112), isto

3
Homo ludens, ou seja, homem lúdico (lúdico vem da palavra latina “ludus”, que quer dizer jogo). Nesse
contexto, o homem lúdico proposto por Ortega (2000, p. 42) é aquele que não tem medo de encarar um
jogo político, de forma a criar, espontaneamente, o novo e o inesperado no âmbito dos relacionamentos.

Anna Luiza B. Martins


52
é, uma tendência de mostrar-se ao outro, mais do que buscar descobri-lo.
É preferível mostrar a si mesmo em vez de enxergar o que o outro tem
a mostrar. Em consequência disso, advém, também, o desinteresse pela
vida pública, ou seja, por tudo que não diga respeito ao “eu” propria-
mente dito. Desse modo, Ortega enfatiza que, nesse movimento de fazer-
se conhecido, o homem da sociedade atual se sente impelido à fala,
à comunicação. Em outras palavras, somos estimulados a nos mostrar
diante do outro, a preferir conhecer a nós mesmos em lugar do outro.
Esses estímulos, segundo o autor, acabam levando-nos diretamente ao
narcisismo e a supervalorização do “eu”.

Vivemos em uma sociedade que nos incita continuamente a


“desnudar-nos” emocionalmente, que fomenta todo tipo de te-
rapias, verdadeiras dramaturgias da intimidade. A consequência
é a decomposição da “civilidade”, entendida como o movimento
aparentemente contraditório de se proteger do outro e ao mes-
mo tempo usufruir de sua companhia. Uma forma de tratar os
outros como estranhos, pois usar uma máscara, cultivar a apa-
rência, constitui a essência da civilidade, como modo de fugir
da identidade, e de criar um vínculo social baseado na distância
entre os homens que não aspira ser superada. O comportamen-
to civilizado, polido, exige um grande controle de si, já que não
é coisa fácil conter-se e governar-se a ponto de não deixar trans-
parecer nos gestos e na fisionomia as mais violentas emoções de
sua alma. (ORTEGA, 2000, p. 113)

Além disso, essa “ideologia da intimidade” (ORTEGA, 2000, p. 109),


traz consigo o costume, que geralmente passa despercebido, de estabelecer
analogias entre as relações interpessoais desenvolvidas – como a amizade –
e as relações familiares. O que se observa é que, nesta cultura, quanto mais
importante for um relacionamento, maior é a tendência de aproximá-lo da
semântica familialista. Em outras palavras, quanto mais considerável for um
amigo, maior a tendência de encará-lo como um irmão, um pai etc.
Ortega (2000) critica essa postura, afirmando que quanto mais o
ideal familiar permear as relações de amizade, maior será o risco de haver

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


53
frustrações nessa relação. Essas frustrações aconteceriam porque, ao se
encarar o outro como um membro da família, é exigida dele uma postura
semelhante à do pai, do irmão etc., ao passo que o amigo, na verdade,
não possui as mesmas características da família. Ortega afirma também
que a semântica familialista, na verdade, representa e legitima o medo do
desconhecido e do diferente.
Em suma, Ortega defende uma amizade voltada para a civilidade, para
o político, uma amizade que não promova a interioridade, mas que, em vez
de estimular um conhecimento de quem o sujeito é, pretende incitar a própria
invenção do sujeito nela envolvido. É um conceito inovador, que, segundo o
autor, encontra dificuldades para se estabelecer enquanto possibilidade por
causa da predominância da mentalidade familialista na sociedade atual.
É importante destacar, no entanto, que não se trata de negar a família
enquanto instituição, mas de promover mais opções para o surgimento de
laços afetivos. Trata-se de não restringir as amizades a uma mera extensão
da família, daqueles que são iguais, que pensam de modo muito semelhante.
O objetivo é promover o surgimento de relacionamentos desafiadores, ino-
vadores, que saiam da zona de conforto e que se lancem no desconhecido,
rompendo, consequentemente, com atitudes discriminatórias e egocêntricas.
Ortega (2000) defende a ideia de estabelecer a amizade como um
relacionamento complementar à família, no sentido de que aquela apos-
tará na exterioridade, na construção dos sujeitos para o mundo, enquanto
esta se preocupará em acolher aqueles que estão na intimidade. A amiza-
de, para Ortega, viria a cumprir um papel de suporte no enfrentamento do
medo de “ser livre”, ou seja, de encarar o mundo com suas pluralidades.
Assim, seria possível dizer, então, que a amizade possui um caráter soli-
dário. Nesse relacionamento, um sujeito incitaria o outro a abrir-se para o
mundo, a construir-se dentro do próprio relacionamento, vencendo, assim,
a insegurança que o novo gera.
A amizade proposta por Ortega (2000) é um caminho novo que,
segundo ele, poderá mostrar os benefícios que o enfrentamento e o acolhi-
mento da diferença podem trazer – além de exemplificar o quão proveitoso
pode ser viver um relacionamento que respeite o espaço, a distância que

Anna Luiza B. Martins


54
existe, e que muitas vezes tende a ser suprimida na “sociedade íntima”, entre
o “eu” e o “outro” nos relacionamentos.
Já numa revisão sobre Foucault, Ortega (1999) expõe a postu-
ra do filósofo francês em relação à amizade. Para ele, a amizade con-
siste numa forma de resistência e rebelião contra os relacionamentos
tradicionais, “prescritos”. É, ainda, um jogo estratégico que desafia o
poder institucionalizado, uma vez que possui por base a experimenta-
ção, a intensidade, a multiplicidade e a “mínima quantidade de domínio”
(ORTEGA, 1999, p. 157).
Foucault não trata da questão da amizade de forma específica e/ou
aprofundada; por isso, Ortega esclarece: “A única definição de amizade pro-
posta por Foucault [...] é a seguinte: ‘a soma de todas as coisas mediante
as quais se pode obter um prazer mútuo’” (ORTEGA, 1999, p. 168). Para
Foucault, a amizade é um relacionamento em que os sujeitos envolvidos vivem
em uma provocação recíproca, sem, no entanto, usar da violência. É, sobre-
tudo, um relacionamento aberto à experimentação, que desafia a ideologia
hegemônica de submissão ao outro.
Outra referência possível e importante para tratar da dimensão polí-
tica existente nos relacionamentos interpessoais é o pensamento da filósofa
Hannah Arendt. Segundo Arendt, o homem vive num “espaço construído
pelo trabalho e constituído pela ação” (apud ALMEIDA, 2008, p. 468), a
saber, o mundo. Esse espaço permeado pela existência humana e que abri-
ga a pluralidade das intervenções e relacionamentos do próprio ser humano
é anterior à existência efêmera de cada indivíduo, e se perpetuará após a
morte de cada um deles.
Segundo Almeida (2008), Arendt diferencia as atividades humanas
tendo como princípio norteador os fins de cada atividade. Algumas delas,
segundo a autora, preocupam-se com a sobrevivência da espécie, sendo
classificadas como trabalho. Outras, por sua vez, dizem respeito, direta-
mente ao “mundo humano” (ALMEIDA, 2008, p. 468) – que diferencia o
homem dos outros animais –, como a obra e a ação.
O trabalho está relacionado à vida (dimensão biofísica), ao supri-
mento das necessidades básicas, como a fome, por exemplo. Já a obra diz

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


55
respeito à intervenção do homem no espaço para produzir a sua existên-
cia social, fabricando objetos e espaços que lhe possam ser úteis na sua
vivência. A ação, por sua vez, constitui a “atividade mais especificamente
humana” (ALMEIDA, 2008, p. 468). E é para a ação que esse trabalho
voltará uma atenção especial, visto que a amizade é algo que se constrói
na relação entre os homens.
Almeida (2008) explica que a ação, para Arendt, diz respeito à con-
vivência entre os seres humanos em geral e ao sentido que essa convivên-
cia dá à sua existência. Por causa da pluralidade em que todos vivem, apesar
da singularidade de cada sujeito envolvido na esfera dos relacionamentos, é
possível existir um âmbito de ação que consiste na troca de impressões por
meio de atos e palavras. Segundo Arendt:

A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens


sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à con-
dição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não
o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os
aspectos da condição humana tenham alguma relação com a po-
lítica, essa pluralidade é especificamente a condição – não apenas
a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida
política. (2010, p. 8-9)

Arendt percebe o mundo como um lugar que está fora dos eixos –
posto que o âmbito privado, cada vez mais, invade e se confunde com o
público, comprometendo a verdadeira essência da política –, e que cabe
a cada geração que nasce renová-lo, de modo a consertar e rearrumar
esse lugar. Com base nesse ponto de vista, a autora desenvolve a im-
portância da educação para esse processo. Cabe ao educador mostrar
à criança de cada geração o mundo em que se vive e protegê-la para
que ela desenvolva seguramente a sua singularidade enquanto um su-
jeito novo nesse espaço que é anterior a ela (ALMEIDA, 2008).
Para Arendt, a singularidade é algo próprio do sujeito, que define quem
ele é, e que se manifesta, antes de tudo, aos outros que estão ao redor, me-
diante pensamentos e ações do sujeito. Desse modo, a singularidade diz res-
peito ao espaço público, político, de convivência, e não ao espaço particular.

Anna Luiza B. Martins


56
Logo, segundo a visão arendtiana, a singularidade não está relacionada com
a introspecção nem com o isolamento, como, numa visão romântica, costuma
pensar-se atualmente (ALMEIDA, 2008).
Paralela à singularidade defendida por Arendt está o conceito de
status, tão presente atualmente na esfera social e que determina tantos
relacionamentos. Segundo Almeida, Arendt “explica que na esfera social
acontece uma identificação da pessoa com sua posição social” (2008,
p. 474). Ao contrário da singularidade, o status define o que é o sujeito, es-
tando ligado diretamente ao poder de consumo. Esse tipo de identificação
acaba por gerar relacionamentos pautados principalmente no interesse de
obter benefícios.
Aqui, cabe também tratar do conceito de liberdade que é um atributo
da vida humana, e tem um caráter voltado para ação (para o “começar”)
e não algo relacionado ao livre-arbítrio do indivíduo. Conforme Arendt:

O homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado de-


pois que o universo passara a existir. No nascimento de cada ho-
mem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a
um mundo já existente alguma coisa nova que continuará a existir
depois da morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem
pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coi-
sa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de
começar: a liberdade. (2011, p. 216)

Ou seja, o sujeito, uma vez livre, está apto para intervir no mundo –
no espaço comum – e ajudá-lo a entrar nos eixos. E a singularidade desse
sujeito, quando ligada à liberdade, impulsiona a criação de algo novo. Isso
quer dizer que o jovem, sujeito novo no espaço antigo (o mundo), tem em
sua singularidade a potência de iniciar ações impensadas, que só podem ser
iniciadas, livremente, por ele. Assim, quando o processo de conhecimento
do mundo e de sua singularidade é bem sucedido, cada sujeito, de cada
geração, tem consciência de quem ele é e do lugar em que vive, sendo
possível, assim, renovar o espaço e a ordem das coisas. Em outras palavras,
para Arendt, a resposta para um mundo que precisa entrar nos eixos está
na natalidade, isto é, no “fato de todos nós virmos ao mundo ao nascer-

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


57
mos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento”
(ARENDT apud ALMEIDA, 2008, p. 471).
Existe, na obra de Hannah Arendt, uma diferença importante entre os
conceitos de natalidade e de nascimento. É necessário salientar essa diferença
por causa das proporções que tais conceitos podem assumir na compreensão
do ideário arendtiano.
Enquanto o nascimento diz respeito à inserção de um novo ser na vida,
a natalidade se refere ao surgimento de um novo ser no mundo (ALMEIDA,
2008). Então, o nascimento está relacionado ao trabalho, constituído pelos
esforços para suprimento das necessidades físicas, e à perpetuação da es-
pécie; já a natalidade diz respeito à existência de um novo ser num “conjunto
de tradições históricas e realizações materiais e simbólicas” (CARVALHO,
2006, p. 19). Com a natalidade, surge não só um novo ser para a vida, mas
um novo ser singular, que pode agir e intervir no mundo, de forma imprevi-
sível e única. Nas palavras da própria filósofa:

O fato de o ser humano ter o dom da ação, no sentido de fazer


um início, só pode significar que ele foge a qualquer previsibi-
lidade; que, nesse caso, a própria imprevisibilidade tem uma
certa probabilidade e que aquilo que “racionalmente” não é de
se esperar pode mesmo assim ser objeto da nossa esperança. E
esse dom para o imprevisível, por sua vez, se baseia exclusiva-
mente na singularidade, por meio da qual cada um se distingue
de qualquer um que foi, é ou será, [...] e essa singularidade se ba-
seia no fato da natalidade, fundamental para toda comunidade hu-
mana, e em virtude da qual cada ser humano apareceu no mundo
como um Novo singular. (ARENDT apud ALMEIDA, 2008, p. 471)

Com base nesse contexto, pode-se perceber que a amizade, enquan-


to pertencente à esfera das relações humanas, é concernente ao âmbito da
ação, como definido por Arendt. E, além disso, a ação livre está diretamente
relacionada com a iniciação de algo novo. Desse modo, pode-se começar
a pensar na amizade como um relacionamento que, pautado nas singula-
ridades dos sujeitos envolvidos, apresenta grande potencial de mudança,
de renovação da realidade imposta e de crescimento pessoal mútuo (que

Anna Luiza B. Martins


58
acontece por meio da troca de conhecimentos e experiências possibilitados
pelas singularidades).
Além disso, as reflexões de Arendt permitem-nos inferir que a autora
propõe a existência de um espaço político de conhecimento no qual os
sujeitos podem se conhecer uns aos outros e ser impulsionados a agir em
relação ao mundo em que vivem. Segundo Almeida, o desafio da edu-
cação, para Arendt, é “oferecer um espaço onde as crianças e os jovens
possam estabelecer relações – conhecer os outros e o mundo e se dar a
conhecer – sem ainda estar sob o peso da responsabilidade pelo mundo”
(2008, p. 472).
Tendo em vista a proposta de educação oferecida por Arendt, é possí-
vel pensar, portanto, que a escola pode ser esse espaço de conhecimento e
de liberdade que daria abertura para o engajamento no coletivo, ao mesmo
tempo em que protegeria a singularidade de cada um. De fato, a proposta de
escola para Arendt é de um espaço seguro onde as crianças possam fazer a
transição do espaço da família para o espaço coletivo do mundo:

Normalmente é na escola que a criança faz a sua primeira entrada


no mundo. Ora, a escola [não] é, de modo algum, o mundo, nem
deve pretender sê-lo. A escola é antes a instituição que se interpõe
entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tomar pos-
sível a transição da família para o mundo. (ARENDT, 2011, p. 238)

A amizade na escola seria um relacionamento que possibilita ao sujeito


o conhecimento de sua singularidade, além de impulsionar a renovação do
mundo com a iniciação de projetos impensados. Com a visão de mundo que
os jovens amigos obtêm nesse espaço de formação, o potencial de mudança
seria ainda maior, visto que a troca de impressões diferentes impulsiona solu-
ções mais abrangentes e desafiadoras. Os jovens amigos são os novos singu-
lares, conhecedores do mundo em que vivem, capazes de contribuir, por meio
da ação livre, para que o espaço coletivo seja restaurado e “entre nos eixos”.
É importante também salientar que, de acordo com a concepção
arendtiana do papel da educação, a amizade na escola contribui também
para a transição dos sujeitos de seu espaço privado, a família, para o

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


59
coletivo, o mundo. No exercício de inserção dos novos no mundo antigo,
a amizade consiste em um relacionamento que auxilia um melhor enfren-
tamento do mundo, pois os laços afetivos têm o poder de aumentar o
sentimento de segurança e afirmação necessário ao sujeito para encarar
os desafios que o mundo apresenta.
Além disso, nesse contexto de transição, não é um absurdo pensar que
muitas amizades dentro do espaço escolar se pautam na semelhança com as
relações familiares e estejam relacionadas a elas. Afinal, é no âmbito escolar
que, no universo de significados dos jovens sujeitos, irão coexistir as impres-
sões do âmbito privado – advindas da família – e as novas impressões do
âmbito coletivo – advindas da apresentação do mundo realizada pelos edu-
cadores. Num esforço de autoproteção diante de um mundo desconhecido, é
normal que os sujeitos procurem se unir àqueles que representem o conforto
da familiaridade.
No entanto, como dito anteriormente, as semelhanças existentes no es-
paço de uma escola pública estão condicionadas à realidade das diferenças
de cada singular que comporá esse espaço. Isto é, mesmo que haja seme-
lhança no contexto da escola pública, apresentar essa semelhança não sig-
nifica “ser igual”, visto que a escola é um espaço de heterogeneidade, onde
sujeitos estranhos uns aos outros são postos em certo conflito, ao serem
desafiados pelo esforço da convivência.
Além disso, a existência de amizades que se pautem na semelhança
não invalida a existência de amizades que se estruturam no enfrentamento
e no acolhimento das diferenças. O sujeito se construirá pela troca de expe-
riências, possibilitada pelo encontro com outras singularidades, já sejam elas
semelhantes ou não. Como vimos, amizades pautadas na diferença desa-
fiam os sujeitos a se abrirem para a pluralidade do mundo, de modo que o
produto do incômodo causado pelo estranhamento pode ser extremamente
benéfico para o coletivo, mediante a iniciação de projetos impensados.
Por sua vez, as amizades estruturadas na semelhança permitem ao
sujeito um espaço de maior acolhimento e de identificação, o que também
é fundamental para o desenvolvimento saudável da singularidade do indi-
víduo. As amizades pautadas na semelhança auxiliam o equilíbrio do sujei-

Anna Luiza B. Martins


60
to e podem fazer parte de seu mundo de afetos, desde que não impossibi-
litem o desenvolvimento de outros vínculos afetivos, inclusive os pautados
na diferença, nem o impeçam de agir politicamente. É importante que esse
tipo de relacionamento não limite as possibilidades de experimentação do
sujeito, permitindo que ele esteja sempre aberto a acolher e respeitar as
diferenças, em vez de promover ações separatistas e preconceituosas.

A AMIZADE NA ESCOLA E O DESAFIO DA ALTERIDADE:


A VISÃO DE UMA NOVA GERAÇÃO

O grupo focal serviu de complemento à revisão de literatura e buscou


responder a algumas questões importantes para a análise da amizade na
escola, focando em suas implicações na formação humana e em sua poten-
cialidade política de mudança.
É importante ressaltar a variedade de percepções de si e do outro
que perpassa a fala dos alunos no grupo focal. Fica claro que, embora a
amizade consista num vínculo afetivo comum no meio escolar, o exer-
cício de pensar sobre ela e de transpor em palavras o pensamento é
um esforço extremamente confrontador e difícil de realizar. Por causa
do desafio que é ver com olhos analíticos aquilo que tantas vezes nos
parece banal, o produto do grupo focal são diferentes pontos de vista,
que apresentam a multiplicidade de interpretações e modos de viver a
amizade da geração representada pelos jovens alunos que foram entre-
vistados no contexto da EPSJV.
Da mesma forma que os participantes foram desafiados a refletir e a
analisar a forma como vivem e constroem seus vínculos na escola, o desafio se
estendeu a este trabalho, que, lançando-se ao exercício de se ocupar do sub-
jetivo, encontra-se na difícil tarefa de conciliar o universo objetivo dos conceitos
e a riqueza desafiadora do empírico, posto que a realidade sempre se mostra
mais rica do que aquilo que se escreve sobre ela.
É importante deixar claro também que não é intenção desta pes-
quisa emitir qualquer juízo de valor sobre uma ou outra forma de se de-

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


61
senvolver a amizade na escola. Não se trata de legitimar uma forma de
escolher o amigo em detrimento de outra, importa antes que a questão
seja explorada de forma satisfatória, compreendendo que, em decorrência
da sua amplitude, o assunto não se esgota aqui.
Convém destacar também que se verificou uma diferença entre o que
foi apreendido na pesquisa bibliográfica e o produto do grupo focal. Mesmo
que a revisão da bibliografia apresente a amizade pautada na diferença como
aquela que mais se aplica ao contexto escolar, a pesquisa evidenciou no tra-
balho empírico que os vínculos baseados na semelhança entre os amigos se
dão de forma recorrente.
Ainda assim, foi possível estabelecer uma aproximação entre os discur-
sos dos alunos e os conceitos que permearam a pesquisa bibliográfica, en-
tendendo-se que, embora as amizades baseadas na semelhança tenham sido
relatadas com certa recorrência, muito do que foi falado pelos alunos também
encontra fundamento na literatura estudada. Como na pluralidade – condição
da vida política, como defende Arendt – convivem e se mostram as diferentes
singularidades, no espaço coletivo da escola essas singularidades também se
esbarram e se afetam. Conforme acontece a experimentação do outro,
as impressões causadas pelo encontro determinarão os vínculos que serão
ou não estabelecidos entre os diferentes sujeitos. A pluralidade possibilita a
alteridade – entendendo-se alteridade como o convívio entre esses diferentes
sujeitos, permeado pelo estranhamento causado pelos diferentes encontros,
isto é, alteridade é o “espaço entre” os sujeitos. Para Arendt, a singularidade
se expressa, antes de tudo, para o outro, no contexto da ação:

Esta revelação de “quem”, em contraposição a “o que” alguém


é – os dons, qualidades, talentos e defeitos que alguém pode exi-
bir ou ocultar – está implícita em tudo o que se diz ou faz. [...]
geralmente, porém, não basta o propósito deliberado de fazer tal
revelação, como se a pessoa possuísse e pudesse dispor desse
“quem” do mesmo modo como possui e pode dispor de suas qua-
lidades. Pelo contrário, é quase certo que, embora apareça de
modo claro e inconfundível para os outros, o “quem” permaneça
invisível para a própria pessoa, à semelhança do daimon, na reli-

Anna Luiza B. Martins


62
gião grega, que seguia atrás de cada homem durante toda a vida,
olhando-lhe por cima do ombro, de sorte que só era visível para os
que estavam à sua frente. (ARENDT apud ALMEIDA, 2008, p. 472)

Esse “quem” que somente os outros com quem o sujeito lida podem
ver, na experiência do encontro, atrai ou repele a singularidade do outro, de
modo que, do encontro dessas singularidades, podem surgir vínculos como
a amizade que proporcionam troca de ideias, potencializando a ação.
No grupo focal, o discurso dos alunos participantes mostrou que exis-
te uma divergência entre eles no tocante ao fator que impulsiona o início
de uma amizade na escola. Alguns afirmaram que essas amizades se cons-
troem a partir da identificação de semelhanças. Outros, pelo contrário, ini-
ciaram suas amizades a partir do estranhamento e até mesmo da antipatia.
Esses fatores, semelhança ou estranhamento, constituem os elementos da
afetação causada pelo encontro com a singularidade do outro.
Tratando-se de como se dá a escolha de um amigo, as primeiras
respostas no grupo4 apresentaram a semelhança como fator importante
nesse processo:

Eu acho que você escolhe, primeiramente, não por interesse, mas


porque você vê em tal pessoa aquilo que você é em si mesma,
como se fosse um reflexo de você. E aí, vocês se juntam...
(Aluna 2, 17 anos)
Eu me sinto mais próxima das pessoas com quem eu tenho coisas
em comum, mas aí tem os meus colegas que também são muito
diferentes de mim, mas, amigo mesmo, acho que são as pessoas
mais parecidas. (Aluna 1, 17 anos)
Acho que a gente acaba se aproximando por coisas seme-
lhantes, mas, com o tempo, às vezes você pode até se separar
daquela pessoa por justamente ver que tem coisas semelhan-
tes, mas tem muito mais coisas diferentes do que aquilo que
se pensava. (Aluno 1, 16 anos)

4
Todos os discursos dos alunos são informações verbais retiradas das discussões no grupo focal.

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


63
Nesses casos, a afetação se dá a partir da semelhança, e a amizade
se inicia com a identificação de uma singularidade parecida.
Por outra parte, no entanto, existem aqueles que afirmam ter iniciado
suas amizades na escola a partir do estranhamento, encarando as diferenças
e desafiando a antipatia: “Os meus amigos de verdade, e até os meus melho-
res amigos, são baseados numa antipatia” (aluno 4, 17 anos).
Outro aluno declarou:

Antes de eu entrar aqui, eu já tinha pensado nisso: eu vou en-


contrar amigos para a vida, eu vou encontrar amigos para eu
levar nessa escola. E foi o que aconteceu. Só que o que eu não
sabia é que eu ia encontrar amigos tão diferentes e que fossem
me causar tantos conflitos. [...] A primeira amiga que eu encon-
trei me causou um megaconflito e foi uma coisa que eu não es-
colhi, pela primeira vez eu não tinha escolhido uma amizade, ela
aconteceu, ela veio. E eu aceitei-a da forma como ela veio, me
causando todos os conflitos... E é engraçado porque eu não a
achava semelhante por se parecer comigo, porque não parecia
nada, eu achava semelhante por ser diferente, porque ela me
causava um desconforto. (Aluno 3, 19 anos)

Em todos os casos, fica claro que a amizade, seja pelo (re)conhecimento


de semelhanças, seja pelo estranhamento gerado pelas diferenças, acontece
no contato entre as subjetividades e num nível de afetação, positivo ou negativo,
que será determinante no estabelecimento ou não de laços entre os sujeitos.
Em sua maioria, os participantes do grupo focal afirmaram que existem
valores que são fundamentais para a construção dos elos de amizade. Dentre
esses valores está a confiança: “Pra mim não tem isso de não ter confiança,
tem que ter” (aluna 6, 17 anos). A questão da confiança foi referida tam-
bém em outros discursos:

Se eu fosse definir o que é um amigo, eu diria que é aquele ou


aquilo, não necessariamente uma pessoa, em quem eu pudesse
confiar, seria sinônimo de confiança. [...] Se eu não confio,
se essa pessoa, minimamente, não me respeita, não me aceita,

Anna Luiza B. Martins


64
não pode ser minha amiga. Se essa pessoa não é leal, ela não
pode ser minha amiga. (Aluna 4, 18 anos)
A amizade parte muito da confiança que você tem na pessoa.
Se você não confia naquela pessoa, como é que você pode
considerá-la sua amiga? Tem muita gente que diz: “Fulano é meu
amigo, mas eu não confio nele, não!” Isso é muito complexo pra
mim. (Aluna 5, 18 anos)

Além da confiança, outros valores foram mencionados, como a possi-


bilidade do diálogo intersubjetivo, a democracia e o cuidado com o outro. É
perceptível que os alunos reconhecem a singularidade dos amigos, não bus-
cam “em um” o que encontram “em outro”. O diálogo é exatamente a possi-
bilidade de se relacionarem com o outro como ele se apresenta no encontro:

O amigo tem que partilhar ou dialogar com o seu projeto [de


mundo], porque muitas vezes o seu projeto, você pensa de uma
forma e o seu amigo vai de confronto com aquilo, ele vai dia-
logar com você, aí é amigo quando ele consegue dialogar. Ele
não precisa levar a mesma bandeira que a sua. O simples fato
de ele dialogar, de ele ouvir o outro projeto, já é um lance de
amizade. Porque do amigo você quer isso, do amigo você quer
ouvir, do amigo você quer uma correspondência para falar tam-
bém... (Aluno 3, 19 anos)
Meus amigos são bem diferentes de mim na personalidade, mas
eu tenho que conseguir discutir com a pessoa. Ela pode até não
ter a mesma ideia, mas ter interesse em discutir sobre essa ideia, a
opinião sendo diferente, mas ter interesse no assunto. Eu acho que
isso é fundamental para eu ter uma amizade com essa pessoa.
(Aluna 1, 17 anos)

A amizade também foi apresentada como um espaço democrático e,


ao ser comparada com a instituição familiar, essa última foi encarada como
um espaço em que, ao contrário da amizade, não existe essa liberdade:

De uma maneira muito simples, eu não acho que a família seja um


bom exemplo para se citar aqui. Até porque a estrutura familiar não

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


65
é nada democrática, a amizade é um vínculo extremamente demo-
crático, extremamente livre. Enfim, é isso. Na família, você não tem
esse senso de liberdade para gostar, para amar, para conviver, para
se relacionar... (Aluna 4, 18 anos)

Essa questão, como citado anteriormente, aparece na reflexão de


Ortega�������������������������������������������������������������������
(2000), quando ele discute a presença constante da família no ima-
ginário dos afetos que desenvolvemos. Segundo o autor, quanto mais impor-
tante uma relação parece para nós, mais temos a tendência de associá-la
a uma relação familiar. Ele afirma que essa tendência, no fundo, resulta do
medo muitas vezes nutrido por nós de encarar a diferença, e, por isso,
tendemos a criar analogias que nos aproximem do espaço de semelhança
e segurança que a família representa.

Não se trata de negar a família como instituição, mas de com-


bater o monopólio que ela exerce sobre nosso imaginário
emocional, de deixar de pensar as reações de amizade em
imagens familiares, para poder reinventar a amizade [...]. O
mundo compartilhado, a esfera dos “assuntos humanos” é esse
espaço entre os homens que deve ser mantido e que é supri-
mido nas relações de parentesco, na família e na fraternidade,
ao anular a pluralidade, a singularidade e a liberdade. Eis por
que Hannah Arendt contrapõe fraternidade e amizade, sendo
esta última voltada para o público. (ORTEGA, 2000, p. 115)

Ortega (2000) faz esta discussão tendo em vista o modelo de


família historicamente construído, o qual não se apresenta como um
espaço democrático, isto é, muitas vezes não mostra abertura ao diá-
logo nem à possibilidade de escolha. Contudo, cabe acrescentar que,
na contramão dessa perspectiva, existe sim, e cada vez mais, a possi-
bilidade de construção de novas formas de relacionamento dentro do
âmbito familiar.
Existem famílias que escolhem desenvolver relações pautadas na con-
fiança, no respeito, no diálogo, na liberdade de ser quem a pessoa é de
verdade. Nesse sentido, cabe-nos tratar até mesmo da possibilidade que os

Anna Luiza B. Martins


66
laços de amizade têm de democratizar a família, visto que as relações de ami-
zade constituem um lugar de cultivo de valores democráticos, como revelado
nos discursos do grupo focal. Quando existe uma abertura para uma nova
forma de relacionamento como essa, a de familiares que criaram entre si laços
de amizade, há a possibilidade crescente de transformação da família num
espaço democrático.
Por último, vale a pena destacar o cuidado com o outro, que tam-
bém surge como um valor importante na construção das amizades. No
discurso dos jovens, o cuidado apareceu interligado com os conceitos de
“tratar bem” e de respeito, sendo traduzido em atitudes como o carinho
demonstrado pelo outro e a preservação do afeto desenvolvido em rela-
ção ao amigo, mesmo com as mudanças que ele sofre:

Teve uma amiga que falou assim para mim: “Por que você faz isso
por mim, se eu sou tão ruim com você?” Eu falei: “Porque
isso não me preocupa, porque eu considero você uma pessoa
boa, eu gosto de você, amo você, e eu acho que você merece
pelo menos uma pessoa na vida que faça essas coisas por você,
e se pode ser eu, por que não?” (Aluna 4, 18 anos)
Às vezes, a gente faz amizade e aquela pessoa acaba con-
quistando você, e você cria o sentimento de afeto, o primeiro
contato pode até ter sido por opinião, pelo pensamento, pode
até ter sido isso o que te impulsionou a se aproximar, mas,
depois que você se aproxima, você vai criar um laço mais de
afeto, você começa a se importar com a pessoa. Aí, às vezes,
ela muda, mas você já gosta dela [...]. Ela muda, mas ninguém
muda totalmente. A essência ainda é a mesma. Aí você já gosta
daquela pessoa e você até se esforça para conversar com ela,
e você consegue. (Aluna 1, 17 anos)

Um aluno deixa clara a importância que o “tratar bem” tem para ele na
construção de uma amizade: “Pouco me importa se a pessoa acha o aborto
legal, se ela quer votar no Serra, eu não quero nem saber disso. Se a pessoa
me trata bem, já está bom, já tem grandes chances de virar meu amigo”
(aluno 2, 16 anos).

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


67
Esses valores, que segundo os alunos são condições básicas para a
construção e a manutenção das amizades, contribuem para a reafirmação
dos afetos, para o reconhecimento da capacidade de se doar ao outro e de
se sentir à vontade para esperar uma reação correspondente dele, além de fa-
vorecerem o autoconhecimento. Nesse sentido, as amizades concorrem para
a formação humana, e a citação recorrente desses valores ao longo do grupo
focal, ressaltando a sua importância, reafirma isso.
Conforme a afetação se dá nos sujeitos envolvidos nos elos de
amizade, esses relacionamentos interferirão diretamente na formação
dos sujeitos. A troca das subjetividades possibilitada pelo convívio, pelo
relacionamento, transforma constantemente os indivíduos, mesmo que eles
não o percebam. Entende-se por troca de subjetividades a troca de ideias e
o surgimento e o encontro de afetos, que podem ter consequência positiva
ou negativa, dependendo da situação. Além disso, podemos citar também
os diálogos possibilitados pela relação, o cuidado com o outro, enfim, ações
que permeiam e mantêm os elos de amizade.
A troca tem o poder de ajudar o outro a libertar o seu potencial
único e intransferível de mudança, de criação de projetos impensados, isto
é, o poder de fazer um início. É o conceito de renovação de mundo de
Hannah Arendt que entra novamente em cena. Segundo a filósofa, cada
geração que nasce – seres novos num mundo antigo – é capaz de renovar
o espaço coletivo que é o mundo (ALMEIDA, 2008). Em outras palavras, a
cada novo ser que surge no mundo, o próprio mundo pode tornar-se novo
mais uma vez. A natalidade inaugura um novo início, possibilitado pela
ação dos diferentes singulares.
A amizade compondo, juntamente com outros relacionamentos, o
âmbito da ação, transforma-se num dispositivo potencializador da mudan-
ça, posto que é através da ação que os homens são capazes de instaurar
a novidade no mundo, a amizade – um relacionamento de exercício da
liberdade, que já é ação em algum sentido – não poderia incitar a ação que
vise ao coletivo? Não poderia servir de instrumento de mudança do mundo?
Tendo isso em vista, algumas perguntas feitas no grupo focal busca-
ram compreender como se desenvolve esse potencial na dimensão prática

Anna Luiza B. Martins


68
dos relacionamentos. Perguntados se a amizade tem o poder de mobilizar
para a ação, a maioria dos participantes do grupo respondeu que sim. Al-
guns, no entanto, ao desenvolverem a ideia, deixaram claro que essa ação
se voltava para eles mesmos, como se o projeto de mundo partisse, antes de
tudo, de uma mudança interna. Percebe-se isso claramente na fala de uma
aluna, que afirma:

É óbvio que eu acho que a amizade gera ação. No meu caso, não
conta o meu projeto de mundo, porque eu sou muito indecisa, mas
eu meio que sei bem o que quero da minha vida. Eu sou muito
cabeça-dura, só que eu também me autodeprecio muito, então,
muitas vezes, mesmo eu sabendo que eu quero fazer ������������
aquele������
negó-
cio, eu não tenho ânimo para seguir em frente, porque eu sei que
eu quero aquilo, mas eu fico: “Ah, eu não vou conseguir, eu não
tenho capacidade!” E meus amigos, e minha família também,
no caso, mas meus amigos me botam muito para cima. Eles fa-
lam: “Vai, você vai conseguir. Tenta!” E, apesar de não ser nada
conflitante, eu acho isso essencial para eu seguir em frente. Eu
acho que eu não conseguiria ter feito nem metade do que eu fiz
se não tivesse gente do meu lado me apoiando, me movendo
para frente. (Aluna 1, 17 anos)

Essa aluna deixa claro que suas amizades ajudam na tomada de


decisões importantes, geram motivação para seguir em frente, enfim, mo-
bilizam uma ação voltada para a interioridade, para o âmbito pessoal.
Outro aluno afirma: “Pelo estranhamento, você é mobilizado pelo seu
amigo a fazer alguma coisa que muitas vezes você não queria fazer, que
você já tinha cogitado nunca fazer na vida. E aí o seu amigo te mobiliza para
isso e, eu acho, que gera a ação” (aluno 3, 19 anos). Nesse caso, enfatiza-
se que o amigo mobiliza para uma ação impensada, mas que, ainda assim,
parece restrita ao campo pessoal, uma ação que seria como um enfrenta-
mento de si mesmo, e que não se direciona diretamente ao coletivo.
Alguns alunos afirmaram que a sua passagem pela escola foi deter-
minante para fazê-los pensar em prol do coletivo, de modo que a troca de
singularidades permitida pelos relacionamentos criados no espaço escolar

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


69
possibilitou-lhes cogitar novos caminhos a seguir durante sua passagem
pela escola e até mesmo quando saírem dela:

Ela [a escola] também tem um caráter de transformação e


de desenvolvimento e ela permite isso [...]. Da mesma forma
que ela regula, tentando nos formar para sermos alguma coisa,
ela também permite que a gente se desenvolva e se transforme,
de uma maneira mais flexível. [...] Justamente essa questão for-
madora possibilita uma ampliação da nossa visão de mundo.
Tanto que o meu projeto de vida, depois que sair daqui, é, de
fato, transformar o meu espaço, conseguir flexibilizar, minima-
mente, o espaço onde eu vou ser inserida, para que eu possa
ter pessoas ao meu lado que saibam ser amigas, porque nem
todas as pessoas sabem ser amigas das outras, isso não é fácil.
(Aluna 4, 18 anos)

Arendt discute a importância da educação para os jovens, afirman-


do que a educação tem o papel de iniciar e preparar os novos para um
mundo antigo, anterior a eles. O educador deve mostrar às novas gera-
ções o mundo em que vivemos, expondo, inclusive, as barbáries nele co-
metidas, ao mesmo tempo em que protege as singularidades dessas novas
gerações, a fim de que possam desenvolver seu potencial (ARENDT, 2011).
Desse modo, a escola desempenha um papel ao mesmo tempo desafiador
e protetor das novas gerações. Isso não é diferente na Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio.
Essa concepção arendtiana aparece na fala de alguns alunos, que afir-
maram a importância de sua passagem pela EPSJV para que pudessem en-
xergar o mundo de uma perspectiva diferente, mais voltada para o político,
para o próprio mundo. Uma aluna ressaltou: “A escola me mudou muito no
sentido de o meu principal projeto de vida é ter um trabalho voltado para a
área da educação” (aluna 3, 16 anos). Outra declarou:

Eu acho que a escola, também por ser um objeto de transforma-


ção do indivíduo, assim, de formação no âmbito acadêmico e no
âmbito social, e mesmo de construção do sujeito, eu acho que ela
interfere muito [...] na construção de suas amizades, porque se eu

Anna Luiza B. Martins


70
encontrasse com as minhas amigas de fora, hoje em dia, eu prova-
velmente as chamaria de idiotas, de chatas [...]. Antes de eu entrar
aqui no Politécnico, eu tinha uma visão de mundo não totalmente
diferente, mas um pouco diferente da que eu tenho hoje em dia,
e projeto de mundo, eu não sabia nem o que eu queria fazer
da vida. [...] Eu acho que a escola teve um papel importan-
tíssimo na minha formação como indivíduo, porque ela criou
uma visão em mim um pouco a mais do que eu já tinha. Eu
nunca pensei em fazer medicina, hoje eu quero fazer medicina
e trabalhar em comunidade [...]. Acho que é isso: meu projeto
de mundo é social. (Aluna 5, 18 anos)

Mesmo que tenha sido ressaltada a importância da escola na cons-


trução de novas visões de mundo, considera-se que poucas falas no grupo
focal dão a entender, diretamente, que as amizades auxiliam na mobiliza-
ção política voltada para o coletivo, visto que por meio dos discursos, seja
valorizando mais a importância pessoal da amizade, seja indicando o fim
último da mudança promovida por ela, os alunos trouxeram uma discus-
são que se inicia no “eu”. Poderíamos, então, afirmar que a renovação de
mundo proposta por Arendt, que acontece a partir da vinda de cada ser
novo, parece esmagada por um mundo cada vez mais voltado para os
interesses pessoais.
Todavia, as falas deixaram claro que o “eu” tem um papel fundamental
no processo de ação no mundo. O pensamento que parece permear as falas
é o de que uma mudança no âmbito pessoal, isto é, uma mudança no pen-
samento, na visão de mundo, nos objetivos do sujeito, acaba modificando, de
alguma forma, o mundo em que esse “eu”, esse sujeito está inserido.
Como dito pelos alunos, suas singularidades esbarram com outras
singularidades no espaço escolar e desse encontro surgem mudanças.
Essas�������������������������������������������������������������
mudanças em cada sujeito trazem um potencial de ação que pa-
rece fluir “de dentro para fora”, isto é, inicia-se no singular e termina na
pluralidade. Desse modo, embora tenhamos a tendência de classificar
as ações que começam no “eu” como um ato de sobreposição do par-
ticular ao público, o produto do grupo focal mostrou que, mesmo que
o início das ações parta de um desejo pessoal, o fim pode sim estar

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


71
voltado para o coletivo. O caminho mostrado por cada fala ainda traz
consigo a esperança da mudança no coletivo, promovida pelos encon-
tros e pelos afetos desenvolvidos no espaço da escola, que possibilitam,
antes, uma mudança no próprio sujeito.
A consciência do potencial de gerar mudança e o próprio desejo de
renovar um mundo que, apesar de parecer inóspito, é o lugar que nos foi
dado para viver (Arendt, 2010) aparece nos discursos dos alunos como
uma semente que ainda precisa ser cuidada para que possa brotar e gerar
seus frutos, mas que já está plantada em suas singularidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A AMIZADE NA ESCOLA


E SUAS POTENCIALIDADES

Tendo em vista tudo o que foi apresentado, podemos concluir que


a amizade constitui, de fato, um relacionamento que contribui na abertura
para a experimentação, para a mudança, tratando-se de um relacionamento
criativo, de exercício de liberdade e democracia. Ao abordarmos em espe-
cial a amizade na escola, podemos afirmar ainda que esses laços tornam-se
mais desafiadores, na medida em que são construídos num espaço hetero-
gêneo, dentro de um contexto formador.
Como ficou claro na análise do grupo focal, as amizades na esco-
la são formadas a partir da afetação causada pela presença do outro no
convívio. Alguns são afetados por alguma semelhança encontrada no ou-
tro, embora essa semelhança não signifique características iguais, enquanto
outros são afetados – e desafiados – pela própria diferença proporcionada
pela heterogeneidade da escola pública.
Nesse contexto, percebeu-se que muitas visões foram rompidas no
convívio proporcionado pela escola. Foi apresentado no grupo focal que
uma variável importante no aprofundamento dos laços de afeto é o tempo
de convívio, que serve tanto para reafirmar relacionamentos estabelecidos
previamente quanto para rompê-los, lançando o desafio de procurar por
novos que pareçam mais adequados aos sujeitos envolvidos.

Anna Luiza B. Martins


72
Se, num primeiro momento, a pesquisa procurou investigar as implica-
ções da amizade para a formação humana, num segundo momento pode-
se perceber que um relacionamento livre, democrático e desafiador como
a amizade representa um espaço fundamental no qual os sujeitos viverão a
experiência do cuidado, do diálogo, da confiança e do acolhimento. Tais va-
lores, que tanto permearam a discussão do grupo focal, são determinantes na
construção e na reconstrução constantes dos sujeitos que vivem a amizade.
Mesmo que imperceptivelmente, a troca intersubjetiva possibilitada pela
amizade contribui para a formação dos sujeitos. Afinal, é na alteridade que
novas ideias surgem e novos valores são cultivados, e essa dinâmica gera
constantemente no sujeito uma nova percepção de si. Conforme lidamos com
a imagem que temos de nós mesmos, orientamos nossos pensamentos e nos-
sas ações, colocando ou não em prática o potencial de mudança que carre-
gamos em nossa singularidade.
Cabe aqui, então, resgatar outro objetivo da pesquisa, que foi
investigar a potencialidade política que a amizade na escola pode con-
ter, encarando como política o âmbito da pluralidade, do coletivo. Uma
vez esclarecida a importância da amizade para a formação humana,
percebemos que a percepção gerada pelo encontro com o outro tem
grande chance de impulsionar a ação e que, conforme o que foi vivido
nesse encontro, a ação pode se limitar ao campo pessoal, íntimo, da
amizade, ou pode se voltar para o âmbito da pluralidade, explorando as
potencialidades dos sujeitos envolvidos no relacionamento.
Nesse sentido, podemos afirmar que a amizade tem uma potencia-
lidade política que pode ou não se transformar em ato de acordo com o
modo que os sujeitos são afetados mutuamente. Cabe ainda abordar que
projetos inovadores, cooperativos e solidários podem derivar de pequenos
atos, restritos inclusive ao espaço íntimo da amizade, mas que vêm a re-
percutir, posteriormente, num estilo de viver capaz de gerar, a longo prazo,
alguma mudança no meio em que o sujeito está inserido.
Quando falamos de iniciar projetos impensados também tratamos
de processos. Mudanças significativas, muitas vezes, começam com pe-
quenos atos. Se no espaço da amizade o sujeito vive a experiência do cui-

Singularidade, ação e renovação de mundo: a amizade na escola e suas potencialidades


73
dado, por exemplo, é muito provável que ele reproduza, com outros, essa
mesma postura que ele partilhou e que lhe fez bem. Tendo isso em vista,
não é absurdo pensar que a renovação de mundo pode começar em um
relacionamento pessoal como a amizade.
Foi isso que esta monografia procurou apresentar, a amizade por um
novo ângulo, mais voltado para o político, embora não descarte a amizade
íntima como um relacionamento também válido e que possa apresentar aber-
turas para uma transformação no mundo.
A intenção foi mostrar que, no contexto escolar, é possível que exista o
germe de um relacionamento potencialmente inovador, rico em seu horizonte
de significados. Por isso, a amizade se torna tão importante: trata-se de um
relacionamento que pode proporcionar uma fuga às formas de subjetivação
impostas, uma alternativa criativa de novas formas de sociabilidade.
O enfoque dado à amizade na escola e a realização do grupo
focal com alunos da EPSJV buscaram retratar que, no espaço escolar,
é possível que a mudança verificada nos sujeitos envolvidos num rela-
cionamento de amizade se torne ainda mais significativa por causa das
influências desse contexto.
Podemos trazer, então, uma reflexão de Arendt que deve ser com-
preendida à luz da discussão já feita, considerando-se a importância dos
relacionamentos para a acentuação do potencial único de cada sujeito:

O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar


dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente im-
provável. E isso, mais uma vez, só é possível porque cada homem é
único, de sorte que, a cada novo nascimento, vem ao mundo algo
singularmente novo. (ARENDT, 2010, p. 222-223)

E, complementamos, referindo-nos à afetação causada pelas dife-


rentes singularidades:

A rigor, o domínio dos assuntos humanos consiste na teia de rela-


ções humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos.
O desvelamento do “quem” por meio do discurso e o estabeleci-
mento de um novo início por meio da ação inserem-se sempre em

Anna Luiza B. Martins


74
uma teia já existente, onde suas consequências imediatas po-
dem ser sentidas. Juntos, iniciam novo processo, que finalmente
emerge como a singular estória de vida do recém-chegado,
que afeta de modo singular as estórias de vida de todos aqueles
com quem ele entra em contato. É em virtude dessa teia pree-
xistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e
intenções conflitantes, que a ação quase nunca atinge seu ob-
jetivo; mas é também graças a esse meio, onde somente a
ação é real, que ela “produz” estórias, intencionalmente ou
não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz
coisas tangíveis. (ARENDT, 2010, p. 230)

Posto tudo isso, concluímos, então, que a amizade, enquanto perten-


cente à teia dos complexos relacionamentos humanos, apresenta uma rique-
za ainda pouco explorada, mas de grande relevância, tanto numa dimensão
pessoal quanto coletiva. Espera-se que a reflexão proporcionada por este
trabalho contribua para uma maior valorização do potencial da amizade e,
em especial, da amizade na escola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da modernidade. Revista Educação: Hannah Arendt pensa a educação,
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ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO (EPSJV).
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75
GOMES, Lívia Godinho Nery; SILVA JUNIOR, Nelson da. Experimen-
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pulares. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 23, n. 2, p. 149-158,
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PEREIRA, Isabel Brasil; RAMOS, Marise Nogueira. Educação profissional
em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Temas em Saúde).

Anna Luiza B. Martins


76
SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA: DA “REGENERAÇÃO”
AO EXTERMÍNIO DOS POBRES

Clarice Ramiro *

Não posso virar conivente de uma ordem perver-


sa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao
atribuir a “forças cegas” e imponderáveis os da-
nos por elas causados aos seres humanos. A fome
frente a frente à abastança e o desemprego no
mundo são imoralidades e não fatalidades, como
o reacionarismo apregoa, com ares de quem so-
fre por nada poder fazer. O que quero repetir,
com força, é que nada justifica a minimização
dos seres humanos, no caso das maiorias com-
postas de minorias que não perceberam ainda
que juntas seriam a maioria.
Paulo Freire

As linhas aqui traçadas buscam dar conta de um fenômeno social


conhecido como criminalização da pobreza e, em especial, mostrar como
ele aconteceu e acontece no Rio de Janeiro dos nossos dias. Esse problema
não é uma especificidade carioca. Portanto, mesmo que as especificidades
da constituição desta cidade nos sirvam em grande medida para explicar
tal processo, tê-la-ei apenas como representativa de um todo complexo.
O trabalho busca apresentar duas facetas do fenômeno da criminalização
da pobreza: a “regeneração” e o extermínio dos pobres. Seu intento é
mostrar essa mudança como um refinamento no processo de exploração

*
Ex-aluna do curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa História na Universidade Federal
Fluminense (UFF). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou com
a orientação dos professores-pesquisadores André Vianna Dantas (doutorando em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro), da Vice-direção de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico
(VDPDT), e Flávio Henrique Marcolino da Paixão (mestre em Biologia Parasitária), do Laboratório de
Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais de Saúde (Latec). Contato: claricefrs@hotmail.com.

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


77
do trabalhador dentro do capitalismo, tratando do quão sofisticadas são as
armas de deslegitimação da classe pobre neste modo de produção da vida.
Os séculos XVII e XVIII são marcados por algumas revoluções que a
historiografia chamou de “burguesas”: Revolução Puritana (1640), Revolução
Gloriosa (1688) e Revolução Francesa (1789). Esses processos, ricos em
complexidade, possuem em comum o traço da ruptura com a estrutura es-
tamental do Antigo Regime e a abertura para a consolidação do modo de
produção capitalista.
Se antes, no sistema feudal, os grandes proprietários eram os nobres
e seus herdeiros, com o advento da sociedade moderna nova configura-
ção se estabelece na relação entre hereditariedade e privilégios. Ainda que
continue dona de muitas posses, a nobreza passa nesse momento a convi-
ver com o emergente grupo social chamado burguesia. A até então imprati-
cável mobilidade social passa a figurar como possibilidade, fato que dá status
revolucionário à classe burguesa no momento de sua gênese.
Institui-se no imaginário burguês, inicialmente, a noção de con-
quista de direitos. Através da promulgação da Declaração dos direitos
do homem e do cidadão (1789), importante feito da Revolução Francesa,
podemos perceber como essa ideia estava sendo difundida e defendida.
Nada mais emblemático dessa situação do que a frase “Todos são iguais
perante a lei”, encontrada no referido documento.1 Sobre ele, fala-nos o
historiador Eric Hobsbawm:

Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica


de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma so-
ciedade democrática e igualitária. “Os homens nascem e vivem
livres e iguais perante as leis”, dizia seu primeiro artigo; mas ela [a
Declaração] também prevê a existência de distinções sociais, ain-
da que “somente no terreno da utilidade comum”. A propriedade
privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável.
(HOBSBAWM, 2011, p. 106)

1
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 5 nov. 2012.

Clarice Ramiro
78
Note-se que estamos falando do período de consolidação do sistema
capitalista, que tem por natureza a divisão social em duas classes fundamen-
tais: a dos detentores dos meios de produção e a dos que têm apenas sua
força de trabalho como propriedade. Nesse caso, falar da gênese do capita-
lismo é falar também da construção de uma sociedade pautada na diferença
econômica entre classes.
Voltando mais uma vez para 1789, temos já uma marca da separação
da sociedade em classes, ainda que não da forma consagrada pela futura
Revolução Industrial: “o ponto crucial do problema agrário era a relação
entre os que cultivavam a terra e os que a possuíam, os que produziam sua
riqueza e os que a acumulavam” (HOBSBAWM, 2011, p. 36).
Surgem então algumas questões: se economicamente somos desi-
guais, podemos ser “iguais perante a lei”? Podemos acreditar que exista
igualdade de direitos em um sistema que tem como base a expropriação
do trabalho dos homens e de seus meios de produção? Quem garantirá
que a condição material dos indivíduos não será determinante da “menor”
ou “maior” igualdade jurídica alcançada?
Alguns fatos observáveis do nosso cotidiano nos encaminham para pos-
síveis respostas. Se decidirmos voltar nossos olhares para a situação carcerária
brasileira, por exemplo, constataremos que a esmagadora população das pri-
sões se configura como pertencente às classes pobres ou menos abastadas.
Um bom exemplo disto é o Rio de Janeiro. Por meio do Sistema Integrado de
Informações Penitenciárias (InfoPen), importante setor do Departamento Peni-
tenciário Nacional, temos dados recentes que nos mostram que: mais de 70%
da população carcerária do Rio de Janeiro não possui escolaridade além do
ensino fundamental completo; em média, 69% são negros ou pardos; aproxi-
madamente 53% têm entre os 18 e 29 anos (BRASIL, 2012).
A análise desses dados – escolaridade, “raça” e faixa etária – nos su-
gere que talvez não sejamos “todos” iguais perante a lei. O sistema prisional
está repleto de pessoas pertencentes a determinadas classes, e não a outras.
Por quê, perguntamos. É razoável concluir que apenas os pobres cometem
delitos? Por que, então, em muito maior medida, os crimes cometidos pelos
pobres redundam em detenção?

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


79
O senso comum do discurso dominante diz prezar a defesa de valo-
res como liberdade e igualdade. A meu ver isso é bastante complexo de se
entender, posto que, pela exploração da força de trabalho alheia (condição
fundante do capitalismo), valores como a igualdade são negados, embo-
ra quase sempre isso não seja tão fácil de perceber. Em uma sociedade
que garante a igualdade formal de direitos, embora dividida em classes,
como se processará a diferenciação entre elas? Em outras palavras, supera-
da a dominação explícita característica da sociedade feudal, como se rein-
venta a dominação de classe sob um sistema de suposta igualdade de direitos?
Dentre muitas formas possíveis, a reinvenção da dominação de uma
classe por outra se dá, acreditamos, pela criação de um instrumento ideológi-
co sofisticadíssimo, chamado “criminalização da pobreza”. O fato de interiori-
zarmos ideias como a de que “só é pobre quem quer” é um ótimo exemplo de
como age, em silêncio, essa ferramenta em nosso imaginário social.
O problema da pobreza revela em si a base econômica vital
do capitalismo, base que muitas vezes fica oculta por conta da “de-
mocracia” em que dizemos, afirmamos e acreditamos viver. Falo aqui
da democracia������������������������������������������������������
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usada em favor das classes dominantes. O fato de ter-
mos distintas classes, com projetos, necessidades e anseios históricos
diferentes passa despercebido. Transmite-se uma noção de ausência de
disputa entre projetos políticos, da ausência de lutas entre as classes. E
problemas sociais frutos dessa disputa, como a pobreza, não são asso-
ciados ao que de fato deveriam ser.
A apropriação ideológica realizada pelo capital tenta despir a de-
mocracia de seu potencial caráter igualitário e acaba produzindo um
“apassivamento da classe trabalhadora através do recurso concomitante à
violência e ao convencimento” (FONTES, 2010, p. 368-369). Negligenciar
todo esse processo é aceitar que, sim, pode ser possível que o pobre só
exista como resultado da falta de vontade e indolência.
Falar da ferramenta da criminalização da pobreza equivale a falar
da dominação da classe burguesa sobre os trabalhadores das mais diver-
sas formas possíveis, através de leis e da veiculação de supostas verdades
inquestionáveis através da mídia, falas, jargões etc.

Clarice Ramiro
80
Para além de se culpar o pobre pelas mazelas que vive em sua vida,
cria-se também uma noção de que se a sociedade vai mal é ele o res-
ponsável. Se existem “perigos” no mundo em que vivemos, eles devem ser
atribuídos aos pobres. Elegem-se inimigos públicos, atores responsáveis
pelo caos. E nesse caso como se propõe, em geral, o controle da situa-
ção? Com muita repressão, mas uma repressão “legitimada”, “justificada”
e “endossada”.
Para termos noção de como essa arma ideológica tem raízes profun-
das, voltemos ao ano de 1849. Nesse ano, a expressão “classes perigosas”
foi utilizada pela primeira vez, em um estudo que tratava da relação entre
a criminalidade e os meninos de rua na Inglaterra. Quem a utilizou foi a
reformadora social Mary Carpenter. O intuito de seu estudo foi mostrar o
funcionamento do comportamento considerado “patológico” de um deter-
minado grupo de indivíduos ex-presidiários, “dedicados” à prática de furtos
(CHALHOUB, 1996).
A noção de que não há reparo para os que passaram por prisões se
faz presente desde há muito tempo. A função de ressocialização dos indivídu-
os poucas vezes é reconhecida e realizada. Aliás, convido vocês também a
refletirem se o sistema carcerário, para além do discurso, pretende ressocia-
lizar alguém. Com a negação por resposta, a prisão acaba por se tornar um
castigo, sua função é de ter um fim em si mesma. Não há função posterior,
não há trabalho a ser realizado, não há recuperação.
A respeito disto, Loïc Wacquant nos mostra que:

Colocar o inesperado ressurgimento das prisões como peça cen-


tral no horizonte institucional das sociedades avançadas, nas últi-
mas duas décadas [...], é útil no sentido de lembrar-nos que punir
pessoas colocando-as atrás das grades é uma invenção histórica
recente. Tal fato aparece como uma surpresa para muitos, já que
nós crescemos tão acostumados a ver pessoas presas que isso nos
parece natural. A prisão apresenta-se como uma organização in-
dispensável e imutável, que opera desde tempos imemoriais.
Na realidade, até o século XVIII, os lugares de confinamento
serviam principalmente para deter os suspeitos ou considera-

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


81
dos culpados por crimes, aguardando a administração de suas
sentenças, as quais constituíam em vários tipos de castigos cor-
porais (chicotadas, pelourinho, marcar a ferro, mutilação, en-
terramento, levar à morte com ou sem tortura), suplementados
pelo banimento e pela condenação a trabalhos forçados ou
às galés [...].
Só com o advento da individualidade moderna, a qual,
supõe-se, deve desfrutar de liberdade pessoal e ser dotada
de um direito natural à integridade física (que não pode ser
retirado nem pela família, nem pelo Estado, exceto em casos
extremos), é que privar pessoas de sua liberdade tornou-se
uma punição em si mesma e uma sentença criminal por exce-
lência. (WACQUANT, 2001, p. 74)

Mais tarde, no fim do século XIX, eis que chega a vez do Brasil conhe-
cer a noção de classes perigosas. A época era a da Abolição, e há grande
preocupação por parte das classes dominantes em “organizar” o trabalho
livre e disciplinar o trabalho de egressos do cativeiro. Como reflexo das
agitações na cidade do Rio de Janeiro, surgem as discussões sobre a ociosi-
dade. Parlamentares, muito influenciados pela literatura europeia, começam
a discutir projetos que de certa forma pudessem frear a suposta ociosidade
e a “vadiagem” dos ex-escravos recentes e também dos mestiços.
Dois exemplos dessa discussão estão em parágrafos do Código Penal
de 1890. São eles:

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mis-


ter em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência
e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio
de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da
moral e dos bons costumes:
Pena – de prisão celular por quinze a trinta dias.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agi-
lidade e destreza corporal conhecidos pela denominação ca-
poeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos
capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumul-

Clarice Ramiro
82
tos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou
incutindo temor de algum mal:
Pena – de prisão celular por dois a seis meses.

Podemos ver que, assim como na Inglaterra, houve a associação entre


“classes pobres” e “classes perigosas”. Ao se utilizarem termos como “vadio”,
imprime-se ao caráter do sujeito uma ofensa moral, afirmando-se que o
fato de não trabalharem é culpa deles. Propõe-se construir uma sociedade
em que os vícios sejam extirpados. A questão é que não conseguem (nem
desejam) fazê-lo sem que “confundam” o “extirpar vícios” com “extirpar os
próprios portadores dos vícios” – isto é, os pobres.
Antes mesmo da Proclamação da República, podemos apreender, em
uma carta assinada pela esposa do imperador dom Pedro I, d. Leopoldina,
e endereçada a seus familiares austríacos, a percepção das classes domi-
nantes em relação aos escravos alforriados:

O Rio de Janeiro é um lugar imundo, temos que tratar de sair


daqui no verão [...]. Os pobres se exterminam a si mesmos, con-
tagiam-se uns aos outros nos cortiços. Os alforriados deixam
de ser os pobres excluídos para ser os pobres perigosos. (Apud
COIMBRA, 2001, p. 86)

No caso do Rio de Janeiro pós-Proclamação da República, vemos uma


forte resistência por parte das elites em aceitar a nova condição de seus ex-
escravos, a condição de cidadãos. Agora, eles eram sujeitos livres, segundo
a lei, porém a prática mostra que ainda estavam longe da liberdade, que
precisavam sobreviver e que o fariam pela venda de sua força de trabalho.
Com a impossibilidade de ter a sua tutela entregue às mãos dos se-
nhores, no caso dos ex-escravos, os homens passam a contar exclusivamente
com a tutela do Estado. O que não se pode esquecer é que antes do fim
da escravidão esse mesmo Estado (que é sempre um Estado de classe, se-
gundo os preceitos marxistas que seguimos aqui) era um forte propagador de
ideias como as de que os homens negros não estariam aptos à liberdade, por
conta de seu passado de cativeiro.

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


83
As classes que o Estado representa em maior medida são os atores
dessa relação. É o Estado, enquanto ferramenta das classes dominantes,
que garante a dominação do senhor sobre o escravo. Dessa forma, não
há como perceber o Estado tendo qualquer papel de tutela em relação aos
referidos “novos homens livres”. Ainda sobre o papel do Estado, é impor-
tante a seguinte reflexão:

A crítica de Marx e Engels modifica a definição de Estado hegeliana,


que conserva um cunho sobremaneira filosófico. Trazem-na para
o âmbito do processo histórico efetivo. O Estado é conceituado
como elemento histórico, coligado à existência de classes sociais,
não expressando um momento de universalidade efetiva. Embora
se apresente como universal, reduz-se de fato a uma parcialidade
travestida de universalidade, quando uma generalização do inte-
resse dominante deve assumir a forma de ser de todos. (FONTES,
2010, p. 130)

No âmbito internacional, vemos o respaldo que a ciência deu à noção


de periculosidade associada à pobreza. Os valores emitidos pela ciência
na época, assim como hoje, eram respeitadíssimos. Foi então que surgi-
ram, ainda no século XIX, as teorias raciais. A miscigenação passa a ser
vista como a fonte de seres indolentes, preguiçosos, perigosos socialmente
e, além disso, propagadores de doenças.
A ciência expressa a visão de mundo de quem a produz, de acor-
do com a época em que vive, suas verdades, seus costumes. Por isso
não desejo aqui mostrar a ciência sob um viés maquiavélico, como uma
arma contra os pobres. Desejo apenas mostrar de que forma a classe
dominante se apropriou de conhecimentos científicos e, acreditando
neles, tocou em frente o seu projeto de dominação.
Alia-se o discurso médico-científico ao ideário das elites e promove-
se um molde de como deveria portar-se o considerado “cidadão de bem”
no local onde vive. Seguindo essa lógica, o indivíduo que pertence à classe
proletária é um bom sujeito se trabalha e mantém sua família unida, preser-
vando valores religiosos e morais. Fugir de qualquer desses padrões significa
causar desordem na sociedade.

Clarice Ramiro
84
A priori, ocorre a criminalização da classe proletária, mas, se analisar-
mos mais profundamente, é possível perceber que há uma ideia constante
de “reaproveitamento” dos sujeitos pobres. O mercado de trabalho e o mer-
cado de consumo ainda necessitavam da classe pobre. Portanto, se civiliza-
dos, se consumidores, se trabalhadores, os pobres seriam úteis. O que se
vive nos séculos XIX e XX é a “regeneração” da classe proletária. Isso se dá
por meio daquelas mesmas armas citadas: consensos difundidos pela mídia,
estudos científicos financiados pela burguesia, leis, entre outras.

OS OBJETIVOS MAIS AUDACIOSOS DA CRIMINALIZAÇÃO


DA POBREZA

O sistema capitalista alcança no neoliberalismo


globalizante o máximo de sua malvadez intrínseca.
Paulo Freire

Como indica a reflexão de Paulo Freire, neste segundo momento


convido o leitor a dar um salto no tempo. O intuito principal é fazer o con-
traponto presente no título deste trabalho, partindo para o ponto atual e
analisarmos o cenário de extermínio dos pobres que assola a nossa socie-
dade nos dias de hoje. Centrarei minha análise na década de 1990, visto
que nela o Brasil conhece com maior força a realidade neoliberal e seus
impactos ao lado de uma ideologia de criminalização da pobreza. Peço
que venhamos para a realidade mais recente, fins de século XX início do
século XXI, época de crise estrutural do capitalismo, de produção extrema-
mente mecanizada e de brutal concentração de renda. Nessa realidade,
a reinvenção dos conceitos acontece, e a já sofisticada criminalização da
pobreza ganha novos contornos.
Como o próprio título do trabalho nos diz, em certo momento o fe-
nômeno da criminalização da pobreza passa a ter objetivos que vão para
além da simples “preservação” do trabalhador. Se antes o trabalhador
era indispensável à manutenção da ordem vigente, hoje uma parcela da
classe trabalhadora passa a ser vista como desnecessária.

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


85
As décadas de 1970 e 1980, período de crise do socialismo real,2
são marcadas pelo destaque do neoliberalismo como política internacio-
nal. O sistema capitalista vinha apresentando algumas crises, logo, fez-se
urgente a criação de regulamentações do Estado em relação ao setor
econômico. O intento era o de evitar a queda dos lucros. Medidas como
a decomposição salarial e a alta mecanização da produção acabam por
gerar “restos sociais” absolutamente descartáveis.
No século XIX, Karl Marx chamou essa “sobra” humana de “exército
industrial de reserva”. Esse conceito diz respeito à mão de obra “excedente”
que tem papel importantíssimo na acumulação do capital, visto que por
meio dela a força de trabalho pode ser cada vez mais superexplorada. A
competição para conseguir o emprego leva os trabalhadores a se sujeitarem
a condições de extrema exploração, com jornadas extenuantes e em condi-
ções precárias (VIANA, 2006).
Atualmente, resta ao trabalhador “excedente” integrar-se em tra-
balhos informais, cercados de diversos perigos e superexposições. São
seres que foram descartados como peças de uma grande engrenagem
que podem ser repostas a qualquer instante.
Como já foi aludido, chegar à década de 1990 é de grande impor-
tância para compreender como o neoliberalismo atinge os países ditos “em
desenvolvimento”, entre os quais o Brasil se coloca. Por aqui, uma importan-
te onda de privatizações atingiu nossas empresas públicas, com o receituário
habitual: autorregulação do mercado e mínima intervenção do Estado na
economia. Em outras palavras: liberdade para o mercado não para os indi-
víduos, sobreposição do fator econômico ao social.
Necessidades sociais, como saneamento, saúde, educação e mora-
dia, experimentam retração de investimentos. Direitos básicos, histórica e
formalmente garantidos, são inviabilizados economicamente. Os espaços

2
Entende-se “socialismo real” como aquele que foi posto em prática nas experiências do século XX. A
primeira noção do que seria o socialismo real se dá com a Revolução Russa, com a conformação da
União Soviética. Outras experiências foram as do Camboja, da Coreia do Norte, da China, do Vietnã e
da Etiópia. Alguns autores tendem a posicionar a categoria de socialismo real como sinônimo de autori-
tarismo. Há também a crítica de que tais episódios não podem ser considerados de lógica socialista, visto
não haver associação entre o ideário socialista e as práticas implantadas nessas sociedades.

Clarice Ramiro
86
públicos passam por sucateamentos, o que cria novas demandas. Seguindo
a lógica, os espaços privados passam a se “responsabilizar” por essas de-
mandas que a esfera pública “não consegue” mais suprir.
Resumidamente, alguns serviços básicos, como saúde, educação,
moradia e saneamento, passam a ser da responsabilidade do capital,
por meio da atuação de entidades “filantrópicas”. Perpetua-se a lógica
de negação do acesso aos direitos básicos aos que não possuem condi-
ções materiais mínimas.
E os “sintomas” de todas essas medidas, em nível nacional, são ba-
sicamente os mesmos: aprofundam-se as desigualdades sociais, os que
possuem riquezas aumentam-nas cada vez mais, os que são despossuídos
delas são cada vez mais equilibristas na corda bamba da sobrevivência.
A acentuação da produção da massa de desempregados no Brasil
se dá na última década do século XX. Esses desempregados passam a ser
vistos como representantes da violência e da desordem, e, como resposta,
instala-se a repressão. Setores de vigilância, aparatos militares e o número
da população carcerária só têm aumentado nos últimos anos.
Precisamos ter em mente de forma clara que o que tem relação direta
com a criminalidade não é o pobre, mas sim a desigualdade. Quem promove
a desigualdade promove uma sociedade de perigos. Os que apoiam a exis-
tência de subcidadãos, de pessoas não empregáveis, são os promotores da
sociedade do caos, do medo.
A economia se tornou global, as fronteiras se romperam e com isso
novas condições abriram portas para um importante comércio: o do tráfi-
co internacional de drogas. O tráfico foi facilitado, sobretudo na América
Latina, e representa uma economia de porte internacional, tamanho os
valores que movimenta. Em entrevista a Rede de Repórteres Populares
(Renarjop) no ano de 2007, o deputado estadual pelo Partido Socialismo
e Liberdade (Psol) Marcelo Freixo comentou:

O tráfico está entre os três comércios mais lucrativos do mundo.


Se você entra em uma favela, vai ver muita arma, muita droga e
muita miséria. Tem alguma coisa errada nesse elo. O dinheiro
não fica ali. E aí entra toda uma hierarquia onde as investigações

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


87
nunca chegam, porque também não interessa. A lógica da se-
gurança pública construída no nível federal e estadual é a da
repressão, ponto final. Porque na verdade, a repressão não é
à empresa capitalista. É ao setor pobre da sociedade. Caso
existisse algum interesse em combater o tráfico se trabalha-
ria muito menos com repressão e muito mais com inteligência,
o caminho da droga, da arma, os fornecedores, uma integra-
ção dos governos. (FREIXO, 2007)

Precisamos estar atentos e não cair na armadilha que muitas vezes a


mídia (portadora de seu caráter de classe) nos oferece de que o que temos
na favela é o crime organizado. O que vemos nas favelas é apenas a ponta
de todo um longo fio. Temos nesses territórios pobres o varejo da droga. O cri-
me organizado é o tráfico de drogas, uma empresa capitalista extremamente
eficiente, adaptada à realidade capitalista do século XXI, concentradora
de renda, empregadora de mão de obra barata e alienada, uma empresa que
não paga impostos e que não cumpre exigências de qualquer tipo.
Dizer que jovens, com nível de escolaridade muitas vezes inferior ao
ensino fundamental, jovens que poucas vezes saíram de suas “comunida-
des”, jovens que sequer sabem localizar no mapa a Bolívia, são os grandes
traficantes é apenas mais uma ferramenta utilizada para criminalizar a classe
pobre. O comércio internacional de drogas disponibiliza a esses meninos a
breve e finita ilusão de poder; em troca disto, tira-lhes a juventude e os colo-
ca em situações de perigo desumanas.
Voltando ao âmbito internacional das políticas neoliberais, um exemplo
palpável de como a repressão aos pobres se torna a única política é o mo-
delo de “Tolerância Zero”. Em 1994, o então prefeito de Nova York Rudolph
Giuliani, com o pretexto de combater o tráfico de drogas, criou uma política
pautada na ação policial mais “linha dura”. Com a intenção de combater
a “criminalidade urbana”, a polícia passa a agir mais incisivamente na puni-
ção de pequenos delitos (pequenos furtos, prostituição, uso de drogas etc.)
(CALAZANS, 2012). A ideia era difundir a noção de que é preciso andar
na legalidade, e de fato esse valor se difundiu em diversos países. E esse é
um sinal da materialização do tratamento penal da pobreza. Políticas volta-

Clarice Ramiro
88
das para “áreas sensíveis”, bairros pobres e favelas, são criadas e difundidas
amplamente pelo mundo.
É impossível ter uma política de segurança pública justa em uma so-
ciedade injusta. O crescimento da pobreza, fruto da desigualdade social,
faz com que o crime organizado se reforce. Meninos e mais meninos serão
recrutados como soldados do tráfico, muitas das vezes este é o único norte
que lhes é oferecido. E o “Estado penal” (WACQUANT, 2001), estará a
disposição para usar de toda truculência no combate destes meninos tidos
com males sociais.
Em 10 anos, a população carcerária brasileira cresceu 150% (SALLES,
2009). Isto nada mais é do que uma mostra de quão subserviente é o Brasil
em relação às políticas de “segurança” norte-americanas. Estamos falan-
do, em ambos os casos, do aprisionamento, seja nas cadeias, seja no ser-
viço do varejo da droga, de homens jovens, pobres e negros, moradores de
guetos e favelas.
Uma análise importante que deve ser feita em relação ao tratamento
que os moradores de áreas pobres recebem por parte do Estado consiste
nos “autos de resistência”. O capitalismo atua na produção de subjetividades,
dentre elas, temos uma bastante utilizada em programas sensacionalistas, que
afirma “bandido bom é bandido morto!”. E os “autos de resistência” têm sido
usados como justificativa para que a polícia mantenha a sua prática de exe-
cuções sumárias, em especial na metrópole carioca. Segundo a polícia, confi-
gura auto de resistência o ato de matar um opositor em legítima defesa. Essa
tem sido uma eficiente ferramenta “legal” de extermínio dos pobres:

A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na


ordem de serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superinten-
dência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara.
O dispositivo afirma que “em caso de resistência, [os poli-
ciais] poderão usar dos meios necessários para defender-se
e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em
flagrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos.
(SALLES, 2009)

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


89
Entre os anos de 2000 e 2009, tivemos o registro de 9.179 óbitos
como resultados de autos de resistência. Fazendo os cálculos, temos uma
média de 2,67 mortes por dia. Esses são dados oficiais do Instituto de
Segurança Pública, vinculado ao governo do estado do Rio de Janeiro
(SALLES, 2009).
O curioso na análise dos laudos cadavéricos de muitos dos autos
de resistência é se deparar com situações em que o sujeito recebeu um
tiro na nuca ou nas costas, mas mesmo assim se afirma que era um ban-
dido que trocava tiros com a polícia. Nesse caso, além de se negar aos
que moram nas favelas os direitos humanos básicos, nega-se o próprio
direito à vida.
Outra ferramenta utilizada no processo de criminalização é o “kit
assassino”. Trata-se da prática, apelidada pelo ex-secretário nacional
de Segurança Luiz Eduardo Soares, de modificar a cena do crime. Co-
mumente, coloca-se uma arma velha e uma pequena quantidade de
drogas, como se pertencessem ao morto. Assim, a polícia – personifi-
cação do Estado – ganha respaldo para difundir o discurso de combate
à marginalidade.
Ainda sobre as práticas policiais:

Para todo Estado mínimo – marco da década de 1990 – é ne-


cessário um Estado máximo de repressão. Isso em escala mun-
dial. Nos Estados Unidos, por exemplo, há dois milhões de pes-
soas presas. O Brasil teve, de 1995 a 2003, um crescimento
da população carcerária de 93%, a média mundial ficou entre
20% e 30%. Não é à toa. O perfil da população carcerária
brasileira é exatamente o mesmo perfil das pessoas que hoje
são vítimas dos autos de resistência da ação policial: negros,
pobres, jovens, homens, moradores de periferia, de favela, de
baixa escolaridade. Ou seja, é o processo de exclusão se con-
solidando ou na prisão ou na morte. (FREIXO, 2007)

Clarice Ramiro
90
A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E O PAPEL DA MÍDIA

Na verdade toda comunicação é comunicação de


algo, feita de certa maneira em favor ou na defe-
sa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo
e contra alguém, nem sempre claramente refe-
rido. Daí também o papel apurado que joga a
ideologia na comunicação, ocultando verdades,
mas também a própria ideologização no pro-
cesso comunicativo.
Paulo Freire

Falar da consolidação do processo de exclusão que o Estado realiza


nos traz à tona mais um importante componente desse processo: a mídia.
A polícia muitas vezes é vista como a força repressora que realiza o ex-
termínio de pessoas nas favelas, quando na verdade há toda uma lógica
maior por trás dela. O policial nunca puxa o gatilho sozinho. Por trás das
ações de uma polícia violenta existe um Estado com forte interesse de clas-
se. O Estado de classe faz por onde legitimar a violência policial (embora
nele também se construam espaços de denúncia dessa violência), inclusive
pela mídia. Chegamos num momento em que os discursos do policial, do
Estado e da mídia se fundem, para a criação de determinada “verdade
dos fatos”.
No sistema capitalista, entre outras funções, a mídia tem a tarefa
de, mediante o discurso, gerar adesão ao discurso e à prática dominantes.
Grande parte do que é veiculado tem o compromisso de preservar o poderio
dos que já são poderosos. Em suma, mostra-se a realidade de acordo com
os interesses da classe que financia os grandes canais, os jornais e quais-
quer outros meios de informação.
Não é raro que liguemos a televisão e escutemos frases como:
“Cinco traficantes morrem em confronto com policiais”, “Foram apre-
endidos na favela fuzis que pertenciam a traficantes da facção X”.3 A
linguagem é panfletária, as falas querem chocar, insinuações e ataques
são feitos.

3
Ver, por exemplo, “Ação da polícia mata 19 no Complexo do Alemão”, 2007.

Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


91
Espetacularizar o medo e vender manchetes, “escrachar”, é o roteiro
habitual. Assistir aos jornais televisivos cariocas hoje, seja nos moldes da
bancada e do âncora, seja nos moldes sensacionalistas da expressividade
caricata, é receber as associações diretas entre tráfico, favela e pobreza.
Wagner Montes, Datenas, Rachel Sheherazades são presenças altamente
propagadoras dessas associações, é bom tomar cuidado!
Temos, com isso, o surgimento da expressão “possível associação
ao tráfico” e a noção de que todo jovem pobre, morador de favela, é um
potencial traficante se difunde de forma alarmante. A suspeição generali-
zada chega e, assim como algumas forças policiais, “mete o pé na porta”,
causando uma devastação nas vidas das pessoas. O CEP residencial (ou a
inexistência dele) diz se o menino é usuário ou traficante de drogas.
A violência é um produto extremamente rentável, o medo é audiên-
cia certa. Associar o território das favelas ao tráfico de drogas (ainda que
tenhamos visto que o tráfico está bem além do varejo da droga, que é o
que acontece nas favelas) é mostrar que esses locais são perigosos, que
causam a desordem social. E mais, é mostrar que as pessoas que vivem nes-
ses locais são sujeitos ativos de episódios danosos, muitas das vezes mostrados
como danosos apenas aos que estão fora das favelas. Tudo nos leva a uma
espécie de disputa entre realidades, e o discurso da grande mídia é o de
que uma parte da população ameaça a existência da outra. Logo, dá-se
o aval para que a parte “danosa” seja exterminada.
E aí é o que a música já anunciou: “Tanta gente sem rosto, populares
lajes e quintais, viram mestres sufocados pelo estereótipo pesado do local”.4
Lança-se o estereótipo, fabrica-se o consenso. Com cinismo, grandes organi-
zações se dizem benfazejas e cumpridoras de seu papel social, mostram-nos que
trazem discussões para a pauta do dia. Mas será que o fazem de fato? Até
que ponto essas discussões são travadas? Tratar superficialmente é suficiente?
Muitas vezes não aprofundar é não discutir, e não discutir não acaba
com os problemas. Mostrar que os sem-terra destruíram um laranjal e não

4
Banda: F.U.R.T.O. CD: Sangue Audiência (2005). Faixa: “Coisas tão simples”. Compositores:
Marcelo Yuka e Maurício Pacheco. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/f-u-r-t-o/coisas-
tao-simples.html#ixzz2AOAyOTBS. Acesso em: 30 out. 2012.

Clarice Ramiro
92
dar o pano de fundo à ação (“MST DERRUBA PLANTAÇÃO DE LARANJA
COM AJUDA DE TRATOR”, 2009) é posicionar o cidadão de forma contrá-
ria às ações desse grupo. Assim, da mesma forma que se constrói um dis-
curso contra os sem-terra, constroem-se discursos contra as mulheres, contra
as manifestações culturais, contra os pobres etc.
A ferramenta da não discussão funciona como uma autodefesa da clas-
se dominante. Não há o menor interesse em analisar seriamente os processos
de opressão pelos quais passam os consumidores de suas informações, muito
menos levar os próprios consumidores a fazê-lo.

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Sobre a criminalização da pobreza: da “regeneração” ao extermínio dos pobres


95
CONSTRUINDO UM OLHAR SOBRE O
DESENVOLVIMENTISMO NO BRASIL:
DE JK À DITADURA MILITAR

Crislainy Ribeiro Pellegrine *

O artigo aborda os temas do desenvolvimento e do subdesenvol-


vimento e da ideologia desenvolvimentista nos países da América Latina,
com ênfase no Brasil, durante a segunda metade do século XX, com base
nas elaborações teóricas formuladas pela Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (Cepal) e pelos intelectuais brasileiros reunidos
no Instituto Social de Estudos Brasileiros (Iseb).
Embora se tenha passado mais de meio século, o debate de ideias en-
tão travado continua atual, pois, à diferença do que reza o credo neoliberal,
o qual procura convencer que o processo de globalização é vantajoso para
todos, o que se tem verificado é que as desigualdades existentes entre os países
latino-americanos e os demais países que fazem parte do centro capitalista
se aprofundaram ao longo das últimas décadas. Cabe, entretanto, observar
que tais desigualdades econômico-sociais não podem ser creditadas apenas
às políticas liberalizantes que se disseminaram no continente, sobretudo a par-
tir dos anos 1990: elas foram construídas historicamente, em um processo
que inseriu de forma subordinada a América Latina na divisão internacional
do trabalho.
Essa relação de subordinação tem como ponto de partida a expansão
marítima empreendida pelos países europeus do século XV em diante, com o

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Análises Clínicas (2009-2011). Atualmente cursa Farmácia na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de cur-
so, contou com a orientação das professoras-pesquisadoras Filippina Chinelli (doutora em Educação)
e Ialê Falleiros Braga (doutora em Saúde Pública), ambas do Laboratório do Trabalho e da Educação
Profissional em Saúde (Lateps). Contato: cris.pellegrine@hotmail.com.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


97
objetivo de conquistar novas terras e novos mercados consumidores e obter
mercadorias, por causa das violentas crises ocorridas na Europa no sécu-
lo XIV, provocadas majoritariamente pela peste negra, que devastou a sua
população. Inicia-se, com isso, a estruturação colonial do mundo, pela qual
os países europeus se configuram como metrópoles, estabelecendo com as
colônias uma relação de dominação econômica, social e política. As colô-
nias forneciam-lhes matérias-primas e as riquezas – ouro, prata, especiarias
etc. – que permitiram o desenvolvimento da manufatura e, mais tarde, do
processo de industrialização. A partir daí, estruturaram-se nas colônias eco-
nomias baseadas na especialização agrícola e na exportação de produtos
primários, configurando o que a literatura produzida sobretudo na América
Latina chama de subdesenvolvimento.1
Durante as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial,
verificou-se na América Latina uma explosão de estudos centrados na aná-
lise dos motivos que produziam a desigualdade econômico-social entre os
países do continente e aqueles do centro capitalista. Na tentativa de superar
essa condição, intelectuais latino-americanos formularam um conjunto de
conceitos que orientaram projetos capitalista-���������������������������
desenvolvimentistas��������
no con-
tinente. Tais projetos estavam calcados no redirecionamento das políticas
econômicas de modo a favorecer a atividade industrial. No caso brasi-
leiro, associada às ideias de promoção do bem-estar, de soberania e
identidade nacionais, a noção de desenvolvimento acabou por contribuir
para a construção de um aparato ideológico – o chamado desenvol-
vimentismo – que à época justificou a formulação de políticas econô-
micas de recorte keynesiano, caracterizadas pela participação direta do
Estado não só no planejamento, como também na produção de bens
e serviços sociais. Tentava-se com isso incutir na população a crença de
que esse era o único caminho capaz de fazer “recuperar o atraso” dos
países periféricos em relação às sociedades desenvolvidas.
Alguns governos do Brasil são exemplares desse processo. Tendo
como precursoras as medidas de caráter desenvolvimentista do período var-
guista (1930-1945), foram implantadas no país, a partir da segunda me-

1
Parte dessa literatura é mencionada neste texto.

Crislainy Ribeiro Pellegrine


98
tade do século XX, políticas econômicas visando promover o amplo
crescimento do país. A promessa de prosperidade nelas contidas le-
vou à ampla adesão da população brasileira a elas, que foram apro-
vadas nas urnas, com a eleição de Juscelino Kubitschek (JK) em 1955.
Como ele próprio afirmou em discurso proferido pelo rádio em 1956,
no qual faz um balanço dos primeiros seis meses de sua gestão: “Os
ventos começam a ser propícios; o Brasil é uma nação que nasceu para
ser poderosa. Nada deterá a nossa marcha” (apud CARDOSO, 1978,
p. 194).
Após o fim do governo Kubitschek, que durou de 1956 a 1961, o par
desenvolvimento/modernização ainda se manteve presente no cenário brasi-
leiro até o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), período em que o então
presidente da República lançou o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND),2
considerado o último grande programa econômico do ciclo desenvolvimen-
tista. O plano tinha como objetivo fortalecer o parque industrial brasileiro,
“tornando-o mais autônomo e dotado de uma sólida indústria de insumos
básicos e de bens de capital” (MANTEGA, 1997, p. 5).
Dessa forma, entende-se que a teoria do desenvolvimento e a
ideologia desenvolvimentista foram fundamentais para orientar os projetos
de crescimento econômico e social no Brasil no período que vai do
governo de JK até o fim do governo Geisel (1956-1979). A possibilidade
de aspectos desse ideário permanecerem de forma ressignificada no
Brasil na vigência de políticas de ajuste neoliberal torna o estudo dessa
teoria e ideologia importante para a compreensão adequada da história
econômica de um período de nosso país. Nesse sentido, entende-se que
tratar da teoria cepalina sobre o desenvolvimento é indispensável para
tentar compreender a força que ela obteve no campo acadêmico, e
também a sua projeção no projeto desenvolvimentista brasileiro.

2
É importante ressaltar que após a década de 1950 houve diversos programas que visavam fomen-
tar o desenvolvimento capitalista no Brasil. Essa não foi uma particularidade do PND.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


99
A PERSPECTIVA CEPALINA

Em 1948, o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações


Unidas (ONU) cria a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
com o objetivo de estimular a cooperação econômica entre os países-
membros��������������������������������������������������������������������
, sob a liderança estadunidense. Esse órgão deveria tratar de assun-
tos referentes à paz mundial, à educação e à alimentação, facilitando, por
meio de órgãos específicos, o desenvolvimento dos países mais atrasados e
afetados pela guerra. A Cepal logo se tornaria um importante centro de refle-
xão sobre as causas do subdesenvolvimento latino-americano e sobre como
atingir o desenvolvimento. A sua influência no Brasil atingiu o auge durante os
anos 1950 e 1960, período em que tanto as ideias cepalinas quanto os inte-
lectuais que faziam parte da instituição, como Raúl Prebisch e Celso Furtado,
estiveram presentes em muitos debates no Brasil sobre a futura trajetória eco-
nômica do país para ultrapassar o subdesenvolvimento (COLISTETE, 2001).
Guardadas as diferenças entre os seus vários autores, percebe-se no
pensamento cepalino um núcleo comum: o de que a especialização primário-
exportadora aliada à baixa dinamicidade e à pouca diversificação das estru-
turas industriais seriam responsáveis pelo baixo progresso técnico, e, portanto,
pelo subdesenvolvimento (COLISTETE, 2001).
Outro ponto comum aos pensadores cepalinos é a relação entre
o progresso técnico e o aumento de produtividade. Essa relação positiva
seria responsável nas economias do capitalismo central pelo desenvol-
vimento da manufatura e posteriormente da indústria, colocando-as em
uma posição mais favorável do que as economias baseadas em produ-
tos que não sofreram modificações do trabalho humano. Isso geraria a
deterioração dos termos de troca, “que afetaria negativamente os países
latino-americanos através da transferência dos ganhos de produtividade
no setor primário-exportador para os países industrializados” (COLISTETE,
2001, p. 23).
A Cepal propunha um modelo de desenvolvimento via industriali-
zação – considerada o elemento que articularia o progresso econômico, a
civilização, a modernização e a democracia política dos países subdesen-

Crislainy Ribeiro Pellegrine


100
volvidos. Além disso, o modelo via industrialização permitiria a superação
da deterioração dos termos de troca que desfavorecia os países periféricos
em relação aos centrais. O Estado deveria intervir diretamente, no sentido
de garantir a infraestrutura necessária ao incremento da industrialização,
sobretudo das indústrias de bens de capital,3 consideradas aquelas que
de fato seriam capazes de acelerar o processo de substituição de impor-
tações e, assim, tirar a América Latina da condição de continente subde-
senvolvido. Enfim, o fato de o pensamento cepalino fincar suas bases na
história e nas características reconhecidas como específicas da realidade
latino-americana explica seus importantes impactos no pensamento eco-
nômico do Brasil e nas políticas públicas de outros países do continente
(COLISTETE, 2001).

O PENSAMENTO ISEBIANO

O principal centro de repercussão e de reflexão sobre as ideias da Cepal


no Brasil dos anos 1950 foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que come-
çou a funcionar efetivamente durante o governo JK, para o qual contribuiu de
forma decisiva na formulação de propostas que tinham como intuito mobilizar
a população na defesa de projetos sociais e econômicos que viabilizassem um
Brasil forte e que caminhasse rumo ao desenvolvimento. O esforço teórico de
inspiração cepalina, realizado pelo grupo de intelectuais que compunham
o instituto,4 para explicar as causas do subdesenvolvimento brasileiro e de
apresentar a industrialização como a única via capaz de conduzir ao desen-
volvimento, configurando uma nova visão de mundo que apelava para a
identidade nacional, acabou por servir de base para a construção da ideo-
logia nacional-desenvolvimentista, na tentativa de conquistar o apoio de
todas as classes sociais (CARDOSO, 1978).

3
Bens de capital é um conceito econômico que se refere à capacidade de produtos ou organismos tec-
nológicos produzirem progresso econômico. Sendo assim, são exemplos de bens de capital as máquinas,
as fábricas, os equipamentos técnicos, entre outros (COLISTETE, 2001).
4
Além de Raúl Prebisch e Celso Furtado, como já citado, Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier,
Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Antonio Candido, Cândido Mendes, Ignácio
Rangel, Álvaro Vieira Pinto e Carlos Estevão Martins, entre outros, também fizeram parte do Iseb.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


101
Conforme Vieira (2007), é pela ideologia que uma classe exerce
poder hegemônico sobre as outras, garantindo o consentimento das
grandes massas. Trazendo essa percepção teórica ao tema do desen-
volvimentismo, essa autora revela que a pretensão de desenvolver o
Brasil era basicamente uma ambição da burguesia nacional. Para tan-
to, era necessário difundir no conjunto da sociedade brasileira a ideia
de que o desenvolvimento era não apenas necessário, mas também
aspiração de todos:

A burguesia, ao longo de toda a segunda metade do século XX,


investiu em inculcar, no conjunto da sociedade brasileira, a ideia de
que o desenvolvimento nacional era necessário e desejado. Tanto
nas suas versões mais democráticas (o governo JK com a constru-
ção de Brasília, os 50 anos em 5 e o Plano de Metas é o exemplo
mais bem acabado), quanto nas duas ditaduras (Estado Novo e
depois os militares), o governo burguês trabalhou no imaginário
social brasileiro a ideia do “nacional-desenvolvimentismo”. (VIEIRA,
2007, p. 245)

Cabe observar que o nacional-desenvolvimentismo não constituiu


um projeto unitário: ele apresenta diferenças significativas não só entre
os isebianos, como também conforme as medidas econômicas implan-
tadas por diferentes governos (JAGUARIBE, 2005). De fato, segundo
Chaves, esses pensadores “não chegaram a formular uma sólida teoria
sobre as classes sociais e sequer havia uma homogeneidade conceitual
em torno dessa questão”, embora tenham logrado “estruturar uma ca-
tegorização social com base na posição que as próprias classes sociais
estabeleceriam no processo de industrialização” (2006, p. 713). Ainda
conforme a autora, para alguns desses pensadores, “a burguesia in-
dustrial é que deveria dirigir esse processo de autonomização nacional,
enquanto outros atribuíam essa responsabilidade às massas populares,
por acreditar que de seu ‘pensamento natural’ emanariam os princípios
da mudança social” (2006, p. 713).

Crislainy Ribeiro Pellegrine


102
AS BASES DO DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO
NA PERSPECTIVA ISEBIANA

O Iseb foi formalmente constituído por diversos pensadores brasilei-


ros que, desde o final do governo Vargas, vinham estudando a forma como
o Brasil devia se inserir no contexto internacional. Como o pensamento ise-
biano compartilhava ideias e conceitos com o pensamento da Cepal, sendo,
de certa forma, baseado nesses últimos, os autores do Iseb5 partiam também
“do pressuposto de que o desenvolvimento deveria ser o produto de uma
estratégia nacional de industrialização” (BRESSER-PEREIRA, 2005, p. 204).
Acrescenta Bresser-Pereira:

[...] a perspectiva política do Iseb, centrada na ideia de revolução


nacional, e a perspectiva econômica da Cepal, fundada na críti-
ca da teoria econômica neoclássica, somavam forças, e forneciam
uma base sólida, no início da década de 50, para que um podero-
so e inovador grupo de intelectuais pensasse o Brasil e a América
Latina. (2004, p. 52)

A atuação da burguesia brasileira no projeto de crescimento econômico


do país, considerando também a participação das outras classes sociais, era
vista como fundamental. Hélio Jaguaribe, destacado isebiano, afirma que
a solução que lhes parecia viável foi a de uma atribuição à burguesia
nacional, articulada com a classe operária e a classe média moderna,
de mobilizar a sociedade em um esforço de desenvolvimento industrial
voltado para um projeto nacional (JAGUARIBE, 2005). Isso porque se acre-
ditava que a burguesia nacional, do ponto de vista econômico, provocaria
um aumento na acumulação de capital e nas inovações tecnológicas, o que

5
O Iseb dispunha de uma modesta verba, concedida pelo Ministério da Educação, com a qual dava
atendimento as suas principais necessidades: aluguel da sede, na rua das Palmeiras, em Botafogo; ho-
norários do diretor e salários de um pequeno número de funcionários; despesas correntes; e um fundo
para publicações. Os professores trabalhavam gratuitamente. Além das publicações, o Iseb promovia
cursos, conferências e outros eventos, que abordavam os problemas econômicos e sociais brasileiros,
fortalecendo assim uma corrente nacionalista que buscava defender projetos capitalistas nacionais, a fim
de alcançar o desenvolvimento e promover a melhoria da qualidade de vida da população, que nesse
período sofria com a precarização da saúde e com a insuficiência dos investimentos do Estado na in-
fraestrutura brasileira (JAGUARIBE, 2005).

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


103
favoreceria a diminuição da desigualdade nos termos de troca e, do mesmo
modo, a construção de um Brasil mais industrializado.
Para tanto, o Estado era considerado o responsável pelo planeja-
mento econômico, devendo intervir de forma efetiva na economia, a fim de
criar condições necessárias à aceleração e à consolidação da industriali-
zação do país. Ao Estado caberia também articular a relação da burguesia
nacional com a classe trabalhadora. Sendo assim, o pensamento isebiano
apontava para a necessidade de construir um Estado-nação moderno, pro-
motor da transição de um modelo comercial mercantil para um modelo
industrial. Isso tornaria possível a revolução nacional promovida pela “as-
sociação em torno de um projeto de nação dos trabalhadores, da classe
média, dos empresários e da burocracia detentora de conhecimento técnico
e organizacional” (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 58-59).
Essas ideias, conforme já se apontou, estão na base do projeto de-
senvolvimentista brasileiro implantado no governo Juscelino Kubitschek de
Oliveira (1956-1961), cujos principais contornos são apresentados a seguir.

O GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK E O


DESENVOLVIMENTISMO À BRASILEIRA

Com o suicídio de Vargas, o vice-presidente João Fernandes


Campos Café Filho assume a presidência temporariamente, a fim de que
em 1956 fossem feitas eleições para a presidência do Brasil, apoiando-
se, durante a sua curta gestão, em políticos e militares vinculados ao
partido da União Democrática Nacional (UDN). Um de seus objetivos
era a estabilização econômica. Eugênio Gudin, economista de visão
liberal nomeado para o Ministério da Fazenda, seguia uma política
antiestatizante e favorável à abertura do país ao capital estrangeiro,
o que despertou várias críticas dos nacionalistas. Conforme destaca
Rodrigues, “Gudin procurou controlar a inflação, contendo os salários, o
que provocou inúmeras manifestações contra a carestia e greves, como
a de setembro de 1954” (1992, p. 57).

Crislainy Ribeiro Pellegrine


104
O governo temporário de Café Filho deu lugar ao então ex-governa-
dor de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, que estabeleceu um
estilo de governo marcado pela perspectiva desenvolvimentista. Seu estilo
político, de caráter, sobretudo, populista, capturou, da massa da popu-
lação brasileira – e também dos estratos superiores dessa sociedade –,
a expectativa de crescimento social, político e econômico, tendo como
lema a célebre frase “Cinquenta anos em cinco”.
JK imprimiu ao seu governo uma perspectiva na qual “todos os es-
forços foram intencionalmente dirigidos à construção dos estágios supe-
riores da pirâmide industrial verticalmente integrada” (LESSA, 1975, p. 6),
fincando no país a ideologia desenvolvimentista. É necessário ressaltar que
o projeto nacional-desenvolvimentista do Iseb permitiu a JK estruturar sua
plataforma política e econômica, com base nas ideias formuladas por seus
intelectuais, embora com algumas “modificações” em relação ao pensa-
mento original. Essas peculiaridades serão abordadas mais adiante.
Tendo em vista o anseio pelo desenvolvimento econômico e social
do país, Juscelino elaborou um Plano de Metas – com orientação de Lucas
Lopes6 e Roberto Campos7 – que deveria ser cumprido durante os cinco
anos de seu mandato. Tratava-se de um programa que visava coordenar
“a ação do Estado no estímulo a setores inteiros da economia, em geral
na área industrial, mas com grande ênfase naqueles ‘pontos de estran-
gulamento’ já detectados em relação à infraestrutura” (ALMEIDA, 2004,
p. 8). A esse respeito, Carlos Lessa afirma que:

Em fins de 1956, dando resposta ao quadro de tensões antes des-


crito, formulou o governo um ambicioso conjunto de objetivos se-
toriais, conhecido por Plano de Metas, que constitui a mais sólida

6
Engenheiro nomeado por JK presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE)
e também secretário-executivo do Conselho de Desenvolvimento, órgão que centralizou e adequou o
Plano de Metas. Juntamente com Roberto Campos dirigiu um grupo de economistas que defendia o de-
senvolvimento da economia e do processo de industrialização mediante o planejamento governamental
econômico. Além disso, foi também ministro da Fazenda em 1958. Ver: http://cpdoc.fgv.br/producao/
dossies/JK/biografias/lucas_lopes.
7
Diplomata promovido a ministro de segunda classe no início governo JK, passando posteriormente a
ministro de primeira classe. Foi nomeado presidente do BNDE quando Lucas Lopes tornou-se ministro.
Ver: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/roberto_campos.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


105
decisão consciente em prol da industrialização na história eco-
nômica do país. Estes objetivos iriam servir durante os próximos
cinco anos de norteio à política econômica e, em certos aspec-
tos, ao longo de sua execução suas postulações iniciais foram
superadas e seu caráter de política de desenvolvimento industrial
confirmado. (1975, p. 14)

O plano desenvolvimentista de Kubitschek propôs um conjunto de


trinta objetivos, que se dividiam em cinco setores: a) Energia: nuclear, elé-
trica, produção de petróleo, carvão mineral e refinamento de petróleo;
b) Transportes: construção de rodovias e pavimentação, marinha mercante,
construção de ferrovias e reaparelhamento, serviços de dragagens, serviços
portuários e transportes aeroviários; c) Alimentação: matadouros industriais,
frigoríficos, trigo, silos e armazéns, fertilizantes e mecanização da agricul-
tura; d) Indústrias de base: indústrias automobilísticas, alumínio, siderurgia,
álcalis, extração e exportação de minérios de ferro, construção naval, ma-
terial elétrico, mecânica, cimento, celulose e papel, extração de borracha
e metais não ferrosos; e) Educação: investimento na formação de técnicos
(LESSA, 1975).
O que fica evidenciado no plano, pela ênfase nos setores prioritários
para a recepção de investimentos, é que a indústria de bens de consumo
duráveis foi a que mereceu maior atenção em relação aos demais setores.
De qualquer forma, o plano priorizava o investimento naquelas áreas que
dessem apoio e também se integrassem à indústria – nesse caso, às áreas de
capital social básico (LESSA, 1975). A educação, por exemplo, mereceu des-
taque apenas no que se refere à formação de trabalhadores técnicos com
o objetivo de fazer frente às necessidades derivadas do maior crescimento
econômico – ou seja, do crescimento industrial – do país.
Deve-se ressaltar que o Estado juscelinista funcionou conforme o mode-
lo desenvolvimentista, ou seja, como estimulador e copartícipe do desenvolvi-
mento econômico. O Estado à época era principalmente planejador, pois o
planejamento “racionaliza e orienta, permitindo à iniciativa privada mover-
se mais facilmente no campo das decisões de investimentos” (CARDOSO,
1978, p. 207), cabendo-lhe estimular a economia, mediante o investimento

Crislainy Ribeiro Pellegrine


106
em áreas até consideradas não prioritárias, visando torná-las atraentes à ini-
ciativa privada. Um exemplo dessa perspectiva são os investimentos pesados
feitos na construção de rodovias com o objetivo de estimular a indústria auto-
mobilística, até então pouco significativa no contexto da economia brasileira.
Cabe, entretanto, observar que o governo JK não foi o primeiro a
estimular e implantar políticas de desenvolvimento da indústria brasileira.
Desde a década de 1930, Getúlio Vargas vinha promovendo políticas de
substituição das importações, entendendo que as amarras que atrasavam
o desenvolvimento econômico do país estavam relacionadas ao padrão
de acumulação vigente à época, baseado em uma economia agrário-
exportadora (MARANHÃO, 1981). Até então, haviam-se desenvolvido no
Brasil indústrias leves, ou de bens de consumo não duráveis – por exem-
plo, têxteis e alimentos –, sustentadas no capital privado. Nos anos 1940,
observam-se investimentos públicos na implantação de indústrias de base,
como a siderurgia e indústrias metal-mecânicas (MARANHÃO, 1981).
Durante o período JK, a indústria de consumo de bens duráveis se
encontrava quase sempre em mãos das empresas multinacionais, revelan-
do que o desenvolvimento do país à época se deu, em grande parte, com
base em vultosos investimentos externos. Como exemplo dessa intenção,
nota-se que o chefe da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc),
Otávio Gouveia de Bulhões, permitiu a livre entrada de investimentos ex-
ternos, em troca da importação pelo investidor de alguns equipamentos
industriais aqui produzidos, conforme definido pelo governo brasileiro
(MARANHÃO, 1981). Isso significa que o nacional-desenvolvimentismo
de JK não seguia à risca o pensamento dos intelectuais nacional-desen-
volvimentistas O Iseb preconizava a atuação da burguesia nacional
nos investimentos industriais, ao passo que JK inseriu na economia
brasileira vultosos subsídios de capital externo, seja mediante apli-
cações feitas indiretamente ou por meio de instalações de empresas
multinacionais no território brasileiro. O que se deve ressaltar é que,
de forma alguma, o Iseb tinha como objetivo a rejeição do estran-
geiro para que o Brasil pudesse se desenvolver. Assim é que Bresser-
Pereira afirma:

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


107
Nesse contexto, o nacionalismo de países em desenvolvimento que,
a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, pensam em reduzir
seu atraso em relação aos países ricos, não significa rejeição do
estrangeiro, nem mesmo correspondência da nação com o Estado-
nação, mas a ideologia da formação do Estado-nação, essencial
ao desenvolvimento nacional. (2005, p. 211)

De fato, o projeto de JK foi alvo de críticas em torno do fato


de que a sua gestão geraria dependência do capital estrangeiro. Conforme
Ricardo Maranhão, a prática de capitalização externa nos projetos de
desenvolvimento nacional mostra “como este [JK] pode levar até o limite o
equilíbrio contraditório entre o discurso nacionalista-desenvolvimentista e a
realização de aberturas ao capital monopolista estrangeiro” (1981, p. 56),
podendo-se observar que, para a própria execução do Plano de Metas,
Juscelino deveria dispor de dois tipos de recursos, basicamente “emissões
governamentais e financiamentos externos” (MARANHÃO, 1981, p. 58).
Isso significa que a perspectiva desenvolvimentista foi muito mais
explorada por JK do que o próprio tema do nacionalismo, de grande rele-
vância naqueles anos. A postura de Kubitschek é, então, contraditória com
a sua estratégia nacional-desenvolvimentista, pois ele se utilizava do dis-
curso nacionalista, ao mesmo tempo em que inseria o Brasil num processo
de implantação da dinâmica monopolista, submetida aos centros externos.
Contudo, a necessidade de cortes nos gastos públicos defendida pela
oposição para conter a onda inflacionária que se havia abatido sobre o
país dificultava os investimentos necessários à implantação das políticas de-
senvolvimentistas de JK. Juscelino conseguiu contornar as resistências da
oposição assegurando que a inflação permanecesse na média anual
de 13,5%. Com relação ao capital externo, JK teve grande dificuldade para
obter empréstimos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o qual afir-
mava que a política econômica brasileira divergia dos seus padrões. Entre-
tanto, o presidente conseguiu obter investimentos de outras agências, como
o Banco Import-Export de Washington, que concedeu um empréstimo de
125 milhões de dólares para a renovação ferroviária e à dragagem dos
portos (MARANHÃO, 1981).

Crislainy Ribeiro Pellegrine


108
Por causa dos altos empréstimos que o Brasil contraiu nesse gover-
no, criou-se uma dívida externa de valores absolutos desmedidos, o que
provocou grande aumento da inflação do país. Para contrabalançar os
seus efeitos, o governo lançou, em 1958-1959, um Plano de Estabilização
Monetária, com o objetivo reduzir as despesas públicas. O plano, entretan-
to, mostrou-se insuficiente para conter a aceleração inflacionária, cuja crise
daí derivada era considerada por Juscelino como “própria do crescimento”
(ALMEIDA, 2004).
Grande parte da onda inflacionária foi consequência dos altos inves-
timentos do governo na construção da nova capital do país. “A transferên-
cia da capital”, diz Coelho, “foi vista como a epopeia civilizatória, ato de
conquista e posse da terra [...]. Foi símbolo da cidade do século XXI, e ao
mesmo tempo evocação das bandeiras e realização de um projeto secular”
(1991, p. 195). O monopólio industrial, tecnológico e também político que
se localizava basicamente na região sudeste do Brasil é abalado com a
mudança da capital para o centro do país. Juscelino tentava, ao centralizar
o poder político no centro do país, facilitar a integração das regiões do ter-
ritório nacional.
O que pode se depreender dos efeitos da construção de Brasília
é que o pacto populista entre a burguesia nacional e o proletariado não
modificou as bases da estrutura social do país, não trazendo melhorias
efetivas para a população. A classe proletária em geral percebia, no cres-
cimento do Brasil, na construção de Brasília e na ascensão da ideologia
desenvolvimentista, uma forma de alcançar vantagens econômicas imedia-
tas. Isso, de fato, não ocorreu. Entretanto, é possível identificar as possibi-
lidades “de elevação do padrão de vida numa perspectiva de mais longo
prazo, que é de modo nenhum abstrata ou hipotética, mas se manifesta,
na avaliação subjetiva e cotidiana de cada indivíduo, numa realidade de
ascensão social” (COELHO, 1991, p. 205).
O ano de 1960 marca o fim do governo JK e das obras da nova
capital. O período foi marcado por grandes manifestações populares, que
festejavam não somente a construção de Brasília, mas também as mu-
danças deixadas por Juscelino no Brasil. As conquistas econômicas e a

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


109
ampliação da infraestrutura necessária ao desenvolvimento foram, de fato,
substanciais, exemplificadas na construção das rodovias Régis Bittencourt
e Fernão Dias e nos incentivos do governo às indústrias de bens de consu-
mo duráveis, como a automobilística.
De fato, esses investimentos trouxeram desenvolvimento econômico,
no entanto, conforme Maranhão, “JK havia esgotado as possibilidades de
sucesso daquele estilo de desenvolvimento” (1981, p. 99). O Brasil cresceu
nesse período; os investimentos privados foram cada vez mais incentivados
pelo Estado, mas as altas taxas da inflação no final do governo JK mostra-
vam outra face do Brasil, revelando as

[...] disparidades regionais, ligadas à coexistência orgânica de seto-


res avançados da indústria de bens de consumo durável e de bens
de capital, com bolsões de atraso e baixa produtividade, bem como
a manutenção e o crescimento da miséria no campo e sua transfe-
rência para as grandes cidades. (MARANHÃO, 1981, p. 99-100)

“Mesmo que permanecesse a diferenciação social, não haveria mais


nem regiões pobres, nem grupos pobres. Se o desenvolvimento é riqueza,
conseguindo-se chegar até ele, não haverá mais pobreza”, aponta Miriam
Limoeiro Cardoso (1978, p. 96-97); mas durante esse período, o país não
conseguiu, com o desenvolvimentismo, alcançar de fato a erradicação da
pobreza e da miséria. Ou como afirma Basbaum: “O país pode ter en-
riquecido, como enriqueceram os milionários, os banqueiros, os grandes
industriais e financistas, mas o povo empobreceu” (1976, p. 225). O autor
completa, destacando que “a política de penetração do capital estrangeiro
na economia brasileira criou déficits permanentes nas trocas cambiais pela
evasão contínua de dólares” (BASBAUM, 1976, p. 225). Enfim, o desenvol-
vimentismo de JK acabou por desvalorizar o preço do cruzeiro, moeda do
período, o que provocou “a baixa do salário real e a miséria crescente
das populações mais pobres” (BASBAUM, 1976, p. 225).
Apesar do reduzido efeito de suas políticas nas condições de vida da
população brasileira, o presidente Juscelino Kubitschek deixou o seu cargo
sustentado num “bom conceito de estadista, de construtor de Brasília, de

Crislainy Ribeiro Pellegrine


110
democrata com grande prestígio popular” (MARANHÃO, 1981, p. 101).
Fica claro que os problemas econômicos provocados pela intensifica-
ção do padrão desenvolvimentista, como a alta inflação, que chegou a
30,9% ao ano, um percentual bem maior que os 13,6% previstos por JK,
foram herdados por seus sucessores. Em resumo, o ideal desenvolvimen-
tista elaborado pelos intelectuais isebianos não se configurou plenamente
no governo JK. No entanto, é possível afirmar que durante o período da
ditadura militar (1964-1985) os governantes deram continuidade a polí-
ticas desenvolvimentistas com forte viés nacionalista.

O DESENVOLVIMENTISMO NOS GOVERNOS MILITARES

Os governos que sucederam o período juscelinista tiveram grande difi-


culdade de dar continuidade ao projeto nacional-desenvolvimentista, por um
lado pelo fato de esse projeto ter de certa forma se esgotado e, por outro,
pelo avanço, no início da década de 1960, de ideias que contraditavam com
um discurso que enfatizava a expansão de um capitalismo multinacional e as-
sociado. “Para Caio Navarro de Toledo, o nacional-desenvolvimentismo tem
início e fim com o Governo Juscelino Kubitschek, mesmo que elaborado por
uma instituição relativamente autônoma do governo” (DOMINGOS, 2009,
p. 301). O ideário de desenvolvimento nacional nos governos militares sofre
mudanças pelo fato de apresentar uma orientação conservadora, bastan-
te diferente, portanto, da perspectiva isebiana (TOLEDO, 2005)
O pensamento isebiano “visaria à fabricação da nação por meio da
formulação de uma ideologia do desenvolvimento nacional” (TOLEDO,
2005, p. 143). O projeto desenvolvimentista tinha como objetivo o cresci-
mento da nação por meio da própria nação. Nota-se, entretanto, que no
período que vai de 1961 a 1964, do pré-golpe militar, surgiram institui-
ções que tinham perspectivas ideológicas distintas das primeiras bases do
pensamento isebiano, surgimento esse também provocado pela acentua-
ção mais à esquerda do discurso defendido pelo Iseb. Em sua fase final
(1962-1964), o Iseb assume uma postura que enfatiza as reformas sociais

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


111
e políticas, o que determina também uma mudança do discurso nacional-
desenvolvimentista para um discurso nacional-reformista (TOLEDO, 2005).
O nacional-reformismo, surgido no final da década de 1950, enfati-
zava que “não bastava mais apenas o país se desenvolver economicamen-
te, se os resultados desse desenvolvimento não melhorassem as condições
de vida do povo brasileiro” (DOMINGOS, 2009, p. 303). Essa era a tese
central desse novo olhar sobre o desenvolvimento brasileiro. Na sua última
fase (1962-1964), o Iseb, como também outros grupos de intelectuais –
por exemplo, a Frente Parlamentar Nacionalista – defendiam o nacional-
reformismo, por acreditarem que, por meio dele, o Brasil poderia de fato
melhorar as condições de vida da população.
Contra essa sustentação de caráter puramente reformista e esquerdista,
foram fundados o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes). O Ibad surgiu em 1959 com o intuito de
combater o comunismo e projetar o rumo do debate econômico e político
do país. O Ipes, que passou a existir oficialmente em novembro de 1961, foi
um centro que desenvolveu um pensamento de defesa de uma perspectiva
do crescimento nacional com base no capitalismo autóctone. Políticos de ori-
gem liberal-conservadora, setores da imprensa brasileira e algumas entidades
das classes empresariais apoiaram e saudaram a sua formação, visto que
tinha por objetivo investir no desenvolvimento do país mediante a inserção
no capitalismo internacional. O crescimento viria pelo capitalismo autóctone,
porém, a longo prazo, deveria ser feita uma associação com o capital externo
(TOLEDO, 2005).
O complexo Ibad/Ipes apostava na associação entre a burguesia
e a massa da população, o que em muito se assemelha ao pensamento
inicial dos isebianos acerca da união entre a burguesia nacional e a classe
proletária. Entretanto, Toledo (2005), aponta quais eram de fato os pontos
defendidos pelo complexo Ibad/Ipes, uma vez que esse último mascarava
a sua real finalidade ideológica:

Ao contrário do Iseb, o Ipes, desde o início, desenvolveu uma dupla


vida política: uma face pública e uma clandestina. Como objetivos
oficiais (“públicos”) da instituição, eram postulados a promoção da

Crislainy Ribeiro Pellegrine


112
“educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”, bem como o
exercício da pesquisa objetiva e do livre debate, que deveriam im-
plicar conclusões e propostas para o progresso econômico, o bem-
estar social e o “fortalecimento do regime democrático” no Brasil.
(TOLEDO, 2005, p. 145)

Contudo, a sua face “clandestina”

[...] encobria uma sofisticada e multifacética militância política,


ideológica e militar [...] as operações secretas e discretas dessa
burguesia insurrecional eram executadas por forças-tarefas es-
pecializadas e unidades de ação que, em autêntica linguagem
militar, chegavam a adotar codinomes para suas atividades extra-
legais. (TOLEDO, 2005, p. 145)

O que fica evidenciado é que a organização militar foi sem dúvida


essencial para a execução das tarefas “clandestinas” ditadas pelo Ipes a se-
tores da burguesia nacional. Ela serviria para conter os rumores de uma ini-
ciativa política mais densa no campo do nacional-reformismo, mediante as
“operações secretas e discretas” citadas anteriormente. Toledo define bem
quais eram as etapas do processo de atuação político-ideológica do Ipes:

[...] foram definidas duas etapas para a ação político-ideológica


do Ipes. A “elite orgânica” deveria assumir que – num primeiro
estágio – caberia infundir nas classes dominantes e nas classes
médias a ideia de resistência contra o governo Goulart e a con-
vicção da necessidade de sua urgente derrocada. Para tal inten-
to, os militares eram peças-chave na estratégia política do Ipes.
Numa segunda etapa, colocavam-se problemas de doutrinação e
organização de um “bloco de poder burguês” que, na direção do
Estado, deveria impor o capitalismo multinacional e associado e
alguma forma de legitimidade popular. (2005, p. 146)

A implantação dessas estratégias se iniciou com o golpe que derrubou


João Goulart da Presidência da República em 31 de março de 1964, ao qual se
seguiu um longo período autoritário que, após vinte anos de resistência e lutas
pela redemocratização do país, chegou ao fim em meados da década de 1980.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


113
OS MILITARES E A BURGUESIA: SUAS ATUAÇÕES NO
CENÁRIO POLÍTICO E ECONÔMICO BRASILEIRO

É notório que a atuação das Forças Armadas na história brasileira


se deu de forma diferente nos diversos períodos da história do país (SILVA,
2005-2006). Na fase que vai de 1950 a 1964, o desempenho dos milita-
res no cenário político foi canalizado para contribuir em projetos voltados
para o desenvolvimento do país. O debate acerca do modelo econômico
que deveria ser implantado no Brasil para que o país pudesse se desen-
volver foi crucial para a atuação divergente de parcelas militares, o que
evidencia que eles não podem ser vistos como um grupo monolítico no
decorrer da história brasileira, mas sim como um grupo complexo e com
opiniões e pensamentos divergentes (TOLEDO, 2005).
É possível identificar que a ascensão do modelo nacional-
desenvolvimentista durante a década de 1950 foi apoiada por uma grande
parcela dos militares que defendiam o desenvolvimento brasileiro por ver
nele uma forma de “superar a pobreza ou reduzir a distância entre os países
subdesenvolvidos e os países ricos, e de atingir a independência política e
econômica através de um crescimento autossustentado” (SILVA, 2005-2006,
p. 97). Os militares que sustentavam esse modelo eram vistos como nacionalistas
da esquerda militar.
Entretanto, outra grande parcela das Forças Armadas com forte
influência na vida política do país no período do pós-guerra tinha as
suas bases ideológicas assentadas no liberalismo conservador ou no li-
beralismo pró-americano de direita. Na década de 1960, observa-se
que o grupo que se manifestou de forma eficaz, atrelado ao pensamento
do próprio núcleo Ibad/Ipes, foi o dos militares orientados para o libe-
ralismo pró-americano. Eles defendiam a causa da segurança nacional na
tentativa de conter o movimento pelas reformas sociais – agrária, tributária,
financeira e administrativa – que cada vez mais se acentuava, sobretudo
no governo Goulart. A mobilização entre setores da burguesia e os mili-
tares foi crucial para que o golpe acontecesse em 31 de março de 1964
(SILVA, 2005-2006).

Crislainy Ribeiro Pellegrine


114
A partir do momento em que a agenda dos militares incluiu o obje-
tivo de criar as bases econômicas da defesa nacional através do desenvol-
vimento industrial, facções se organizaram dentro das Forças Armadas e se
articularam a setores da sociedade civil, disputando a imposição de um mo-
delo de desenvolvimento. “O resultado final, mas não necessariamente perse-
guido desse envolvimento, foi o movimento civil-militar de 1964 e a imposição
de uma ditadura militar sem precedentes” (SILVA, 2005-2006, p. 93).
A derrubada do presidente João Belchior Marques Goulart, e que deu
início a um longo período da história brasileira, caracterizou-se pelo auto-
ritarismo sustentado na articulação entre uma junta militar conservadora e
amplos���������������������������������������������������������������������
setores da burguesia nacional. Durante esse período, viu-se a ascen-
são de diversos presidentes militares, eleitos por um colégio eleitoral composto
pelos membros do Congresso Nacional.8 Isso significa que as Forças Armadas
tinham como estratégia impor um militar ao Congresso, com o objetivo de rea-
lizar a “limpeza” política e ideológica tão desejada seja pelas forças conser-
vadoras do próprio aparato militar, seja pelo empresariado brasileiro (SILVA,
2005-2006).

AS PROPOSTAS DO I E DO II PLANO NACIONAL DE


DESENVOLVIMENTO

O I Plano Nacional de Desenvolvimento foi proposto em 4 de no-


vembro de 1971 para os anos de 1972 a 1974 pelo presidente Emílio
Garrastazu Médici (1969-1974) juntamente com Alfredo Buzaid (minis-
tro da Justiça), Adalberto de Barros Nunes (ministro da Marinha do Brasil),
Orlando Geisel (ministro do Exército), entre outros, é o marco da expan-
são desenvolvimentista no período militar. É importante ratificar que esse
plano é avaliado como desenvolvimentista por apoiar investimentos nas
áreas que deveriam alavancar a economia no sentido da superação do

8
Em fevereiro de 1966 foi decretado o ato institucional nº 3, estabelecendo eleições indiretas para gover-
nador e para os municípios considerados de “segurança nacional”, incluindo todas as capitais. Em 1967,
mediante o ato institucional nº 4, foi promulgada uma nova Constituição. Nela mantinha-se o princípio
federativo e os princípios dos atos institucionais – eleições indiretas para presidente e governadores.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


115
subdesenvolvimento. Isso significa que os investimentos eram feitos majori-
tariamente na área industrial. O nacional-desenvolvimentismo juscelinista
havia terminado, mas a questão desenvolvimentista não; pelo contrário,
ela continuava presente.
O desenvolvimentismo desse período, tanto como política econô-
mica quanto como ideologia, tinha como justificativa elevar a economia
brasileira aos patamares superiores da economia mundial e afastar as
ideias esquerdistas de intelectuais e políticos da época. O controle do
país por militares conservadores iria assegurar a segurança nacional,
afastando o inimigo comum do bloco capitalista mundial: o comunismo
(SILVA, 2005-2006).
Ao apresentar o I PND, o presidente Médici afirmou que o crescimento
econômico permitiria ao Brasil ocupar a lista dos dez países do mundo oci-
dental com maior Produto Interno Bruto (PIB), e projetava para o futuro ocupar
a oitava posição. O plano apresenta objetivos internos e externos, significando
que as estratégias de desenvolvimento do país deveriam acompanhar também
a dinâmica do mercado exterior.
Dos objetivos nacionais, o programa frisa alguns pontos que marcam
total desacordo com o momento político vivido no Brasil, como pode ser
visto na página 6 do documento:

Para conferir autossustentação e caráter integrado ao processo,


o desenvolvimento pressupõe: – Ampla disseminação dos resul-
tados do progresso econômico, alcançando todas as classes de
renda e todas as regiões. – Transformação social, para moder-
nizar as instituições, acelerar o crescimento, distribuir melhor a
renda e manter uma sociedade aberta. – Estabilidade política,
para realizar o desenvolvimento sob regime democrático. – Segu-
rança nacional, interna e externa. (BRASIL, 1971, p. 8.969)

O regime militar foi caracterizado por extremo autoritarismo, repres-


são de manifestações contrárias ao regime e cerceamento da liberdade
individual, em contradição explícita com o que era apresentado no texto
do plano. A justificativa era que o desenvolvimento econômico e social ne-

Crislainy Ribeiro Pellegrine


116
cessitaria de estabilidade política sob regime democrático, o que naquele
momento de fato não ocorria.
O texto do plano permite constatar a grande ênfase dada à preserva-
ção do setor privado e à sua articulação com o governo. Isso mostra como era
forte a participação da burguesia nas orientações das políticas econômicas
do período. Essa importância fica evidenciada quando se destaca a “atuação
eficiente do governo, na administração direta, autarquias ou empresas gover-
namentais, definindo suas tarefas com clareza e preservando a viabilidade e
dinamismo do setor privado” (BRASIL, 1971, p. 8.969). O plano prevê ainda
políticas de desenvolvimento de tecnologia nacional, também consideradas
estratégicas para a segurança nacional, em um mundo então dividido em
dois blocos em constante disputa: o bloco capitalista, liderado pelos Estados
Unidos, e o bloco socialista, sob o controle da extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). No I PND a participação das empresas estrangei-
ras no Brasil foi considerada como uma possibilidade de o país se desenvolver
em termos tecnológicos e conquistar novos mercados externos. Sendo assim:

As empresas estrangeiras deverão orientar os seus investimentos,


principalmente, para áreas de tecnologia mais refinada, onde
se torne relevante a transferência, para o país, de nova tecnolo-
gia e métodos gerenciais modernos; é essencial que contribuam
também para o balanço de pagamentos, promovendo exporta-
ções ou substituindo importações, atuando mais de modo com-
plementar ao da empresa nacional. (BRASIL, 1971, p. p. 8.969)

Em linhas gerais, o I Plano Nacional de Desenvolvimento tinha por


objetivo um crescimento econômico vertiginoso por meio de investimentos
externos, do planejamento industrial e de políticas de modernização tec-
nológica. Com tais medidas, pretendia-se

[...] assegurar níveis internacionais de eficiência aos setores público


e privado; e processo de integração, com articulação harmônica
entre governo e setor privado, União e estados, entre regiões de-
senvolvidas e regiões em desenvolvimento, entre empresa e traba-
lhadores. (BRASIL, 1971, p. 8.969)

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


117
Uma avaliação do governo do general Emílio Garrastazu Médici
permite afirmar que durante esse período a repressão aos opositores do
regime autoritário e a tortura a eles chegaram a extremos, além de se ter
instaurado a censura nos meios de comunicação. Porém, em relação às
questões econômicas, o seu governo foi responsável pelo advento do cha-
mado milagre econômico brasileiro.
Observa-se que o milagre de fato aconteceu como resultado do in-
gresso maciço de capital estrangeiro no Brasil e também da “estabilidade
política” promovida pelos governos militares, firmemente comprometidos
com o combate às esquerdas e com o desenvolvimento do país. Outro
aspecto que também contribuiu para o crescimento econômico foi a baixa
taxa de juros praticada no mercado internacional no início dos anos 1970.
Isso pode ser compreendido como uma estratégia de atração de investi-
mentos externos para o fortalecimento da economia e assim ampliar as
possibilidades de competir no mercado internacional:

A economia brasileira internacionalizava-se, em associação com


o capital estrangeiro. O Estado brasileiro agora era responsável
por intermediar as relações entre burguesia nacional e estran-
geira. [...] A expansão econômica foi realmente espetacular, com
a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) mantendo-
se elevada a cada ano, e o governo não demorou em tirar pro-
veito disso. Surgia o mito do Brasil potência, alimentado pelos
slogans divulgados pela propaganda oficial: “Ninguém mais se-
gura este país”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Pra frente, Brasil”,
“Até 1964 o Brasil era o país do futuro: agora o futuro chegou”.
(VICENTINO e DORIGO, 2001, p. 606)

Cabe assinalar, contudo, que as políticas econômicas implantadas pelo


governo Médici tornaram o Brasil fortemente dependente do capital estrangeiro.
Como a história relata, em 1973 ocorreu uma grande crise do petróleo que
revelou o esgotamento do milagre econômico, visto que o Brasil naquele mo-
mento era dependente “da importação de mais de 80% do total do petróleo
que consumia” (VICENTINO e DORIGO, 2001, p. 607), e isso comprometeu
seriamente o balanço de pagamentos e a produção industrial.

Crislainy Ribeiro Pellegrine


118
Em um contexto de crescentes dificuldades econômicas e políticas,
e do crescimento de movimentos que lutavam pela redemocratização do
país, Ernesto Geisel (1974-1979), que substituiu Garrastazu Médici, viu-se
diante da necessidade de principiar a desmontagem do aparelho repressivo
e iniciar a abertura política reclamada pela resistência de amplos setores da
sociedade civil brasileira. Com relação ao planejamento econômico, Geisel
promoveu, juntamente com outros gestores econômicos, o II Plano Nacional
de Desenvolvimento (II PND).
O período que vai de 1974 a 1979 foi marcado por uma série de acon-
tecimentos importantes na vida econômica e política brasileira. Na esfera po-
lítica, iniciava-se a distensão e o relaxamento dos rigores do autoritarismo que
marcaram os governos Médici e Costa e Silva (1967-1969), e despontava um
novo movimento sindical. Na esfera econômica, empreendeu-se aquele
que foi o último grande plano econômico do ciclo desenvolvimentista.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi, provavelmente, o mais
amplo programa de intervenção estatal do Brasil, transformando significativa-
mente o parque industrial brasileiro, com a implantação de um polo de insumos
básicos e de bens de capital. Em meio aos problemas deixados pela ressaca
do milagre brasileiro, João Paulo dos Reis Velloso,9 Mário Henrique Simonsen 10
e Severo Gomes,11 entre outros gestores econômicos, arquitetaram um progra-
ma de desenvolvimento extremamente ambicioso, que contrariava as expec-
tativas de vários analistas, para enfrentar o primeiro choque de petróleo e as
adversidades da crise internacional (MANTEGA, 1997).
O II PND pretendia implantar um conjunto ousado de projetos vol-
tados para a produção de insumos básicos e de bens de capital, tendo, no
entanto, alcançado taxas de crescimento inferiores àquelas do I PND. O
ajuste previsto nesse segundo plano derivava da crise do petróleo. Por isso
mesmo, o governo apostou no setor de bens de capital e insumos básicos,
a fim de evitar as importações e, se possível, gerar novas frentes de expor-
tação. Também na tentativa de tentar diminuir a dependência do país no
que se refere ao petróleo importado do exterior, o plano previu medidas

9
Economista brasileiro que presidiu o Ministério do Planejamento nos governos Médici e Geisel.
10
Engenheiro, economista e ministro da Fazenda durante o governo Geisel.
11
Ministro da Indústria e do Comércio no governo Geisel.

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


119
que viabilizassem o aumento da produção interna do produto. Conforme
consta no seu texto, “a perspectiva é de apreciável elevação da produção
interna de petróleo nos próximos dois ou três anos, simplesmente a base
dos campos já descobertos” (BRASIL, 1974, p. 13.869).
Além das medidas já citadas, o plano propunha outras que busca-
vam a consolidação de uma sociedade industrial moderna e um modelo de
economia competitiva para o país. Para tal intento, previa investimentos nos
cinquenta anos subsequentes da ordem de Cr$ 716 bilhões nas áreas de
desenvolvimento científico e tecnológico, indústrias básicas e infraestrutura
econômica (BRASIL, 1974, p. 13.869).
Em relação à integração na economia mundial, foram propostas me-
didas que visavam à “conquista de mercados externos, principalmente para
manufaturados e produtos primários não tradicionais (agrícolas e minerais)”
(BRASIL, 1974, p. 13.869). É possível observar que a relação de exportador
de bens primários ainda se mantinha presente na realidade brasileira. Como
já foi visto, as ideias cepalinas afirmavam que um dos grandes motivos da
subordinação do Brasil aos países do capitalismo central era a deterioração
dos termos de troca. Para que o país saísse de uma posição subalterna, era
necessário quebrar essa posição de país exportador de produtos primá-
rios. Entretanto, conforme anteriormente apontado, o II Plano Nacional de
Desenvolvimento não conseguiu atingir tal objetivo.
Por isso mesmo, pode-se afirmar que as diretrizes de crescimento e
investimentos de longo prazo previstos no II PND durante o regime militar
estavam em contradição com a perspectiva desenvolvimentista cepalina,
que frisava a integração industrial como progresso econômico e social. Ao
final do governo Geisel, o país enfrentava a segunda crise internacional
do petróleo “que acarretou em um desequilíbrio nas contas externas e,
principalmente, uma diminuição no fluxo de capitais estrangeiros para o
Brasil” (VICENTINO e DORIGO, 2001, p. 609). A partir disso, o Brasil co-
meçou a viver uma fase de estagflação, isto é estagnação econômica com
inflação, que só fazia crescer com o passar dos anos. Tudo apontava para
o fato de que durante o governo Geisel os graves problemas da economia
brasileira tinham se aprofundado.

Crislainy Ribeiro Pellegrine


120
O intervencionismo estatal atingiu o seu auge, bem como a políti-
ca das obras faraônicas. A combinação entre empresas estatais e
autoritarismo político mostrou-se catastrófica, na medida em que,
muitas vezes, os vastos recursos dirigidos a essas empresas aca-
bavam em mãos de particulares, não existindo qualquer controle
da sociedade civil sobre o setor público. [...] Assim, as empresas
estatais começaram a combinar excessivos gastos com pessoal e
ineficiência econômica, gerando mais tarde, a convicção de que,
generalizadamente, empresas estatais são pouco eficientes e pre-
cisam ser privatizadas. Os custos públicos dessa ineficiência eram
atendidos com emissões de papel-moeda ou então com bem re-
munerados empréstimos feitos ao governo, favorecendo instituições
financeiras (bancos), que ganhavam com o processo. (VICENTINO
e DORIGO, 2001, p. 610)

Diante da situação de colapso econômico e também político, o


presidente João Batista Figueiredo (1979-1985), que sucedeu Ernesto
Geisel, estimulou por meio da proposta do economista Antônio Delfim
Netto, ministro da Fazenda do governo anterior, as exportações com
vistas à obtenção de divisas e com o objetivo de manter em dia o paga-
mento dos juros da dívida externa, que chegava a valores bastante altos.
No entanto, a prática de reter dólares e pagar a dívida, associada
às grandes remessas de divisas para o pagamento dos exportadores,
não favorecia os brasileiros, crescendo cada vez mais o descontenta-
mento com o regime. Primeiramente, porque se viam presos a uma dí-
vida que não fora provocada por eles, mas sim pela forma como de há
muito vinha sendo conduzida a economia brasileira. Em segundo lugar,
porque a volumosa emissão de moeda para o pagamento dos exporta-
dores fazia aumentar a inflação, que naquele momento era considerada
um dos maiores “monstros” da economia brasileira.
Durante o governo Figueiredo, a crise econômica e social se aprofun-
dou no Brasil. Greves, reivindicações políticas a favor da democracia e da
reforma partidária estavam na ordem do dia. Entretanto, a sociedade brasilei-
ra alcançou de fato a sua liberdade política com as eleições diretas de 1989.
Após a ascensão de Collor ao posto de presidente, a economia política brasi-

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


121
leira tomou um novo rumo, anunciando a adoção de um modelo econômico
em moldes neoliberais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, foi possível constatar a importância que a ideologia


desenvolvimentista teve no país do governo JK até os anos 1980, baseando-
nos na legitimidade alcançada pelas análises e propostas cepalinas com
vistas à superação do subdesenvolvimento latino-americano.
Enquanto intelectuais e políticos de perfil nacional-desenvolvimentista
defendiam transformações no campo econômico e social, organismos
internacionais vinculavam-se a parcelas da burguesia nacional e das Forças
Armadas que não concordavam com o rumo que os primeiros pretendiam
dar ao país. A reação desses setores veio na forma do golpe civil-militar
de 1964, que redefiniu os rumos do projeto desenvolvimentista no país,
distanciando-o das ideias isebianas, que viam no avanço do capitalismo
no país o meio fundamental para se atingir o desenvolvimento em moldes
nacionais. Assim, para o Iseb,

[...] o desenvolvimento era um processo histórico que implica


uma revolução capitalista através da industrialização e uma re-
volução nacional que permitisse ao país formular uma estratégia
nacional de desenvolvimento. Nele, a presença de uma burgue-
sia nacional e não alienada era uma condição necessária à ideia
de nação que reuniria as classes sociais independentemente dos
naturais conflitos entre elas. (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 42)

Na verdade, o desenvolvimentismo acabou por constituir no país


uma nova forma de expansão do capitalismo, sob o lema de recuperação
do atraso, sem mudar substancialmente a posição do país na divisão inter-
nacional do trabalho.
O projeto nacional-desenvolvimentista do Iseb, que preconizava rela-
ções entre a burguesia nacional e a massa da população, não se positivou

Crislainy Ribeiro Pellegrine


122
concretamente, e não possibilitou, de maneira significativa, mudanças para
a melhoria do padrão de vida da população brasileira. No que se refere à
estrutura econômica do país, os saldos de crescimento foram grandes, à custa,
porém, da alta inflação e do grande aumento da dívida externa.
No período militar, ocorreram algumas mudanças no discurso e nas
práticas desenvolvimentistas brasileiras. Essas mudanças, entretanto, não
geraram melhorias na vida da maioria da sociedade brasileira. O governo
Médici��������������������������������������������������������������
mostrou-se como um dos mais autoritários durante o regime mi-
litar, mesmo sendo aquele em que tenha ocorrido o advento do milagre
econômico. Na verdade, Geisel, já no final da ditadura militar, pode ser
considerado como um dos presidentes do período que mais buscou abrir as
portas do Brasil para a democracia, regendo assim o fim do regime militar,
que já se encontrava em acelerado processo de desgaste.
O fim do governo Geisel e do II Plano Nacional de Desenvolvi-
mento mostra o enfraquecimento e o esgotamento do discurso desen-
volvimentista no Brasil. A crise econômica em escala global que atingiu
fortemente o país mostrou que os modelos econômicos orientados pelas
práticas da ideologia desenvolvimentista não conseguiram corresponder
à complexidade dos problemas sociais e econômicos então enfrentados
pelo país, dando lugar, sobretudo a partir da década de 1990, após a
gravíssima crise dos anos 1980, ao ideário neoliberal.
Entretanto, interpretações como a formulada por Bresser-Pereira afir-
mam que o Brasil, sob o comando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010), procurou enfrentar os problemas do país de uma perspec-
tiva de caráter desenvolvimentista, que o autor denomina de neodesen-
volvimentismo. Essa interpretação está longe de ser consensual. Em uma
perspectiva���������������������������������������������������������������
crítica, Fiori (2011) destaca que o neodesenvolvimentismo bra-
sileiro e também o latino-americano padecem dos mesmos erros teóricos e
ideológicos do desenvolvimentismo da década de 1950:

Passado a limpo, trata-se de um pastiche de propostas macroe-


conômicas absolutamente ecléticas, e que se propõem fortalecer,
simultaneamente, o Estado e o mercado; a centralização e a des-
centralização; a concorrência e os grandes “campeões nacionais”;

Construindo um olhar sobre o desenvolvimentismo no Brasil: de JK à ditadura militar


123
o público e o privado; a política industrial e a abertura; e uma po-
lítica fiscal e monetária, que seja ao mesmo tempo ativa e austera.
E, finalmente, com relação ao papel do Estado, o “neodesenvolvi-
mentismo” propõe que ele seja recuperado e fortalecido, mas não
esclarece em nome de quem, para quem e para quê, deixando de
lado a questão central do poder, e dos interesses contraditórios das
classes e das nações. (FIORI, 2011, p. 1)

Mesmo que baseado em contradições ideológicas e até mesmo em


erros teóricos, o desenvolvimentismo ainda se faz presente na política nacio-
nal brasileira. Isso demonstra a força e a expressividade de uma teoria, ideo-
logia e política de mais de meio século de formação, que a cada governo
se transforma, mantendo o lema da superação econômica, e se adapta às
novas realidades nacionais e externas.

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Crislainy Ribeiro Pellegrine


126
PRODUÇÃO DA IMAGEM FOTOGRÁFICA
NO ÂMBITO DO CURSO TÉCNICO DE
VIGILÂNCIA EM SAÚDE DA ESCOLA
POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM
VENÂNCIO/FIOCRUZ

Cristopher Costa de Mattos *

INTRODUÇÃO

Inovações técnicas do final do século XVIII e início do século XIX pos-


sibilitaram uma nova forma de representação da realidade. Um exemplo
de inovação é a fotografia, que representava uma realidade modificada,
pois dependia, além do olhar do fotógrafo, do olhar do leitor, olhar que
estava condicionado por fatores culturais.
A fotografia está profundamente associada à necessidade cultural
do modernismo, orientada pela racionalidade iluminista na busca pelos
fatos através da imagem (HARVEY, 1992 apud CIAVATTA, 2002), ou
seja, a busca de um real mediante a compreensão implícita na fotogra-
fia, associada à investigação do seu contexto de produção, apropriação
e uso.
A fotografia é uma das diversas ferramentas utilizadas na pesqui-
sa de campo das ciências da saúde e faz parte, inclusive, do processo

* Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio com
habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Administração na Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso,
contou com a orientação dos professores-pesquisadores Gregório Galvão de Albuquerque (mestrando
em Educação), do Núcleo de Tecnologia Educacional em Saúde (Nuted), e Bianca Ramos Marins (douto-
ra em Vigilância Sanitária de Produtos), do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde
(Lavsa). Contato: cristopherdemattos@gmail.com.

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


127
de trabalho do Laboratório de Vigilância em Saúde (Lavsa)1 da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
(������������������������������������������������������������������
EPSJV�������������������������������������������������������������
/Fiocruz). O Lavsa possui grande produção de imagens que fun-
cionam como elemento de discussão e demonstração das características
e das irregularidades encontradas no território. Nesse sentido é que se
objetiva provocar a discussão da produção de imagens fotográficas para a
compreensão da relação existente entre a imagem e o território.
A produção de fotografia dos territórios tem como objetivos principais
o registro, o diagnóstico e a elaboração de um plano de intervenção local.
A fotografia, utilizada como ferramenta, proporciona uma melhor análise, re-
flexão e, em certos casos, denúncia sobre o território retratado. Sua utiliza-
ção como ferramenta durante o processo investigativo do território mostra-se
necessária na apreensão da realidade. É necessário, para além do domínio
da técnica da fotografia, o estímulo à reflexão sobre a representação dessa
imagem, sua relevância como ferramenta de denúncia e sua inserção no pro-
cesso de trabalho da vigilância em saúde.
A produção de imagens no “trabalho de campo” realizado pelos alunos
do Curso Técnico de Nível Médio de Vigilância em Saúde, do Lavsa, articula a
relação entre passado e futuro da fotografia. A foto tem seu sentido de registro
fragmentado da realidade, um registro que, segundo Ciavatta (2002), permite
uma visão retrospectiva, enquanto o trabalho de campo teria um sentido de
futuro, na medida em que permitiria a elaboração do plano de intervenção
do território.
No “trabalho de campo”, os alunos recolhem informações do ter-
ritório nos dois primeiros anos, por meio de questionários aplicados à
população e de pesquisas em instâncias governamentais. Concomitan-
temente, é realizada a produção de imagens, incluídas no processo de
diagnóstico para posterior sintetização dos dados e elaboração de um
plano de intervenção.

1
O Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde tem como missão a promoção
da educação dos técnicos dessa área através da coordenação de atividades de ensino, pesquisa,
desenvolvimento tecnológico e cooperação técnica. Seu objetivo é contribuir para a formulação de
políticas de educação profissional, propostas curriculares e tecnologias em educação para atender às
necessidades dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS).

Cristopher Costa de Mattos


128
O presente trabalho utiliza-se da revisão bibliográfica no campo da
fotografia e da vigilância em saúde. A metodologia desenvolvida é de aproxi-
mação com a produção e a guarda de fotografias no Lavsa, com o objetivo
de compreender a imagem no contexto da vigilância em saúde.

A IMAGEM FOTOGRÁFICA

Na história da fotografia, Walter Benjamin (1994a) aborda a inte-


ração entre a técnica e a interlocução com o contexto de sua produção.
Para o autor, a fotografia é uma relação entre imagem e pensamento, ou
seja, está relacionada à retratação de determinado espaço-tempo, inseri-
da em um momento histórico. Segundo o autor, apesar de historicamente
a pintura ter sido considerada a principal maneira de representação da
realidade, surgiu a necessidade de aproximar mais a representação das
características do espaço natural em determinado contexto articulado
com a realidade. Uma aproximação do real diretamente ligada à ima-
gem, não só como essência do real, mas também como a própria rea-
lidade, consequentemente condicionada à relação de espaço, tempo e
ideologia de quem a produz.
O apogeu da descoberta da fotografia se deu no primeiro decê-
nio do século XIX, período pré-industrial da fotografia. Vale ressaltar que
houve alguns que se apoderaram da técnica com fins lucrativos, mas tais
atividades estavam mais próximas das feiras do que da indústria. A com-
preensão do que é a real essência da arte fotográfica estava fortemente
ligada a juízos de valor, que buscavam criticar a invenção.

A névoa que recobre os primórdios da fotografia é menos espessa


que a que obscurece as origens da imprensa: já se pressentia, no
caso da fotografia, que a hora da sua invenção chegara, e vários
pesquisadores, trabalhando independentemente, visavam ao mes-
mo objetivo: fixar as imagens da câmera obscura [...]. (BENJAMIN,
1994a, p. 91)

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


129
O Leipziger Anzeiger, um jornal da época citado por Benjamin
(1994a, p. 92), afirmou ser um absurdo a tentativa de fixar o ser humano
numa câmara escura, visto ter sido o homem feito à imagem de Deus, e
nenhum invento humano poderia fixar a imagem Dele. No máximo, um
artista poderia, num momento de suprema solenidade, sem a ajuda de ar-
tifícios mecânicos, representar traços ao mesmo tempo humanos e divinos.
No período que se seguiu da invenção da fotografia muitos teóricos
discutiram se a fotografia seria uma arte ou meramente uma técnica, sem
interferência do artista, neste caso o fotógrafo. No decorrer do tempo, os
quadros tornaram-se testemunho do talento artístico do pintor, e a foto-
grafia passou a ser vista como a forma de representação que tinha maior
proximidade com a realidade. Os primeiros fotógrafos acreditavam que a
valorização da fotografia estava fundada na precisão da representação
da realidade em detrimento do fantasioso. Diferentemente da pintura, que
está ligada à representação e aos cuidados com os detalhes além da rea-
lidade, a imagem fotográfica era encarada como a representação pura
do real.
O processo desenvolvido por Daguerre para a fixação da imagem,
segundo Benjamin, dava-se da seguinte maneira:

Os clichês de Daguerre eram placas de pratas, iodadas e ex-


postas na câmera obscura; elas precisavam ser manipuladas
em vários sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma
luz favorável, uma imagem cinza-pálida. Eram peças únicas; em
média, o preço de uma placa, em 1839, era de 25 francos-ouro.
(BENJAMIN, 1994a, p. 93)

Com o passar do tempo, as técnicas de fixação da imagem fotográfica


foram aprimoradas. A realidade retratada na câmera possui uma elaboração
que, consequentemente, se distingue do olhar, porque além do espaço traba-
lhado conscientemente pelo homem, há o trabalho do inconsciente.

Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha,


ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude
na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia

Cristopher Costa de Mattos


130
mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmera
lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico,
como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN,
1994a, p. 94)

A fraca sensibilidade das placas obrigava o fotógrafo a se concen-


trar por várias horas, além de uma longa exposição ao ar livre. Isso era
feito em um local afastado, a fim de que nada pudesse desviar seu foco ou
atrapalhar o processo de elaboração da fotografia.

O próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sa-


bor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose,
eles por assim dizer cresciam dentro da imagem, diferentemente do
instantâneo, correspondente àquele mundo transformado no qual
[...] a questão de saber “se um esportista ficará tão célebre que
os fotógrafos de revistas ilustradas queiram retratá-lo” vai ser de-
cidida na mesma fração de segundo que a foto está sendo tirada.
(BENJAMIN, 1994a, p. 96)

A principal característica do retrato nesse período era a naturalidade


com que as pessoas eram retratadas. As primeiras pessoas entravam nas fo-
tos e ao se olhar para a fotografia percebe-se a falta de informação sobre o
passado ou qualquer forma de identificação da pessoa retratada. A fotogra-
fia ainda não tinha se tornado instrumento dos jornais, ou seja, não havia
sido estabelecida uma relação entre atualidade e fotografia, pois, segundo
Benjamin (1994a), ainda eram considerados artigos de luxo.
Diversos pintores em 1840 se tornaram técnicos de fotografia com o
crescente interesse do público pelos retratos em miniatura. Os homens de
negócios se instalaram, surgindo nessa época os álbuns fotográficos (repre-
sentando as famílias) mesmo que as fotografias ainda dependessem de uma
longa exposição para serem feitas.
Benjamin (1994a) aponta que no período inicial da fotografia a con-
vergência entre o produtor da foto e o objeto fotografado era completa: os
homens exibiam um olhar de plenitude e segurança. Pouco depois, com o
avanço da ótica, em 1880, os instrumentos auxiliaram na eliminação das

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


131
partes escuras, registrando imagens com maior nitidez, devido às lentes
objetivas de maior intensidade luminosa.

Essas imagens nasceram num espaço em que cada cliente via


no fotógrafo, antes de tudo, um técnico da nova escola, e em
que cada fotógrafo via no cliente o membro de uma classe
ascendente, dotado de uma aura que se refugiava até nas
dobras da sobrecasaca ou da gravata lavallière. (BENJAMIN,
1994a, p. 99)

O decisivo na fotografia continuou a ser a articulação entre o fotó-


grafo e a sua técnica. Os movimentos europeus de vanguarda do início do
século XX, como o surrealismo e as fotografias de Eugène Atget, são exem-
plos dessa interação. Benjamin (1994a, p. 100) identifica nas fotos de Atget
a forma como o fotógrafo limpa a atmosfera carregada de informação e
poluição, purificando-a, e suga a aura2 da realidade, além de romantizá-la
e acrescentar-lhe um caráter exótico.

Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de mon-


tanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre
nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação,
significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. Mas fazer
as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma
tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto
a superação do caráter único das coisas, em cada situação, atra-
vés da sua reprodução. (BENJAMIN, 1994a, p. 101)

Os questionamentos da fotografia nesse momento giravam em tor-


no da “fotografia como arte” e “arte como fotografia” pelo motivo de que
na fotografia há um maior exercício de construção e/ou transformação da
vivência no objeto que é apropriado pela câmera. A concepção de obras
grandes se modificou com o aperfeiçoamento das técnicas. Os métodos de
reprodução técnica que miniaturizam os objetos têm como fim estabelecer
um grau de domínio do homem sobre o objeto.

2
Aura no sentido de figura singular que é composta por aspectos espaciais e temporais.

Cristopher Costa de Mattos


132
Mas as ênfases mudam completamente se abandonamos a foto-
grafia como arte e nos concentramos na arte como fotografia.
Cada um de nós pode observar que uma imagem, uma escultura e
principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia
que na realidade. (BENJAMIN, 1994a, p. 105)

Os adeptos da fotografia advindos das artes plásticas compuseram uma


vanguarda de especialistas contra a comercialização da fotografia. Porém,
se a fotografia se libertasse/emancipasse de interesses políticos e científicos,
os elementos individuais iriam se contrapor, refletindo o que é considerado
“criatividade”. Contudo essa criatividade mostra-se capaz de realizar inúme-
ras montagens, entretanto, é incapaz de compreender os contextos humanos
nos quais se insere. “Com efeito, diz Brecht, a situação ‘se complica pelo fato
de que menos que nunca a simples reprodução da realidade consegue dizer
algo sobre a realidade’” (BENJAMIN, 1994a, p. 106).
A necessidade do domínio da técnica no início da história da fotogra-
fia auxiliou na aproximação e na inserção no contexto no qual foi produzida
a imagem. A relevância disso é que houve uma contribuição para a análise
da imagem, dado que o conhecimento a respeito das relações que com-
põem o que foi retratado aprimoram a capacidade interpretativa do espaço
e sua representatividade (CIAVATTA e CAMPELO, 2006).
Walter Benjamin (1994a) já havia afirmado em sua obra que o avan-
çar da técnica traria a possibilidade de interesses lucrativos. Isso pode ser
identificado hoje no que diz respeito à imagem digital e à manipulação.
Além disso, a indústria cultural também tem um importante papel na (re)
produtibilidade, com mero valor de troca dessas imagens, e inclusive na
alienação do produtor do objeto fotográfico, uma consequência dos diver-
sos mecanismos advindos da evolução.
É necessário estudar a fotografia considerando-a como instrumento de
mediação que se introduz entre o homem e a natureza, e que participa
de uma construção do mundo muitas vezes ao dispor de lentes ideológi-
cas. Esse poder de aprisionar a imagem fotográfica refletiu-se no questiona-
mento da credibilidade que a fotografia adquiriu, principalmente no que diz
respeito à atualidade. Esse questionamento advém da capacidade que as ino-

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


133
vações técnicas possibilitam de corroborar o real – e, em paralelo a isso, do
senso comum, que ainda crê na máxima de que se pode depositar confiança
naquilo que se pode ver.
Em face dessas novas tecnologias, foram criadas estratégias como
marcos reguladores, a fim de impedir a inserção de insidiosas técnicas de
persuasão do senso comum. Esse patamar aborda os meios jurídicos e vai
além do consumismo, apresentando, como dito anteriormente, forte ligação
com a atual configuração da indústria cultural contemporânea, além de
interferências de ideologias relacionadas com o sistema econômico e os
meios de comunicação.
Entretanto, este trabalho não tem como foco o estudo da imagem
fotográfica no âmbito da publicidade. Vale ressaltar que, ao abordar os
aspectos que a fotografia foi incorporando ao longo da história, explicita-
se o papel fundamental de credibilidade que a imagem tem para o campo
da pesquisa científica.

CONCEPÇÕES DO CAMPO DA VIGILÂNCIA EM SAÚDE

Vigilância em saúde compreende a articulação


entre as subáreas da vigilância epidemiológica,
vigilância ambiental, saúde do trabalhador e ges-
tão, política e planejamento. Entendida como um
campo que integra diversas áreas de qualidade
de vida da população. Nesse sentido, a vigilância
em saúde aborda tema como política e planeja-
mento; territorialização; epidemiologia; processo
saúde-doença; condições de vida e situação de
saúde das populações; ambiente e saúde e pro-
cesso de trabalho.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

A construção da vigilância em saúde é decorrente de debates ocorri-


dos em meados da década de 1990 visando aprimorar e criar práticas em
saúde que buscassem integrar a epidemiologia, o planejamento e a orga-
nização da assistência à população (TEIXEIRA e COSTA, 2003; TEIXEIRA,

Cristopher Costa de Mattos


134
2002). A preocupação inicial era a identificação das necessidades da po-
pulação em determinadas áreas de abrangência das unidades de saúde.
A oferta dos serviços de saúde é o espaço da articulação entre o campo
epidemiológico e execução das ações para resolver os problemas do territó-
rio. Entretanto, o processo de construção da vigilância da saúde até adquirir
essa denominação ocorreu após a articulação de conhecimentos técnicos a
respeito da epidemiologia, do conhecimento no âmbito das ciências da saúde
e do planejamento, apresentando uma concepção ampliada de modelo as-
sistencial (TEIXEIRA, PAIM e VILASBOAS, 1998).
No IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia, os acadêmicos e pro-
fissionais identificaram e debateram, segundo Teixeira, Paim e Vilasboas
(1998), com base em três vertentes. A primeira vertente era a da vi-
gilância da saúde como análise das situações de risco e tinha como
característica a restrição ao monitoramento das condições de saúde
da população e a não incorporação do planejamento e da interven-
ção. A segunda vertente entendia a vigilância da saúde como proposta
de “integração” institucional entre vigilância epidemiológica e vigilância
sanitária, ou seja, a criação de instituições dentro do SUS, responsáveis
por administrar organizações criando superintendências, laboratórios de
saúde pública e programas especiais, como campanhas antitabagismo.
Já a terceira vertente abordava a vigilância da saúde como uma redefini-
ção das propostas sanitárias que se fundamenta no debate do princípio
da integralidade das ações de saúde, dos serviços de saúde, da promo-
ção da saúde e das estratégias da vigilância sanitária. Vale ressaltar que
a construção da vigilância da saúde como modelo de atenção integral está
relacionada também a fatores econômicos, sociais, demográficos e epide-
miológicos da população.
Com base na terceira perspectiva, é possível notar a atuação da
vigilância da saúde em diversos campos, da organização à prevenção,
buscando integrar também políticas intersetoriais e ações da população.

A implementação da vigilância da saúde, por tanto, é um


processo complexo, que “articula o enfoque populacional”
(promoção), o “enfoque de risco” (proteção) e o “enfoque

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


135
clínico”, constituindo-se de fato como uma forma de pensar
e agir em saúde, ou seja, uma referência para formulação
de propostas e uma estratégia de organização de um con-
junto heterogêneo de políticas e práticas que assumem con-
figurações específicas de acordo com a situação de saúde
da população em cada país, estado ou município (território).
(TEIXEIRA e COSTA, 2003, p. 7)

A vigilância em saúde vai além da relação profissional entre saúde e


território, pois busca incorporar a população organizada que é objeto em-
pírico das características do território. Essa ampliação incorpora médicos e
a população, além de incluir a tecnologia de planejamento e de comunica-
ção, estimulando a mobilização e a organização dos atores na condição de
vida e saúde encontradas no território.
Os âmbitos da vigilância em saúde englobam ações governamentais,
de instituições e entidades, e não governamentais, como associações de mo-
radores, líderes religiosos e representantes de projetos sociais, constituindo
uma prática que não é monopólio dos profissionais de saúde.
Atualmente, os debates no campo da vigilância em saúde ocor-
rem em torno da elaboração de propostas. A vigilância implica mudan-
ças na forma de organização de trabalho dos profissionais de saúde e
a revisão do processo saúde-doença-cuidado. Destacam-se as partici-
pações coletivas tanto dos profissionais, na forma de pensar a saúde,
quanto da prática social, ou seja, da população como organismo enga-
jado nas práticas de saúde, serviços e ações (ESCOLA POLITÉCNICA
DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO, 2005).
O aprendizado deve desenvolver a visão crítica dos conhecimentos e
práticas no âmbito profissional e social, além de ser adequado às necessi-
dades que surgem para aqueles que fazem parte do processo de construção
e manutenção da saúde da população.
Além do conhecimento teórico relacionado ao âmbito das vigilân-
cias, a articulação entre áreas do conhecimento permite a interação com
diferentes formas de expressão e de representação da população, poten-
cializando suas singularidades socioculturais, favorecendo, assim, a rela-

Cristopher Costa de Mattos


136
ção entre o conhecimento técnico e os temas e problemas que a ampla
área da vigilância em saúde aborda: sanitários, epidemiológicos, saúde
do trabalhador, ambientais, dentre outros.
No curso técnico de Vigilância em Saúde, os alunos são distribuí-
dos em três territórios. São quatro os módulos, que são distribuídos em três
anos e divididos em quatro vigilâncias: epidemiológica, ambiental, sanitária
e saúde do trabalhador, que constituem uma única vigilância em saúde,
mediante a qual são realizadas tarefas previamente estabelecidas no terri-
tório, como marcação de pontos de Global Position System (GPS), mapea-
mento, entrevista com os moradores e estabelecimentos (comerciais, saúde
etc.) e produção de imagens. No último ano, é elaborado o diagnóstico e
um planejamento estratégico situacional capaz de retratar a situação
de saúde e doença no território com base nos dados recolhidos no decor-
rer do curso para elaboração de um plano de intervenção.
Após a ida ao campo, os alunos elaboram um relatório individual
contendo as impressões sobre a respectiva visita ao campo, com o obje-
tivo de facilitar a elaboração do diagnóstico e aprimorar a percepção do
campo. Ainda nesse momento, há a reserva de uma aula para seleção e
legendamento das imagens produzidas. O critério de seleção e legenda-
mento se dá de acordo com a identificação da relação estabelecida entre
o conteúdo absorvido em sala de aula e a percepção do aluno como ator
no campo, sem embasamento teórico específico. Esse acervo de imagens
produzidas em campo, após a seleção e legendamento, têm o objetivo de
denunciar irregularidades no território.
A questão pedagógica tem importante papel na educação profis-
sional em saúde, pois aproveita oportunidades de mudança, buscando
formar novos sujeitos-agentes ético-políticos. A relação entre população,
equipe de saúde e atores políticos também permite compartilhar espaços
institucionais fundamentais para ação/intervenção de práticas da vigilân-
cia em saúde.
A sistematização de ideias acumuladas no decorrer do processo permi-
te o desenvolvimento de propostas que podem ser acionadas pelos profissio-
nais de saúde.

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


137
Conforme observa Teixeira (2002), podemos destacar estudos feitos
no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo que
abordam e problematizam a identificação de questões relacionadas à saú-
de da população e do território, ressaltando a necessidade de conhecer os
problemas de saúde dos indivíduos em situações concretas. Essas propostas
englobam o conceito de “vigilância em saúde”, incluindo suas subáreas de
atuação, apontando para a reorganização das ações de saúde, cujo pro-
cesso não leva em conta as características específicas das populações dos
distintos territórios e as condições concretas da vida, que condicionam o
modo de expressão dos problemas no processo saúde-doença.
No âmbito microrregional, onde é desenvolvido o trabalho de campo
pelos alunos do curso técnico, o desafio consiste na interação entre as áreas
do conhecimento da saúde e a capacidade de analisar e planejar ações que
solucionem a demanda da população, visando à atenção à saúde e às me-
lhorias das condições de vida.
A territorialização no âmbito da saúde se dá no conhecimento das
relações das condições de vida e acesso às ações e serviços de saúde
(TEIXEIRA, PAIM e VILASBOAS, 1998). Essa territorialização tem como ob-
jetivo a análise das condições de saúde e de vida da população, em todas
as atividades humanas, ou seja, social, econômica, cultural etc.
Por meio das fotografias do território é possível notar especificidades
da microrregião, permitindo recolocar o debate político acerca de estraté-
gias que busquem solucionar problemas específicos do contexto aborda-
do, visto que, além de questões políticas, o processo das ações em saúde
envolve um modo de vida.

O OBJETO FOTOGRÁFICO NO CURSO TÉCNICO


DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE DA EPSJV

Com base na articulação dos referencias teórico-metodológicos e no


acesso ao acervo do Lavsa produzido pelos alunos do curso técnico no traba-
lho de campo, é possível identificar “aspectos mais críticos ou contraditórios

Cristopher Costa de Mattos


138
que os sujeitos sociais diretamente envolvidos nas atividades institucionais não
logrem aprender” (CIAVATTA, 2002, p. 322).
Segundo Ciavatta (2002), para estabelecer a relação de sentido
entre o “falar” da imagem e o sujeito leitor é necessário recorrer a outros
tipos de textos ligados ao mesmo tema da imagem fotográfica. Em sua
pesquisa, nota-se a importância da intertextualidade como exigência,
a fim de possibilitar a interpretação de um texto que desempenha um
papel social mediante a contextualização da imagem. Essa contextualiza-
ção depende da associação com outros textos que tenham características
comuns a ele e possibilitem a criação de uma identidade por intermédio
da sua representação em determinado contexto histórico-social.
O processo de pesquisa foi construído com base nas seguintes etapas:
primeiramente, o contato com o acervo fotográfico para a percepção dos te-
mas retratados no banco de dados do Lavsa. Foi necessário também consultar
documentos escritos que possibilitassem a compreensão da metodologia de
produção de imagem dentro do Lavsa e qual a relação entre a fotografia e o
trabalho de campo.
Num segundo momento, foi feita a identificação dos temas, a elabo-
ração dos códigos e a criação de critérios de identificação mediante uma
categorização preliminar a fim de possibilitar uma visão geral do banco de
imagens produzidas no trabalho de campo, como a divisão do acervo por ano
e tema. Isso tem como fim permitir a articulação entre imagens produzidas
no trabalho de campo e as transformações do território, bem como a
relação das imagens produzidas com os conteúdos abordados em sala
de aula.
Vale ressaltar que a consulta a materiais informativos sobre a histó-
ria da vigilância em saúde e sua contextualização teve papel fundamental,
pois enriqueceu a representação das fotografias. Utilizando a intertex-
tualidade, foram pesquisados os relatórios dos alunos, as entrevistas,
as sistematizações e o legendamento das fotos produzidas no trabalho
de campo.
O banco de dados do Curso Técnico de Vigilância em Saúde conta
com aproximadamente 1.600 imagens. Foram selecionadas duas fotografias

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


139
do banco de imagens cuja prioridade é a identificação da intertextualidade
entre a fotografia do território e as áreas de atuação da vigilância em saúde.
A seleção das fotos foi feita com base no relatório de diagnóstico do
território estudado por três anos (2009-2011), no qual foram identificadas as
mudanças durante o desenvolvimento do trabalho e o olhar da produção da
fotografia. O registro de imagens do processo saúde-doença e do território tem
como objetivo principal o seu diagnóstico, havendo a necessidade da constru-
ção de legendas.
As duas fotos selecionadas foram utilizadas no diagnóstico apre-
sentado aos profissionais de saúde locais pelos alunos no ano de 2011 e
retratam o trabalho desenvolvido durante esse período de monitoramento
e recolhimento de informações dos territórios, assim como as múltiplas
representações de irregularidades contidas naquele contexto.
Nos registros, o processo de saúde-doença identificado nas irregula-
ridades, unido à necessidade de utilização de legendamento das fotografias,
legitima essa metodologia para o curso técnico, visto que a análise crítica con-
tribui na interpretação, mediante a articulação entre as áreas de conhecimento.
A seleção das duas fotos oriundas dos projetos de intervenção dos territó-
rios estudados nesse período foi realizada de forma aleatória. Contudo, as fotos
selecionadas deveriam expressar de forma significativa uma situação de risco
à saúde coletiva que expresse a necessidade de uma intervenção do poder pú-
blico, da sociedade civil organizada e da população. Foram selecionadas fotos
que abordavam situações do campo da vigilância epidemiológica.
O conjunto de discentes do curso técnico utilizou máquinas semipro-
fissionais, além de outros equipamentos disponibilizados pelo Laboratório
Profissional de Vigilância em Saúde para as atividades de campo, como
gravadores de áudio e aparelhos GPS.
Importante ressaltar também o papel da imagem como ferramenta
dentro do campo da vigilância sanitária, pois auxilia na compreensão e na
percepção de infrações sanitárias.

Cristopher Costa de Mattos


140
Figura 1. Rua longe do centro comercial de Cosmorama (Mesquita/RJ).
(Autoria desconhecida, 2009).

A falta de pavimentação nas ruas é comum em grande parte das ruas


do território Jacutinga, localizado no município de Mesquita, estado do Rio de
Janeiro. Podemos notar também uma infraestrutura carente das casas, que,
com a consulta dos dados obtidos por meio das entrevistas, revela a condição
socialmente precária dos moradores. A falta de pavimentação, associada às
chuvas, tem como consequência os alagamentos frequentes. Esses alagamen-
tos, além de danificarem as estruturas das casas que já são precárias, tam-
bém apresentam riscos de doenças à população, como leptospirose, doença
transmitida pela urina de ratos. Vale ressaltar também a poeira como causa
de problemas respiratórios, reclamação que foi constatada nas entrevistas,
exemplificando como o meio ambiente está relacionado com as condições de
saúde da população.

Figura 2. Esgoto a céu aberto no bairro BNH (Mesquita/RJ).


(Autoria desconhecida, 2010).

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


141
As questões relativas à infraestrutura sanitária e ambiental do local,
módulo respectivo ao segundo ano do curso, são o contexto da figura 2.
Nota-se a presença de esgoto a céu aberto; no entanto, algumas caracterís-
ticas, como as de onde o esgoto está localizado e quais os riscos que pode
trazer – por exemplo, caso esteja próximo a uma praça onde pessoas, prin-
cipalmente crianças, pratiquem atividades lúdicas, podendo oferecer riscos à
saúde caso entrem em contato com esta água contaminada – poderiam ser
mais exploradas pela projeção do olhar na produção da imagem.
Esse tipo de realidade é encontrado em grande parte dos territórios em
que os alunos desenvolveram esse trabalho, e o recorte dessa realidade pela
fotografia possibilitou aplicar a intertextualidade, abarcando a área de co-
nhecimento da vigilância e a produção da imagem com cunho denunciativo.
A desigualdade é notável, enquanto os centros dos bairros possuem sanea-
mento básico, algumas ruas mais distantes são insalubres e permitem uma
reflexão a partir da atenção que o governo tem oferecido aos moradores do
bairro BNH, em Mesquita/RJ.
Destaca-se a necessidade de intervenção da vigilância ambiental
em saúde, mais especificamente da Vigilância Ambiental em Saúde de
Populações Expostas ou Sob Risco de Exposição a Solos Contaminados
(Vigisolo). Essa área da vigilância tem como objetivo identificar áreas que
ofereçam riscos, desenvolver ações locais, procurando articular âmbitos
intra e intersetoriais, e programas de educação à população, além de
avaliar riscos e capacitar profissionais para intervenção em áreas que ne-
cessitam do serviço.3
As entrevistas feitas pelos alunos, com o auxílio dos preceptores
de campo, possibilitaram notar a visão da população do município de
Mesquita�����������������������������������������������������������������
, como a situação local de saúde, infraestrutura e condições edu-
cacionais. Os registros das observações diretas durante as visitas permitiu
chegar a conclusões sobre os bairros de BNH, Cosmorama e Jacutinga. É
importante notar que nenhum dos alunos do curso técnico vivia em algum
dos territórios e, portanto, eles possuíam uma visão de observadores ex-
ternos àquela realidade.

3
Ver: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/programa_vigisolo.pdf.

Cristopher Costa de Mattos


142
No terceiro ano de curso, após dois anos coletando informações, os
alunos deveriam elaborar um plano de intervenção. Após a coleta de informa-
ções do território e o diagnóstico local, foi elaborado o plano de intervenção
que consiste em um conjunto de ideias a fim de por em prática para a melhora
da condição de vida e de saúde da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A coleta de dados inclui os dois campos abordados neste artigo, a


fotografia e o campo das ciências da saúde, especificamente, o campo
da vigilância em saúde. Saber o contexto no qual a representação da rea-
lidade por meio da fotografia surgiu e as questões que surgiram após, mos-
tra ser um conhecimento indispensável para o entendimento das mediações
que podem ser feitas, gerando conhecimento e aprimorando a visão crítica.
Os avanços da fotografia possibilitaram a inserção no âmbito da vigi-
lância em saúde como ferramenta para a identificação e denúncia de irre-
gularidades no território e na representação da realidade do território incluindo
suas transformações e singularidades. Sendo assim, foi possível articular a
fotografia e a área de conhecimentos da saúde, auxiliando na formação e
atuação do profissional de vigilância em saúde.
A fim de aperfeiçoar o olhar do leitor, foi necessária a abordagem do
campo da vigilância em saúde visto que o trabalhador desta área precisa ter
a capacidade de identificar os problemas relacionados à saúde no território
onde desenvolve o seu trabalho. Isso é importante, pois a saúde é definidora
das condições de vida da população como um todo e as propostas devem
estar relacionadas diretamente ao âmbito da saúde pública.
Portanto, o vínculo entre o conhecimento da teoria e sua aplicabilidade
é fundamental para o desenvolvimento do trabalho do técnico de vigilân-
cia em saúde. Os conhecimentos teóricos no campo das ciências da saúde,
em articulação com a importância da imagem fotográfica, ampliam a capa-
cidade de diagnóstico do território, contribuindo para o processo de trabalho
do técnico de vigilância em saúde, que é observar, identificar, planejar e agir.

Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cristopher Costa de Mattos


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Produção da imagem fotográfica no âmbito do Curso Técnico de Vigilância em Saúde


145
O TROPICALISMO NA CULTURA
BRASILEIRA

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves*

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto o tropicalismo, movimento cul-


tural acontecido no Brasil no final da década de 1960. Embora tenha havido
manifestações consideradas tropicalistas em outros campos da cultura, a ver-
tente musical foi a que mais se desenvolveu, e será o foco deste trabalho. O
objetivo é apontar o impacto que o movimento causou na música brasileira,
dividindo opiniões em sua época, mas influenciando artistas que o seguem
até os dias de hoje.
Sendo a incorporação de características de diversos outros movi-
mentos culturais um atributo fundamental do tropicalismo, é necessário que
seja compreendida a realidade cultural na qual ele surgiu, assim como as
manifestações anteriores que o influenciaram. Nota-se que o movimen-
to teve proximidade com outros, tanto de ordem musical, como a bossa
nova, quanto do campo da literatura, como o modernismo e o concre-
tismo. Outro fator que muito influenciou o curso do movimento foi o
complexo quadro político vivido pelo Brasil durante a década de 1960.
É preciso, portanto, compreendê-lo para se entenderem alguns aspectos
do movimento.

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Gerência em Saúde (2009-2011). No trabalho de construção de sua mono-
grafia de conclusão de curso, contou com a orientação do professor-pesquisador Marco Antônio
Carvalho Santos (doutor em Educação) do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional
em Saúde (Labform). Contato: goncalvesdayanna@gmail.com.

O tropicalismo na cultura brasileira


147
A chegada de João Goulart ao poder, em 1961, foi conturbada, uma
vez que setores conservadores o apontavam como uma ameaça, relacionan-
do a sua imagem ao comunismo, num período histórico marcado pela Guerra
Fria. Sendo ele o vice-presidente, com a renúncia de Jânio Quadros, o posto
de presidente deveria ser passado a ele. Porém, como Jango se encontrava na
China, o presidente da Câmara, Ranieiri Mazzilli, assumiu temporariamente
a Presidência da República, condição que os militares tentaram estender. Em
oposição, outros políticos organizaram a Campanha da Legalidade, como
forma de conseguir apoio para o vice-presidente.
Em resposta ao impasse criado por essa oposição de interesses, o Con-
gresso Nacional determinou a mudança do regime de governo para par-
lamentar, como uma maneira de atender parcialmente aos dois grupos de
interesse. Com isso Jango é empossado na presidência, mas tem poder
de decisão limitado. Dois anos depois, em 1963, o povo optou, por meio de
um plebiscito, pela volta do sistema presidencialista.
O presidente defendia a adoção das Reformas de Base, com uma dis-
tribuição mais igualitária de renda, o que novamente levou ao aumento da
tensão política. Enquanto instituições como a União Nacional dos Estudantes
(UNE) e as ligas camponesas apoiavam essas propostas, tais reformas se con-
trapunham diretamente aos interesses dos grandes proprietários. Essas dife-
rentes manifestações culminaram na marcha das tropas de Juiz de Fora rumo
ao Rio de Janeiro, tendo em vista a deposição de João Goulart. O presidente
viajou para o Rio Grande do Sul, em uma tentativa de reunir forças contra o
golpe, mas os militares conseguiram muitos aliados e foi impossível reagir. Em
31 de março de 1964, as forças militares deram o golpe de Estado. A partir de
então o poder executivo passou para as mãos do marechal Castello Branco,
tornando-se o regime uma ditadura militar.
Seu mandato durou até março de 1966 e durante esses anos foram emi-
tidos os atos institucionais (AIs) 1, 2, 3 e 4. Dentre as principais determinações
desses atos, estão: a permissão ao governo para modificar a Constituição e
suspender os direitos políticos de quem se julgasse estar ameaçando o regi-
me; a dissolução dos partidos políticos já existentes e a criação da Aliança
Renovadora Nacional (Arena) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB)

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


148
como únicos partidos; o estabelecimento de eleições indiretas; e a convoca-
ção extraordinária do Congresso Nacional para a discussão do projeto que
viria concretizar a Constituição de 1967.
Foi um período de grande restrição política, com o bipartidarismo e a
cassação de políticos de oposição. Não houve, porém, durante o governo de
Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) grande intervenção direta
na produção cultural do país, apenas atos de censura isolados.
Em 1967, entretanto, o general Artur da Costa e Silva subiu ao poder,
como candidato único pela Arena. Diferentemente de seu antecessor, Costa
e Silva era integrante do grupo de militares mais radicais, conhecidos como
“linha dura”. Sob seu governo foi estabelecido, o AI-5, que decretava o re-
cesso do Congresso por tempo indeterminado, dava poderes quase absolutos
ao Executivo, proibia manifestações contrárias ao poder e institucionalizava a
censura aos meios de comunicação de massa.
O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), criado em
1924 com a função de assegurar a ordem política no país, teve intensa
atuação durante a ditadura militar. Como forma de cumprir seu objetivo
de manter a ordem política, o Dops investigava e reprimia atividades
consideradas contrárias ao regime. Era usual a perseguição política,
sendo a tortura e o assassinato algumas das ferramentas utilizadas para
evitar qualquer tipo de movimentação contra o poder vigente, inclusive
o que consideravam atentados à moral e aos bons costumes e algumas
manifestações de ordem artística, como peças e músicas. A censura se
generalizou, obrigando os artistas a fazerem uso de figuras de linguagem,
como a metáfora, para mascarar seu discurso, em uma tentativa de
contornar essa limitação.
No campo musical, a União Nacional dos Estudantes desenvolveu,
desde 1961, o Centro Popular de Cultura (CPC), com uma produção cultural
politicamente engajada. Buscava-se uma expressão da nacionalidade, uma
representação do Brasil que não estivesse limitada nem geograficamente,
como no regionalismo, nem socialmente, como na representação de uma
classe. Nem todos os participantes eram defensores do comunismo, como
afirmava a direita, mas eles trabalhavam em prol da cultura nacionalista

O tropicalismo na cultura brasileira


149
de esquerda e, por isso, eram apoiados pelo Partido Comunista Brasileiro.
Como resposta do governo a esse caráter supostamente comunista, a UNE
foi oficialmente fechada logo no primeiro governo militar.
Os artistas, porém, continuavam a agir. No final do ano do golpe
foi lançado o show Opinião, integrado por Nara Leão, Zé Keti e João
do Vale, que não tinha caráter explicitamente contestador, mas obteve
apoio ideológico de diversos grupos sociais, que o viam como referên-
cia para a insatisfação com a situação social do país.
Em 1965 foi ao ar na TV Excelsior, o I Festival de Música Popular
Brasileira, dando início à era dos festivais. Esses festivais se caracterizavam
pela apresentação ao vivo de diversas músicas inéditas, dentre as quais
seriam escolhidas finalistas para concorrer a prêmios, sendo o principal
deles o de “melhor canção” (CALDAS, 2005).
Não havia um estilo específico que caracterizasse as músicas de festival.
Os festivais contaram com a participação de artistas ligados à Jovem Guarda,
como Roberto Carlos, ao tropicalismo, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Os Mutantes, ao Opinião, como Nara Leão e Zé Keti, e à bossa nova, como
Jair Rodrigues e Wilson Simonal, além de outros não ligados a movimentos ou
grupos específicos, como Chico Buarque, Elis Regina, Geraldo Vandré, Nana
Caymmi, entre outros. Esses exemplos deixam claro o caráter multifacetado
das apresentações em festivais (MELLO, 2003).
Alguns meses depois do primeiro festival, foi ao ar pela primeira vez
o programa Jovem Guarda, veiculado pela TV Record de São Paulo e apre-
sentado pelo cantor e compositor Roberto Carlos, na companhia de Erasmo
Carlos e Wanderléa. O programa semanal, centrado na música influenciada
por artistas britânicos e norte-americanos, principalmente Elvis Presley e The
Beatles, rapidamente conquistou o público juvenil. Mesmo considerando que
a televisão na época não era ainda acessível à maioria da população, o pro-
grama aos poucos se transformou em um dos maiores fenômenos da época.
A Jovem Guarda foi responsável pela criação de uma cultura juvenil no Brasil,
na medida em que teve suas gírias e estilos de roupas e cabelo adotados pelos
telespectadores. Dessa forma, surgia o estilo jovem como forma de diferen-
ciação entre a juventude e os mais velhos, preocupação que antes não existia.

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


150
A situação acima exposta foi o cenário no qual o movimento tropicalista se
desenvolveu, sendo imensamente influenciado por ele, ao mesmo tempo em
que o influenciou. Portanto, torna-se imprescindível compreender essas carac-
terísticas do quadro político e dos demais grupos culturais da época para se
entender o tropicalismo como um todo.

INFLUÊNCIAS

Algumas das principais influências do tropicalismo são a bossa


nova, o movimento modernista e a poesia concreta. Em entrevista, Augusto
de Campos perguntou por uma definição do movimento, e a resposta de
Caetano Veloso foi: “O tropicalismo é um neoantropofagismo” (VELOSO
apud CAMPOS, 1993, p. 207). Ao mesmo tempo, o tropicalismo pode ser
encarado como o resultado do esforço de Caetano Veloso por retomar a
linha evolutiva da música brasileira que, segundo o próprio, encontrava-se
estagnada desde a obra de João Gilberto e a bossa nova. A seguir, serão
destacadas as principais características de alguns dos movimentos que in-
fluenciaram de forma mais significativa o movimento tropicalista: o moder-
nismo, o concretismo e a bossa nova.

Modernismo
De 13 a 17 de fevereiro de 1922, aconteceu em São Paulo a
Semana de Arte Moderna, organizada por artistas como Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral
e Villa-Lobos. O evento foi aberto com uma palestra de Graça Aranha,
com posterior apresentação de músicas e exposição de pinturas e escul-
turas e deu projeção ao movimento modernista, que se dividiu em di-
versos grupos (WALDMAN, 2010).
Um dos grupos era o Pau-Brasil, surgido a partir do Manifesto da
Poesia Pau-Brasil lançado por Oswald de Andrade em 1924, no qual o es-
critor se coloca contra a poesia “de importação”, afirmando ser necessário
que a arte não fosse feita simplesmente por meio de técnicas, mas também

O tropicalismo na cultura brasileira


151
que se aplicassem características brasileiras às obras, levando à expressão
de uma identidade nacional.
Outro grupo era o Verde-Amarelo, que contava com a participa-
ção de Plínio Salgado e defendia o rompimento completo com qualquer
influência europeia. Posteriormente, o grupo viria a se ligar ao integra-
lismo, doutrina conservadora, considerada uma espécie de nazifascismo.
O integralismo tem sua base na instituição da família, é contra o comu-
nismo e o liberalismo, e defende o nacionalismo, a moral religiosa, uma
política completamente meritocrática e a integração nacional, com o fim
dos regionalismos e a homogeneização cultural (FRENTE INTEGRALISTA
BRASILEIRA, 1932).
O grupo Verde-Amarelo teve como ramificação o Grupo da Anta e, em
resposta ao surgimento desse, de caráter conservador, Oswald de Andrade
escreve, em 1928, o Manifesto Antropofágico. Com esse manifesto, Oswald
inicia o antropofagismo, cuja principal ideia é a de que a assimilação da cul-
tura mundial é válida para a formação de uma cultura nacional, porém essa
assimilação não deve se dar de forma passiva (ANDRADE, 1928).
O título diz respeito à prática canibalesca dos índios, que consistia em
se alimentarem da carne de prisioneiros de guerra, mas limitando-se àqueles
que demonstrassem maior coragem e sabedoria. Acreditavam que, ao inge-
rir a carne do outro, seria possível adquirir as suas qualidades. Fazendo um
paralelo entre o ritual indígena e a arte modernista, percebe-se que, para
ela, os adversários cujas características deveriam ser assimiladas eram as
manifestações artísticas estrangeiras. A antropofagia, portanto, representava
a absorção das ditas melhores características da arte mundial, unindo-as ao
brasileiro, de forma a desenvolver uma nova arte nacional.

Concretismo
O concretismo se difundiu no Brasil em meados da década de 1950.
Sua poesia se caracteriza pela importância dada à forma, de modo que já
não há, necessariamente, a formação de versos. As palavras são organizadas
com o objetivo de formar um desenho, ou de obter um formato que, de algum
modo, relacione-se com o conteúdo escrito. Um exemplo desse aspecto

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


152
pode ser notado no poema “Infinito”, de Rodrigo Ferreira, no qual o infinito,
tema da poesia, também aparece na organização das palavras, que se dá
na forma do símbolo matemático que representa o infinito. Além disso, o
formato e a ausência de pontuação deixam em aberto onde a poesia se
inicia e onde ela termina, dando então a impressão de continuidade infinita.

Em vez do uso de imagens, o poema também pode ser organizado


para que seja lido de ângulos diferentes, ou pode-se relacionar o
conteúdo do texto com a sonoridade das palavras nele contidas. É possível
notar ambas essas características no poema de 1957 de Ronaldo
Azeredo, que causa o mesmo efeito tanto ao ser lido da esquerda para
a direita quanto de cima para baixo. Além disso, há o efeito sonoro
causado pela repetição das letras “v”, remetendo ao som emitido por
um carro em alta velocidade. O jogo vocal acompanha, dessa forma, a
organização do texto que se encaminha à formação da palavra “velocidade”.

O tropicalismo na cultura brasileira


153
As características principais do movimento foram resumidas no adjetivo
de James Joyce verbivocovisual, que une os radicais referentes a verbal, vocal e
visual. Dessa forma, o termo reúne os fatores que compõem a poesia concreta:
não uma relação semântica entre palavras apenas, mas uma relação entre o
significado das palavras, o som emitido na leitura em voz alta das mesmas e
a forma que elas assumem quando colocadas no papel (CAMPOS, 2006).

Bossa nova
No final da década de 1950, tornaram-se comuns os encontros no
apartamento de Nara Leão, em que ela recebia artistas como Carlos Lyra e
Roberto Menescal para ouvir e criar músicas. O grupo cresceu gradualmente,
incluindo nomes como João Gilberto, Ronaldo Bôscoli e os irmãos Mário,
Oscar, Iko e Léo Castro Neves. Aos poucos, formou-se o movimento da bos-
sa nova, que teria Tom Jobim e João Gilberto como principais expoentes e
Nara Leão como musa. Essa foi uma das primeiras expressões nacionais a
se definir como um movimento, em contraste com os ritmos anteriores, nos
quais havia grupos com aspectos comuns, mas não uma reunião em forma
de movimento musical.
As principais características da bossa nova são a forte influência do
jazz norte-americano, a abordagem de temas leves, traduzidos na expres-
são de Jobim e Mendonça “o amor, o sorriso e a flor”, e o uso do “canto-
falado”, contrastando-se com a grande valorização da voz característica
dos cantores da “Era do Rádio”. Essa menor preocupação com a impo-
sição da voz teria permitido maior liberdade e sofisticação na criação da
letra das músicas (MEDAGLIA, 1993, p. 72). A parte instrumental apresen-
tava também maior elaboração, como afirma o maestro Júlio Medaglia:

A estrutura musical é mais rebuscada; as melodias são, em ge-


ral, mais longas e mais dificilmente cantáveis, as harmonias mais
complicadas, plenas de acordes alterados e pequenas dissonâncias,
os efeitos de interpretação são mais sutis e mais pessoais, permi-
tindo pequenos artifícios, como silêncios ou pausas expressivas,
assim como detalhes de execução instrumental mais sofisticada.
(MEDAGLIA, 1993, p. 72)

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


154
A nova batida de violão, considerada a marca do movimento, foi
criação de João Gilberto e o tornou mundialmente conhecido.
Na visão de Caetano Veloso (QUE CAMINHOS SEGUIR NA MPB,
1966), a bossa nova foi um momento de evolução na música brasileira que
deveria ser tomado como ponto de partida, para dar continuidade àquela
evolução. Dessa visão nasce o conceito de Caetano de linha evolutiva, a qual
se caracterizaria pela valorização da tradição, ao mesmo tempo em que se
incorporam características modernas, como o compositor afirma:

Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro


dela não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este co-
nhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo
e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos
dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de
criação. [...] João Gilberto para mim é exatamente o momento
em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical
utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente
da música popular brasileira. (QUE CAMINHOS SEGUIR NA
MPB, 1966)

O MOVIMENTO TROPICALISTA

Em abril de 1967, estava em exibição no Museu de Arte Moderna do


Rio de Janeiro a exposição Nova Objetividade Brasileira, de Hélio Oiticica.
Segundo o próprio artista, a obra tinha como objetivo a caracterização
de uma identidade brasileira, a criação de uma arte nacional, que não fosse
pura importação (apud BALSUADO, 2007).
Inspirado por Oswald de Andrade, Oiticica acreditava na antropofagia
como forma ideal para a absorção da cultura internacional. As influências
externas deveriam ser “digeridas” pelas manifestações internas, como afirma
no seguinte trecho:

Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característi-


ca e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e

O tropicalismo na cultura brasileira


155
americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra
e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas,
pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrido, intelectuali-
zado ao extremo, vazio de um significado próprio. (OITICICA apud
BALSUADO, 2007, p. 240)

Na exposição Nova Objetividade Brasileira havia uma obra cha-


mada Tropicália, com o formato de um labirinto, no qual era criado um
ambiente tropical, com areia, plantas e araras, que, segundo o criador,
ora dão a impressão de se estar caminhando entre as ruas estreitas de
uma favela, ora de se estar “pisando a terra outra vez”. Ao fim do labirin-
to, havia uma televisão, que ficava constantemente ligada e se revelava
como a fonte dos sons que podiam ser ouvidos enquanto o espectador
participava da exposição. Oiticica define a obra como “a primeiríssima
tentativa consciente objetiva, de impor uma imagem obviamente ‘brasi-
leira’ ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da
arte nacional” (OITICICA apud BALSUADO, 2007, p. 239).
Com a mesma intenção – a de absorver a cultura internacional na pro-
dução artística sem, entretanto, deixar sua expressão se sobrepor à nacional –,
Veloso compôs sua icônica música, que posteriormente viria a receber o nome
de Tropicália, o mesmo da obra-ambiência, sendo lançada no disco Caetano
Veloso, de 1967. Em seguida, o nome foi utilizado também para se referir
ao movimento cultural que, juntamente com Gilberto Gil, Caetano lideraria:
o tropicalismo.
O tropicalismo foi um movimento que apresentou afinidades com
diversos âmbitos artísticos. Em relação às artes plásticas, tem-se como
exemplo a supracitada obra Tropicália, de Oiticica. No teatro, pode-
se estabelecer uma relação com a peça O rei da vela, montada pelo
Grupo Oficina, liderado por José Celso Martinez Corrêa. A peça, es-
crita em 1933 por Oswald de Andrade, foi encenada pela primeira
vez em 1967. O espetáculo apresentava diálogos fortes e era esteti-
camente inovador, aspecto característico do Oficina, que priorizava o
experimentalismo (FACINA, 2004). A ousadia da peça obteve resposta
positiva do público e da crítica, mas foi perseguida pela censura. Já a

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


156
ramificação musical, liderada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, ga-
nhou destaque, e será o foco neste trabalho.
Apesar de se considerar que o início do movimento tropicalista tenha
se dado em 1968, no ano anterior já podem ser percebidos seus sinais,
pois, no III Festival de Música Popular Brasileira (MPB) da TV Record, ocor-
rido em 1967, foram apresentadas as músicas Alegria, alegria e Domingo
no parque. A primeira, composição de Caetano Veloso, foi defendida por
ele e pelo grupo argentino Beat Boys; a segunda, composta por Gilberto
Gil, teve acompanhamento de Os Mutantes. As músicas conquistaram o
público e o júri, alcançando, respectivamente, o quarto e o segundo lugar
na competição de melhor canção (MELLO, 2003).
Considera-se que o movimento se iniciou a partir do manifes-
to Cruzada Tropicalista, publicado por Nelson Motta (1968) no jornal
carioca Última Hora, artigo no qual o autor tece as características do
movimento de forma bem humorada. Um dos artifícios utilizados é con-
vidar seus leitores a uma suposta festa de lançamento a ser realizada no
Copacabana Palace, em que se serviria “sanduíche de mortadela com
queijo de minas”, sendo tocada música dos anos 1950, mas os trajes
deveriam ser os mais modernos possíveis. Com essa abordagem, Motta
caracteriza o próprio evento imaginário como a essência tropicalista,
mesclando o novo e o antigo, o “requintado” e o popular.
É importante analisar o movimento tendo em vista também as diversas
manifestações culturais com as quais conviveu ou com as quais de alguma
forma se assemelhava. Na época em que a tropicália surgiu, como exposto
anteriormente, o quadro musical brasileiro era caracterizado, entre outras
coisas, por aqueles que tratavam de temas leves, incorporando caracterís-
ticas modernas internacionais, como a Jovem Guarda, e pelos nacionalistas
de esquerda, representados pela MPB (NAPOLITANO, 2001).
Parte da ideia tropicalista é unir ambos esses aspectos, pois seus ex-
poentes acreditavam no discurso político, de forma que muitas de suas mú-
sicas tinham caráter crítico, porém não acreditavam que esse deveria ser
o único tema a ser tratado nas canções. Consideravam válido absorver as
novas tendências estrangeiras, como o uso de guitarras elétricas, na medida

O tropicalismo na cultura brasileira


157
em que essa absorção não anulasse as características nacionais. Era tam-
bém uma proposta tropicalista unir o antigo e o novo, colocando no mesmo
patamar aquilo que era considerado mais moderno e o já deixado para trás,
visto como antiquado (TINHORÃO, 1998).
Por causa desse seu aspecto, o tropicalismo teve recepção negativa
tanto de setores da direita quanto da esquerda, pois ele se opunha à esquerda
na medida em que apresentava características comuns às músicas ditas alie-
nadas e se opunha à direita por se posicionar contra os valores tradicionais,
seja no discurso, seja na forma de se apresentar – o que incluía as roupas e
os penteados extravagantes.
No Festival Internacional da Canção da TV Globo ocorrido em se-
tembro de 1968, Gil concorreu com a música Questão de ordem, acompa-
nhado pelos Beat Boys, mas não foi classificado para a final. Já Caetano
chegou à final com a música É proibido proibir, acompanhado por Os
Mutantes, mas foi desclassificado, após interromper a música e fazer um
discurso, em resposta às vaias contínuas da plateia.
Em outubro de 1968, foi ao ar pela primeira vez o programa Divino����
Ma-
ravilhoso pela TV Tupi, com direção de Fernando Faro e Antônio Abujamra,
no qual Caetano Veloso e Gilberto Gil recebiam convidados diferentes a cada
semana. O primeiro programa contou com a participação de Jorge
Ben, Os Mutantes, Gal Costa e do grupo Os Bichos. Segundo a maté-
ria “Baianos na TV: ‘divino, maravilhoso’”, publicada em 30 de outubro
de 1968 na Folha de S. Paulo: “Quem ficou em casa para ver mais um
programa de televisão, enganou-se e, diante do engano, ou aplaudiu
com entusiasmo ou vaiou com ódio. Indiferente ao que acontecia no
palco, todo decorado com quadros pop de um pintor japonês, é que
não se ficou”. Segundo a matéria, o programa tinha clima anárquico
e os músicos praticavam um “som livre”, apresentando músicas novas
com improvisação, “gritos e movimentos de quadril”. Ao longo dos de-
mais programas, receberam convidados como Tom Zé, Torquato Neto,
Nara Leão, Juca Chaves e Paulinho da Viola.
Em novembro do mesmo ano, Tom Zé foi vencedor do IV Festival de
MPB da TV Record com sua música São São Paulo, meu amor, enquanto

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


158
Gal Costa obteve o terceiro lugar com a canção Divino maravilhoso, de
Caetano e Gil, e Os Mutantes ocuparam a quarta colocação, com 2001,
de Tom Zé e Rita Lee (MELLO, 2003).
Em dezembro de 1968, mesmo mês em que foi promulgado o AI-5,
terminou o contrato de Caetano Veloso e Gilberto Gil com a TV Tupi, e
ele não foi renovado, dando fim ao programa. Duas semanas após a pro-
mulgação do AI-5, ambos foram presos no Rio de Janeiro, onde ficariam
até fevereiro de 1969; a partir disso, foram mantidos em regime de con-
finamento em Salvador. Em julho, após uma apresentação de despedida
em sua terra natal, os dois artistas seguiram, em exílio, para a Europa,
fixando-se em Londres. Gil e Caetano retornaram definitivamente ao Brasil
apenas em janeiro de 1972.
O aspecto crítico não era característica única do tropicalismo, vis-
to que o cenário musical da época era bastante rico e heterogêneo, e
parte dos grupos, ou mesmo artistas individuais, criavam músicas com
conteúdo crítico. Cada um, porém, apresentava-as de forma diferente.
As posturas de Caetano e Gil são mais satíricas e diferem, por exem-
plo, da crítica de tom mais sério que pode ser notada em canções de
Gonzaguinha ou Milton Nascimento.
Comportamento geral, de Gonzaguinha, é um exemplo de crítica mais
direta ao regime, postura dificilmente encontrada nas músicas tropicalistas.
O mais próximo, talvez, em termos de crítica é a música de Caetano Veloso
É proibido proibir,1 na qual o autor propõe uma rebelião – “Derrubar as pra-
teleiras/ As estantes, as estátuas” – contra qualquer tipo de proibição. Ao
contrário do que se poderia deduzir pelo título, a canção não trata da cen-
sura institucionalizada pelo Dops, mas das proibições definidas pela “mãe
da virgem”, pelos “porteiros”, da imposição dos “anúncios da televisão”, ou
seja, qualquer postura que impeça de alguma forma a liberdade.
Em oposição, a música de Gonzaguinha é mais direcionada à
situação determinada pelo governo. Tal crítica pode ser notada em todas
as estrofes, que, com exceção do refrão, contrastam o comportamento que

1
Apesar de ter sido apresentada em 1968 no Festival Internacional da Canção da TV Globo, a música só
foi lançada em disco em 2006, no CD de Caetano Veloso Cinema Olympia – raro e inédito (1967-1974).

O tropicalismo na cultura brasileira


159
se exige da população e a condição de opressão na qual ela se encontra:
“Você deve rezar pelo bem do patrão/ E esquecer que está desempregado”.
Já a referência direta à censura pode ser notada, por exemplo, na estrofe:
“Você deve aprender a baixar a cabeça/ E dizer sempre: muito obrigado/ São
palavras que ainda te deixam dizer/ Por ser homem bem disciplinado”, cujo
terceiro verso deixa bem clara a limitação do discurso existente na época.
Pode-se também fazer um paralelo entre essa música e Panis et circensis (de
1968), uma vez que o refrão de Comportamento geral é: “Você merece,
você merece/ Tudo vai bem, tudo legal/ Cerveja, samba, e amanhã, seu
Zé/ Se acabar em teu Carnaval”. Tanto esses versos quanto aquela música
ironizam o fato de, apesar de todas as condições adversas às quais o povo
estava submetido, o governo esperar que as pessoas se contentassem com
distrações como o samba e o Carnaval.
Em O que foi feito deverá de Milton Nascimento, lançada em 1978,
há trechos como: “O que foi feito, amigo/ De tudo o que a gente sonhou?/
O que foi feito da vida?/ O que foi feito do amor?”. A canção fala da es-
perança perdida, do futuro antes planejado que, por causa de influências
externas, não foi possível alcançar. Já nestes versos: “E o que foi feito/ É
preciso conhecer/ Para melhor prosseguir”, nota-se a importância dada ao
não esquecimento do passado, de que o seu conhecimento é necessário
para a compreensão da realidade atual e para encarar o futuro, uma vez
que os mesmos erros podem ser evitados. A música se apresenta de forma
não conformista, como fica claro nos versos finais “Nem vá dormir como
pedra e esquecer/ O que foi feito de nós” que finalizam a música, um pe-
dido de que o que se fez do Brasil não seja esquecido – um levante contra
a aceitação muda do que é imposto.
Pode-se novamente estabelecer uma comparação com a música
Panis et circensis, uma vez que apresenta um discurso de conteúdo seme-
lhante, porém, com uma abordagem diferente. Enquanto a canção de Milton
Nascimento trata da questão de forma mais sóbria, a de Caetano e Gil faz
uso de suas metáforas para exprimir escárnio, criando imagens caricatas.
Nota-se clima semelhante ao de O que foi feito deverá em Roda viva,
de Chico Buarque (1967), na qual o eu lírico lamenta o fato de a sua própria

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


160
vida não estar sob o seu controle. Exemplos são dados ao longo de cada uma
das estrofes, sendo a segunda delas a mais geral: “A gente quer ter voz ativa/
No nosso destino mandar/ Mas eis que chega roda viva/ E carrega o destino
pra lá”. A canção trata do modo como o tempo passa e a vida segue rumos
inesperados. Considerando o contexto no qual o compositor estava inserido,
é possível interpretar que a roda-viva não eram simplesmente os acasos do
cotidiano, mas uma representação do governo militar. A canção apresentaria,
nesse caso, o fato de a ditadura estar sempre influenciando a vida da popula-
ção, e de ela ser deixada sem a possibilidade de escolha na definição de sua
própria vida.
Com esses exemplos é possível perceber que a mensagem passada
em grande parte das composições tropicalistas não era única. Ímpar,
porém, era a forma dessa mensagem. Tal aspecto pode ser mais bem
observado por meio das análises das músicas apresentadas a seguir.

ANÁLISE DAS MÚSICAS

Em julho de 1968, foi lançado o LP Tropicália ou Panis et Circensis,


o disco mais representativo do movimento tropicalista. Segundo Marcos
Napolitano (2001), o disco foi o grande acontecimento musical do mo-
vimento. Composto por músicas de grande variedade, tanto no que diz
respeito aos temas tratados nas letras quando no ritmo e sonoridade,
contou com as participações, além de Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Tom Zé e Gal Costa, de artistas ligados a diferentes tradições musicais.
Rogério Duprat, responsável pelos arranjos, era maestro de formação
em música erudita, enquanto Os Mutantes formavam uma banda de
rock e Nara Leão era a musa da bossa nova. O disco contém doze fai-
xas, das quais duas serão brevemente tratadas a seguir, Panis et circensis
e Geléia geral.
A terceira faixa do disco, cujo título é compartilhado com o mesmo,
Panis et circensis, é de grande significado para o movimento. A música, com-
posta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve arranjo de Rogério Duprat

O tropicalismo na cultura brasileira


161
e foi gravada pelo grupo paulista Os Mutantes, formado por Rita Lee e os
irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista.
A análise dessa canção começa pelo entendimento do significado do
título da mesma. A expressão em latim, que em português significa “pão e
circo”, refere-se a um artifício usado na Roma antiga para amenizar a rea-
ção do povo em relação às más condições de vida a que era submetido. O
Estado procurava garantir que a população não passasse fome e promover
meios de diversão como uma forma de evitar que se levantassem contra
o poder e exigissem melhores condições de vida. A música sugere, então,
que o mesmo tipo de tratamento estava sendo dado à população brasileira
naquele momento.
A música faz também uma crítica à alienação e ao comodismo das clas-
ses mais altas em relação à realidade nacional. No momento de tensão política
pelo qual o Brasil passava, soltavam-se “tigres e leões nos quintais”, ocorriam
assassinatos em plena avenida Central. Como contraponto, temos os versos
“As pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”. As tais “pes-
soas das salas de jantar” podem ser identificadas no final da música como as
que dialogam, pois se ouvem barulhos de talheres e há falas como “Passe a
salada, por favor”. Elas seriam as de melhores condições sociais, e esse trecho
da música pode ser encarado como uma representação caricaturesca das
mesmas, pela forma como falam umas com as outras e pelo fato de estar
sendo tocada uma valsa de Strauss ao fundo.
Geléia geral é a sexta faixa do disco Tropicália ou Panis et Circensis;
composta por Gilberto Gil e Torquato Neto, é interpretada pelo primeiro.
Essa é também uma música extremamente simbólica no que diz respeito
à definição de tropicalismo. Como o próprio nome sugere, a música se
constrói em cima da combinação de diversos ritmos e imagens.
Em relação à letra, a primeira estrofe anuncia o início de um novo dia
e, ao longo das demais, vão sendo mencionadas diversas figuras que podem
ser tomadas como uma representação do Brasil. É também um reflexo do tro-
picalismo e da forma como ele se propõe a unir o antigo e o novo, o nacional
e o estrangeiro. O exemplo mais forte se dá no refrão: “Ê bumba iê-iê-boi/
Ano que vem, mês que foi/ Ê bumba iê-iê-iê/ É a mesma dança, meu boi”,

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162
no qual se sugere a união do bumba meu boi, uma manifestação folclórica
regional brasileira, com o iê-iê-iê, ritmo novo de origem estadunidense, em
uma única dança.
Outra marca característica do tropicalismo presente na canção é a in-
fluência da arte modernista, notada não só pelo uso do verso livre e pela não
linearidade das estrofes, mas pela citação direta de Oswald de Andrade em
dois versos: “A alegria é a prova dos nove”, retirado do Manifesto An-
tropófago, e “Brutalidade, jardim”, do fragmento 52 da obra Memórias
sentimentais de João Miramar (ANDRADE, 1971).
Outra menção da mistura do brasileiro com o estrangeiro pode ser
notada, dessa vez de forma irônica, no trecho: “Não vê no meio da sala/
As relíquias do Brasil:/ Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra”. Nele,
cita-se um disco do cantor norte-americano como uma “relíquia” brasilei-
ra. Do ponto de vista musical, nesse momento, interrompe-se o ritmo que
estava sendo levado até então, e insere-se em seu lugar um trecho instru-
mental da música When Somebody Loves You, sucesso de Sinatra.
Tal recurso, de intermissão de ritmos com base na letra, é usado mais
de uma vez, sendo outro exemplo os versos: “Três destaques da Portela/
Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade”,
nos quais o instrumental se assemelha à bateria de uma escola de samba.
Outras imagens são inseridas ao longo da canção, completando a
“geleia geral”, como a menção aos povos indígenas, pelos versos “Tumba-
dora na selva-selvagem/ Pindorama, país do futuro”, a histórias de heróis,
em “Superpoder de paisano” ou simplesmente “Maracujá, mês de abril”,
“a folia” e o “céu de anil”.
Já a música Tropicália, gravada em 1967, no LP Caetano Veloso, apesar
de não ter feito parte do disco-manifesto de mesmo título, é um exemplo
substancial da proposta do movimento. A canção se inicia com batidas de
tambores, lembrando as populações indígenas, e sons de animais silvestres
ao fundo, enquanto é recitado um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha ao
rei de Portugal. Esse princípio já denuncia o caráter de retomada, uma busca
do nacional, ao invocar símbolos como o índio e a floresta; ao mesmo tempo
podem-se notar, ao longo da música, arranjos orquestrais.

O tropicalismo na cultura brasileira


163
Em relação à letra, ela acompanha o clima da instrumentação, ora
tensa, ora descontraída. Vale ressaltar que os dois momentos não se anu-
lam, e sim se complementam, de modo que a descontração é também
peça fundamental para a construção da crítica presente na ideia da músi-
ca como um todo.
A mensagem a ser passada por essa canção pode ser interpretada de
inúmeras maneiras. Uma delas seria que a música se refere à escultura pre-
sente em Brasília que representa a Justiça, e que havia sido esculpida poucos
anos antes, em 1961. Essa leitura se mostra mais fundamentada nos versos “Eu
inauguro o monumento/ No planalto Central do país”. Considerando-se que a
escultura da justiça de fato encontra-se sentada, é criada uma imagem de fácil
visualização e forte impacto. A criança, ao morrer pedindo ajuda, evidencia
não só a própria figura de pessoa miserável, mas também a do seu oposto,
que negou assistência. Assim, apresenta-se como uma ilustração real da injus-
tiça sobre a representação simbólica da justiça, de certa forma anulando-a.
Outra interpretação é de que o monumento seria o Brasil em si,
sendo a canção uma caracterização da realidade nacional. O início com a
citação de Pero Vaz de Caminha pode ser encarado como uma introdução
à descrição que viria adiante, uma visão positiva e cheia de oportunidades
que o estrangeiro tinha do Brasil: “Tudo o que nela se planta, tudo cresce
e floresce.” Em seguida, seria trazida uma reflexão do estado atual do país,
do ponto de vista de um brasileiro.
Alternam-se estrofes, de certa forma descritivas, as quase têm parte
instrumental mais tensa, e estrofes de simples exaltação de características
diversas do país, nesse momento o acompanhamento se torna mais rápido
e festivo. Pode-se encarar esse segundo momento como uma representa-
ção da posição passiva do povo, que, diante de toda a situação política
a que é submetido, ainda se contenta em festejar “a bossa, a mulata e
Carmem Miranda”.
Não apenas nesse embate entre as duas partes da música que se
entrecortam, mas também na letra da mesma, é possível notar mais direta-
mente um caráter dualista e contrastante, como se destacará a seguir. No
verso “O monumento é de papel crepom e prata” contrapõem-se a rique-

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


164
za e a simplicidade, representando as gritantes diferenças sociais presentes
no Brasil. Os “olhos verdes da mulata” indicam uma dupla descendência, os
olhos claros advindos dos europeus e a pele escura de herança africana, resu-
mindo em uma personagem a miscigenação característica do povo brasileiro.
Da mesma forma que versos como “Viva a bossa/ Viva a palhoça” se opõem
a “Uma criança sorridente/ Feia e morta/ Estende a mão”, em mais de uma
estrofe pode-se notar internamente a crítica à postura da população. A estrofe
“Em suas veias corre muito pouco sangue/ Mas seu coração/ Balança a um
samba de tamborim”, por exemplo, pode ser encarada da seguinte forma:
o cidadão, mesmo sem ter condições dignas para viver, mostra-se satisfeito
por poder comemorar o carnaval. Pode-se ver nisso, então, uma menção ao
artifício romano do “pão e circo”, já aludido diretamente na música Panis et
circensis, no qual o povo tinha apenas as condições mínimas de sobrevivência,
mas lhe eram oferecidas distrações periódicas, como forma de evitar que se
revoltassem contra o poder. Outra estrofe que pode ser vista com o mesmo
valor é “Domingo é o fino-da-bossa/ Segunda-feira está na fossa”, na
qual o “fino-da-bossa” se referia ao programa televisivo apresentado
por Elis Regina e Jair Rodrigues na época, todos os domingos. Men-
ções a outras manifestações culturais – outros “circos” – podem ser no-
tadas nos versos finais da canção: “Que tudo mais vá pro inferno, meu
bem”, refere-se à Jovem Guarda, ao passo que “Viva a banda” supõe-se
ser uma menção a “A Banda” de Chico Buarque; já o verso final dispensa
explicações, sendo ele simplesmente “Carmen Miranda”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de seu ciclo ter-se dado em um espaço curto de tempo, de


1968 a 1969, o movimento tropicalista causou grande impacto em sua
época e influenciou artistas das gerações seguintes, até os dias atuais.
Sua influência pode ser notada nas figuras ligadas ao que ficou conhe-
cido, na primeira metade da década de 1980, como Vanguarda Paulista
ou Vanguarda Paulistana, grupo de produção de música independente

O tropicalismo na cultura brasileira


165
que compartilhava com o tropicalismo características como a irreve-
rência e a experimentação, numa tentativa de renovação da música jo-
vem. Na mesma década, pode-se notar a influência do tropicalismo nos
movimentos de rock que debatem a influência da música internacional
na brasileira.
O uso característico do movimento tropicalista de mesclar o tipica-
mente nacional com as influências externas pode ser notado no movimento
iniciado pela banda Nação Zumbi, que apresenta traços de ritmos brasilei-
ros, como o maracatu, e internacionais, como o rock e o rap. O movi-
mento, originado em Recife na década de 1990, intitula-se Manguebeat
e teve a sua proposta lançada em dois manifestos, o Manifesto Mangue
1 – Caranguejo com Cérebro (1992) e o Manifesto Mangue 2 – Quanto
Vale Uma Vida. Além da Nação Zumbi, o movimento conta com outras
bandas, como Mombojó e Eddie.
A veia tropicalista pode ser notada também no álbum Tribalistas,
não só pelo fato de ter sido criado por Carlinhos Brown, Marisa Monte
e Arnaldo Antunes, três artistas de origens e estilos diferentes unidos em
um disco coletivo, mas também porque, mesmo individualmente, esses
músicos têm características tropicalistas: Carlinhos Brown mistura regio-
nal e internacional; Arnaldo Antunes é um experimentalista e está ligado
ao concretismo; e Marisa Monte, que interpreta músicas dos mais varia-
dos gêneros.
Além dos limites nacionais, cantores estrangeiros afirmaram ter sido
influenciados pelos tropicalistas, como a banda inglesa High Llamas, o
escocês David Byrne e os americanos Sean Lennon e Beck, que escre-
veu uma canção intitulada Tropicalia. Esse último e David Byrne fizeram
parte do disco Red Hot + Rio 2, lançado por uma organização filan-
trópica em tributo ao tropicalismo com o objetivo de arrecadar fundos
para a luta contra a síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS, do
inglês acquired immunodeficiency syndrome). O projeto contou com di-
versas participações nacionais e internacionais, entre elas, artistas li-
gados ao movimento, como Caetano Veloso e Tom Zé, além de Marisa
Monte, a Orquestra Contemporânea de Olinda, o rapper Emicida, John

Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


166
Legend e as bandas folk Beirut, Of Montreal, Cults and Superhuman
Happiness, entre outros.
Por fim, a exposição das características do movimento tropica-
lista, exemplificadas na análise das canções, juntamente com a panora-
mização do contexto no qual ele aconteceu possibilitam compreender a
forma única como ele se inseriu na realidade sociopolítica da época. É
possível perceber também de que modo interagiu e dialogou com manifesta-
ções culturais contemporâneas a ele, de quais sofreu influência e, ao mesmo
tempo�����������������������������������������������������������������������
, quais influenciou. Com esses dados, obtém-se uma visão do ciclo prin-
cipal do tropicalismo. No entanto, a apresentação breve de alguns exemplos
do legado tropicalista torna perceptível o fato de que, na prática, o movimento
não acabou.

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O tropicalismo na cultura brasileira


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Dayanna do Nascimento Bezerra Gonçalves


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______; GIL, Gilberto. Tropicália ou Panis et Circensis. São Paulo: Philips,
1968. 1 LP.

O tropicalismo na cultura brasileira


169
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
EM SAÚDE: O CASO DOS AGENTES
COMUNITÁRIOS DE SAÚDE NO
ÂMBITO DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA
FAMÍLIA EM MANGUINHOS*

Diana Carolina dos Santos Teva**

INTRODUÇÃO

Na década de 1990, são formulados no Brasil, no âmbito do Sistema


Único de Saúde (SUS), programas que buscam equacionar problemas de
acesso aos serviços de saúde principalmente de segmentos empobrecidos
da população ou de população localizada em meio menos urbanizado e
com baixa cobertura de serviços de saúde.
Baseado em experiências desenvolvidas no Nordeste, o Ministério da
Saúde propôs, em 1991, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde
(Pacs),1 que trabalha com agentes de saúde recrutados entre os moradores
das comunidades assistidas, agentes que desenvolvem, principalmente, ativi-

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), sob o seguinte número de protocolo:
0016.0.408.000-11.b.
**
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Gestão de Serviços de Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Medicina na Universidade
Federal do Rio Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso,
contou com a orientação das professoras-pesquisadoras Márcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini
(mestre em Saúde Coletiva), do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (Lateps), e
Ana Lúcia de Moura Pontes (doutora em Saúde Pública), do Laboratório de Educação Profissional em
Atenção à Saúde (Laborat). Contato: dianateva@gmail.com.
1
Inicialmente, o programa se chamava Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (Pnacs),
passando a ser chamado Pacs a partir de 1992.

Precarização do trabalho em saúde


171
dades educativas e de informação em saúde, sob a supervisão de um
enfermeiro. Em 1994, o Ministério da Saúde criou o Programa Saúde da Família
(PSF), também integrado por agentes comunitários de saúde (ACSs) e en-
fermeiros, mas inseridos numa equipe de saúde formada por médico e auxiliar
ou técnico de enfermagem, tendo uma unidade básica de saúde (UBS)
como referência.
O objetivo inicial desses programas é ampliar a cobertura da atenção
à saúde por meio da atenção básica, visando populações específicas. A partir
de 1997, esses programas são reunidos na Estratégia Saúde da Família (ESF),
passando à condição de modelo de reorganização da atenção à saúde no
âmbito do SUS. A ESF funciona em unidades básicas de saúde, com equipes
que assumem a responsabilidade pela população de um determinado territó-
rio, onde desenvolvem ações de promoção da saúde, prevenção, tratamento
e reabilitação de agravos.
O agente comunitário de saúde faz parte da história dessa estra-
tégia como elemento central para a realização de seus objetivos, sendo
apresentado de forma muito valorizada no discurso das políticas de saúde.
Entretanto, nesse percurso, o ACS de modo geral tem vivido uma série de
situações que apontam em sentido contrário ao desse discurso: o reconhe-
cimento tardio como profissão em 2002, a formação, prevista no formato
inicial e continuado, os vínculos precarizados de trabalho e a baixa remu-
neração salarial.
Este artigo busca refletir sobre a precarização do trabalho dos ACSs na
Estratégia Saúde da Família, tomando os vínculos, a formação, o reconheci-
mento social e o salário desse trabalhador como dimensões inter-relacionadas
dessa precarização. As discussões apresentadas aqui foram produzidas com
base nos resultados obtidos na investigação realizada para o trabalho de con-
clusão de curso do ensino médio técnico em saúde em 2011.
A análise desenvolvida baseou-se na revisão da literatura referente ao
trabalho em saúde, à Estratégia Saúde da Família e aos agentes comunitários
de saúde, debruçando-se também sobre as falas de agentes comunitários de
saúde da ESF do território de Manguinhos, mais especificamente das equipes
ligadas ao Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (CSEGSF) da

Diana Carolina dos Santos Teva


172
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz
(Ensp/Fiocruz).
Foram selecionados três ACSs, um de cada equipe – Parque Carlos
Chagas, Vila Turismo e Parque Amorim/Monsenhor Brito –, dentre as sete
equipes que contemplam o território de Manguinhos e suas áreas delimitadas.
Um dos critérios para a seleção dos agentes foi o maior tempo de trabalho no
grupo, tendo em vista a análise das formas de vinculação.
A escolha por enfocar o ACS advém do fato de se identificar
nesse trabalhador funções importantes e singulares no processo de cui-
dado em saúde, que dependem de certas características que lhe são
específicas, principalmente por ele fazer parte da comunidade, traba-
lhando e vivendo no mesmo território em que busca promover a saúde
da população local.
Para desenvolver essa discussão, este artigo percorrerá os temas
trabalho e trabalho em saúde, caracterizando o trabalho e a formação
do ACS na Estratégia Saúde da Família, buscando configurar os aspec-
tos de sua precarização, para, em seguida, considerá-los em relação às
falas dos ACSs entrevistados.

COMPREENSÃO ONTOLÓGICA E HISTÓRICA


DO TRABALHO

Segundo a definição dada por Liedke (1997), o trabalho é a ener-


gia posta em movimento que tem por finalidade “a transformação dos
elementos em estado de natureza ou, ainda, a produção, manutenção e
modificação de bens ou serviços, necessários à sobrevivência humana”
(LIEDKE, 1997, p. 268 apud RAMOS, 2007, p. 29). O processo de satis-
fação das condições necessárias à existência da vida humana pode ser
considerado um processo de transformação tanto da natureza quanto do
próprio ser humano. É por meio do trabalho que o homem se distingue
do animal, ao ser capaz de projetar uma intenção no seu trabalho, criar
alternativas e tomar decisões (FRIGOTTO, 2009).

Precarização do trabalho em saúde


173
Ramos (2007) e Frigotto (2009) entendem o trabalho como condi-
ção necessária à existência humana em qualquer tempo histórico, mas que
assume formas distintas nos diferentes modos de produção dessa existên-
cia. Portanto, o trabalho tem uma dimensão ontológica e uma dimensão
histórica, o que o caracteriza como uma

[...] atividade que responde à produção dos elementos necessários


e imperativos à vida biológica dos seres humanos como seres ou
animais evoluídos da natureza. Concomitantemente, porém, res-
ponde às necessidades de sua vida intelectual, cultural, social, esté-
tica, simbólica, lúdica e afetiva. Trata-se de necessidades que, por
serem históricas, assumem especificidades no tempo e no espaço.
(FRIGOTTO, 2009, p. 400)

Em outras palavras, o trabalho tem uma dimensão ontológica, que re-


mete ao conhecimento do ser enquanto ser, qualquer que seja o modo de pro-
dução, mas que se realiza e se conforma historicamente, como resultado das
características de um modo de produção específico – por exemplo, trabalho
primitivo, servil, escravo e assalariado (no qual o ACS se insere).
Com base no entendimento acerca do sentido ontológico e histórico do
trabalho, faz-se necessário compreender, nessa mesma perspectiva, o traba-
lho em saúde, especificamente, o trabalho do ACS inserido na ESF.

O TRABALHO EM SAÚDE NA ESF

Compreendendo que as necessidades de saúde de uma determinada


população são histórica e socialmente construídas nas relações que se esta-
belecem entre os indivíduos, entende-se também que essas necessidades são
atendidas por meio de políticas que “expressam os princípios, os valores e as
normas de sociabilidade próprias de determinadas fases de desenvolvimento
do modo de produção capitalista” (RAMOS, 2007, p. 53). Com isso, as ações
para o atendimento dessas necessidades são realizadas de acordo com o
sistema produtivo no qual se inserem os serviços de saúde.

Diana Carolina dos Santos Teva


174
O trabalho em saúde é compreendido como uma prática exercida por
sujeitos que, além de construírem, transformam e intervêm coletivamente,
operando resultados nas condições de vida da população e da sociedade
como um todo. Desse modo, compreende-se a importância depositada no
trabalho em equipe, principalmente na atuação em saúde da família, que,
por sua vez, é operacionalizada através de equipes multiprofissionais2 que
atuam em comunidades particularmente carentes de um serviço público
de saúde que possa suprir a demanda e as necessidades de saúde da po-
pulação e que têm a família como objeto da intervenção em saúde.
O trabalho em equipe na Estratégia Saúde da Família, de acordo
com Peduzzi (2006), é pressuposto e diretriz fundamental para a reorgani-
zação do processo de trabalho em saúde. Entretanto, a autora, assim como
Oliveira e Spiri (2006) e Silva e Dalmaso (2002), considera que ele está
associado à realização de tarefas relacionadas também à divisão social do
trabalho, à desigualdade no trabalho e aos diferentes graus de autonomia
profissional. Essa divisão tem se expressado também como restrição de
algumas atividades, dentre elas a promoção da saúde, que deveria ser
realizada por todos os profissionais inseridos na ESF, assim como o requi-
sito do vínculo com a comunidade, mas que acabam restritos à figura do
ACS, por ele residir na comunidade em que atua. Segundo essas mesmas
autoras, na Estratégia Saúde da Família, é essencial o estabelecimento de
vínculo entre toda a equipe, e não apenas do ACS, e a comunidade.

O TRABALHO DO ACS

Na Estratégia Saúde da Família, o agente comunitário de saúde é o


trabalhador recrutado na própria comunidade em que deve atuar e cujos

2
Essas equipes são compostas por médico generalista ou especialista em saúde da família ou
médico de família e comunidade, enfermeiro generalista ou especialista em saúde da família,
ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Cada equipe de Saúde da Família
deve ser responsável por, no máximo, 4 mil pessoas, sendo a média recomendada de 3 mil.
O número de ACSs deve ser suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um
máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACSs por equipe de Saúde da Família (BRASIL, 2012).

Precarização do trabalho em saúde


175
requisitos para o trabalho foram, durante mais de uma década, saber ler e
escrever, ser maior de 18 anos, ter disponibilidade de 40 horas semanais
de trabalho e espírito de liderança e solidariedade.
Após anos de luta, o ACS teve sua profissão reconhecida em 2002,
por meio da lei nº 10.507. Esse dispositivo legal definiu o SUS como o
âmbito exclusivo da atividade profissional do ACS, que se caracteriza “pelo
exercício de atividade de prevenção de doenças e promoção da saúde,
mediante ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, de-
senvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob supervisão
do gestor local” (BRASIL, 2002). Tanto a lei nº 10.507, de 2002, quanto a
lei nº 11.350, de 2006 (BRASIL, 2006b), que a substituiu, apresentam os
mesmos requisitos para o exercício da profissão de ACS, a saber: residir
na comunidade, haver concluído o ensino fundamental e um curso de for-
mação inicial e continuada.
Atualmente, as atribuições dos ACSs descritas na Política Nacional
de Atenção Básica são:

I. Trabalhar com adscrição de famílias em base geográfica definida,


a microárea;
II. Cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadas-
tros atualizados;
III. Orientar as famílias quanto à utilização dos serviços de saúde
disponíveis;
IV. Realizar atividades programadas e de atenção à demanda es-
pontânea;
V. Acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e in-
divíduos sob sua responsabilidade. As visitas deverão ser programa-
das em conjunto com a equipe, considerando os critérios de risco e
vulnerabilidade de modo que famílias com maior necessidade sejam
visitadas mais vezes, mantendo como referência a média de uma
visita/família/mês;
VI. Desenvolver ações que busquem a integração entre a equipe de
saúde e a população adscrita à UBS, considerando as características

Diana Carolina dos Santos Teva


176
e as finalidades do trabalho de acompanhamento de indivíduos e
grupos sociais ou coletividade;
VII. Desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção
das doenças e agravos e de vigilância à saúde, por meio de visitas
domiciliares e de ações educativas individuais e coletivas nos domi-
cílios e na comunidade, por exemplo, combate à dengue, malária,
leishmaniose, entre outras, mantendo a equipe informada, principal-
mente a respeito das situações de risco; e
VIII.Estar em contato permanente com as famílias, desenvolvendo
ações educativas, visando à promoção da saúde, à prevenção das do-
enças e ao acompanhamento das pessoas com problemas de saúde,
bem como ao acompanhamento das condicionalidades do Programa
Bolsa-Família ou de qualquer outro programa similar de transferência
de renda e enfrentamento de vulnerabilidades implantado pelo gover-
no federal, estadual e municipal, de acordo com o planejamento da
equipe. (BRASIL, 2012)

Diversos autores e documentos institucionais conferem, como


principal característica do ACS, ser o “elo” ou a “ponte” entre o serviço/
Estado e a comunidade. O ACS atuaria, portanto, como um “mediador”,
direcionando-se ao cuidado para com os usuários e englobando
ações que transitam entre a prevenção, a promoção, a recuperação e
a manutenção da saúde da população adstrita. E, se tomarmos essa
dimensão criticamente, esse trabalho

[...] requer pensar criticamente situações vividas e desenvolver ações


mediante essas reflexões; assumir a concepção de educação como
um processo que possibilite a população ver-se como construtora
da sociedade, podendo alterá-la; compreender a saúde como
expressão das condições objetivas de vida, isto é, entender a
saúde na concepção ampliada e crítica. (MOROSINI, FONSECA e
PEREIRA, 2007, p. 22)

A construção do ACS como um sujeito social trabalhador da saúde é


realizada por meio de sua atuação na comunidade e na equipe de saúde da

Precarização do trabalho em saúde


177
família na qual está inserido. Portanto, o seu perfil é construído na sua vivên-
cia, no processo de trabalho e no seu papel junto à comunidade e ao serviço
de saúde.
Entretanto, é importante lembrar que, de acordo com Gomes et
al. (2009), alguns ACSs têm encontrado dificuldades em cumprir com
suas atribuições, por diversos motivos, mas especialmente pelo leque
de exigências às quais estão submetidos, sendo convocados para atua-
rem em diversas necessidades dos programas de saúde e dos serviços,
como também pelas condições econômico-sociais das famílias acompa-
nhadas, que remetem a problemas cujas soluções transcendem o setor
saúde, como a questão da violência, que acomete a maior parte das
comunidades assistidas.

A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DO ACS

Durante a instituição da Estratégia Saúde da Família na década de


1990, cresce no país a flexibilização e a terceirização do trabalho em diver-
sas áreas, entre elas, as da saúde e da educação. Na perspectiva do Estado
gerencial, tem-se a formulação de um modelo político visando ao desenvol-
vimento econômico e à manutenção dos níveis de acumulação do capital,
associados à promoção de políticas compensatórias. A flexibilização dos con-
tratos de trabalho como forma de reduzir os gastos públicos, a terceirização e
a precarização das condições de trabalho, aí incluído o vínculo empregatício,
desmontam conquistas obtidas pela luta organizada dos trabalhadores. Espe-
cificamente na área da saúde, Pires ressalta que se verifica, desde a década
de 1990,

[...] o crescimento do número de trabalhadores sem garantias


trabalhistas de que gozam os demais trabalhadores assala-
riados da instituição. Encontra-se: contratos temporários;
trabalhadores contratados para realizar atividades especiais
(plantonistas em hospitais, por exemplo); flexibilização na
contratação de agentes comunitários de saúde e equipes de

Diana Carolina dos Santos Teva


178
saúde da família pelo governo brasileiro; e o trabalho tempo-
rário previsto no Programa de Interiorização do Trabalho em
Saúde. (2006, p. 198)

De acordo com Morosini (2010), a maioria dos ACSs inseridos nas


equipes de saúde da família pesquisadas pelo Ministério da Saúde no iní-
cio dos anos 2000 estava caracterizada como trabalhadores precarizados,
tendo contratos de trabalho que não lhes asseguravam os direitos prescri-
tos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, muito menos, aqueles
garantidos aos servidores públicos.
De acordo com Pires (2006), o trabalho precário também é ca-
racterizado por algumas entidades sindicais, dentre elas o Sindicato dos
Agentes Comunitários de Saúde (Sindacs) e a Confederação Nacional
dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), 3 como a ausência de
concurso público ou de processo seletivo público para cargo permanente
ou emprego público no SUS. No caso do ACS, tem-se um trabalhador
integrante de programas do SUS, o Pacs e a ESF, contraposto ao fato de
poucos serem servidores públicos e de a maioria se encontrar em moda-
lidades diversas de contratação.
Ao longo do processo de construção da Estratégia Saúde da Fa-
mília, foram sendo discutidas as formas de vinculação institucional dos
ACSs, vinculação vista como um desafio, pois um dos requisitos para o
exercício de suas atividades é morar na comunidade em que atua. O ACS
foi, inclusive, considerado um trabalhador sui generis, visto que sua gênese
estaria exclusivamente na sua origem comunitária, o que determinaria o
seu pendor para a solidariedade. Essa concepção serviu para justificar a
não vinculação direta do ACS com o Estado, visto que as exigências de ele
residir na comunidade e ter forte vínculo com a mesma constituem critérios
que não podem ser exigidos em concurso público.
Segundo Morosini (2010), a precarização do trabalho em saúde não
é algo novo no cenário da saúde pública brasileira, nem restrito aos ACSs.

3
Tereza Ramos, ex-presidente da Conacs, defendeu em uma aula inaugural que proferiu na EPSJV,
em 2011, a necessidade de concurso público para os ACSs como forma de segurança, estabilidade e
desprecarização do trabalho realizado por esses sujeitos.

Precarização do trabalho em saúde


179
Contudo, a precarização do trabalho do ACS deve ser compreendida
para além de sua precária vinculação institucional, relacionando-se
também com a simplificação e o aligeiramento de sua formação pro-
fissional e com a baixa remuneração salarial, que em média ainda está
muito próxima do salário mínimo.

A FORMAÇÃO DO ACS

Observa-se nas leis e portarias apresentadas ou aprovadas durante o


processo de construção da Estratégia Saúde da Família a ausência da exigên-
cia de uma formação profissional para os agentes comunitários de saúde. O
que se produziu inicialmente como requisito para o exercício das atividades
da categoria ACS, como já visto, foi saber ler e escrever, residir na comunidade
e ser maior de idade, não se exigindo, portanto, uma formação prévia para
o exercício da profissão (MOROSINI, 2010). Na lei nº 11.350 (BRASIL, 2006b),
que hoje serve de referência para a profissão de ACS, o requisito escolar e
formativo manteve-se o ensino fundamental e um curso de formação inicial
e continuada, seguindo o que já havia sido preconizado na lei nº 10.507
(BRASIL, 2002), que criou a profissão. Essa situação reforça a tendência ao
aligeiramento e à fragmentação da formação desses trabalhadores, conforme
menciona Morosini (2010).
Entretanto, deve-se registrar que a formação do ACS tornou-se objeto
de formulação de uma política específica que resultou na publicação, em
2004, do Referencial Curricular para o Curso Técnico de Agente Comunitário
de Saúde, que estabelece a formação técnica dos ACSs composta de três
etapas formativas de 400, 600 e 200 horas (BRASIL, 2004). A formação
técnica desses trabalhadores é uma reivindicação da categoria e abre a pos-
sibilidade de sua profissionalização, mas tem encontrado forte resistência,
principalmente dos gestores municipais, que temem demandas de aumento
salarial e a descaracterização do chamado perfil social do ACS.
Dessa forma, o Referencial Curricular para o Curso Técnico de
Agente Comunitário de Saúde continua valendo como diretriz política,

Diana Carolina dos Santos Teva


180
mas permanece inviabilizado. O Ministério da Saúde, em acordo com
os demais gestores do SUS, financia somente a primeira etapa forma-
tiva, o que garante o cumprimento do que é exigido pela lei nº 11.350
(BRASIL, 2006b). Representam exceção os municípios que prescindem
dos recursos federais e nos quais o projeto político de formação técnica
para os ACSs tem se desenvolvido, a exemplo do município do Rio de
Janeiro. Esse município formou, em 2011, a primeira turma de técnicos
em ACS, em curso realizado com base num projeto-piloto de formação
técnica para ACS na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da
Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).4
A situação formativa dos ACSs configura-se como inadequada diante
da complexidade do trabalho por eles realizado, principalmente quan-
do se verifica que ele se realiza no enfrentamento cotidiano de con-
dições adversas. Tais condições exigem não somente a identificação
e a definição de estratégias para suprir as demandas e necessidades
sociais dos indivíduos, mas também a compreensão dessas condições,
sejam elas econômicas, sociais e/ou culturais, para a viabilização do
cuidado em saúde da população assistida.
Considerando a complexidade do trabalho desempenhado pelo
ACSs, compreende-se que ele deveria estar baseado em uma forma-
ção que lhe possibilitasse refletir sobre as diversas questões da edu-
cação em saúde, como também compreender as características do
trabalho que realiza como uma atividade que remete à concepção
crítica do trabalho, segundo a qual a capacidade de pensar/refletir e
agir devem estar sempre atuando juntas para a construção e a trans-
formação da sociedade.

4
É válido ressaltar que a formação dos ACSs na EPSJV/Fiocruz tem o compromisso político com um pro-
jeto de sociedade e de saúde no qual os trabalhadores de nível médio, entre eles os ACSs, têm um papel
fundamental, como sujeitos políticos e técnicos, para a superação das contradições presentes no SUS.

Precarização do trabalho em saúde


181
LOCALIZANDO O CAMPO E OS SUJEITOS DA PESQUISA:
O ACS NO TERRITÓRIO DA ESF EM MANGUINHOS

A referência espacial da investigação que gerou o presente artigo é


o território de Manguinhos, localizado na Zona Norte do município do Rio
de Janeiro e que integra, com os bairros de Ramos, Olaria e Bonsucesso, a
XX Região Administrativa do município. Manguinhos está geopoliticamente
localizado na Área de Planejamento (AP) 3.1 da Secretaria Municipal de
Saúde (SMS). Essa divisão tem por finalidade auxiliar no gerenciamento local
da prefeitura.
Localiza-se no bairro o chamado Complexo de Manguinhos, for-
mado por cerca de quinze comunidades situadas no entorno da Fiocruz,
entre as quais: Parque Oswaldo Cruz, Parque Carlos Chagas, Parque João
Goulart, Vila Turismo, Conjunto Habitacional Provisório 2, Vila União, Vila
São Pedro, Conjunto Nelson Mandela, Conjunto Samora Machel, Comu-
nidade Agrícola de Higienópolis e Mandela de Pedra, além de outras que
se constituíram a partir de ocupações em terrenos de empresas5 que deixa-
ram de funcionar na região.
Os agentes comunitários de saúde entrevistados são moradores e atu-
am em comunidades do Complexo de Manguinhos, integrando as sete equi-
pes de saúde da família vinculadas ao Centro de Saúde Escola Germano
Sinval Faria, da Ensp/Fiocruz. São também egressos do Curso Técnico de
Agente Comunitário de Saúde (Ctacs) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, integrando a experiência-piloto de formação técnica de ACSs no
município do Rio de Janeiro.
Inicialmente, seria entrevistado um ACS de cada equipe, preferen-
cialmente aquele com maior tempo de trabalho do grupo, de forma a que
os trabalhadores selecionados para a entrevista possuíam de 6 a 7 anos
de atuação na equipe de saúde da família em Manguinhos. Esses crité-
rios buscavam atender a dois requisitos: que toda equipe do território de

5
Antigamente, no território de Manguinhos, havia empresas de grande produção, como a Coope-
rativa Central de Produtores de Leite (CCPL), que, ao longo dos anos, ou foram sendo compradas
por outras empresas, ou faliram. Com isso, as famílias passaram a ocupar os espaços que não eram
utilizados ou que estavam abandonados.

Diana Carolina dos Santos Teva


182
Manguinhos estivesse representada na pesquisa e que o maior tempo de
inserção permitisse investigar outras formas de vinculação já praticadas,
além da atual.
Entretanto, nem todos os ACSs selecionados para a realização da pes-
quisa puderam contribuir com a participação nas entrevistas, que acabaram
por se restringir a três ACSs das seguintes equipes: Parque Carlos Chagas, Vila
Turismo e Parque Amorim/Monsenhor Brito. O principal motivo da não parti-
cipação dos ACSs de outras equipes na pesquisa está relacionado à reduzida
disponibilidade dos entrevistados, por causa do trabalho, e da entrevistadora,
em decorrência dos compromissos do último ano do ensino médio técnico.
Para preservar a identidade desses trabalhadores, eles serão cha-
mados de ACS 1, ACS 2 e ACS 3.

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Para a investigação proposta neste estudo, foram definidas qua-


tro categorias a priori: formação, reconhecimento, vínculo e salário;
essas categorias foram selecionadas com base na revisão bibliográfi-
ca sobre o tema do trabalho e da educação dos ACSs, em particular
nos textos sobre a qualificação profissional desses trabalhadores. Tais
categorias, apesar de tratadas separadamente – ou seja, servindo de
base para a produção de grupos de questões distintas no roteiro de
entrevistas���������������������������������������������������������
–, mostraram-se indissociáveis, levantando elementos co-
muns no diálogo com os ACSs entrevistados. As categorias formação e
vínculo foram discutidas anteriormente neste artigo, cabendo aqui ca-
racterizar o que se compreende em relação ao reconhecimento social e
o salário dos ACSs no âmbito do estudo empreendido.
O reconhecimento social do ACS é compreendido na interação com os
demais membros da equipe de saúde da família e com a comunidade, mas
também em relação à sociedade em geral e, particularmente, aos gestores do
Sistema Único de Saúde. Na interação da equipe, são consideradas a auto-
nomia do ACS para a realização do seu trabalho e a atenção que ele recebe

Precarização do trabalho em saúde


183
dos demais profissionais no encaminhamento das questões do trabalho na
equipe de saúde da família.
Na interação com a comunidade, o reconhecimento refere-se, em
geral, à resposta das pessoas atendidas ao trabalho do ACS, seja pela
adesão aos encaminhamentos propostos, ou pela mudança de comporta-
mento ou atitude da população diante dos problemas de saúde, ou ainda
por manifestações pessoais de valor e consideração pelo trabalho realiza-
do pelo ACS.
Em relação à sociedade, especialmente aos gestores do SUS, esse re-
conhecimento está relacionado diretamente ao salário percebido pelos ACSs.
Note-se que, em 2011, ano em que se deu esse estudo, o piso salarial na-
cional desses trabalhadores era de R$ 750,00 mensais, valor que sofreria um
reajuste em agosto do ano de 2012, passando para R$ 866,89, e que, a partir
de janeiro do ano de 2013, sofreria reajustes sucessivos, até atingir, em 2016,
o valor de dois salários mínimos, conforme reivindicado pela categoria.
As entrevistas realizadas foram organizadas com base em algu-
mas perguntas geradoras, a saber: Qual a percepção dos ACSs sobre
o seu reconhecimento profissional? Como eles percebem e avaliam seu
vínculo trabalhista e sua remuneração salarial? Como são os processos
formativos para os ACSs? Será que, na realidade dos serviços, o ACS
é reconhecido como profissional peça-chave na atenção em saúde?
Seu salário equivale à complexa função que desempenha e é capaz de
suprir suas necessidades sociais?

Formação
Quanto à categoria formação, os entrevistados destacaram que sua
formação se deu primeiramente mediante uma capacitação inicial, conhe-
cida como Introdutório, que se direcionava a um trabalho prático, como
o cadastramento de famílias, primeira atividade realizada pelos ACSs nas
comunidades. Percebe-se, além disso, a pouca atenção por parte do ser-
viço ao processo de inserção dos ACSs no exercício de suas atividades,
como é revelado na seguinte fala:

Diana Carolina dos Santos Teva


184
[...] quando eu entrei como ACS, a gente teve uma capacita-
ção, uma coisa rápida, aquela situação assim: “Toma a sua
trouxa e vai pra comunidade resolver os seus problemas!” E
acabou. (ACS 1)

De acordo com Correia (2008), no final da década de 1990, com


o processo de inserção da Estratégia Saúde da Família no território de
Manguinhos, somente os profissionais de nível superior passavam por um
curso introdutório para atuação no novo programa. Nesse sentido, os ACSs
não participaram dessa capacitação, sendo treinados posteriormente, em
serviço, por esses profissionais (mais especificamente, pelos médicos e
enfermeiros)6 capacitados no Curso Introdutório. Para a atuação dos ACSs,
não se exigia nenhuma formação prévia anterior ao seu ingresso no tra-
balho, conforme menciona um dos entrevistados:

Eu costumo dizer que o médico, ele já entra médico, formado. O en-


fermeiro, também passa por um curso, já entra formado. O técnico,
idem. Todos os profissionais. O agente não, o agente, eu costumo
dizer que ele entra sem formação e se forma no processo de traba-
lho [...]. Então, a gente entra basicamente cru, a gente começa a
ter um conhecimento para poder ser qualificado como os olhos [...]
dos médicos [...] e a gente também fica [...] entre o médico e quem
está lá na ponta, que são os moradores. Então, a gente passa a ser
a representação dos moradores dentro do posto, e acaba sendo
também o olhar [...] dos médicos, dos enfermeiros, em relação à
avaliação daquela população. [...] Porque nós somos, assim, o elo
[...] da comunidade com o centro de saúde [...]. A gente teve uma
capacitação para não entrar totalmente cru. Ainda que a gente en-
trasse com essa capacitação técnica, falta muita coisa, mas como
é trabalho em comunidade, e quem mora na comunidade social-
mente é discriminado, principalmente pelo poder paralelo... [...] é
uma gama de pessoas que [...] está à margem da sociedade. Pobre,
né? Então, hoje, a gente está vendo o que é comunidade. (ACS 2)

6
Os ACSs entrevistados nesta pesquisa participaram do Curso Introdutório, pois sua inserção na ESF
de Manguinhos é mais recente.

Precarização do trabalho em saúde


185
Ao se referir à equipe técnica sem se incluir nela, parece que o pró-
prio ACS não se considera um profissional, mesmo que a sua profissão seja
reconhecida desde 2002. Ou seja, de certa forma o entrevistado reproduz
um pensamento comum que é a maior valorização profissional dos traba-
lhadores de nível superior – no caso da saúde, principalmente o médico e
o enfermeiro.
Ainda no que tange à categoria formação, destaca-se a valoriza-
ção do processo formativo no curso técnico de ACS como uma formação
de base ética e política que se distingue não apenas dos demais proces-
sos de treinamento e capacitação, focados em questões específicas do
trabalho, como também do treinamento introdutório. Tal forma de com-
preender a formação técnica se expressa na seguinte fala:

[...] depois que eu fiz o curso técnico de agente comunitário de


saúde, reforçou bastante, aí que deu força mesmo para brigar.
E agora a gente já faz o trabalho com mais segurança. A gente
já atua na comunidade com mais segurança [...], muitas das
coisas que eu aprendi foi no curso técnico. [...] e agora eu falo,
eu sou técnica de agente comunitário de saúde, eu sou técni-
ca... Aí, quando eu pego um prontuário, eu escrevo lá: “técnico
em ACS”. (ACS 1)

O sentimento de segurança manifestado pela entrevistada quanto à sua


formação é expresso principalmente pelo fato de ter se tornado técnica em
ACS, por meio do Ctacs. E com isso, essa formação fortaleceu a sua crítica e
capacidade de lutar pelos seus direitos. Portando, vincula sua formação téc-
nica ao seu reconhecimento profissional e social.
Além desses aspectos que o Ctacs proporcionou aos ACSs, per-
cebe-se por meio de algumas falas, que o curso é visto como uma con-
quista da categoria, além do reconhecimento da profissão desde 2002
e de outras conquistas que fortaleceram ainda mais a luta dos ACSs por
melhores condições de trabalho. Do mesmo modo, percebe-se que a
experiência formativa muito contribuiu para a organização do processo
de trabalho e planejamento de suas atividades. Tais questões se mostram
presentes nas seguintes falas:

Diana Carolina dos Santos Teva


186
[...] tudo o que acontece na categoria de agente comunitário, na
classe, é conquista, sabe? [...] Então, a gente está aí para poder
discutir, para reivindicar, para ir a Brasília. [...] esse curso mesmo,
foi um desses fatores. (ACS 2)
Eu acho que essa formação é importante para os ACSs, porque
eu aprendi a lutar pelos meus direitos, direitos da comunidade.
Aprendi a respeitar os meus colegas. E, aí, a ser respeitado tam-
bém, porque é muito importante [...] fazer um grupo na comuni-
dade, a organização do trabalho. Isso é muito importante: ser
organizado. Porque antes a gente não se organizava, não fazia
um planejamento, essas coisas todas. Era tudo no “vamos lá e
acabou!” Agora não, a gente já planeja, se organiza. (ACS 1)

Ainda sobre a formação técnica, constata-se a semelhança na


fala dos entrevistados quanto à expectativa frustrada de que a sua for-
mação técnica possa reverter em aumento salarial. Um dos entrevista-
dos mencionou que promessas políticas foram feitas durante o processo
de conquista do curso para os ACSs e que, com essa formação técnica,
haveria investimentos financeiros no salário desses profissionais.7 Entre-
tanto, até o momento da realização desta pesquisa, essa questão não
fora resolvida e afligia os ACSs já formados, como se pode notar na fala
deste entrevistado:

[...] a maioria de nós aqui, do Rio de Janeiro, já passou por uma


capacitação de técnico em agente de saúde e até agora não
aconteceu nada, não houve um investimento em cima da nossa
capacitação profissional. A gente, basicamente, não está sen-
do reconhecido, valorizado. E isso é fundamental para que
a gente se sinta mais seguro, mais tranquilo, para poder dar
mais de si. (ACS 2)

7
Na aula inaugural proferida por Tereza Ramos, presidente da Conacs de 2004 a 2009, no dia 31
de outubro de 2011, na EPSJV/Fiocruz, o subsecretário de Saúde do Município do Rio de Janeiro,
Daniel Soranz, compondo a mesa de abertura do evento, mencionou a equiparação do salário dos
ACSs que se formassem no Ctacs com o valor salarial dos técnicos, a partir de janeiro de 2012.

Precarização do trabalho em saúde


187
Reconhecimento social e profissional
Quanto ao reconhecimento social e profissional, os entrevistados des-
tacam que ele depende do bom funcionamento do trabalho em equipe. Ou
seja, na medida em que a equipe trabalha a partir do território, das famílias,
isso contribui para que o trabalho do ACS seja valorizado. Tais perspectivas
podem ser percebidas em algumas falas:

Eu não acho que seja muito [reconhecido]. Não tem aquela visão
de que cada um faz o seu pedaço para todo mundo ajudar. [...]
Não é que você seja importante, é que nós não somos os únicos,
não somos primordiais. [...] cada um tem a sua importância, nin-
guém é menor nem maior do que ninguém. (ACS 3)
[...] eles estão desprezando o trabalho do ACS. (ACS 1)
[...] o olhar do médico que trabalha em ESF é fundamental para
manter a equipe unida [...] Mas quando você não tem um mé-
dico que trabalha com esse olhar da saúde da família, todo
agente vai começar a perceber que não é reconhecido. Agora,
monetariamente, profissionalmente, na realidade, os ACSs vão
dizer basicamente o que eu vou te responder: não é reconhecido.
Por quê? Porque é uma gama muito grande de problemas e res-
ponsabilidades [...]. Então, você ganha pouco, você tem pouco
suporte, agora você até está tendo, porque o ESF está investin-
do, mas não é o suficiente. (ACS 2)

Segundo Merhy e Franco (2006), parte-se do pressuposto de que o


trabalho em saúde é sempre coletivo, pois se trabalha coletivamente, na di-
reção de uma mesma finalidade, que é o cuidar do usuário, ou seja, a cons-
trução do cuidado em saúde. Sendo assim, partindo da análise do trabalho
desempenhado pelo ACS na comunidade e no serviço de saúde, observa-se
a dependência mútua do ACS dos outros profissionais de saúde do serviço
prestado (OLIVEIRA e SPIRI, 2006).
Há, contudo, uma contradição evidenciada pela análise das falas,
uma vez que o ACS, apesar de ser considerado fundamental na viabiliza-
ção da atenção e do cuidado em saúde, por estar na posição de elo no
serviço de saúde, sofre pelo não reconhecimento social e profissional den-

Diana Carolina dos Santos Teva


188
tro de sua própria equipe. Assim, observa-se o sentimento de “desprezo”
referido por um entrevistado, evidenciando seu não reconhecimento social
e profissional.
Os conflitos internos referidos na fala dos agentes dizem respeito às
diferentes concepções sobre o trabalho na saúde da família e, no caso do
ACS, sobre o trabalho em saúde a ser realizado diretamente nas comuni-
dades. Trata-se da representação das diferentes concepções em disputa
presentes na sociedade atual e, no que se refere à saúde, principalmente
no âmbito do SUS.
Em relação ao insuficiente reconhecimento profissional do ACS por
parte da equipe de saúde da família, os entrevistados temem que esse seja
um obstáculo a ser ultrapassado a longo prazo, e o associam à percepção
da equipe sobre a necessidade de emprego que motiva a busca dos traba-
lhadores por essa atividade:

Acho que falta muito ainda. Aqui, não somos tão reconhecidos
como deveria. Vai levar muitas décadas para isso. (ACS 3)
“O agente de saúde aqui dentro é um cabide de emprego! Não
tem nenhuma importância!” Ele [o médico] chegou a falar isso na
frente deles. (ACS 1)

Essa situação é reforçada também pela visão que alguns profissio-


nais têm do trabalho em saúde como médico-centrado, apesar do esfor-
ço contínuo de mudança do modelo de atenção, pela incorporação de
outras lógicas além da biomédica. Segundo essa perspectiva, apenas o
médico e o enfermeiro são considerados trabalhadores típicos da saúde,
e o ACS, cuja principal condição para o trabalho é residir onde atua, não
se configura um trabalhador propriamente dito. A sua importância para
a viabilização da atenção e do cuidado em saúde não teria, assim, base
para ser reconhecida.
Por outra parte, é consensual entre os entrevistados que eles são
valorizados nas comunidades em que atuam:

Precarização do trabalho em saúde


189
[...] você sente no tratar das pessoas, algumas pessoas, que
você até fez alguma coisa, ou então mostrou para ela que ela
tivesse uma visão diferente em questão de algumas coisas, você
vê que o tratar é diferente. Elas te tratam diferente. (ACS 3)
Aí a irmã dele veio, fez uma carta agradecendo, falando o meu
nome. [...] Pela comunidade, eu sou valorizada. Não sou valorizada
pela equipe técnica, mas na comunidade eu sou valorizada. (ACS 1)

O reconhecimento é expresso pelo modo como a população assistida


trata o ACS. A ACS 3 explicita que seu trabalho é reconhecido e valorizado,
o que é percebido pelo carinho diferenciado das pessoas com as atividades
que desempenha. Entretanto, a ACS 1 considera que prestar atendimento e
cuidar da comunidade não é um favor que ela faz, e sim uma obrigação;
com isso, expressa a compreensão de que a saúde e o acesso aos serviços
de saúde são direitos de todos e dever do Estado, como prescrito no artigo
196 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988).
No que tange ao reconhecimento por parte da sociedade (para além
da comunidade, significando, sobretudo, os políticos), tem-se, consensual-
mente entre os entrevistados, que o ACS não recebe a valorização esperada:

[...] se for uma sociedade voltada para as autoridades consti-


tuídas, eu acho que não é valorizado não. [...] Eu acho que a
gente, no Brasil inteiro, a gente funciona como cabide de voto.
[...] os políticos, eles prometem, liberam pra gente algumas coi-
sas que nos satisfaçam, mas não está à altura. Então eu acho
que nós não somos reconhecidos, nós somos utilizados como um
[...] objeto de manipulação, porque eles prometem uma série de
coisas, e a gente corresponde com os nossos votos. E a gente meio
que acaba acreditando [...].
A gente precisa sobreviver, a gente precisa trabalhar, a gente preci-
sa ter um salário, a gente precisa ser reconhecido socialmente. [...]
eu acho que existe certa discriminação em relação à nossa profis-
são. Tanto é que nós não somos reconhecidos como agentes co-
munitários. O agente comunitário, ele não passa em um concurso,
é processo seletivo. Se bem que é [...] parte do programa do SUS,

Diana Carolina dos Santos Teva


190
o agente comunitário, mas não é reconhecido profissionalmente,
não é reconhecido em nível de valores. (ACS 2)

Percebem-se vários elementos relacionados à percepção dos


entrevistados quanto ao seu reconhecimento social, dentre eles, os ACSs
sendo vistos como forma de os políticos conseguirem voto, explorando a
confiança que os agentes conquistaram na comunidade, e as promessas
que lhes são feitas, mas não são cumpridas, como o aumento do salário
e a continuidade de sua formação, que geram frustração e insatisfação.
Finalizando a categoria reconhecimento, os entrevistados têm men-
cionado alguns aspectos importantes para o maior reconhecimento e va-
lorização do ACS, tanto na perspectiva profissional quanto social:

Que toda equipe estivesse mais na comunidade, para poder ver o


funcionamento desse trabalho [...]. Que a gente tivesse mais liber-
dade para estar na comunidade também [...], [que a gente] pudesse
atender dentro da comunidade. Tivesse espaço. Tivesse apoio dos
gestores para fazer isso, essa aproximação maior da equipe, por-
que independe da equipe. A médica e a enfermeira não podem
atender a comunidade se não tem os recursos necessários, os ma-
teriais necessários... (ACS 3)
Apenas assim, dar mais autonomia para nós. Não botar empecilho
naquilo que a gente quer fazer pelo bem da comunidade. (ACS 1)
Eu acho que, para o profissional se sentir bem, ele tem de ser valori-
zado financeiramente, profissionalmente, que, a partir daí, ele pode
se sentir mais à vontade para poder expressar o seu desempenho
profissional. Ao mesmo tempo, eu também não acho que apenas
só o dinheiro vai ser o suficiente, mas já é um pontapé inicial para
você pensar e, assim, ter um retorno, e existir essa reciprocidade. E
eu acho que é meio utópico você falar de reconhecimento, de valor,
se não existe o “faz-me rir”, o dinheiro. (ACS 2)

Nesse sentido, o reconhecimento do trabalho do ACS é relacionado


pelos entrevistados com a autonomia do processo de trabalho, a neces-
sidade de atuação da equipe dentro da comunidade, pois essa atuação

Precarização do trabalho em saúde


191
ainda se restringe ao atendimento ambulatorial e a viabilização das con-
dições materiais para o exercício das atividades, bem como com a valo-
rização salarial. Quanto à categoria remuneração salarial, é consensual
entre os entrevistados a insatisfação quanto ao salário que recebem, como
pode ser visto a seguir:

A gente não é uma parte tão importante da estratégia? Ainda não


vi essa importância toda, mas tudo bem, porque o médico estudou
pra isso, a gente não, como eles dizem. [...] Não é que você queira
ganhar milhões, mas, assim, você tinha que ter certo reconheci-
mento, porque ninguém vive só de gratificações [...]. Nós estamos
no aguarde até hoje. (ACS 3)
[...] a responsabilidade aumenta, o compromisso aumenta, a
dedicação aumenta, mas a reposição daquilo que você perde,
em relação ao salário, em relação à inflação, você não tem
uma reparação. Então isso já é motivo de insatisfação. (ACS 2)

Nesse sentido, diversos autores, dentre eles Gomes et al. (2009),


consideram que:

A inclusão do ACS no PSF representa um aumento significativo


de trabalho e de responsabilidade, sem que isso seja acom-
panhado de aumento salarial correspondente. Além disso,
a posição do ACS no interior da equipe de saúde da família
revela-se ainda mais crítica quando se compara o seu salário
com o de outros membros da equipe, de forma que o sentimen-
to de desvalorização do seu trabalho torna-se particularmente
evidente se considerarmos a hipótese de que o ACS é tido como
personagem-chave do PSF. (GOMES et al., 2009, p. 753)

Tem-se aí, portanto, a já apontada contradição entre o fato de o ACS


ser considerado a parte mais importante da ESF e, ao mesmo tempo, ser-
lhe exigida apenas uma formação simplificada, sendo-lhe pago um salário
que não condiz com a complexidade e a extensão de seu trabalho, uma
vez que os ACSs “têm encontrado muitas dificuldades para cumprir com
suas atribuições, tanto pelo amplo leque de exigências, quanto pelas limi-
tadas condições socioeconômicas” (GOMES et al., 2009, p. 753).

Diana Carolina dos Santos Teva


192
Salário
A análise mais específica da categoria remuneração salarial revela a
insatisfação quanto ao salário, que durante um período extenso esteve abaixo
do mínimo. Revela também, conforme já se apontou anteriormente, a insatis-
fação quanto às promessas feitas por políticos de aumento salarial, em corres-
pondência ao aumento da formação técnica:

[...] durante um bom tempo a gente andou recebendo um


salário abaixo do mínimo [...]. No início, a gente ganhava até
razoavelmente bem. A gente ganhava acima do salário mínimo.
[...] eu sei que houve uma época em que nós, até na época em que
estávamos fazendo a segunda etapa do curso, que [nós falamos]:
“Gente, o salário mínimo é quinhentos e pouco e a gente ganha
ainda quatrocentos e não sei quanto?” Aí eu falei assim: “Gente, a
gente tá ganhando menos que um...”. Aí foi criando aquela coisa,
aquela coisa, aquela confusão, aí foi que eles reajustaram para
esse [salário] agora, que é de 700 e pouco, alguma coisa assim.
E depois do curso disseram que ia aumentar esse salário. [...] A
gente está esperando. Pode ser que algum dia isso aconteça.
Brasileiro não desiste nunca, não é? (ACS 3)

Na fala da entrevistada, é perceptível a insatisfação e o sentimento


de inquietação com o baixo salário, que tem motivado a atuação da ca-
tegoria por melhoria salarial e definição de um piso nacional. A história
dessa luta revela que no município do Rio de Janeiro o valor do salário
ainda não corresponde à ampliação e à complexificação das atribuições
específicas dos agentes comunitários de saúde. No caso dos ACSs en-
trevistados, eles recebiam, à época, um salário de R$ 740,00. Hoje,
o salário dos ACSs do município do Rio de Janeiro é de R$ 810,00
(CARNEIRO, 2013).

Vínculo
Na categoria vínculo, algumas questões já foram apresentadas
anteriormente, como a compreensão de que os ACSs, pelo fato de exercerem
atividades-fim e de, por isso mesmo, serem essenciais ao funcionamento

Precarização do trabalho em saúde


193
do SUS, deveriam ter o direito de se inserir como servidores públicos,
por meio de concurso público, conforme apontado por Morosini, Corbo
e Guimarães (2007). Entretanto, apesar das estratégias que o Ministério
Público do Trabalho (MPT) encontrou para pressionar em relação à situação
de ilegalidade à que os ACSs estavam submetidos, a resposta que se tinha
para a não vinculação do ACS como servidor público estava baseada no
caráter universal conferido pela Constituição ao concurso público, o que
impedia a exigência de que o candidato deveria necessariamente residir
no seu lugar de atuação. Segundo as autoras:

[...] a interpretação mais recorrente era que contratar os ACSs


por concurso público significaria ter de abrir mão da exigência
de que eles morassem na comunidade em que atuam, carac-
terística até então considerada fundamental para o sucesso do
PSF, por facilitar o vínculo desses trabalhadores com a comuni-
dade. (MOROSINI, CORBO e GUIMARÃES, 2007, p. 274)

A alternativa encontrada vem com a emenda constitucional nº 51, de


2006 (BRASIL, 2006a), que acrescenta três parágrafos ao artigo 198
da Constituição brasileira, num dos quais prevê o processo seletivo pú-
blico como meio de os gestores locais do SUS admitirem os ACSs (e
os agentes de endemias).8 Já a emenda constitucional nº 63, de 2010
(BRASIL, 2010), altera o § 5º do artigo 198 da Constituição, acrescido
anteriormente pela emenda constitucional nº 51, que passa a indicar que
lei federal disporá não somente sobre o regime jurídico e a regulamenta-
ção das atividades, mas também sobre o piso salarial e as diretrizes para
os planos de carreira dos ACSs e dos agentes de endemias. Esse artigo
modificado prevê ainda que a União deverá garantir aporte de recursos
aos estados, distrito federal e municípios para cumprirem o piso salarial
dessas categorias.
Nas falas dos entrevistados, confirma-se que os ACSs de Manguinhos
estão vinculados à Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnoló-

8
A emenda constitucional nº 51, entretanto, não discorre sobre o tipo de vínculo que esses profissionais
devem ter com o município (BRASIL, 2006a).

Diana Carolina dos Santos Teva


194
gico em Saúde (Fiotec). É preciso ressaltar a mudança que a Fiotec teve de
sofrer para se enquadrar nas formas de contratação e financiamento estabele-
cidas pelo município do Rio de Janeiro para as equipes de saúde da família,
bem como para outros serviços de saúde. Para cumprir tais exigências,
a fundação teve de acrescentar à sua identidade como fundação de apoio a
condição jurídica de organização social (OS).
Nas entrevistas, ao se perguntar sobre os benefícios trabalhistas
que os ACSs recebem, foi possível perceber um estranhamento quanto à
palavra benefício na fala e na expressão de alguns dos entrevistados, por
não compreenderem o que recebem como benefícios, mas sim como direitos
instituídos em lei. Como pode ser encontrado na fala de uma entrevistada:

Isso é direito, não é benefício, todos são direitos: carteira assinada,


férias, fundo de garantia... Benefícios, [não recebemos] nenhum.
[...] Tem nada de benefício. Tudo é obrigatório por lei. Dizer assim
“ah, você tem um plano de saúde, tem uma ajuda de custo”, nada.
Nada é benefício, todos são direitos. (ACS 3)

Outra questão que surgiu quanto à categoria vínculo empregatício


foi a percepção, por parte de alguns entrevistados, do descumprimento de
certos direitos que lhes são conferidos por lei, o que foi relacionado ao re-
conhecimento profissional e social dos ACSs, conforme se verifica abaixo:

Esse vínculo não respeita, não. [...] É, esquecem às vezes de


pagar, tem muita coisa que a gente tem direito aí e às vezes
a gente vê que não vem. Por exemplo, proteção do trabalho,
segurança no trabalho, [porque] a gente andava na chuva...
Agora não, eles deram uma capa pra gente fazer cadastra-
mento na chuva; [a gente] andava de qualquer jeito, não tem
um boné para proteger do sol, a gente não tem um protetor
solar, eles não dão. (ACS 1)
Porque até mesmo o respeito de um profissional para o outro é
diferente. Eu tive algumas experiências não muito agradáveis, em
que eu vi que a coisa não funciona de igual para igual: se você é
ACS, você é ACS; [...] e médico é o médico. Abaixo de Deus vem o
médico. (ACS 3)

Precarização do trabalho em saúde


195
Há também referência ao desrespeito de um profissional para com
outro que parece derivar da forte hierarquização que se estabelece nas
equipes de saúde da família, baseada na formação e no prestígio profis-
sional, o que acarreta grandes diferenças salariais, sendo o ACS o mais
prejudicado com estas condições.
Em geral, os entrevistados não veem o seu vínculo empregatício com
a Fiotec como precarizado, pois consideram que seus direitos trabalhistas
são assegurados por lei, mostrando certa dúvida, no entanto, em relação
à garantia da continuidade desses, isto é, entendendo que o vínculo pode,
em determinado momento, não assegurar mais o que lhes é garantido por
lei, o que pode ser visto na seguinte fala:

Não, porque até então tudo o que é direito nosso eles dão. Eles
dão tudo direitinho. Pelo menos até ontem, não sei a partir de
hoje... (ACS 3)

Entretanto, mesmo que os entrevistados considerem não ser o seu vín-


culo precarizado, eles questionam, ao longo das entrevistas, que as condições
materiais de realização do seu trabalho não favorecem o exercício de suas ati-
vidades, pois equipamentos que deveriam ser garantidos pelo vínculo empre-
gatício não lhes são assegurados. São comuns as reclamações relacionadas à
falta de atendimento em saúde para os próprios ACSs e quanto às condições
em que o trabalho se realiza, como a exposição à violência, enquanto os de-
mais profissionais da equipe não se submetem a tais situações:

[...] a gente não tem um tempo para ser assistido por um profissio-
nal. [...] as condições precárias em que a gente trabalha na comu-
nidade, a violência... E se tem polícia, a gente tem que ir para área
de qualquer jeito. E se a polícia entra, está na área, a gente não
pode fazer nada. A gente deita no chão, ou então entra na casa
do morador [...], por que o médico não vai para a comunidade
quando tem polícia, só os agentes têm de ir [...]. Eles veem a polícia
e voltam... (ACS 1)

Diana Carolina dos Santos Teva


196
Em suma, as insatisfações trazidas pelas atividades, bem como as con-
tradições existentes na realização do trabalho desempenhado pelos ACSs
podem se integrar a uma perspectiva ampla de compreensão dos enfrenta-
mentos, conflitos e disputas que se fazem presentes na reorientação do mode-
lo de atenção em saúde e no âmbito da reorganização do SUS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo empreendido reforça a avaliação de que a precarização do


trabalho do ACS transcende em muito a dimensão dos vínculos, e pode ser
mais bem compreendida se associada à discussão da configuração do tra-
balho e da formação do ACS, que, por sua vez, desdobram-se em ques-
tões quanto ao reconhecimento social desse trabalhador, expresso, entre
outros aspectos, pelo salário que lhe é atribuído.
No que diz respeito ao reconhecimento, percebe-se que o ACS iden-
tifica problemas em relação à equipe e aos gestores do SUS, mas não
em relação à comunidade, apesar de se existir uma estreita relação entre
o bom funcionamento da equipe e a possibilidade de o ACS realizar um
trabalho que venha a ser valorizado pela população. O baixo reconheci-
mento está diretamente associado à desvalorização salarial. Apesar das
conquistas da categoria, como é o caso da instituição do piso salarial
nacional, o salário ainda se mostra insuficiente, considerando-se a com-
plexidade do trabalho e as necessidades dos trabalhadores.
A luta dos ACSs inclui também a questão da sua formação. Assim, um
objeto de mobilização constante dos ACSs é uma qualificação profissional que
contemple todos os aspectos necessários para a sua atuação na Estratégia
Saúde da Família. Especificamente quanto à formação técnica desses traba-
lhadores, o que se percebe na fala dos sujeitos entrevistados é que ela foi uma
importante contribuição no que diz respeito ao planejamento e à organização
do seu processo de trabalho. É possível também perceber que o processo de
formação técnica dos ACSs promovido pela EPSJV/Fiocruz contribuiu para a
construção de um sujeito crítico, que pode fortalecer a luta por melhores con-

Precarização do trabalho em saúde


197
dições de trabalho da categoria. Entretanto, há de se ressaltar que, na maior
parte do país, a formação dos ACSs ainda se configura como simplificada e
aligeirada, estando restrita à primeira etapa formativa (MOROSINI, 2010).
Quanto ao vínculo trabalhista, não se percebe insatisfação entre os
ACSs entrevistados, que não se reconhecem como precarizados, uma vez que
seus direitos legais estão sendo cumpridos. Entretanto, em alguns momen-
tos, percebe-se uma insegurança quanto à continuidade da garantia desses
direitos, assim como a compreensão de que o ACS não possui as mesmas
condições e garantias características do vínculo de servidor público. Por isso,
nota-se a necessidade de se colocar em questão os vínculos que caracterizam
a gestão do trabalho dos ACSs que geram forte contradição, ou seja, o fato
de o ACS ser um trabalhador integrante de uma estratégia do SUS, mas de
esses trabalhadores não terem, em sua maioria, vínculo direto com o Estado.
A questão que se coloca em seguida é como uma política de Estado
que se apresenta como algo perene, que busca a transformação do mo-
delo de atenção, como é o caso da Estratégia Saúde da Família, pode ser
construída em bases precárias de gestão do trabalho? Com isso, retorna-
se ao ponto de partida, isto é, à contradição percebida, e agora verificada,
entre, de um lado, o discurso instituído no campo das políticas de saúde
que apresenta o ACS como elemento-chave e fundamental na viabilização
da transformação do modelo de atenção e na ampliação de cobertura
em saúde e, de outro, os dados obtidos quanto à situação de formação,
salário, vínculo e reconhecimento social desse trabalhador.
O horizonte que se desenha é ainda um longo caminho de luta e
construção de propostas e projetos que representem o interesse desses tra-
balhadores e portem um projeto coletivo de transformação das possibili-
dades, hoje limitadas, de atendimento dos direitos da população brasileira
à saúde pública de qualidade para todos.

Diana Carolina dos Santos Teva


198
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Precarização do trabalho em saúde


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Diana Carolina dos Santos Teva


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Precarização do trabalho em saúde


201
O NEOLIBERALISMO E A CRISE NO
MUNDO DO TRABALHO A PARTIR
DOS ANOS 1990

Fabio Mathias da Silva Junior*

O desemprego, certamente, foi uma das marcas da economia brasilei-


ra a partir década de 1990. O projeto neoliberal adotado pelos governos da
época tem grande responsabilidade nesse fenômeno, que ganhou contornos
mundiais. Países de todos os continentes sofreram as consequências perversas
do projeto neoliberal. Além do desemprego, o enfraquecimento do poder dos
sindicatos e a reestruturação produtiva também deixaram sequelas, sobretudo
na indústria brasileira. A seguir, busco traçar um painel explicativo desse ce-
nário, relacionando as reformas neoliberais ao crescimento do desemprego e
enfraquecimento dos sindicatos no Brasil. Nesse sentido, baseei-me no exame
das obras de relevantes pesquisadores e estudiosos sobre o tema.

O NEOLIBERALISMO

O século XX ficou marcado por mudanças político-econômicas que


tiveram consequências em todo o mundo. E foi no período entre as décadas
de 1970 e 1980 que aconteceu uma mudança brusca no contexto socioeco-
nômico do mundo, com a implantação, primeiramente no Chile, depois nos
Estados Unidos e na Inglaterra, do neoliberalismo. Essa teoria econômico-

*
Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio
com habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). No trabalho de construção de sua monogra-
fia de conclusão de curso, contou com a orientação do professor-pesquisador José Victor Regadas
Luiz (doutorando em Ciência Política), do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional
em Saúde (Labform). Contato: jrfla2009@hotmail.com.

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


203
política tem por características principais a mínima intervenção do Estado na
economia, de forma a abrir espaço para os investimentos privados, levando,
por exemplo, à privatização de empresas estatais, amplamente explorada
nesse período. Além dessa característica, o neoliberalismo propõe que o
Estado seja forte o bastante para quebrar o poder dos sindicatos e dos mo-
vimentos operários; garantir a estabilidade monetária, contendo os gastos
sociais; e deixar que o próprio mercado se regule, implantando, assim, uma
desregulação do mercado. Em outras palavras, o Estado não deve mais ter
o controle do fluxo financeiro (HARVEY, 2005).
É importante ressaltar o contexto histórico em que essa teoria surgiu.
O neoliberalismo tem como mentores um grupo de economistas e cientistas
políticos, entre os quais se destacam o austríaco Friedrich Hayek e o norte-
americano Milton Friedman. Esse grupo de economistas, que se reuniu
na cidade de Mont Pélerin na Suíça, em 1947, numa conferência organizada
por Hayek, opunha-se ao Estado de bem-estar social (welfare state), ale-
gando que esse tipo de Estado limitava a liberdade do cidadão, impedindo
a sua prosperidade (ANDERSON, 2003). A teoria neoliberal permaneceu
marginal até a “crise fiscal do Estado” nos anos 1970, quando o Estado de
bem-estar social entrou num processo de dívida pública. Esse fato, aliado
ao processo de estagflação, isto é, baixas taxas de crescimento econô-
mico e altas taxas de inflação, abriu espaço para a difusão da teoria
neoliberal no mundo capitalista (BRUNHOFF, 1991).
O Chile foi o primeiro país a servir de experimento para o neoli-
beralismo, que foi implantado em 1973, logo após o golpe de Augusto
Pinochet contra o governo de Salvador Allende, golpe apoiado pela eli-
te empresarial chilena, que se via ameaçada pela tendência socialista
de Allende. O golpe também foi apoiado por corporações dos Estados
Unidos, pela Agência Central de Inteligência americana (CIA, do in-
glês Central Intelligence Agency) e pelo secretário de Estado Henry
Kissinger (HARVEY, 2005). No ano de 1975, Pinochet levou um grupo
de economistas, conhecidos como The Chicago Boys – nome que rece-
beram por sua adesão às teorias neoliberais de Milton ��������������
Friedman������
, pro-
fessor da Universidade de Chicago –, para o governo, com o objetivo
de reestruturar a economia chilena.

Fabio Mathias da Silva Junior


204
Feito isso, a primeira ação de Pinochet foi trabalhar em parceria
com o Fundo Monetário Internacional (FMI), negociando empréstimos, de
acordo com as imposições feitas pelo próprio FMI (FIORI, 1996; HARVEY,
2005). Com o mercado de trabalho desregulado e os ativos públicos pri-
vatizados, o Chile rapidamente recuperou seu crescimento econômico,
mas por pouco tempo, visto que, em 1982, os países latino-americanos
entraram em grande crise, decorrente da elevada dívida externa. Esse fato
resultou na aplicação mais pragmática de políticas neoliberais nos anos
seguintes, quando o próprio Pinochet se viu obrigado a recuar e a adotar
medidas de caráter keynesiano1 (HARVEY, 2005).
Na América Latina, essa crise, que levou à chamada “década perdi-
da” dos anos 1980, tem relação direta com o abandono das regulamenta-
ções financeiras pelos Estados Unidos no final dos anos 1970. Em 1979, Paul
Volcker tornou-se presidente do Banco Central dos Estados Unidos, o Fed, e
rapidamente mudou a política monetária do país, a fim de lutar contra a infla-
ção, mesmo que isso significasse um aumento na taxa de desemprego. Nesse
mesmo ano, Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra da Grã-Bretanha,
com o propósito de pôr fim à estagnação inflacionária que envolvera o país
na década precedente, adotando, nesse sentido, restrições ao poder dos sin-
dicatos (HARVEY, 2005). No ano seguinte, em 1980, Ronald Reagan – que
apoiava as decisões de Volcker de “políticas destinadas a restringir o poder do
trabalho, desregular a indústria, a agricultura e os setores extrativistas, assim
como liberar os poderes das finanças tanto internamente, como no cenário
mundial” (HARVEY, 2005, p. 4) – foi eleito presidente dos Estados Unidos.
Assim se deu o processo histórico-político da ascensão de uma nova doutrina
político-econômico, o neoliberalismo, termo que foi primeiramente usado por
Volcker e Thatcher, que logo transformaram essa doutrina na principal diretriz
do pensamento e da administração econômicos (HARVEY, 2005).
Diferentemente do ocorrido na Europa e nos Estados Unidos, que vi-
veram, entre 1950 e 1973, a era de ouro do capitalismo, em cujo período

1
Intervenção estatal na economia, complementando o mercado para garantir a eficiência geral
na economia; políticas sociais com o objetivo de se garantir um mínimo padrão de vida (seguro-
desemprego, assistência médica gratuita, salário mínimo). São baseadas no modelo econômico do
economista inglês John Maynard Keynes.

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


205
houve aumento da produtividade, dos salários e da produção, a América
Latina passou por uma fase chamada de era do desenvolvimentismo, em
que houve um aumento da industrialização como base da economia. No
Brasil, esse período ficou conhecido como “milagre econômico brasileiro”
(FIORI, 1996).
Porém, a era do desenvolvimentismo foi abalada por fatores inter-
nacionais no final da década de 1970 e início da década de 1980, entre
os quais estão o aumento do preço do petróleo, os aumentos das taxas
de juros norte-americanas e a queda dos preços das commodities no
mercado internacional. Todos esses fatores, aliados à recessão econô-
mica mundial, elevaram a dívida externa dos países latino-americanos a
níveis estratosféricos (FIORI, 1996).
Com isso, as políticas econômicas latino-americanas a partir de 1982
ficaram voltadas exclusivamente para a renegociação da dívida externa. No
caso do Brasil, o modelo econômico era altamente dependente do financia-
mento do capital externo, e isso fez que o sistema financeiro internacional só
fizesse empréstimos em condições específicas, por causa da elevada dívida
externa acumulada (PETRAS, 1999; FIORI, 1996).
Para que as medidas político-econômicas neoliberais fossem im-
plantadas na América Latina, com o objetivo de “salvar” a economia
desses países, reuniram-se em Washington, em 1989, convocados pelo
Institute for International Economics, entidade de caráter privado, diversos
economistas latino-americanos de perfil liberal e funcionários do Fundo
Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano. �������������
O tema do en-
contro, Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (“Ajuste
latino-americano: quanto já foi feito”), visava avaliar as reformas econô-
micas em curso no âmbito da América Latina (CHOSSUDOVSKY, 1998).
Essa reunião ficou conhecida pelo nome de Consenso de Washington,
termo cunhado pelo economista inglês John Willianson, na época diretor
do instituto promotor do encontro. Após o final do encontro, foram de-
cretadas regras mundiais a serem implantadas pelas medidas neoliberais.
São elas:

Fabio Mathias da Silva Junior


206
Disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gas-
tos à arrecadação, eliminando o déficit público; focalização dos
gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura; reforma tri-
butária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributária,
com maior peso nos impostos indiretos e menor progressividade
nos impostos diretos; liberalização financeira, com o fim de restri-
ções que impeçam instituições financeiras internacionais de atuar
em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do se-
tor; taxa de câmbio competitiva; liberalização do comércio exterior,
com redução de alíquotas de importação e estímulos à exportação,
visando impulsionar a globalização da economia; eliminação de
restrições ao capital externo, permitindo investimento ��������������
direto��������
estran-
geiro; privatização, com a venda de empresas estatais; desregula-
ção, com redução da legislação de controle do processo econômico
e das relações trabalhistas. (NEGRÃO, 1998, p. 41)

O neoliberalismo teve seu início no Brasil em 1990, por meio do Plano


Collor, que conjugou política monetária intervencionista, privatização ao
estilo FMI, liberalização do comércio e taxa de câmbio flutuante. Havia uma
dívida no orçamento do governo de 31 bilhões de dólares a ser eliminada,
e 360 mil funcionários públicos federais a serem demitidos, que só não
perderam o seu emprego porque o Congresso não aprovou uma emenda
constitucional. Numa tentativa monetarista ingênua de controlar a inflação,
a então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, congelou as contas
da poupança. Essas medidas foram catastróficas: o desemprego alcançou
índices recordes e as pequenas empresas tiveram de fechar suas portas
por causa do congelamento dos depósitos bancários, acarretando 200 mil
demissões só em 1990 (CHOSSUDOVSKY, 1998).
Podemos considerar o Plano Real, implantado em 1994, durante o go-
verno de Itamar Franco (1992-1994), como o auge das reformas neoliberais
no Brasil. O programa de privatização dos serviços públicos, como os de tele-
comunicações e energia elétrica, ocorreu em ritmo acelerado, sendo vendidos
a preços de barganha ao capital estrangeiro (CHOSSUDOVSKY, 1998). Uma
das consequências do Plano Real foi a consolidação da informalização no
mercado de trabalho brasileiro. Até 1995, quanto maior o número de traba-

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


207
lhadores no mercado formal de trabalho, menor o número deles no mercado
informal. Contudo, a lógica mudou. Por volta de 1997, essa tendência se in-
verteu, fazendo que a criação de novos empregos com carteira assinada não
alterasse o ritmo de crescimento acelerado da informalidade no mercado de
trabalho brasileiro (POCHMANN, 2001).
Além do aumento do mercado de trabalho informal no Brasil, o Plano
Real contribuiu para o aumento da flexibilização das relações de trabalho. A
terceirização e a subcontratação são exemplos da flexibilização das relações
de trabalho, contribuindo para uma relação de complementaridade entre
grandes empresas e pequenas empresas, de forma que as pequenas empre-
sas fornecem para as grandes empresas vários tipos de produtos, incluindo
força de trabalho.
Segundo um levantamento feito pelo Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho (Cesit), dos 6,9 milhões de postos de trabalhos abertos
pelo setor privado no período 1995-2005, 2,3 milhões foram ocupados por
trabalhadores terceirizados. Em 1995, havia 1,8 milhão de terceirizados formais;
em dez anos, esse número cresceu 127%, atingindo a marca de 4,1 milhões de
terceirizados formais (ROLLI e FERNANDES, 2006).
Essa mudança nas relações de trabalho tornou a classe trabalhadora
brasileira mais vulnerável às regras do mercado, sobretudo no que diz res-
peito à retirada dos direitos sociais e trabalhistas (PETRAS, 1999), diminuin-
do o potencial de negociação do trabalhador com as empresas, sobretudo
pelo enfraquecimento dos sindicatos, principalmente os filiados à Central
Única dos Trabalhadores (CUT), que certa vez teve de negociar a redução
de salário dos trabalhadores de uma empresa em troca da garantia de ma-
nutenção por um ano no emprego (CARDOSO, 2003).

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A NOVA DIVISÃO


INTERNACIONAL DO TRABALHO

A partir da década de 1970, houve uma modificação substancial na


divisão internacional do trabalho, da qual podemos destacar dois vetores

Fabio Mathias da Silva Junior


208
do centro capitalista mundial que influenciaram nesse processo. Segundo
Pochmann, o primeiro vetor “está associado ao processo de reestruturação
empresarial, acompanhado da maturação de uma nova revolução tecno-
lógica”; e o segundo vetor “está relacionado à expansão dos investimentos
diretos no exterior” (2001, p. 27).
Com o fortalecimento da concorrência intercapitalista, houve e tem
havido uma maior concentração e centralização dos capitais, tanto no se-
tor bancário quanto no financeiro, levando às grandes corporações trans-
nacionais a um papel mais importante nesse processo. Na verdade, a
maior parte da produção mundial fica concentrada em tais corporações,
como exemplifica Pochmann:

Na realidade, conformam-se oligopólios mundiais, responsáveis


pela dominação nos principais mercados, como é o caso no setor
de computadores com apenas dez empresas controlando 70% da
produção mundial, ou de dez empresas que respondem por 82%
da produção de automóveis. (2001, p. 27)

Dessa forma, as corporações transnacionais assumem papel


maior nos sistemas produtivos nacionais e ganham maior dimensão no
comércio internacional. Nas últimas décadas, o comércio entre matri-
zes e filiais das grandes corporações tem superado o comércio entre
nações, dado que, “com a crescente internacionalização do capital, um
mesmo grupo econômico atua em diversas nações simultaneamente”,
o que indica “que o comércio internacional tende a ser mais entre em-
presas do que entre nações” (POCHMANN, 2001, p. 28).
Com a expansão de empresas multinacionais durante a década de
1970, devido ao aumento do preço do petróleo e das matérias-primas,
houve uma ampliação dos investimentos na construção de filiais nas eco-
nomias periféricas, que proporcionou um reforço no processo de industria-
lização desses países. Além disso, para Pochmann, esse processo:

[...] constituiu uma nova alternativa de multicolonialismo


renovado, como forma de construção de vantagem competitiva
por parte das grandes empresas. Assim, as chamadas empresas

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


209
multinacionais transformaram-se em corporações transnacionais
ainda maiores e mais poderosas, com capacidade de considerar
o mundo inteiro como espaço relevante para suas decisões
de investimento e produção, provocando, por consequência,
a reorganização do processo produtivo em grandes extensões
territoriais, sobrepondo-se, inclusive, a jurisdições nacionais.
(2001, p. 29)

Por causa do crescimento das grandes corporações transnacionais em


todo o mundo, houve uma reformulação dos processos de acumulação de
capitais a partir da década de 1980, de forma que as corporações buscaram
explorar as oportunidades mais lucrativas de investimento, apoiando-se em
governos que lhes concedem facilidades, como rebaixamento de custos e de
financiamentos domésticos subsidiados (POCHMANN, 2001). Pochmann res-
salta que, durante a década de 1990,

[...] a estratégia marcante das corporações transnacionais foi a de


procurar permanecer o mais livre possível dos investimentos de lon-
ga duração, com o intuito de explorar rapidamente as oportunida-
des lucrativas de investimento, abrindo e fechando quantas plantas
produtivas fossem necessárias. (2001, p. 30)

Como forma de atrair as grandes corporações transnacionais, os paí-


ses periféricos acabam oferecendo condições mais satisfatórias para a insta-
lação das mesmas em seus países. Geralmente, são condições impostas por
agências como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e que provocam, nesses países, o re-
baixamento do custo do trabalho – criação de contratos especiais de trabalho,
ampliação da jornada de trabalho, entre outros –, a desregulamentação do
mercado de trabalho e a piora na distribuição de renda (POCHMANN, 2001).
Com isso, os países periféricos tiveram a sua composição de emprego alte-
rada. Vale ressaltar que em alguns países latino-americanos essas condições
foram impostas após o Consenso de Washington.
O deslocamento das indústrias pertencentes às corporações trans-
nacionais tem favorecido a produção de bens que são quase commodities,

Fabio Mathias da Silva Junior


210
com alta escala de produção, preço unitário reduzido, simplificação tecno-
lógica e rotinização das tarefas dos trabalhadores (POCHMANN, 2001).
A mão de obra presente no processo de produção tem menor custo
de trabalho e possui condições de trabalho mais flexíveis e precárias, im-
postas pelo seu empregador (POCHMANN, 2001). Com isso, as empre-
sas ampliam os seus lucros, aumentam a sua capacidade de produção e
diminuem os custos dela.
Como consequência da nova divisão internacional do trabalho nos
países periféricos, temos que, em 1997, de dez ocupações sem qualifica-
ção, oito eram de países de baixa renda. Em contrapartida, de cada dez
ocupações com qualificação no mundo, somente três pertenciam a países
de baixa renda. Além disso, a nova divisão do trabalho no mundo gerou
também uma elevação no grau de desigualdade entre os países: assim, na
década de 1990, a diferença entre a renda dos 10% mais ricos em relação
aos 20% mais pobres foi de quase seis vezes (5,8 vezes, de acordo com o
Bird) (POCHMANN, 2001).
Como já foi dito anteriormente, o Brasil viveu a sua “era de ouro” entre
os anos 1950 e 1980, anos em que o país teve um impulso para a industria-
lização, com taxa média anual de expansão de quase 7% (FIORI, 1996). E
foi através dessa ascensão econômica brasileira, por meio da combinação
de um projeto de industrialização com forte expansão estatal e da ampla
internacionalização do mercado interno, que o país participou significativa-
mente da economia mundial, sendo responsável por 3,5% dela em 1980. Se
o Brasil continuasse nesse ritmo de crescimento, sua produção representaria,
em 1999, 5,1% da economia mundial (POCHMANN, 2001).
Esse ritmo, no entanto, não se manteve, pois, a partir da década
de 1980, a economia brasileira começou a declinar, com expansão anual
média de 2,1%, “abaixo do comportamento da economia mundial, das
nações periféricas e do centro do capitalismo mundial” (POCHMANN,
2001, p. 36). Desde a década de 1990, o Brasil conta com um novo mo-
delo econômico, voltado para uma maior integração internacional, o que
levou o país a representar 2,8% da economia mundial, em 1999, regredin-
do às décadas anteriores.

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


211
Em relação à renda per capita, o Brasil apresentou forte elevação
durante o seu período de industrialização, sendo ela equivalente a
36,1% da renda per capita do centro capitalista em 1980. Se o país
mantivesse a média de crescimento, essa renda seria equivalente
a 42% dos países ricos em 2000. Porém, com a crise pós-1980, o
crescimento da renda per capita do Brasil estagnou, o que fez a renda
média do brasileiro ser, em 2000, 27% da renda média dos países ricos
(POCHMANN, 2001).
Sobre a questão do emprego, até 1980, o Brasil representava 4,1%
do volume mundial de postos de trabalho na indústria. Contudo, a partir de
1980, essa taxa veio retroagindo e, em 1999, o Brasil possuía 3,1% da quan-
tidade de empregos industriais no mundo, o que representa, para Pochmann,
“uma situação próxima à de 1940, logo no início do processo de industrializa-
ção nacional” (2001, p. 39).
Sobre a geração de postos de trabalho qualificado, o Brasil apresentou,
entre 1990 e 1998, uma redução de 12% nesse tipo de emprego, enquanto
os postos de trabalho não qualificado apresentaram um crescimento de 14,2%
no mesmo período, o que aponta para a forte precarização das condições de
vida. Com relação ao setor de pesquisa e tecnologia, o Brasil apresentou uma
leve elevação de 0,66% nos postos de trabalho na área, entre 1980 e 1996, fi-
cando esse crescimento bem abaixo de países como Cingapura (6,8%), Hong
Kong (7,2%), Coreia (8,3%) e Venezuela (1,4%) (POCHMANN, 2001).
Pochmann resume a participação do Brasil na nova divisão interna-
cional do trabalho da seguinte forma:

Diante da difusão de uma nova divisão internacional do trabalho


nas duas últimas décadas, o Brasil experimenta uma situação de
retrocesso. A economia nacional perdeu sua tradicional dinâmica
de alto crescimento econômico sustentado na ampla geração de
vagas, restando atualmente a medíocre variação da renda nacio-
nal, com a insuficiente criação de postos de trabalho – na maioria
das vezes, de baixa qualificação – para todos que desejam traba-
lhar. Os empregos qualificados foram reduzidos, em parte, pela
ampliação das importações, pela ausência de novos investimentos

Fabio Mathias da Silva Junior


212
e pela reformulação do setor público, além de pelas baixas taxas
de expansão do produto.
Esse cenário de aprofundamento da globalização dificulta ain-
da mais a situação dos empregos para os brasileiros. Diante da
nova divisão internacional do trabalho, o Brasil precisa rever
urgentemente sua estratégia de integração passiva e subordi-
nada à economia mundial, sob pena de continuar regredindo
ainda mais nas posições anteriormente conquistadas pelo tra-
balho. (2001, p. 40)

Ou seja, o projeto neoliberal, visto por grandes economistas, em-


presários e políticos como o “salvador” de toda a crise pela qual países
como o Brasil estavam passando, não os ajudou a superá-la. Na verdade, o
neoliberalismo aumentou a concentração de renda, enriquecendo grandes
corporações transnacionais, à custa da desregulamentação do mercado de
trabalho, gerando desemprego e precarização nas relações trabalhistas.
Tudo isso contribuiu para que os sindicatos enfraquecessem, de tal forma
que os trabalhadores ficaram submetidos às condições impostas por essas
empresas, uma vez que não podiam negociar com elas da mesma forma
que negociavam quando os sindicatos estavam fortes. Apesar de a Cons-
tituição brasileira de 1988 ter um caráter socialdemocrata que apoiava a
formação de sindicatos, eles foram perdendo força por causa das reformas
neoliberais feitas no Brasil, que geraram desemprego e ajudaram a aumen-
tar o exército industrial de reserva. E, com o aumento do exército industrial
de reserva, diminui a capacidade de negociação dos sindicatos, pois um
trabalhador pode ser demitido, porque há outro que aceita as condições dos
empresários para ocupar a mesma vaga.

NEOLIBERALISMO, DESEMPREGO E CRISE


DOS SINDICATOS

Na década de 1990, o desemprego se tornou umas das principais


características da População Economicamente Ativa (PEA) brasileira. Com

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


213
a implantação das reformas neoliberais feitas por Fernando Collor de
Mello e Fernando Henrique Cardoso, como a privatização de indústrias e
a desregulamentação do mercado de trabalho, as empresas tiveram maior
liberdade de atuação, e o desemprego nessa década atingiu taxas altíssi-
mas, superiores às da década de 1980. Vale lembrar também que a revo-
lução tecnológica nas indústrias, aliada às novas formas de organização
do trabalho, leva à demissão de um grande número de trabalhadores sem
que haja possibilidade de reintegração na mesma função, além de dimi-
nuir a criação de mais postos de trabalho.

Há, então, um movimento pendular que caracteriza a classe tra-


balhadora: por um lado, cada vez menos homens e mulheres
trabalham muito, em ritmo e intensidade que se assemelham à
fase pretérita do capitalismo na gênese da Revolução Industrial,
configurando uma redução do trabalho estável, herança da fase
industrial que conformou o capitalismo do século XX. [...] No
outro lado do pêndulo, cada vez mais homens e mulheres tra-
balhadores encontram menos trabalho, esparramando-se pelo
mundo em busca de qualquer labor, configurando uma crescen-
te tendência da precarização do trabalho em escala global [...].
(ANTUNES, 2010, p. 103)

Dessa forma, temos que, entre 1989 e 1998, “a população ocu-


pada cresceu 14,6%, enquanto a PEA total aumentou 22,6%, o que
influenciou diretamente o aumento do desemprego no conjunto do país,
estimado em 280,3%” (POCHMANN, 2001, p. 103). Em outras pala-
vras, podemos dizer que a epidemia de desemprego na década de 1990
ocorreu por conta da menor evolução dos postos de trabalho diante da
expansão da PEA.
Apenas 62,5% das pessoas que se inseriram no mercado de trabalho,
na década de 1990, conseguiram um emprego ou posto de trabalho. Em
números absolutos, temos que, dos 13,6 milhões de pessoas que se inse-
riram no mercado de trabalho no período já citado, somente 8,5 milhões
obtiveram acesso a uma vaga de emprego, o que gerou 5,1 milhões de
desempregados no país (POCHMANN, 2001).

Fabio Mathias da Silva Junior


214
Comparando com a década de 1980, temos que, nos anos 1990,
96,1% das pessoas que ingressaram no mercado de trabalho consegui-
ram um emprego. Durante a década de 1990, Pochmann ainda ressalta
que:

Na média, a cada ano, 1,5 milhão de pessoas foram adicio-


nalmente incorporadas ao mercado de trabalho, mas apenas
943 mil pessoas tiveram acesso à ocupação. Ainda em ter-
mos anuais, nota-se que a década de 1990 contribui para o
registro adicional de 567 mil desempregados (média anual).
(2001, p. 103)

Essa taxa de desemprego foi mais expressiva em pessoas que


possuíam escolaridade entre 4 e 7 anos do que em pessoas que tinham
menos de 1 ano de escolaridade. Pochmann esclarece:

Essa situação possivelmente esteja revelando a natureza das ocu-


pações que têm sido criadas mais recentemente no país, muito mais
vinculadas às formas de produção e reprodução de estratégias de
sobrevivência do que a postos de trabalho de qualidade associa-
dos ao novo paradigma tecnológico. Por serem mais associadas ao
baixo rendimento e a formas precárias de trabalho, tendem a ser
justamente os trabalhadores com menor escolaridade os principais
exploradores dessas oportunidades ocupacionais ou, de maneira
mais precisa, categorias disfarçadas de desemprego. (2001, p. 105)

Ainda sobre a questão da escolaridade, verifica-se que trabalha-


dores com 8 anos ou mais de escolaridade, em 1998, possuíam taxa de
desemprego 2,2 vezes maior do que a de trabalhadores com baixa es-
colaridade. Assim, o desemprego da década de 1990 caracterizava-se
mais por estar vinculado à maior escolaridade e à capacitação técnica
do que à empregabilidade da mão de obra com baixa qualificação.
Segundo Pochmann (2001, p. 106): “Para as pessoas com menos de
um ano de escolaridade, a taxa de desemprego foi, em 1998, 49%
inferior à taxa nacional, enquanto para aqueles com mais escolaridade
foi 13,8% superior” (2001, p. 106). Talvez isso se deva ao fato de que

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


215
um grande número de pessoas com baixa escolaridade recorre ao mer-
cado informal de trabalho como forma de sobrevivência.
Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco-
nômicos (Dieese), no período de 1989 e 1998, a variação do desemprego
para os trabalhadores que possuíam escolaridade de 8 anos ou mais foi de
620%, e para os que possuíam de 4 a 7 anos de escolaridade foi de 268,7%,
enquanto para os trabalhadores de 1 a 3 anos de escolaridade essa variação
alcançou 39,7%. A variação do desemprego total do período supracitado foi
de 166,7%.
Não é possível atribuir o quadro de desemprego vivido pelos traba-
lhadores brasileiros na década de 1990 a uma única causa ou motivo. Na
verdade, existem dois pontos que ajudam a explicar essa expansão do de-
semprego: “as baixas taxas de expansão da economia brasileira nas duas
últimas décadas e a condução do novo modelo econômico desde 1990”
(POCHMANN, 2001, p. 111).
Dessa forma, desde que o Brasil interrompeu o seu projeto de industria-
lização dos anos de 1930 a 1970, o Brasil perdeu seu dinamismo, do ponto
de vista econômico. Pochmann afirma serem três os fatores que influenciaram
nessa perda de dinamismo econômico nas décadas de 1980 e 1990: “a esta-
bilidade da renda per capita em torno do valor de 1980; a redução de em-
prego assalariado formal (desassalariamento); e a permanência de baixas
taxas de investimento” (2001, p. 112).
Nos anos de 1980 e 1990, a economia do Brasil registrou grandes
instabilidades, com oscilações de produção a cada momento, “que podem
ser constatadas tanto nos três períodos de recessão (1981-83, 1990-92 e
1998-99) nas duas fases de recuperação da produção (1984-86 e 1993-97),
em como nos anos de estagnação (1987-89)” (POCHMANN, 2001, p. 114).
Com isso, tem-se que, em 1998, segundo o IBGE, o número de pessoas
desempregadas chegou a 7 milhões, enquanto na década de 1980 esse
número não passou de 2 milhões (POCHMANN, 2001).
A partir da década de 1990, as reformas econômicas de cunho
neoliberal passaram a ganhar força no Brasil (ANTUNES, 2010). Esse novo

Fabio Mathias da Silva Junior


216
caminho tomado pela economia brasileira foi marcado pela implantação
de um novo projeto econômico de inserção competitiva no mercado
mundial que, segundo Pochmann, pode ser identificado nas seguintes ações
governamentais, direcionadas

[...] à menor diferenciação possível entre mercados interno e ex-


terno; à modernização de grandes empresas com fortes ligações
no comércio internacional; à crescente dependência econômica
e financeira do exterior; e à passagem do Estado empreen-
dedor para o estágio de regulador e focalizador das ações
sociais, sendo a privatização uma oportunidade de formação de
grandes grupos econômicos nacionais ou associados ao capital
estrangeiro. (2001, p. 114)

Ainda para Pochmann, as principais evidências do modelo econômi-


co atuante desde 1990 são “a nova composição da demanda agregada; a
reinserção externa; a reestruturação das grandes empresas; e a reformula-
ção do setor público” (2001, p. 114).
A nova composição da demanda agregada foi formada pela revisão
do papel do Estado na economia, de forma que o Estado passou a racio-
nalizar os gastos públicos e a privatizar empresas estatais (tendência que
ganha força com o governo Fernando Henrique Cardoso); pela desregu-
lação financeira, que gerou endividamento externo e maior dependência
de investimentos financeiros de outros países; pela desregulação econô-
mica, causada pela fusão de grandes empresas produtivas e financeiras;
e, por fim, pela estabilização monetária (POCHMANN, 2001). Essas mo-
dificações feitas na economia brasileira não se mostraram suficientes para
permitir um desenvolvimento socioeconômico maior durante a década de
1990, assim como também não possibilitaram uma geração maior de no-
vos empregos.
As importações de produtos passaram a ser, a partir de 1992, uma
tendência forte na economia brasileira, de tal forma que nossa produção
industrial foi sendo substituída pela importação de produtos. Esse fato,
aliado à estabilidade monetária pós-1994 e ao ingresso de recursos ex-
ternos, fez o Produto Interno Bruto (PIB) sofrer nova recomposição, sendo

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


217
que, ao mesmo tempo em que o setor secundário da economia foi per-
dendo a sua participação relativa na economia, o setor terciário obteve
um aumento na participação na produção nacional (POCHMANN, 2001).
Como o Brasil passou a década de 1980 fechado economicamente
para o pagamento da dívida externa, na década de 1990 o Brasil iniciou uma
fase de reinserção externa na economia, marcada pela desregulamentação
econômica, pela abertura comercial e pela formação do bloco econômico do
Mercado Comum do Sul (Mercosul). Para que isso ocorresse, o Brasil iniciou
um programa de inserção no mercado mundial. Porém, nesse momento, ha-
via um cenário de câmbio, juros e abertura comercial desfavorável. Isso fez
que o crescimento econômico esperado não fosse alcançado.
Com relação à reestruturação das grandes empresas, temos que ela
foi marcada por novos programas de gestão de produção, de reorgani-
zação do trabalho e de inovação tecnológica (ANTUNES, 2010). E como
havia uma tendência à substituição da produção doméstica pelas importa-
ções, ocorreu a substituição de produtos intermediários e de bens de capital
produzidos no Brasil por bens e componentes importados. Com isso, há um
comprometimento da produção nacional, de forma que o aumento da pro-
dução interna ajudou a elevar o nível de importações e não o de empregos.
Ainda sobre esse assunto, Pochmann afirma:

Entre as décadas de 1980 e 1990, por exemplo, somente as


empresas com menos de 10 empregados aumentaram continua-
mente a sua participação relativa no total de empregos formais,
pois as demais empresas terminaram por adotar, de maneira
mais generalizada, os processos de terceirização, redução de
hierarquias funcionais, diminuição do núcleo duro de emprega-
dos, entre outros. (2001, p. 118)

Na década de 1990, era intenção governamental “enxugar” a má-


quina pública, mediante programas de demissão voluntária, fechamento de
organismos estatais, privatizações e aprovações de reformas administrativas.
Estima-se que 250 mil postos de trabalho do estado de São Paulo tenham
sido extintos (POCHMANN, 2001). Assim, Pochmann conclui que:

Fabio Mathias da Silva Junior


218
Apesar da elevação das receitas públicas como proporção do
PIB, o desajuste das finanças públicas se manteve grave, espe-
cialmente a partir de 1994, com estabilização monetária. As al-
tas taxas de juros e o endividamento público se transformaram
nos principais motivos geradores da desorganização recente das
finanças públicas no Brasil. A dívida pública, por exemplo, pas-
sou de 155 bilhões de reais em 1994 para além de 500 bilhões
de reais, em 1999. (2001, p. 120)

Outro fator que agravou a situação do emprego no Brasil foi o proces-


so de flexibilização das relações trabalhistas que acompanhou as reformas
neoliberais aqui implantadas. Isso fez aumentar o número de subempregos e
de trabalhadores no mercado informal, e precarizou as relações de trabalho.
Desde a década de 1980, a revolução tecnológica, que abriu espaço
para a rápida automação das indústrias, e a crise das finanças estatais, fez
que a formação acadêmica não fosse garantia de emprego, proporcionan-
do ainda a rápida perda de valor das qualificações do trabalhador. A partir
daí, o trabalhador que objetivasse um bom emprego deveria ser “superqua-
lificado”, aprender diversas funções ao mesmo tempo (KURZ, 1999):

Nesse processo social, uma parte crescente da intelectualidade aca-


dêmica foi degradada. O “eterno estudante”, o estudante de ma-
trícula trancada que tira seu sustento fazendo bicos em atividades
menores, a estudante de literatura inglesa aos 30 anos desempre-
gada, com seu inútil diploma de doutora, esses casos não são mais
raridade. Em todo o mundo ocidental, o taxista graduado em filoso-
fia tornou-se o emblema de uma carreira social negativa. Formou-se
um novo círculo, bem mais abrangente do que a antiga boêmia.
Historiadores diplomados trabalham em fábricas de pão de mel,
professoras desempregadas tentam a vida como babysitter, juristas
supérfluos vendem produtos culturais indianos. Muitas pessoas com
passado intelectual arrastam-se vida afora, com seus 30, 40 anos
de idade, em projetos intelectuais difusos, semiestudantis, e flutuam
em suas atividades entre o emprego de entregador de mercado-
rias, o jornalismo de ocasião e experiências artísticas improdutivas.
(KURZ, 1999, p. 1)

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


219
Em outras palavras, o trabalhador, no dito popular, “se vira como
pode”. A flexibilização é um instrumento para reduzir os custos de produ-
ção das empresas a qualquer preço. Dessa forma, as jornadas de trabalho
padronizadas são suprimidas, não no interesse dos trabalhadores, e sim
conforme o volume de encomendas feitas à empresa, em turnos diferentes
(KURZ, 1999). Com isso, os trabalhadores passam a ser “superexplora-
dos” pelo grande capital, visto que necessitam do emprego para sobrevi-
verem. Kurz conclui que:

[...] os indivíduos flexibilizados pelo capitalismo não são pes-


soas conscientes e universais, mas pessoas universalmente ex-
ploradas e solitárias. [...] Pessoas sem assistência e espoliadas
ficam doentes e perdem a motivação. E tornam-se cada vez
mais superficiais, dispersas e incompetentes. Isso porque a ver-
dadeira qualificação exige tempo, tempo de que o mercado
não dispõe mais. Quanto mais rapidamente mudam as exi-
gências, mais irreal torna-se a qualificação, mais o aprendiza-
do transforma-se num puro consumo de conhecimentos, num
mero aterro de dados. (1999, p. 2)

Assim, os novos postos de trabalho que eram criados tendiam a se


dar por meio de contratos com menos garantias para o trabalhador, como
contratos temporários, ou em trabalhos informais. Com isso, temos que,
mesmo em lugares onde a taxa de desemprego diminuía, os salários dos
trabalhadores eram reduzidos rapidamente, aumentando a concentração
de renda (MATTOS, 2003).
Nos anos de 1990, a área do Brasil mais afetada pelo desemprego
estrutural foi a região Centro-Sul, mais especificamente São Paulo, a área mais
industrializada do país. De acordo com Mattos, “em janeiro de 1998, a taxa de
desemprego da grande São Paulo foi de 16,6% da População Economica-
mente Ativa (contra 13,9% em janeiro do ano anterior), segundo a Fundação
Seade-Dieese” (1998, p. 4). E foi nessa região do Brasil onde aconteceram os
principais entraves políticos entre sindicatos, trabalhadores e empresas.
Podemos destacar duas centrais sindicais que atuaram significativa-
mente na década de 1990, ainda que sem a mesma força de “barganha”

Fabio Mathias da Silva Junior


220
que possuíam na década anterior. São elas a Central Única dos Trabalha-
dores (CUT) e a Força Sindical (FS). Vale destacar que a FS afirmava seu
apoio às reformas neoliberais, enquanto a CUT possuía uma tendência mais
à esquerda (CARDOSO, 2003).
Se compararmos a década de 1980 com a década de 1990, temos
que os anos 1980 foram “anos de ouro” para o sindicalismo brasileiro,
posto que, com taxas de emprego próximas ao pleno emprego, o poder
de “barganha” dos sindicatos aumentara, e seu número de filiados tam-
bém, tanto que, em 1989, a CUT chegou a ter 2 mil sindicatos filiados,
representando 8 milhões de trabalhadores de diversas áreas de setores
produtivos. Porém, esse quadro mudou a partir de 1990, especialmente
em 1994 (CARDOSO, 2003).
A partir de 1990, com o aumento nas taxas de desemprego e a
precarização das relações de trabalho, os sindicatos foram se enfraquecendo,
principalmente no que diz respeito às condições financeiras e às taxas de
filiação. Como a maioria dos sindicatos era financiada pelos próprios filiados,
o aumento do desemprego e a redução dos salários levaram à diminuição das
contribuições e dificultaram a filiação de trabalhadores a esses sindicatos. O
estado de São Paulo foi o único estado que teve aumento na taxa de filiação
sindical durante a década de 1990 (CARDOSO, 2003).
Com o aumento nas taxas de desemprego, as empresas aumentaram
o seu poder de “barganha”, baseado em ameaças de demissão de fun-
cionários, ou até mesmo de mudança de local de suas plantas produtivas.
Cardoso ressalta que:

As condições favoráveis de alta inflação e baixo desemprego foram


substituídas por baixa inflação com alto desemprego e informali-
zação, introduzindo um componente de insegurança no trabalho,
no emprego e na renda que reduz severamente a propensão dos
trabalhadores à ação coletiva. (2003, p. 43)

Um exemplo de acordo entre um sindicato e os empresários foi


quando, no final do ano 1997, o sindicato que representava os traba-
lhadores da indústria de autopeças de São Paulo, chamado Sindipeças,

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


221
anunciou que a manutenção do emprego de 8 mil empregados de uma fá-
brica estava vinculada à redução da jornada de trabalho com redução de
salário. A partir daí, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e a Força
Sindical também entraram em negociações com os empresários do setor
industrial. O acordo fechado previa redução de salários e da jornada de
trabalho, mas sem garantias de que não haveria funcionários demitidos,
e, segundo Mattos, “demissões foram anunciadas na Cofap [Companhia
Fabricadora de Peças] na mesma noite em que o acordo era fechado e
um mês após o acordo, apenas três empresas haviam aderido” (2003,
p. 7). Mesmo assim, o presidente da Força Sindical considerou o acordo
uma vitória dos trabalhadores.
Outro caso parecido com o anterior aconteceu em 1997, na região
do ABC paulista, quando a Volkswagen anunciou que demitiria 10 mil fun-
cionários caso eles não aceitassem redução da jornada de trabalho com
redução de salários. Diferentemente das medidas tomadas pela Força Sindi-
cal no caso anterior, os metalúrgicos do ABC fizeram assembleias e grandes
passeatas pela região, mostrando-se contrários à proposta da Volkswagen.
Os dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à Central Única
dos Trabalhadores, negociaram com a empresa um acordo que previa:

[...] estabilidade no emprego por 12 meses, um plano de demis-


sões voluntárias (que acabou por atrair 4 mil empregados), re-
dução nos adicionais pagos por trabalho noturno, taxas maiores
por alimentação e transporte, e ampliação do “banco de horas”,
um mecanismo pelo qual os trabalhadores trabalham menos nas
épocas de queda de produção, sem redução salarial, e repõem
as horas não trabalhadas no momento de aquecimento de ven-
das, sem adicionais de horas-extras. (MATTOS, 2003, p. 7)

A criação de um “banco de horas” mostra como o trabalhador


sofria cada vez mais com o processo de flexibilização do trabalho. Com
as altas taxas de desemprego no Brasil, o principal objetivo dos sindi-
catos naquele momento era garantir o emprego a seus filiados, mesmo
que para isso eles fossem “superexplorados”, com a criação de um
“banco de horas”.

Fabio Mathias da Silva Junior


222
Ainda assim, em dezembro de 1998, a Volkswagen anunciou a de-
missão de 7,5 mil funcionários da empresa; para barrar as demissões, o
sindicato negociou a redução de 15% do salário dos trabalhadores e da
jornada de trabalho em troca de 12 meses de estabilidade no emprego
(CARDOSO, 2003).
Como último exemplo, citarei o caso da Ford, que, em 1998, anun-
ciou a demissão, de uma só vez, de aproximadamente 47% dos traba-
lhadores de sua fábrica de São Bernardo do Campo. O Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC foi contra a proposta, mas a empresa não se estava
disposta a nenhuma negociação. Com isso, organizaram-se muitos pro-
testos durante alguns dias e, como medida final do sindicato, em janeiro
de 1999 todos os trabalhadores foram à fábrica para trabalhar, inclusive
os demitidos. Contudo, a Ford impediu que o trabalho tivesse início, uma
prática chamada lockout induzido, proibida por lei no Brasil. Finalmente,
em fevereiro de 1999, a empresa voltou atrás e anunciou um programa de
demissões voluntárias.
Com essas “vitórias”, houve efetivo ganho em legitimidade dos sin-
dicatos diante dos trabalhadores e, consequentemente, um aumento de
80% na taxa de filiados. Entretanto, os trabalhadores que garantiram seus
empregos foram obrigados a aceitar condições desfavoráveis para a ma-
nutenção de seus postos de trabalho:

Em termos puramente econômicos, os empregos foram garanti-


dos num momento de crise e crescimento do desemprego. Tudo
isso, porém, deu-se às custas de salários e benefícios subsidiários,
e de promessas de paz nas relações de trabalho. (CARDOSO,
2003, p. 56)

CONCLUSÃO

Desde o início de sua formulação, o projeto de reforma neoliberal


sempre se mostrou contra a política do welfare state, afirmando que ela

O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


223
limitava a liberdade do indivíduo de prosperar na sociedade, e procurou
combatê-la a todo custo. A oportunidade de “experimentar” novas políticas
econômicas chegou com a crise que assolou o mundo na década de 1970.
Assim, o projeto neoliberal teve como seu primeiro laboratório o Chile após
1973, durante a ditadura de Pinochet. Em 1979, o neoliberalismo chegou à
Inglaterra, com a eleição da “dama de ferro”, Margaret Thatcher. Logo de-
pois chega aos Estados Unidos, com a eleição de Ronald Reagan em 1981,
e daí se espalha para quase todo o resto do mundo.
No restante da América Latina, ele seria implantado com vigor só
após o Consenso de Washington, chegando ao Brasil em 1990, com o Pla-
no Collor, e teria seu auge com o Plano Real, durante o governo Fernando
Henrique Cardoso.
Na década de 1990, o processo de globalização gerado pelas
reformas neoliberais foi considerado o início de um novo tempo na
sociedade mundial, uma vez que as novas tecnologias e os ganhos em
produtividade eram vistos como fatores determinantes para a redução
das desigualdades sociais. Contudo, as marcas registradas do neolibe-
ralismo foram a concentração de renda e o aumento das desigualdades
sociais. A onda neoliberal que propunha acabar com a estagnação
econômica do Estado keynesiano produziu, na verdade, um crescimen-
to econômico e da qualidade de vida bem inferior ao que o welfare
state proporcionara em seu período de ouro.
O projeto neoliberal marcou a década de 1990 no Brasil, com a
privatização das empresas estatais em larga escala, desregulamentação
do mercado de trabalho, precarização das relações de trabalho, flexibili-
zação de contratos trabalhistas, crise nos sindicatos e, sobretudo, aumen-
to das taxas de desemprego e de informalidade no trabalho.
Com isso, o desemprego acabou sendo uma marca do projeto neo-
liberal no mundo, assim como no Brasil. Segundo a Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT), em 1999, um em cada três trabalhadores
estava desempregado ou exercendo uma atividade de sobrevivência, em
empregos informais ou trabalhos eventuais. O trabalhador era submetido
a um jogo econômico perverso: via-se obrigado a aceitar condições de

Fabio Mathias da Silva Junior


224
trabalho piores, com maior carga horária de trabalho e menores salários,
visto que, caso recusasse a “oferta”, acabaria demitido e substituído por
um trabalhador desempregado. Isso explica o elevado lucro de algumas
empresas e, ao mesmo tempo, o aumento do número de desempregados.
É de se notar também o alto índice de concentração de renda da so-
ciedade brasileira, que se acentuou com as políticas neoliberais. Segundo
Pochmann: “a cada 1 dólar recebido pelos 10% mais pobres, os 10% mais
ricos recebem 65,8” (2004, p. 62). Ou seja, os mais ricos tem uma renda
66 vezes maior do que a dos mais pobres.
Vale ressaltar uma melhora no mercado de trabalho brasileiro no iní-
cio dos anos 2000, com uma maior formalização do emprego no Brasil.
Porém, essa recuperação da economia brasileira não melhorou os índi-
ces da precariedade do mercado de trabalho. Na primeira metade dos
anos 2000, a taxa de desemprego caiu de 12,7% para 11,5%, mas a po-
pulação desempregada continuava sendo a maior parcela da PEA, tendo o
seu contingente aumentado em 1,3 milhões de desempregados entre 1999
e 2006 (SANTOS, 2008).
Essa “melhora” no quadro do mercado de trabalho brasileiro não foi
capaz de reverter a extrema exclusão da população desempregada do país.
“Logo faz-se necessária uma avaliação mais rigorosa do desenvolvimento das
diversas políticas públicas em curso [...] e avançar nos acertos com relação a
uma efetiva recomposição do mercado de trabalho” (SANTOS, 2008, p. 160).

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O neoliberalismo e a crise no mundo do trabalho a partir dos anos 1990


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Fabio Mathias da Silva Junior


226
IDENTIFICAÇÃO DOS ASPECTOS
BIOQUÍMICOS DO VENENO DAS
SERPENTES DO GÊNERO MICRURUS E
SEUS EFEITOS NO CORPO HUMANO

Gabriel Gaspar Garcia*

INTRODUÇÃO

A classe Reptilia é formada por animais chamados répteis, distribuídos


em quatro ordens distintas: Crocodylia (crocodilos e jacarés), Rhynchocephalia
(tuataras), Chelonia (tartarugas, cágados e jabutis) e Squamata (lagartos e
serpentes). Essa última ordem está separada em duas subordens: Ophidia
e Lacertilia (AMABIS e MARTHO, 2004). O gênero Micrurus está dentro
da subordem Ophidia e é, portanto, uma serpente.
Neste trabalho foram analisadas as características bioquímicas de
um dos gêneros de serpentes peçonhentas do Brasil, o Micrurus, no corpo
humano����������������������������������������������������������������������
. Seus objetivos específicos foram identificar as características bio-
químicas da peçonha desse gênero, localizar seus efeitos no corpo humano
e descrever as especificidades taxonômicas e a epidemiologia de acidentes de
cobras-coral, como representante do gênero Micrurus, no Brasil.
A importância da realização desse tipo de trabalho reside no fato
de que, apesar dos inúmeros acidentes relatados envolvendo ataques de

* Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão
de curso, contou com a orientação dos professores-pesquisadores Ray Luiza Soares Salgado Müller (mestre
em Educação Profissional em Saúde), do Laboratório de Formação Geral em Educação Profissional em
Saúde (Labform), e Danielle Ribeiro de Moraes (doutoranda em Saúde Pública), do Laboratório de Educação
Profissional em Atenção à Saúde (Laborat). Contato: gabriel.gasp@yahoo.com.br.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


227
serpentes, ainda faltam informações sobre os soros e a sua especificidade,
assim como não há um levantamento detalhado que inclua a caracteriza-
ção tanto do animal quanto de sua peçonha.
O gênero Micrurus apresenta o menor número de acidentes com
serpentes peçonhentas; por isso, existem poucos estudos e trabalhos so-
bre os efeitos do veneno da cobra-coral. Esse fato não deve ser igno-
rado, mas os estudos devem ser incentivados, pois existem muitas espécies
de Micrurus no Brasil, com ações bioquímicas que variam por espécie.
Quando uma pessoa é mordida por uma serpente peçonhenta, o
tempo é crucial, dado que a ação das toxinas é rápida. O médico ou qual-
quer funcionário precisa identificar em pouco tempo e de forma correta a
sintomatologia e causa dela – ou seja, a família ou gênero da serpente –,
para que seja aplicado o soro antiofídico certo. A parte mais importante
da determinação da sintomatologia é o fato de certos sintomas estarem
ligados a um gênero específico de serpentes. Por exemplo, se um paciente
apresenta edema e equimose, podemos supor que o acidente foi botrópi-
co, uma vez que esse gênero de serpentes origina esses sintomas. Entre-
tanto, se um paciente sofre de ptose palpebral1 e insuficiência respiratória,
entendemos que ele foi mordido por uma serpente do gênero Micrurus ou
Caudisona (FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2001).
Dessa forma, é importante o estudo sobre a Micrurus, pois, apesar de
representar o menor número de casos de picadas, esses existem e afetam uma
parcela da população – sendo que, nas regiões em que há o maior número de
espécies, como a Amazônia, são maiores as dificuldades para a notificação.
Por essas razões, é necessário que os estudos sobre o mecanismo de
ação da peçonha no corpo se tornem mais frequentes e didáticos, para que o
tratamento adequado possa ser providenciado.
Para cumprir os objetivos propostos, foram analisados artigos, estudos
ofídicos e periódicos sobre a peçonha do gênero Micrurus, com base em um
levantamento bibliográfico. Para complementar as informações, foi realiza-
da uma visita ao Instituto Vital Brazil, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro,

1
Estado no qual uma das pálpebras fica caída, cobrindo parte do olho.

Gabriel Gaspar Garcia


228
onde contamos com a colaboração do professor Aníbal Melgarejo, biólogo,
especializado em ofídios, na sugestão de artigos relevantes para o tema.

CARACTERIZAÇÃO DAS SERPENTES


E ASPECTOS ANATÔMICOS

As serpentes se encontram na subordem Ophidia. É preciso ressaltar que


existe uma distinção entre os termos “serpente” e “cobra”: o primeiro é utilizado
ao mencionarmos qualquer animal da subordem Ophidia; já “cobra” é um
termo referente a alguns gêneros de serpentes pertencentes à família Elapidae:
Naja, Boulengerina, Wellsus e Spracklandus. Esses gêneros, classificados como
cobras verdadeiras, são encontrados no continente asiático e africano – ou
seja, não existem espécies de cobras na América do Sul (HOSER, 2009). No
Brasil, “cobra” é uma palavra utilizada coloquialmente para se referir a qual-
quer serpente, o que, na classificação biológica, é inadequado.
É necessário fazer também uma distinção entre “animais venenosos”
e “animais peçonhentos”. Alguns animais possuem mecanismos de defesa,
formados por toxinas, cujo objetivo é afastar predadores e se defender em um
momento de grande risco: esses animais são chamados venenosos, e entre
eles estão algumas espécies de sapos e peixes. Os animais ditos peçonhentos
possuem dentes e outras formas inoculadoras de veneno, e esses apare-
lhos inoculadores de veneno, chamados presas, são usados para envenenar,
matando ou imobilizando o outro animal, para que, então, esses animais
possam se alimentar. Os animais peçonhentos são algumas espécies de
serpentes e aranhas. Esses animais também inoculam o seu veneno, por
meio das presas, para se defenderem de possíveis ameaças (FUNDAÇÃO
OSWALDO CRUZ, 2001).
Desse modo, podemos identificar dois tipos de serpentes: as peçonhentas
e as não peçonhentas. As serpentes peçonhentas possuem cabeça achatada,
triangular e com pequenas escamas, que também recobrem o resto do corpo;
olhos pequenos e com fendas; cauda que se afina bruscamente em seu
corpo; presas inoculadoras de peçonha; e fosseta loreal, um órgão termorre-

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


229
ceptor situado entre o olho e a narina que possibilita às serpentes perceber
a quantidade de calor em um ser vivo (fig. 1). Isso é importante, pois a
maioria das serpentes peçonhentas possui hábitos noturnos e não tem
boa visão. As serpentes não peçonhentas têm cabeças arredondadas,
com placas e não escamas; olhos redondos, assim como as pupilas;
hábitos diurnos; sua cauda se afina esporadicamente ao longo do
corpo da serpente; e não possuem fosseta loreal (quadro 1).

Quadro 1. Características das serpentes peçonhentas e não peçonhentas.

Fonte: Böhm, 2010.

Gabriel Gaspar Garcia


230
Figura 1. Características anatômicas de serpentes peçonhentas.
Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

As serpentes peçonhentas podem ser diferenciadas pelo seu apa-


relho inoculador de veneno, porém essa não é a única diferença entre
as famílias de serpentes peçonhentas, pois cada família possui diferentes
tipos de peçonha, com características bioquímicas distintas. As espécies
de viperídeos, por exemplo, possuem muitas proteases na composição de
sua peçonha, enquanto as de elapídeos, entre as quais se encontram as
serpentes do gênero Micrurus, apresentam principalmente neurotoxinas em
sua peçonha (FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2001).

SERPENTES PEÇONHENTAS BRASILEIRAS

No manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais


peçonhentos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) (2001), foi des-
crito que, além de várias famílias e gêneros diferentes de serpentes não
peçonhentas, existem no Brasil duas famílias de serpentes peçonhentas:
Viperidae e Elapidae. A primeira apresenta o maior número de gêneros
de serpentes peçonhentas do Brasil e se caracteriza pela presença da
fosseta loreal. Todos os viperídeos brasileiros fazem parte dessa subfa-
mília e possuem as características clássicas de serpentes peçonhentas
(quadro 1). A família Viperidae compreende sete gêneros – Bothrops,
Bothriopsis, Bothrocophias, Bothropoides, Rhinocerophis, Caudisona
(antigo gênero Crotalus) e Lachesis –, os quais somam aproximadamente
28 espécies (BERNARDE, 2011). Os cinco primeiros representam a maior

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


231
parte das espécies de serpentes peçonhentas do Brasil e dos acidentes,
e, por isso, é importante a sua descrição (MELGAREJO, 2003). Além disso,
os mesmos estão enquadrados em acidentes brotópicos, por isso esse termo
é usado para esses gêneros. A diferença entre os viperídeos brasileiros pode
ser identificada na cauda das serpentes (fig. 2).

Figura 2. Diferença morfológica nas caudas de diferentes gêneros de viperídeos.


Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

As serpentes botrópicas produzem a maior parte dos acidentes no


Brasil, e as mais conhecidas dentre elas são as jararacas e jararacuçus.
Esse grupo possui tanto espécies que se espalham por grande parte do
território nacional, como a jararaca-pintada (Bothropoides neuwiedi),
quanto espécies isoladas geograficamente, como a jararaca-ilhoa
(Bothropoides insularis), sofrendo uma evolução independente e se
adaptando ao ambiente e tornando-se exclusiva da ilha da Queimada
Grande, na microrregião de Itanhaém, no litoral de São Paulo.
Existem aproximadamente vinte e quatro espécies botrópicas no Brasil.
As que constituem o maior foco da saúde pública, porque geram mais aci-
dentes com humanos e estão distribuídas em maior número pelo território
nacional, são, segundo Melgarejo (2003): Rhinocerophis alternatus (urutu-
cruzeiro, localizada no Sul e centro-sul do Brasil), Bothrops atrox (jararaca-
do-norte, no vale amazônico e Norte do país), Bothropoides erythomelas
(jararaca-da-seca, no Nordeste), Bothropoides jarlaraca (jararaca, no Sudeste,
do sul da Bahia ao Rio Grande do Sul), Bothrops jararacussu (jararacuçu, no
Sul e Sudeste), Bothrops leucurus (jararaca, na faixa atlântica nordestina da
Paraíba até o norte do Espírito Santo) e Bothrops moojeni (caiçaca, do Paraná
ao Maranhão). A espécie Bothrops neuwiedi (jararaca-pintada, jararaca-de-

Gabriel Gaspar Garcia


232
rabo-branco) se distribui por quase todo o Brasil, com exceção da Floresta
Amazônica, chegando até outros países, como Bolívia, Argentina, Paraguai e
Uruguai (MELGAREJO, 2003).
A peçonha do gênero causa no homem desde necroses e bolhas –
por causa das proteases, hialuronidases e fosfolipases –, a hemorragias
que ocorrem no tecido, além de inibir o mecanismo de coagulação.
Esse último fator é um dos principais, ativando o fator X e unindo-se à
ação da protrombina, uma enzima do veneno, que causa a degradação
e a redução da fibrina e do fibrinogênio. O mecanismo de coagulação
e a plaquetopenia2 dão origem a hemorragias. O quadro clínico se
caracteriza por dor no local da picada, edema e equimose, presentes
na maioria dos acidentes. Em casos mais graves, podemos citar
hemorragias em diversos locais do corpo, como gengivorragia, um
edema maior e mais grave que cobre uma área maior do que o local
da picada (se a picada ocorrer na mão, o braço inteiro, por exemplo),
bolhas e isquemia, levando à necrose dos tecidos. Assim, podem existir
diversas consequências para esses sintomas, um paciente pode vir a
morrer, por choque ou insuficiência renal aguda, ou sofrer amputação
decorrente de necrose, abscessos e síndrome compartimental
(FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2001).
O gênero Caudisona possui menos diversidade no Brasil e está
representado pelas cascavéis, com chocalhos no final de suas caudas,
que apresentam cores variadas e figuras losangulares pelo corpo. Esse
gênero possui apenas a espécie Caudisona durissus, presente na maior
parte do território nacional (BERNARDE, 2011).
Os acidentes com esse gênero de serpentes representam a maior
porcentagem de mortes, segundo a Fundação Nacional de Saúde
(2001), pelas características de sua peçonha. Dentre essas caracte-
rísticas, a que leva a maiores complicações é a miotóxica, que faz o
quadro do paciente evoluir rapidamente para a insuficiência renal, em
consequência da rabdomiólise,3 que libera na corrente sanguínea a pro-

2
Diminuição do número de plaquetas no sangue.
3
Quebra, destruição do tecido muscular.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


233
teína mioglobina, tóxica para os rins, razão do elevado número de óbitos.
Além disso, existem aspectos relacionados à ação coagulante do veneno,
como os botrópicos. No entanto, esses aspectos não são tão sérios, pois
não se evidenciam plaquetopenia e hemorragias; apenas a incoagulabili-
dade do sangue. A última é a atividade causada pelas neurotoxinas pré-
sinápticas, ocasionando dormência na face, ptose palpebral e dificuldade
de movimentação – efeitos parecidos com os apresentados pelos acidentes
com indivíduos do gênero Micrurus. Diferentemente do acidente botrópico,
não há dor no local da picada, nem edemas, mas vômitos, náuseas, dor
muscular e urina escura.
O gênero Lachesis compreende a maior serpente peçonhenta da
América, com uma espécie: Lachesis muta (surucucu-pico-de-jaca), que
alcança 3,5 metros de comprimento e está presente na Amazônia e na
Mata Atlântica (BERNARDE, 2011).
A peçonha laquética se caracteriza por efeitos coagulantes e pro-
teolíticos muito parecidos aos das espécies botrópicas, com atividade
similar à trombina e com diversas proteases, que causam necroses, dor
e edemas. A ação neurotóxica, bem como a hemorrágica, não foram
descritas e nem profundamente estudadas. Os acidentes podem levar o
paciente a sentir, não só pela ação neurotóxica, como por todas as outras,
tontura, diarreia, cólica abdominal, hipotensão arterial e bradicardia, e,
em casos mais graves, síndrome compartimental, infecções e abscessos
(FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2001).
A família Elapidae faz parte da subordem Ophidia, possuindo, apro-
ximadamente, 250 espécies, entre as quais se encontram as mambas e as
najas. No Brasil, a família é representada por dois gêneros: Micrurus, que
compreende aproximadamente 24 espécies diferentes (quadro 2), espalha-
das por todas as regiões, e que é o principal gênero da família Elapidae
nas Américas, conhecido como cobra-coral. O segundo gênero dessa fa-
mília é chamado Leptomicrurus, formado por três espécies de porte pe-
queno que ocorrem no oeste da Amazônia. Nesse gênero, encontramos
serpentes roliças com manchas amarelas ou vermelhas no ventre e dorso
negro (BERNARDE, 2011).

Gabriel Gaspar Garcia


234
Quadro 2. Espécies brasileiras de serpentes da família Elapidae.

Gênero Micrurus Gênero Leptomicrurus


Micrurus albicinctus Leptomicrurus collaris
Micrurus altirostris Leptomicrurus narduccii
Micrurus anneladus Leptomicrurus scutiventris
Micrurus averyi
Micrurus brasiliensis
Micrurus corallinus
Micrurus decoratus
Micrurus filiformis
Micrurus frontalis
Micrurus hemprichii
Micrurus ibiboboca
Micrurus langsdorffii
Micrurus lemniscatus
Micrurus nattereri
Micrurus paraimae
Micrurus paraensis
Micrurus psyches
Micrurus putumayensis
Micrurus pyrrhocryptus
Micrurus remotus
Micrurus silviae
Micrurus spixii
Micrurus surinamensis
Micrurus tricolor

Fonte: Dados extraídos de Bernarde, 2011.

O gênero Micrurus possui todas as características de serpentes não


peçonhentas (MELGAREJO, 2003), mas as cobras-coral, integrantes desse
gênero, são peçonhentas, o que dificulta a sua identificação. Além disso, o tipo

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


235
de dentição da Micrurus, assim como o de toda a família, é proteróglifo, ou
seja, apresenta um aparelho inoculador de veneno não muito desenvolvido.
Outra dificuldade na identificação das cobras-coral peçonhentas é
a existência de cobras-corais-falsas que pertencem a várias famílias, como
Erythrolamprus, Oxyrhopus e Anilius. Essas serpentes mimetizam os anéis e
as cores das escamas da cobra-coral, assim não é possível distingui-las ape-
nas observando as cores que apresentam na parte de cima de seus corpos.
Podemos distingui-las observando os dentes dos animais – uma vez que as
cobras-corais-falsas não possuem dentes inoculadores de veneno do tipo
proteróglifo –, ou conferindo a parte de baixo de seus corpos – pois algumas
espécies de falsas corais apresentam coloração branca nessa região e não
os anéis das corais verdadeiras (STAHNKE, 2005). Essa característica das
cobras-corais-falsas claramente pode ser encarada como uma vantagem
adaptativa dessas espécies de serpentes não peçonhentas em relação às ou-
tras, pois, ao imitarem uma serpente peçonhenta, enganam o seu predador
e, assim, são menos ameaçadas. É importante citar que algumas espécies
de falsas corais possuem o anel por todo o corpo, sendo as presas o único
aspecto pelo qual é possível diferenciá-las das corais verdadeiras.
Como mencionado anteriormente, esse gênero possui diversas carac-
terísticas semelhantes às das serpentes não peçonhentas, o que também pode
ser entendido como uma vantagem adaptativa para que as presas confundam
a cobra-coral com uma serpente não peçonhenta. A cauda é curta e cilín-
drica, e a Micrurus apresenta escamas lisas pelo corpo, além da coloração
característica, vermelho, amarelo, branco e preto, em anéis que percorrem
o corpo. Essas cores estão distribuídas de duas formas nas espécies brasi-
leiras: anéis pretos isolados ou em tríades. Por esse motivo, não há como
distinguir as corais verdadeiras das falsas observando apenas os anéis e a
sequência dos mesmos.
A cobra-coral habita a camada superficial do solo e não é de na-
tureza agressiva, não é ágil e tampouco é grande em comprimento. Essas
qualidades, associadas à sua pequena abertura bucal, de aproximadamente
30 graus, fazem que ela não seja capaz, ou tenha dificuldades, de morder
uma presa ou um humano facilmente (MELGAREJO, 2003), o que resulta na

Gabriel Gaspar Garcia


236
baixa estatística de acidentes com humanos dessas serpentes no Brasil. No en-
tanto, isso propicia uma característica típica da cobra-coral: quando consegue
morder uma presa ou pessoa, não solta facilmente, com o objetivo de injetar
a maior quantidade de peçonha possível. Os acidentes com a cobra-coral
geralmente se localizam nas mãos, pelo manuseio inadequado, sem técnica,
das serpentes, ou pela confusão dela com as falsas corais (ABREU, 2008).
As corais se localizam na camada superficial do solo e possuem
pescoço pouco desenvolvido, cauda curta e corpo cilíndrico, adapta-
ções ao hábito fossorial de escavação do solo. Outra adaptação ao
hábito já citado é a pouca abertura bucal, que surgiu da rigidez do crâ-
nio da cobra-coral. As serpentes do gênero são ovíparas e colocam
geralmente de 2 a 10 ovos no chão, em formigueiros, ou em troncos
em decomposição. Os filhotes nascem após dois meses aproximada-
mente, com 17 cm de comprimento e prontos para inocular a peçonha
(MELGAREJO, 2003).
Existem diversas espécies de Micrurus no Brasil (ver anexo) e algumas
delas são extremamente raras e se localizam, por exemplo, em altas mon-
tanhas e em locais menos povoados da Floresta Amazônica; outras, vistas
frequentemente, são as mais importantes para serem descritas, pois causam
maior número de acidentes. São elas:
• M. corallinus, uma das corais mais comuns nas regiões Sul e Sudeste –
grande quantidade de estudos científicos enfoca essa espécie;
• M. frontalis, um complexo formado por corais com tríades de
anéis pretos entre os vermelhos e focinho com manchas irregula-
res pretas e amarelas. Nesse complexo, existem quatro espécies
brasileiras, M. frontalis (Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso
e Mato Grosso do Sul), M. altirostris (Região Sul), M. brasiliensis
(Goiás, norte de Minas Gerais e sul e sudoeste baiano) e M. tricolor
(sul e sudoeste do Mato Grosso do Sul);
• M. ibiboca, espécie que apresenta focinho branco com poucas man-
chas escuras; presente no Nordeste, do Maranhão à Bahia;
• M. lemniscatus, muito maior que outras corais, chega a 1,5 metro
de comprimento; habita várias áreas do território brasileiro e de outros

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


237
países, e está presente na Floresta Amazônica, no cerrado do Centro-
Oeste e no litoral, na Mata Atlântica; e
• M. spixii, também uma espécie de grande porte, com anéis amarelos
largos (MELGAREJO, 2003).

IDENTIFICAÇÃO DOS COMPONENTES BIOQUÍMICOS


DO VENENO DO GÊNERO MICRURUS

A grande quantidade de proteínas que compõe a essência dos ve-


nenos – não só o de serpentes, mas também o de outros animais – possui
propriedades que variam conforme a espécie estudada (MOREIRA,
2010). Sua ação pode ocorrer de forma rápida ou não, dependendo de
diversos fatores. A composição do mesmo pode ser afetada por sexo,
idade, sazonalidade, território, presa e espécie de serpente, mas, em
geral, ele é formado por cerca de 25% de sólidos totais, dos quais 70% a
90% são proteínas e polipeptídeos com elevada massa molecular, sendo
o restante, de 10% a 30%, composto por substâncias de baixo peso mo-
lecular, como carboidratos, lipídeos, aminoácidos, nucleotídeos e peptí-
deos (MOREIRA, 2010).
Após dissertar sobre as outras serpentes brasileiras, é importante
descrever o efeito do veneno do gênero Micrurus. O veneno da Micrurus
se caracteriza principalmente por efeitos neurotóxicos que provocam
no homem e na presa da serpente a imobilização do corpo, levando,
em casos graves, ao óbito por insuficiência respiratória, causada pela
paralisação do diafragma. O veneno das corais é considerado o veneno
mais tóxico das serpentes brasileiras. Provavelmente, o veneno da
cobra-coral possui essas características para que ela se alimente mais
facilmente, visto que a presa se encontra paralisada. Esses efeitos são
manifestados pela quantidade de neurotoxinas presentes no veneno,
como as α-neurotoxinas (ABREU, 2008).

Gabriel Gaspar Garcia


238
Além do efeito neurotóxico, existe o miotóxico,4 que alguns autores
acreditam estar ligado ao neurotóxico, ou mascarado por ele, ou seja, algu-
mas ações de neurotoxinas podem causar mionecrose,5 como as fosfolipases
A2. Podemos dizer, então, que as fosfolipases A2 causam o efeito mionecróti-
co nos humanos. A maioria dos venenos de corais causam efeitos miotóxicos e
mionecrose; nos envenenamentos em humanos, uma mialgia pode se instalar
sem indicar a mionecrose. Esse fato não pode ser comprovado, pois efeitos
macroscópicos não são observados, e testes para medir os efeitos miotóxicos
não são feitos quando um acidente ocorre.
Podem ser descritos cinco tipos de enzima nos venenos de ser-
pentes: oxirredutases, hidrolases, glicosidases, proteases e lipases, sendo
parte dessa última constituída por fosfolipases e acetilcolinesterases, pre-
sentes no veneno do gênero Micrurus. Em relação à família Elapidae – e,
consequentemente, ao gênero Micrurus –, podemos citar na composição
de sua peçonha diversas toxinas, como proteases, inibidores de proteases,
serinoproteases, metaloproteases, proteínas ricas em cisteínas, lectinas e
waprinas, além das fosfolipases A2 e de toxinas em forma de três dígitos
(MOREIRA, 2010). Descreveremos adiante cada uma dessas toxinas.
Segundo diversos estudos, o veneno do gênero Micrurus não se res-
tringe à atividade neurotóxica: também foi constatada atividade miotóxica,
hemorrágica e cardiovascular. No entanto, apenas os efeitos neurotóxicos e
miotóxicos foram identificados em acidentes com humanos.

Toxinas de três dígitos


São polipeptídeos que possuem de 60 a 74 resíduos de aminoácidos
que não possuem atividade enzimática. Resistentes a variações do ambiente,
termoestáveis e facilmente absorvidas pela corrente sanguínea, distribuem-
se rapidamente pelos tecidos (MOREIRA, 2010), sendo esse um dos motivos
pelos quais não há como extrair o veneno quando ocorre um acidente com
uma serpente peçonhenta, algo que parte da população acredita ser possí-
vel, por isso, há tentativas de espremer, sugar ou imobilizar o local para que
o veneno não atinja todo o corpo.

4
Efeito tóxico para as células musculares.
5
Necrose muscular.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


239
As toxinas de três dígitos têm quatro ligações dissulfeto, das quais par-
tem as estruturas secundárias. Os polipeptídeos são estruturados na forma
β-pregueada, com formato discoidal e achatado, apresentando um lado côn-
cavo e outro convexo. As toxinas recebem esse nome, pois possuem três alças
nas quais estão situados os aminoácidos (MOREIRA, 2010).

Figura 3. Estrutura das toxinas de três dígitos.


Fonte: Reproduzido de Moreira, 2010.

Existem diversos tipos de toxinas de três dígitos, com estrutura semelhante


entre si, mas que promovem efeitos bioquímicos diferentes. Podemos citar, en-
tão, como toxinas de três dígitos: α-neurotoxinas (fig. 3A e 3B), que agem sobre
os receptores nicotínicos; κ-bungarotoxinas (fig. 3D), que reconhecem os re-
ceptores nicotínicos neurais; toxinas muscarínicas (fig. 3G), que atuam nos
receptores muscarínicos;6 fasciculinas (fig. 3F), que inibem acetilcolineste-
rases; calciseptinas, que bloqueiam canais de cálcio tipo L; cardiotoxinas ou
citotoxinas (fig. 3C), que formam poros na membrana celular; dendroaspinas
(fig. 3I), que participam dos processos de adesão celular; toxina FS2 (fig. 3H);

6
Receptores de neurotransmissores estimulados pela acetilcolina.

Gabriel Gaspar Garcia


240
e candoxina (fig. 3E) (���������������������������������������������������
MOREIRA��������������������������������������������
, 2010). Em relação às dendroaspinas, há di-
vergências quanto a seus efeitos: Kini (2002 apud MOREIRA, 2010) afirma que
elas agem na adesão celular, enquanto Prieto da Silva (2002 apud MOREIRA,
2010) sustenta que elas formam poros na membrana celular.

Figura 4. Ação das toxinas do veneno do gênero Micrurus na célula humana.


Fonte: Reproduzido de Moreira, 2010.

Como podemos ver na figura 4, existem três principais toxinas de três


dígitos no veneno do gênero Micrurus que agem na placa terminal – reunião
de encontro entre o neurônio e a célula muscular, local onde agem os neuro-
transmissores –, intervindo na sinapse química: α-neurotoxinas, fasciculinas e
dendroaspinas. As primeiras se encarregam de interceptar os receptores coli-
nérgicos; as fasciculinas agem inibindo a acetilcolinesterase, uma enzima que
catalisa a acetilcolina; já as dendroaspinas formam poros na membrana celu-
lar (MOREIRA, 2010). O veneno do gênero Micrurus age somente no sistema
nervoso periférico e, portanto, somente na sinapse química, provavelmente
porque as toxinas não conseguem atravessar a barreira hematoencefálica.7

7
A barreira hematoencefálica é uma estrutura cerebral formada por células; ela garante a proteção
do sistema nervoso central, por meio da restrição da passagem de substâncias do corpo.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


241
A sinapse nervosa ocorre a partir da acetilcolina, o neurotransmissor
principal, que fica armazenado nas terminações nervosas. Aproxima-
damente 20% da acetilcolina são liberados, em vesículas sinápticas,
na membrana celular do axônio, mais especificamente, na placa terminal da
membrana pré-sináptica. As vesículas se fundem à membrana pré-sináptica e
geram uma leve diferença de cargas na membrana pós-sináptica. Entretanto,
essa despolarização não é bastante para gerar uma ação no músculo; ela
causa outro efeito, o de liberação dos 80% de acetilcolina restante nas termi-
nações nervosas, a qual, ao passar pela fenda sináptica, chega à membrana
pós-sináptica e gera uma despolarização forte o suficiente para contrair o
músculo. A acetilcolina se liga então a receptores nicotínicos, que são re-
ceptores de neurotransmissores na membrana pós-sináptica, e depois é
degradada pela enzima acetilcolinesterase.

Figura 5. Estrutura do receptor nicotínico.


Fonte: Moreira, 2010.

O receptor nicotínico é uma proteína heteropentamétrica presente no


músculo, e, portanto, na membrana pós-sináptica. A acetilcolina pode se
ligar a esse receptor em dois sítios de ligação: entre as cadeias α1 e γ e α1
e δ (fig. 5). As α-neurotoxinas ligam-se, então, nesses sítios dos receptores
na placa terminal, causando um bloqueio na transmissão da sinapse quí-
mica e, assim, impedindo o movimento. Como o mecanismo de ação das
α-neurotoxinas se dá na membrana pós-sináptica, são conhecidas como
toxinas pós-sinápticas e causam esse efeito no homem (MOREIRA, 2010).

Gabriel Gaspar Garcia


242
Essas neurotoxinas afetam principalmente os receptores nicotí-
nicos de acetilcolina muscular, mas, segundo Nirthan e Gwee (2004),
algumas ainda afetam os receptores neuronais, e existe a possibilidade
de agirem em outras moléculas e células também. Isso ocorre, pois
as α-neurotoxinas não são um grupo homogêneo, existindo diversos
tipos delas (MOREIRA, 2010).
As α-neurotoxinas de cadeia curta são formadas por 60 a 62 ami-
noácidos e 4 ligações dissulfeto conservadas; elas se ligam com os re-
ceptores da musculatura esquelética dos mamíferos ou do peixe-elétrico
Torpedo marmorata. Já as α-neurotoxinas de cadeia longa têm de 66 a
75 aminoácidos e 5 ligações dissulfeto, das quais quatro são conservadas;
a quinta se localiza na segunda alça, e a primeira ligação é mais curta
do que as das α-neurotoxinas de cadeia curta. Esse tipo de α-neurotoxinas
se liga não só aos receptores nicotínicos de acetilcolina musculares,
mas também aos receptores neuronais do tipo homopentamétricos, sendo
a quinta ligação dissulfeto o principal motivo pelo qual essas neurotoxinas
apresentam essas características.
Por fim, temos as neurotoxinas não convencionais, homólogas às de
cadeia longa (MOREIRA, 2010), que contam com 62 a 68 aminoácidos.
Elas apresentam estrutura parecida com as α-neurotoxinas de cadeia lon-
ga, diferenciando-se pela localização da quinta ligação dissulfeto, que
se dá na primeira alça. Elas são chamadas fracas, pois a quinta ligação
proporciona baixa afinidade com os receptores musculares, e por isso
são menos tóxicas. Existem autores que acreditam que essas neurotoxi-
nas podem afetar outras estruturas moleculares (MOREIRA, 2010).

Fosfolipases A2
Fosfolipases são enzimas catalisadoras de hidrólises de glicerofos-
folipídeos; estão divididas em A1, A2, B, C e D, e são encontradas não
apenas no veneno de animais, mas também no pâncreas de mamíferos
(MOREIRA, 2010).
As fosfolipases A2 elapídicas apresentam grande similaridade com
as de mamíferos: possuem 120 aminoácidos e de 6 a 7 ligações dissulfeto,

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


243
com 5 formadas por α-hélices e as outras duas por β-pregueadas. Essas
fosfolipases são mais tóxicas que as dos mamíferos; produzem efeitos neu-
rotóxicos, miotóxicos, cardiotóxicos, coagulantes, hemolíticos, convulsio-
nantes, edematogênicos e hipotensores (MOREIRA, 2010).
Os efeitos tóxicos das fosfolipases não estão relacionados à catálise
de fosfolipídios, mas à sua capacidade de se ligar a diversos sítios de proteí-
nas que atuam como receptores de neurotransmissores; isso ocorre porque
essas toxinas possuem um sítio diferente do catalítico que se liga median-
te a complementaridade de cargas, a hidrofobicidade e as forças de van
der Walls (MOREIRA, 2010). Podemos dizer, então, que as fosfolipases A2
possuem efeitos diferentes dos catalíticos, tanto que algumas toxinas dessa
classe não apresentam atividade enzimática (MOREIRA, 2010).
As fosfolipases A2 presentes no veneno do gênero Micrurus são chama-
das de β-neurotoxinas, e também estão presentes nas famílias Hydrophilidae e
Viperidae, inibindo a liberação de neuromediadores (MOREIRA, 2010).
A atividade neurotóxica acontece porque as β-neurotoxinas se ligam
à membrana plasmática pré-sináptica e catalisam a hidrólise fosfolipídica.
Elas também agem dentro do citoplasma da célula pré-sináptica, nas vesí-
culas sinápticas, produzindo o mesmo efeito. Com essas ações na célula,
aumenta a quantidade de lisofosfolipídeos e ácidos graxos, resultados da
catálise, tornando a membrana mais permeável ao cátion Ca+2, e aumen-
tando a sua quantidade na célula – e esse excesso causa a degeneração
de organelas celulares e da terminação nervosa (MOREIRA, 2010). É jus-
tamente essa característica que ocasiona o efeito miotóxico, como descrito
anteriormente. O excesso de cálcio na célula afeta o sarcolema e, conse-
quentemente, o retículo endoplasmático, aumentando o número de Ca2+
no citoplasma. Esse aumento causa danos mitocondriais e fosfolipases de-
pendentes do Ca2+. Esses fatores resultam em necrose da célula muscular,
caracterizando a atividade miotóxica do veneno.
A atividade pré-sináptica se dá em três fases: redução na liberação
de acetilcolina, seguida do aumento na liberação e bloqueio completo e
irreversível na transmissão sináptica química (MOREIRA, 2010).

Gabriel Gaspar Garcia


244
Proteases
São enzimas catalisadoras de proteínas, com alto peso molecular,
que intervêm diretamente na cascata de coagulação sanguínea, produzindo
um efeito de coagulação para auxiliar na digestão. Esse grupo está mais
presente na família Viperidae, sendo pouco presente na família Elapidae
(MOREIRA, 2010). No entanto as serpentes elapídicas australianas apre-
sentam efeitos proteolíticos em seus venenos, da mesma forma que algumas
espécies de Micrurus. As proteases são divididas em serinoproteases e meta-
loproteases (MOREIRA, 2010).

L-aminoácido oxidases
São flavoenzimas8 que convertem os L-aminoácidos em cetoácidos,9
liberando peróxido de oxigênio e amônia. Grupo mais estudado nos ve-
nenos, responsável por sua coloração amarela (MOREIRA, 2010). In vitro,
essas toxinas apresentam diversos efeitos e reações bioquímicas: atividade
citotóxica, antitumoral, apoptótica, hemorrágica, inibição da agregação
plaquetária e antimicrobiana. Apesar de todos os efeitos, seu quadro de
envenenamento ainda é desconhecido (MOREIRA, 2010).

Fator de crescimento neural (NGF)


É uma proteína formada por complexos homodiméricos, associados
por ligações não covalentes, que age no desenvolvimento de neurônios
colinérgicos. As proteínas NGF regulam e mantêm o desenvolvimento de
neurônios provenientes de neurônios sensoriais embrionários e células
nervosas. Além disso, promovem o extravasamento plasmático e a liberação
de histamina das células sanguíneas. Nos venenos, as proteínas NGF
deixam o local onde ocorreu o acidente mais suscetível a substâncias que
não interviriam nos tecidos afetados (MOREIRA, 2010).

Peptídeos natriuréticos
Classe de peptídeos estruturada em anéis e composta por 17 aminoá-
cidos e uma ligação dissulfeto conservada. Atuam sobre a pressão arterial e
8
Enzimas que possuem como cofator um derivado de um nucleotídeo da riboflavina.
9
Moléculas orgânicas que contêm um grupo funcional carbonila e ácido carboxílico.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


245
a homeostase do volume plasmático, por causa da sua ação na regulação
do balanço entre eletrólito e água. Os peptídeos natriuréticos nos venenos de
serpentes do gênero Micrurus afetam a vasodilatação, relaxam a musculatura
lisa (MOREIRA, 2010) e aumentam a permeabilidade no local da picada, o
que também auxilia no rápido alastramento das toxinas no corpo da presa,
um efeito identificado na espécie M. corallinus (MOREIRA, 2010).

Snacles
Eram chamadas de lectinas do tipo C. São proteínas que não apre-
sentam atividade enzimática, homodimétricas ou heterodimétricas, com
cadeias de aminoácidos alfa e beta, relacionadas estruturalmente, e pos-
suem ligações dissulfeto.
Existem dois tipos de lectinas. As lectinas do tipo C (CTL, do inglês
C-type lectin) ligam-se a carboidratos quando ocorre a presença de Ca2+,
iniciando um grande número de processos, como os de adesão, aglutinação,
endocitose, neutralização do patógeno e agregação de plaquetas (MOREIRA,
2010). O outro tipo de lectina ocorre quando as primeiras perdem a capaci-
dade de se ligarem aos carboidratos, tornando-se lectinas do tipo CLRP (do
inglês C-type lectin-related protein), mantendo características estruturais com
as do primeiro tipo. Esse último grupo promove atividade anticoagulante
e agregação plaquetária, por se ligar com o receptor de membrana das pla-
quetas (MOREIRA, 2010).
As CLT causam uma atividade anticoagulante por se ligarem com a
trombina ou com os fatores IX e X da cascata de coagulação. Já as CLRP
induzem a agregação de plaquetas, produzindo um efeito coagulante, pelo
fato de se ligarem ao receptor de membrana das plaquetas (MOREIRA, 2010).

Waprinas
Waprinas (WAP, do inglês whey acid protein) são estruturadas por cer-
ca de cinquenta aminoácidos, com oito resíduos de cisteínas10 conservados,
que formam quatro ligações dissulfeto. As waprinas constituem um grupo
com diferentes ações biológicas por causa das mudanças em cada tipo de
waprina das regiões entre as cisteínas. Dentre as suas ações, podemos citar

10
Aminoácido que compõe as proteínas.

Gabriel Gaspar Garcia


246
inibição de Na+K+ATPases, proteases, inibição do crescimento e atividades
bactericidas (MOREIRA, 2010). Em mamíferos, as waprinas agem na matu-
ração espermática no epidídimo (MOREIRA, 2010). No veneno de serpen-
tes, a atividade bioquímica das waprinas foi pouco estudada, mas alguns
autores acreditam que elas atuam na inibição do crescimento de bacté-
rias Gram-positivas, uma ação antimicrobiana (MOREIRA, 2010).

ATIVIDADES ESPECÍFICAS DE VENENOS DE DIFERENTES


ESPÉCIES DE MICRURUS

O gênero Micrurus possui grande número de espécies no Brasil, e os


efeitos do veneno de cada uma dessas espécies são diferentes. Como alguns
deles ainda não foram estudados, não se sabe se existem outros efeitos re-
lacionados ao veneno das corais. Mencionarei, então, alguns desses casos
específicos, restringindo-os apenas às espécies de Micrurus brasileiras.
O veneno de M. altirostris é caracterizado pelo bloqueio neuromuscular
irreversível de ação subsináptica, sem envolvimento de enzimas (ABREU, 2008).
A atividade neurotóxica pré-sináptica foi descrita na espécie M. corallinus, e no
veneno de M. lemniscatus foram identificadas quatro fosfolipases com atividade
pré-sináptica capazes de induzir efeitos comportamentais e eletroencefalográ-
ficos, e degeneração neuronal em camundongos. Foi identificada atividade
convulsionante, mas baixa atividade epileptogênica (MOREIRA, 2010).
A ação miotóxica foi experimentalmente identificada nos venenos
de M. frontalis, M. surinamesis, M. altirostris, M. spixii, M. corallinus,
M. albicinctus, M. iboboca, M. averyi e M. lemniscatus (MOREIRA, 2010).
Atividade edematogênica não se evidencia na maioria das espécies bra-
sileiras em quase todas as regiões; entretanto, todas as espécies amazônicas
apresentaram formação de edema e atividade miotóxica (MOREIRA, 2010).
As espécies M. brasiliensis, M. lemniscatus, M. corallinus e M. frontalis
causaram hemorragia visceral e subendocárdica em ratos, e o veneno de
M. averyi causa uma hemorragia discreta (MOREIRA, 2010).
A espécie M. altirostris apresenta ainda atividade hemolítica nos leu-
cócitos, provavelmente causada pelas fosfolipases A2. Essas toxinas também

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


247
promovem a ruptura de lisossomos na célula, fato observado nas espécies
M. lemnicastus, M. surinamensis e M. frontalis (MOREIRA, 2010).
Alguns autores, como mencionado, acreditam que citocinas e car-
diotoxinas são sinônimas, mas outros autores acreditam que certas corais
apresentam efeitos cardiovasculares porque essas toxinas, ao se ligarem a
receptores na membrana das fibras musculares cardíacas, causam parali-
sia irreversível e parada cardíaca. Isso é observado na espécie M. fluvius,
que não existe no Brasil, mas acredita-se que espécies brasileiras possam
apresentar o mesmo efeito. O veneno da espécie M. frontalis tem esse efei-
to, causado por fosfolipases A2 com atividade hipotensora e hemorrágica,
enzima que ainda não teve a sua estrutura determinada (MOREIRA, 2010).

ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS SOBRE OS CASOS DE


ACIDENTES COM O GÊNERO MICRURUS

Segundo a Funasa (FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2001), fo-


ram notificados 81.611 acidentes com serpentes peçonhentas entre 1990 e
1993, e 0,3% deles foram com Micrurus (ver quadro 3).

Quadro 3. Distribuição dos acidentes ofídicos,


segundo o gênero da serpente, no Brasil (1990-1993).

Distribuição Número de acidentes %


Bothrops 59.619 73,1
Caudisona 5.072 6,2
Lachesis 939 1,1
Micrurus 281 0,3
Não informados 13.339 16,3
Não peçonhentos 2.361 3.0

Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

Como podemos ver no quadro 3, a maioria dos acidentes ofídicos é


causado pelo gênero Bothrops e o menor número, pelo gênero Micrurus,
provavelmente por causa das características das serpentes desse gênero,

Gabriel Gaspar Garcia


248
anteriormente descritas, de serem dóceis, possuírem hábitos fossoriais e
subfossoriais e apresentarem pouca abertura bucal.
Dessa forma, é natural que o gênero também possua o menor núme-
ro de óbitos, como mostra o quadro 4. É importante ressaltar que o quadro
mostra a letalidade do gênero Caudisona como a maior no Brasil, por causa
das características do veneno desse gênero, expostas anteriormente.

Quadro 4. Letalidade dos acidentes ofídicos por


gênero de serpente no Brasil (1990-1993).

Gênero Número de casos Número de óbitos Letalidade


(%)
Bothrops 59.619 185 0,31
Caudisona 5.072 95 1,87
Lachesis 939 9 0,95
Micrurus 281 1 0,36
Não informado 13.339 69 0,52
Total 79.250 359 0,45

Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

Nos acidentes registrados pelo Centro de Informações Toxicológicas de


Santa Catarina (CIT/SC), entre maio de 1984 e dezembro de 2005, houve 88
pacientes que sofreram acidentes com Micrurus (gráfico 1).
Com base nesses dados específicos, podemos notar certas caracterís-
ticas dos acidentes com o gênero, identificando um aspecto sazonal neles,
visto que o maior número dos acidentes aconteceu nos meses de março, abril
e novembro, meses não apenas de temperaturas altas, mas que também po-
dem ser diretamente relacionados às épocas de plantio e colheita agrícolas.
Além disso, nos meses mais quentes aumenta a vegetação (o que dificulta a vi-
sualização das serpentes), o número de serpentes na área rural e o número de
trabalhadores, que, por causa da alta temperatura, estão menos protegidos
não apenas em termos de vestuário, mas também de equipamentos de pro-
teção individual (EPIs), com o que ficam expostas as extremidades do corpo
(RODRIGUES, 2006). Além disso, os meses mais quentes estão relacionados
à época de reprodução das serpentes, que ficam mais ativas e irritadas.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


249
Gráfico 1. Acidentes com o gênero Micrurus registrados pelo CIT/SC, entre
maio de 1984 e dezembro de 2005, divididos por sazonalidade.
Fonte: Reproduzido de Rodrigues, 2006.

Quando se analisam os acidentes segundo a ocupação da população


afetada, podemos ver que em Santa Catarina, no período 1984-2005, a po-
pulação mais afetada foi a dos trabalhadores rurais, seguidos por crianças
menores de 7 anos e donas de casa (gráfico 2).

Gráfico 2. Percentual de casos de acidentes com Micrurus por


ocupação dos pacientes, entre maio de 1984 e dezembro de 2005.
Fonte: Rodrigues, 2006.

Gabriel Gaspar Garcia


250
Com base no gráfico 2, podemos entender a razão pela qual a
maioria dos acidentes com Micrurus se localiza nas mãos e por que os
mais afetados têm uma relação direta com o solo – e, assim, tendem a so-
frer acidentes nas extremidades do corpo. Outro motivo para os acidentes
com Micrurus é o manuseio inadequado de serpentes por pesquisado-
res (gráfico 3).

Gráfico 3. Número de pacientes atendidos em


relação ao local do acidente no corpo.
Fonte: Rodrigues, 2006.

Para evitar esses acidentes é importante que o sistema de saúde pro-


mova ações de conscientização para os trabalhadores sobre o motivo e a
importância do uso de EPIs: evitar, entre outros acidentes de trabalho, aque-
les com serpentes peçonhentas – algo que não ocorre, visto que os traba-
lhadores rurais representam o maior número de acidentes. O mais grave é
que o sistema de saúde não reconhece os acidentes ofídicos como acidentes
ocupacionais ou doenças ocupacionais tanto para os agricultores quanto
para as donas de casa, resultando na negativa de concessão de benefícios
ao trabalhador que sofra um acidente com serpentes peçonhentas, o que re-
presenta um encaminhamento errôneo, pois o trabalhador fica incapacitado
de trabalhar por um período de tempo em que não recebe remuneração
alguma (RODRIGUES, 2006).

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


251
No estudo de Nascimento (2000) sobre os acidentes com Micrurus
em Roraima, a desestruturação da saúde pública novamente se revela,
pois o autor afirma que, apesar dos acidentes ofídicos representarem
um grande problema da saúde pública, as notificações desses casos
são escassas. Dos 309 casos estudados em Roraima, a maioria (49%)
se localizou no município de Alto Alegre, caracterizado por áreas vegetais
de florestas e campos abertos. Nesse local, ocorreu o maior número de
acidentes ofídicos dos poucos registrados com serpentes do gênero
Micrurus e da espécie Lachesis muta. Esse grande número de acidentes
se deve à localização, no município, da Terra Indígena Yanomami, onde
ocorre a maior porcentagem desses acidentes (74%), provavelmente pela
proximidade dos índios aos locais com maior número de espécies
de serpente, e também pelo fato de áreas florestais possuírem
maior número de serpentes peçonhentas do que áreas urbanas
(NASCIMENTO, 2000).
Dessa forma, podemos identificar tanto em Santa Catarina quanto
em Roraima as áreas rurais como locais em que ocorrem a maior parte
dos acidentes, e as pessoas com alguma relação com ambientes de ve-
getação como as mais propícias a envenenamentos. Assim, é importante
ressaltar a possibilidade de ocorrência de diversos acidentes em áreas
indígenas no norte do Brasil não registrados pela falta de notificação
apropriada, decorrente do isolamento geográfico dessas áreas, justa-
mente as que possuem mais espécies de corais com venenos ainda não
estudados completamente.
Com base no gráfico 4, vemos que o período de ação do veneno
nos pacientes em Santa Catarina foi irregular, pois 17 pacientes chegaram
ao hospital em menos de uma hora; 39, entre uma e três horas; 20, entre
três e seis horas; e 13 em mais de seis horas (RODRIGUES, 2006). Assim,
podemos entender que o tempo para o aparecimento de sintomas é va-
riável, o que também talvez confunda o paciente, que termina por achar
que o acidente não ocorreu, quando, na verdade, os sintomas ainda vão
se manifestar.

Gabriel Gaspar Garcia


252
Gráfico 4. Número de horas para a procura de assistência médica e
de casos sintomáticos e assintomáticos nos pacientes.
Fonte: Rodrigues, 2006.

Um problema na saúde pública diz respeito ao antiveneno


produzido no Brasil para combater o efeito causado nos acidentes
com Micrurus. O soro mais utilizado é o soro antielapídico, genérico
para toda a família Elapidae, sendo pouco satisfatório para bloquear
ações como a neurotóxica. Abreu (2008) afirma que o antiveneno
comercial não é tão eficaz como deveria ser, e que ele foi incapaz
de impedir o efeito bloqueio neuromuscular causado pelo veneno de
M. altirostris no músculo biventer cervicis de pintainhos. Constatou-
se também que o antiveneno foi apenas eficiente quando a proporção
dele foi aumentada em relação à recomendação do fabricante. O
antiveneno foi obtido do Instituto Butantan, elaborado em cavalos com
os venenos das espécies M. frontalis e M. corallinus. O instituto afirma
que o antiveneno neutraliza 1,5 mg do veneno do gênero Micrurus com
1,0 ml de antiveneno, algo que não é constatado no estudo de Abreu
(2008) (ver gráfico 5).

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


253
Gráfico 5. Ação do antiveneno comercial em aves.
Fonte: Abreu, 2008.

Além de ser necessário providenciar um antiveneno ou soro antiofí-


dico que abranja todo o gênero Micrurus e evite o bloqueio neuromuscular
de forma eficiente para todas as espécies do mesmo, é importante a pre-

Gabriel Gaspar Garcia


254
sença de neostigmina na composição – algo que não ocorre atualmente –,
pois ela pode reverter o efeito pós-sináptico de diversas espécies de serpen-
tes, como a M. frontalis, pelas suas características acetilcolinesterásticas
(ABREU, 2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre as características das serpentes peçonhentas,


suas características bioquímicas e a estatística dos acidentes relaciona-
dos à cobra-coral, revelou uma complexidade impressionante, visto que
vários aspectos da saúde pública podem ser relacionados com o tema.
Outro fato foi a pouca disponibilidade de informações, sendo muito
difícil reunir características do veneno, explicitando que o ofidismo, um tema
de extrema importância para a saúde pública brasileira, é pouco estudado.
Apesar das características principais terem sido descritas, é importante
ressaltar que ainda existem várias lacunas e efeitos ainda não descobertos
que ajudariam a criar melhores mecanismos para evitar acidentes com
serpentes do gênero Micrurus.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Valdemir Francisco de. Estudo da ação do veneno bruto de Micrurus


altirostris (cobra coral uruguaiana) sobre a junção neuromuscular e da ca-
pacidade de neutralização do antiveneno comercial e do antissoro especí-
fico. 2008. Tese (Doutorado em Farmacologia) – Faculdade de Ciências
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Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


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NASCIMENTO, Sebastião Pereira do. Aspectos epidemiológicos dos acidentes
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Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

Gabriel Gaspar Garcia


256
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2000. Tese (Doutorado em Zoologia) – Instituto de Biociências, Universidade
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Disponível em: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAoB0AG/texto-
curiosidades-sobre-serpentes. Acesso em: 5 dez. 2010.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


257
ANEXO – ESPÉCIES PRINCIPAIS DE SERPENTES
BRASILEIRAS E SUA DISTRIBUIÇÃO NO BRASIL

Figura 1. Micrurus corallinus.


Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

Figura 2. Micrurus frontalis.


Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

Gabriel Gaspar Garcia


258
Figura 3. Micrurus lemniscatus.
Fonte: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

Identificação dos aspectos bioquímicos do veneno das serpentes do gênero Micrurus


259
OS NOVOS CONSUMIDORES: A INFLUÊNCIA
DA PROPAGANDA DE ALIMENTOS DIRECIONADA
AO PÚBLICO INFANTIL*

* *
Gabriela Fernandes Flauzino Santos

INTRODUÇÃO

A população brasileira vem passando, nos últimos trinta anos, por


um processo de transição nutricional, juntamente com uma mudança no
estilo de vida. Essa transição pode estar relacionada a questões estru-
turais próprias do capitalismo, cujas mudanças econômicas, culturais e
sociais decorrentes do avanço tecnológico culminaram em novos hábitos
de consumo, trabalho e produção. Assim, observa-se que há uma pre-
ferência por alimentos mais fáceis e rápidos de serem consumidos ou
preparados, por causa da correria do dia a dia.
Esse novo perfil de consumo da população pode trazer consigo agravos
à saúde decorrentes do tipo de alimentação consumida. Entre eles, destaca-
se a obesidade, atualmente considerada por muitos uma epidemia, pois
tem sido observada em idades cada vez mais precoces (RONQUE et al.,
2005), o que é preocupante, posto que a obesidade e o sobrepeso podem
acarretar o desenvolvimento de diversas doenças, como diabetes, hiperten-
são arterial e câncer, além de distúrbios alimentares e dermatológicos.

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0031.0.408.000-10.
**
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio com
habilitação em Vigilância em Saúde (2008-2010). Atualmente cursa Nutrição na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou
com a orientação das professoras-pesquisadoras Marta Gomes da Fonseca Ribeiro (mestre em Ciências
Pedagógicas) e Bianca Ramos Marins (doutora em Vigilância Sanitária de Produtos), ambas do Labora-
tório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa). Contato: gabiflauzino@yahoo.com.br.

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


261
O aumento da obesidade infantil também está relacionado diretamente
com o aumento da obesidade entre adultos, pois estima-se que o risco de se
permanecer obeso quando adulto se a obesidade se apresenta na infância
é de 25%, e esse risco chega a 80% quando a obesidade continua na ado-
lescência (VIUNISKI, 2005).
A publicidade é um instrumento importante utilizado pelas empresas,
incluindo as alimentícias, pois contribui para divulgar e incentivar as pessoas
a comprarem e consumirem os produtos veiculados. Para alcançar os seus
objetivos e conquistar o consumidor, as empresas utilizam artifícios nas
propagandas, como o uso de artistas da TV consumindo ou recomendando
o produto, promoções para incentivar a compra etc. No caso da
propaganda produtos dirigidos ao público infantil, são utilizados artifícios
como personagens infantis, cores vibrantes, brinquedos, entre outros.
Nesse contexto, confere-se às crianças o status de clientes, ou seja,
pessoas que gastam, compram e consomem de acordo com o seu próprio
gosto, exigindo o que desejam (PEREIRA, 2002). E as empresas elaboram
o tipo de publicidade específica para esses clientes. O preocupante é que,
em relação ao restante do público, as crianças são as mais vulneráveis aos
apelos da mídia. No caso das propagandas de alimentos, em que a grande
maioria dos alimentos possui baixo valor nutricional e alto teor de gordura,
isso pode fazer que essas crianças tenham uma concepção errada do que é
um alimento saudável.
A tentativa da regulamentação do marketing de alimentos destinados
ao público infantil pede cuidados especiais, tendo em vista a ameaça de uma
epidemia de doenças não transmissíveis (DNTs) relacionadas à dieta, como
doenças cardíacas, certos tipos de câncer, diabetes e obesidade (HAWKES,
2006). Ainda de acordo com essa autora, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) preparou um anteprojeto de estratégia global sobre alimentação sau-
dável, atividade física e saúde que deverá ser objeto de análise pelos Estados-
membros. E propostas para restringir a publicidade de alimentos destinados às
crianças têm sido objeto de discussão em países como Alemanha, Austrália,
Brasil, França, Irlanda, Itália, Malásia, Nova Zelândia, Polônia e Reino Unido.
Contudo, esses países definiram critérios regulamentares para a publicidade

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


262
voltados apenas para a mídia televisiva (HAWKES, 2006), o que demonstra a
necessidade de ampliar a discussão no que diz respeito ao direito do cidadão
à informação e à liberdade de expressão.
No Brasil, a regulamentação destinada ao controle da publicidade
de alimentos dirigidos ao público infantil ainda deixa espaço para as empre-
sas alimentícias do país elaborarem propagandas muitas vezes abusivas. Há
alguns projetos de leis para serem aprovados que visam um maior controle
sobre a publicidade infantil ou a publicidade infantil de alimentos, como o
projeto de lei nº 4.315/2008 que pretende dobrar o tempo de detenção para
os que façam e promovam propagandas enganosas ou abusivas direcionadas
às crianças. Outro exemplo é o projeto de lei nº 4.935/2009, que pretende
proibir a entrega de brindes, brinquedos e prêmios na compra de alimentos
ou bebidas, inclusive em lanchonetes fast-food. Até hoje, esses projetos não
foram aprovados por muitos fatores, entre eles a pressão das grandes empre-
sas de alimentos ou de produtos infantis.
Em relação à publicidade infantil de alimentos, pode-se observar
que a maioria das regulamentações é voltada para a mídia televisiva, ha-
vendo assim menos controle sobre as propagandas presentes na mídia
impressa, como em revistas destinadas ao público jovem.
Diante dessa situação, o objetivo do presente estudo foi identificar as
estratégias de marketing utilizadas em peças publicitárias destinadas ao públi-
co infantil com base na literatura científica que trata de temas como propa-
ganda, alimentos, obesidade infantil. Dessa forma, foi possível identificar quais
as principais estratégias utilizadas em peças publicitárias de alimentos, como
forma de influenciar a alimentação do público infantil.
O estudo de Henriques et al. (2012) revelou que todas as propagandas
televisivas de alimentos dirigidas a crianças, no período de férias escolares,
infringiam as determinações do Regulamento Técnico da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) em pelo menos três artigos relacionados aos
alimentos com quantidade elevada de açúcar, de gorduras e de sódio e de
bebidas com baixo teor nutricional. Os autores ressaltam a urgência do setor
público em regular o conteúdo das propagandas de alimentos infantis, cujo
consumo pode ser prejudicial à saúde, por causa da influência que essas

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


263
propagandas exercem na decisão pela compra, tanto das próprias crianças
quanto dos pais.
Para Francesco Branca (apud SANTOS, 2011), membro do comitê da
OMS, a obesidade em crianças resulta da pouca atividade física, associada
ao hábito de consumo de alimentos que superam as necessidades calóricas. E
esse autor observa que nos países emergentes houve também um crescimento
da oferta de alimentos industrializados, ricos em açúcares e gorduras.

O CONCEITO DE INFÂNCIA NO CONTEXTO


DA PUBLICIDADE

No novo conceito de infância adotado pela indústria, a criança é


vista como um cliente em potencial, ou seja, um “novo consumidor”, pois
tem ca-pacidade de comprar e, também, de influenciar as compras rea-
lizadas por seus pais. Segundo a pesquisa Kids Power (TNS Interscience,
2008), realizada com pais e crianças de cinco países latino-americanos,
o percentual de influência da criança nas compras realizadas pelos pais
é de 52%. Esse mesmo estudo aponta tendência no aumento desse per-
centual. Contudo, questiona-se de que maneira surgiu esse status de
novo consumidor.
Transformações na economia e na cultura contribuíram para uma mu-
dança no conceito da infância. A partir do século XVIII, começa a formar-se
uma visão da criança como um ser incompleto, que deve ser educado
de acordo com a lógica da necessidade de consumo (PEREIRA, 2002).
Atualmente, as crianças se deparam com um mundo fantástico, ex-
postas a todo momento a informações provenientes de vários meios – te-
levisão, outdoors, revistas, panfletos, internet etc. E é nesse mundo que o
marketing para crianças se consolida, invadindo-as com um turbilhão de
cores, sons e figuras, tentando tornar seus produtos atraentes e essenciais.
As estratégias de marketing para capitanear o público são diversas: vão da
publicidade nos meios de comunicação ao modo como os produtos são
expostos nas gôndolas do mercado.

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


264
A propaganda caracteriza-se por ser uma forma de apresentar o produ-
to ou a marca ao consumidor, estimulando a aquisição do mesmo. Segundo
Linn (2006), as crianças americanas influenciam 600 milhões de dólares em
gastos anuais, o que demonstra a potencialidade do mercado consumidor in-
fantil. Ainda de acordo com essa autora, o marketing voltado para as crianças
apoia-se em métodos científicos, sendo aperfeiçoado por psicólogos infantis.
Percebendo isso, as empresas investem cada vez mais no marketing infan-
til, tentando estabelecer um vínculo com os indivíduos.
O marketing voltado para crianças é caracterizado pela comerciali-
zação de produtos para idades cada vez menores, buscando uma
identificação do público infantil com a marca. Para Linn (2006), o marketing
é formulado para influenciar mais do que preferências por comida ou
escolhas de roupa. Seu sentido seria afetar valores essenciais, como as
opções de vida – por exemplo, como definimos a felicidade e/ou como
medimos o nosso valor próprio. As técnicas mercadológicas desenvolvidas
por profissionais do marketing baseiam-se na manipulação das crianças,
denegrindo e/ou enfraquecendo a autoridade dos pais. São observadas,
mamadeiras, chupetas, lençóis e toalhas para bebês com personagens e
logos licenciados, numa busca por uma lealdade à marca.
Apesar de não haver estudos que comprovem cientificamente o sucesso
da publicidade para bebês, muitos acreditam que ela pode influenciar os pais
e a escolha da criança no futuro. De acordo com Linn:

Se o bebê [...] for regularmente colocado em frente à televisão para


assistir programas com os mesmos personagens quê vê no berço,
nas roupas, no móbile e nos brinquedos, a sua familiaridade com
esses personagens significará (talvez antes que aprenda a falar plena-
mente) que viagens ao supermercado serão acompanhadas de gritos
de alegria toda vez que os vir nas caixas de cereal e de desaponta-
mento se o cereal não for parar no carrinho. (2006, p. 70)

Essa citação nos leva a refletir e a inferir que a formação de novos


hábitos alimentares pode ser influenciada com base em critérios midiáticos,
pelos quais são minimizadas questões culturais e sociais, bem como os anseios
pessoais ou nutricionais.

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


265
PUBLICIDADE E MARKETING

Ao realizar a aquisição de um produto, não necessariamente esse ato


é orientado por uma decisão consciente. Na maioria das vezes, adquirimos
produtos sem necessidade, apenas para satisfazer nosso desejo de consumo.
Situações como essas são muito comuns, e são fruto das estratégias de mar-
keting adotadas pelas indústrias. O que é marketing, e como ele influencia o
poder de compra dos indivíduos?
O estudo do marketing, que busca colher informações sobre o com-
portamento das pessoas em relação ao mercado e ao consumo, agrega
diferentes áreas do conhecimento humano, tais como a sociologia, a psico-
logia e a filosofia (SHIMOYAMA e ZELA, 2006). As estratégias de marketing
vêm sendo utilizadas por diferentes empresas, que buscam oferecer produtos
e serviços a um determinado público, para fomentar o desejo de consumo.
Kotler define marketing da seguinte forma:

Marketing é a função empresarial que identifica necessidades e


desejos insatisfeitos, define e mede sua magnitude e seu poten-
cial de rentabilidade, especifica que mercados-alvo serão mais bem
atendidos pela empresa, decide sobre produtos, serviços e programas
adequados para servir a esses mercados selecionados e convoca a
todos na organização para pensar no cliente e atender ao cliente.
(2003, p. 11)

Ainda de acordo com esse autor, existe um campo de estudo especí-


fico para a análise do comportamento do consumidor, de forma a entender
os principais motivos que levam um determinado indivíduo ao ato de com-
pra, entender o seu comportamento em relação ao consumo.
A propaganda é uma parte do marketing destinada à divulgação das
ideias do comércio e à sedução de consumidores, estando presente, principal-
mente, nas grandes mídias de massa televisiva e impressa, podendo também
aparecer – embora essa seja uma forma nova – na internet, com a divulgação
de produtos em blogs ou sítios. Ela busca criar a necessidade de consumo dos
produtos veiculados, ou seja, convencer o público de que precisa de determi-

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


266
nado produto para ser/estar feliz, para ter amigos, para ser/estar bonito, para
possuir status (LINN, 2006).
Cada detalhe da publicidade é pensado a fim de tornar o produto mais
atraente, convencendo os consumidores a comprá-lo. E isso também acontece
com os alimentos, que, por serem produtos indispensáveis à sobrevivência,
recebem grande atenção, e há um alto investimento nesse tipo de publici-
dade. Essa “necessidade de consumo” é estimulada pela utilização de cores
vibrantes, músicas, associação do produto a personagens midiáticas, além da
cortesia de brindes.
Observa-se com frequência a disponibilização pelos supermerca-
dos de produtos direcionados ao público infantil em prateleiras facil-
mente alcançadas pelas crianças. Desta forma, ao se depararem com
desenhos e jogos preferidos por elas nas embalagens dos produtos que
estão nas prateleiras do mercado ou nas vitrines das lojas, as crianças
acabam fazendo uma junção entre o real e o imaginário, integrando a
realidade à sua própria visão de mundo, tornando o mundo em que elas
vivem “mais divertido” (RODRIGUES e BATISTA, 2007). Nessa dificul-
dade de distinção entre ficção e realidade, a propaganda se torna mais
uma brincadeira.
Para exemplificar a constante vinculação de seus produtos a per-
sonagens do imaginário infantil, determinada empresa tem como garoto
propaganda um palhaço que alia a diversão ao consumo de seus produtos
fast-food. Em um dos seus famosos lanches, sempre é vendido um brinque-
do ou algum personagem de programas, filmes ou revistas infantis, como
o Shrek, personagem fictício de uma animação infantil.
Sabe-se que a publicidade não tem o poder de “mandar” no con-
sumidor, e por isso, adota técnicas, como descreve Silva (2008, p. 6-12):
formar, reformar, conformar. De acordo com Linn (2006), essas técnicas se
valem do fator convencimento, o chamado “fator amolação”, na medida em
que as crianças incitam insistentemente seus responsáveis a adquirirem o
produto em questão. Segundo a autora, o estudo sobre o “fator amolação”
descobriu que o impacto da amolação das crianças sobre os seus responsá-
veis é significativo. Contudo, vale ressaltar que esse tipo de estratégia acaba

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


267
colocando a indústria entre pais e filhos, podendo desencadear conflitos
familiares. Linn, ao dar exemplo do “fator amolação”, expõe em seu livro
a fala de Kelly Stitt, gerente de uma empresa de molhos à base de tomate:

Toda a nossa propaganda é voltada para as crianças. Nós


queremos o fator amolação para que a Sarah, de 7 anos,
aborreça a mãe no supermercado para comprar Funky Purple.
Não temos certeza se a mãe o compraria por vontade própria.
(2006, p. 60)

O “fator amolação” é uma estratégia muito eficiente para estimular


a aquisição de um determinado produto pelos pais. Contudo, o critério de
decisão pelos responsáveis é a confiança no produto. Assim, as empresas
alimentícias utilizam em suas propagandas o chamado “marketing
nutricional”, ou seja, elas destacam os aspectos nutricionais positivos em
detrimento dos aspectos negativos, caso existam. Essa estratégia de marketing
é utilizada atualmente em virtude do comportamento da população, que vem
se mostrando mais preocupada com a qualidade da alimentação e com a
necessidade de ter um estilo de vida mais equilibrado e saudável, além da
valorização da boa forma física.
Dessa forma, a indústria alimentícia constantemente utiliza estratégias
de diferenciação do produto, ou seja, pelo oferecimento de atributos adi-
cionais de seus produtos se comparados com as marcas concorrentes. Essa
diferenciação pode ocorrer em relação ao sabor, consistência ou enrique-
cimento nutricional. Dentre as formas de diferenciação, a mais comum é
a fortificação nutricional, que possibilita a incorporação de nutrientes aos
produtos alimentícios (SCAGLIUSI, MACHADO e TORRES, 2005).
O marketing adotado por empresas alimentícias pode ser aplicado
à rotulagem ou à propaganda nutricional. Na rotulagem, busca-se um
design nas embalagens de acordo com o segmento de mercado que a
empresa deseja atingir. Cores, ilustrações, tamanho, material e informa-
ções fornecidas são os elementos das embalagens, sendo a cor o mais
importante, pois é o mais eficaz na influência de decisão de compra pelos
consumidores (ISHIMOTO e NACIF, 2001). Já a propaganda nutricional,

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


268
segundo Scagliusi, Machado e Torres (2003), está relacionada especifica-
mente com as informações expressas nos rótulos dos alimentos.
De acordo com a American Dietetic Association (ISHIMOTO e NACIF,
2001), as informações sobre saúde ou de conteúdo nutricional apresentadas
em propagandas ou rótulos devem estar baseadas em estudos científicos e
ser obrigatoriamente verdadeiras, claras e objetivas.
As propagandas de alimentos são muito comuns, seja na mídia te-
levisiva ou na mídia impressa, e entre elas estão as que são direcionadas
às crianças. Segundo um estudo do Observatório de Políticas de Segurança
Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (“Setenta e dois por cento
das propagandas de alimentos vendem más opções à saúde”, 2008), do total
de propagandas veiculadas na TV, 44% são de alimentos; nas revistas infantis,
15% das propagandas são de alimentos. Segundo dados publicados no sítio
do Canal Ciência em 2000 (CRIVELARO et al., 2006), 57,8% dos alimentos
veiculados são ricos em sal, gordura e açúcares que podem trazer danos à
saúde de quem os consome se comidos de maneira excessiva; 21,2% estão
no grupo de pães, massas e arroz; 11,7% estão no grupo de leites, queijos e
iogurtes; e 9,3%, no grupo de carne, ovos e leguminosas. Em relação a frutas
e verduras, o estudo constatou que nenhuma propaganda televisiva veiculava
informações sobre esse grupo de alimentos.

OBESIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A sociedade ocidental atual é caracterizada, dentre muitas coisas,


pela mudança de comportamento e no estilo de vida da população. Entre as
mudanças ocorridas, está a transição dos hábitos alimentares. Isso pode ser
explicado pelo fato de as pessoas não disporem do tempo necessário para
fazerem as suas refeições adequadamente; assim, optam pelo consumo de
alimentos industrializados e também dos chamados fast-foods, devido à prati-
cidade que apresentam.
O novo comportamento alimentar não ocorre somente no Brasil,
com o distanciamento do típico feijão com arroz, mas na sociedade con-

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


269
temporânea ocidental. Essa mudança também levou ao aumento na in-
cidência de indivíduos com sobrepeso e obesidade, principalmente entre
as crianças e adolescentes (RONQUE et al., 2005). Muitos estudiosos já
concebem a obesidade como um problema de saúde pública capaz de
merecer maiores esforços para se contornar a situação.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a obesidade é um
agravo à saúde caracterizado por um acúmulo anormal ou excessivo de
gordura no tecido adiposo, o que provoca um peso acima do normal nos
indivíduos que apresentam a doença, além de acarretar problemas para a
saúde do mesmo (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2010).
A obesidade é considerada uma doença crônica não transmissível
(DCNT) relacionada com a alimentação da população (HAWKES, 2006) e
associada a fatores não só comportamentais, mas também genéticos
e ambientais. Dessa forma, caracteriza-se como uma doença de etiologia
multifatorial, pois apresenta múltiplos fatores de risco e pela interação de fato-
res causais desconhecidos.
Podem-se destacar entre os agravos da obesidade a diabetes tipo 2, o
câncer, a hipertensão arterial, a hipercolesterolemia, a hiperlipidemia, além de
distúrbios psicológicos advindos (SANTOS, 2007). Os distúrbios psicológicos
advêm, principalmente, do preconceito, da discriminação e da exclusão
social, produzidos pela estigmatização da obesidade, fazendo que o indiví-
duo busque consolo na própria comida, ingressando em um ciclo vicioso
(FELIPPE, 2001). Essa forma de analisar a obesidade está relacionada com
o novo conceito de saúde, que acredita ser ela não somente ausência de
doença, mas também qualidade de vida.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003,
publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em
2004, 40% do total da população adulta brasileira está com o peso acima
do normal. Além disso, verifica-se um aumento significativo de sobrepeso e
obesidade entre crianças e adolescentes (FISBERG, 2005).
Em estudo realizado com crianças de 7 a 10 anos em Florianópolis/SC,
23,6% das crianças apresentavam sobrepeso e obesidade (FIATES, AMBONI
e TEIXEIRA, 2008). Em outro estudo, realizado com crianças de Londrina/PR,

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


270
19% das crianças apresentavam sobrepeso e 14% apresentavam obesidade
(RONQUE et al., 2005). Esses estudos afirmam que o crescimento da obesi-
dade entre jovens aumenta a probabilidade dos mesmos se tornarem adultos
obesos. O risco de uma criança obesa se tornar um adulto obeso é de 25%,
e pode chegar a 80% se a obesidade persistir depois dos 10 anos de idade.
Sabe-se que não é possível inferir apenas uma única causa para
a prevalência da obesidade entre crianças, porém a publicidade de ali-
mentos passa a ser um dos fatores que influenciam a obesidade infantil,
na medida em que os alimentos veiculados pela mídia são ricos em sódio
e gordura, que, se consumidos em excesso, podem acarretar danos à
saúde. Henriques et al. (2012) ressaltam que as crianças têm sido expos-
tas cada vez mais cedo a esse tipo de alimentação, seja pelo aumento da
jornada de trabalho dos pais, seja pela falta de opções saudáveis nas
escolas, ou, ainda, pelo bombardeio de propagandas de produtos alimen-
tícios que influenciam negativamente suas escolhas alimentares.
De acordo com o que foi discutido até o presente momento sobre ali-
mentação, nutrição, saúde, publicidade, ressaltamos a necessidade de se
ampliarem as discussões, e englobar nessas temáticas, e na relação com a
infância, profissionais de saúde, movimentos sociais e escolas. Assim, torna-se
patente o dever de o Estado regulamentar e fiscalizar as práticas comerciais
que envolvam alimentos e/ou crianças.
Mediante a consolidação de um novo contexto de infância no mundo
contemporâneo, a criança tem recebido uma autonomia muito grande, so-
bretudo em relação ao consumo, ficando livre para escolher o que deseja.
Contudo, essa autonomia não atinge as famílias pobres e ricas da mesma ma-
neira. A autonomia na aquisição dos alimentos e a conformação de uma dieta
equilibrada nutricionalmente podem estar condicionadas ao poder aquisitivo
das famílias e à necessidade de se desenvolver hábitos alimentares saudáveis.
Juntamente com essa autonomia, há uma maior dificuldade de se imporem
limites em relação ao consumismo precoce, que se agrava com a grande pu-
blicidade voltada para esse público-alvo. Assim, observa-se a necessidade da
apresentação de informações acessíveis, corretas e que não sejam abusivas.
O cidadão tem direito à informação capaz de subsidiá-lo a exercer seu direito

Os novos consumidores: a influência da propaganda de alimentos direcionada ao público infantil


271
de escolha. E o Estado deve contar com políticas públicas que previnam os
riscos à saúde, coibindo práticas abusivas da publicidade.
A infância é um período de descobertas e construção da perso-
nalidade. Nessa etapa da vida, os indivíduos estão mais vulneráveis às
influências, que podem vir tanto dos pais quanto da escola, de amigos,
da televisão, da internet, de revistas etc. A publicidade está incluída nessas
influências, e dessa forma é preciso analisar que tipos de valores são pas-
sados às crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aumento crescente do consumo de alimentos, como balas, biscoitos


e frituras, está relacionado ao aumento da obesidade infantil, e também no
número de casos de doenças decorrentes da obesidade.
Uma alimentação saudável na infância é de vital importância para o
desenvolvimento físico e mental, contribuindo para o seu metabolismo e cres-
cimento. Além disso, os nutricionistas indicam a necessidade de uma alimen-
tação rica em cálcio, ferro e vitaminas A, C e D, e de um consumo menor
de sódio, açúcar e gordura. Dessa forma, é importante a fiscalização dos
alimentos consumidos pelas crianças e um monitoramento do tipo de alimento
veiculado em propagandas, de forma a proteger a saúde delas.
São diversas as formas de influência das propagandas de alimentos
para crianças, assim é de extrema importância uma junção de forças na prote-
ção integral à saúde da criança, como a oferta de uma alimentação saudável
para o seu desenvolvimento.
É também de responsabilidade do Estado a proteção às crianças, im-
plantando regulamentações específicas para a publicidade de alimentos, e
também para a publicidade infantil. É importante a fiscalização do Estado
para que as empresas não se julguem livres para escolher o conteúdo para as
crianças, pois sabe-se que a escolha do que irá ou não ser veiculado está
baseada principalmente no lucro, e não no bem-estar e na saúde das crian-
ças. É preciso que as propagandas deem maiores informações, explicitando,

Gabriela Fernandes Flauzino Santos


272
por exemplo, os danos que podem ser causados pelo consumo do produto
veiculado. E é dever do Estado programar esse tipo de controle, e fiscalizar
o cumprimento das normas.
Porém, para que essas atitudes sejam tomadas, é preciso que toda a so-
ciedade esteja informada sobre os riscos da grande influência da publicidade
de alimentos direcionada às crianças, para que cobrem das autoridades com-
petentes rigor na fiscalização. Com o conhecimento de todos, será mais fácil
mudarmos essa situação, até conseguirmos que a publicidade não se utilize
da vulnerabilidade das crianças, e que a sua proteção de fato seja observada.
Os benefícios de uma alimentação equilibrada nutricionalmente já são
conhecidos e durante a infância ela é de vital importância para o desenvolvi-
mento físico e mental da criança. Garantir o acesso aos alimentos em quan-
tidade e qualidade deve fazer parte do desenvolvimento de políticas públicas
visando minimizar a ocorrência de doenças decorrentes da carência ou exces-
so do consumo de alimentos.
Nesse contexto, a propaganda de alimentos também deve fazer parte
do rol de discussões públicas. Não se trata de proibir a propaganda de ali-
mentos, mas de pensá-la de forma crítica e cautelosa, e que a legislação sa-
nitária seja capaz de definir critérios seguros para a publicização dos produtos
alimentícios.
A questão central da propaganda deve ser pauta de discussões em
vários fóruns da sociedade, para que não se comprometa a formação dos
hábitos alimentares na população mais jovem, além de se possibilitar a
reflexão sobre a lógica consumista que hoje vivenciamos.

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Gabriela Fernandes Flauzino Santos


276
UMA HISTÓRIA DO CARNAVAL:
O PROCESSO DE MERCANTILIZAÇÃO
DA FOLIA*

Guilherme Estevão de Lima Maciel**

INTRODUÇÃO

Este artigo faz uma análise sobre os desfiles das escolas de sam-
ba do Rio de Janeiro, utilizando como objeto de estudo as agremiações
que integram o Grupo Especial.1 Identifica a cadeia produtiva atrelada ao
evento e discute a maneira como as relações de trabalho e as tradições
se encontram em meio à atual conjuntura da festa. Sinaliza a apropriação
desses valores culturais a favor de uma lógica comercial e identifica tal
fenômeno como o processo de mercantilização do Carnaval.
O trabalho se deu pela leitura crítica da produção acadêmica a
respeito do tema e por uma investigação prática, por meio de entrevis-
tas com trabalhadores das escolas de samba. Para realizar as discussões
propostas, faz um resgate histórico do Carnaval, enfocando o início do
desenvolvimento dos desfiles carnavalescos e identificando marcos para
o processo de mercantilização. Além disso, apresenta os relatos dos tra-

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0050.0.408.000-11.
**
Ex-aluno do Curso Técnico de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao
Ensino Médio, com habilitação em Gerência em Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio (2009-2011). Atualmente, cursa Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso,
contou com a orientação da professora-pesquisadora Muza Clara Chaves Velasques, do Labo-
ratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (Lateps) da EPSJV/FIOCRUZ. Contato:
guilhermestevao@ufrj.br.
1
Principal grupo de disputa entre agremiações do Carnaval do Rio de Janeiro.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


277
balhadores a respeito do processo produtivo e a forma como enxergam o
panorama atual da festa.
A importância desta investigação se deve ao intenso fortalecimento do
processo de mercantilização dos desfiles carnavalescos nos últimos anos, o que
vem proporcionando questionamentos por parte dos sambistas, além de não
haver produção acadêmica aprofundada sobre o assunto.

O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO CARNAVAL

O Carnaval é uma festividade antiga que tem inúmeras teorias no


que concerne à sua origem. Apesar de os primeiros relatos sobre a festa
datarem do século VII, período de institucionalização da Quaresma,2 pes-
quisadores como José Carlos Sebe (1986) relacionam o evento a outras
celebrações ainda mais antigas.
Esses festejos apresentam semelhanças fundamentais em seus ri-
tos, como a presença de música e dança, além da utilização de ade-
reços, e as atitudes extrovertidas, livre de repressões, por parte dos
foliões. O que as distingue são as divindades cultuadas em cada evento,
como Ísis,3 para os egípcios, e Baco,4 para os romanos.
O Carnaval da Idade Média era um momento de consumo intenso
de carne vermelha por conta do início da Quaresma, que se dava logo
após o término do festejo. Carne vale é uma expressão italiana cujo sig-
nificado é “adeus à carne” (SEBE, 1986). A festa representava, também,
um momento de inversão das estruturas sociais, de alegria coletiva e dos
exageros. Esse fenômeno da cultura popular foi, por muito tempo, excluído
do âmbito acadêmico até ser analisado por Bakhtin (1999), que elaborou
o conceito de carnavalização.

2
Período de quarenta dias, do ano litúrgico, celebrado por igrejas cristãs, que sucede ao Carnaval
e antecede a Páscoa.
3
Deusa da mitologia egípcia, que simboliza a fertilidade e a maternidade.
4
Deus romano, cultuado pelos gregos com o nome de Dionísio. Divindade do vinho e dos excessos.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


278
O estudioso sinalizou que a festa representa um diálogo entre a
ordem e a visão carnavalesca do mundo, quando a seriedade da cul-
tura oficial é “destruída” pelo riso, que possibilita também a criação de
uma nova dimensão. Tal “dualidade de mundo” justifica as ações livres
de pudores dos foliões, transformando o Carnaval em uma válvula de
escape das pressões cotidianas.
A estrutura da festa permaneceu inalterada, em tese, até fins do século
XVII, como sinaliza Felipe Ferreira (2004), quando as classes dominantes pas-
saram a atuar no evento e o transformaram em atrativo turístico para as cida-
des, estabelecendo características estéticas que vão perdurar até os dias atuais
e que se manifestam claramente nos desfiles carnavalescos. Tais aspectos são
trazidos ao Brasil pelos colonos portugueses no século XVIII.
A primeira brincadeira carnavalesca a se enraizar no país foi o
entrudo,5 praticado até fins do século XIX. Apresentou duas vertentes, o fa-
miliar e o popular, cuja diferença principal era a classe de seus foliões.
Por mais que fosse praticado por cidadãos das mais variadas ordens
sociais, o entrudo passou a ser reprimido em meados do século XIX,
devido a mudanças de valores das classes dominantes, influenciadas
pelas concepções de progresso e civilidade da Europa.
Aos poucos, a prática do entrudo perdeu força. Em contrapartida,
bailes e sociedades carnavalescas 6 passaram a se fortalecer no evento,
vencendo, dessa forma, o ideal carnavalesco das elites. A eclosão maciça
das grandes sociedades se deu em fins do século XIX e proporcionou,
principalmente no Rio de Janeiro, uma disputa pelo controle das
ruas, além de fomentar atividades econômicas nos locais de desfile.
A festa das elites passou, aos poucos, a ser apropriada pelas classes
populares; com isso, foram concebidas novas categorias de brincadeiras,
como pequenas sociedades, ranchos, cordões, blocos carnavalescos e
zés-pereiras.7

5
Antiga celebração carnavalesca, de origem europeia, que tinha como configuração principal o
lançamento de líquidos e pós nos participantes.
6
Agremiações carnavalescas que possuíam adesão da elite e da grande imprensa e realizavam os
principais desfiles carnavalescos até o início do século XX.
7
Organizações carnavalescas que desfilavam pelas ruas com bumbos, zabumbas e tambores.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


279
Instalou-se, assim, uma crise no “grande Carnaval”, mas se promo-
veu um amplo desenvolvimento da festa, principalmente a carioca, que ga-
nhou notoriedade no país e no mundo. Ao mesmo tempo, brotava nos guetos
da cidade um novo gênero musical que, em meados do século XX, tornar-se-ia
símbolo da identidade musical nacional: o samba.
Os primeiros relatos sobre o samba datam de 1838. A palavra vem
de “semba”, ritmo angolano cuja dança é marcada por passos como a um-
bigada, que era considerada uma afronta à moral religiosa do século XIX
(AUGRAS, 1998). Há discordâncias em relação ao primeiro local de prática
do samba, mas em fins do século XIX eram organizadas rodas de samba no
bairro da Cidade Nova, com destaque para os eventos no terreiro de Tia
Ciata, frequentado por músicos da periferia carioca (FERREIRA, 2004).
O Carnaval das primeiras décadas do século XX foi marcado por uma
fusão de categorias carnavalescas, que passaram a incluir o gênero musical
dos terreiros da Cidade Nova – a Pequena África de Tia Ciata e Heitor dos
Prazeres – em seus ritos, criando uma nova estrutura foliã: as escolas de sam-
ba. Reuniu-se a organização dos ranchos, a desordem dos blocos e o samba,
que ganhava legitimidade aos poucos.
Perdura até os dias atuais a discussão sobre a criação da primeira
escola de samba. Segundo Monique Augras (1998), Ismael Silva, um dos
principais nomes da história do Carnaval, seria o responsável por conceber
o termo “escola de samba”. Entretanto, sua agremiação, a Deixa Falar, seria,
na verdade, um rancho-escola, fomentando os questionamentos de Portela
e Mangueira, que se autointitulam as primeiras escolas de samba. Outra
discussão sem conclusão diz respeito à gravação do primeiro samba. O que
há de concreto é que o gênero ganha reconhecimento e respeito no final da
década de 1920, assim como as escolas de samba.
Passando a ser legitimadas pela sociedade, mas ainda de maneira
“não oficial” perante o governo, as agremiações organizaram a primeira
disputa de escolas de samba, que ocorreu em 1932, com 19 agremiações.
Segundo Sérgio Cabral (1996, p. 52), a ideia foi do jornalista Mário
Filho, e a disputa foi patrocinada pelo jornal Mundo Esportivo.
Naquele ano, a Estação Primeira de Mangueira se sagrou campeã.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


280
O concurso das agremiações carnavalescas foi impulsionado a partir da
parceria firmada com o jornal O Globo.

O PROCESSO DE MERCANTILIZAÇÃO

Percebe-se que desde a concepção do concurso de escolas de samba


houve a necessidade de investimentos financeiros de entidades externas
ao “mundo do Carnaval”. Portanto, ao analisar o processo de mercantilização
da festa, seria infundado buscar uma pureza dos desfiles, assim como
menciona Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, ao dizer que “o acesso
a uma ‘tradição popular pura’ é humanamente impossível [...] as ideias de
autenticidade e pureza comportam problemas. Sugerem a homogeneidade,
e a cultura popular é, e sempre foi, essencialmente diversa” (2006, p. 24-25).
É possível também chegar a essa compreensão com base no conceito
de circularidade8 entre as culturas, de Ginzburg (1998). Isto é, as manifesta-
ções da cultura popular e da cultura dita oficial se relacionam nas experiências
de sua materialização no cotidiano social. Não existem, assim, formas puras de
manifestação cultural, tanto oficial quanto popular, apesar de suas respectivas
representações darem significados ao lugar das classes sociais nas sociedades.
O concurso das agremiações carnavalescas ganhou destaque com
a parceria firmada com o jornal O Globo, sinalizando, assim, a presença
da empresa no evento desde os seus primórdios. O jornal, além de pro-
porcionar a ampliação da visibilidade do concurso, foi responsável, já em
1933, pela organização da festa, estabelecendo quesitos de julgamento e
se encarregando da constituição do corpo julgador.
O concurso passou por alterações no regulamento até meados da
década de 1940, quando consolidou o padrão de avaliação, estabele-
cendo o samba de enredo como quesito de julgamento. Os sambas se
tornaram importante ferramenta de difusão da singularidade das escolas
de samba perante as demais formas de celebração do Carnaval. Posterior-

8
Conceito presente na obra, originalmente publicada em 1976, O queijo e os vermes: o cotidiano e
as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, de Carlo Ginzburg, historiador italiano.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


281
mente, configuram-se como peças fundamentais de promoção ideológica,
construindo em suas letras o Brasil que os governos buscavam mostrar, até
serem utilizadas, mais à frente, como instrumentos publicitários.
É em meados do século XX que os desfiles se consolidam definitivamente
como uma das principais práticas carnavalescas; nesse período se fortalece
a concepção de que as agremiações deveriam desfilar com enredos de
finalidade pedagógica, com temas nacionais e ufanistas. Alguns pesquisadores
do Carnaval, como Monique Augras (1998), tentam minimizar a influência
política na escolha dos enredos, afirmando que essa prática seria, na verdade,
um segmento da corrente intelectual vigente no período. Entretanto, há de
se convir que o governo não atribuiria recursos a políticas culturais que não
estivessem de acordo com a sua ideologia, e os desfiles das escolas de samba
já faziam parte do Programa Oficial do Rio de Janeiro, com alocação de
verbas, desde os governos de Pedro Ernesto (1931-1934 e 1935-1936).
A estreita relação entre o governo e a organização do concurso, tanto
no que se refere ao arranjo dos critérios de julgamento quanto na subvenção
do espetáculo, foi fundamental para uma primeira adequação da festa a inte-
resses “externos” a ela, mesmo que essa adequação não fosse tão agressiva
quanto viria a ser três décadas depois. Em favor da obtenção de reconheci-
mento e da manutenção da subvenção estatal, a ordem passa a se sobrepor
à desordem, com o que se configura, portanto, o início do processo de dis-
solução do princípio básico do Carnaval como sinalizado por Bakhtin (1999),
ao definir esse período de festa como o momento em que os foliões estão
submetidos apenas às leis da liberdade.
A legalização das escolas de samba perante o governo, a conces-
são de subsídios financeiros estatais e a “liberdade vigiada” ofertada pelo
Estado às agremiações no tocante a escolha das temáticas de desfile po-
dem ser consideradas “instrumentos utilizados pelas camadas superiores,
no sentido de reforçar sua preeminência sobre a população suburbana“
(QUEIROZ, 1992, p. 86). Entretanto, é inegável que o afunilamento das re-
lações entre escolas de samba e Estado foi fundamental em dois aspectos
principais: na construção de um caráter pedagógico dos desfiles carna-
valescos e na formação do samba como símbolo da identidade nacional.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


282
Os governos de Getúlio Vargas (1930-1945) e de Eurico Gaspar Dutra
(1946-1951) foram de essencial importância para a ascensão do samba
perante os demais gêneros musicais brasileiros. Citando Hermano Vianna,
Nelson da Nóbrega Fernandes afirma que “o samba foi uma resposta cria-
tiva, de gênios populares, estimulados por uma demanda de intelectuais de
elite, interessados em organizar normas, valores, o imaginário social e a iden-
tidade nacional” (2001, p. xii). Dentro do contexto ideológico desses gover-
nos, os sambas de enredo foram vistos como possibilidade de se construir um
signo original para a identidade brasileira, valendo-se de seu caráter pedagó-
gico, ao apresentarem figuras nacionais como enredo.
Entretanto, o caráter pedagógico das escolas de samba não se li-
mitou ao ufanismo. As agremiações tornaram-se fontes de descobertas
históricas. Esse aspecto se transformou em uma importante singularidade
das escolas e se configurou como mais uma forma de valorização dos car-
navalescos, que transcenderam o âmbito das artes e se tornaram “historia-
dores informais”. É por meio do Carnaval que figuras como Xica da Silva e
Chico Rei, enredos da Acadêmicos do Salgueiro em 1963 e 1965 respec-
tivamente, ganharam evidência no cenário histórico nacional, assim como
os nomes dos carnavalescos Fernando Pamplona9 e Arlindo Rodrigues.10
É mediante esse aspecto pedagógico das escolas de samba que é pos-
sível, enfim, introduzir com maior clareza a discussão sobre o início do pro-
cesso de mercantilização dos desfiles carnavalescos do Rio de Janeiro. Esses
dois enredos do Salgueiro ilustram um momento marcante do Carnaval que
é denominado pelos amantes e teóricos da festa como o período “romântico”
da folia carioca.
Até o início da década de 1970, as escolas de samba eram subsi-
diadas, principalmente, pelas verbas injetadas pelo poder público. Porém,

9
Nascido em 1926, Fernando Pamplona é carnavalesco, cenógrafo e professor da Escola de Belas
Artes. Um grande expoente do Carnaval carioca, promoveu uma revolução estética e na abordagem
dos enredos das agremiações, desfilando temas nunca antes visto, como enredos afro-brasileiros.
Assinou trabalhos no Salgueiro e Em Cima da Hora.
10
Arlindo Rodrigues (1931-1987) foi cenógrafo, figurinista e carnavalesco. Quando trabalhava no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi convidado por Fernando Pamplona para fazer os figurinos
da Acadêmicos do Salgueiro em 1960 e tornou-se carnavalesco, fazendo trabalhos em outras agre-
miações, como Mocidade Independente, Vila Isabel, Imperatriz Leopoldinense e União da Ilha do
Governador, e vencendo oito vezes.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


283
nessa mesma década, fortaleceu-se a colaboração da contravenção11 (que
dividia espaço com outros patrocinadores) nas escolas de samba, quando
os bicheiros passam, inclusive, a estar presentes na gestão das agremiações
e na organização dos desfiles.
Monique Augras (1998) justifica a presença dos mecenas da con-
travenção nas agremiações como uma forma vista por eles de conquistar
prestígio diante das comunidades nas quais as escolas de samba estavam
inseridas. Ao mesmo tempo, poderiam galgar o respeito de outras parce-
las da sociedade, com o crescimento da visibilidade dos desfiles.
A presença de bicheiros no controle das escolas de samba é um
marco no processo de engrandecimento das agremiações carnavalescas
e, consequentemente, dos concursos de Carnaval. As escolas de samba
passam a ter maior independência financeira dos recursos estatais e co-
meçam a caminhar “pelas próprias pernas”, inaugurando um novo estágio
dos desfiles.
As escolas se afastaram da “liberdade vigiada” do governo e adquiriram
o livre-arbítrio em suas opções de enredo. Entretanto, passam a estar atreladas
ao controle dos contraventores, situação que perdura até os dias atuais. Esse
novo período marca o início do processo de mercantilização dos desfiles
das escolas de samba do Rio de Janeiro, que terá seu conteúdo aprofundado
mais adiante, quando uma lógica de mercado passa a atuar na manifestação
cultural, em seu momento “brando”.
O principal marco do início do processo de mercantilização do Car-
naval é o desfile de 1976 da Beija-Flor de Nilópolis. A escola, administrada
pelo bicheiro Anísio Abraão David,12 desfilou com o enredo “Sonhar com
rei dá leão”, desenvolvido pelo carnavalesco Joãosinho Trinta,13 que fazia
uma homenagem ao jogo do bicho, a partir do sonho de um menino,

11
Ou jogo do bicho, um jogo de apostas ilegal, criado no fim do século XIX, no qual o participante
aposta em um número que tem um animal de referência.
12
Empresário e contraventor do jogo do bicho, assumiu a presidência da Beija-Flor de Nilópolis em
1976 e promoveu uma mudança radical nos padrões de desfile da agremiação e, consequentemente,
no Carnaval carioca.
13
Nascido em 1933 e falecido em 2011, Joãosinho Trinta foi um dos principais nomes do Carnaval
brasileiro, sendo o maior vencedor, até os dias atuais, dos desfiles das escolas de samba e revolu-
cionando o padrão estético das agremiações.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


284
e apresentava a listagem dos animais com os quais se poderia vencer no
jogo do bicho, com base nas imagens visualizadas nos sonhos. Com isso,
Joãosinho Trinta não apenas quebrava com uma padronização de enredos,
mas evidenciava e inaugurava a participação da contravenção no Carnaval
e a desvinculação com a obrigatoriedade do ufanismo nos enredos.
A partir desse momento, os desfiles das escolas de samba tiveram um
grande avanço do ponto de vista estético, mas isso criou, ao mesmo tempo,
uma desigualdade de forças, visto que apenas as escolas com a presença de
bicheiros tinham condições de financiar a materialização de criações gran-
diosas. Sendo assim, abriu-se espaço para que essas agremiações buscas-
sem captar recursos por outros meios, para terem condições de disputa, e se
iniciou, mesmo que de forma lenta e gradual, a transformação da manifesta-
ção cultural em celebração da indústria cultural.
Com base na leitura de Costa et al. (2003) e de Durão, Zuin e Vaz
(2008) é possível afirmar que o conceito de indústria cultural foi desenvolvido
pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro Dialética do escla-
recimento. Ambos os teóricos fizeram parte da Escola de Frankfurt14 e, ao de-
senvolverem o conceito de indústria cultural, acreditavam que não era possível
realizar análises a respeito das ideologias limitando-se, apenas, ao estudo das
doutrinas políticas vigentes.
Para eles, era necessário ampliar a reflexão, passando a observar
também as formas simbólicas presentes no mundo social, tendo em vista
a importância das relações nas sociedades e as maneiras pelas quais se
produz e se intensifica a massificação dos indivíduos. O desenvolvimento
da comunicação de massa teve, para os teóricos, um impacto fundamental
nas ideologias das sociedades modernas.
A concepção do conceito de indústria cultural está inserida em um
contexto histórico em que ocorriam várias transformações na socieda-
de, com destaque para os aspectos econômicos e políticos. Nos Estados
Unidos, Adorno e Horkheimer perceberam que a presença da indústria

14
Escola de teoria social interdisciplinar formada por diversos pensadores que tinham como fim realizar
uma leitura crítica dos conceitos marxistas, uma vez que visualizavam as correntes de pensadores que
seguiam os conceitos de Karl Marx como meros perpetuadores de teorias.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


285
cultural se dava nas ferramentas de entretenimento, tendo, portanto, gran-
de produtividade no âmbito cultural.
Os avanços tecnológicos da Segunda Revolução Industrial (1860-1945)
permitiram a criação de novos meios de comunicação, como o cinema e a
televisão, que, aliados às estratégias ideológicas dos governos, possibilitaram
um importante avanço no controle social dos cidadãos. Entretanto, a indústria
cultural não se restringe ao âmbito político, configurando-se também como
um poderoso sistema de produção de lucros para os grandes capitais, que
são os responsáveis por subsidiar o desenvolvimento do aparato tecnológico.
A indústria cultural é produto da formação das sociedades industriais, ou seja,
“a sociedade industrial é um desdobramento social das transformações pro-
movidas pelas Revoluções Industriais” (COSTA et al., 2003, p. 35).
Adorno observou que a sociedade industrial deixou de apenas atuar
no âmbito produtivo e passou a reinventar modos de subjetivação dos
indivíduos, mediante a concepção de produtos culturais que não apresen-
tam a participação do povo em sua elaboração; são criados apenas para
serem consumidos em larga escala. Esse estágio da produção cultural na
sociedade ultrapassa os limites do conceito de cultura de massa, que se
refere à existência de uma cultura de elite e uma feita para o povo. Tal
momento é a representação da transformação da cultura em ferramenta
de mercado e, ao mesmo tempo, quando se alavanca o movimento glo-
bal de produção industrial de bens culturais.
Portanto, a indústria cultural consegue aliar cultura à economia, tendo
como ação principal a desconstrução da autonomia subjetiva dos indivíduos.
É responsável, também, por condicionar os aspectos mais subjetivos da es-
trutura social, enquadrando o homem como massa. Dessa forma, ele passa
a ser identificado como um indivíduo de subjetividade neutra, que tem como
função principal assimilar o que é reproduzido pelo capital. A indústria cultural
é responsável por levar à coisificação do indivíduo.
Marilena Chauí (1995) salienta, com base em discussões sobre indús-
tria cultural e massificação dos consumos culturais, que a arte corre o risco
de perder três características principais: a sua expressividade, o trabalho de
criação e a experimentação do novo. Segundo a filósofa, a expressividade das

Guilherme Estevão de Lima Maciel


286
obras de arte é perdida por causa da excessiva reprodução e repetição
das obras. Já o trabalho de criação se desgasta quando as criações se
tornam eventos para o consumo. E, no que se refere à experimentação
do novo, as obras tornam-se apenas consagrações do que já foi apro-
vado pela moda e pelo consumo – em suma, passam a ser repetitivas.
A indústria cultural, valendo-se de seu aparato tecnológico e
controle dos meios de comunicação, poderia ser responsável por de-
mocratizar a cultura. Entretanto, realiza processo contrário, levando à
separação de bens culturais por supostos valores de mercado; criando
a ilusão dessa democratização, por meio da seleção prévia dos bens
culturais que cada estrato social terá acesso; e transformando a cultura
em meio de lazer e distração, e não como forma de reflexão da sensi-
bilidade, inteligência e imaginação dos indivíduos. Portanto, é respon-
sável por banalizar a arte e os conhecimentos agregados a ela.
Com base nos conceitos referentes à indústria cultural, é possível
fazer uma análise do processo de mercantilização dos desfiles das escolas
de samba do Rio de Janeiro. Como mencionado anteriormente, a inserção
da contravenção nas agremiações resultou na ratificação da disputa entre
as escolas, no fortalecimento da desigualdade nas condições de desfile e no
estreitamento da relação entre organizações patrocinadoras e escolas sem a
presença de contraventores em sua administração.
Ao mesmo tempo, fortalece-se a participação de celebridades nos
desfiles, que dão maior visibilidade ao evento, mas tinham mais destaque
que as comunidades nos organismos de comunicação. A ampliação do
espaço dos desfiles nos meios de comunicação terá um papel fundamental
para o acirramento do processo de mercantilização.
Esse panorama da festa foi criticado no Carnaval de 1982, pela
agremiação Império Serrano, com o enredo “Bum Bum Paticumbum Pru-
curundum”. É possível perceber essa crítica em seu samba:

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


287
Super escolas de samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!

Bum, bum paticumbum prugurundum


O nosso samba minha gente é isso aí.
(Bum Bum Paticumbum Prucurundum,
de Beto sem Braço e Aluísio Machado, 1982)

Naquele ano, a Império Serrano, tradicional escola de Madureira,


sagrou-se campeã. Entretanto, a escola que criticou esse “progresso” da festa
é responsável por inaugurar, três anos depois, a segunda fase do processo de
mercantilização, a etapa “agressiva”, desenvolvendo o enredo “Samba, suor
e cerveja, o combustível da ilusão”, pois esse enredo, de 1985, é o primeiro a
ser patrocinado por uma empresa – a cervejaria Brahma, no caso.
Apesar de o primeiro enredo patrocinado ter sido concebido em 1985,
pode-se inferir que no ano anterior, com a criação da Passarela Darcy Ribeiro,
o Sambódromo, na avenida Marquês de Sapucaí, inaugurou-se a base que
serviria para o avanço do processo de mercantilização dos desfiles das esco-
las de samba do Rio de Janeiro. Projetado em 1983 com o objetivo de orde-
nar o espaço de realização do espetáculo, o Sambódromo era uma exigência
dos sambistas desde 1972, tendo sido idealizado por Amaury Jório,15 então
presidente da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
A construção da Passarela do Samba marcou uma cisão profunda no
contato das agremiações com as camadas populares. Isso se dá pelo fato de
que, a partir desse momento, a visualização do espetáculo pelo público
presente passou a se restringir a um pequeno contingente capaz de arcar
com os ingressos dos desfiles, que têm valores relativamente altos para o
padrão financeiro do “povão”, além de sinalizar o nível de organização e
importância do evento, dando segurança a possíveis investimentos e retor-
no financeiro aos grandes capitais.

15
Escritor, pesquisador e carnavalesco. Nasceu em 1925 e faleceu em 1980. Foi um dos fundadores
da Imperatriz Leopoldinense e presidente da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro
a partir de 1968.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


288
Em 1984 também é criada da Liga Independente das Escolas de Samba
do Rio de Janeiro (Liesa). A criação da liga representa a consolidação da par-
ticipação dos bicheiros no Carnaval, visto ter sido idealizada e dirigida pe-
los contraventores Anísio Abraão David, Castor de Andrade16 e Luiz Pacheco
Drumond,17 o que mais uma vez evidencia a força da contravenção na festa,
com a ordenação do espetáculo pautada na administração dos que se encon-
travam em condições ilegais perante o governo. Ela retira, definitivamente, o
controle da organização do evento das mãos do poder público, representado
pela Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (Riotur)18 e passa a
gerir os recursos destinados às agremiações, além de estabelecer os contratos
de televisão. Portanto, a Liesa também será determinante na evolução do pro-
cesso de mercantilização da folia.
Como mencionado, a presença da Rede Globo está vinculada aos des-
files desde os primeiros anos, por intermédio do jornal O Globo: apesar da
participação de outras empresas no patrocínio da festa, O Globo foi funda-
mental, por muito tempo, para a promoção do evento – e posteriormente a
TV Globo. No primeiro ano dos desfiles no Sambódromo, a Rede Globo se
recusou a transmitir os desfiles por causa da divisão dos mesmos em dois dias,
e foi derrotada pela Rede Manchete, encarregada de televisionar a festa. A
partir do ano seguinte, a Rede Globo voltou a transmitir a festa, o que acon-
tece até os dias atuais.
Se por um período a parceria com a Globo foi importante, tornou-se
degradante a partir do momento em que a emissora passou a enxergar o
espetáculo apenas como forma de conquistar expectadores e anunciantes,
abrindo mais espaço para publicidades dentro do desfile e reduzindo o
tempo das vinhetas de Carnaval, tirando o “grito de guerra” das transmissões,
dando fim aos debates carnavalescos. Dessa forma, a concepção, o
planejamento e organização da festa, que ocorrem durante todo o ano, são
16
Um dos principais contraventores do jogo do bicho, patrono da Mocidade Independente de Padre
Miguel, falecido em 1997.
17
Relevante nome da cúpula do jogo do bicho, patrono da Imperatriz Leopoldinense. Presidiu a Liga
Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro do fim da década de 1990 até o início da
década de 2000.
18
Organismo da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro responsável por administrar as políticas de
turismo na cidade e que exerceu por anos a função de organizar os desfiles das escolas de samba
do Rio de Janeiro.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


289
ocultados cada vez mais para o grande público, e o que é transmitido pela
emissora são, apenas, dois dias de espetáculo marcados pelo luxo e pela
presença de celebridades. A Rede Globo também atuou na organização do
evento, fazendo exigências para que o número de escolas por dia de desfile
fosse diminuído, não alterando a sua grade de programação.
A emissora disponibiliza pequenos espaços entre os anunciantes para
apresentar aos telespectadores os sambas de enredo. As vinhetas carnavales-
cas são responsáveis por “ensinar” os sambas de enredo a outros setores da
sociedade que não frequentam as escolas de samba; no entanto, a cada ano
tornam-se mais curtas, não apresentando sequer uma passagem inteira dos
sambas de enredo atualmente, quando as vinhetas têm em torno de 30 se-
gundos, ao passo que, até fins dos anos 1990, uma passada inteira do samba
era exibida, em média, dois minutos.
Dessa forma, portanto, a atuação da Rede Globo e de todo um con-
junto de empresas – valendo ressaltar a participação de cervejarias, bancos e
editoras – no Carnaval vai ao encontro do que Marilena Chauí (1995) chama
de consequência da indústria cultural. Se os desfiles carnavalescos, que são
obras de arte, possuem, em princípio, um valor de exposição, devendo ser
contemplados e desfrutados, com o controle ideológico e econômico das em-
presas de produção artística, transformam-se em “eventos para tornar invisível
a realidade e o próprio trabalho do criador das obras” (CHAUÍ, 1995, p. 17).
A sociedade desconhece a verdadeira realidade das comunidades onde as
escolas de samba estão inseridas e as peculiaridades do processo de criação
de um desfile, e a Rede Globo faz questão de transformar a festa em um
momento restrito ao lazer e não um evento símbolo da cultura brasileira. O
trabalho de criação se desgasta quando as criações se tornam exemplo para
o consumo.
Se os conhecimentos transmitidos pelas escolas de samba são pouco
divulgados pelos principais meios de comunicação, os quais teriam a maior
possibilidade de democratizá-los, o caráter pedagógico das agremiações,
construído, sobretudo, a partir da década 1940, não de uma maneira pura e
inocente, mas para consolidar o evento como uma rica manifestação cultu-
ral, vai se diluindo, ao passo que avançam as relações entre as corporações

Guilherme Estevão de Lima Maciel


290
de grande capital e as agremiações. Isso se dá pelo fato de as escolas de
samba, para conquistarem recursos financeiros das empresas privadas, cria-
rem enredos com temas superficiais e sem grande relevância cultural, para
promoverem produtos ou ideias de empresas.
Outro aspecto que vem atingindo os desfiles carnavalescos e está
diretamente ligado à indústria cultural é a padronização dos desfiles. Por
causa da transmissão do evento para mais de 200 países pela TV Globo,
o Carnaval deve se adequar aos padrões dos grandes eventos realizados
nos países centrais, enquadrando-se nos modelos estabelecidos pela in-
dústria cultural, segundo o presidente da Liesa Jorge Castanheira.19 A festa
brasileira perde seu caráter artesanal e popular, e a sua singularidade,
passando, dessa forma, a se assemelhar a qualquer outro evento.
Também é possível analisar o “progresso” das escolas de samba
do Grupo Especial do Rio de Janeiro por meio de outro membro da Es-
cola de Frankfurt: Walter Benjamin, responsável pelo desenvolvimento da
teoria “aurática”, que é a mais relevante tese materialista da arte.
No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
(BENJAMIN, 1983), o autor nos mostra que as imagens sempre foram
passíveis de serem reproduzidas. Com o surgimento de técnicas para a
reprodução em série, esse processo passou a ser feito com maior exatidão
e precisão, dando origem à era da “reprodutibilidade técnica”, anunciada
pelo surgimento da fotografia e do cinema.
A reprodutibilidade técnica é mais autonomia do que a manual.
Com ela, é possível multiplicar as obras, conseguindo-se, inclusive, des-
tacar ângulos e detalhes que escapam à percepção da ótica natural,
além de ela possibilitar o “deslocamento” das obras, como fotografias e
imagens filmadas.
Entretanto, há uma característica da obra que não pode ser repro-
duzida, que é a sua autenticidade. A autenticidade refere-se ao que o
filósofo define como “o aqui e agora da obra de arte”, as transformações

19
Dados apresentados no seminário “Carnaval – que festa é essa?”, organizado pelo jornalista
Aydano André Motta, no dia 20 de setembro de 2011, e realizado no Centro Cultural Banco do
Brasil, do Rio de Janeiro.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


291
físicas sofridas por ela ao longo do tempo e suas modificações em suas
relações de propriedade (contidas no domínio da tradição). À medida que
vai sendo multiplicada, a obra perde a sua “aura”. Conforme as obras são
reproduzidas, deixam de possuir uma existência única e passam a ter uma
existência em série. Desse modo, sua aura vai sendo diluída. Esse processo
é acirrado com a massificação dos bens culturais, que promove a repro-
dução em larga escala.
Valendo-nos da teoria “aurática” de Benjamin e dos conceitos de indús-
tria cultural, é possível estabelecer uma correlação com o processo de mer-
cantilização dos desfiles carnavalescos, tendo em vista as perdas que o Car-
naval sofre com a inclusão de organismos externos à festa. Uma das principais
características das escolas de samba é a grande valorização das tradições,
da sua história. A cultura das agremiações é marcada pela passagem da
memória e pelo conhecimento dos sambistas por gerações, seja pelos sambas
e enredos da escola, pelas festas ou pelos núcleos que as compõem, tendo
como grande exemplo a ala das baianas. A valorização das tradições é um
elemento singular das agremiações e uma das principais formas de conquista
de respeito perante a sociedade. Logo, essa é a aura das escolas de samba.
A partir do momento em que os patrocinadores determinam as te-
máticas dos enredos, os meios de comunicação passam a desvalorizar os
trabalhadores do Carnaval e as comunidades em benefício da promoção
de celebridades. A necessidade de acumular títulos torna-se mais impor-
tante que a própria manifestação cultural. Pode-se afirmar que as escolas
de samba passam a ter a sua aura diluída. As tradições são perdidas em
favor de uma padronização da festa, com o estabelecimento de um pata-
mar plástico que necessita de investimentos de patrocinadores e a ratifica-
ção da competitividade entre as escolas de samba.
Apesar da determinação de dois marcos fundamentais no processo
de mercantilização (o período “brando” e o “agressivo”), é possível sina-
lizar outros dois momentos dentro do último período. A etapa “agressiva”
da mercantilização dos desfiles viveu um período inicial caracterizado, so-
bretudo, pela grande interferência da mídia e o afastamento das massas,
com a cobrança e o encarecimento dos ingressos, e pelo fortalecimento do

Guilherme Estevão de Lima Maciel


292
mercado entre os profissionais do Carnaval. O outro período é marcado
pela intensificação da participação de governos e empresas de grandes
capitais na escolha dos enredos carnavalescos e, consequentemente, na
elaboração dos desfiles, como será aprofundado adiante.
A criação de um “mercado” de profissionais é um dos pontos funda-
mentais da primeira etapa do período “agressivo”. Com o crescimento das
escolas e a intensa profissionalização dos desfiles, fez-se necessária a contra-
tação dos melhores profissionais, o que supostamente garantiria notas altas
nos quesitos em julgamento. Dessa maneira, formou-se um grande fluxo de
profissionais entre as agremiações, e se acirraram ainda mais as desigualda-
des de forças entre as escolas, visto que aquelas com maiores recursos podem
contar com os melhores profissionais.
A prática do patrocínio de enredos iniciada em 1985 não se expan-
diu entre as agremiações por mais de uma década. Nesse período, outras
ações, surgidas ainda na primeira fase do processo de mercantilização,
fortaleceram-se, como a supervalorização das celebridades nas escolas
de samba e a intensificação do afastamento das massas do local de reali-
zação dos desfiles.20
No final da década de 1980 e início dos anos 1990, algumas esco-
las também realizaram críticas a essa realidade do Carnaval, entre elas a
Caprichosos de Pilares, em 1985, com o enredo “E por falar em saudade”;
e a São Clemente, em 1990, cujo samba sintetiza com perfeição a conjun-
tura das escolas de samba no fim da década de 1980:

20
Como forma de minimizar o afastamento das classes pobres dos desfiles, a Liesa destina as ar-
quibancadas dos setores 1, 12 e 13 para essa camada da população, oferecendo ingressos bem
mais baratos. No entanto, esses locais são os piores do Sambódromo, pois se localizam onde ocorre
a armação dos desfiles (setor 1) e após as cabines de julgamento (setores 12 e 13). Sendo assim,
os espectadores não conseguem ver o desfile totalmente montado ou no momento de avaliação.
Outro fato que mostra esse distanciamento é a construção do setor conhecido como “0800”, que
são arquibancadas de ferro montadas às margens do canal do Mangue, para que os “populares’’
observem a “armação” das escolas ainda na concentração.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


293
Vejam só
O jeito que o samba ficou (e sambou)
Nosso povão ficou fora da jogada
Nem lugar na arquibancada
Ele tem mais pra ficar
Abram espaço nesta pista
E por favor não insistam
Em saber quem vem aí
O mestre-sala foi parar em outra escola
Carregado por cartolas
Do poder de quem dá mais
E o puxador vendeu seu passe novamente
Quem diria, minha gente
Vejam o que o dinheiro faz
É fantástico
Virou Hollywood isso aqui (isso aqui)
Luzes, câmeras e som
Mil artistas na Sapucaí

Mas o show tem que continuar


E muita gente ainda pode faturar
“Rambo-sitores”, mente artificial
Hoje o samba é dirigido com sabor comercial
Carnavalescos e destaques vaidosos
Dirigentes poderosos criam tanta confusão

E o samba vai perdendo a tradição

Que saudade
Da praça Onze e dos grandes carnavais
Antigo reduto de bambas
Onde todos curtiam o verdadeiro samba.

(E o samba sambou,
de Helinho 107, Mais Velho, Chocolate e Nino, 1990)

Durante a década de 1990, o Grupo Especial do Rio de Janeiro


vivenciou um aumento nas relações entre agremiações e entidades pa-
trocinadoras. Nesse período, as empresas ainda não tinham o papel de
protagonistas no patrocínio; essa posição era ocupada pelos governos esta-
duais e prefeituras, que financiavam as escolas e utilizam-se dos desfiles para

Guilherme Estevão de Lima Maciel


294
fazerem “panfletagens” turísticas de seus estados ou cidades. Podemos afirmar
isso com base no número de enredos que homenageiam cidades, estados ou
países principalmente a partir de 1995 e comparar com os enredos patrocina-
dos por empresas, que não existiam até o final da década de 1990.
Esse tipo de parceria ocorreu de forma pontual na década de 1990,
mas adquiriu evidência em 1995 (momento em que considerarei o marco
da segunda fase do período “agressivo” da mercantilização do Carnaval),
com o título da Imperatriz Leopoldinense. O enredo não tinha como função
principal apresentar opções turísticas no estado do Ceará; pelo contrário,
expunha um fato curioso relacionado a expedições científicas no Nordeste
do país, tendo o jegue como fio condutor do enredo. Contudo, foi conside-
rado o primeiro enredo com patrocínio de um governo estadual para uma
escola localizada em outro estado.
Com o sucesso dessa parceria entre agremiações e financiamento
de governos locais, ocorre uma explosão desse tipo de enredo, popu-
larmente conhecido como “enredo CEP” – alusão ao código de ende-
reçamento postal de cidades, e estados utilizado pelos Correios para
envio de correspondência –, no Grupo Especial, principalmente após
1998, que consagrou de vez tal prática, como resultado do título obtido
pela Beija-Flor de Nilópolis com o enredo “Pará: o mundo místico dos
caruanas nas águas do Patu-anu”, um enredo marcado pela grande
exaltação das variedades turísticas do estado do Pará. Essa estrutura
de construção do desfile tornou-se característica dos “enredos CEP”
desenvolvidos nos anos seguintes.
No decorrer dos anos, o patrocínio local deixou de estar restrito aos
governos e passou a ser oferecido, também, por empresários e corporações.
Além disso, empresas e governos estrangeiros passaram a conceder patrocí-
nios para que seus países fossem temáticas de enredos, e algumas agremia-
ções resolvem conceber enredos sobre cidades, estados ou países visando um
possível patrocínio, que nem é sempre obtido.

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


295
Ao se realizar um levantamento sobre os enredos desenvolvidos entre
os anos de 1995 e 2011, é possível constatar que, dos 223 enredos desen-
volvidos no Grupo Especial – desconsiderando-se o ano 2000, visto que o
tema dos enredos foi pré-definido, sendo um Carnaval temático em come-
moração aos 500 anos de descobrimento do Brasil –, 33 deles (aproxima-
damente 15%) se enquadram na categoria CEP (gráfico 1).

Gráfico 1. Enredos desenvolvidos entre 1995 a 2011 na categoria “CEP”.

No mesmo levantamento é possível perceber que, a partir de 2004


e até 2011, as agremiações apresentaram enredos da categoria CEP.
Destaca-se também o ano de 2002, com a presença de seis enredos
desse tipo, cerca de 43% dos enredos do ano. Esse foi o Carnaval com
o maior número de “enredos CEP” já visto. Sendo assim, é possível ob-
servar como essa prática se consolidou na atual conjuntura do Carnaval.
Na segunda etapa da fase “agressiva” do processo de mercantiliza-
ção, outro tipo de enredo, mais crítico para a manutenção das tradições
carnavalescas, se fortaleceu: o de temáticas escolhidas por empresas. En-
redos nessa categoria passaram a ser desenvolvidos com maior frequência
a partir dos anos 2000, tendo também 2002 como grande marco do
patrocínio por empresas concorrentes de enredos com temáticas iguais:
Varig e TAM patrocinaram Beija-Flor e Salgueiro, respectivamente, para
desfilarem com o tema da aviação.
Entre 2002 e 2012, dos 144 enredos desenvolvidos no Grupo Espe-
cial, 36 (equivalente a 24%) enquadram-se na categoria de enredos
patrocinados – englobando patrocínio de empresas e de governos (ver
gráfico 2). Entretanto, vale ressaltar que, em diversos casos, não há di-

Guilherme Estevão de Lima Maciel


296
vulgação do patrocínio, podendo haver, portanto, um número maior de
enredos patrocinados. Esse levantamento leva em consideração apenas
as parcerias divulgadas.

Gráfico 2. Enredos desenvolvidos entre 2002 e


2012 na categoria “patrocinados”.

Se compararmos estes números com o panorama do Carnaval


de 2013 percebe-se que houve um avanço considerável de enredos
patrocinados. Para o Carnaval de 2013, teremos nove entre os doze
enredos do Grupo Especial, 75% dos enredos que desfilarão. Entre os
temas de desfile encontramos Rock in Rio, cavalo manga larga marcha-
dor, defesa dos royalties do estado do Rio de Janeiro, além de quatro
enredos CEP.
Pode-se considerar que os enredos de temática escolhida por
empresas são os mais críticos no que diz respeito à manutenção das
tradições carnavalescas e para o caráter pedagógico da festa, pela
irrelevância cultural de produtos ou ideias veiculados, além das dificul-
dades que os temas apresentam para a criação plástica e/ou musical.
Tornando o panorama ainda mais complexo, por diversas vezes os pa-
trocinadores fazem exigências na construção dos enredos, apresentan-
do aspectos que consideram fundamentais nos desfiles e nos sambas
para evidenciar suas mercadorias.
Em consequência dessa intensificação da parceria entre capital e
desfiles, já desfilaram no Sambódromo enredos sobre mineração, cana-
de-açúcar, gás natural, camarote de cervejaria, moda, tecnologias, ca-
belo e iogurte. Diante dessa realidade, apenas cabe aos carnavalescos,
compositores e outros atores envolvidos na organização e materialização
da festa se adequar às exigências dos patrocinadores. Movimentos de

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


297
resistência a essa realidade não são bem vistos pelos patrocinadores,
como o caso de 2002 envolvendo a Imperatriz Leopoldinense.21
A submissão das agremiações aos patrocinadores está diretamente
relacionada à necessidade de conquista de subsídios financeiros para a exe-
cução do desfile. Entretanto, inúmeras vezes, os recursos oferecidos pelo pa-
trocinador à agremiação não são pagos, mas, ainda assim, as agremiações
precisam prosseguir com o enredo, visto que é complexo o cancelamento
dos trabalhos e a produção de um novo enredo, por causa do tempo de
materialização do projeto.
Em uma das entrevistas22 realizadas com os profissionais das escolas
de samba, um entrevistado afirmou:

Na maioria das vezes, esse dinheiro não é recebido, é uma gran-


de enganação. Fica na promessa e não rola nada. Eu ainda não
tive a experiência de receber dinheiro de patrocínio, mesmo em
escolas com o enredo já definido. Mesmo não entrando o di-
nheiro você tem que dar continuidade à história, não tem como
você criar um novo enredo no meio do caminho. Então é com-
plicado, porque a gente tem de entender que a escola precisa de
recursos para arcar com as despesas, pois o Carnaval é muito
caro. Logo a parceria é válida. O problema é que você tem que
dar conta de contar uma história difícil, e é mais chato quando
você quebra a cabeça, não consegue fazer uma coisa bacana e
a escola ainda não recebe o dinheiro. (Carnavalesco, União da
Ilha do Governador, 3 out. 2011)

21
O enredo “Goytacazes...Tupi or not Tupi, in a South American Way!”, criado pela Imperatriz
Leopoldinense em 2002, deveria, a princípio, apresentar a história de Campos dos Goytacazes,
tendo, para isso, recebido um patrocínio de 1,8 milhões de reais, segundo o jornal O Globo, de 15
de janeiro de 2002. Entretanto, a carnavalesca da agremiação, Rosa Magalhães, utilizou a cidade
como forma de estabelecer uma articulação entre a prática antropofágica dos índios goitacases com
o indianismo do romantismo e o antropofagismo do modernismo brasileiro. Com isso, conseguiu
transformar um tema meramente turístico em um enredo de profunda relevância cultural. Porém, tal
modo de desenvolvimento do enredo não agradou o patrocinador, que ameaçou entrar com uma
ação judicial contra a agremiação para reaver os recursos.
22
Foram realizas oito entrevistas, sendo quatro entrevistados profissionais de planejamento e con-
cepção do desfile – dois carnavalescos, um diretor artístico e um diretor de harmonia; três profis-
sionais de materialização do projeto de Carnaval – um escultor, um chefe de empreiteira e uma
costureira; e um profissional da administração da agremiação responsável por gerir a organização
das jornadas de trabalho, a contratação de profissionais e o pagamento dos salários.

Guilherme Estevão de Lima Maciel


298
Com base nessa afirmação, pode-se inferir, portanto, que a interfe-
rência dos patrocinadores é uma barreira encontrada pelos profissionais
que elaboram os desfiles. Ao mesmo tempo, o acordo entre agremiações e
empresas não é garantia do recebimento de recursos para a elaboração do
desfile, o que prejudica ainda mais o trabalho dos profissionais, que se des-
gastam excessivamente para concretizar as exigências dos patrocinadores e
responder aos critérios de avaliação dos desfiles.
Apesar das barreiras mencionadas por alguns trabalhadores, foi pos-
sível ao mesmo tempo identificar em algumas falas que a parceria com em-
presas é fundamental para o atual formato do Carnaval, visto que o evento
apresenta um constante crescimento e, consequentemente, maior necessi-
dade de recursos. Alguns não conseguiram identificar a interferência dos
grandes capitais na confecção do Carnaval, afirmando que a parceria entre
empresas e agremiações só poderiam render “bons frutos” para ambas as
partes. Pode-se perceber isso na fala a seguir:

Eu acho que a parceria entre as escolas e as empresas só traz


benefícios. O dia em que houver um acordo entre a televisão
e as empresas – porque tem uma cota boa de televisão, en-
tão existe a exclusividade da Globo, no caso – que se possa
colocar o patrocínio em qualquer lugar do desfile, as escolas
vão ser mais beneficiadas, porque vai aumentar o patrocínio. Eu
acho fundamental para o país, porque as escolas passam para
o mundo, então é preciso que elas venham bonitas. (Diretor de
Carnaval, Imperatriz Leopoldinense, 11 out. 2011)

RELAÇÕES DE TRABALHO NO CARNAVAL

Tornou-se comum caracterizar as escolas de samba como grandes


“indústrias da cultura”. Essa expressão pode estar relacionada à organi-
zação de trabalho e produção das agremiações, que se assemelha a uma
fábrica, por causa do alto número de funcionários que atuam diretamente
nas escolas de samba e dos empregos e profissionais criados indiretamen-

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


299
te pela festa. Hoje as escolas de samba são no centro de uma enorme
cadeia produtiva.
A produção de um desfile de escola de samba envolve diversos setores,
mas pode ser dividida, de forma sintética, em duas áreas: o setor de criação
do desfile, responsável por elaborar o enredo da agremiação e todos os de-
senhos de fantasias e alegorias que serão utilizadas no desfile; e o de materia-
lização do projeto de Carnaval, que executa os projetos do setor de criação,
dividido em duas áreas principais: reprodução de fantasias (ateliê) e criação
alegórica. Tal divisão é semelhante à de uma indústria, na qual há profissio-
nais de chão de fábrica e outros de planejamento e criação.
Atualmente, as escolas do Grupo Especial, por causa do crescimento
de suas produções, executam seus trabalhos na Cidade do Samba, o grande
complexo com 14 galpões, 2.700 metros quadrados de área e quatro anda-
res. A criação do espaço é resultado de exigências por melhores condições
de trabalho e por segurança, visto que, anteriormente, as escolas elabora-
vam seus desfiles em galpões insalubres (barracões), localizados, sobretudo,
na região portuária do Rio de Janeiro e às margens da avenida Brasil.
Em dados de 2006 (PRESTES FILHO et al., 2008), o Carnaval
movimentou cerca de 685 milhões de reais e, no tocante apenas às escolas
de samba, criou 470,3 mil postos de trabalho. As agremiações carnavalescas
encontram-se no centro de uma grande cadeira produtiva, composta,
sobretudo, pelas indústrias que fornecem matéria-prima para a execução
dos desfiles e pelos profissionais que transformam os materiais em fantasias e
alegorias, além daqueles que trabalham na divulgação do evento.
Os desfiles das escolas de samba são responsáveis, atualmente, por
suprir boa parte da demanda de produção das indústrias têxtil, de plástico
(plástico, isopor, borracha sintética), borracha natural, vidro, couro, ma-
deira, papel e metalurgia. Todos esses materiais são fundamentais para
a execução das fantasias e alegorias, que utilizam, normalmente, 21 e 41
tipos diferentes de materiais, respectivamente.
O setor de transformação das matérias-primas em alegorias e fan-
tasias é o que apresenta a maior quantidade de funcionários. Nele atuam
escultores, aderecistas, laminadores, moldadores, ferreiros, serralheiros,

Guilherme Estevão de Lima Maciel


300
marceneiros, vidraceiros, pintores, eletricistas, iluminadores, mecânicos, costu-
reiras e cortadores. Não existe um salário estipulado para essas funções, mas
há uma média para algumas funções, como menciona um dos entrevistados:

Um cortador ganha em torno de 1.200 a 1.500 reais; um adere-


cista ganha em torno de 800 a 900 reais, embora eles também co-
loquem aprendizes, pessoas que estão aprendendo a função, que
ganham em torno de 500 a 700 reais. Tem a costureira, que eu
estou pagando – estou falando do valor mensal, embora eu pague
semanal – 1.200 reais por mês e a chefe de costura, [que recebe]
em torno de 3.000 reais por mês. (Empreiteira, União da Ilha do
Governador, 3 out. 2011)

Outra grande parcela de profissionais faz a divulgação dos desfiles;


eles não atuam diretamente nas agremiações, mas em emissoras de tele-
visão, rádio, jornais, revistas, folhetos e na internet. A indústria audiovisual
movimentou, segundo números de 2006, uma renda de 11,6 milhões de
reais para as escolas de samba e a Liesa, renda que inclui a produção e a
comercialização dos CDs de sambas de enredo e a transmissão dos desfi-
les pelos meios de comunicação (PRESTES FILHO et al., 2008).
Os números da arrecadação para as agremiações e para a Liga Inde-
pendente das Escolas de Samba são expressivos, evidenciando a grandiosi-
dade do evento. Entretanto, ao mesmo tempo, quando comparada com os
valores arrecadados pelo estado (que estão diretamente ligados ao potencial
turístico dos desfiles das escolas de samba), a renda obtida pelas agremiações
é bastante inferior.
Apesar do constante crescimento do espetáculo, seja no que diz res-
peito ao caráter artístico, ou na importância do evento para a economia
da cidade do Rio de Janeiro, o âmbito das relações de trabalho não acom-
panhou tal avanço: as relações de trabalho nas agremiações ainda são,
majoritariamente, precárias.
O primeiro aspecto dessa precariedade refere-se ao não estabele-
cimento de vínculos trabalhistas. A profissionalização do espetáculo é um
processo recente, e os trabalhadores estabelecem acordos verbais com os

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


301
mandatários das agremiações. Isso pode ser observado no relato de um
dos entrevistados, que afirmou: “A minha relação de trabalho é verbal.
Bicheiro, traficante, essas coisas, não faz contrato, é com as palavras, mas
são pessoas honrosas, que honram as palavras, respeitam mais do que um
papel” (Diretor artístico, Imperatriz Leopoldinense, 11 out. 2011).
Há um avanço em relação à contratação de funcionários com registro
na carteira de trabalho, o que assegura ao trabalhador o recebimento dos
seus benefícios trabalhistas. Entretanto, esses funcionários não estão direta-
mente vinculados à concepção do desfile, como é possível perceber na fala
de um entrevistado, afirmando que “existem pessoas que têm vínculo empre-
gatício, mas o número é pequeno, porque o trabalho é sazonal. Esses funcio-
nários normalmente são fixos, como secretária, serviços gerais e almoxarife”
(Administradora de barracão, Imperatriz Leopoldinense, 11 out. 2011).
O caráter de sazonalidade fortalece o estabelecimento de contratos
sem carteira assinada nas agremiações. Hoje esse tipo de vínculo é bastante
frequente, visto que as escolas de samba passaram a terceirizar as suas ativida-
des, por meio de empreiteiras, a fim de conquistar maior qualidade na mate-
rialização do desfile, otimizar o tempo e não estabelecer vínculos formais de
trabalho. As empreiteiras definem o valor de seus trabalhos de acordo com a
quantidade de itens a serem reproduzidos e com o tempo estabelecido pelas
agremiações para a entrega dos serviços, utilizando o espaço e a matéria-
prima das agremiações, matérias-primas que muitas vezes, segundo relatos,
não chegam no prazo estipulado e comprometem o serviço.
Mesmo com o estabelecimento de alguns contratos com profissionais
do Carnaval, na maioria dos casos esses vínculos não correspondem à
realidade do trabalho. Atualmente, a legislação que rege a modalidade do
trabalho temporário (lei nº 6.012/1974) estabelece que esse tipo de contrato
possui a duração máxima de três meses e que só pode ser prorrogado uma
só vez, com a mesma duração.
Entretanto, a realidade nas escolas de samba é diferente. Por ser
um trabalho sazonal, é atribuído aos trabalhadores um contrato de
trabalho temporário, sendo que, na verdade, a grande maioria dos pro-
fissionais não pode estar nesse tipo de vínculo, uma vez que a reprodu-

Guilherme Estevão de Lima Maciel


302
ção de fantasias e alegorias dura no mínimo quatro meses, segundo os
trabalhadores entrevistados.
Além disso, diversos profissionais trabalham há anos nas agremia-
ções com o mesmo tipo de contrato de trabalho, e não há um efetivo cum-
primento da determinação da jornada de trabalho de oito horas por dia,
visto que, quando está próxima a data dos desfiles, os trabalhadores viram
noites para finalizar os serviços solicitados. Todos esses aspectos, portanto,
são considerados irregulares perante a lei nº 6.012/1974.
A insatisfação dos profissionais do Carnaval e a necessidade de uma
política voltada para a festa é evidenciada na fala de um dos entrevistados:

Não existe uma política voltada para o Carnaval, porque é um


serviço temporário. Mas em um serviço temporário, se você passa
de três meses, existe um novo vínculo. Porém, automaticamente, no
Carnaval você trabalha, em nível de produção, em torno de 5 ou
4 meses – eu trabalho bem antes, porque faço protótipo, então co-
meço bem antes: em junho, julho, eu já tenho uma equipe fechada.
Então, essa questão do vínculo é uma coisa complicada, porque
deveria existir uma política voltada para o Carnaval. Porque é um
serviço temporário no qual as pessoas vão passar de três meses,
mas não existe vínculo. E, automaticamente, os contratos são limi-
tados e você tem de trabalhar com eles mesmo assim. (Empreiteira,
União da Ilha do Governador, 3 out. 2011)

Um último aspecto do atual contexto do âmbito do trabalho no Car-


naval é a sobrecarga de funções para os profissionais das agremiações.
Como destacado nos capítulos anteriores, os desfiles das escolas de sam-
ba são manifestações culturais que envolvem diversos âmbitos, como a
música, as artes plásticas, a história, a arquitetura, a engenharia e outros
setores. À frente de todo esse projeto, encontram-se os carnavalescos, que
atuam como capitães do trabalho. Apesar dos diversos ofícios presentes no
setor de organização e planejamento de desfile – como a direção artística,
a direção de harmonia e a direção de Carnaval –, é responsabilidade do
carnavalesco deter o conhecimento de todos os setores do desfile. O car-
navalesco deve ser um artista completo, concebendo um desfile inovador,

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


303
capaz de seduzir os jurados e o público, e atuar como líder na execução
dos trabalhos no barracão.
O acúmulo de funções resulta no excessivo desgaste físico e men-
tal dos profissionais – além de que, na opinião dos trabalhadores que
atuam nesse cargo, o salário recebido por esses profissionais não cor-
responde totalmente ao nível de trabalho executado. Pelas informações
colhidas nas entrevistas, foi possível constatar que os salários dos car-
navalescos das escolas de samba do Grupo Especial estão entre 8 mil
e 30 mil reais mensais, sendo extremamente reduzido o número de
profissionais que recebem valores da faixa máxima salarial.
Na fala dos entrevistados, é presente a afirmação de que, se compara-
dos os salários dos carnavalescos com os valores recebidos pelos trabalhado-
res “comuns”, os ordenados dos artistas são satisfatórios. Contudo, analisando
um dos relatos, é possível notar com clareza a insatisfação do carnavalesco e
o sentimento de que deveria ser mais valorizado financeiramente:

Se você for comparar o valor de salário do carnavalesco, que seria


o “craque” do Carnaval, com os “craques” do futebol, os salários
dos profissionais das escolas de samba são irrisórios. Em relação
ao salário mínimo, pode ser bom ganhar 10 mil por mês, mas
se comparar com outra área artística [...] é mínimo. Compara
também esse valor recebido por quem faz a festa em relação
ao que as escolas de samba gastam e com o retorno finan-
ceiro do Estado. (Carnavalesco, União da Ilha do Governador,
3 out. 2011)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de mercantilização do Carnaval é complexo. Existirão,


sempre, opiniões a favor ou contra esse fenômeno, mas é impossível negá-lo
ou minimizar a sua relevância na atual conjuntura da festa. Ele é o grande
responsável pelas principais mudanças ocorridas nos desfiles carnavalescos,

Guilherme Estevão de Lima Maciel


304
desde o estabelecimento de valores mínimos para uma escola disputar o
campeonato (entre as campeãs dos últimos cinco carnavais, o valor mí-
nimo, entre as que divulgaram seus gastos, foi de 8 milhões de reais) até
o encerramento das atividades de escolas de samba tradicionais que não
conseguiram se adaptar a essa nova realidade, como a Praça da Bandeira
e a Canários de Laranjeiras.
Esse processo é degradante no que diz respeito às tradições culturais
das agremiações, principal pilar para que os desfiles carnavalescos tenham
adquirido a grande relevância que têm entre as manifestações populares do
país. Por mais que ele proporcione a deturpação de valores tão fundamentais,
não é possível desmerecer as parcerias entre escolas de samba e patrocina-
dores para uma maior projeção da festa e ampliação da importância das
escolas de samba no aspecto financeiro.
A transformação das agremiações em núcleos econômicos relevantes
para a cidade do Rio de Janeiro está diretamente atrelada a essas novas par-
cerias, que exigem um grau de profissionalismo das agremiações, a fim de
que haja segurança e certeza de retorno para os patrocinadores (mesmo que,
muitas vezes, o patrocínio não se concretize). Houve avanços na organiza-
ção das agremiações, dando uma dinâmica mais profissional ao processo de
produção do desfile e à forma como as direções das escolas de samba traçam
as suas parcerias.
Entretanto, como foi visto, o profissionalismo das agremiações ainda
não se manifestou com força no âmbito dos vínculos empregatícios, por
causa dos acordos verbais e contratos irregulares com os profissionais do
samba. Faz-se necessária a institucionalização de uma lei específica para
os trabalhadores das agremiações carnavalescas. A nova política traba-
lhista deve respeitar as peculiaridades do trabalho nas agremiações, como
o tempo de materialização dos projetos carnavalescos, permitindo, desta
forma, a possibilidade de ampliação do vínculo trabalhista entre profissio-
nais e agremiações, que, no entanto, não estariam incluídos na categoria
de trabalhadores temporários.
É preciso, também, que as diretorias das agremiações carnavales-
cas percebam que não são reféns dos patrocinadores, e que o lucro das

Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


305
grandes empresas é maior do que o valor oferecido às agremiações, visto
que sua marca/ideia desfilará por 82 minutos para centenas de países,
pagando-se valores inferiores aos que seriam pagos caso os acordos fos-
sem feitos com as emissoras televisivas, por exemplo.
Para que as escolas de samba tenham condições de enfrentar os pa-
trocinadores de forma mais segura, é preciso que as esferas governamentais,
e principalmente a prefeitura do Rio de Janeiro, ampliem os recursos destina-
dos às agremiações, pois as verbas alocadas são irrisórias quando compa-
radas com os lucros obtidos com o evento. É preciso enxergar as agremiações
não apenas como entidades recreativas, mas também como pilares funda-
mentais da cultura popular brasileira e que promovem retornos financeiros a
todas as entidades que se aliam a elas.

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Guilherme Estevão de Lima Maciel


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Uma história do Carnaval: o processo de mercantilização da folia


307
A RELAÇÃO DO SURDO
COM A MÚSICA*

Isabel Cristina Lopes Barbosa**

INTRODUÇÃO

Para assegurar a homogeneidade nos grupos sociais, padrões de nor-


malidade foram estabelecidos pela sociedade, uniformizando as pessoas e
deixando de lado características próprias de cada um. Essas características,
ou diferenças, muitas vezes, passam a ter um valor pejorativo. Denari (2006),
trazendo essa discussão para o contexto educacional, escreve que:

[...] a diferença não é vista como sinônimo de diversidade: dife-


rença tem o peso do entendimento negativo, em que ao aluno
são atribuídas características que o transformam em deficiente.
Dadas às peculiaridades, cada aluno deveria receber atendi-
mentos diferenciados, sem que isso se constituísse de mérito e
desencadeasse um processo de marginalização. Ao contrário,
tais entendimentos justificar-se-iam à medida que se reconhe-
cesse que todas as pessoas diferenciam-se umas das outras e
podem conviver harmonicamente, a partir dessa diferenciação.
Essa convivência não deveria ser interpretada como uma con-

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0043.0.408.000-11.b.
**
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Serviço Social na Univer-
sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). No trabalho de construção de sua monografia
de conclusão de curso, contou com a orientação da professora-pesquisadora Jeanine Bogaerts
(mestranda em Música), do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional em Saúde
(Labform). Contato: isabelpcristina@hotmail.com.

A relação do surdo com a música


309
cessão de determinado grupo a outros, mas sim como um direito
que a sociedade reconhece que todos têm, sem discriminação.
(DENARI, 2006, p. 39)

Muito se discute sobre a forma com que vemos o outro e as diferen-


ças encontradas ao nos relacionarmos com o outro (SKLIAR, 2006). A dis-
tinção entre os diferentes e as diferenças é extremamente importante para
entendermos esse processo. As diferenças são apenas distinções entre um
ser e outro, mas não devem classificá-lo como melhor ou pior. São apenas
diferenças. O problema aparece quando transformamos a diferença na
principal característica do indivíduo, enxergando-o como um ser diferente,
transferindo a ele uma identidade inferior e separando-o e a suas caracte-
rísticas do todo (SKLIAR, 2006).

Os “diferentes” respondem a uma construção, uma invenção,


quer dizer, são reflexo de um largo processo que poderíamos
chamar de “diferencialismo”, isto é, uma atitude – sem dúvida do
tipo racista – de categorização, separação e diminuição de alguns
traços, de algumas marcas, de algumas identidades, de alguns su-
jeitos, em relação ao vasto e por demais caótico conjunto de dife-
renças humanas. (RODRIGUES, 2006, p. 23)

Apesar das lutas, conquistas, insistência de movimentos sociais e de


uma legislação recente que assegura a igualdade de direitos, ainda hoje
podemos presenciar situações de preconceito, exclusão e estigma social.
O estigma representa um olhar diferenciado da sociedade sobre deter-
minado indivíduo por uma característica que ele apresenta, característica
essa que se sobressai às demais. A consequência desse olhar preconcei-
tuoso é a desaprovação social e a não aceitação daqueles que fogem às
normas impostas pela sociedade (RODRIGUES, 2006). Podemos citar al-
guns grupos que normalmente são estigmatizados pela sociedade: homos-
sexuais, alcoólatras, negros, mulheres e deficientes físicos, entre outros.
Todos os que não se encaixam nos “padrões de normalidade” ditados pela
sociedade são estigmatizados por ela.

Isabel Cristina Lopes Barbosa


310
Neste trabalho, focaremos num grupo que sente com intensidade as
consequências desse problema: os surdos. O diagnóstico da surdez não é
apenas a comprovação de uma deficiência auditiva; junto com ele vêm as
limitações que nós, como sociedade, acreditamos serem próprias do surdo:
a impossibilidade de se comunicar, de conseguir um emprego, de aprender,
de obter um bom grau de instrução por não ter acesso à linguagem etc. Essa
única característica pode determinar todas as possibilidades de vida desse
indivíduo (SANTANA, 2007).
De acordo com o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines)
(2005), indivíduos com o padrão da audição normal podem ouvir até 25
decibéis1 em todas as frequências sonoras. O deficiente auditivo é aquele
que possui uma diminuição da capacidade auditiva em diferentes níveis e
se encontra dificultado ou até mesmo impedido de adquirir alguma lingua-
gem oral por conta dessa perda.
Muitas vezes, quando percebem que seus filhos são surdos, os fami-
liares e pessoas próximas deixam de falar com a criança, o que contribui
para um afastamento cada vez maior do “mundo dos ouvintes” e acaba di-
ficultando a comunicação. Isso é extremamente grave, pois é por meio da
linguagem que conhecemos o mundo à nossa volta, que compartilhamos
informações, que entramos em contato com a cultura humana e conhe-
cemos a nós mesmos. Sem a linguagem, haveria um isolamento total, e o
indivíduo não se desenvolveria intelectualmente (SACKS, 1998).
Em relação à aquisição da linguagem para os surdos, historicamente
nasceram dois métodos educacionais principais: a oralização e a língua de
sinais. Na primeira, o objetivo é uma aproximação dos surdos com o universo
ouvinte, procurando ensiná-los a falar mediante um treinamento intensivo e,
por vezes, aliado a isso, utilizando também a leitura labial. No método da lin-
guagem de sinais, os surdos aprendem uma linguagem própria, baseada no
visual, por meio de gestos (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Adeptos da corrente que prega o uso da língua de sinais e basea-
dos nessa diferença linguística, a comunidade surda norte-americana iniciou,
na década de 1980, um movimento conhecido como Deaf Power. Entre as

1
Decibéis (dB): unidade de medida que serve para definir uma escala de intensidade sonora.

A relação do surdo com a música


311
reivindicações desse movimento, estão a luta pela legitimação de uma língua
e cultura próprias e pela troca do uso do termo “deficiente auditivos” por
“Surdos” escrito com letra maiúscula, por representar a comunidade surda.
Essa comunidade queria ser reconhecida como “diferente” e não mais como
“deficiente” (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
No Brasil, a instituição de referência para os surdos é a Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), uma instituição
filantrópica filiada à Federação Mundial dos Surdos e que tem por objetivo a
defesa dos direitos da comunidade surda brasileira. Para isso, desenvolve
atividades políticas, como palestras e debates, além de festas e eventos
culturais que promovem a legitimação da comunidade surda, sua cultura
e o direito a uma língua própria – no Brasil, a Língua Brasileira de Sinais
(Libras) (FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO
DOS SURDOS, 2013). Muitos desses ideais defendem uma separação
entre o que é próprio da cultura surda e a cultura dos ouvintes. Uma das
características que alguns deles apontam como sendo da “cultura dos
ouvintes” é a músi-ca, que, por conta disso, não é aceita por grande parte
da comunidade surda. Porém, podemos questionar:

É justo privar as pessoas surdas da música como lazer/prazer?


[...] A adoção de uma concepção que assume a surdez como
diferença implica no apagamento da música da vida do surdo,
e da dança como expressão da musicalidade? (HAGUIARA-
CERVELLINI, 2003, p. 10)

A música, inerente ao homem, está tão presente na vida como a lin-


guagem. Quando se expressa musicalmente, o ser humano entra em con-
tato, de uma maneira prazerosa, com suas possibilidades e dificuldades e
encontra uma maneira de promover o desenvolvimento harmônico de suas
potencialidades (GAINZA, 1988). Não se trata de um simples prazer senso-
rial, a música é capaz de enriquecer nossa compreensão sobre o mundo e
sobre nós mesmos (SWANWICK, 2003).
Apesar de a música ser considerada por muitos surdos algo exclu-
sivo da cultura ouvinte, podemos observar que a relação surdo/música já

Isabel Cristina Lopes Barbosa


312
aconteceu anteriormente, e muitos surdos puderam se beneficiar desse conta-
to. Um exemplo é Hellen Keller, uma cega surda que descreve como, através
do tato, podia sentir a música pelas ondas sonoras (HAGUIARA-CERVELLINI,
2003). Esse exemplo nos mostra como os surdos podem “ouvir” ou, mais
especificamente, “sentir” a música através das vibrações sonoras que, ao
entrarem em contato com a nossa pele, são percebidas pelo nosso sistema
nervoso. Além disso, quando se compara a música com a fala, constata-se
que muitos instrumentos musicais têm altura e duração maiores que ela, am-
pliando a possibilidade de serem ouvidos. O uso de aparelhos auditivos ou
a realização do implante coclear2 também melhora a percepção sonora. Vale
salientar que apenas 10% dos surdos têm surdez total, ou seja, não ouvem
nenhum tipo de som. Isso significa que os outros 90% podem ouvir em dife-
rentes níveis (ROBBINS e ROBBINS, 1980).
Diante de tudo isso, podemos compreender que a música não é algo
restrito ao “mundo dos ouvintes”. Ela é própria de todo ser humano, e se en-
tendemos que respeitar a diversidade é exatamente compreender a forma di-
ferente com que cada um sente a música, o que mais nos impede de trabalhar
música com surdos e permitir que eles expressem sua musicalidade?
Procuramos compreender a relação entre o surdo e a música, obje-
tivando mostrar que o surdo pode se beneficiar tanto da educação musical
quanto da musicoterapia. Para isso, estudamos a história do sujeito surdo,
pesquisamos as diferentes filosofias educacionais utilizadas na educação
do surdo, observamos a relação dos surdos com a música, diferenciamos
a educação musical da musicoterapia e buscamos entender como e por
que o surdo pode se beneficiar de ambas.
Acreditamos na relevância de um trabalho que tente mostrar que o
surdo pode e deve ter contato com o universo musical, para que, a partir
de sua experiência, possa escolher se quer continuar ou não explorando
os elementos da música. Entendemos que “ser musical não é privilégio de
seres especiais e bem dotados, mas possibilidade do homem como ser”
(FINCK, 2007, p. 6).

2
O implante coclear é uma intervenção cirúrgica feita em deficientes auditivos neurossensoriais, cujo
problema auditivo está relacionado com as células que captam o som. Próteses computadorizadas subs-
tituem a função da cóclea, órgão que capta os estímulos sonoros (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).

A relação do surdo com a música


313
É importante salientar que existem diferenças entre musicoterapia e
educação musical, pois ainda existe muita confusão por parte das pessoas
em geral e inclusive dos educadores, principalmente quando o aluno
é deficiente. Isso porque, devido à deficiência do indivíduo, associamos a
ele atividades de caráter terapêutico. Os objetivos e procedimentos de um
musicoterapeuta não são os mesmos de um educador musical, embora ambas
as áreas sejam muito importantes para a sociedade. A relação terapeuta/
paciente é diferente da relação professor/aluno. A diferenciação entre as duas
áreas acontecerá de forma mais completa no decorrer deste trabalho.
Ao defendermos a inserção da música na vida do surdo, não quere-
mos impor a adequação do surdo ao mundo dos ouvintes, mas possibilitar o
acesso dele aos benefícios que a música pode oferecer. Não é normalizá-lo,
mas promover o seu bem-estar, a autoaceitação e autovaloração, para que
transponha as suas limitações e explore as suas possibilidades.
Por causa da ideia ainda presente em grande parte da sociedade de
que apenas os ouvintes podem experimentar a música, é importante a ela-
boração de trabalhos que mostrem que a musicalidade do surdo não é um
paradoxo. Pensar na possibilidade de se trabalhar música com o indivíduo
surdo é pensar também sobre os dogmas presentes na sociedade, é rever
e discutir verdades preestabelecidas socialmente.

O QUE SIGNIFICA SER SURDO?

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) (2012), são 9.717.318 pessoas com algum tipo de deficiência auditiva
residentes no Brasil. E, apesar disso, pouco se sabe e se divulga sobre surdez
(REDONDO e CARVALHO, 2001). Junto com a deficiência auditiva vêm impli-
cações sociais e culturais, além das questões biológicas. O termo “surdo” é tão
abrangente que chega a ser vago (SACKS, 1998). Essa simples palavra carrega
consigo significados biológicos, sociais e culturais. Usamos uma mesma pala-
vra para uma heterogeneidade imensa de conceitos. Até mesmo dentro do cam-
po biológico, existem diferentes tipos de surdez (ROBBINS e ROBBINS, 1980).

Isabel Cristina Lopes Barbosa


314
As perdas auditivas podem ser classificadas de três maneiras: pelos
diferentes graus de surdez; de acordo com a parte do ouvido lesada; e
pelo momento da vida do indivíduo que começou a ocorrer problemas
relacionados à surdez (PEREIRA, 1995).
Os graus de surdez são classificados de acordo com a diminuição do
nível de audição considerado normal, dependendo da perda auditiva do indi-
víduo (INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE SURDOS, 2005; BRASIL,
1999). Para melhor entendermos o que cada grau de surdez significa na prá-
tica, fizemos um quadro exemplificando essa perda auditiva.

Quadro 1. Graus de surdez e perda auditiva.

Grau de surdez Decibéis Exemplo

Nível normal de audição 0 a 25 dB Padrão normal de audição.

Deficiência auditiva
É possível captar uma
suave ou perda suave de 26 a 40 dB
conversa normal.
audição

Deficiência auditiva As conversas normais


moderada ou perda 41 a 70 dB começam a ficar pouco
moderada de audição audíveis.

Uma conversa normal é


inaudível, dificultando o
Deficiência auditiva
desenvolvimento espontâneo
severa ou perda severa 71 a 90 dB
da linguagem oral. Com
de audição
aparelhos auditivos, é possível
restaurar parte da audição.

Deficiência auditiva Nem aparelhos auditivos


profunda ou perda 91 a 120 dB conseguem restaurar
profunda de audição completamente a audição.

Fonte: Robins e Robins, 1980; Instituto Nacional de Educação de Surdos, 2005.

A relação do surdo com a música


315
Os limites e a denominação de cada nível variam de acordo com o au-
tor. O decreto nº 3.298/1999 e alguns autores ainda acrescentam aos quatro
níveis mencionados acima a deficiência auditiva leve (de 26 a 40 dB) e a de-
ficiência auditiva moderadamente severa ou acentuada (de 56 a 70 dB), mas
a maioria adota apenas os quatro níveis (REDONDO e CARVALHO, 2001).
Quanto à parte do ouvido prejudicada que levou à perda auditiva,
existem quatro tipos principais de classificação:
• Deficiência auditiva condutiva, quando há problemas na transmis-
são do som dentro do ouvido;
• Deficiência auditiva neurossensorial, quando o problema está nas
células que ficam responsáveis pela recepção do som;
• Deficiência auditiva central, quando ocorrem problemas na com-
preensão das informações sonoras no tronco cerebral; e
• Deficiência auditiva mista, quando há mais de uma causa para a
surdez, associando-se mais de uma causa das citadas acima.
A surdez também pode ser hereditária, quando tem origem genéti-
ca, ou adquirida, quando ocorre por outro motivo não hereditário, como
alguma doença ou malformação, por exemplo.
Um detalhe importante quando se estuda surdez é que o indivíduo
pode ficar surdo antes ou depois de já ter tido contato com a linguagem
oral. Isso porque nem todos nascem surdos: em alguns casos, a surdez se
instala no decorrer da vida. Assim, podemos dizer que a surdez pode ser
pré-linguística ou pós-linguística (SACKS, 1998).
Há uma relação íntima entre o desenvolvimento da linguagem e o
desenvolvimento do pensamento. Pois, embora pensamento e linguagem
não tenham as mesmas origens biológicas – e, de certa forma, nossa mente
funcione mesmo que não tenhamos contato com a linguagem –, sem a lín-
gua ficamos confinados a um mundo imediato e pequeno, pois não nos co-
municamos com o exterior. As ideias abstratas, como a passagem do tempo
e ideias imaginárias, tornam-se mais difíceis de serem entendidas (SACKS,
1998). Limitamo-nos ao imediato, ao presente, pois estamos fechados em
nós mesmos, e o mundo criativo e imaginativo não nos é apresentado.

Isabel Cristina Lopes Barbosa


316
A questão da linguagem e de sua importância para o desenvolvi-
mento e sobrevivência social do homem é algo que sempre esteve presente
durante toda a história da surdez. Nesse sentido, rever a história da surdez
é extremamente importante, pois o papel do surdo na sociedade variou
muito nos diferentes contextos históricos. Segundo Bloch (1987), a igno-
rância do passado resulta na incompreensão do presente.
Até a Idade Média, pouco se conhecia e estudava sobre a surdez.
Os surdos eram tidos como incapazes e classificados como pessoas
irracionais (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003). Eram privados de direitos
e excluídos pela sociedade e suas leis. O fato de não ouvirem, e, por
isso, não adquirirem uma linguagem oral com tanta facilidade, fez que
fossem rejeitados e abandonados em praças públicas (SACKS, 1998). O
próprio Aristóteles afirmava que um indivíduo sem linguagem, e portanto
sem pensamento, é insensato e incapaz da razão. Na Igreja Católica, não
podiam receber a comunhão (FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
E INTEGRAÇÃO DOS SURDOS, 2013).
Com o Renascimento, a surdez passa, por volta do ano de 1450, a
ser analisada sob a ótica médica e começa-se a diferenciá-la do mutismo,
algo extremamente importante, pois ser surdo sempre foi relacionado com
ser mudo. Aproximadamente em 1560, o médico italiano Girolamo Cardano
mostrou que os surdos podiam compreender ideias abstratas, podiam ser en-
sinados, ler e escrever, rompendo assim com o dogma de que os surdos
eram seres ineducáveis (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Após o Renascimento, correntes de filósofos e pensadores questio-
naram sobre a condição do surdo naquela época, tratados como doentes
mentais (FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS
SURDOS, 2013). Dentre os educadores de surdos que surgiram o que mais se
destacou foi o abade De L’Epée,3 que, para possibilitar a conversão dos surdos
pobres de Paris à Igreja Católica, estudou os sinais com os quais eles se co-
municavam, aprendeu-os e começou a ensinar os surdos a ler. Ao estudar a

3
De L’Epée, um abade francês da segunda metade do século XVIII, tornou-se um importante per-
sonagem na história da educação de surdos: foi o primeiro a observar e estudar os poucos gestos
que os surdos faziam para se comunicar entre si e, com isso, desenvolveu um método pedagógico
baseado na comunicação por meio de sinais (CÂMARA, 2012).

A relação do surdo com a música


317
língua dos surdos e fazer relações com a gramática francesa, ensinou-os
também a escrever. Assim, os sinais isolados com que os surdos inicialmen-
te se comunicavam começaram a ser combinados para transmitir ideias
em uma língua própria. O abade fundou em Paris o Institut National des
Jeunes Sourds (Instituto Nacional de Jovens Surdos), primeira escola pú-
blica para surdos e treinou muitos professores para trabalharem com os
surdos (SACKS, 1998).
Assim nasceu a língua dos sinais, que, ao contrário do que se pensa-
va, era tão completa e eficaz quanto a linguagem oral. A possibilidade de
uma linguagem própria abriu caminhos culturais e sociais para os surdos.
O sucesso dessa filosofia educacional para com os surdos foi tanto que,
em 1816, ela se expandiu para os Estados Unidos e, depois, para outras
partes do mundo. A língua dos sinais foi se incorporando às línguas de
sinais nativas, formando a Língua Americana de Sinais (ASL, do inglês
American Sign Language), a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e assim
sucessivamente. Em 1864, foi fundada nos Estados Unidos a primeira fa-
culdade para surdos e cegos: a Columbia Institution for the Instruction of
the Deaf and Dumb and Blind (Instituição de Columbia para a Educação
de Surdos, Mudos e Cegos).
Porém, na segunda metade do século XIX, durante a era vitoriana,4
houve um movimento político de intolerância para com as minorias, quer
do âmbito religioso, linguístico ou étnico; havia uma opressão para que
essas minorias se incorporassem aos valores e padrões hegemônicos.
Isso contribuiu para que ganhasse força uma corrente preexistente que
era contra a língua dos sinais, defendendo que o objetivo da educação
dos surdos deveria ser ensiná-los a falar. O método educacional oralista
já existia há mais ou menos dois séculos, simultaneamente à corrente
que defendia a língua de sinais. Baseada nos casos de educadores que
dedicaram sua vida a ensinar os surdos a falar, essa corrente foi cres-
cendo cada vez mais nesse período (SACKS, 1998).

4
Período do governo da rainha Vitória I, na Inglaterra, de 1837 a 1901. Esse período é considerado
importante na história inglesa pelo grande desenvolvimento industrial e conquistas imperialistas,
mas é marcado também pela implantação de rígidos valores morais e opressão daqueles que os
criticassem.

Isabel Cristina Lopes Barbosa


318
E, assim, notamos o conflito entre essas duas filosofias educacionais.
Uma, que pregava que os surdos deveriam aprender a linguagem oral
para se integrarem à sociedade; e outra que defendia o uso de uma língua
própria, em que a comunicação era realizada de forma gesto-visual. Até
hoje existe uma grande discussão sobre qual dessas correntes é a mais
adequada para a educação do surdo:

De que valia, indagava-se, o uso dos sinais sem a fala? Isso não
restringiria os surdos, na vida cotidiana, ao relacionamento com
outros surdos? Não se deveria, em vez disso, ensiná-los a falar (e
ler os lábios), permitindo a eles plena integração com a população
em geral? A comunicação por sinais não deveria ser proibida, para
não interferir na fala?
Mas existe o outro lado da discussão. Se o ensino da fala é árduo
e ocupa dezenas de horas por semana, suas vantagens não se-
riam contrabalanceadas por aquelas milhares de horas retiradas da
educação geral? O resultado não acabaria sendo um analfabeto
funcional que, na melhor das hipóteses, disporia de uma pobre
imitação da fala? O que é “melhor”, integração ou educação? Se-
ria possível os dois, combinando a fala e a língua dos sinais? Ou
qualquer tentativa de uma combinação assim faria emergir não o
melhor, mas o pior de ambos os mundos? (SACKS, 1998, p. 34)

Existiam aqueles que defendiam o uso de ambos os métodos, quando


a capacidade de articulação da linguagem oral não era base da instrução,
mas também era explorada. Finalmente, em 1880, o jogo virou a favor de
um dos lados no Congresso Internacional de Educadores de Surdos, em
Milão. Alexander Graham Bell, um prestigiado inventor, cujas mãe e esposa
eram surdas oralizadas, defendeu o ensino oral no congresso, e a sua auto-
ridade, aliada ao fato de os professores de surdos não terem direito a voto,
fez que o uso da língua de sinais nas escolas fosse proibido, estabelecendo-
se o oralismo como método exclusivo na educação dos surdos (SACKS,
1998; HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
Porém, os problemas da metodologia oralista logo foram percebidos: a
priorização dada à aquisição da linguagem oral – que leva em média de cinco

A relação do surdo com a música


319
a oito anos de tratamento individual, intensivo e imprevisível, pois muitos não
conseguem falar mesmo após o longo treinamento –, para só depois haver
preocupação com a escrita e a transmissão dos conteúdos, levou os surdos a
apresentarem um prejuízo educacional muito grande quando comparados aos
ouvintes ou àqueles que utilizavam a língua de sinais (SACKS, 1998).
Somente na década de 1960 historiadores, psicólogos, pais e profes-
sores de surdos começaram a questionar essa realidade. E nesse conflito de
métodos de aprendizagem, muitos defendiam a mistura dos sinais e do ensino
da fala, combinando as duas no bilinguismo.
Os avanços da medicina ao longo do século XX possibilitaram que os
resíduos auditivos dos surdos fossem aproveitados mediante aparelhos de
amplificação sonora cada vez mais desenvolvidos. Além desses aparelhos,
surgiu a possibilidade de intervenção cirúrgica por meio do implante coclear.
É no século XX também que a ciência, com suas medições e diag-
nósticos, denominou e delimitou o que conhecemos hoje como “deficientes
auditivos”: indivíduos com diferentes tipos e graus de perdas auditivas. Po-
rém, como dissemos na introdução, na década de 1980, surge o movimento
social chamado Deaf Power, enfatizando o direito por uma língua própria –
a linguagem dos sinais –, e pelo direito a ser tratado como “diferente”, em vez
de como “deficiente”.
Com esses movimentos, os surdos lutam para que a sociedade os
enxergue de outra maneira: não mais como deficientes, mas como um
grupo que apenas se comunica de forma diferente. Essa mudança de
olhar nos faz questionar legitimidade do que consideramos normal ou
anormal. “Há por acaso, alguma coisa que possa ser chamada, pensada
e definida como normal? Existe, então, aquilo que deve continuar sen-
do o modelo de normalidade?” (SKLIAR, 2006, p. 18). Esse olhar deixa de
vigiar os desvios anormais e a pôr em pauta os parâmetros da norma-
lidade como a origem do problema.
O homem é um “animal social” e, como tal, para não viver só, se
adapta às regras sociais e à identidade legitimada como normal. Na cultura
estão prescritos os papéis de cada indivíduo, como ele deve agir e ser. A
comunicação verbal é a forma de comunicação hegemônica. O problema

Isabel Cristina Lopes Barbosa


320
aparece quando há uma desvalorização social daqueles que não se comu-
nicam dessa forma, por serem diferentes.

A MÚSICA E O SURDO

A música é um fenômeno acústico para o prosai-


co; um problema de melodia, harmonia e ritmo
para o teórico; e o desdobrar das asas da alma,
o despertar e a realização de todos os sonhos e
anseios de quem verdadeiramente a ama.
Kurt Pahlen

A palavra “música” originalmente estava relacionada às musas gre-


gas, que alegravam os deuses com cantos e coros poéticos. Na Grécia
antiga, a palavra música significava não somente a harmonia dos fenôme-
nos sonoros, mas também compreendia a dança, a ginástica, a filosofia e
a poesia (TOMÁS, 2002).
A definição de música mudou bastante ao longo dos anos, e muitos
acreditam ser impossível limitá-la a uma definição. Dentre as várias defi-
nições existentes, Schafer (1991) nos diz que a música é uma organização
de sons – com ritmos e melodia – com a intenção de ser ouvida. Já em
outra publicação, quando discute as mudanças na definição do que en-
tendemos por música, Schafer (2001) diz que música é todo tipo de som
a nossa volta, independentemente de estarmos num concerto ou não.
Isso se deve principalmente à mudança do fazer musical no decorrer dos
anos, com a criação de cada vez mais instrumentos, a própria utilização de
objetos cotidianos em concertos e o fato de cada vez mais o universo
sonoro como um todo se tornar uma grande orquestra.
Porém, em todas essas definições, a música está estreitamente relacio-
nada ao som. E o que vem a ser o som? O som é resultado da transmissão
de movimentos vibratórios pelo ar. É tudo que soa e é percebido pelos nos-
sos ouvidos e/ou pelo nosso tato, mediante as vibrações das ondas sonoras
(WISNIK, 1989). O som tem propriedades próprias, como altura, duração,
intensidade e timbre. Tudo isso é explorado no fazer musical.

A relação do surdo com a música


321
O som é percebido principalmente pela audição. Dentro do que
conhecemos como audição, existem alguns aspectos relativos ao processo
do “ouvir”, que são, basicamente, sensibilidade, discriminação, reconheci-
mento e compreensão – esses são os principais aspectos para se entender
a audição. A sensibilidade auditiva é a percepção que temos do som no
meio externo. A discriminação é a diferenciação, é o processo no qual,
como a palavra mesmo diz, diferenciamos um som do outro. Já pelo reco-
nhecimento, nossa memória interpreta o som, relacionando-o com nossa
experiência. Assim, compreendemos o que é aquele som pelas catego-
rias que organizam as informações obtidas por meio de nossos sentidos.
Quando a pessoa é surda e utiliza pela primeira vez o aparelho auditivo,
ela passa a ter a sensibilidade, pois começa a conseguir ouvir, mas tem
dificuldades de compreender o som (ROBBINS e ROBBINS, 1980).
A música produz no homem efeitos para além da consciência; ela
perpassa pontos mentais, corporais e afetivos, despertando variadas
emoções e sentimentos. Está tão presente nas expressões artísticas do
ser humano que, nos mais diversos momentos, dos mais felizes aos mais
tristes, das manifestações religiosas à disseminação de ideologias por
grupos sociais, o ser humano utiliza-se desse meio sonoro para expressar
emoções e pensamentos internos para além da linguagem verbal.
Percebemos que diferentes tipos de música podem nos fazer lembrar
fatos do passado, podem identificar um determinado grupo social, uma
determinada ideologia. Enfim, o estudo da música abrange os aspectos
físicos do som e as teorias musicais, mas principalmente as características
culturais e individuais do fazer musical no que se refere à forma com que
cada um reage e constrói a música. Isso justifica o fato de cada cultura ter
características, ritmos e melodias próprios que são diferentes das demais
(HAGUIARA-CERVELLINI, 2003; SCHAFER, 1991).

Com a acústica e a psicoacústica aprendemos a respeito das


propriedades físicas do som e do modo pelo qual este é interpre-
tado pelo cérebro humano. Com a sociedade aprendemos
como o homem se comporta com os sons e de que maneira
estes afetam e modificam seu comportamento. Com as artes, e

Isabel Cristina Lopes Barbosa


322
particularmente com a música, aprendemos de que modo o ho-
mem cria paisagens sonoras ideais para aquela outra vida que é
a da imaginação e da reflexão psíquica. (SCHAFER, 2001, p. 18)

Apesar disso tudo, o universo musical exposto ao surdo muitas vezes


se limita a formas de oralizá-lo. Quando, por exemplo, ocorre uma aula de
canto com um surdo, o objetivo é melhorar o ritmo ou a entonação da fala,
não propiciar experiências musicais (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003). O re-
sultado disso é que o próprio surdo se afasta do fazer musical, considerando
a música como algo imposto pelos ouvintes, algo que não leva em considera-
ção suas características biológicas e culturais.

É muito importante que sejam questionados os objetivos pedagó-


gicos a serem perseguidos com as atividades musicais para surdos:
o que se pretende é oferecer aos surdos o direito de conhecer este
elemento cultural humano tão importante, ou o que se pretende é
obrigar os surdos a participarem de algo que não faz sentido para
eles? Estamos tratando de uma oferta ou de uma obrigatoriedade?
De uma troca ou de um pacote depositado? (SÁ, 2008, p. 2)

Nesse sentido, a música tem sido tratada como um meio e não como
um fim. Não estamos explorando com isso toda a gama de benefícios que a
música pode proporcionar. Não queremos desvalorizar a utilização da mú-
sica no método oralista, mas não podemos limitar o seu uso apenas a essa
forma de trabalho. Não é só o fator ouvir que está em pauta. A música é
sensibilidade. E essa sensibilidade não está apenas associada à capacidade
auditiva do indivíduo. Todos nós podemos perceber a música de diversas
maneiras. Quem nunca sentiu no peito a batida grave de alguma música?
Até as mais baixas frequências de sons audíveis, em torno dos 20 hertz,5 são
facilmente percebidas pelo tato (SCHAFER, 2001). E quando se trata da sur-
dez, encontramos indivíduos que potencializam tanto a visão quanto o tato
por conta de sua perda auditiva, aumentando a percepção das vibrações,
habilidade que os ouvintes não desenvolveriam tanto por terem uma audi-
ção melhor (SÁ, 2008).

5
Unidade de medida de frequência das ondas sonoras, equivalente a ciclos por segundo.

A relação do surdo com a música


323
É claro que existem as limitações por conta da audição reduzida, mas
isso não impede que a pessoa participe de uma vivência musical e pos-
sa usufruir de seus benefícios. Todos nós temos nossas limitações, nossas
dificuldades. Infelizmente, o que mais tem impedido essa experiência não é
o fator biológico, mas a descrença por parte das pessoas. A perda auditiva
é uma questão primária, mas os limites e as possibilidades de desenvolvi-
mento do indivíduo dependem muito mais do meio social que o cerca, das
vivências e dos estímulos que recebe ao longo da vida.
Associamos ser músico com ter grandes habilidades inatas ou um
“bom ouvido”. Todo ser humano, desde um cozinheiro até grandes nomes
como Beethoven, possui musicalidade, que é, entre suas muitas definições, a
possibilidade de expressar seu mundo interno pela música. Isso pode acorrer
de diversas formas: tocando um instrumento, cantando, movimentando o
corpo, ou simplesmente ouvindo/sentindo uma música. Embora a definição
de música tenha mudado, ela ainda se relaciona com a dança e a poesia, e
não deixa de ser uma forma de linguagem pela qual o ser humano pode se
expressar (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
A musicalidade não está relacionada ao ouvido, mas ao cérebro.
Como vimos, do caminho que o som faz até ser compreendido – sen-
sibilidade, discriminação, reconhecimento e compreensão – o surdo só
encontra uma dificuldade no que se refere à sensibilidade, e mesmo que
a percepção do som não ocorra pelo ouvido, pode ocorrer pelo tato. Os
outros aspectos – discriminação, reconhecimento e compreensão – ocor-
rem no cérebro, não no ouvido (ROBBINS e ROBBINS, 1980). Se o fa-
zer musical dependesse totalmente e unicamente do ouvido, Beethoven,
compositor que ficou surdo depois de adulto, não poderia fazer música
depois disso.
A relação homem/música é algo tão natural ao ser humano que
muitos veem na experiência musical algo que faz tanto sentido que eles
se sentem completos ao expressarem a sua musicalidade. A música, como
também outras expressões artísticas, é o meio termo entre as atividades
externas e as experiências internas. Por conta da harmonia dessa relação,
não podemos privar o surdo de experiências musicais.

Isabel Cristina Lopes Barbosa


324
Existe a ideia de que a música para pessoas com deficiência só pode
ser usada para fins terapêuticos. Isso muitas vezes ocorre porque pensa-
mos ser a deficiência um estado de saúde que, dependendo da atividade
realizada pela pessoa deficiente, pode ser mudado. A deficiência nada mais
é do que uma condição que pode, sim, ser tratada. Quando se trabalha mú-
sica em instituições próprias para pessoas com surdez, na maioria das vezes
existe um objetivo terapêutico e/ou social (LOURO, 2006). No caso da surdez,
como já vimos, a música está muitas vezes associada ao ensino da fala no
método oralista (HAGUIARA-CERVELLINI, 2003).
É fato que a música pode trazer consigo diversos efeitos e benefícios à
saúde humana – entendendo aqui saúde como qualidade de vida (BRASIL,
1990). O prazer que a música proporciona e suas propriedades são fonte de
recreação, reabilitação e desenvolvimento de importantes aspectos emocio-
nais, psíquicos, físicos e sociais do homem (LOURO, 2006). Para além disso,
porém, a educação musical é um processo que traz o desenvolvimento de
conceitos e de habilidades, e a sensibilização para o fenômeno sonoro.
Como o próprio nome diz, “educação” é um processo pedagógico:

O que asseguramos é que no decorrer do processo de aprendi-


zagem, o aluno tem a possibilidade de entrar em contato consi-
go mesmo, no momento em que se depara com os obstáculos e
conquistas do fazer musical. Desta maneira, encontra-se diante da
possibilidade de trabalhar de forma objetiva suas dificuldades e li-
mitações; de descobrir nesse processo suas capacidades e talvez
perceber que o limite pode ser a mola propulsora para sua rea-
lização pessoal, seja ela musical ou de outra natureza. (LOURO,
2006, p. 28)

O enfoque de ambos, educação musical e musicoterapia, pode


ser educacional e terapêutico. Quando se trabalha música de forma efi-
caz, os efeitos prazerosos e terapêuticos podem vir consequentemente
(�����������������������������������������������������������������
LOURO������������������������������������������������������������
, 2006). O objetivo da educação musical é explorar a musica-
lidade do indivíduo, torná-lo sensível aos fenômenos musicais sonoros,
para que ele possa responder também musicalmente (GAINZA, 1988).

A relação do surdo com a música


325
O trabalho com educação musical deve ocorrer de maneira flexível,
seja ele dirigido ou não a pessoas com deficiência, adaptando-se às condi-
ções encontradas nas mais diversas turmas possíveis (ROBBINS e ROBBINS,
1980). O seu foco não é distinguir os alunos, mas encontrar formas de trans-
mitir o conhecimento musical (LOURO, 2006). O professor de música deve
utilizar diferentes procedimentos para transmitir e trabalhar os conteúdos.
Educadores musicais de alunos com necessidades especiais deparam-
se com dúvidas frequentes a respeito de sua capacitação para incluir esses
alunos (BERTONCEL, 2010). Quais são as estratégias para que a aprendiza-
gem ocorra de maneira mais eficaz? Nesse sentido, diversos trabalhos estão
sendo desenvolvidos para a educação musical do surdo. E principalmente
quando se trata de pessoas com deficiência, questiona-se quanto o professor
tem necessidade de conhecer as patologias de seus alunos (BOGAERTS e
MAGALHÃES, 2011). É claro e evidente que todas as informações que o pro-
fessor puder obter sobre seus alunos o ajudarão na elaboração de suas aulas e
na pesquisa de diferentes metodologias de ensino. Não cabe ao professor,
entretanto, buscar o diagnóstico dos alunos; independentemente de saber ou
não o que os seus alunos têm, os objetivos das aulas devem ser buscados por
todos. É nesse sentido que o conhecimento do diagnóstico pode não ter tanta
importância – sendo que, em alguns casos, o diagnóstico impõe limitações
que na verdade não sabemos se realmente existem. Isso é claro com os sur-
dos: o senso comum diz que eles não podem fazer música porque não ouvem.
Embora a educação musical para surdos esteja atualmente em pro-
cesso de descoberta e troca de informações, temos alguns exemplos de edu-
cadores que tiveram experiências musicais significativas com alunos surdos,
além do relato de surdos que puderam usufruir de práticas musicais, inclusive
tornando-se músicos profissionais. Podemos citar aqui o exemplo de Fábio
Bonvenuto, maestro e professor de uma orquestra com mais de sessenta
surdos, em uma escola municipal de educação especial no estado de São
Paulo. Em sua experiência com a orquestra intitulada Música do Silêncio,
o maestro relata que inicialmente tentou utilizar instrumentos de sopro e de
cordas, mas não foram muito bem aceitos pelos alunos, que preferiram a
percussão (COELHO, 2010). A princípio parecia que eles apenas repetiam
os ritmos, mas com o passar do tempo foram criando e construindo novas

Isabel Cristina Lopes Barbosa


326
frases rítmicas. Os alunos tocavam com muita força, mas aos poucos foram
compreendendo o universo sonoro e suas propriedades. No relato abaixo,
o maestro Fábio Bonvenuto fala de uma de suas aulas, quando abordavam
a propagação do som:

Um fato curioso foi a conversa de duas alunas que questiona-


vam até onde o som que elas produziam com um pandeirão
do Maranhão poderia chegar. Uma acreditava que daria para
ser ouvido em outro estado, a outra dizia que chegaria até o
bairro de Santana (a cerca de 6 km da escola), eu interferi e
informei que o som chegava apenas do outro lado da rua,
elas não tinham noção da propagação do som. (COELHO,
2010, p. 19)

Os pais confessaram que os filhos entusiasmados ficavam ensaian-


do em casa e melhoraram o desempenho escolar. As diversas apresen-
tações que a orquestra realizou foram extremamente importantes para a
autoestima dos alunos.
Outro exemplo, não de educação musical para surdos, mas de supera-
ção dos limites impostos socialmente ao surdo, é Helen Keller, uma surda cega
que, apesar das barreiras educacionais e sociais, conseguiu desenvolver uma
linguagem clara em três línguas diferentes, cursou filosofia, estudou teatro e ci-
nema, viajou pelo mundo, e, enfim, viveu todas as experiências que uma pessoa
sem deficiência também viveria. Apesar de sua deficiência, que foi descoberta
aos 18 meses de vida, as experiências estéticas nunca deixaram de fazer parte
da vida de Helen: a escultura percebida pelo tato, o teatro, pela descrição das
cenas por alguém próximo, e a música. Como pode uma pessoa surda apreciar a
música? Keller, com sua imensa sensibilidade musical, descreve como consegue
perceber com o tato até mesmo a diferença entre os instrumentos tocados na rá-
dio. Diferencia também o som da voz do cantor do som da música instrumental
e explica como se sente emocionada ao sentir a vibração da voz de um deter-
minado cantor colocando a mão em sua garganta (HAGUIARA-CERVELLINI,
2003). Enfim, é um exemplo de como o ser humano tem em si um grande leque
de possibilidades e que, quando permitimos que ele se expresse e se desenvolva
plenamente, os limites são uma alavanca para a superação.

A relação do surdo com a música


327
Poderia citar aqui também a experiência de Robbins e Robbins (1980)
com estudantes surdos na New York State School for the Deaf (Escola do
Estado������������������������������������������������������������������
de Nova York para os Surdos). A experiência desses educadores mu-
sicais resultou em um trabalho que reuniu os conhecimentos adquiridos ao
longo de suas práticas musicais com os alunos surdos em sala de aula e com
as pesquisas que realizaram sobre esse tema. Perceberam, no final de seu
trabalho, que mesmo os surdos com perdas auditivas severas e profundas
apresentavam musicalidade e uma disposição para realizar as práticas musi-
cais propostas.
Antes de entrarmos na musicoterapia, gostaríamos de estabelecer
uma pequena diferenciação entre terapia e experiências terapêuticas, algo
extremamente importante para compreender a musicoterapia e diferenciá-
la de outras práticas, entre elas a educação musical. Em uma experiência
terapêutica, o indivíduo sente um efeito transformador que pode ter ocor-
rido por acaso, diferente da terapia, que é um processo planejado, em
que se conhecem antes das sessões os possíveis efeitos terapêuticos que
determinado procedimento pode proporcionar (LOURO, 2006).
Diferenciando da educação musical, na musicoterapia temos a re-
lação terapeuta/paciente, na qual a música é utilizada estrategicamente
para promover e reabilitar a saúde do indivíduo, entendendo que saú-
de não é apenas ausência de doenças, mas qualidade de vida (BRASIL,
1990). A musicoterapia é um processo sistemático e monitorado que utiliza
as propriedades físicas do som com o objetivo de tratar o paciente. Por
isso, existe uma preocupação com as condições patológicas em que ele
se encontra e com o conhecimento dos elementos da música e seus efeitos
no homem (LOURO, 2006).
A música utilizada como terapia não é a mesma coisa que a música
utilizada na terapia. Quando utilizada como terapia, e a musicoterapia faz
parte desse grupo, a música assume o papel principal e é usada de maneira
controlada e organizada pelo desenvolvimento e cura do paciente. Já quan-
do é utilizada na terapia, o terapeuta em questão, que não necessariamente
precisa ser um musicoterapeuta, utiliza a música de maneira secundária,
como um meio de alcançar outras formas de expressão. Isso ocorre quan-

Isabel Cristina Lopes Barbosa


328
do, por exemplo, um psicólogo utiliza a música para fazer que o paciente se
acalme (LOURO, 2003).

Mais do que uma contribuição à reeducação auditiva, ao desen-


volvimento da fala e à melhoria do equilíbrio emocional, a musi-
coterapia se constitui numa abordagem fundamental também para
a evolução psíquica daqueles que têm o desenvolvimento da audi-
ção interrompido, em qualquer que seja o momento. (BARCELLOS,
1994, p. 33)

De acordo com os musicoterapeutas Barcellos (1994), Pereira (1995) e


Ambrósio (1994), a musicoterapia para o deficiente auditivo deve objetivar a
reconstrução da evolução da audição, que começa antes mesmo de virmos
ao mundo, nos primeiros contatos estabelecidos no período de gestação.
Estudos nessa área mostram que, desde a sua formação, o aparelho
auditivo do feto capta sons da fala da mãe. Depois do parto, aquela voz per-
cebida no útero pela criança, é novamente reconhecida. Esse contato, pelo
qual somos acariciados pela voz materna, é extremamente importante para
a estruturação humana. À medida que vamos conhecendo a paisagem sono-
ra e a possibilidade de se fazer som temos o nosso primeiro despertar da cons-
ciência, entre o aprendizado do agudo, grave, curto, forte, fracos – qualidades
do som. Como Barcellos descreve, perfeitamente:

O jogo incessante, o vai e vem sônico, incoerente para o adulto,


mas altamente significativo para o bebê, esse banho sonoro pelo
qual somos envolvidos, esse mergulho no mundo barulhento, eis
o nosso primeiro despertar para a vida, a nossa primeira marca
de autonomia, de tomada de decisão. (1994, p. 37)

A vivência sonora é importante para o desenvolvimento pleno do surdo.


A audição funciona como um “radar” para nos orientarmos sobre os possíveis
perigos do meio externo e, diferente da visão e de outros sentidos, está aten-
to a todo o momento as vibrações, até mesmo quando estamos dormindo.
E é a percepção auditiva que se busca desenvolver em sessões de musicote-
rapia com surdos para que ele utilize da melhor forma possível sua capacida-
de auditiva e/ou de perceber os sons pelo tato. Mesmo que sua sensibilidade

A relação do surdo com a música


329
auditiva não mude, espera-se explorar seu reconhecimento e compreensão
do universo sonoro.
Procura-se a identidade sonora, um conceito que em musicoterapia
significa um conjunto de sons que fazem parte do psicofisiológico do ho-
mem, nossas vivências sonoras do período de gestação, uterinas, no nas-
cimento e infantis. A musicoterapia pode auxiliar na evolução psíquica dos
surdos, já que eles tiveram interrompido o desenvolvimento da audição,
extremamente importante para formação psíquica do ser humano.
De acordo com o Instituto Nacional de Educação de Surdos (2005), o
aparelho auditivo além da audição, é também responsável pelo equilíbrio. Por
isso, em sessões de musicoterapia, é importante associar, junto aos aspectos
sonoros, atividades que promovam o desenvolvimento psicomotor do surdo.
Pode ocorrer que o indivíduo tenha, junto com a deficiência auditiva, outras
dificuldades físicas ou mentais, como dificuldade de andar, problemas respira-
tórios, lesões cerebrais e alterações na laringe, dependendo de como adquiriu
a surdez e o tipo de grau de surdez (PEREIRA, 1995). Não vamos nos reter
nessas dificuldades neste trabalho, pois elas não são o nosso foco principal.
No caso da surdez, a musicoterapia é trabalhada por meio dos sons e
vibrações, aproveitando-se da sensibilidade do tato, além da audição residual
do indivíduo. Junto com o som, também é explorado, pela dança, o trabalho
corporal. Utilizam-se as qualidades do som – intensidade, altura e timbre – e
os elementos da música – ritmo, melodia e harmonia – para desenvolver no
indivíduo surdo noções rítmicas, compreensão do mundo sonoro e sensibili-
dade musical (PEREIRA, 1995). Buscam-se atividades criativas para introduzir
o surdo no mundo sonoro.
Os efeitos da musicoterapia com o surdo compreendem aspectos
físicos, mentais, emotivos e sociais. Em se tratando dos aspectos mentais,
essa prática colabora com o desenvolvimento da observação, atenção
memória e reflexão. Nos aspectos emotivos, como ocorre com qualquer
pessoa que tenha uma experiência musical, é desenvolvido a sensibilidade
e criatividade. No aspecto social, nota-se uma integração e comunicação
do paciente, aumentando consequentemente sua autoestima e bem-estar.

Isabel Cristina Lopes Barbosa


330
Como vimos, educação musical e musicoterapia são formas diferentes
de se trabalhar a música com o surdo, cada um com seus objetivos, procedi-
mentos e abordagens. Ambas podem contribuir de maneira significativa na
musicalidade do surdo, nas suas relações sociais e em seu cotidiano.

PESQUISA DE CAMPO

Faz parte da construção deste trabalho o processo de realização da


pesquisa de campo, baseada na aplicação de um questionário qualitativo.
Tendo como referência Haguiara-Cervellini (2003), procuramos explorar
questões que discutem a possível musicalidade do surdo, capturando a
visão do objeto de estudo em questão sobre o tema. Pretende-se, com isso,
estabelecer uma aproximação entre os conceitos teóricos encontrados no
levantamento bibliográfico e a realidade prática. Claro que alguns indivíduos
não representarão toda a visão da comunidade surda, mas são uma amostra
de como o surdo vê o universo musical.
A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (ESPJV/Fiocruz) tem
no seu corpo de trabalhadores pessoas com deficiência auditiva que acei-
taram participar da pesquisa. Quanto ao perfil, a escolha dos indivíduos
se deu pelo fato de serem surdos. Nesta pesquisa não houve relevância no
recorte da idade ou sexo do entrevistado.
O questionário foi dividido em duas partes principais: primeiramente, os
dados gerais do respondente e informações sobre a sua deficiência auditiva;
uma segunda parte procurou verificar qual a relação dessas pessoas com
a música. Sendo semiestruturado, o questionário possui questões fechadas
e abertas, deixando o respondente dissertar sobre o assunto em pauta.
Entregamos o questionário e individualmente ele foi respondido de forma
escrita pelos surdos. Para abordá-los não foi necessário um intérprete em
Libras, pois os surdos eram oralizados e faziam leitura labial.
Com relação às respostas obtidas, percebemos que ambos os entre-
vistados descobriram a surdez na infância, quando a família notou que o fi-
lho não compreendia o que era dito. Foram levados então ao médico, que
diagnosticou sua deficiência auditiva. Ao analisar a fala do entrevistado 1 –

A relação do surdo com a música


331
“Descobriu-se [a surdez] com mais ou menos 1 ano e 6 meses porque eu
não atendia aos chamados. Quando entendia, fazia tudo certo” – podemos
supor que antes da descoberta da surdez, os pais do respondente passaram
por certas dificuldades, pois não entendiam por que a criança não “fazia tudo
certo” – algo que pode ter levado os pais a pensarem que a criança tinha
algum tipo de déficit intelectual.
Outra semelhança aparece quando os respondentes afirmam se co-
municar através da língua de sinais (no caso, a Libras) com os surdos e, com
os ouvintes, utilizam a leitura labial e oral para se comunicar. Isso mostra
que a filosofia educacional na qual foram educados foi o bilinguismo, que
associa o uso da língua de sinais e da língua portuguesa como segunda
língua, em sua modalidade escrita ou oral.
Ambos os entrevistados não utilizam prótese auditiva ou implante
coclear. Um fato interessante sobre isso é que quando questionados so-
bre o que poderia ter contribuído para que eles tivessem uma experiência
musical, obtivemos como resposta, nos dois questionários, o aparelho au-
ditivo. Por um descuido, não questionamos o porquê da não utilização do
aparelho auditivo, que, de maneira geral, pode ter alguns motivos: falta
de interesse por parte do surdo, lembrando que a comunidade surda não
acredita que esse tipo de aparelho faça parte da identidade e da cultura
surdas; ou falta de recursos financeiros, uma vez que o aparelho auditivo
não é algo que custe pouco, além de precisar ser trocado periodicamente,
porque com o tempo ele deixa de se ajustar ao indivíduo que cresce. Existe
uma dificuldade de conseguir uma prótese auditiva quando solicitada ao
Sistema Único de Saúde (SUS) e, muitas vezes, quando o aparelho final-
mente chega ao surdo, já não tem o tamanho ideal. Além disso, quando
se trata de crianças, o aparelho sofre quedas e torna-se um incômodo.
Uma diferença entre as respostas foi que apenas um dos entrevistados
sabe qual o seu grau de surdez. O entrevistado 1 possui deficiência auditiva se-
vera – com perda entre 71 e 90 dB; já o entrevistado 2, embora não saiba o seu
grau de surdez, provavelmente está entre a deficiência auditiva moderada e a
deficiência auditiva profunda, pois relatou que só ouve sons mais graves, como
a bateria. O teste auditivo, um exame extremamente simples, não é algo reali-
zado com frequência nas escolas. Isso dificulta também o diagnóstico da surdez,

Isabel Cristina Lopes Barbosa


332
fazendo que as crianças muitas vezes sejam confundidas com crianças que têm
comprometimento intelectual, por causa da não compreensão das falas.
No segundo momento do questionário, notamos que os entrevistados
enxergavam o contato com a música de maneiras diferentes. O entrevistado 1
afirma que já teve contato com a música, embora não tenha estudado um
instrumento. Isso mostra que considera ouvir música uma forma de se estabe-
lecer essa relação com a música. Ele diz gostar de ouvir música, embora ouça
apenas os instrumentos tocados bem alto e não consiga perceber as vozes.
Chama atenção ainda para o gênero que mais gosta: o rock – talvez pela
batida forte que a guitarra e a bateria desse estilo musical.
O entrevistado 2, num primeiro momento, descreve nunca ter tido
contato com a música. Porém, no decorrer das questões, afirma que gos-
ta de músicas tocadas nas igrejas e festas, e que percebe principalmente os
sons mais graves que vêm da bateria. Provavelmente, “ter contato com a músi-
ca” para o entrevistado 2 signifique tocar algum instrumento ou fazer música.
A apreciação musical, o ouvir e sentir, não parecem ser considerados – uma
visão extremamente normal, até mesmo entre os ouvintes.
Ambos relataram que ouvem música em casa em estilos variados,
por causa da família, constituída por ouvintes. Isso é extremamente interes-
sante, pois, em alguns casos, a família evita ouvir música perto do surdo,
por achar que ele, por não ouvir, não pode apreciar a música.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da história, a surdez, como outras deficiências, sempre


trouxe consigo diversas implicações para a vida dos indivíduos. A socieda-
de, que tem em sua estrutura padrões de normalidade, estigmatiza os que
fogem do que consideramos normal.
As questões patológicas, como reações psicomotoras, por exem-
plo, são consequência direta da deficiência; porém questões sociais,
como desenvolvimento da linguagem, memória, raciocínio ou pen-
samento, são questões secundárias, que dependem mais da maneira

A relação do surdo com a música


333
como o meio lidará com essas pessoas. Assim, a interação do surdo
com o meio é que vai determinar seu desenvolvimento e aprendizado.
No âmbito educacional, deve-se tirar o enfoque na deficiência e passar
a problematizar e discutir meios de se ajustar às dificuldades desses
indivíduos, principalmente quando se trata da surdez, no qual há con-
dições para desenvolvimento mental (FINCK, 2009).
Como qualquer outro aluno, o surdo e a sua cultura devem ser res-
peitados nas aulas. E esse aspecto vai além de ter apenas um intérprete de
Libras em sala de aula: é respeitar o fato de os surdos não serem ouvintes
e não ver isso de forma negativa, e sim somente como uma diferença (SÁ,
2008). Quando se trabalha em sala de aula, seja em música ou qualquer
outra matéria, deve haver uma sensibilidade e troca entre os dois lados,
do professor e do aluno. Cabe à escola e aos professores acreditar nas
potencialidades destas pessoas, se desprendendo da visão de que exista
um “aluno normal”, mas que todos somos seres humanos, independente
de nossa condição física, social, financeira, etc. Como Rodrigues relata:

Diria que [o professor] não se transforme em um típico funcio-


nário da alfândega, que apenas está aí para vigiar aquela per-
versa fronteira entre exclusão e inclusão. Que mude seu próprio
corpo, sua própria aprendizagem, sua própria conversação,
suas próprias experiências. Que não faça metástase, que faça
metamorfose. Finalmente lembraria a esse (a) professor (a) aquilo
que Nietzsche [...] entendia por educação: a arte de rebatizarmos
e/ou de nos ensinarmos a sentir de outro modo. (2006, p. 33)

É importante entender que ao fazer e/ou estudar música, não é ne-


cessário ter nenhum talento ou tocar algum instrumento. O universo musi-
cal é muito mais amplo que isso. Para que esse contato possa ocorrer de
maneira eficaz e produtiva, não temos que adaptar o aluno à música, mas
a música ao aluno. Procurar estratégias para que o universo musical possa
ser explorado da melhor maneira possível pelo surdo, assim como com to-
dos os alunos. Deve ser flexível o suficiente e adaptável, para acompanhar
as diferentes habilidades e características de cada grupo. Outra possibilida-
de de estimular o interesse dos estudantes surdos pela música é trabalhar
áreas separadas, como o ritmo, a apreciação musical, a dança, a teoria,

Isabel Cristina Lopes Barbosa


334
mesmo porque o surdo tem maior facilidade com o ritmo e batidas fortes,
que podem ser facilmente percebidas pelo tato.
Embora não seja objetivo da educação musical alcançar efeitos terapêu-
ticos, se os objetivos próprios do programa são atingidos, as contribuições em
outras áreas já serão privilegiadas. E o interessante de se trabalhar com arte
é exatamente isso: explorando e se expressando pela música, o surdo tem a
possibilidade de ter contato com a dança, de convívio social, noções de ritmo e
equilíbrio, ampliação de percepção, memória, raciocínio, consciência, afetivida-
de e muitos outros aspectos que podem nascer dessa relação (LOURO, 2006).
Não cabe a ninguém determinar quem pode ou não ter contato com a
música, nem limitar o acesso a essa arte, independente de qualquer coisa. A
música, a dança, o cinema, o desenho e a arte em geral são formas de lingua-
gem exclusivas do homem. Formas de expressão criadas por ele para fazer vir
à tona aquilo que faz e determina a nossa humanidade: a sensibilidade.

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Isabel Cristina Lopes Barbosa


338
TRABALHO E PROPRIEDADE NO
SEGUNDO TRATADO SOBRE O
GOVERNO CIVIL, DE JOHN LOCKE

João Paulo Rodrigues dos Santos*

A construção do Estado liberal burguês encontra no pensamento de


John Locke (1632-1704) uma etapa fundamental. Em seus Dois tratados
sobre o governo civil, encontramos os princípios fundantes do individualis-
mo moderno, do liberalismo e do direito natural à propriedade privada,
concepção que cotidianamente nos parece tão natural que mal suspeita-
mos que tenha propriamente uma história e que se enraíze em artifícios
e pressupostos tão peculiares que, mesmo quando se pretenda discutir
a propriedade privada, permanecem ocultos à investigação e à margem da
discussão. Mais adiante veremos de que forma a concepção de propriedade
privada como um direito natural do indivíduo funda-se na noção de trabalho
enquanto desdobramento natural do que é mais próprio ao indivíduo, sua
vida. Para tal, é necessário entender que a própria noção de direito natural
do indivíduo deriva da anterioridade ontológica dada ao indivíduo em re-
lação ao Estado, tese essa consolidada no pensamento moderno ao longo
de um incessante conflito entre os ideais burgueses e a tradição aristotélica.
Desanuvia-se, portanto, o campo em que se desdobram os mais intensos
combates ao liberalismo burguês, a saber: o conceito de trabalho.
John Locke é herdeiro de uma tradição da filosofia política que se ini-
cia com Nicolau Maquiavel (1469-1527) em sua obra O príncipe, escrita em

*
Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Análises Clínicas (2008-2011). Atualmente cursa História da Arte na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou
com a orientação do professor-pesquisador Felipe Gonçalves Pinto (mestre em Filosofia pelo Programa
de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ), do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional
em Saúde (Labform – EPSJV/Fiocruz). Contato: joaopaulo_rsantos@hotmail.com.

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


339
1513. Esse autor rejeita a tradição idealista de Platão (428 a.C.-327 a.C.),
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e Tomás de Aquino (1225-1274), vendo a ori-
gem do Estado não na boa natureza do homem, mas na luta entre oprimidos
e opressores, e a ver seu fim não na felicidade, mas no equilíbrio – e, portanto,
na manutenção – desse conflito. Para Maquiavel, os homens “são ingratos, vo-
lúveis, simuladores, covardes ante os perigos e ávidos de lucro” (MAQUIAVEL,
1987, p. 70). Sendo assim, para evitar o caos e a desordem, o Príncipe deveria
ter poderes absolutos. Desse modo, esse legítimo renascentista abre caminho
para a teoria moderna do poder político, doravante um domínio autônomo e
de todo distinto dos âmbitos teológico e moral. Com isso, as ações do gover-
nante não poderiam ser questionadas e analisadas do ponto de vista da moral
e sim primando pela manutenção da ordem e, consequentemente, do Estado.
Se o florentino Maquiavel abre as portas do pensamento político
moderno, podemos dizer que com o inglês Thomas Hobbes (1588-1679)
encontramo-nos já em seu interior. Vemos no Leviatã, de Hobbes, a fun-
dação racional das teorias que servirão de linhas mestras para a concre-
tização do Estado burguês: o contratualismo e o jusnaturalismo. Segundo
Hobbes, o direito de natureza consiste na

[...] liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder,
da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natu-
reza, ou seja, a vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo
que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim. (HOBBES, 1979, p. 78)

A partir disso, configura-se um grave problema, pois os homens en-


trariam naturalmente num estado de guerra que Hobbes chama de “bellum
omnia contra omnes” (“guerra de todos contra todos”). Preocupado em se
defender ou atacar para proteger sua própria vida, cada homem veria na
liberdade do outro a iminente ameaça à sua própria. Portanto, a origem
das sociedades não foi a boa vontade de uns para com os outros, mas o
medo recíproco.
Para que todos não acabem se matando e tenham segurança, é neces-
sário que a razão institua a primeira lei natural: “todo homem deve esforçar-se

João Paulo Rodrigues dos Santos


340
pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não con-
siga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens de guerra” (HOBBES,
1979, p. 78). E a segunda lei, um desdobramento da primeira, é a seguinte:

Que um homem concorde, quando outros também o façam, e


na medida em que tal considere necessário para a paz e para
a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as
coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a
mesma liberdade que os outros homens permitem em relação
a si. (HOBBES, 1979, p. 79)

Os direitos de cada homem seriam, então, transferidos a uma úni-


ca entidade, o Leviatã, Estado soberano que deve assegurar a paz e a
defesa da vida de cada cidadão, que só pode questionar as ordens des-
sa autoridade quando ela infringir o direito natural de preservação da
vida. Assim, os homens, enquanto entes racionais, já sempre optaram
por um contrato social, pelo qual abdicaram de certas liberdades em
troca de uma convivência pacífica.
Desde o que dissemos, é evidente que, em Hobbes, o Estado, ain-
da que tenha origem na realidade natural (isto é, racional) do indivíduo,
consiste em um Estado absolutista, absolutismo esse fundado na trans-
ferência do direito natural demandada pelo contrato. Locke, seguindo
uma argumentação que conserva os elementos utilizados por Hobbes,
articula de maneira diferente tais elementos, doando-lhes por vezes no-
vos sentidos e acrescentando ao menos dois novos: a propriedade e o
trabalho. Segundo Locke, como já apontamos no início desta introdu-
ção, minha vida, direito natural meu, desdobra-se como trabalho que,
ao ser misturado a um ente natural, modifica seu estatuto, tornando-o
não só um ente artificial, mas como que uma extensão da minha vida,
portanto, naturalmente minha propriedade. Propriedade essa que, assim
como os demais direitos naturais, não é, segundo Locke, transferida ao Esta-
do pelo contrato, devendo antes o Estado, segundo essa nova concepção do
contrato, conservar tais direitos do indivíduo. Trata-se, portanto, dos princí-
pios do processo moderno de conquista enquanto privatização da natureza.

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


341
Esse processo deve ser garantido pelo poder político do Estado, que é
liberal não no sentido de possuir liberdade para tomar e alterar as proprie-
dades do indivíduo, e sim, ao contrário, no sentido de legislar para assegurar
as propriedades do indivíduo, legítimas independentemente do Estado, o que
fica claro no seguinte trecho da definição de poder político:

Considero, portanto, poder político o direito de fazer leis com pena


de morte e, consequentemente, todas as penalidades menores pa-
ra regular e preservar a propriedade. (LOCKE, 1991, p. 216)

Em seu Primeiro tratado sobre o governo civil, Locke combate a tese


segundo a qual o poder político encontraria suas origens e, portanto, sua
legitimação, no domínio privado e na jurisdição paterna de Adão. De acordo
com Locke:

Adão não tinha, seja por direito natural de paternidade ou por doa-
ção positiva de Deus, autoridade de qualquer natureza ou domínio
sobre o mundo, [...] se os tivesse, nenhum direito a eles, contudo,
teriam seus herdeiros. (LOCKE, 1991, p. 215)

No primeiro capítulo do Segundo tratado sobre o governo civil, o au-


tor expõe sua próxima tarefa: encontrar outra origem para o poder político.
Assim como Hobbes, Locke inicia sua teoria descrevendo um estado de na-
tureza, que, através do contrato social, se torna estado civil. Difere, contudo,
em alguns aspectos como, por exemplo: o estado de natureza de Locke não
ocorre num determinado período histórico, mas pode existir independente-
mente do tempo. Ele acontece quando uma comunidade se encontra sem
uma autoridade superior e só guarda e administra os direitos naturais con-
cedidos pelos seus cidadãos, em vez de tomar posse deles, como defendia
Hobbes. Outra diferença nas teorias dos dois filósofos ingleses é que en-
quanto Hobbes propõe um Estado absolutista e inquestionável, Locke
confere ao povo o direito de se revoltar e retirar o seu governante do
poder, caso ele não garanta os direitos individuais.
Inicialmente, o homem se reuniria com outros formando o estado civil
a fim de preservar sua vida, um direito natural, mas não somente para isso:

João Paulo Rodrigues dos Santos


342
outro direito natural fundamental que os homens pretendem conservar ao
formar o estado civil é a propriedade. Locke, típico burguês, defende a
propriedade privada como sendo um direito anterior a qualquer orga-
nização civil e, sendo assim, existente independentemente do Estado.
O estado civil surge então, segundo Locke, para conservar os direitos
naturais, ou seja, a vida e a propriedade. E os cidadãos não renunciam
aos seus direitos naturais, mas querem que eles sejam garantidos. O Es-
tado deve proteger cada homem da ganância e possível invasão de sua
propriedade por parte de outro homem. Resumindo: os direitos naturais
existem no estado de natureza, mas não são garantidos. No estado civil,
o homem concede temporariamente seus direitos ao Estado, a fim de
conservá-los. E fazem essa transição de forma consensual e não através
da submissão, como em Hobbes.
Uma vez que a noção de direito natural constitui peça-chave na
discussão em torno da fundamentação (ideológica, diga-se) do Estado
burguês, convém que nos debrucemos sobre ela e sobre o modo como
esse artifício conceitual foi transmitido aos teóricos modernos do Estado.

DO DIREITO NATURAL

Na Antiguidade, Aristóteles faz uma distinção entre physis e nomos


mediante a diferenciação entre o direito natural e o positivo. Para ele, o
primeiro é válido em todos os lugares, ou seja, é universal e, por isso, na-
tural. Esse caráter natural estabeleceria o que é justo ou injusto em si mes-
mo, logo não dependeria da opinião dos indivíduos. O direito positivo por
sua vez estaria relacionado às leis e não seria oposto ao natural, mas ao
contrário, funcionaria como uma extensão e atuariam integrados, com a
devida ressalva que o direito positivo varia de lugar para lugar, tendo va-
lidade particular.
Aristóteles indica que apesar dos dois coexistirem, havendo um
conflito, o direito natural deve ser priorizado, como se percebe nessa
passagem da Retórica:

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


343
Se a lei escrita é contrária à nossa causa, torna-se necessário
utilizar a lei comum e a equidade, que é mais justa [...]. Com
efeito, a equidade sempre dura, e não está destinada a mudar: e
até mesmo a lei comum (pelo fato de ser natural) não muda, en-
quanto as leis escritas mudam com frequência. (ARISTÓTELES apud
BOBBIO, 1998, p. 35)

Assim, ele defende que, havendo conflito entre as leis, as não escri-
tas devem ser seguidas, mas reforça que o direito positivo não invalida o
natural, ocupando o espaço deixado pela lei comum, regendo e regula-
mentando as ações que, de acordo com o direito natural. São indiferentes
e não obrigatórias.
Tomás de Aquino, na Idade Média, vai apropriar-se da concepção
aristotélica de direito natural sob um ponto de vista cristão, onde a lei
natural advém de uma ideia teológica do universo. Esse direito natural
viria, portanto, de Deus, que teria determinado as leis fundamentais, as
quais os homens devem seguir. Porém o homem, por ter livre-arbítrio,
poderia violá-las, o que não significaria a invalidação de tais leis, que
continuariam em vigor, sendo transmitidas aos homens direta ou indire-
tamente. A lei natural estaria então ligada aos Dez Mandamentos e se
sobreporia aos costumes e à tradição, que, caso fossem contrários à lei
natural, seriam considerados falsos.
Para Aristóteles, o direito natural se aplica na esfera das ações
moralmente necessárias e o positivo na das moralmente indiferentes,
funcionando assim como uma extensão ou desdobramento do primeiro.
Para Tomás de Aquino, todas as esferas também estão sujeitas à lei natural
como em Aristóteles, mas ele introduz o argumento teológico. Uma vez que
a lei natural é determinada por Deus, a lei humana ou positiva nada mais
seria que o desdobramento da lei divina em uma situação concreta, ou
seja, uma verdade já implícita no conceito mais amplo do direito natural.
Para Tomás de Aquino, a lei natural passaria para a lei humana de
duas maneiras:
1 - per conclusionem, ou seja, com base num princípio natural os ho-
mens deduziriam logicamente a lei, funcionando como um silogismo.

João Paulo Rodrigues dos Santos


344
Por exemplo, a norma “não matar” deriva da regra geral e evidente
“não se deve praticar o mal”;
2 - per determinationem, ou seja, a lei natural determina que o culpado
deve ser punido, mas os homens devem estabelecer a pena. Ou seja, é
uma especificação ou aplicação prática da lei natural.
Uma diferença entre as leis derivadas per conclusionem e per
determinationem é que as primeiras retiram sua validade da lei natural,
enquanto as segundas têm origem na própria lei humana e, portanto,
podem ser passíveis de equívocos, como se percebe nesta passagem
da Summa theologica:

Qualquer lei estabelecida pelos homens é autêntica na medida em


que deriva da lei da natureza; se discordar desta, já não será uma
lei, mas corrupção de lei. (TOMÁS DE AQUINO apud BOBBIO,
1998, p. 40)

Embora siga a tradição jusnaturalista, Hobbes se debruça sobre a


teoria do direito natural a partir de uma nova concepção de natureza para
escrever toda sua obra política. Contudo, é considerado um precursor do
positivismo jurídico, uma vez que se utiliza do direito natural, não como uma
limitação do direito positivo, mas como um fundamento não excludente dele.
Como se percebe nesse trecho do De Cive (Do cidadão):

Todas as leis podem ser divididas, em primeiro lugar, em leis divi-


nas e humanas. As leis divinas são de duas espécies, conforme os
dois modos como Deus pode manifestar sua vontade aos homens:
natural (ou moral) e positiva. Natural é aquela que Deus manifestou
a todos os homens por meio da sua palavra eterna, neles inata, isto
é, por meio da razão natural. Positiva é aquela que Deus revelou
mediante a palavra dos profetas [...]. Todas as leis humanas são leis
civis. (HOBBES, 1979, p. 181)

Sendo assim, não parece que Hobbes inove em sua categorização dos
direitos natural e positivo. O primeiro é aquele transmitido por Deus aos ho-

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


345
mens e vigente no estado de natureza, enquanto o segundo é vinculado à
sociedade civil e designado pelo Estado. O que diferencia Hobbes da tradição
jusnaturalista, além da nova noção de natureza dada pela ciência moderna, é
sua interpretação da relação entre as leis naturais e civis.
Para Hobbes, as leis naturais não são válidas tanto no estado de natu-
reza quanto no estado civil. No estado de natureza, uma vez que só existem
as leis naturais, sua obediência deve respeitar a premissa de que os indivíduos
só se sentirão seguros quando os outros também obedecerem. Dado que o
estado de natureza tem como principal característica o caos e a insegurança
contínua, não se tem garantia que os outros seguirão tais leis, portanto não se
é obrigado a cumpri-las. Por isso, o respeito às leis naturais só é válido quando
recíproco, de forma que em uma situação onde não há tal garantia, perde-se
a validade dessas leis.
Exatamente por ser marcado pela insegurança – bellum omnium con-
tra omnes –, os homens almejariam sair do estado de natureza, passando
para o que conhecemos por estado civil. De forma que, para garantir a
segurança indispensável, os homens se disporiam a renunciar os direitos
que possuíam no estado de natureza, transferindo-os a um soberano cria-
do, ou seja, não existente anteriormente, que teria o direito de punir os que
não obedecessem às regras instituídas.
Com a segurança conquistada, todos os indivíduos participantes do
pacto devem se submeter ao soberano e às suas ordens. Assim sendo, no
estado civil os indivíduos devem obedecer às leis civis, o que significa que
só existe um direito, ou seja, o direito positivo. Esse direito se sobrepõe às
leis naturais que, por sua vez, não se fazem mais necessárias pois os indi-
víduos já respeitam as leis civis.
No entanto, as leis naturais serviriam ao menos para o soberano,
que deve respeitá-las em relação a seus súditos, mas Hobbes concede ao
soberano o direito de individualizar as leis naturais da forma que julgar
mais adequada:

As leis da natureza proíbem o furto, o homicídio, o adultério e


todas as várias espécies de crimes. No entanto, é preciso deter-
minar, por meio da lei civil, e não da lei natural, o que se deve

João Paulo Rodrigues dos Santos


346
entender por furto, homicídio, adultério, crime. Com efeito, nem
toda subtração de algo possuído por outrem é furto, mas so-
mente daquilo que é de sua propriedade. Portanto, determinar
o que é o nosso e o que pertence a outrem é algo que depende
justamente da lei civil. (HOBBES, 1979, p. 109)

Partindo dessa passagem, nem mesmo o direito à vida, teoricamente


o único direito inalienável, estaria protegido. Se o soberano não conside-
rasse a pena de morte como homicídio, o súdito não teria como escapar
dela. De forma que os súditos não têm o direito de questionar as atitudes
e ordens de seu soberano, assim como não podem julgar a moral dele
porque “os reis legítimos, quando ordenam uma coisa, a tornam justa pelo
simples fato de que a ordenaram” (HOBBES, 1979, p. 156). Ou seja, o que
é justo ou não é definido pelo poder do soberano, sendo seu julgamento
o único válido.
Se por um lado os soberanos devem respeitar a lei natural, a lei que
obrigaria os súditos a obedecerem ao soberano é, por outro, uma lei na-
tural, uma vez que a soberania foi instituída a partir de um pacto entre os
indivíduos. Sendo assim, a única lei natural que vige no estado civil é a que
obriga a obediência ao soberano. Com isso, Hobbes inverte o significado
tradicional da lei natural: se anteriormente ela limitava os poderes do so-
berano, agora, ela dá poderes quase absolutos a ele.
Outro ponto modificado por Hobbes na tradição jusnaturalista é que
os indivíduos tradicionalmente deveriam obedecer primeiro às leis naturais
e depois às civis. Contudo, se a lei natural obriga os súditos a obedecerem
às leis civis, sua obrigação passa a ser obedecer antes às leis civis em detri-
mento das leis naturais. Em suma, pode-se dizer que a lei natural é sotoposta
justamente por seu principal fruto, o direito positivo.

O JUSNATURALISMO DE JOHN LOCKE

Pode-se dizer que a teoria jusnaturalista tem seu ápice com Locke, que
estabelece as bases do Estado liberal moderno a partir do direito natural. Para

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


347
analisar o caminho percorrido por Locke, é essencial uma compreensão
da vida do filósofo inglês que influenciou Hume (1711-1776), Voltaire
(1694-1778), Kant (1724-1804), Berkeley (1685-1753), Adam Smith
(1723-1790), entre outros. O cenário inglês favorecia a concepção de sua
teoria com um Estado constitucional, poder soberano limitado e garantia dos
direitos naturais do cidadão.
Historicamente, a monarquia inglesa nunca foi absoluta, porém,
com a morte de Elizabeth I, a Rainha Virgem, em 1603, a coroa inglesa
não teria sucessor direto. O rei da Escócia, Jaime VI, primo de Elizabeth,
foi proclamado rei da Inglaterra – com o nome de Jaime I, mesmo sem
ter seu direito de sucessão reconhecido. Jaime I, e posteriormente seu
filho, Carlos I, deram início à dinastia dos Stuarts, marcada pela defesa
do absolutismo baseado na tese do direito divino dos reis. Assim, mui-
tas forças se alinharam contra esse absolutismo, culminando na Guerra
Civil Inglesa (1642-1649), que acaba no regicídio e com a vitória do
Parlamento pelas mãos de Oliver Cromwell.1
Portanto, é nesse ambiente propício à criação de novas teorias libe-
rais que nasce John Locke em 29 de agosto de 1632, em Somerset, peque-
na aldeia próxima a Bristol. Pertencia a uma família burguesa mercantil,
seu avô era comerciante de tecidos e seu pai, juiz de paz. Aos 10 anos
de idade viu o início da Guerra Civil Inglesa, na qual seu pai lutou como
capitão do Exército Revolucionário (BOBBIO, 1998, p. 82).
Ingressou na Universidade de Oxford, onde teve o primeiro conta-
to com obras de filósofos modernos, como René Descartes (1596-1650).
Vivendo no ambiente da classe dominante inglesa, Locke dedica seu pri-
meiro escrito a Cromwell, mas não obteve grande sucesso com sua primei-
ra obra. Recém-graduado, hesita na escolha de seu caminho: a carreira
eclesiástica, a academia ou a medicina. É nesse período que escreve seus
dois primeiros ensaios políticos com caráter hobbesiano, autoritário e aris-
tocrático. Por fim, escolhe a medicina, o que viria a ser fundamental para
seu amadurecimento filosófico (BOBBIO, 1998, p. 83).

1
Líder militar inglês, Cromwell se torna chefe de Estado em 1653, ao dissolver o Parlamento. Sob o seu
governo, a Inglaterra se tornou uma grande potência, com apoio do exército e da burguesia puritana.

João Paulo Rodrigues dos Santos


348
Em 1671, surgem os primeiros esboços do Ensaio filosófico sobre o en-
tendimento humano, primeira grande obra de Locke. Em 1675, com proble-
mas de saúde e passando por conflitos políticos intensos, Locke parte para a
França, onde fica por cerca de cinco anos. Em 1683, volta para a Inglaterra,
mas, vendo-se ameaçado, exila-se na Holanda, onde passaria seu maior pe-
ríodo de estudos e que culminou em suas principais obras.2
Essas obras lhe garantem um renome tão grande quanto tardio. Com
quase 60 anos, Locke ainda exerce atividades políticas importantes e parti-
cipa da reforma do sistema monetário e da criação do Banco da Inglater-
ra, além de participar da colonização inglesa, principalmente na América,
como acionista da Royal Africa Company, que comercializava escravos.
Escreve uma dezena de pequenos textos, que serão publicados após sua
morte, e, reconhecido por toda a Europa, começa a se debilitar fisicamen-
te. Morre no dia 28 de outubro de 1704.
O modelo de Locke é semelhante ao de Hobbes, mas difere em
determinados pontos. Enquanto Hobbes usa os conceitos de estado de
natureza e estado de guerra como sendo intercambiáveis, Locke defen-
de a existência de um estado de natureza inicial que evoluiria para um
estado de guerra e depois para o estado civil. Além disso, Locke admite
o uso da razão dos homens mesmo no estado de natureza, o que ga-
rante paz e harmonia relativas, que não existem para Hobbes.
No estado de natureza de Locke, não havendo nenhum poder sobe-
rano, cada indivíduo é livre para julgar, e possivelmente se vingar, quando
se sentir lesado. Isso transforma o estado de natureza, que deveria ser
pacífico e harmônico, em um estado de guerra, onde os homens temem-
se reciprocamente. É para sair do estado de guerra que os homens criam
o estado civil:

Evitar o estado de guerra [...] é motivo decisivo e bastante para


que homens se reúnam em sociedade abandonando o estado

2
A redação definitiva dos Dois tratados sobre o governo civil será feita logo após sua volta à
Inglaterra em 1689. Em 1690 suas obras mais importantes são publicadas quase simultanea-
mente: o Ensaio sobre a inteligência humana e os Dois tratados sobre o governo civil, ambos
lançados anonimamente. Até o fim de sua vida, Locke não reconheceria a autoria. Apenas o
Ensaio filosófico sobre o entendimento humano é publicado em seu nome.

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


349
de natureza; onde há autoridade, poder terreno que pode dar
amparo mediante apelo, está banida a continuidade do estado
de guerra, sendo a controvérsia dirimida por aquele poder.
(LOCKE, 1991, p. 224)

Não só para conservar a vida o homem constitui o Estado, mas para


garantir outro direito natural fundamental, que é a propriedade. Esse é um
ponto específico da teoria de Locke, representante da burguesia, pois ele
afirma que o direito à propriedade é anterior ao Estado e existe desde o
estado de natureza. Portanto, para Locke, a propriedade não surge do Es-
tado, como em Hobbes, mas de uma atividade do indivíduo baseada em
outro direito natural: o trabalho.
Então, o estado civil surge da preocupação dos homens em preser-
var os direitos naturais fundamentais, como a vida e a propriedade. Porém,
entrando no estado civil, diferente de como pensava Hobbes, os indivíduos
não renunciam a esses direitos naturais, mas os garantem pela autoridade,
superior aos próprios indivíduos, que preserva e protege tais direitos. En-
tão, no estado de natureza, os homens têm os direitos naturais, mas esses
não são garantidos. No estado civil, os homens não perdem seus direitos,
mas os conservam pelo poder soberano. Sendo assim, os indivíduos criam
o Estado para que ele possa preservar seus direitos naturais.
Se os homens criam o estado civil para evitar a violência e degrada-
ção do estado de guerra, é natural que não o façam pela força, mas ba-
seado no consenso. Esse é o outro ponto em que Locke difere das teorias
que o antecedem. Em suas palavras:

Pois o que leva qualquer comunidade a agir sendo somente o con-


sentimento dos indivíduos que a formam, e sendo necessário ao
que é um corpo para mover-se em um sentido, que se mova para
o lado para o qual o leva a força maior, que é o consentimento da
maioria, se assim não fosse, seria impossível que agisse ou conti-
nuasse a ser um corpo, uma comunidade, que a aquiescência de
todos os indivíduos que se juntaram nela concordou em que fosse;
dessa sorte todos ficam obrigados pelo acordo estabelecido pela
maioria. (LOCKE, 1991, p. 253; grifos meus)

João Paulo Rodrigues dos Santos


350
Sendo assim, ao contrário de Hobbes, o Estado de Locke não se esta-
belece por meio da força, e sim pelo consenso entre os indivíduos. Portanto,
esse Estado é limitado. Primeiro, por não poder violar os direitos naturais que
o precedem. E segundo, porque o consenso só existe se os limites para o po-
der do soberano estiverem estabelecidos.

DA PROPRIEDADE

Como vimos anteriormente, o estado civil de Locke tem por função


primária garantir os direitos naturais, tais como a liberdade, a igualdade e
a vida. No entanto, outro direito natural é peça fundamental na descrição
de Locke: o direito à propriedade. Para isso, Locke demonstra que a pro-
priedade é um direito natural, por ter sua origem no estado de natureza. E,
sendo assim, os homens se reúnem no estado civil também para preservar
a propriedade.
Vejamos como Locke admite diferentes sentidos para o termo “proprie-
dade”. Ora o utiliza como sendo o direito de posse sobre as coisas, que pode
ser perdido ou transferido a outrem, como nessa passagem:

Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade co-


mum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade
particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qual-
quer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a
obra de suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele.
(LOCKE, 1991, p. 227)

Ora o caracteriza como o conjunto dos direitos naturais. Ou seja, nesse


segundo sentido atribuído ao termo “propriedade”, ela é intrínseca ao indiví-
duo e, por isso, intransferível:

[...] não é sem razão que (o homem) procura de boa vontade juntar-
se em sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem
unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos
bens a que chamo de “propriedade”. (LOCKE, 1991, p. 264)

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


351
Hobbes em sua teoria nega que o direito à propriedade seja um
direito natural, mas positivo. Ou seja, passa a existir a partir da instituição
do Estado, que tem por função única e exclusivamente a conservação da
vida – o único direito natural para Hobbes – e não da propriedade.
Locke, que desenvolveu sua teoria de forma a defender certos in-
teresses da época, se opõe a essa concepção hobbesiana e defende a
proteção e conservação da propriedade como função principal do Estado
e, por conseguinte, esse garantiria os outros direitos naturais, como a vida.
Na origem da propriedade, a tradição jurídica apresenta duas possíveis
alternativas para sua aquisição:
1 - pela ocupação, ou seja, a mera posse ou apropriação de um bem
que não pertence a ninguém;
2 - pela especificação, a transformação de uma matéria-prima em
um objeto, como por exemplo, da uva para o vinho (BOBBIO, 1998,
p. 193).
Embora não admita nem refute nenhuma dessas teorias, Locke su-
gere uma nova, mais adequada às condições do contexto em que estava
situado: uma burguesia com bases agrárias, em expansão e em luta com
a aristocracia conservadora. Para ele, o fundamento da propriedade deve
ser buscado no trabalho empregado na natureza. Uma definição é dada
no capítulo sobre a propriedade:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos


os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria
pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo.
O trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se,
são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado
que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe mistu-
rado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe perten-
ce, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. (LOCKE,
1991, p. 227)

Portanto, Locke justifica a propriedade por uma atividade individual: a


aplicação de energia por parte do homem para se apossar de algo. Então,

João Paulo Rodrigues dos Santos


352
todas as coisas às quais o homem se esforça para conseguir, passam a ser
sua propriedade. De acordo com essa teoria, a maçã que é colhida ou o
peixe que é pescado passam a ser meus a partir do momento que deles
tomo posse. Esses são alguns dos muitos exemplos utilizados por Locke para
ilustrar o conceito.
A nova teoria da propriedade apresentada por Locke provocou
diversas interpretações. Dentre elas algumas que atribuíam indevidamente
uma tendência socialista na teoria lockiana. Uma vez que a propriedade é
fruto do trabalho, os indivíduos que trabalharam na terra, por exemplo, não
deveriam possuí-la mesmo sem ser de fato proprietários? Desse argumento,
surgiram comentários que sugeriam uma intenção revolucionária nessa teoria
(BOBBIO, 1998, p. 197). Porém como já vimos, Locke se insere num contexto
de intenso embate político e claramente se posiciona a favor da sociedade
burguesa. O mesmo Locke que defende a expansão colonial para as Américas
e a acumulação ilimitada de capital. Logo, esses comentários são
absolutamente infundados.
Por outro lado, ao exercer seu direito, o indivíduo não impossibilita o
exercício do mesmo direito por parte dos demais. Uma vez que o homem
apenas pode usufruir do que lhe é necessário e sendo abundante a terra
disponível, a apropriação de uma parte por alguém não poderia causar des-
vantagem aos outros. Esse é o primeiro limite acerca da propriedade: quem
possui a terra através de seu próprio trabalho deve deixar o suficiente para que
outros também possam sobreviver:

[...] ouso afirmar corajosamente o seguinte: – a mesma regra da


propriedade, isto é, que todo homem deve ter tanto quanto pos-
sa utilizar, valeria ainda no mundo sem prejudicar a ninguém,
desde que existe terra bastante para o dobro dos habitantes.
(LOCKE, 1991, p. 230)

O segundo limite baseia-se no fato de que cada um deve possuir o


suficiente para seu sustento e de sua família. O que não lhe serve para isso,

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


353
excede seu direito. Ou seja, o indivíduo tem direito sobre tudo o que vai
utilizar efetivamente, o excesso deve ser abandonado e pode ser tomado
por outros.
Porém esse limite é relativo, por valer somente antes do surgimento
da moeda. Desde então, o homem pode acumular moeda sem correr
risco imposto pela perecibilidade dos produtos e sem que outros reivindi-
quem sua parte. Em outras palavras, acumulando mais grãos do que vou
consumir, estou burlando o direito dos outros ao deixar o excedente estra-
gar. Contudo, ao acumular moeda, não estou lesando ninguém. É o que
diz Locke:

E assim originou-se o uso do dinheiro – algo de duradouro que os


homens pudessem guardar sem estragar-se, e que por consenti-
mento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida, verda-
deiramente úteis mais perecíveis. (LOCKE, 1991, p. 235)

Sendo assim, a criação da moeda concedeu ao homem a possibi-


lidade de acumular de forma ilimitada, uma das características essenciais
do capitalismo.
O terceiro limite se refere ao limite do trabalho em si. Se o trabalho
gera a propriedade, a rigor, o homem só possuiria a terra em que trabalhou.
Então, é legítima uma propriedade construída por outras mãos que não as do
proprietário? Se sim, não existe limite.
Locke admite o trabalho alienado, ou seja, aquele que produz para
outro e não para si mesmo. Sendo o trabalho uma propriedade do homem,
ele pode utilizá-lo como bem entender e até mesmo oferecendo a outro em
troca de algo.

[...] um homem livre faz-se servo de outrem vendendo-lhe, por


certo tempo, o serviço que se encarrega de executar a troco do
salário que recebe; e [...] dá-lhe, contudo, tão só poder temporá-
rio sobre si próprio, não maior do que o que se contém no contra-
to entre eles estabelecido. (LOCKE, 1991, p. 248)

João Paulo Rodrigues dos Santos


354
Portanto, não existe diferença, no que diz respeito ao resultado, entre o
trabalho de um homem e o de seus empregados. Como o trabalho pode ser
comprado com dinheiro e como não há limite para a acumulação de dinheiro:
quem tem mais dinheiro, tem mais empregados. Seguindo a mesma lógica, e
superados os limites quanto à propriedade, quem tem mais empregados, tem
mais propriedade.
Porém, por outro lado, Locke é contraditório ao tratar de um ponto
crucial para os interesses da época: a escravidão. Ele afirma:

[...] uma vez que o homem não tem poder sobre a própria vida,
não tem autoridade, por pacto ou consentimento, de escravizar-se
a quem quer que seja, nem se colocar sob o poder arbitrário ab-
soluto de outrem, que lhe tome a vida a seu bel-prazer. Ninguém
pode dar mais poder do que possui; e quem não pode tirar de si
a própria vida não pode conceder a outrem qualquer poder sobre
ela. (LOCKE, 1991, p. 225)

Sendo assim, um homem, não tendo poder sobre sua própria vida –
o qual Locke confere a Deus –, não pode transferir esse poder ou ainda,
se tornar cativo ou ser subjugado por outro. Dessa forma, seu trabalho e,
consequentemente, a propriedade derivada desse, são direitos garantidos
a esse homem.
Já foi apresentada a resolução para o problema do limite da
propriedade, mas apenas referente ao trabalho livre, assalariado ou
alienado. E quanto ao trabalho escravo? Locke apresenta uma possível
solução para esse dilema. Se um homem comete um crime de forma que a
punição seja a perda do seu direito à vida, o prejudicado que passa a possuir
o poder sobre ela, pode demorar em executar seu direito, de forma a usá-la
em seu benefício.

Se pois, por ato culposo que mereça a morte, tiver perdido o direito
à vida, aquele a quem a entregou pode, quando o tem cativo, de-
morar em tomá-la, empregando-o a seu próprio serviço, sem com
isso causar-lhe dano. (LOCKE, 1991, p. 225)

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


355
Sendo assim, seria justificável, segundo Locke, que um homem pos-
sua direito sobre a vida de outro e o escravize, uma vez que o ofensor
perde o direito sobre a própria vida, sua vida, seu trabalho e, portanto, o
fruto dele, passam a ser propriedade do lesado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, é necessário conhecer os alicerces do Estado para


entendermos as teorias acerca dele. Sendo assim, uma visão geral das
diferentes teorias sobre o direito natural é fundamental. Desde a Anti-
guidade, filósofos teorizam sobre o direito natural e o diferenciam do direito
positivo, relacionado ao homem. Essas duas ideias seriam essenciais séculos
depois para a inauguração do Estado moderno.
Passando pela Idade Média com a inserção da teologia e chegando
à Modernidade, a tradição jusnaturalista foi se afirmando como uma das
principais teorias, senão a principal, sobre a fundamentação do Estado. E
assim, teve seu auge na Inglaterra do século XVII, com Hobbes e, posterior-
mente, com Locke.
Partindo de uma nova concepção para natureza, baseada na ciência
moderna e influenciados pela ideologia de uma classe emergente que procu-
rava justificar a posteriori uma nova configuração política e econômica, esses
filósofos transformaram o sentido de direito natural anteriormente utilizado.
Locke inclui os conceitos de trabalho e propriedade como direitos natu-
rais do homem e os justifica a partir e para os interesses de sua época, uma
vez que se insere em uma classe burguesa revolucionária que reivindica seu
protagonismo na nova organização social da época. Com isso, defende a
escravidão e a acumulação ilimitada de capital. Usando bons argumentos e
uma boa base teórica, entra para a história da filosofia política como o funda-
dor de um Estado liberal sem precedentes.
O presente trabalho não teve por objetivo solucionar o problema, se-
quer apresentar informações completamente inéditas acerca da questão da
propriedade, e sim, por meio de uma releitura da obra de Locke, dos autores

João Paulo Rodrigues dos Santos


356
que o influenciaram, de seus principais críticos e também a partir de uma con-
textualização histórica, levantar questões e apontar possíveis incongruências e
ambiguidades que levem a uma maior reflexão sobre o tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. Brasília:


Editora UNB, 1984.
______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Locke e o direito natural. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 1998.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
MACPHERSON, Crawford B. Teoria política do individualismo possessivo.
São Paulo: Paz e Terra, 1979.
MELLO, Leonel. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT,
Francisco C. (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006. V. 1,
p. 81-89.

Trabalho e propriedade no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke


357
AS AÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO
NA INDUÇÃO AO CONSUMO
DE AGROTÓXICOS*

Jorge Luis da Costa Silva**

INTRODUÇÃO

Por considerar que a expansão do agronegócio nacional é o que


determina o crescimento no consumo e na produção de agrotóxicos no
Brasil, levando, inclusive, o país a ocupar o primeiro lugar no ranking mun-
dial de consumo dessas substâncias (BOTELHO, 2009), este estudo obje-
tiva apresentar a relação entre as ações do Estado brasileiro e a expansão
do agronegócio. Nesse sentido, a hipótese que sustenta esta pesquisa
está pautada na ideia de que o Estado brasileiro funciona como pro-
motor de políticas públicas, além de outras ações, comprometidas com
o objetivo de criar as condições favoráveis à expansão do modo de
produção agrícola hegemônico no país.
Nesse sentido, várias pesquisas têm se dedicado a compreender os
impactos dos agrotóxicos na saúde humana e na de todo o ambiente. Um
estudo recente (SOARES, 2010), que investigou a relação entre produtivi-
dade agrícola de soja e milho de 1985 a 2005, e intoxicação por agrotó-
xicos, mostrou que o aumento da produtividade dessas culturas agrícolas,

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0042.0.408.000-11.
**
Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnico de Nível Médio Integrado ao Ensino
Médio, com habilitação em Gestão em Serviços de Saúde (2009-2011). Atualmente cursa
Ciências Econômicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atua como bolsista
na Coordenadoria de Cooperação Social da Presidência da Fiocruz. No trabalho de construção
de sua monografia de conclusão de curso, contou com a orientação do professor-pesquisador
André Campos Búrigo (mestre em Educação Profissional em Saúde), do Laboratório de Educação
Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa), da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV/Fiocruz). Contato: jorgecsilva@fiocruz.br.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


359
principalmente a partir de 1990, guarda tendência muito similar com um
aumento das intoxicações por venenos agrícolas.
Nesse mesmo estudo, Soares (2010) analisa alguns dos efeitos do
uso do DDT:1 a) penetra na cadeia alimentar e se acumula nos tecidos adipo-
sos dos animais, inclusive No ser humano, aumentando o risco de câncer e
podendo causar danos genéticos; b) não só atinge as pragas, mas um número
incalculável de outras espécies; c) permanece tóxico no ambiente mesmo com
sua diluição pela chuva, sendo que as espécies contaminadas podem migrar
para outros ambientes, levando os possíveis riscos de contaminação para al-
vos bem mais distantes que a sua origem.
A utilização desses produtos em sistemas abertos2 impossibilita qualquer
medida efetiva de controle, pois não há como enclausurar ou isolar a fonte
de contaminação e proteger os ecossistemas. Trabalhadores das fazendas,
que aplicam os agrotóxicos, seus familiares, que vivem nas áreas pulveri-
zadas, a população das cidades vizinhas e os consumidores de alimentos
cultivados com o uso dessas substâncias são os principais prejudicados pela
utilização de venenos, uma vez que estão expostos de forma inespecífica e
indeterminada (AUGUSTO et al., 2010).
Esse cenário de risco ambiental e sanitário se agrava com o des-
compasso entre a velocidade de introdução de agrotóxicos no mercado
e a capacidade técnica de prover os meios de segurança para minimizar
seus impactos. Não obstante, há ainda outra questão relevante para o
estudo do tema proposto pela pesquisa: a política de ocultamento dos ris-
cos e danos. Apesar da existência do Programa de Análise de Resíduos de

1
O diclorodifeniltricloroetano (DDT) foi o precursor dos organoclorados. É um potente inseticida que
teve sua retirada do mercado brasileiro em três etapas: em 1985, quando sua autorização foi cance-
lada para uso agrícola, e em 1998, quando foi proibido para uso em campanhas de saúde pública.
Finalmente, em 2009, teve seu banimento definitivo: por meio da lei nº 11.936/2009, foram proibidas
a fabricação, a importação, a exportação, a manutenção em estoque, a comercialização e o uso de
DDT no país (AUGUSTO et al., 2012).
2
Sistemas abertos são aqui entendidos como sistemas que estabelecem alguma relação de troca/
intercâmbio com elementos externos. Já os sistemas fechados são aqueles nos quais esse tipo de
troca não ocorre, como em experiências laboratoriais, nas quais se torna possível isolar/controlar
as variáveis envolvidas.

Jorge Luis da Costa Silva


360
Agrotóxicos em Alimentos (Para),3 não há iniciativa estatal consistente que
tenha em vista tornar públicos os resultados de pesquisas que analisam o
contexto de vulnerabilidade e de nocividade do uso de agrotóxicos para
o meio ambiente e a importância disso para a saúde humana; não existem
investimentos expressivos na área de saúde pública para diagnosticar intoxi-
cações agudas e os efeitos crônicos dos agrotóxicos; não são fortalecidos os
sistemas de notificação dos casos de intoxicação4 a fim de diminuir o número
de casos subnotificados. Há, também, um ocultamento dos impactos ambien-
tais gerados pelo uso de agrotóxicos, uma vez que não se geram dados sobre
contaminação ambiental, tampouco sobre as condições da água onde estes
produtos são intensivamente utilizados.
Por fim, vale ressaltar que a história da agricultura é tão longa quanto
a própria história da humanidade; já os agrotóxicos só foram incorporados a
essa produção há menos de cem anos. A dependência do uso dessas substân-
cias revela algumas especificidades do agronegócio que merecem destaque:
a) sua produção, baseada em monoculturas produtoras de commodities5 para
exportação, gera desequilíbrio nos ecossistemas, criando condições favoráveis
ao aparecimento de “pragas” – e isso, por sua vez, exige um aumento quantita-
tivo e qualitativo na aplicação de agrotóxicos; e b) o processo de mecanização

3
Em 2001, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) iniciou o Programa de Análise de
Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), cujo objetivo é “monitorar continuamente os níveis
de resíduos de agrotóxicos nos alimentos que chegam à mesa do consumidor e adotar medidas de
controle” (BRASIL, 2009).
4
Os dois sistemas de notificação mais importantes no Brasil são o Sistema Nacional de Informações
Tóxico Farmacológicas (Sinitox), gerenciado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e o Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan), gerenciado pelo Ministério da Saúde. Mais recentemente,
foi criado o Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária (Notivisa), gerenciado pela Anvisa, que pre-
tende compilar dados bastante abrangentes envolvendo casos de intoxicação, mas que ainda não está
operando plenamente. Existe ainda a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), da Previdência So-
cial, gerida pelo INSS. Além dessas, outras fontes oficiais de registros de intoxicações por agrotóxicos são
o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), o Sistema de Internação Hospitalar (SIH) e o Sistema de
Informação da Atenção Básica (Siab), os três geridos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por intermédio
da vigilância epidemiológica e das equipes de internação dos hospitais. Embora existam vários sistemas
oficiais que podem registrar intoxicações por agrotóxicos, eles não estão integrados e nenhum deles o faz
de maneira realmente abrangente. Na prática, somente os casos agudos e mais graves são registrados,
e mesmo para os casos agudos o sub-registro é muito grande (LONDRES, 2011).
5
Commodities são gêneros agrícolas, produzidos em larga escala e comercializados em nível mun-
dial. Além disso, também se caracterizam por não terem passado por processo industrial, ou seja,
em geral são matérias-primas.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


361
das lavouras representa também outro fator de risco socioambiental, uma vez
que demanda menos força de trabalho e implica a intensificação do processo
de êxodo rural, ao mesmo tempo em que compacta o solo e emite poluen-
tes. Outros fatores de risco socioambiental decorrentes da expansão desse
modelo são históricos e estão em curso hoje no cenário brasileiro, tais como:
violência no campo, concentração fundiária, expansão da fronteira agríco-
la, desmatamento e queimadas, entre outros. Nesse sentido, esse modo de
produção agrícola tem características que sugerem a propensão mercadoló-
gica e insustentável, do ponto de vista socioambiental, do agronegócio.
Diante dessa situação de vulnerabilidade socioambiental, a pesquisa
teve como objetivo geral identificar, sistematizar e analisar os principais mar-
cos da ação do Estado brasileiro na indução do uso de agrotóxicos na agro-
pecuária, no período que vai da década de 1960 até os dias atuais. Para
tanto, o estudo está organizado em dois momentos. No primeiro momento,
propõe-se uma reflexão que delimite teoricamente, numa perspectiva his-
tórica, aspectos centrais da questão agrária no Brasil desde o período da
Revolução Verde, datado da década de 1960, até os dias de hoje, com
vistas a contextualizar o momento em que os agrotóxicos foram introduzidos
no campo brasileiro.
No segundo momento, é feita uma breve revisão teórica sobre o pa-
pel do Estado brasileiro, além de ser analisada sua relação com a expansão
do mercado de agrotóxicos e de seu consumo. Dessa forma, apresenta-se
rapidamente um debate conceitual sobre a concepção de Estado que assu-
mimos neste trabalho e faz-se um resgate histórico dos marcos regulatórios
sobre os agrotóxicos, além de se sistematizar as principais ações do Estado
que estimularam, e estimulam, de forma direta ou indireta, o consumo de
agrotóxicos no país.
Para subsidiar a elaboração deste estudo, foram realizadas pesqui-
sas documental e bibliográfica, tendo como objetivo estudar o tema e
conhecer melhor a problemática que o envolve.

Jorge Luis da Costa Silva


362
ASPECTOS CENTRAIS DA QUESTÃO
DOS AGROTÓXICOS: UMA REFLEXÃO HISTÓRICA

Durante séculos, o aumento da produtividade agrícola com vistas a


atender à demanda mundial de alimentos constituiu um dos maiores desa-
fios da história da humanidade, sendo, inclusive, a fome a causa responsável
pela morte de milhares de pessoas (HESPANHOL, R., 2008).
No decorrer da história, ficam evidentes os vários esforços do homem
para controlar a natureza. No entanto, é somente com a Segunda Revolução
Industrial, na segunda metade do século XIX, que ocorrem mudanças signifi-
cativas na agricultura. Descobertas científicas e tecnológicas, antes utilizadas
apenas no setor industrial, expandiram-se e foram absorvidas pelo setor agrí-
cola. Dentre elas, destacam-se: o melhoramento genético de espécies vege-
tais e dos rebanhos; a utilização de fertilizantes químicos; e a mecanização da
atividade agrícola. Apesar disso, o uso agrícola dos agrotóxicos só ganhou
expressividade após as duas guerras mundiais, momento em que a indústria
química fabricante de venenos, então usados como tecnologia bélica – isto é,
como armas químicas –, encontram na agricultura um novo mercado para os
seus produtos (HESPANHOL, R., 2008).
Passadas algumas décadas, diversas políticas foram implantadas
nos países centrais a fim de expandir esse pacote tecnológico para
os países periféricos em desenvolvimento. Além de terem em vista a
expansão desse modo de produção agrícola, a expansão do mercado
de agrotóxicos foi um processo de transferência de riscos dos países
desenvolvidos para os chamados países em desenvolvimento, decorrente
da adoção, nos países centrais, de legislações mais rigorosas tanto
ambientais quanto sanitárias (AUGUSTO et al., 2005).
Na produção agrícola nacional, o pacote tecnológico referente à in-
venção e à disseminação de novas sementes e práticas agrícolas começou a
se difundir principalmente a partir da década de 1960, período em que foram
introduzidas inovações na agricultura num processo conhecido como Revo-
lução Verde que, segundo seus promotores, seria fundamental para resolver
o problema da fome que assolava a população mundial (LONDRES, 2011).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


363
E a década de 1960 ficou marcada como o momento em que o Es-
tado brasileiro criou um aparato institucional favorável à modernização da
agricultura. A consolidação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR),
em 1965, foi determinante no processo de modernização da agricultura.
O governo federal construiu o arcabouço jurídico-institucional necessário
à legitimação desse modelo de desenvolvimento, uma vez que criou faci-
lidades para a instalação de indústrias químicas e mecânicas, estimulou a
implantação e a expansão de indústrias processadoras de matérias-primas
provenientes do campo, forneceu grande volume de crédito rural destinado
ao investimento, à comercialização e ao custeio das safras, construiu e mo-
dernizou armazéns e incentivou, com isso, a expansão do cooperativismo
empresarial no campo brasileiro (HESPANHOL, A. N., 2008).
Por meio do estabelecimento dessas políticas públicas, o Estado
brasileiro passou a ser o grande regulamentador do processo de moder-
nização da agricultura. Com isso, as vendas dos agrotóxicos aumentaram
significativamente, passando de US$ 40 milhões em 1939 para US$ 300
milhões em 1959 e US$ 2 bilhões em 1975 (SOARES, 2005).
Esse aumento se deve à política oficial de incentivo ao consumo de agro-
tóxicos, reforçada em 1975 pelo lançamento do Programa Nacional de Defen-
sivos Agrícolas (PNDA). Com investimentos em torno de US$ 200 milhões para
implantar a indústria de síntese e formulação de agrotóxicos, o Estado brasileiro
definiu metas para a agricultura em 1975 que propunham aumentar o consu-
mo em 220% e a produção em 500% em relação ao ano anterior. Assim, o
país que totalizava 14 fábricas de agrotóxicos aumentou esse número para 73
no ano de 1985, abastecendo, com isso, 80% do consumo nacional e pas-
sando a ser o maior produtor de agrotóxicos da América Latina. Na primeira
metade da década de 1970, a produção de agrotóxicos no Brasil cresceu 19%
ao ano e o consumo, 27% ao ano (AUGUSTO et al., 2005).
Com a criação do PNDA e com as políticas oficiais de incentivo, fo-
ram criadas as condições necessárias para a expansão do modelo químico-
dependente. E a oferta de crédito rural estava diretamente relacionada
com o consumo de agrotóxicos, como mostra o gráfico 1.

Jorge Luis da Costa Silva


364
Gráfico 1. Oferta de crédito rural e consumo de
agrotóxicos (ingredientes ativos), no Brasil (1975-2005).
Fonte: Soares, 2010, p. 14.

Embora os dados mostrem que as taxas de consumo de agrotóxicos


no país, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, elevaram-
se diante da oferta de crédito rural, o gráfico mostra ainda que, a partir
da segunda metade da década de 1990, o consumo de agrotóxicos,
em especial o consumo de herbicidas – substâncias utilizadas para o
controle de ervas daninhas, caracterizadas como “plantas invasoras” –,
aumentou, ao passo que o volume da oferta de crédito rural não condiz
com esse aumento. Isso se deve à introdução na agricultura de outra
tecnologia altamente demandante de venenos agrícolas: os organismos
geneticamente modificados (OGMs).6 Além da expansão do plantio
da soja transgênica, que amplia o consumo de glifosato (herbicida),7
o aumento no consumo de agrotóxicos está relacionado com vários
outros fatores, como a crescente resistência de “ervas daninhas”, fungos e
insetos, demandando maior consumo de agrotóxicos, e/ou o aumento de doenças
6
Tecnologia baseada na metodologia de transferência de genes por técnicas de laboratório, que
ficou conhecida pelo nome de transformação genética ou transgenia (NODARI, 2007).
7
O glifosato é o herbicida mais vendido no Brasil e no mundo. Estima-se que a venda de glifosato formula-
do no Brasil alcance atualmente a marca de 250 milhões de litros anuais. A Monsanto, que o comercializa
sob a marca Roundup (diz-se, em geral, “randape”), deteve a patente do glifosato até 2000. Desde então,
o produto é formulado e comercializado por diversas empresas (LONDRES, 2011).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


365
nas lavouras. Já o importante estímulo ao consumo advém da diminuição dos
preços e da expressiva isenção de impostos sobre estas substâncias.
Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso
(FHC), várias plantações experimentais foram liberadas no país, libera-
ção que estaria de acordo com a lei de biossegurança brasileira (BRASIL,
2005). Nesse sentido, Vigna (2001) apresenta dados reveladores de que
a permissão de campos experimentais de cultivos transgênicos no país
trouxe um grande problema de natureza técnica. O problema surgiu na
medida em que o número de campos experimentais liberados não foi
acompanhado da necessária quantidade de fiscais do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) dispo-
níveis, órgão que havia sido designado como responsável pela vistoria
dos campos experimentais.8 Tal processo facilitou a expansão das planta-
ções para além da área estabelecida.
Ao mesmo tempo em que ocorriam liberações inadequadas, grande
quantidade de soja transgênica já havia sido introduzida na agricultura na-
cional, pois estava sendo contrabandeada da Argentina através da fronteira
com o Rio Grande do Sul. Em 2003, a Argentina já era um dos maio-
res produtores de soja transgênica do mundo, com cerca de 90% das
plantações de soja do país sendo constituída de organismos genetica-
mente modificados. Esse processo de contrabando ocorreu, principal-
mente, por dois motivos: a) os agricultores obtinham as sementes trans-
gênicas contrabandeadas a um preço razoavelmente inferior em relação
às sementes convencionais oferecidas no mercado brasileiro; b) além disso,
os agricultores apostaram na propaganda de que as sementes genetica-
mente modificadas eram mais produtivas que as convencionais, exigindo
também menos agrotóxicos no seu cultivo, o que acarretaria menor custo
de produção (BENTHIEN, 2003).
O principal argumento utilizado pelos fabricantes de sementes
transgênicas para sustentar a sua disseminação é que, com elas, as lavouras
demandam menores quantidades de agrotóxicos. Nesse cenário, destaca-se

8
A designação do Ibama como responsável pela fiscalização dos campos experimentais de transgê-
nicos foi definida através da liminar nº 10329-01 (VIGNA, 2001).

Jorge Luis da Costa Silva


366
a questão da soja transgênica, tolerante à aplicação do herbicida glifosato,
e que representa mais da metade de todos os transgênicos plantados no
mundo. Segundo estimativas de organizações ligadas às indústrias de
biotecnologia, mais de 75% das lavouras transgênicas cultivadas no Brasil são
de soja transgênica da Monsanto9 tolerante ao Roundup (herbicida à base de
glifosato). E, ao contrário do que prometiam as empresas e as lideranças
do agronegócio, a difusão da soja transgênica no Brasil foi a principal
responsável pelo maciço aumento no uso de glifosato nos últimos
anos, que saltou de 57,6 mil em 2003, ano de liberação e difusão das
sementes transgênicas no mercado nacional, para 300 mil toneladas em
2009, segundo dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) (LONDRES, 2011).
A tecnologia dos transgênicos, baseada na crescente artificialização
da natureza, é altamente demandante de insumos externos e agrotóxicos. O
modo de produção desse modelo desequilibra o ambiente, gerando novas
pragas que exigem a aplicação de novos agroquímicos, que tornam as pra-
gas mais resistentes, que levam ao uso de substâncias tóxicas mais fortes, e
assim sucessivamente. Esse processo é o que Fernando González, da Red
de Acción sobre Plaguicidas y Alternativas en México (Rapam), chama de
“espiral do veneno”.
Esses fatores associados – oferta de crédito rural e a introdução de
organismos geneticamente modificados na agricultura nacional – contri-
buem para compreendermos o salto no consumo de agrotóxicos desde a
década de 1970, tal como visto no gráfico 1.
A progressão desse cenário fez o Brasil assumir, a partir de 2008,
a liderança no consumo mundial de agrotóxicos, posição antes ocupada
pelos Estados Unidos, segundo informa Burkhard Kleffmann, presidente
mundial do instituto internacional de pesquisa em agronegócios Kleffmann
Group (BOTELHO, 2009).

9
Presente em 46 países, a Monsanto tornou-se líder mundial dos transgênicos, mas também uma das
empresas mais controversas da história industrial com produtos como o PCB (piraleno), herbicidas de-
vastadores (como o agente laranja, utilizado durante a Guerra do Vietnã) ou o hormônio do crescimento
bovino (proibido na Europa) (LONDRES, 2011).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


367
Esse modelo de agricultura altamente demandante do uso de
agroquímicos busca sua consolidação com base na divulgação de sua
produção agrícola – fundamentalmente constituída de commodities –
e da sua suposta eficiência econômica. Dados organizados pelo Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (apud BÚRIGO, 2010), que tem
por missão “promover o desenvolvimento sustentável e a competitividade do
agronegócio em benefício da sociedade brasileira” (BRASIL, s.d.), revelam a
importância das exportações agrícolas – que aparecem contabilizadas como
de responsabilidade exclusiva do agronegócio10 – para o equilíbrio da balan-
ça comercial brasileira. Entre 1989 e 2009, o agronegócio foi apontado
como responsável, em média, por 40,68% das exportações e 12,03% das
importações brasileiras. Em 2009 e 2010, as exportações agrícolas do
país tiveram como destino 217 países, com destaque para China, Esta-
dos Unidos, Países Baixos, Rússia e Alemanha, que juntos importaram
41,46% das exportações agrícolas brasileiras no primeiro semestre do
ano de 2010.
Apesar desses números e da tão propalada eficiência, a pergunta que
se faz é qual o custo público dessa contribuição? Embora sejam expressivas
as taxas de importação e exportação de produtos agrícolas, elas não são
capazes de abarcar a realidade relativa aos impactos econômicos, uma vez
que não contabilizam os custos sociais decorrentes das práticas desse modelo
de agricultura. Nesse sentido, Soares (2010) calculou o custo monetário de
algumas das chamadas “externalidades negativas”11 do uso de agrotóxicos
na produção agrícola. Seu estudo faz uma análise das externalidades asso-
ciadas às intoxicações agudas e, com base nelas, valora os custos sociais
10
Na tentativa de reafirmar a eficiência econômica do agronegócio e comprovar a sua relevância para
a balança comercial, é desconsiderado o fato de que os dados de contribuição na balança comercial
não são estratificados – e, portanto, não é feita qualquer referência à contribuição da agricultura
familiar na produção agrícola nacional. No entanto, dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa) revelam que o complexo da soja, principal item de exportação, é responsável
por quase 19% do total de exportações do setor e, apesar de ser a cultura na qual a agricultura familiar
tem a menor participação, essa forma de organização da produção ainda é responsável por 16% da
produção nacional de soja, segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, elaborado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contribuindo, assim, para a pauta de exportação agrícola
brasileira (SAUER, 2010).
11
Trata-se dos custos externos associados ao uso intensivo de agrotóxicos. Tais externalidades
estão relacionadas, principalmente, aos danos ambientais e à saúde humana, cujos custos aca-
bam sendo socializados (SOARES, 2010).

Jorge Luis da Costa Silva


368
dessas intoxicações comparando-os aos benefícios dos agrotóxicos.
Mediante esse estudo comparativo, o autor conclui que os custos com a
intoxicação aguda podem representar em torno de 64% dos benefícios
econômicos dos agrotóxicos, e na melhor das hipóteses, quando as ca-
racterísticas de risco dos estabelecimentos encontram-se todas ausentes,
esses custos representam 8% dos benefícios.
Cabe ressaltar que o estudo em questão tratou apenas do custo
monetário decorrente das intoxicações agudas; por isso, outras exter-
nalidades – como as intoxicações crônicas, intoxicação dos consumido-
res e contaminação ambiental – não foram avaliadas. Nesse sentido,
Londres (2011) acredita que os resultados desse estudo representam
apenas a “ponta do iceberg”, assinalando que o conjunto dos outros
custos não contabilizados gerados por essas substâncias representa a
parte do iceberg que está submersa e que, por isso, ainda são invisíveis
aos olhos da comunidade científica.
Além dos impactos econômicos, que encobrem uma série de cus-
tos sociais não contabilizados, outro argumento que sustenta esse modelo
e suas práticas é que a utilização de agrotóxicos gera aumento na produti-
vidade de alimentos e, com isso, representa uma possibilidade para minimi-
zar e/ou extinguir os efeitos da fome. Em contraposição a essa tese, um
estudo realizado por Porto-Gonçalves e Alentejano (2009) afirma que
há uma crise dos alimentos no Brasil e uma das causas dessa crise é
a queda da área plantada de produtos que formam a base da alimen-
tação do brasileiro – arroz, feijão e mandioca – em correlação com
o aumento da área plantada de cultivos de interesse da agricultura
empresarial – cana-de-açúcar, soja e milho – caracterizando uma agri-
cultura voltada para a produção de agrocombustíveis (cana e soja) ou
para a produção de ração animal – milho e soja (gráfico 2).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


369
Gráfico 2. Evolução da área plantada de arroz, feijão, mandioca,
cana-de-açúcar, milho e soja no Brasil (1990-2010).
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010a, p. 19.

Com base na discussão promovida por esses autores, foi utilizado


neste estudo um período de análise mais recente, a fim de demonstrar
o fenômeno da crise dos alimentos no Brasil. Os dados obtidos indicam
que a soma da área plantada das culturas apontadas como de interesse
da agricultura empresarial evoluiu de 27.930.804 hectares, em 1990,
para 45.491.428 hectares, em 2010, o que representa um aumento
de 62,87%. Em contrapartida, dados do mesmo período referentes às
culturas indicadas como base da alimentação do brasileiro mostram
que a área plantada diminuiu de 11.438.457 hectares para 8.245.894
hectares, ou seja, uma queda de 27,91%. Cabe ainda ressaltar que nesse
mesmo período, que abarca os últimos vinte anos, a população brasileira
cresceu aproximadamente 25% – quase 44 milhões de habitantes
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010b).
Os resultados obtidos indicam o atual cenário de favorecimento das
oligarquias agrárias, caracterizado por Búrigo (2010, p. 49) como um mo-
vimento de “antirreforma agrária”. Diante dessa realidade destoante com
o discurso difundido pelos promotores do agronegócio, verifica-se que os
recordes de produtividade alcançados pelo modelo não estão comprome-
tidos com o enfrentamento da fome; ao contrário, estão associados aos

Jorge Luis da Costa Silva


370
motivos que agravam o cenário da fome, uma vez que a produção em
grandes propriedades concentra a renda em poucas famílias e os lucros
em multinacionais que avançam no controle de setores estratégicos da
cadeia produtiva (BÚRIGO, 2010).

O ESTADO BRASILEIRO E A QUESTÃO


DOS AGROTÓXICOS

Antes de apresentar os resultados da pesquisa sobre a relação do


Estado brasileiro com o consumo dos agrotóxicos, é importante apresentar
a concepção de Estado assumida neste trabalho.
O conceito de Estado que fornece subsídio teórico a esta pesquisa
toma como ponto de partida a crítica marxista à concepção hegeliana,
a qual considera o caráter puramente formal da universalidade do Es-
tado e descarta a tese de que esse Estado represente efetivamente uma
vontade geral (COUTINHO, 1994).
Para Coutinho (1994), o Estado, como um Estado de classe, passa a
ser visto como um organismo responsável por garantir a propriedade priva-
da, de modo a assegurar e a reproduzir a divisão da sociedade em classes.
Baseando-nos nessa concepção, é possível considerar que o Estado, em
última instância, resulta do antagonismo inconciliável das classes e que ele
é a expressão direta e imediata do domínio de classe, pois assume a forma
na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses
comuns. Decorre para Marx, dessa concepção, a ideia do Estado como
“comitê executivo da burguesia”.
Esse conceito, embora “restrito”, é, certamente, necessário para
a apreensão do debate sobre o papel do Estado. No entanto, ainda é
insuficiente para compreender a complexidade de relações que se (re)
produzem no seio da sociedade, visto que não consegue abarcar aque-
las ações do Estado voltadas para a conservação do domínio de classe
que não se expressam por meio da coerção e da violência. No entanto,
é necessário dizer que a ampliação do conceito de Estado não resulta

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


371
somente da escolha de um ângulo de abordagem, ou seja, não é de-
corrente apenas de um movimento do pensamento. Resulta também,
e principalmente, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do modo
de produção quanto da formação econômico-social.
Apesar de alguns pensadores terem começado a desenvolver uma
abordagem mais ampliada do conceito de Estado – tal como os escritos
tardios de Engels e as obras de Rosa Luxemburg –, foi certamente com o
marxista italiano Antonio Gramsci que esse movimento de “ampliação” re-
cebeu a sua formulação mais sistemática. Isso se deve ao fato de Gramsci,
ao contrário de Marx, Engels e Lenin, ter operado num momento histórico
no qual se efetivou uma maior concretização do fenômeno estatal, o que
possibilitou o desenvolvimento da teoria do Estado (COUTINHO, 1994).
Gramsci ampliou a esfera do Estado para além do seu sentido res-
trito – seus aparelhos institucionais, executivos e repressivos – e passou
a integrar a ela um aspecto ainda pouco trabalhado, entendendo que a
sociedade civil é um momento ou uma esfera da superestrutura e se ca-
racteriza por ter a sua materialidade expressa nos aparelhos privados de
hegemonia (COUTINHO, 1994):

[...] os portadores materiais da sociedade civil são o que Gramsci


chama de “aparelhos privados de hegemonia”, ou seja, organismos
sociais coletivos voluntários e relativamente autônomos em face
da sociedade política. Gramsci registra assim o fato novo de que a
esfera ideológica, nas sociedades capitalistas avançadas mais com-
plexas, ganhou uma autonomia material (e não só funcional) em
relação ao Estado em sentido estrito. (COUTINHO, 2003, p. 129)

É essa a grande contribuição teórica do pensamento político gramscia-


no, dada pelo desenvolvimento da concepção de Estado ampliado que consi-
dera a formação do Estado, em seu sentido amplo, como duas esferas da
superestrutura: sociedade política, também chamada por Gramsci de “Estado
em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”, que exerce a dominação funda-
da na coerção; e sociedade civil, âmbito no qual as classes buscam exercer
sua hegemonia, isto é, praticar sua dominação pela direção e o consenso.

Jorge Luis da Costa Silva


372
Ao estabelecer essas duas esferas da superestrutura do Estado am-
pliado, Gramsci as diferencia, desenvolvendo-as, entretanto, sempre de
forma dialética. Dessa forma, ambas compõem o Estado e atuam para a
conservação ou promoção das relações econômicas, a partir dos interes-
ses de uma classe fundamental.
Amparada por essa perspectiva de Estado e de sociedade civil como
instâncias distintas, porém indissociáveis, caracterizadas por disputas e
conflitos, esta pesquisa teve especial interesse na identificação das princi-
pais políticas públicas ou demais ações do Estado brasileiro que induziram
(ou induzem) o consumo de agrotóxicos – de forma direta e indireta – no
período compreendido entre a década de 1960 e os dias atuais.

OS MARCOS REGULATÓRIOS NA ESFERA LEGISLATIVA

Aprovada e consolidada no início do processo de redemocratização do


país, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 discorre sobre
alguns princípios que devem ser operados no âmbito da questão dos agrotóxi-
cos no que concerne à saúde da população e à preservação do meio ambiente
equilibrado. No seu artigo 225, a Constituição determina que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)

Além disso, no parágrafo 1º do inciso V do mesmo artigo, aparece


como incumbência do poder público, para assegurar a efetividade desse di-
reito, “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, mé-
todos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e
o meio ambiente” (BRASIL, 1988).
No que diz respeito à saúde da população, é importante destacar o
artigo 196 da Constituição, que sintetiza uma conquista da Reforma Sani-
tária Brasileira e no qual se define a saúde como

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


373
[...] direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e servi-
ços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

A fim de que essas atribuições do Estado brasileiro fossem cumpridas,


durante as décadas de 1970 e 1980 forças da saúde pública e do meio am-
biente pressionaram o poder público para aprovar, no âmbito do Congresso
Nacional, “uma nova lei sobre os agrotóxicos” que fosse “mais do que uma
modernização do decreto de 1934” e que não fosse “mera sistematização de
portarias” (BULL e HATHAWAY, 1986, p. 176 apud TERRA, 2008, p. 77).
Essa reivindicação se dá diante do fato de que, ao iniciaram sua
produção no Brasil, as empresas multinacionais tinham como marco
regulatório de suas atividades o decreto nº 24.114/1934, da Secretária
de Defesa Sanitária Vegetal do Ministério da Agricultura. Esse decreto
tinha como uma das principais características a centralização decisória
na esfera da União, cabendo a ela o poder de legislar sobre os agro-
tóxicos.12 Desta forma, a União estabelecia os requisitos exigidos para
o registro do produto e para a liberação da licença de comercialização
do agrotóxico no mercado (TERRA, 2008).
Durante a vigência do decreto de 1934, seu texto sem estrutura de
classificação toxicológica e de fiscalização favoreceu que vários agrotóxicos
banidos pela legislação de alguns países passassem a ser livremente pro-
duzidos no país. As empresas estenderam, assim, o ciclo de vida de seus
produtos, encontrando no campo brasileiro a oportunidade de um mercado
consumidor (TERRA, 2008).
Apesar de não terem obtido sucesso em suas primeiras tentativas, os se-
tores da saúde pública, organizados com os do meio ambiente, mantiveram as
pressões sobre os órgãos públicos em busca de uma nova legislação. Em 1989,
o decreto de 1934 perdeu vigor com a promulgação da lei nº 7.802, que ficou
conhecida como Lei de Agrotóxicos.

12
Estados e municípios apenas realizariam testes para fiscalizar se as características físico-químicas
dos produtos eram equivalentes às registradas pela empresa para obtenção da licença de venda do
produto (TERRA, 2008).

Jorge Luis da Costa Silva


374
O avanço da nova legislação se deu com o estabelecimento de
regras mais rigorosas para a concessão de registro aos agrotóxicos. Além
disso, a nova estrutura de registro passou a ser compartilhada pelos mi-
nistérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente. Em decorrência da nova
lei, a legislação brasileira se tornou uma das mais avançadas do mundo, po-
rém isso ocorreu somente após ter sido instalada no país uma indústria produ-
tora de agrotóxicos com elevado grau de internacionalização e conformadora
de um mercado altamente oligopolizado (TERRA, 2008).

AS AÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO QUE ESTIMULAM


OU CONDICIONAM A UTILIZAÇÃO DE AGROTÓXICOS

Em contraposição aos avanços da legislação, a indústria de agrotóxicos


continua crescendo: ampliou sua produção e, por conseguinte, intensificou
o cenário de riscos socioambientais. Com base nisso, questiona-se sobre o
que motiva a expansão do mercado de agrotóxicos no Brasil e de que forma
se processa o incentivo à indústria de agrotóxicos.
No esforço de responder a esse questionamento, expõe-se, a seguir,
uma sistematização das principais ações do Estado brasileiro que estimu-
lam a utilização de agrotóxicos.

Sistema Nacional de Crédito Rural: a modernização


da base técnico-produtiva da agricultura nacional
A modernização da agricultura nacional não se deu de forma espon-
tânea; suas causas derivaram da intenção do Estado de alterar a estrutura
produtiva do país. A dinâmica econômica nacional deixava de ter como prin-
cipal determinante a produção agrícola e passava a ser alavancada pelo setor
industrial. Nesse sentido, a modernização da agricultura é definida por Terra
como a “mudança na base técnica de produção agrícola que buscou elevar
a produtividade da terra e do trabalho por meio da utilização de insumos de
origem industrial em oposição aos produtos naturais secularmente utilizados”
(2008, p. 43).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


375
No bojo do processo de modernização da agricultura, foi criado,
pela lei nº 4.829/1965, o Sistema Nacional de Cadastro Rural. Pelo poder
concedido pela lei, o Banco Central do Brasil instituiu que 10% de todos
os recursos captados por depósitos à vista no sistema bancário nacional
seriam destinados ao financiamento da agricultura. Outra resolução deter-
minou que os bancos que não conseguissem emprestar os recursos capta-
dos deveriam repassá-los ao Banco Central, que os aplicaria na conta do
Fundo Especial para o Desenvolvimento da Agricultura (Funagri),13 compo-
nente do SNCR, e destinada a aglutinar capital a fim de que fosse disponibi-
lizado para aplicações em ramos específicos da agricultura (TERRA, 2008).
Com isso, os recursos do SNCR cresceram, em virtude da ex-
pansão da economia e do poder de captação do sistema financeiro
nacional. Além de contar com prazos e carências elásticas e taxas de
juros reais negativas, o SNCR foi, e continua a ser, separado em três
categorias: crédito de custeio, crédito de investimento e crédito de co-
mercialização (TERRA, 2008).
Quando os dados do SNCR são analisados segundo as suas mo-
dalidades (gráfico 5), nota-se que, em contraste com a retração no
volume total de crédito,14 o crédito de custeio – responsável por fomen-
tar o consumo corrente de insumos industriais modernos, entre eles os
agrotóxicos – apresentou crescimento que possibilitou a manutenção
da demanda corrente por insumos, cujas empresas produtoras estavam
se instalando no país, viabilizando o processo de substituição de impor-
tações com capitais multinacionais.

13
Exemplos de aplicações específicas do Funagri são o Fundo para Desenvolvimento da Pecuária
(Fundepe), o Fundo para Desenvolvimento Agrícola (Fundag) e o Fundo para Desenvolvimento do
Álcool Combustível (ProÁlcool) (TERRA, 2008).
14
A decadência do volume total do crédito rural é decorrente de dois fatores: introdução, em
1976, da política econômica que buscava corrigir os desequilíbrios fiscais das contas públicas; e
elevação da inflação, que estimulou o investimento em poupança em detrimento dos depósitos à
vista. Ante esse cenário, o SNCR teve seus dois grandes credores subtraídos: o Estado e os depó-
sitos à vista no sistema financeiro nacional (TERRA, 2008).

Jorge Luis da Costa Silva


376
Gráfico 5. Evolução da participação relativa por
modalidade no SNCR (1966-1985).
Fonte: Coelho, 2001 apud Terra, 2008.

Vale ressaltar que esse sistema se restringiu às médias e grandes


propriedades rurais, como mostram as conclusões do projeto de formação
de capital que investigou as modificações nas propriedades das regiões
Sul e Sudeste a partir de 1970:

O tamanho das grandes fazendas aumentou substancialmente; [...]


a taxa de adoção de novas tecnologias estava diretamente relacio-
nada ao tamanho da propriedade; [...] houve uma rápida adoção
de tecnologia biológica, e, especialmente, de fertilizantes químicos;
esse processo de adoção aumentou significativamente os custos
de operação. [...] Houve um dramático aumento no uso de crédito
agrícola�������������������������������������������������������
nos anos recentes; todos os aumentos da oferta de cré-
dito foram canalizados através de instituições formais de crédito;
[...] taxas reais negativas de juros geralmente prevaleceram e distor-
ceram a alocação de capital e crédito; taxas reais negativas de ju-
ros também resultaram em substancial transferência de renda para
os usuários de crédito. Uma pequena parcela de fazendeiros absor-
veu a maior parte dos aumentos da oferta de crédito; [...] os maiores
beneficiários desses incentivos acumularam-se nas grandes fazendas,
resultando num aumento das disparidades do nível de renda das pro-
priedades. (GRAZIANO DA SILVA, 1982, p. 29)

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


377
Não obstante, esse sistema apresenta como requisito à obtenção
do crédito a comprovação de que o produtor utiliza fertilizantes químicos e
agrotóxicos, por considerar que isso constitui garantia de produtividade e,
portanto, assegura baixos índices de inadimplência. Nesse sentido, o SNCR
confirma sua caracterização como ferramenta auxiliadora do processo de
modernização da agricultura nacional e, por conseguinte, reafirma sua pro-
posta de incentivar o consumo de agrotóxicos.
Somente em 1996, com a criação do Programa Nacional de For-
talecimento da Agricultura Familiar (Pronaf),15 os pequenos produtores,
ou seja, aqueles com áreas não superiores a quatro módulos fiscais e
que possuem até dois trabalhadores contratados apenas, passaram a ter
acesso ao crédito oficial (HESPANHOL, A. N., 2008).

Plano Nacional de Defensivos Agrícolas: a industrialização


por substituição de importações
No curso do desenvolvimento do processo de industrialização na-
cional cujo objetivo foi promover a industrialização do país por meio da
estratégia de substituição das importações – alterando, assim, o eixo
dinâmico da economia da agricultura para a indústria –, foi lançado o
II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) (1975-1979), que previu
a substituição de importações dos ramos de bens de capital, eletrônica
pesada e insumos básicos (TERRA, 2008).
O Estado, em sua estratégia de incentivo à industrialização, cons-
truiu diversos planos setoriais: celulose e papel, fertilizantes, agrotóxi-
cos e produtos petroquímicos, entre outros. Nesse sentido, incentivos
fiscais, tributários e cambiais foram concedidos às empresas, com o
objetivo de estimular a criação da indústria de síntese (NAIDIN, 1985
apud TERRA, 2008).

15
A lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, define agricultura familiar com base nos seguintes critérios:
a área do estabelecimento não pode exceder 4 módulos fiscais, a mão de obra deve ser predominan-
temente da própria família, a renda deve ser originada predominantemente nas atividades da proprie-
dade e o estabelecimento tem de ser dirigido pela própria família.

Jorge Luis da Costa Silva


378
Terra (2008) chama atenção para o fato de a economia brasileira
ter crescido entre 1955 e 1962 – época do Plano de Metas16 – com médias
anuais de 7,1%, acompanhada de um crescimento industrial de 9,8% ao ano.
O período de contração (1962-1967) corresponde à conturbação política e à
implantação do Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg).17 Com o ree-
quilíbrio econômico, os anos 1967 a 1973 presenciaram um crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB) nacional da ordem de 11,2% ao ano, sendo que,
entre 1967 e 1970, o PIB se expandiu em 10% ao ano. Entre 1970 e 1973,
a elevação do PIB foi de 12,4% ao ano. Por fim, nos dois primeiros anos do
II PND (1974-1975), a expansão da economia foi de 8,3% ao ano, reduzindo-
se para 6,2% no período compreendido entre 1976 e 1980. A produção in-
dustrial, por sua vez, acompanhou essa tendência, elevando-se nos primeiros
anos do II PND e reduzindo o seu ritmo após 1976 (gráfico 6).

Gráfico 6. Taxas médias de crescimento: PIB industrial versus PIB nacional.


Fonte: Delgado, 1985 apud Terra, 2008.

Terra considera que “o sucesso do processo de industrialização da


economia brasileira foi inegável” (2008, p. 43), visto que o objetivo traça-
do ainda na década de 1930, baseado na ideia de mudar o eixo dinâmico
da economia brasileira do setor agrícola para o industrial, foi alcançado.

16
Plano elaborado e executado durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek e que tinha
como objetivo promover a industrialização nacional.
17
Plano que visava conter a escalada inflacionária e equilibrar as contas públicas.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


379
Nesse sentido, o setor agrícola foi induzido a transformar sua base técnica
de produção, de modo a modernizá-la.
O impulso decisivo para o aumento do consumo e da produção de
agrotóxicos no Brasil se deu com a criação do Programa Nacional de Defensivos
Agrícolas (PNDA). O programa, idealizado no âmbito do II PDN, previa
que os projetos de fabricação de agrotóxicos passassem a deter incentivos
fiscais e a receber financiamentos para a construção de plantas industriais
e benefícios tarifários para a importação de máquinas e equipamentos.
Os investimentos setoriais dirigiram-se à produção em território nacional
dos produtos técnicos cujos derivados – produtos formulados – já eram
produzidos no país, ou ainda, à produção interna de novos produtos
técnicos. O programa previu, ainda, que as metas estabelecidas deveriam
ser cumpridas num curto prazo, de dois a quatro anos, o que intensificou o
volume dos investimentos (NAIDIN, 1985 apud TERRA, 2008).
Com a elevação dos investimentos durante a execução do PNDA,
suas metas, as quais incluíam, inicialmente, a produção de 13 produtos téc-
nicos no país e a expansão da capacidade de produção dos produtos for-
mulados, foram alcançadas. Em 1983, já existiam no Brasil 40 empresas
fabricantes de produtos técnicos e 33 empresas que apenas formula-
vam os agrotóxicos. Desse total de 73 empresas, 42 eram nacionais,
28 eram estrangeiras e 3 eram joint-ventures18 (TERRA, 2008).
No que se refere à capacidade de produção, sua expansão foi evidente.
A produção brasileira de produtos técnicos cresceu, entre 1970 e 1984, a uma
média anual de 2.172 toneladas (gráfico 7). Quando considerado o período
anterior referente à execução do PNDA (1975-1979), o crescimento anual, em
média, foi de 6.867 toneladas. Nesse sentido, o PNDA permitiu que a produ-
ção nacional de produtos técnicos aumentasse em 140% durante a sua vigên-
cia (TERRA, 2008).

18
Empreendimento conjunto, uma associação de empresas, que pode ser definitiva ou não, com fins
lucrativos, para explorar determinado(s) negócio(s), sem a perda efetiva da personalidade jurídica
de nenhuma delas.

Jorge Luis da Costa Silva


380
Gráfico 7. Evolução da produção nacional de
produtos técnicos de agrotóxicos (1970-1984).
Fonte: Naidin, 1985 apud Terra, 2008.

Em síntese, a política de substituição de importações no ramo dos agrotóxicos,


sustentada principalmente pelo PNDA, teve como principais consequências a
política oficial de incentivo à produção e ao consumo de agrotóxicos e a formação
de um mercado controlado pelas subsidiárias das grandes corporações químicas
multinacionais (NAIDIN, 1985 apud TERRA, 2008).

QUESTÕES RECENTES ACERCA DO SUBSÍDIO ESTATAL:


AS DÍVIDAS DO SETOR AGRÍCOLA

O setor agrícola empresarial cresce à luz de benefícios estatais,


visto que, desde meados dos anos 1990, o setor é motivo de constan-
te processo de renegociação. Apesar dos sucessivos alongamentos de
prazos, incluindo prazos de carência, da diminuição das taxas de juros
e da oferta de novas condições de pagamento, essas dívidas não estão
sendo amortizadas pelos seus devedores (SAUER, 2010).
De acordo com levantamento realizado por Sérgio Sauer (2010),
o Orçamento Geral da União, projeto de lei aprovado pelo Congresso
Nacional (lei nº 12.017/2009), estimou, para as contas públicas de 2010, um
gasto anual em subsídios financeiros e creditícios em torno de R$ 800 milhões.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


381
Esse levantamento revela ainda que a União gastou quase R$ 1,5 bilhão, em
2007 e 2008, com a securitização das dívidas agrícolas. Em 2009, foram
utilizados outros R$ 842 milhões com essa securitização. O Programa Especial
de Securitização Agrícola permitiu a renegociação das dívidas agrícolas dos
contratos acima de R$ 200 mil na origem, que ficavam fora da securitização,
exigindo dos cofres públicos um volume financeiro em torno de R$ 248
milhões, por ano, desde 2007.
Dados disponibilizados pela Receita Federal demonstram que a União
deixou de recolher R$ 8,85 bilhões só em 2010. Apesar de estarrecedores,
esses dados não são capazes de retratar fielmente a realidade brasileira no
que diz respeito às renúncias fiscais. Nesses valores não estão contabiliza-
dos outros apoios públicos, como os incentivos à exportação e à isenção do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS),
nem a prorrogação das dívidas das cooperativas com o Imposto de Renda
de Pessoa Jurídica, com a contribuição social do setor patronal ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), com o Programa de Integração Social (PIS)
etc., renegociadas a partir da medida provisória nº 303/2006 (SAUER, 2010).
Há, ainda, outros gastos públicos resultantes da realização de convê-
nios entre diversos ministérios com entidades do setor patronal. Dados do
Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), do governo federal,
revelam que foram disponibilizados, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (Mapa), mais de R$ 40 milhões a entidades patronais do
setor agrícola (SAUER, 2010).
Para o professor do Departamento de Geografia da Universidade
de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira (BRITO e NADER, 2008),
esse histórico de renegociações da dívida agrícola revela que, na realidade,
a agricultura capitalista, dentro do bojo das políticas neoliberais, não tem
nenhuma possibilidade de se desenvolver e se realizar sem subsídio público
ou governamental.
Além disso, Ariovaldo Umbelino de Oliveira ainda chama atenção
para a forma como esses benefícios – concessão de prazo adicional, re-
dução das taxas de juros das operações e concessões de desconto para
liquidação de dívidas – são veiculados. Segundo o professor, os pequenos

Jorge Luis da Costa Silva


382
produtores são utilizados como “bode expiatório”, pois o número de con-
tratos renegociados com pequenos produtores é expressivo, no entanto, em
valores, o montante não totaliza 5% do volume total renegociado: “o que de
fato está em jogo é a enorme diferença entre os R$ 73 bilhões de reais em
dívida que pertencem aos grandes e médios produtores e os R$ 3 bilhões
que pertencem aos pequenos” (BRITO e NADER, 2008).
Além das questões apontadas anteriormente no que tange ao subsí-
dio estatal ao setor agrícola empresarial, é necessário considerar a dispa-
ridade no que diz respeito aos incentivos dados pelo Estado à agricultura
familiar e ao agronegócio. De acordo com números dos bancos oficiais,
o agronegócio teve à sua disposição R$ 65 bilhões na safra 2008/2009,
quantia quase 500% superior aos R$ 13 bilhões destinados à agricultura
familiar para custear a safra do mesmo período. No período seguinte, isto
é, na safra 2009/2010, essa disparidade aumentou: foram R$ 92,5 bi-
lhões para o agronegócio e R$ 15 bilhões para a agricultura familiar, com
a diferença chegando à ordem de 600% (gráfico 8).

Gráfico 8. Plano Safra (em R$ bilhões): agricultura


familiar versus agricultura empresarial (2002-2010).
Fonte: Brasil, 2011.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


383
MODIFICAÇÕES NA LEI DOS AGROTÓXICOS

Apesar de a Lei dos Agrotóxicos ter representado uma importante con-


quista dos movimentos sociais e de setores ligados à questão do meio ambien-
te, à saúde pública e ao meio acadêmico, sua publicação não garante sua
efetivação. Desde sua aprovação, um movimento de determinados segmentos
agrícolas se constituiu no sentido de alterar a legislação, a fim de facilitar o
registro dos produtos. Dessa forma, a flexibilização do processo de registro de
agrotóxicos no Brasil tornou-se pauta de discussões (TERRA, 2008).
Isso se deve, basicamente, a dois motivos. Em primeiro lugar, o Brasil
sofreu forte pressão internacional, pois o livre comércio de agrotóxicos no
Mercado Comum do Sul (Mercosul) só poderia ser estabelecido se o sistema
de registro dos países membros fosse equiparável. E o sistema brasileiro,
com critérios mais rigorosos para a concessão de registro do que o dos paí-
ses vizinhos, foi, por vezes, um empecilho à entrada dos produtos dos outros
países do bloco.
Em segundo lugar, o sistema de registro por equivalência tornou-
se um ponto de controvérsias entre as associações de grandes produto-
res rurais, as empresas fabricantes e os órgãos reguladores. De um lado,
a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e a Associação Brasileira
dos Defensivos Genéricos (Aenda) alegavam que o marco regulatório vi-
gente no momento favorecia as grandes empresas transnacionais, cuja ca-
pacidade de investimento em pesquisa e desenvolvimento permitia atender
com maior facilidade às exigências dos órgãos de registro e fiscalização, o
que contribuiria para a concentração maior do mercado. De outro lado,
os órgãos reguladores, particularmente a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), consideraram as exigências legais condição
fundamental para minimizar os riscos e perigos ao meio ambiente e à saúde
do consumidor e dos trabalhadores rurais (TERRA, 2008).
Diante das intensas pressões advindas das associações represen-
tativas dos interesses rurais brasileiros, da associação de empresas es-
pecializadas na produção de agrotóxicos sem proteção de patentes e do

Jorge Luis da Costa Silva


384
Mercosul para promover alterações na Lei dos Agrotóxicos, dois decretos
e uma instrução normativa interministerial determinaram as novas regula-
mentações da legislação (TERRA, 2008).
Diante desse cenário, foi criado, a partir da portaria interministerial
nº 17 de 2000, um grupo responsável por elaborar um novo decreto regu-
lamentador da Lei dos Agrotóxicos. E em 4 de janeiro de 2002 publicou-se
o decreto nº 4.074, para regulamentar a Lei de Agrotóxicos, em substitui-
ção ao decreto nº 98.816/1990. O objetivo desse decreto era adequar a
legislação brasileira relativa aos agrotóxicos ao Mercosul, conferindo maior
velocidade ao processo de obtenção de registros, reduzindo o longo tempo
e os elevados custos para a concessão dos mesmos (TERRA, 2008).
Apesar das regulamentações dos agrotóxicos pelo decreto nº 4.074 e pela
instrução normativa interministerial nº 49, que estabeleceu os requisitos para as
avaliações físico-químicas a serem seguidas para a obtenção do registro dos
produtos técnicos por equivalência, os grupos de pressão continuaram atuando
junto do Poder Executivo, o que levou à edição do decreto nº 5.981/2006, com
vistas a uma maior agilidade no processo de registro dos agrotóxicos.
Esse decreto estabeleceu que o registro de produtos técnicos por
equivalência será realizado em três fases. O produto técnico candidato
a registro por equivalência que consiga se enquadrar em uma das três
fases, nos intervalos de segurança aceitos, obtém o registro. Caso o
produto candidato a registro não consiga comprovar a equivalência em
nenhuma das três fases de testes, o produto pode ser candidatado ao
registro de produto técnico tradicional, com a apresentação de todos
os estudos. Com isso, o sistema de registro foi simplificado e facilitado
(BRASIL, 2006).
O registro por equivalência, resultado da simplificação e da agiliza-
ção requeridas por parte de alguns grupos de pressão, foi a grande ino-
vação introduzida por essas modificações. A lógica desse tipo de registro
é a de que, com padrões físico-químicos equivalentes, o perfil dos efeitos
toxicológicos também seria equivalentes aos dos produtos já registrados.
Com a redução dos estudos necessários, o custo e o tempo para obtenção
do registro foram reduzidos (AENDA, 2007 apud TERRA, 2008).

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


385
Por causa do curto espaço de tempo de vigência do decreto
nº 5.981/2006 e do número de novos produtos registrados, ainda não
é possível avaliar os impactos dos atuais procedimentos no desempe-
nho e na estrutura do mercado de agrotóxicos.

LIBERAÇÃO DAS LAVOURAS DE OGMS:


UM INCENTIVO INDIRETO?

Como já mencionado anteriormente, a liberação das lavouras de


transgênicos desempenhou um importante papel no processo que condu-
ziu o Brasil ao topo do ranking mundial de consumo de agrotóxicos.
Dados apresentados por Almeida, Carneiro e Vilela (2009)
revelam que os transgênicos são responsáveis por estimular o consumo
de agrotóxicos. A cultura da soja transgênica teve uma variação negativa
em sua área plantada de 2,55% e, paralelamente, uma variação
positiva de 31,27% no consumo de agrotóxicos, entre os anos de 2004
e 2008. Além disso, dados reunidos por esses autores, com base em
levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do
Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag),
revelam o crescimento de 4,59% da área cultivada no período entre
2004 e 2008, ao passo que a quantidade de agrotóxicos vendidos, no
mesmo período, subiu aproximadamente 44,6%. Embora esses dados
não retratem a realidade, visto que não contabilizam os agrotóxicos
contrabandeados para o país,19 eles já são suficientes para desmantelar
um dos argumentos mais difundidos por empresas e lideranças do
agronegócio, de que os OGMs utilizam menos agrotóxicos do que as
culturas convencionais.
A partir da década de 1990, momento em que os transgênicos co-
meçam a ser introduzidos na agricultura nacional, houve um crescimento
expressivo no consumo de herbicidas, como mostrado no gráfico 1. Esse

19
Uma grande quantidade de soja transgênica foi contrabandeada da Argentina para o Brasil, atra-
vés de sua fronteira com o Rio Grande do Sul (GUERREIRO, 2002).

Jorge Luis da Costa Silva


386
fato sugere que a introdução da tecnologia transgênica no campo brasi-
leiro surtiu um aumento no consumo de agrotóxicos, realidade já descrita
por Londres:

O glifosato é um herbicida de “amplo espectro”, ou seja, “mata


tudo”, e a soja transgênica foi desenvolvida justamente para to-
lerar aplicações do produto: pulverizando-se sobre a lavoura, o
veneno mata todas as espécies de mato presentes, menos a soja.
(2011, p. 70)

Não obstante, é importante ressaltar outro aspecto relativo aos


transgênicos: além da maior quantidade de agrotóxicos utilizada em
virtude das lavouras transgênicas, o glifosato é pulverizado diretamente
sobre a soja, o que faz os grãos apresentarem, ao final, níveis de resíduos
também muito maiores (LONDRES, 2011).
Nesse contexto, em 1998, quando a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio), comissão responsável por avaliar e autorizar trans-
gênicos, autorizou a realização de testes de campo com a soja transgênica e
foi publicado o seu parecer técnico favorável à liberação da soja transgênica
da Monsanto no Brasil, o limite permitido de resíduos de glifosato na soja foi
alterado, passando de 0,2 ppm para 2,0 ppm – um aumento de 1.000%
(BRASIL, 1998). No entanto, nesse mesmo ano, a liberação da soja transgê-
nica foi contestada e suspensa pela Justiça. Em 2004, porém, a sua liberação
foi oficializada, e o limite de resíduos de agrotóxicos na soja, que já havia sofri-
do um aumento, aumentou ainda mais, para 10 ppm, isto é, passou a ser cin-
quenta vezes maior do que o limite instituído inicialmente (LONDRES, 2011).
Nesse cenário, a CTNBio é a “grande influenciadora da implemen-
tação de transgênicos dentro do território nacional” (BENTHIEN, 2003,
p. 62), visto que teve importante participação na aprovação de mais de trinta
variedades de OGMs de soja, milho, algodão e, mais recentemente, feijão.
Em paralelo a isso, deve-se observar que três dessas culturas (soja, milho e
algodão) estão entre as quatro líderes no consumo de agrotóxicos no Brasil
(gráfico 9), o que reforça a relação entre a liberação dos OGMs e o consu-
mo de agrotóxicos.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


387
Gráfico 9. Consumo de agrotóxicos por cultura no Brasil em 2008.
Fonte: Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para
Defesa Agrícola, 2008.

Fica, portanto, sugerido que, no caso dos transgênicos, bem como


nas alterações na legislação dos agrotóxicos, há uma tendência a flexibili-
zar os critérios já estabelecidos, com vistas a facilitar a venda e o consumo
desses venenos agrícolas.

ISENÇÕES TRIBUTÁRIAS CONCEDIDAS


AOS AGROTÓXICOS

Para finalizar esta sistematização, mas sem ter em vista esgotar o


debate, trago, ainda, a questão referente às isenções tributárias. Sobre
esse assunto, cabe ressaltar que, além do investimento maciço de ca-
pital público e do barateamento dos créditos, o agronegócio também
se beneficia de legislações favoráveis, que o isentam do pagamento de
diversos impostos, entre os quais se destacam os que concedem isenções
tributárias referentes às operações e comercializações que envolvem
agrotóxicos (RIGOTTO, 2010).

Jorge Luis da Costa Silva


388
Em um levantamento realizado na Secretaria da Fazenda do estado do
Ceará, obtiveram-se algumas informações referentes a reduções e isenções
fiscais para os agrotóxicos, por meio dos seguintes instrumentos legais:

a) Agrotóxicos isentos da cobrança de ICMS no estado do Ceará,


por força do decreto nº 24.569, publicado em 31 de julho de 1997.
b) Agrotóxicos com redução de 60% na alíquota de cobrança
do ICMS nos demais estados da federação (à exceção daqueles
que se manifestarem em sentido diverso), por força do decreto
nº 100/1997, que teve sua vigência prorrogada até 31 de
dezembro de 2012.
c) Agrotóxicos isentos da cobrança de Imposto sobre Produtos In-
dustrializados (IPI), por força da tabela de incidência do IPI, apre-
sentada no decreto federal nº 6.006, de 28 de dezembro de 2006.
d) Agrotóxicos isentos da cobrança relativa ao Programa de In-
tegração Social (PIS), ao Programa de Formação do Patrimônio
do Servidor Público (Pasep) e à Contribuição para o Financia-
mento da Seguridade Social (Cofins), por força do decreto federal
nº 5.630, de 22 de dezembro de 2005. (RIGOTTO, 2011, p. 592)

É possível compreender, com base na análise dessas isenções, o


processo que conduziu o Brasil à posição de campeão mundial no con-
sumo de agrotóxicos, tendo, em 2009, superado a quantia de um milhão
de toneladas consumidas, movimentando cerca de R$ 6,62 bilhões, sem
qualquer repasse aos cofres públicos.
Ao provocar o barateamento dos custos desses produtos, o Estado,
além de incentivar o seu consumo, cria as condições favoráveis para o
aumento de sua utilização. Se o uso de substâncias químicas que têm
seu caráter nocivo reconhecido é autorizado, e se sua fiscalização é,
notoriamente, ineficiente, os recursos advindos de sua taxação deveriam
servir, ao menos, para cobrir os gastos com a atenção à saúde das pessoas
afetadas por elas e para a minimização dos impactos ambientais.
Não bastassem os efeitos materiais decorrentes das isenções tribu-
tárias, é possível comparar o caso dos agrotóxicos ao do álcool e do ci-

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


389
garro no Brasil. Se os agrotóxicos são reconhecidamente substâncias que
provocam agravos à saúde humana, assim como o álcool e o cigarro, a
cobrança de impostos, além de permitir o ressarcimento dos danos, tam-
bém poderia servir como medida restritiva para o uso indiscriminado de
produtos considerados perigosos.
Às isenções tributárias concedidas aos agrotóxicos somam-se ainda
as carências estruturais e institucionais, provocando a externalização dos
custos sociais, ambientais e sanitários que, não estando embutidos no preço
do produto, acabam por ser coletivamente absorvidos pela sociedade e pe-
los sistemas públicos previdenciários e de saúde.
Por fim, a taxação seria um meio importante de informação sobre a
circulação dessas mercadorias, tendo em vista que, com a isenção vigente,
não é possível acompanhar o consumo de agrotóxicos nos estados e municí-
pios, informação que órgãos públicos responsáveis pela saúde, meio ambien-
te, agricultura, pesquisa, educação, entre outros, necessitam como base para
suas ações e planos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho corrobora a tese defendida por Graziano da Silva


(1982) de que o campo brasileiro é palco de uma “modernização con-
servadora”20 que privilegia apenas algumas culturas e regiões, assim
como alguns tipos específicos de unidades produtivas (ou seja, as de
médio e grande porte). Esse processo nunca conduziu o campo brasileiro
a uma transformação dinâmica, sustentável; pelo contrário, levou a uma
modernização induzida mediante elevados custos sociais e que só se
torna praticável com o amparo do Estado.

20
Expressão que designa o processo de modernização da agricultura nacional, feito sem que a estru-
tura da propriedade rural fosse alterada, o que gerou uma série de efeitos: a propriedade tornou-se
mais concentrada, as disparidades de renda aumentaram, o êxodo rural acentuou-se, a taxa de explo-
ração da força de trabalho nas atividades agrícolas aumentou, a taxa de autoexploração da força de
trabalho nas propriedades menores cresceu e piorou a qualidade de vida da população trabalhadora
do campo (PALMEIRA, 1989).

Jorge Luis da Costa Silva


390
Nesse contexto de modernização das bases técnicas da agricul-
tura nacional, foi instituída a utilização intensiva de insumos industriais,
entre eles os agrotóxicos. Dessa forma, depois de compreender algumas
questões relativas à perspectiva histórica de formação do mercado bra-
sileiro de agrotóxicos, esta pesquisa apresentou um panorama investi-
gativo acerca da relação existente entre o aumento no consumo dessas
substâncias, que conduziu o país à condição de maior consumidor de
agrotóxicos no mundo, e a atuação do Estado brasileiro, notadamente,
marcada pela sua opção de desenvolvimento.
Considerando, então, que a lógica de interesses privados é conflitante
com os interesses públicos, baseados na defesa da saúde humana e do meio
ambiente, a capacidade das grandes corporações de implantar estratégias
voltadas para a redefinição do foco e das prioridades das políticas públicas,
de forma a legitimar e legalizar seus interesses nos espaços de decisão do go-
verno, é possível concluir que o Estado brasileiro se reafirma como o principal
indutor no consumo de agrotóxicos no país, na medida em que cede às pres-
sões das grandes empresas, em detrimento da saúde da população brasileira.
É necessário ressaltar ainda que a cumplicidade entre o Estado
e o agronegócio ainda não teve fim. Esse movimento está em curso e
sem sinais aparentes de enfraquecimento. Dessa forma, torna-se ainda
mais difícil a realização de uma análise aprofundada sobre o fenômeno.
Apesar do esforço feito, esta pesquisa não se propôs a construir uma siste-
matização de todas as ações do Estado brasileiro de incentivo à utilização
de agrotóxicos, visto que a intervenção estatal se configura de diferentes
formas. Além de o Estado induzir diretamente o incentivo dessas substân-
cias, ele também contribui para a expansão do consumo de agrotóxicos,
na medida em que não estimula modelos de produção agrícola alternati-
vos, que dispensem o uso de venenos agrícolas.
Deve-se considerar também que, pelo fato de a questão agrária ser
um problema eminentemente político, ela revela a necessidade de mudan-
ça na estrutura de poder da sociedade; isso significa que não se trata de
uma questão de prós e contras, nem de um problema técnico – mas, antes,
de uma reivindicação de classes sociais muito bem definidas.

As ações do Estado brasileiro na indução ao consumo de agrotóxicos


391
Em suma, mediante a consideração do papel do Estado como ali-
cerce para a expansão do agronegócio no Brasil, conclui-se que a inter-
venção do Estado é, certamente, um suporte para o processo de avanço
do capitalismo, demonstrando que, para além das falhas institucionais de
controle e fiscalização do uso de agrotóxicos, que podem ser vistas como
uma simples omissão do Estado, há uma opção claramente delineada de
incentivo que garante que o contexto de risco socioambiental se perpetue.

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experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o arma-
zenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a impor-
tação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a
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Jorge Luis da Costa Silva


396
O USO DA EQUOTERAPIA NO
TRATAMENTO DE CRIANÇAS AUTISTAS*

Juliana Pereira do Nascimento**

INTRODUÇÃO

De acordo com Uyehara (2004), a relação homem–animal gera


muitos benefícios para a saúde do ser humano, entre eles a diminuição de
problemas cardiovasculares e do estresse e a melhora da interação social.
A relação do ser humano com os animais vem sendo estudada pela me-
dicina alternativa há muito tempo. No Brasil, o método terapêutico mais
utilizado e conhecido é a equoterapia, um tratamento alternativo no qual
o paciente, acompanhado de fisioterapeutas e psicólogos, é submetido a
sessões de terapia com um cavalo, que visam proporcionar-lhe bem-estar
psíquico, físico e social ao paciente.
O objetivo da equoterapia é estimular os pacientes a desenvolverem
suas potencialidades para que possam integrar-se à sociedade com maior
autonomia e, assim, obterem benefícios físicos e psicológicos. Ela pode ser
utilizada, de forma terapêutica, no tratamento de vários tipos de doenças como
síndrome de Down, paralisia cerebral, autismo, esquizofrenia, deficiência visual
e distúrbio de atenção, e em pessoas com problemas de postura ou insônia.
Essa modalidade terapêutica é realizada com a supervisão de uma equipe de
profissionais de diversas áreas, como psicologia e fisioterapia, e de um instrutor

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0035.0.408.000-10.
**
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Vigilância em Saúde (2008-2010). Atualmente cursa Medicina Veterinária na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). No trabalho de construção de sua mono-
grafia de conclusão de curso, contou com a orientação da professora-pesquisadora Nina Isabel
Soalheiro dos Santos Prata (doutora em Saúde Pública), do Laboratório de Educação Profissional em
Atenção à Saúde (Laborat). Contato: jujunascimento2@gmail.com.

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


397
de equitação, entre outros. A equipe avalia o paciente e, então, elabora um
programa específico para as necessidades da pessoa com a finalidade de
alcançar os objetivos propostos (LEITÃO, 2008).
O autismo infantil, segundo a Classificação Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida como Classificação In-
ternacional de Doenças – CID 10), da Organização Mundial de Saúde (OMS)
(ARRUDA e MARQUES, 2007), é um transtorno invasivo do desenvolvimento,
isto é, tem como principal característica problemas no desenvolvimento de
funções básicas, como a comunicação e a socialização. Esse atraso causa
dificuldades no aprendizado, na fala e no comportamento, entre outros.
A criança autista possui como algumas de suas principais características
a agitação, o desinteresse, a dificuldade de exibir emoções e demonstrar
afeto, além de apresentar problemas posturais e inflexibilidade.

AUTISMO INFANTIL

O autismo infantil é um transtorno que afeta o desenvolvimento social


da criança, levando a mesma a ter grandes dificuldades de interagir com
outras pessoas, inclusive com a família, além de apresentar problemas na
comunicação e no comportamento. Atinge predominantemente crianças do
sexo masculino (FREIRE, 1999).

É uma síndrome [o autismo] caracterizada por alterações pre-


sentes desde idades bastante precoces e que se manifesta, sem-
pre, por desvios nas áreas da relação interpessoal, linguagem/
comunicação e comportamento. (SCHWARTZMAN, 1995 apud
FREIRE, 1999, p. 17)

Para melhor compreensão dos problemas causados por esse transtorno,


é necessário entender o que a psicologia define como desenvolvimento. Dentre
as diversas teorias psicológicas que buscam explicá-lo, uma das abordagens
utilizadas para a compreensão do autismo adota a fórmula biossociológica:
genótipo + ambiente = fenótipo (BALLONE, 2004). De acordo com

Juliana Pereira do Nascimento


398
essa abordagem, o fenótipo é o conjunto de características biológicas e
culturais que definem o ser humano, isto é, o que ele se tornou durante seu
desenvolvimento, pois, como o homem é um ser social, ele sofre influências da
sociedade (ambiente) e também possui características biológicas (genótipo).
Então, deve-se entender por desenvolvimento as transformações pelas quais o
ser humano passa devido às grandes interações com o meio (ambiente) que
proporcionam ao homem estímulos ao longo dos anos, fazendo que o mesmo
sofra mudanças em sua vida. Esses estímulos podem ser sensoriais, físicos,
emocionais, cognitivos e alimentares.
Segundo Ballone (2004), os estímulos sensoriais, emocionais e cogni-
tivos são fundamentais para o desenvolvimento neuropsicológico, que pode
ficar comprometido na ausência dos mesmos. Além disso, é preciso que o
ser humano possua um suporte biológico global, ou seja, é indispensável
que as condições neuropsicológicas da pessoa sejam favoráveis ao aprovei-
tamento dos estímulos. No caso do autismo, essas condições são completa-
mente desfavoráveis.
O termo autismo faz menção ao isolamento das crianças estudadas
por Kanner (1943 apud BALLONE, 2004), que acreditava que as mesmas
possuíam uma espécie de esquizofrenia. Porém, existiam sintomas diferentes
entre essas crianças e as que realmente eram esquizofrênicas. As onze crianças
avaliadas por Kanner possuíam uma grande dificuldade de se relacionarem
umas com as outras, muitas não falavam e realizavam atos repetitivamente,
entre outras características. Ao longo do tempo, Kanner reconheceu que tais
sintomas e a expressão autista não estavam relacionados com a esquizofrenia.
Rutter (1968 apud BALLONE, 2004) identificou o autismo como um transtorno
que possui como algumas de suas características os problemas de intera-
ção da pessoa com o meio e a incapacidade de se relacionar afetivamente.
Essa síndrome vem sendo estudada há muitos anos, porém, até os
dias atuais, não existem muitas explicações para as causas desse trans-
torno. Alguns pesquisadores, incluindo Kanner, tentam relacioná-lo com
o comportamento emocional dos pais. Durante a sua pesquisa, Kanner
(1943 apud BALLONE, 2004) notou que grande parte dos pais de seus
pacientes autistas tinha um comportamento pouco afetivo com os filhos.

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


399
Apesar de algumas evidências, não foi comprovado que a causa do au-
tismo está relacionada com as atitudes dos pais, existindo diversas teorias
para tentar compreendê-lo.
De acordo com Duncan (1986 apud BOSA, 2001), diversas caracte-
rísticas do autismo podem ser justificadas pelo comprometimento do fun-
cionamento do lobo cerebral frontal, área responsável pela captação das
informações recebidas por estímulos e pela organização das mesmas, isto
é, essa parte do cérebro é responsável pelo desenvolvimento e planeja-
mento de certas ações que são realizadas com alguma finalidade. Para
que o ser humano possa executar esses atos, é necessário que o mesmo
adquira um comportamento flexível, atenção, controle e integração de di-
versas fontes de informações e possa utilizar os conhecimentos obtidos.
Essa hipótese sugere que há uma disfunção no lobo central das crianças
autistas, causando um déficit cognitivo.
Dos diferentes sintomas do transtorno autista, o déficit cognitivo é
o mais importante. A cognição é um processo que está relacionado
ao sistema de aprendizagem do ser humano e nela está envolvida a
percepção, a atenção, o raciocínio, a imaginação, a memória, o pen-
samento, o juízo e a linguagem. Esse déficit faz que a criança autista
tenha grandes dificuldades em seu desenvolvimento e causa problemas
na fala, na comunicação e no interesse, entre outros. Os autistas não
têm facilidade de se relacionar com outras pessoas e de demonstrar
emoção, além de apresentarem agressividade, o que torna o conví-
vio com as pessoas, principalmente com a família, muito complicado
(BALLONE, 2004).
De acordo com Moraes (1998 apud FREIRE, 1999), existem outras
síndromes associadas ao autismo que diferem quanto ao grau de severi-
dade da doença. As mais comuns são:
• síndrome de Rett: neurodegenerativa, letal em meninos. Gera um
desenvolvimento aparentemente normal na criança até que a mesma
perde as habilidades manuais e da fala, além do desenvolvimento so-
cial e lúdico;

Juliana Pereira do Nascimento


400
• transtorno desintegrativo da infância: até os 3 anos de idade a criança
desenvolve-se normalmente; após essa idade, há perda das habilidades
sociais, linguísticas e comportamentais já adquiridas. A criança também
perde o interesse social e obtém estereotipias motoras, podendo tornar-
se mais agitada e irritada;
• síndrome de Asperger: muito semelhante ao autismo clássico, porém
de menor intensidade, ambas as síndromes provocam dificuldades na
interação social, na comunicação e problemas comportamentais;
retardo mental: acredita-se que crianças com alto grau de severidade
do autismo podem estar associadas a essa síndrome, pois três quartos
de crianças autistas possuem grande comprometimento do funciona-
mento intelectual global;
• epilepsia: diversas pesquisas relacionam essa síndrome ao autismo,
pois a taxa de ocorrência de epilepsia em crianças autistas é maior do
que em crianças com retardo mental, e há autores que afirmam que o
autismo pode ser uma causa de crises epilépticas.
Existem outros fatores relacionados ao autismo, como o uso de co-
caína e álcool pela mãe durante a gestação e o hipotireoidismo.

Autismo não é uma doença única, mas sim um distúrbio de


desenvolvimento complexo, definido de um ponto de vista com-
portamental, com etiologias múltiplas e graus variados de se-
veridade. (GADIA, TUCHMAN e ROTTA, 2004, p. S83)

Segundo Freire (1999), as manifestações clínicas do autismo são


muito importantes para o trabalho com o cavalo, pois, conhecendo os
principais problemas da criança em tratamento, será mais fácil estabelecer
os exercícios durante a sessão e perceber se está ocorrendo alguma evo-
lução do paciente.
As crianças autistas podem apresentar como características o fato
de serem indiferentes às pessoas e ao mundo em sua volta, não manifes-
tando nenhum sentimento de abandono quando deixadas sozinhas, sendo
muito comum a ausência de choro. Essas crianças também não costumam
olhar diretamente para as pessoas, não há esse modo de comunicação,
elas parecem olhar através daqueles que estão a sua volta.

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


401
A hipotonia1 ocorre com muita frequência, tornando comum a falha na
postura entre os portadores do autismo e podendo causar atrasos no desen-
volvimento psicomotor. Também sofrem de fobias, sentindo medo de determi-
nados objetos, situações ou barulhos.
Os autistas também podem apresentar alguns transtornos somáti-
cos funcionais, isto é, sintomas físicos que possuem origem psicológica.
São eles: transtornos alimentares, quando a criança pode demonstrar
anorexia, regurgitação, recuso do seio, vômitos, entre outros; transtor-
nos do sono, pois o autista possui insônia intensa e precoce, podendo
ocorrer de duas maneiras: a criança dorme normalmente e logo se agi-
ta, realizando movimentos autoagressivo, ou a criança fica acordada,
extremamente quieta; e transtornos esfincterianos, a criança apresenta
constipações e transtornos na pele, urticária e irritações.
O autismo também tem como característica as estereotipias. As mais
comuns são movimentos repetitivos, girar em torno do próprio corpo, levar
objetos para perto do rosto e movimentar as mãos na frente dos olhos,
entre outros. Esses estereótipos não desaparecem e podem tornar-se cada
vez mais frequentes.
As crianças autistas não costumam possuir um objeto transicional, ou
seja, um objeto que a criança carrega consigo, tendo prazer em possuí-lo
(WINNICOTT, 1993 apud FREIRE, 1999). Os autistas ou não possuem
esse objeto, ou os pais o tiraram, ou se tratava de algum objeto que se
quebrou e não foi substituído. Essas crianças também têm prejudicada a
capacidade de brincar.
Atualmente, não existe uma cura para essa síndrome, porém existem
tratamentos para controlá-la. O mais recomendado é que seja feita uma
avaliação individual da criança para que a mesma seja tratada de acor-
do com suas especificidades, pois, como o prognóstico do autismo pode
variar em cada caso, é aconselhável que a criança seja tratada por uma
equipe multidisciplinar composta por psicólogos, fisioterapeuta e pedagogo
(ARRUDA e MARQUES, 2007).

1
Flacidez muscular.

Juliana Pereira do Nascimento


402
O tratamento mais comum para esse transtorno consiste em con-
sultas sistemáticas a psicólogos, pedagogos e fisioterapeutas a fim de
amenizar os problemas causados pelo autismo e proporcionar ao autista
melhor qualidade de vida. Também podem ser usados medicamentos neu-
rolépticos, remédios com fins sedativos e psicomotores que controlam os
sintomas de agressividade e agitação.

EQUOTERAPIA

O cavalo é um animal utilizado pelo homem há milhares de anos


para diversas funções, como no transporte, na agricultura, na montaria,
na caça e em esportes, entre outras. Para cada atividade, é necessária uma
espécie diferente de cavalo. Essa interação ocorreu pela primeira vez na pré-
história, no período chamado paleolítico, que vai de cerca de 2,5 milhões a.C.
a 10.000 a.C. (LEITÃO, 2008).
No “Livro das dietas”, Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.) menciona
a equitação como meio para o restabelecimento da saúde do homem,
além de eficaz na prevenção de doenças. Também, durante a Idade Mé-
dia, os árabes faziam referências aos benefícios obtidos com a equitação
(FREIRE, 1999).
De acordo com Bréia e Leal (2010), para o ser humano interagir com
o cavalo é necessário que se crie uma relação de confiança. Essa confiança
é estabelecida mediante a comunicação entre esses dois seres de espécies
distintas. A transmissão de informações entre o homem e o cavalo deve ser
feita, principalmente, por meio da linguagem corporal, sendo fundamental
conhecer a etologia do animal, isto é, o comportamento do mesmo, para
que haja uma interação segura e saudável entre as duas espécies.
Em 1930, surgiram os primeiros estudos sobre equitação. Eles foram
realizados pelos escandinavos e por pesquisadores dos países anglo-saxônicos.
Esse tipo de estudos tornou-se mais comum nos países europeus durante
a década de 1960. Na Alemanha, em 1970, nasceu a modalidade
chamada hipoterapia:

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


403
As terapias utilizando cavalo podem ser consideradas como um
conjunto de técnicas reeducativas que agem para superar danos
sensoriais, motores, cognitivos e comportamentais, através de
uma atividade lúdico-desportiva, que tem como meio o cavalo.
(CITTERIO, 1991 apud FREIRE, 1999, p. 33)

A partir de 1974 passaram a ser realizados congressos internacio-


nais sobre equitação terapêutica para divulgar esse modelo de terapia
e, assim, conseguir adesão de um maior número de especialistas. Em
1976, os termos hipoterapia e equitação terapêutica apareceram pela
primeira vez associados a problemas médicos de caráter neurológi-
co, ortopédico e psiquiátrico. A partir do IV Congresso Internacional de
Equitação Terapêutica, realizado em 1982, a equoterapia passou a com-
preender três disciplinas diferentes, de acordo com os possíveis modos de
utilizar o cavalo de forma terapêutica: a hipoterapia, a equitação despor-
tiva adaptada e a equitação psicoeducacional (LEITÃO, 2008). Ao longo
da década de 1990, diversas áreas, como medicina, desporto, fisioterapia
e psicomotricidade, começaram a demonstrar interesse na equitação te-
rapêutica.
O reconhecimento da equoterapia como método terapêutico e educa-
cional no Brasil aconteceu na sessão plenária no dia 9 de abril de 1997, na
qual a equoterapia teve a aprovação do Conselho Federal de Medicina. A
Associação Nacional de Equoterapia (Ande-Brasil) foi criada em 10 de maio
de 1989 a fim de coordenar, normalizar, fiscalizar e controlar o uso desse
modelo de terapia em âmbito nacional, além de promover estudos e pesqui-
sas e realizar cursos de especialização. Também foi criado o termo equote-
rapia para todos os tratamentos que utilizem o cavalo e a equitação, tendo
como áreas de aplicação a reabilitação, quando o paciente possui deficiência
física e/ou psicológica, e a educação, para o praticante que possui necessi-
dades educativas especiais e sociais e para pessoas com distúrbios compor-
tamentais ou evolutivos. A Ande-Brasil estabeleceu princípios e fundamentos
(BRÉIA e LEAL, 2010) que devem ser seguidos por todos que utilizarem a
equitação terapêutica:

Juliana Pereira do Nascimento


404
• as atividades terapêuticas só devem começar após avaliação e apro-
vação médica, psicológica e fisioterápica do paciente;
• para as atividades de equoterapia, é necessária uma equipe multipro-
fissional, envolvendo o maior número possível de profissionais das áreas
da saúde, educação e equitação;
• as sessões de tratamento podem ser realizadas de forma conjunta,
porém o planejamento e o acompanhamento de cada paciente de-
vem ocorrer individualmente;
• são necessários registros periódicos de cada atividade realizada para
melhor acompanhamento da evolução do paciente;
• deve ser observada a ética profissional e a preservação da imagem
dos pacientes;
• a equoterapia deve ser de acesso a todos, independentemente de
classe social – isto é, ela não pode ser elitizada;
• a segurança física do paciente é de extrema importância para toda
a equipe.
O tratamento baseia-se nas técnicas de equitação; os movimentos rít-
micos do cavalo estimulam a todo o momento o corpo, a audição, a visão e o
olfato do paciente, além de melhorarem a autoestima, a autoconfiança, a fala,
a diminuição da agressividade, entre outros. Os movimentos – passo, trote e
galope – enviam estímulos ao praticante, reorganizando o sistema nervoso do
mesmo e gerando uma resposta adequada ao praticante. O trote e o galope
possuem um tempo de suspensão em que o animal faz um esforço maior
e seus movimentos são mais velozes e repentinos, sendo utilizados em pacien-
tes mais avançados. O passo do cavalo é considerado a base da equoterapia,
e possui como principal característica o fato de ser uma andadura ritmada,
realizada sempre no mesmo ritmo e em quatro tempos (BRÉIA e LEAL, 2010).
Esses movimentos são responsáveis pela reabilitação do praticante
de equoterapia, pois causam o seu deslocamento no dorso do animal,
resultando na movimentação da bacia do paciente, movimento que simula
o andar do ser humano, e levando os estímulos ao cérebro (WICKERT,
1999). Para que o movimento tridimensional do cavalo tenha efeito posi-

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


405
tivo no cavaleiro, os dois seres devem estar posicionados de forma cor-
reta, ou seja, alinhados no mesmo centro gravitacional. Assim, quando
o cavalo estiver movimentando-se, os movimentos gerarão uma pe-
quena torção na bacia do praticante, fazendo que o sistema nervoso
central do mesmo seja ativado e, consequentemente, suas funções neu-
romotoras (DIAS e MEDEIROS, 2008).
A relação entre os movimentos do cavalo e do homem é feita pela
descrição dos estímulos e dos movimentos do ser humano. Durante a marcha,
o homem anda alternando suas pernas: enquanto uma perna está sendo
sustentada, a outra serve de base de apoio e de impulsão. Conforme o ho-
mem move-se para frente, o peso do corpo é deslocado de acordo com o
centro de gravidade e, para que o indivíduo mantenha-se equilibrado, ocor-
re o passo. Ao longo da marcha, há uma transferência de peso de um
lado para o outro. Os movimentos do cavalo são análogos aos do homem;
assim, o movimento tridimensional realizado pelo cavalo durante a equitação
terapêutica simula os movimentos do praticante, levando o mesmo a obter a
percepção de tais movimentos. Entre os benefícios recebidos pelo praticante,
está a melhora em relação ao equilíbrio.
Outro benefício produzido pela equoterapia é o ajuste tônico,
sendo que, segundo Dias e Medeiros, tônus muscular diz respeito a
força com que o músculo resiste a seu alongamento (2008). Muitos
pacientes que utilizam a equoterapia possuem problemas de tonicidade
muscular. A criança autista, por exemplo, pode sofrer de hipotonia e,
com a equitação terapêutica, o nível de flacidez muscular pode ser
modificado, com as passadas do cavalo que ativarão os receptores
musculares e articulares do praticante, estimulando o sistema vestibular
e, assim, aumentando o tônus muscular. Além da dificuldade física,
segundo Wallon (1975 apud DIAS e MEDEIROS, 2008), o tônus
muscular tem relação com a condição emocional do ser humano,
a sensação de prazer que o paciente experimenta ativa a formação
reticular do mesmo, aumentando a atenção e o aprendizado.
A melhora do equilíbrio junto com o ajuste tônico também gera no
praticante da equoterapia um alinhamento corporal, isto é, os estímulos

Juliana Pereira do Nascimento


406
recebidos pelo sistema vestibular contribuem para o alinhamento da pos-
tura do paciente, porém, é importante enfatizar que, para isto ocorrer, a
equipe responsável pela prática da equoterapia deve ensinar ao praticante
a postura correta sobre o cavalo para que o mesmo não seja prejudicado.
As atividades lúdicas realizadas com o cavalo favorecem a percepção do
paciente em relação ao tempo e ao espaço, e estimulam a criatividade e
o sistema motor do mesmo.
Durante a equoterapia, o praticante recebe muitos estímulos, desen-
volvendo novas percepções sensório-motoras por meio do uso de jogos e
objetos de diferentes formas, tamanhos e texturas que produzem diversos
movimentos do corpo do praticante, enviando informações ao sistema mo-
tor. Além disso, de acordo com as atividades físicas propostas pela equipe,
o paciente pode melhorar o desenvolvimento de sua força muscular como
resultado dos movimentos corporais constantes causados pelas mudanças
de posição em cima do cavalo.
A interação com o cavalo favorece que os pacientes vivenciem diver-
sos acontecimentos, como sentir a textura do pelo do cavalo, ter uma visão
de cima do animal, que é diferente de quando está no chão, entre outros,
ao mesmo tempo fazendo que ele tenha consciência de suas capacidades
e trabalhe tanto o corpo quanto a mente. Com o movimento tridimensional
do cavalo, o praticante amplia o seu campo visual, recebendo informações
que melhoram suas percepções relacionadas à identificação de objetos,
de formas variadas, desenvolvendo noções de espaço, profundidade, dis-
tância e memória. Além desses benefícios, a relação com o cavalo gera
afetividade entre os dois seres, somando isto a prática de atividades ao ar
livre, que gera ao praticante um sentimento de prazer, fazendo que ocor-
ram mudanças biológicas no cavaleiro e produzindo memórias agradáveis
que fazem que o mesmo tenha vontade de praticar a equoterapia (DIAS e
MEDEIROS, 2008).
Durante o tratamento com equoterapia, é importante ressaltar que
existem fases pelas quais o praticante deve passar a fim de que a terapia
seja eficiente. A primeira fase é a aproximação, quando o paciente tem o
primeiro contato com o cavalo, sem montá-lo, a fim de conhecê-lo melhor e

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


407
começar a criar um vínculo afetivo com o mesmo. A segunda fase é a mon-
taria, quando o praticante aprende a subir no cavalo, a equilibrar-se nele, a
andar e a parar. A terceira e última fase é o desfecho: a equipe propõe ao
paciente atividades lúdicas em cima do cavalo (DIAS e MEDEIROS, 2008).
Existe mais de um modelo de equoterapia, sendo os mais conhecidos
os seguintes:
• Hipoterapia clássica: baseia-se no modelo alemão, e seu objetivo é
fazer que o paciente recupere as competências que lhe permitam reinte-
grar-se no mercado de trabalho e na sua própria vida social. Costuma
ser utilizada no tratamento de casos de problemas motores.
• Equitação psicoeducacional: tem por objetivo tratar as necessidades
específicas de cada paciente, de natureza psicológica e/ou educacional,
por meio do trote, do passo e do galope do cavalo. É realizada, princi-
palmente, com pacientes que sofrem de doenças psicológicas.
• Equitação pré-esportiva: diferentemente das duas primeiras, esse
modelo consiste na autonomia do paciente, e não tem como objetivo
principal recuperar alguma deficiência, mas desenvolver a competência
do cavaleiro.
• Desportivo: nesse modelo, o paciente precisa ter condições favoráveis
para andar a cavalo, podendo participar de competições hípicas. Pode
ser usado nas áreas de educação e reabilitação.
• Hipoterapia: voltado para a área de reabilitação, quando o paciente
não tem condições físicas e/ou mentais para sustentar-se sozinho no
cavalo, sendo indispensável à presença dos profissionais de saúde a
todo momento. Ela se distingue da hipoterapia clássica por adotar um
modo mais extensivo e uma metodologia mais ativa, contando com
maior número de profissionais (LEITÃO, 2004).
Apesar de ser considerada muito eficiente, a equoterapia possui con-
traindicações, por isso é necessário a avaliação médica para que o indiví-
duo não experimente nenhum dano. Pessoas que sofrem de doenças como
obesidade e deficiências graves são contraindicadas para esse modelo de
tratamento. Além disso, também é muito importante ressaltar que a equote-
rapia deve ser feita em conjunto com outros modelos de tratamento, como

Juliana Pereira do Nascimento


408
sessões com um psicólogo e, se necessário, o uso de medicamentos (BRÉIA
e LEAL, 2010).
É essencial para a equoterapia saber a importância de uma equipe
multidisciplinar e interdisciplinar, pois o tratamento envolve diversas áreas,
principalmente na terapia de crianças autistas. A equipe de equitação
terapêutica é composta por fisioterapeuta e psicólogo, que irão avaliar o
paciente e suas necessidades, planejando assim um programa específico;
por instrutor de equitação, responsável pela doma e treinamento do
cavalo e, também, por ensinar o resto da equipe sobre equitação; por
auxiliar-guia, que controla o cavalo e sua andadura correta durante as
sessões de equoterapia; por auxiliar lateral, que propões as atividades
definidas de acordo com o planejamento e é responsável pelo praticante
e sua segurança; e por veterinários responsáveis pela saúde do cavalo.
Além desses profissionais, pedagogos, fonoaudiólogos e terapeutas
ocupacionais podem fazer parte da equipe (DIAS e MEDEIROS, 2008).
O cavalo usado na equoterapia deve ter determinadas caracte-
rísticas para que os objetivos do tratamento sejam alcançados, porém
não é necessário que seja de uma raça específica. O animal que vai
atuar na terapia deve ser castrado, domado, possuir idade superior a
10 anos e ser devidamente treinado. A princípio, o cavalo é domado
e treinado para obedecer qualquer ordem, mas, com o tempo, é sub-
metido a treinos específicos para a sua função. Para treinar o cavalo
para equitação terapêutica, deve-se levar em conta o seu comporta-
mento natural, sendo o treinamento contínuo, isto é, o cavalo sempre
deve aprender algo novo. Do chão à cernelha,2 o cavalo deve medir até
1,5 metro e o ângulo da quartela3 deve ser bem próximo a zero (BUCHENE e
SAVINI, 1996 apud FREIRE, 1999).
Além do adestramento do cavalo, também é essencial o bem-estar
e a saúde física e psicológica do animal, pois, apenas assim, o mesmo po-
derá desenvolver seu papel tão importante nessa modalidade de terapia.
Para isso, é muito importante que se crie uma rotina para o cavalo. Ele deve

2
Parte do corpo do cavalo onde se unem as espáduas.
3
Área entre o boleto do cavalo e a coroa do casco.

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


409
entender que tudo tem a sua hora: deve-se estabelecer um horário específi-
co para o trabalho, a comida, o descanso, o repouso e a recreação.
As atividades lúdicas durante a sessão de equoterapia podem
contar com alguns instrumentos que, nesse caso, são considerados
terapêuticos, como jogos, bambolês, tecidos, bola e esponjas, entre outros.
É importante, porém, ressaltar que todos esses materiais devem ser
testados pela equipe e apresentados ao cavalo, antes de serem usados
efetivamente durante a sessão para que não haja nenhum estranhamento
por parte do animal, colocando em risco o praticante e a equipe. Esses
equipamentos são muito importantes na equoterapia, pois com a utilização
dos mesmos serão simuladas situações com o objetivo de estimular
o praticante a realizar novos desafios a cada sessão do tratamento
(BÉRIA e LEAL, 2010).

ENTREVISTAS SOBRE EQUOTERAPIA

A pesquisa de campo deste trabalho constituiu-se de cinco entrevistas


realizadas com responsáveis por crianças autistas praticantes de equoterapia
e com profissionais da área. As entrevistas foram realizadas no Centro de
Equoterapia e Reabilitação da Vila Militar (Cervim) em setembro de 2010. O
Cervim está localizado na Vila Militar em Deodoro, na cidade Rio de Janeiro, e
surgiu em 1991, sendo um dos pioneiros na área da equoterapia. Possui con-
vênio com a Escola de Equitação do Exército e sua equipe é multidisciplinar,
contando com profissionais das áreas da fisioterapia, técnicas de equitação,
psicologia, psicopedagogia e educação física. Além da equoterapia, o
Cervim também tem programas de musicoterapia, hidroterapia, fonoau-
diologia, psicopedagogia, natação adaptada, fisioterapia, terapia ocupa-
cional, atendimento psicológico e esportes paraolímpicos. Para praticar a
equoterapia no Cervim, a equipe realiza uma avaliação a fim de determinar
as necessidades do paciente e, assim, planejar um programa adequado.
De acordo com um dos funcionários do centro, é preciso entender que
o tratamento com equoterapia é apenas um complemento de outras terapias,

Juliana Pereira do Nascimento


410
isto é, cada paciente possui as suas especificidades em relação à doença ou
transtorno, então deve-se avaliá-lo para identificar as necessidades do mesmo
e, assim, planejar o programa de tratamento adequado. O tratamento pode
incluir mais de uma terapia oferecida pelo Cervim. As avaliações são feitas
pela equipe do centro e, após o resultado da mesma, o paciente é encami-
nhado para os tratamentos necessários. Conforme o desenvolvimento do pra-
ticante, os programas podem ser adaptados e reorganizados para as novas
necessidades do mesmo. Além disso, o Cervim preocupa-se em acompanhar
a vida de cada paciente, acompanhando a vida escolar do mesmo, e também
oferece acompanhamento psicológico para a família, orientando como deve
ser o procedimento fora do centro.
Os objetivos do Cervim são: realizar o acompanhamento de vida dos
praticantes; tratar e reeducar os praticantes por meio de modelos de terapia
alternativos com a maior quantidade e diversidade de atividades possíveis,
a fim de que os mesmos possam reintegrar-se na sociedade; proporcio-
nar a melhora na qualidade de vida não apenas do paciente, mas tam-
bém de sua família; e descobrir as capacidades, além de possibilitar prazer
aos praticantes.
A equoterapia é utilizada no Cervim no tratamento de diversas
doenças tanto físicas quanto psicológicas, e existem pacientes de diversas
idades. Conforme o desenvolvimento do praticante e dependendo de sua
deficiência, o mesmo poderá ter mudado o seu modelo de terapia, isto é, se
o praticante possui habilidades com o cavalo mais evoluídas, poderá deixar
de praticar a equoterapia apenas como uma forma de tratamento e passar
para o programa pré-esportivo.
A terapia acontece durante a semana e as sessões de equoterapia
são realizadas nos turnos da manhã e da tarde. Os atendimentos observa-
dos durante a pesquisa de campo foram realizados em grupo.
Durante a pesquisa de campo, foram realizadas cinco entrevistas no
total, sendo três delas com responsáveis por crianças autistas em tratamento e
duas com profissionais que trabalham com equoterapia. Para essas entrevis-
tas, foram realizados dois questionários diferentes, de acordo com a caracte-
rística do entrevistado.

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


411
Dois dos três responsáveis por crianças autistas entrevistados conta-
ram que o diagnóstico de autismo foi dado quando as crianças estavam
com menos de 3 anos, e todos os três entrevistados, ao saberem que seus
filhos tinham autismo, procuraram ajuda psicológica e fisioterapêutica;
mais tarde, procuraram a equoterapia por indicação médica.
O entrevistado 1 ressaltou ainda o fato de ter tido dificuldade de en-
contrar um local para seu filho fazer equoterapia, mas depois que descobriu
que havia essa atividade no Cervim e se informou sobre o assunto viu que
havia outros lugares com essa proposta de terapia, constatando que o
problema é a falta de divulgação, o que mostra que, apesar da eficiência
do tratamento, ainda são poucas as pessoas que têm conhecimento sobre
a existência da equitação terapêutica e seus benefícios para a saúde.
Além disso, há outro problema em relação à equoterapia. Segundo
Bréia (2010), são poucas as instituições que oferecem tratamento de graça.
No Rio de Janeiro, existe apenas uma instituição pública, o que torna a equo-
terapia uma prática elitizada, pois o custo para manter um cavalo saudável e
apto para realizar a terapia é muito alto. Logo, o tratamento também é caro.
No Cervim, a maioria dos praticantes paga pela terapia, porém existe um
programa de bolsa em alguns casos especiais. Para que determinado prati-
cante receba essa bolsa, é feito um estudo sobre as condições financeiras do
mesmo e uma avaliação das mesmas a fim de decidir se o candidato receberá
bolsa ou não. Esse benefício pode ser parcial ou total. No Cervim, 30% dos
praticantes de equoterapia são beneficiados com a bolsa.
O primeiro entrevistado relata que seu filho de 13 anos de idade realiza
o tratamento há três meses, e ele já percebe grandes melhoras, principalmente
em relação ao afeto entre os dois, pois, antes da equoterapia, ele não ti-
nha um vínculo muito afetivo com o filho. Após o início da terapia, afirmou
que o filho tornou-se muito carinhoso: “a criança normal vai e te abraça
e o autista, normalmente, ele não expressa isso, a gente sente muita fal-
ta disso e de uns dias para cá eu venho sentindo que ele tem me apertado,
me abraçado, coisa que ele nunca fez” (Entrevistado 1). O relato desse entre-
vistado mostra que o tratamento com cavalo pode contribuir para que crian-
ças autistas passem a ter melhor interação com a família, porém, baseando-se

Juliana Pereira do Nascimento


412
nessa entrevista, não é possível afirmar que haja uma melhor interação com
outras pessoas além do círculo familiar, pois, de acordo com o entrevistado 1,
geralmente, a pessoa que acompanha o praticante em todo lugar é a mãe,
não podendo responder sobre o que mudou na relação da criança com as
pessoas que não são da família. Segundo o entrevistado 1, a criança tam-
bém apresentou melhora no equilíbrio tanto físico quanto emocional e sua
autoestima também aumentou consideravelmente após a equoterapia, por
causa das atividades com o cavalo serem muito dinâmicas, isto é, a ação
de subir no cavalo e movimentar-se em cima dele faz o paciente sentir-se
confiante por estar realizando movimentos que, a princípio, parecem muito
difíceis. O entrevistado 1 afirmou não saber explicar como o cavalo in-
fluencia no tratamento da criança, mas acredita que a interação com o
animal contribui para o desenvolvimento da mesma.
A entrevistada 2 declarou que seu filho, de 9 anos de idade, pra-
tica equoterapia há mais de três anos, e que houve grande melhora re-
lacionada à flexibilidade da criança. Segundo a entrevistada, antes da
equoterapia o indivíduo apresentava hipotonismo, isto é, dificuldade em
mexer os músculos. Com o tratamento, a criança ficou mais flexível. Ela
também apresentou melhora na concentração, de acordo com a entre-
vistada 2, pois antes da terapia era uma criança muito ausente e agora é
muito concentrada. Assim como na primeira entrevista, o maior progresso
da criança foi na relação afetiva. Essa é uma questão muito importante,
porque uma das principais características do autismo é a dificuldade de
interação com as pessoas, sendo elas da família ou não. Então, com essa
entrevista também é possível notar que a equitação terapêutica pode ser
útil nessa característica do autismo, mostrando que a equoterapia ajuda a
melhorar a interação da criança autista com sua família. É possível perceber
essa evolução na fala da entrevistada 2: “ele ficou uma criança muito chame-
guenta. Quando o autista não tem esse trato, [...] o lance da afetividade posso
te garantir que ficou uma coisa muito grande” (Entrevistada 2). Além de um
melhor relacionamento com a família, essa entrevistada afirmou que a criança
também se tornou muito sociável, frequentando normalmente lugares públicos
como shoppings e parques. Além disso, a entrevistada destacou a relevância
da equipe multidisciplinar, o que enfatiza que a equoterapia não deve ser o

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


413
único tratamento utilizado para a reabilitação da criança autista: “todos têm
de participar, a psicóloga, a fisioterapeuta...” (Entrevistada 2).
O entrevistado 3 afirmou que sua filha de 11 anos de idade pra-
tica equoterapia há nove meses e também obteve melhoras, porém,
diferentemente dos dois outros entrevistados, não percebeu nenhuma
evolução no seu relacionamento com a criança após a equoterapia.
Esse entrevistado contou que a criança apresentava dificuldades de in-
teração quando era mais nova, e como ela tem síndrome de Asperger,
uma patologia menos severa do autismo, esse problema foi supera-
do mais cedo apenas com o tratamento psicológico. Os progressos
apresentados pelo entrevistado 3 foram em relação ao comportamento
da filha, que, antes do tratamento, era uma criança hiperativa e pos-
suía grandes dificuldades de concentração. Com a equoterapia, esses
problemas vêm melhorando. Além desses progressos, o entrevistado 3
contou que atualmente a filha passou para o programa pré-esportivo
no Cervim. Esse fato é algo muito importante para a criança, pois faz
que a mesma vivencie maiores desafios, podendo superar-se a cada
dia, aumentando a sua autoestima e a sua autoconfiança, e mostra que
a equitação terapêutica permite o desenvolvimento das potencialidades
da criança autista.
A quarta entrevista foi realizada com um profissional formado em fi-
sioterapia que trabalha no Cervim há um ano e meio. O entrevistado contou
que as atividades realizadas com crianças autistas devem ser de caráter
lúdico, ou seja, os movimentos têm o intuito de divertir o paciente, a fim
de que o mesmo sinta prazer na realização do tratamento. Para essas ati-
vidades, podem ser utilizados objetos diversos – bolas, bambolês, cordas,
entre outros – que vão criar ambientes e situações que estimulam não ape-
nas a criatividade e a imaginação da criança, como também a capacidade
motora e de raciocínio, algo fundamental para o tratamento do autismo, pois
contribui para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo autista. No Cervim,
a terapia é realizada em conjunto, o que permite a interação do praticante
não apenas com o cavalo, mas com outros pacientes autistas e/ou de outras
patologias e também com os terapeutas.

Juliana Pereira do Nascimento


414
O entrevistado 4 também enfatizou que o tratamento com equoterapia
não ocorre apenas pelo estar montado no cavalo, mas há um processo de
aproximação, isto é, ao chegar no Cervim, o paciente cumprimenta o terapeu-
ta e o animal, acariciando o mesmo, para que haja uma primeira interação.
De acordo com Bréia e Leal (2010), esse processo de aproximação entre o
autista e o cavalo pode acontecer desde o momento em que o cavalo sai da
baia até o retorno do mesmo. A criança pode, com o terapeuta, buscar o ca-
valo, escová-lo e, até mesmo, alimentá-lo. Porém, é essencial garantir que isso
ocorra de forma segura. Assim, é recomendável que isso só aconteça com
pacientes que não apresentem nenhum nível de agressividade.
Segundo o entrevistado 4, o comportamento dos autistas antes da tera-
pia varia de criança para criança, mas, geralmente, eles chegam ao centro
muito agitados e ansiosos. Por esse motivo, é recomendado que os pacien-
tes não cheguem muito tempo antes do horário marcado para que a ansie-
dade não aumente. De acordo com o entrevistado, quando o praticante está
começando a equoterapia, ele demonstra muito medo do cavalo, mas aos
poucos esse sentimento vai desaparecendo.
O comportamento da criança ao longo da terapia também pode
variar de acordo com as características da mesma, segundo o entrevistado 4.
Há praticantes que ficam mais calmos e outros que ficam mais agitados. Além
disso, o terapeuta deve estar preparado para qualquer reação do paciente
durante a terapia, ou seja, é possível que o comportamento dele mude de
forma inesperada e o terapeuta deve saber como agir em qualquer situação:
“ele [o paciente autista] sempre foi muito tranquilo, [mas] um dia ele ficou
agressivo, bateu na estagiária, quis se jogar do cavalo” (Entrevistado 4).
Porém, a maioria das crianças autistas observadas por esse entrevistado
obtiveram melhoras no comportamento. Ele contou que há um paciente no
Cervim que era muito agressivo e batia tanto no cavalo quanto nos terapeutas,
e agora está muito mais calmo. O entrevistado também relatou que sempre
que esse paciente chega abraça a todos e fica ansioso para ver o cavalo. Isso
mostra que a equoterapia ajuda na diminuição da agressividade da criança
autista, contribuindo para a melhora do comportamento social da mesma.
O entrevistado 4 disse ainda que havia um paciente extremamente agitado
que não aceitava o que era proposto pela equipe, fazendo que a sessão

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


415
fosse interrompida. Ao longo do tratamento, ele foi se tornando mais calmo e
conseguindo realizar a terapia até o fim.
A quinta entrevista foi feita com outro funcionário formado em fisiote-
rapia, que trabalha há vinte anos com equoterapia. Esse entrevistado contou
que o interesse pela equitação terapêutica surgiu com a proposta de uma
terapia eficaz, porém não convencional, pois os modelos terapêuticos mais
comuns são realizados em locais fechados e há grande resistência por parte
das crianças em contribuir com o terapeuta. Isso mostra que o diferencial da
equoterapia é que, além de existir um animal como principal contribuin-
te para o paciente, ela é um tratamento realizado ao ar livre no qual o
praticante pode perceber diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo,
o que contribui para a sua reabilitação, ajudando também no desenvol-
vimento das potencialidades de cada paciente, motivando o mesmo a
prosseguir com o tratamento e proporcionando-lhe prazer: “ela [a equo-
terapia] realça justamente o que a criança é capaz de fazer [...]; [esse] é um
fator que traz bastante motivação para ela, para ela a equoterapia é um es-
porte, uma atividade de lazer, uma grande brincadeira [...]. É um tratamento
bastante eficaz, isso eu posso garantir a você, e que temos um paciente
participativo e motivado” (Entrevistado 5).
O entrevistado 5 também comentou que o Cervim não recebe nenhum
incentivo público e, por isso, existe a dificuldade de integrar pacientes de
classes sociais menos favorecidas. Disse que, em geral, na área de reabilita-
ção no Brasil, não há serviços públicos eficientes, fazendo que a população
que necessita desse modelo de atendimento, 30% da população do país,
não conte com atendimento de qualidade, e, por isso, o problema pode se
agravar. O entrevistado informou que, desde o começo do Cervim, trabalha
com crianças autistas, porém teve grande dificuldade na época de encon-
trar na literatura referências sobre autismo e equoterapia. A equipe, então,
realizou pesquisas com outros profissionais da área da equitação terapêu-
tica para entender os efeitos produzidos pelo cavalo na criança autista.
Também mencionou que, durante o período da pesquisa, fez um curso de
formação em teoria da integração sensorial, que diz respeito à organiza-
ção do cérebro em relação às informações recebidas, para que haja uma
resposta adequada da criança, contribuindo para os sistemas do vestíbulo

Juliana Pereira do Nascimento


416
proprioceptivo, somatossensorial e praxia, que estão relacionados com
o desenvolvimento motor e emocional, além de contribuírem para o siste-
ma cognitivo. Essa teoria trata do uso de movimentos para que o paciente
receba estímulos que contribuam para os sistemas citados acima. E como
a equoterapia é um tratamento em que há movimentação, a criança rece-
be diversos estímulos, que são necessários para o tratamento do autismo,
pois a síndrome é caracterizada pela falta de organização do cérebro em
relação às informações. São esses estímulos que proporcionam a melhora
e o desenvolvimento da criança autista. O entrevistado afirma: “o que o
cavalo faz nada mais é do que dar ao nosso paciente, nosso praticante, um
bombardeio sensório motor, através do seu movimento ele estimula bas-
tante o vestíbulo somatossensorial” (Entrevistado 5). Além da questão do
movimento do cavalo, ele também destacou que a criança autista possui
uma sensibilidade muito profunda, e durante a equoterapia isso também
é aproveitado, pois a criança toca o cavalo em diferentes partes, e cada
uma delas apresenta textura diferente, fazendo o praticante receber mais
estímulos sensoriais. Além disso, entrevistado também mencionou que a
criança em tratamento recebe estímulos auditivos e visuais, que são mais
informações que serão organizadas pelo cérebro, dado que o paciente
está em movimento.
O entrevistado 5 afirmou, assim como o entrevistado 4, que o com-
portamento no início da terapia varia de acordo com a criança. Porém,
explicou que, no geral, as crianças quando vão conhecer o cavalo pela
primeira vez sentem medo da ação de subir no animal, fazendo que, no pri-
meiro momento, haja uma rejeição por parte da criança: “essa inseguran-
ça de tirar o pé do chão e tentar ficar em cima do animal é que deixa ele
[o autista] mais estressado” (Entrevistado 5). Conforme o tempo de trata-
mento do praticante, a equipe o ajuda a mudar esse comportamento, “mas
isso é facilmente contornado e depois ele [o autista] evolui muito bem e nor-
malmente a gente vê que eles gostam muito das atividades” (Entrevistado 5).
O entrevistado 5 enfatizou que muitos praticantes autistas em tratamen-
to no Cervim avançam para o programa pré-esportivo da equoterapia, e ex-
plicou que, como o autismo é uma síndrome do comportamento e não uma
deficiência física, de acordo com o desenvolvimento da criança ao longo do

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


417
tratamento, a mesma não possui dificuldade em fazer a equoterapia de forma
esportiva, inclusive existem pacientes no centro que são atletas do hipismo.
Isso mostra que a evolução da criança autista que pratica equoterapia é muito
grande, e prova que esse modelo de tratamento destaca as potencialidades
do praticante, aumentando assim a sua autoconfiança e autoestima.
Segundo esse entrevistado, a equoterapia contribui muito para o
desenvolvimento da criança autista desde que haja um acompanhamen-
to de vida e todas as terapias necessárias para a mesma. Para ele, o
cavalo contribui das seguintes formas: o “bombardeio” de estímulos que
proporciona contribui para o tratamento do autismo e para o relaciona-
mento social, pois a criança desenvolve melhor interação, além de sentir
prazer em realizar a equoterapia e de poder praticar um esporte. Com
esses benefícios gerados pela equoterapia, a criança passa a ter uma
vida mais saudável e segura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O autismo infantil é um transtorno que afeta o desenvolvimento


da criança, fazendo que a mesma tenha dificuldades na comunicação e
na interação e apresente problemas em seu comportamento e no sistema
cognitivo. O autismo também pode gerar disfunções motoras. As características
do autismo são: agressividade, ausência de atenção, estereotipias, hipotonia,
desinteresse, falta de comunicação e interação e dificuldades de memorização,
raciocínio e linguagem.
Por ser uma doença invasiva do desenvolvimento, a criança autis-
ta pode apresentar atrasos no aprendizado e isso, somado aos problemas
de comunicação, faz que o autista se torne um indivíduo não integrado à
sociedade, diminuindo assim sua qualidade de vida. Não existem dados so-
bre as causas dessa doença, e também não há cura para o autismo, porém
há diversos tratamentos que podem amenizar as características referentes ao
autismo, proporcionando maior qualidade de vida ao paciente. Os tratamen-
tos mais comuns são aqueles com medicamentos e com psicólogos e terapia

Juliana Pereira do Nascimento


418
ocupacional. Atualmente, existem modelos terapêuticos alternativos que vêm
se mostrando eficazes na busca de uma melhora para a criança autista.
A equoterapia consiste na utilização do cavalo na produção de estí-
mulos que fazem o praticante reorganizar as suas percepções, gerando be-
nefícios físicos, psicológicos e sociais. Neste trabalho, tentamos compreen-
der como a equoterapia contribui para o tratamento de crianças autistas,
descrever seus benefícios, entender o papel do cavalo durante as sessões
e conhecer a visão dos responsáveis por crianças autistas em tratamento.
Por meio de pesquisas bibliográficas e de campo, buscamos inves-
tigar as melhorias físicas e psicossociais determinadas pelo uso do ca-
valo de forma terapêutica. A pesquisa de campo aponta a satisfação
dos entrevistados em relação ao desenvolvimento gerado pela equote-
rapia, principalmente nas áreas afetiva e social. As entrevistas mostram
progressos, mas também alertam que a equitação terapêutica deve ser
realizada em conjunto com outras modalidades, de acordo com as ne-
cessidades específicas de cada paciente.
O trabalho também mostrou as contraindicações da atividade, pois a
equoterapia não é adequada para todas as pessoas. Outros pontos negati-
vos apresentados são a falta de incentivo público para a equitação terapêu-
tica e a carência de centros públicos de equoterapia, tornando-a elitizada, e,
assim, diminuindo a qualidade de vida de crianças autistas que não podem
realizar o tratamento.
Em suma, a equoterapia é um tratamento que pode beneficiar pacien-
tes com diversas doenças, tanto físicas quanto psicológicas, quando realizada
de acordo com os princípios e fundamentos estabelecidos pela Associação
Brasileira de Equoterapia. Em relação às crianças autistas, pode-se notar que,
mesmo com a limitação da amostra, existe um progresso significativo para
aqueles que praticam a equitação terapêutica em conjunto com outros trata-
mentos específicos para suprir todas as suas necessidades.
Dessa forma, torna-se uma medida de grande importância que a
equoterapia seja divulgada, para que mais pessoas busquem essa modali-
dade terapêutica. Também é essencial que sejam criados centros públicos
para atender toda a população, independentemente de classe social, dan-

O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


419
do uma melhor qualidade de vida não apenas às crianças, mas também
às pessoas que possuem outras doenças que podem ser tratadas com a
equitação terapêutica.

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O uso da equoterapia no tratamento de crianças autistas


421
O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO
DO COMPLEXO DA MARÉ NA
METRÓPOLE CARIOCA

Laís Clemente de Oliveira*

INTRODUÇÃO

Durante o século XX, a cidade do Rio de Janeiro foi marcada por um


intenso processo de urbanização. Nesse período, o território carioca conta-
va com mais de meio milhão de habitantes, que sofriam com os problemas
clássicos da cidade moderna: moradia e saneamento. Enquanto as elites dei-
xavam o velho centro em busca de amenidades nos arrabaldes, um vasto con-
tingente de população pobre ocupava cortiços insalubres situados nos centros
urbanos (VAZ, 1994). Com o desenrolar desse processo, o Rio de Janeiro foi
modificando o seu modo de vida e o seu espaço urbano, com uma crescen-
te densidade populacional e a intensificação do comércio.
As intervenções do Estado na área central da cidade contribuíram pa-
ra que as classes populares deixassem as suas moradias. Sem recursos para
pagarem outras formas de habitação, elas foram construindo barracos nos
morros próximos, onde já se erguiam casebres rústicos. O crescimento urbano
progressivo, alimentado pelas fortes migrações, fez surgir as favelas.
Morar nessas áreas era talvez a única forma de inserção social dos
novos moradores na cidade moderna. Era na favela onde os excluídos da

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Psicologia na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e atua em uma organização não governamental no Complexo
da Maré. No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou com a
orientação do professor-pesquisador Paulo Henrique Barbosa de Andrade (mestre em Educação),
do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional em Saúde (Labform). Contato:
laisoliveirarj93@gmail.com.

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


423
economia e da sociedade podiam construir um casebre, mesmo que frá-
gil; era na favela onde os migrantes se encontravam e onde se formavam
laços de vizinhança; era na favela onde redes sociais promoviam a in-
serção social, mesmo que de forma marginal, dos excluídos (VAZ, 1994).
É nesse contexto da história da cidade que os morros com barracos e
pequenas construções começaram a tecer seus locais no Rio de Janeiro,
fazendo surgir assim as primeiras favelas, que ficaram conhecidas como
um padrão de moradia das classes populares.
Segundo Vaz (2010), inúmeras favelas foram se consolidando no Rio
de Janeiro em decorrência do processo de urbanização; uma delas foi o que
hoje se conhece por Complexo da Maré. Esse território, que está situado às
margens da baía da Guanabara, era a franja pantanosa da planície ao norte
da cidade, onde, já no final do século XIX, alguns núcleos haviam se formado
ao redor das pequenas estações ferroviárias, em um ambiente ainda rural. A
partir dos anos 1930, a região de ocupação rarefeita foi saneada, designada
como região industrial urbanizada e atravessada pelo mais importante eixo
viário metropolitano, a avenida Brasil, inaugurada em 1946, como indicador
da intensa expansão urbana da época.
O Complexo da Maré não pode ser caracterizado como uma
favela apenas, e sim como um complexo de favelas, ou seja, várias co-
munidades diferentes juntas, como se fossem vários territórios distintos,
ou então uma quase-cidade informal: complexa Maré. Na verdade, a
Maré é um dos maiores conjuntos urbanos de habitação popular no
país, no qual inúmeras modificações foram realizadas nas últimas dé-
cadas. Vale ressaltar que o território sofreu inúmeras alterações e, por
isso, a própria Maré que deu nome ao complexo tornou-se inexistente:
foram tantos aterros que o mar praticamente desapareceu.
Ao observar, nos dias de hoje, que o Rio de Janeiro está em cons-
tante processo de urbanização, é importante lembrar que o processo
de favelização também vem se disseminando pelo espaço urbano, prin-
cipalmente em áreas já consolidadas. Com isso, as favelas estão em
crescimento constante, sendo vistas apenas como fonte de pobreza e
insalubridade urbana.

Laís Clemente de Oliveira


424
Porém, é interessante mostrar que morar em favelas possui suas van-
tagens, podendo trazer benefícios para os seus moradores. Um exemplo é
o Complexo da Maré, que, apesar de ser para muitos uma barreira física
e social para o desenvolvimento urbano da cidade, é uma região que possui
vantagens locacionais atraentes para uma população que encontra enorme
dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal. Dentre essas van-
tagens, destacam-se a proximidade a importantes vias da cidade (avenida
Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha); a proximidade a ambientes onde
há oferta de trabalho para pessoas com baixa qualificação, principalmente no
setor de serviços; e o custo de transporte, fator que se torna cada vez mais im-
portante no processo de aquisição de um emprego formal (VARELLA, 2002).
Sendo assim, mesmo com baixos índices sociais, o Complexo da Maré
ainda apresenta força de atração populacional e, portanto, pode ser con-
siderado um importante território da cidade do Rio de Janeiro.

O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

Derrubar cortiços, construir grandes avenidas, evitar a proliferação


de doenças e, sobretudo, impedir que a classe proletária se instalasse na
área central da cidade eram as idealizações da classe dominante durante o
século XX. Segundo Santos (2002), a paisagem é o domínio do visível e não
se forma apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores,
sons etc. É o conjunto de objetos que o nosso corpo alcança e identifica. Na
visão da elite, essa paisagem era desestruturada pela classe proletária, pois
ela vivia em condições insalubres e apresentava altos índices de doenças.
Para manter a paisagem urbana da área central, a classe dominante
carioca, ao lado do Estado, aumentava o custo de vida desse território,
por meio de medidas como grandes investimentos em infraestrutura ur-
banística; por essa razão, impediam a ocupação mais efetiva das classes
populares. Consequentemente, a cidade passou a ser caracterizada por
uma divisão espacial e econômica, na qual poucos eram beneficiados e
muitos esquecidos. Para concretizar tais fatos, no período de governo do

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


425
presidente Rodrigues Alves (1902-1906), houve a destruição de cortiços e
a construção de praças, jardins e avenidas. Com essas principais mudan-
ças, nasce o Rio de Janeiro com uma nova face.
Maiolino (2008) afirma que o processo de urbanização do Rio de
Janeiro despertou esperança e alívio na elite carioca. Isso porque tal projeto
foi pensado como um modelo de cidade higiênica por meio do qual o Rio
de Janeiro iniciava suas mudanças rumo à modernidade e ao progresso.
Neste mesmo contexto, Backheuser afirma:

Hoje que a administração pública deixando o tempo teórico dos


relatórios espalhafatosos envereda afinal pelo terreno da execução
dos melhoramentos, hoje que se vai remodelando a velha metró-
pole rasgada por avenidas em todos os sentidos, demolindo-se e
reconstruindo-se sofregamente, hoje que se sente, graças a isso,
a esperança de se ver em breve um Rio de Janeiro formoso e hi-
giênico, é hoje também ocasião de se voltarem as vistas para as
lúgubres moradas onde vegeta a população indigente da cidade.
(BACKHEUSER, 1905)

O Rio de Janeiro precisava tornar-se uma nova capital. Por essa razão,
era primordial haver uma reformulação estrutural de toda a área central, a
fim de que a cidade se transformasse em um espaço moderno e civilizatório,
e consequentemente, um local de bem-estar e modelo urbanístico para di-
versas outras cidades atrasadas estruturalmente.
Em 30 de dezembro de 1902, Francisco Pereira Passos é diretamen-
te nomeado, pelo então presidente Rodrigues Alves, prefeito do Distrito
Federal, no período 1902 a 1906. O novo prefeito encontrava uma cidade
com fortes características coloniais que, pela insalubridade, era campo
fértil para inúmeras epidemias que atacavam toda a população, dentre as
quais a febre amarela, a varíola, a malária e a tuberculose. Tal situação
decorria, principalmente, do movimento portuário da cidade e da aguda
crise de moradias por que passava, pois a maior parte de sua população
vivia nos superlotados “cortiços”. Além disso, toda essa situação era agra-
vada pela falta de abastecimento de água e a inexistência de uma rede de
esgotos eficiente (VÉRAS, 1999).

Laís Clemente de Oliveira


426
De acordo com Véras (1999), no período da administração de
Pereira Passos, o Rio de Janeiro passou por grandes obras que vão mudar
definitivamente o aspecto da cidade colonial, transformando-a em uma
cidade belle époque, inspirada no modelo parisiense.
A reformulação da cidade se inicia com diversas intervenções do Estado,
uma das quais foi a Reforma Pereira Passos (1903-1906). “Era preciso acabar
com a ideia que o Rio era sinônimo de febre amarela e de condições anti-
higiênicas; transformá-lo em um verdadeiro símbolo do ‘novo Brasil’” (ABREU,
1997, p. 42). A partir dessa ideia adotada por parte da população carioca, o
projeto de reforma foi implantado entre os anos de 1903 a 1906 com o obje-
tivo de sanear e urbanizar a cidade do Rio de Janeiro.
Com novas visões econômicas e ideológicas, a refuncionalização do
espaço urbano da cidade não condizia com a existência da classe proletá-
ria em seu núcleo central. Por essa razão, a Reforma Pereira Passos deixa
claro quem deve ou não estar/habitar nesse novo espaço urbano carioca.

No cortiço, a superpopulação e a precariedade dos serviços de


infraestrutura (água, esgoto, lixo, energia e gás) somavam-se à pre-
cariedade higiênica e à ausência de conforto e privacidade. Obvia-
mente, nele plasmaram-se padrões peculiares de cultura popular,
bem como prosperaram traços de violência, como por exemplo, a
capoeiragem. A República se propôs a cancelar os cortiços por ra-
zões urbanísticas e sanitárias explícitas, em busca de uma configu-
ração de prestígio. A reforma urbanística nada propôs em relação
aos quarteirões lindeiros à área reformada, tampouco sugeriu
nenhum novo padrão de controle policial. Não realizou qualquer
política habitacional para os pobres. Simplesmente não tomou
considerações a moradia para o povo. Desconheceu o problema.
Parecia que, para os homens da Reforma Passos, o povo era invi-
sível. (LESSA, 2000, p. 296)

De acordo com França (2008), do período da Reforma Passos até


os dias de hoje, várias remoções, intervenções e reconstruções foram im-
plantadas pelo poder público na busca de soluções para o “problema fa-
vela”; porém, no decorrer desse processo urbanístico, ao contrário do que

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


427
se projetava para a Cidade Maravilhosa, as favelas se consolidaram, cres-
cendo em espaço físico e demográfico. Não obstante a consolidação das
favelas nos espaços urbanos do Rio de Janeiro, o grau de preconceito e a
carga de intervenções do Estado, com apoio de algumas classes da socie-
dade carioca, com as favelas e os seus habitantes não diminuiu.
Com o surgimento de novas formas de moradias, a eliminação das
contradições buscada por Pereira Passos trouxe outras inúmeras contradições,
pois a classe proletária foi obrigada a deixar as suas moradias no centro e,
com isso, os barracos passaram a ser construídos em terrenos próximos à
metrópole. Vale ressaltar que esses locais não acomodavam toda a demanda.
Logo, a única saída para as classes populares foi a sua instalação nas áreas
próximas ao centro, onde houve um aumento da concentração populacio-
nal por causa da grande geração de empregos no setor terciário e na indústria
(SANTOS, 2002).

Cabe assinalar que as intervenções executadas naquele mo-


mento da Primeira República (1889-1930) não se enquadra-
vam ainda no que se concebe como uma reforma urbana,
mas tinham como mote ações localizadas, que permitissem
criar essa nova imagem da cidade, em conformidade com os
modelos estéticos europeus, permitindo às elites dar materia-
lidade aos símbolos de distinção relativos à nova condição.
(CARDOSO e RIBEIRO, 1996, p. 59)

Antes de classificar a Reforma Pereira Passos como reforma urbana


ou reforma urbanística, cabe assinalar a diferença entre elas: entende-se
reforma urbana não como uma remodelação do espaço físico, e sim como
uma reforma social estrutural, com forte e evidente dimensão espacial, tendo
por objetivo melhorar a qualidade de vida da população, especialmente em
sua parcela mais pobre e elevar o nível de justiça social. Em contrapartida,
uma simples reforma urbanística costuma estar atrelada a um entendimento
estreito do que seja o desenvolvimento urbano, ou seja, implica uma
modernização da cidade cujo objetivo é promover o embelezamento da cidade
sem focar na promoção da justiça (BENCHIMOL, 1953). Por isso, a Reforma
Passos deve ser classificada como uma reforma urbanística, tendo sido autoritária

Laís Clemente de Oliveira


428
em seus métodos e conservadora em seus objetivos, e contribuindo para a
instalação da população pobre nos subúrbios, diminuindo assim a qualidade
de vida desse grupo social. Vale ressaltar que o projeto contribuiu também
para o desenvolvimento da desigualdade e não da justiça social, pois apenas
beneficiou uma parte da população, ou seja, teve um caráter excludente.
Por causa do aumento populacional na cidade, há crescente demanda
de moradia para trabalhadores nas áreas centrais do Rio de Janeiro. Por
essa razão, as novas formas de habitação designadas como favelas acabam
se estendendo para outros locais, deixando de ser habitações provisórias e
adquirindo caráter mais permanente. Essas novas formas de moradia cresce-
ram acentuadamente, iniciando o processo conhecido como favelização.

O PROCESSO DE FAVELIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

O acréscimo de favelas no Rio de Janeiro é uma resposta ao au-


mento populacional e à solidificação de aglomerados urbanos que nas-
ceram ainda no século XIX. A crise de moradias para a população pobre
do Rio de Janeiro foi uma das características marcantes da cidade, prin-
cipalmente em suas áreas centrais. Tal situação tornava-se ainda mais
grave por causa dos fluxos migratórios que a cidade recebia constante-
mente. Se a política de incentivo à imigração contribuía para alimentar
esse fluxo, a liberação gradativa da mão de obra escrava, e a comple-
ta abolição da escravidão em 1888, foram fatores que, decididamente,
favoreceram o crescimento populacional do Rio de Janeiro (RIBEIRO,
2000, p. 63-98).
O processo de favelização aconteceu, principalmente, porque
grande parte da população pobre não podia mais se localizar em “áreas
nobres” do território. Isso ocorreu porque a renda mensal dessa população
não cobria os custos da moradia na cidade, como transportes, aluguéis
abusivos e preços altos de produtos comercializados. Por essa razão, a
classe proletária começou a se expandir para locais onde o custo de
vida era menor, uma vez que grande parte era mal remunerada em seus

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


429
ofícios, por possuírem baixo índice de escolaridade (MARQUES, 2007).
Assim surgem as conhecidas favelas, única alternativa de moradia para
essa população, um novo espaço urbano no Rio de Janeiro, identificado
como fonte de violência e pobreza.
Com os investimentos em áreas determinadas da cidade, o preço
da terra começa a aumentar na restrita área urbana alimentada por
uma boa infraestrutura. Em meio à carência generalizada, essa área
concentra a pavimentação, os transportes, a água, os esgotos, a ener-
gia elétrica, as praças e os jardins. Por essa razão, os proprietários das
áreas centrais ficam favorecidos e, como parte desse valor vem dos in-
vestimentos públicos aplicados nas obras urbanas, é fundamental para
os proprietários de terra e para o nascente capital imobiliário o controle
sobre os recursos públicos (MARICATO, 1997).
As favelas são modelos de moradia com configuração socioes-
pacial extremamente desigual na cidade do Rio de Janeiro. Segundo
Queiroz (2003), elas se formaram ainda século XIX, ocupando áreas
inutilizáveis, ao menos em um primeiro momento, pelo mercado imobi-
liário. Essas formas de ocupação difundiram-se pelo tecido urbano ca-
rioca a partir dos anos 1920, quando ganharam destaque na estrutura
urbana e política da cidade. Como as favelas localizavam-se em locais pró-
ximos ao mercado de trabalho e como, além disso, o custo de vida nelas era
relativamente baixo, essas novas formas de moradia se tornaram elementos
importantes para o desenvolvimento econômico da cidade, pois permitiram a
redução do peso dos fatores moradia e transporte no custo da mão de obra.
Entre as primeiras áreas a serem favelizadas, podemos citar o
morro da Providência. Considerada oficialmente a primeira favela do Rio
de Janeiro, localizada atrás do prédio da Central do Brasil, foi nomeada
inicialmente no final do século XIX como morro da Favela (VAZ, 1994).
Por volta de 1897, a área começa a ser habitada por ex-combatentes da
Guerra de Canudos como resultado dos entraves políticos e burocráticos
que impediam a construção dos alojamentos prometidos pelo governo
para que esses soldados residissem. Por essa razão, os ex-combatentes
ocuparam provisoriamente a área, mas acabaram permanecendo nela. Com
a Reforma Pereira Passos, a população da área aumentou acentuadamente.

Laís Clemente de Oliveira


430
Valla (1985) afirma que, em quase todas as favelas do Rio de Janeiro,
casas de alvenaria, ainda que mal-acabadas, dominavam a paisagem duran-
te o período de 1903 a 1906, e a dotação de infraestrutura técnica variava
bastante, de acordo com o tamanho, a localização, a antiguidade e o grau
de consolidação do assentamento. A noção geral das favelas como espaços
residenciais pobres e segregados permanece, sem dúvida, válida, se bem que
algumas delas, dependendo de sua localização (como a Rocinha, na Zona
Sul do município do Rio de Janeiro), passaram a ser alvo, a partir do ano
2000, de um afluxo de migrantes intraurbanos, constituído por elementos de
uma classe média baixa empobrecida pela crise e em fuga de aluguéis altos
e impostos.
Com o crescimento populacional do Rio de Janeiro, surge a necessi-
dade de melhorias no território; por isso, são realizados alguns projetos de
urbanização na cidade que serão tratados mais especificamente a seguir.

OS PROJETOS DE URBANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

Áreas favelizadas começam a crescer rapidamente no Rio de Janeiro,


com isso a administração municipal passa a atuar ao lado do Poder Executivo
Federal no processo urbanístico na cidade. Entre os anos 1928 e 1930, entra
em ação o Plano Agache, solicitado pelo prefeito da cidade Antônio Prado
Júnior, iniciando uma proposta de intervenção urbanística para alcançar uma
cidade mais moderna. Tal plano de embelezamento urbano não atingiu to-
dos os pontos do Rio de Janeiro; no entanto, abriu as portas para uma nova
perspectiva de urbanismo no Brasil, pois o projeto, de fato, interviu em alguns
locais da cidade. Por essa razão, esse projeto acabou por se tornar um exem-
plo de urbanização na cidade.
Com o intuito de resolver problemas funcionais da cidade, geran-
do um ideal de capital e de sociedade moderna, o arquiteto e urba-
nista Alfred Agache propôs algumas transformações que melhorassem
a paisagem do Rio de Janeiro. Constrói-se então a avenida Presidente
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na década de 1940 e realiza-se o zoneamento da cidade, in-

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


431
cluindo áreas verdes reservadas. Ainda em relação às estruturas viá-
rias, Agache planejou a construção de três linhas de trem e a unifica-
ção dos terminais ferroviários da Leopoldina e da Central do Brasil, na
praça da Bandeira. O Plano Agache erradicou conjuntos habitacionais
considerados impróprios para se habitar do centro da cidade do Rio de
Janeiro e também realizou a separação das classes sociais entre o es-
paço urbano. Entretanto, são construídas habitações nos subúrbios que
atendiam as demandas básicas para receber as pessoas retiradas das
favelas erradicadas.
Com o aumento do processo de urbanização na cidade, o setor in-
dustrial cresceu acentuadamente. A crescente industrialização instigou, con-
sequentemente, a aceleração do processo de urbanização. Assim, ambos
os processos estão intimamente ligados, pois as unidades fabris eram instala-
das em locais nos quais houvesse boa infraestrutura, mercado consumidor e
mão de obra barata disponível. Com o crescimento do setor industrial, prin-
cipalmente do setor têxtil e alimentício, no século XX, o Rio de Janeiro neces-
sitava de muitos trabalhadores para as unidades fabris, na construção civil, o
comércio e os serviços oferecidos. Por essa razão, milhares de migrantes se
deslocavam do campo para a cidade (MIRANDA, 2006).
Com o crescimento do setor industrial durante a década de 1990,
outras áreas industriais foram ganhando espaço na cidade, como o setor
automobilístico (WOMACK, JONES e ROSS, 1992). Por causa do cresci-
mento da cidade, o automóvel passou a ser um bem necessário e aces-
sível à classe alta da população. Por essa razão, o Rio de Janeiro passou
a encontrar, ainda nessa década, suas vias de acesso congestionadas, seja
pelo grande aumento do número de veículos nas ruas, seja pelo aumento
da concentração da população, que começava a habitar grande prédios
ou trabalhar em edifícios comerciais. Para amenizar tal emblema, a cidade
do Rio de Janeiro encontrou uma saída: o Plano Doxiádis.
Na década de 1960, o governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda
(1960-1965) sugeriu ao arquiteto grego Constantínos Doxiádis que reali-
zasse um projeto para solucionar os engarrafamentos no Rio de Janeiro.
Doxiádis logo propôs a construção de cinco linhas de acesso para diferentes
pontos da cidade: a Linha Vermelha (ligando São Cristovão à cidade de São

Laís Clemente de Oliveira


432
João de Meriti); a Linha Amarela (ligando a Barra da Tijuca à ilha do Fun-
dão); a Linha Verde (ligando a via Dutra à Gávea); a Linha Marrom (ligando
o centro a Santa Cruz) e a Linha Azul (ligando a Zona Sul à Barra da Tijuca).
O Plano Doxiádis, também conhecido como Plano Policromático, foi conclu-
ído no ano de 1963; no entanto, só foi publicado em 1965, quando Carlos
Lacerda deixava o seu cargo. O sucessor de Carlos Lacerda, governador
Raphael de Almeida Guimarães (1966-1970), não colocou o Plano Doxiádis
em prática (BORGES, 2009).
Ainda em 1975, quando o estado da Guanabara se fundiu com
o estado do Rio de Janeiro, o Plano Doxiádis havia permanecido uma
teoria. Em 2002, o então governador Leonel Brizola (1983-1987) iniciou
a implantação de modificações na cidade previstas no Plano Doxiádis,
construindo parte da Linha Vermelha, uma extensão de 7 km, entre São
Cristovão e a ilha do Fundão. Dois anos depois, a Linha Vermelha foi
completada, com a construção de 14 km de pista, ligando a ilha do
Fundão à rodovia Presidente Dutra. Em 1995, o prefeito César Maia,
em seu primeiro mandato (1993-1997) continuou com a implantação
do Plano Doxiádis. Construiu-se então a Linha Amarela, dividida em três
lotes: Lote 1, ligando a avenida Ayrton Senna, na Barra da Tijuca, à
avenida Geremário Dantas, em Jacarepaguá; Lote 2, ligando a avenida
Geremário Dantas à rua Pernambuco, no Encantado; e Lote 3, ligando
a rua Pernambuco à avenida Novo Rio, em Bonsucesso. A Linha Verde
planejada pelo arquiteto Doxiádis começou a ser construída com a ave-
nida Pastor Luther King (antiga avenida Automóvel Clube) e o túnel Noel
Rosa; no entanto, não foi finalizada (BORGES, 2009).
O Plano Doxiádis, embora não tenha sido concluído, ajudou a dimi-
nuir a retenção do trânsito, reduzindo o tempo de viagem para diferentes
pontos do Rio de Janeiro. Até hoje a Linha Vermelha e a Linha Amarela são
importantes vias de locomoção da cidade. Embora essas linhas tenham
solucionado em parte o trânsito caótico do Rio, ainda existem problemas
em relação a congestionamentos, pois há apenas a avenida Brasil para
ligar a Zona Oeste ao centro e à Zona Sul (BORGES, 2009). Por esse mo-
tivo, qualquer imprevisto na via, seja uma chuva ou mesmo um acidente,
faz o trajeto de trinta minutos se transformar num trajeto de horas.

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


433
A outra linha de acesso projetada por Doxiádis foi a Linha Azul,
que facilitaria o acesso da Zona Oeste à Zona Sul. No entanto, essa
linha não foi construída, e esse percurso é longo e demorado. A Linha
Marrom, que ligaria o Centro a Santa Cruz, cortando a Zona Oeste,
ajudaria a diminuir o congestionamento e o número de veículos na
avenida Brasil, pela oferta de outra opção para os cariocas se desloca-
rem; também agilizaria e encurtaria o tempo de viagem da população
(BORGES, 2009).
Segundo Márcio Piñon de Oliveira (2008), no final do século XX,
o desenvolvimento industrial e o crescimento populacional se acentuou
na cidade, e o Rio de Janeiro se depara com a necessidade de passar
por um novo plano de remodelação. Por isso, no período 1995 a 2000
realiza-se o Projeto Rio Cidade, que integrava um dos projetos do
Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. Esse projeto começou
a ser realizado na administração municipal do prefeito César Maia,
em seu primeiro mandato, e visava o embelezamento da paisagem
urbana e a melhoria da infraestrutura da cidade do Rio de Janeiro
por meio da recuperação e da transformação de locais já desgastados
pelo tempo, transformando-os em ruas, praças e áreas de lazer que
proporcionassem bem-estar e conforto aos seus usuários, revitalizando
ainda as áreas do ponto de vista econômico.
Diferentemente dos projetos de urbanização ditos anteriormente, o
Projeto Rio Cidade realizou diversas intervenções urbanas nos locais mais
importantes dos principais bairros cariocas, ou seja, esse projeto de urba-
nização atuou em áreas que tinham irregularidades e, com isso, realizou
intervenções em diferentes localidades. Por essa razão, o Projeto Rio Ci-
dade não deve ser interpretado como um plano de reforma urbana que
modificou os meios de circulação da cidade como o Plano Agache – com
a construção da avenida Presidente Vargas – e o Plano Doxiádis – com a
construção das principais vias de acesso do território. Assim, compreende-
se o Projeto Rio Cidade não como um projeto que transformou toda a
rotina urbana, e sim como um plano que solucionou problemas específicos
de cada área da cidade.

Laís Clemente de Oliveira


434
De acordo com Márcio Piñon de Oliveira (2008), o Projeto Rio Ci-
dade foi dividido em dois momentos: no primeiro momento, o Rio Cidade I,
o projeto beneficiou 15 localidades diferentes: Bonsucesso, Penha, ilha
do Governador, Tijuca, Méier, Centro, Copacabana, Leblon, Madureira,
Catete, Botafogo, Pavuna, Vila Isabel, Campo Grande e Ipanema; no
segundo momento, o Rio Cidade II, beneficiou também 14 bairros do
Rio de Janeiro: Bangu, Irajá, Madureira, Santa Cruz, Realengo, praça
Seca, Haddock Lobo, Ramos, Campo Grande, Marechal Hermes, Rocha
Miranda, largo do Bicão, Grajaú e Santa Teresa. A realização desses
projetos de urbanização mais importantes deu nova face ao Rio de
Janeiro. Entretanto, tais projetos só foram implantados em bairros formais
da cidade, não abrangendo as suas favelas.
É usual caracterizar as favelas como áreas marginalizadas e com
grande índice de violência e tráfico de drogas. Entretanto, esse tipo
de aglomerado é um mercado informal de habitação para aquelas
pessoas que não possuem acesso a habitações formais nas áreas
centrais da cidade. Apesar de ser um local de baixa renda, a favela e os
territórios formais estão completamente interligados. Ambos têm grande
proximidade territorial, mas, no que diz respeito às condições sociais
e econômicas, há um grande desnível. As favelas são caracterizadas
por péssima infraestrutura, insalubridade, irregularidade urbanística e
grande índice de habitantes. Em relação à população abrangente nas
favelas, segundo Vaz (2010), as estimativas estão oscilando entre 1,3
milhão e 2 milhões de habitantes para uma população total da cidade
de 6.161.047 habitantes.
Infelizmente, o assunto da remoção e realocação dos habitantes
das favelas para áreas distantes da cidade ainda continua em pauta,
principalmente no governo do prefeito Eduardo Paes, que, em 2010,
anunciou a remoção de oito favelas localizadas em áreas de risco. Ape-
sar disso, o processo de urbanização das favelas transformou-se em um
direito necessário, que abrange desde os campos social e político, até
questões do âmbito cultural ou da estética.

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


435
O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DAS FAVELAS

As favelas são reconhecidas já como um proble-


ma secular na dinâmica da urbanização carioca.
Ao longo desses cem anos de existência, foram
glorificadas e criticadas, tendo sido objeto de
algumas iniciativas do poder público no sentido
de enfrentar o desafio que representavam para
a sociedade carioca. Já nos anos 20 e 30 deste
século [século XX], as favelas são criticadas e con-
sideradas como “manchas” na paisagem urbana
da cidade, sendo invariavelmente recomendada a
sua extinção. Os planos e regulamentos urbanís-
ticos (aí incluindo o plano Agache) as colocavam
fora da legalidade urbana, recomendando a sua
remoção, sob argumentos inspirados, principal-
mente, no sanitarismo, mas que também incluíam
aspectos funcionais e estéticos.
Adauto Lúcio Cardoso

A esse respeito Valla (1985) afirma que a sociedade brasileira sem-


pre teve dificuldades para aceitar os assentamentos precários – ocupações
“irregulares”, loteamentos clandestinos e favelas – que surgem nas cida-
des. Para o senso comum, essas áreas são fruto da desordenação e da
ausência do poder público nas cidades. Historicamente, o caos urbano
era visto, em geral, como fruto do crescimento desordenado das metró-
poles, mas o panorama encontrado pode ser explicado pela formação
histórica e política do país.
Favelas, cortiços, palafitas são entendidos, na maioria das vezes,
como áreas marginalizadas, e não como alternativas de moradia para
aquelas famílias que não têm acesso ao mercado formal de habitação e aos
serviços públicos.
Os programas de urbanização de assentamentos precários, como o
Favela-Bairro, têm origem na atuação pontual do poder público nas áreas
de baixa renda, com o objetivo de implantar uma infraestrutura de sanea-
mento básico mínima, que, muitas vezes, não atende efetivamente às ne-
cessidades, nem da comunidade residente, nem dos moradores do entorno.
Embora não seja uma prática consensual, a “urbanização de favelas” evo-

Laís Clemente de Oliveira


436
luiu no Rio de Janeiro de forma gradativa, acompanhando o processo de
democratização do país (VALLA, 1985).
O processo de urbanização de favelas implica atender as deman-
das das populações que nela habitam, com a melhoria da infraestru-
tura e uma maior integração com a cidade considerada formal. Isso
acarreta uma melhoria parcial nas condições de vida de seus morado-
res. Para que esse processo se concretizasse, foram realizados progra-
mas sociais, como o Favela-Bairro durante o governo do prefeito César
Maia, que visava integrar os territórios informais com a cidade formal e
também efetivar ações integradas físicas, econômicas e sociais. Na pri-
meira fase desse programa, ocorrida no ano de 1994, a meta, embora
não tenha sido concretizada integralmente, era solucionar os principais
problemas na favela, contribuindo para a melhoria da infraestrutura,
englobando a erradicação da insalubridade e a implantação de servi-
ços sociais.
O Programa Favela-Bairro além de ser caracterizado como um grande
projeto de urbanização, também é conhecido como um projeto de integração.
Isso porque realizou intervenções físicas nas favelas e também contribuiu para
o desenvolvimento urbano e social de algumas favelas do Rio de Janeiro,
levando, assim, desenvolvimento econômico estrutural de diferentes pontos
da cidade. Vale ressaltar que esse projeto realizou programas que integravam
a cidade com a favela, contribuindo para que ela deixasse de ser vista como
um local marginalizado e excluído da metrópole urbana.
Para que algumas favelas se tornassem locais com infraestrutura
adequada, o Programa Favela-Bairro construiu serviços de abastecimento
de água, esgoto sanitário, circulação viária, drenagem pluvial, contenção
e estabilização de encostas, coleta de lixo, limpeza e iluminação públicas,
e educação sanitária e ambiental. Além disso, para a implantação de
lazer no local, foram construídos parques, praças e jardins. A intervenção
realizada na primeira fase do programa atingiu 62 comunidades distintas.
Na segunda fase do programa, o programa de intervenção contemplou
89 favelas e 17 loteamentos e visava à urbanização integrada, à
atenção à criança e ao adolescente, à geração de trabalho e renda e

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


437
também ao desenvolvimento institucional (RANDOLPH, 2001). O
Programa Favela-Bairro, no entanto, não teve continuidade, pois não
apresentava condições à manutenção e conservação das melhorias.
Apesar dos benefícios trazidos por esse programa de urbanização,
a pesquisa sobre mercado imobiliário e mobilidade residencial nas favelas
da cidade do Rio de Janeiro (ABRAMO, 2003) indica que a intervenção
urbanística também influenciou o perfil dos moradores da favela, que aca-
bou por sofrer mudanças.
Segundo Abramo (2003), as intervenções do Programa Favela-Bairro,
apesar de terem trazido melhorias, o que implicou melhores condições de
vida do morador e valorização do local, acarretaram o aumento do valor
dos imóveis na área abrangente. Em consequência, houve uma substituição
gradual das pessoas residentes por outras com maior poder aquisitivo:

[...] os objetivos do programa (a integração) são tratados tão so-


mente do ponto de vista físico-urbanístico. No entanto, enquanto
política de integração social, essa iniciativa parece insuficiente e
mesmo os programas sociais que são articulados à intervenção
não têm a mesma primazia dos aspectos de infraestrutura, o que
coloca um obstáculo à (difícil) questão da integração social das
populações faveladas. Um aspecto relevante, nesse sentido, diz
respeito à questão da valorização imobiliária que decorre do in-
vestimento público, gerando processos de “expulsão branca”. A
postura da Prefeitura foi de saudar os processos de valorização
como resultados positivos, desconsiderando o problema da saída
de moradores e sua substituição por camadas de renda mais ele-
vada. Esse tema é de fundamental importância do ponto de vista
da integração social. (CARDOSO, 2002, p. 12)

Por essa razão, o Programa Favela-Bairro foi o carro-chefe para o


processo de saída dos moradores que não tinham poder aquisitivo para
continuar morando nas favelas atendidas pelo programa. Em consequência,
houve a união e a luta dos moradores, que por sua vez conseguiram tirar o
programa de remoções da pauta política, substituindo-o por intervenções
urbanísticas juntamente com políticas sociais.

Laís Clemente de Oliveira


438
A CARACTERIZAÇÃO E A URBANIZAÇÃO
DO COMPLEXO DA MARÉ

As intervenções urbanas ocorreram ao longo do processo histórico


da cidade, inclusive em áreas favelizadas. Entretanto, no Complexo da
Maré só ocorrerá um projeto de urbanização na final da década de 1990.
É dentro desse contexto que apresentaremos o surgimento e o processo
de urbanização do Complexo da Maré, o maior conjunto de favelas da
América Latina (VAZ, 2010).
O Complexo da Maré viveu um intenso processo de crescimento
e expansão de sua área original, crescimento que pode ser dividido em
duas fases. A primeira fase foi a da consolidação dos núcleos de habita-
ção construídos pelos primeiros moradores da região: Timbau (1940), Baixa
do Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948), Parque Maré (1953),
Parque Rubens Vaz (1954), Parque Roquete Pinto (1955), Parque União
(1965) e Praia de Ramos (1962). A segunda fase foi a fase de crescimen-
to, com a intervenção do poder público, que construiu as comunidades de
Nova Holanda (1962), Conjunto Esperança (1982), Vila do João (1982),
Vila do Pinheiro (1983), Conjunto Pinheiro (1989), Conjunto Bento Ribeiro
Dantas (1989), Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000).
Essas duas fases de expansão do território se distinguem também
pelas relações estabelecidas entre o poder público e os moradores. Na
fase de consolidação (1940-1980), havia ameaças frequentes de remo-
ção dos moradores pelo Estado, caracterizando-se pelo conflito violen-
to, no qual era consolidado o controle sobre os moradores, seja pelas
forças policiais, pelo Exército ou por instituições do Estado. Assim, um
dos principais problemas que assombrava todas as comunidades pio-
neiras da Maré era o medo de remoção. Desde o nascimento desse terri-
tório, essa era a maior preocupação dos moradores: ninguém desejava deixar
o local e morar em subúrbios distantes, por causa dos laços de afeto que se
formavam e do menor custo de vida.
Na década de 1980, o poder federal substituiu a política repressiva
de remoção por programas de urbanização. Essa ideia se consolidou, pois

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


439
o Estado chegou à conclusão de que era impossível remover as favelas da
cidade, pois a retirada da população desses locais era um processo de-
morado e conturbado, uma vez que os moradores reagiam às remoções e
pressionavam contra as políticas de Estado.
Um dos programas de urbanização que atou no Complexo da Maré
foi o Projeto Rio, que tinha por objetivo retirar as palafitas do Complexo da
Maré localizadas sobre as águas da baía da Guanabara e construir aterros
para a implantação de conjuntos habitacionais, a fim de abrigar os mora-
dores retirados das palafitas. Segundo Vaz (2010), esse momento foi mar-
cado por um grande evento político e eleitoreiro do então presidente João
Figueiredo, ao lado de artistas e personalidades, angariando intenções de
votos para Moreira Franco, candidato ao governo do Rio de Janeiro pelo
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e apoiado pelo Par-
tido da Frente Liberal (PFL), pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e pelo
Partido Liberal (PL), entre outros.
Após a realização do Projeto Rio, houve um decréscimo populacio-
nal no território da Maré, acarretado pela retirada das palafitas do local.
Com a construção dos aterros, o movimento de expansão territorial se
tornou mais controlado, isso porque não houve crescimento acentuado
nas áreas inundáveis (VAZ, 2010).
Apesar dessa intervenção, a visibilidade decorrente da localização
geográfica, o fato de sua paisagem ter sido durante muitos anos dominada
por palafitas e a contrastante proximidade com o Aeroporto Internacional
do Galeão e a Universidade Federal do Rio de Janeiro contribuíram, em
geral, para a percepção da Maré como um espaço globalmente miserável,
violento e destituído de condições dignas de vida.
No território da Maré é encontrada a maior diversidade de formas
urbanas e arquitetônicas referentes a habitações populares nas suas di-
ferentes comunidades. Esse conjunto de territórios abrange desde favela
labiríntica até o mais complexo modelo habitacional cartesiano, resultado
da transformação de áreas alagadas em áreas favelizadas (VAZ, 2010).
Segundo Silva (2002), o Complexo da Maré possui cerca de 138 mil
habitantes. Essa população se divide de forma desigual entre as seguin-

Laís Clemente de Oliveira


440
tes comunidades: Baixa do Sapateiro, Mandacaru, Marcílio Dias, Morro
do Timbau, Nova Holanda, Parque Maré, Parque União, Ramos, Roquete
Pinto, Rubens Vaz, Nova Maré, Conjunto Pinheiros, Salsa e Merengue,
Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Esperança, Vila Pinheiros, Vila do João.
Como mencionado, a origem do território da Maré se dá a partir do
desenvolvimento industrial da cidade, acelerado com a construção da ave-
nida Brasil, em 1946. As primeiras ocupações desse local se iniciaram na
década de 1930, quando portugueses e italianos donos de chácaras co-
meçaram a habitar esse território, onde só havia mangues e praias. Com a
criação da avenida Brasil, surgem condições favoráveis para o crescimento
do Complexo da Maré, entre elas a maior circulação de migrantes para
esse local, até então desconhecido.

A grande maioria das favelas surgidas no Rio, no período


1948-1960, localizou-se nas proximidades da av. Brasil, que
já eram em número de 47 em 1960, respondendo por uma
população de 111.341 habitantes. A praia do Apicum, um an-
tigo manguezal, já era agora um denso conjunto de casas de
palafitas, denominadas favelas da Maré, adensadas a partir
das diversas obras realizadas na região, entre as quais, os
aterros da Cidade Universitária e do aeroporto do Galeão.
Acompanhando o surto industrial e resistindo à política oficial
de expulsão da população proletária para os subúrbios mais
afastados e a Baixada, as favelas da Maré e seu vertiginoso
crescimento refletiam a perversidade do mundo urbano indus-
trial. Concorrendo em espaço com as indústrias, diversas fa-
velas seriam erradicadas durante o período de governo Carlos
Lacerda (1961-1965), operação que teria continuidade durante
a ditadura militar. (AMADOR, 1997, p. 353)

A ocupação por parte dos migrantes vai ocorrendo em áreas cujos


terrenos não tinham ainda sido objeto da especulação imobiliária, como os
morros, encostas e pântanos da cidade, bem como em áreas cuja proprie-
dade era duvidosa ou pertencente à União ou a outros órgãos governamen-
tais. A área hoje ocupada pela Maré oferecia todas as condições para esse

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


441
tipo de ocupação: tratava-se de área cuja propriedade era desconhecida, em
boa parte eram terras devolutas e terrenos da Marinha, em proximidade à
área industrial, vizinha ainda de importante via de acesso (avenida Brasil),
cujos terrenos de pedreiras, encostas e manguezais não tinham interesse para
a especulação (VALLADARES, 2008). Com o crescimento da região, na déca-
da de 1970, surgem as primeiras habitações que eram de casas sobre palafi-
tas localizadas nas águas da baía de Guanabara (VAZ, 2010).

As comunidades que formam o complexo têm características e pro-


cessos espaciais bem distintos, que vão do mais planejado ao mais
espontâneo, do mais regular ao mais irregular, do mais formal ao
mais informal, do mais projetado ao mais livre. As diferenças en-
tre as formas, que hoje constituem uma diversidade muito rica, se
deram por vários fatores: a história de cada ocupação, as caracte-
rísticas do sítio, as questões de propriedade, as origens da popula-
ção, a organização da comunidade, os contextos políticos e sociais.
Uma grande gama de formas espaciais pode ser encontrada na
Maré [...]. As diferentes comunidades são tão distintas como os di-
ferentes bairros de uma cidade formal e chegam a ter identidades
próprias, que constituem, todas juntas, a cultura multifacetada da
Maré. (VARELLA, 2002, p. 22)

Segundo Cardoso (1996), o território da Maré sofreu diversas interven-


ções por parte dos moradores que realizaram diferentes implantações habita-
cionais nesse local, ou também por parte da iniciativa privada que implantou
diversos programas sociais no território. Com isso, o Complexo da Maré é
sinônimo de um local diversificado e marcado por uma profunda heterogenei-
dade. Apesar dessas observações gerais sobre o território, é possível perceber
que, com base em uma visão panorâmica, há uma distribuição desigual da
população entre seus bairros. Esse fator é decorrente de diferentes motivos:
o papel da própria população, que construiu o seu espaço a partir de suas
vivências e práticas sociais; a configuração física do espaço (características do
terreno), proporcionando e limitando diferentes formas de ocupar esse lugar;
as práticas do poder público, ora incentivando, ora limitando, ora induzindo a
ocupação por meio de suas ações sobre o espaço.

Laís Clemente de Oliveira


442
A partir de todo esse processo, foi criada uma das organizações
mais conhecidas da Maré: o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(Ceasm). Criada no final da década de 1990, essa organização não governa-
mental (ONG) foi formada por um conjunto de moradores com um histórico
de inserção em movimentos sociais e que conseguiram atingir o nível univer-
sitário. Essa ONG tem como objetivo lutar pela melhoria de seu próprio local
de moradia e também contribuir para o desenvolvimento cultural e educacio-
nal do território (SILVA, 2007). Além de ampliar as possibilidades para o exer-
cício de cidadania, a primeira atividade desenvolvida pela organização foi o
Curso Pré-Vestibular da Maré (CPV). A alta taxa de aprovação no vestibular de
inúmeras universidades públicas mostrou a relevância social da ONG e deu
visibilidade ao Ceasm. A Rede Sociopedagógica, criada pela união dos mo-
radores da Maré, objetiva articular grupos sociais comprometidos com a
qualidade de vida dos moradores. É nesse sentido que o Ceasm desenvolve,
atualmente, um conjunto de ações voltadas para a educação, a cultura, a
comunicação e a geração de trabalho/renda (VAZ, 2010).
Atualmente, o Complexo da Maré é vítima de uma apartação social
devido às facções rivais existentes e à ausência das políticas públicas do
Estado, além de ser refém do crime organizado do tráfico de drogas. Esse
último possui cada vez maior presença, acarretando na difícil locomoção
entre as comunidades da Maré, que são comandadas por grupos armados
que cada vez mais se expandem para o resto da cidade.
A população do Complexo da Maré compreende em torno de 2,26%
da população do município do Rio de Janeiro e 0,97% do estado do Rio de
Janeiro (SILVA, 2002). Esse dado coloca a Maré como o maior conjunto de fa-
velas do Brasil. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do local é 0,722,
enquanto a média da cidade do Rio de Janeiro é de 0,842. Esse índice indica
que as condições de educação, a esperança de vida ao nascer e a renda per
capita da população da cidade do Rio de Janeiro como um todo são melho-
res, quando comparadas às do Complexo da Maré. Entre os bairros da capital
carioca, os moradores da Gávea apresentam o melhor IDH: 0,970. Segundo
os dados do censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a taxa de analfabetismo do Brasil é 13,6%; no Complexo da Maré, é
de 11,4%, ultrapassando o município do Rio de Janeiro (4,4%).

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


443
Assim, apesar de estar um pouco abaixo da taxa nacional, a taxa de
analfabetos na Maré é quase o triplo do índice do município do Rio de Janeiro.
Dentre as 31 regiões administrativas (RAs) existentes no município, a Maré tem
o segundo maior índice de analfabetos (SILVA, 2002). No ano de 1994, o
Complexo da Maré passou a ser classificado como bairro e se integrou à
XXX Administração Regional da Prefeitura do Rio de Janeiro. Com isso, passou
a ser mais fácil a atuação de políticas públicas que visavam administrar e con-
trolar o território. Porém, de acordo com os resultados de Silva:

Os moradores não reconhecem o seu espaço de moradia como


um bairro. Para eles seria necessária a melhoria das condições
dos serviços urbanos e, principalmente, a conformidade entre
as regras da cidade e as da favela; em particular no que diz
respeito tanto às práticas e intervenção do poder público
quanto às regras de sociabilidade da cidade e às da favela,
no sentido do reconhecimento e da expansão dos direitos e
deveres de cidadania política dos seus moradores, no campo
cultural, jurídico e econômico. (2002, p. 26)

Recentemente, foi colocado em discussão o projeto “A Maré que


queremos”, pelos próprios moradores do Complexo da Maré, um pro-
jeto que visa a melhorias na infraestrutura do local e diminuição na
defasagem de qualidade de vida, como saneamento básico (água e es-
goto), rede pluvial, pavimentação e melhoria no sistema de coleta de
lixo. Embora as comunidades sejam diferentes, encontramos os mesmos
problemas em todas elas: esgoto a céu aberto, falta de áreas de lazer,
de água e de luz, postes caindo, poucas árvores, má comunicação etc. Esse
projeto está em discussão com a Prefeitura e a administração estadual, e tam-
bém serve de base para mobilizar moradores nesse processo de transforma-
ção em um local com qualidade de vida (VAZ, 2010).
De acordo com Vaz (2010), existem dez creches comunitárias e mu-
nicipais (para 21.036 crianças de 0 a 6 anos), dezesseis escolas munici-
pais e estaduais (sendo apenas sete para o ensino fundamental de 5ª a
8ª séries para uma população de 18.400 crianças de 7 a 14 anos), e, de-
las, apenas duas oferecem ensino médio. Esse dado é preocupante porque

Laís Clemente de Oliveira


444
a maior parte dessa população não tem condições de manter os filhos em
escolas particulares, levando a entender os motivos da baixa escolaridade
nesse território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso realizado até o momento permite afirmar que o cresci-


mento vertiginoso das cidades trouxe a consequente ocupação irregular
e o surgimento de favelas, como o Complexo da Maré. O crescimento
urbano, quando não acompanhado de um investimento em infraestrutura
básica (água, esgoto, luz, pavimentação), é considerado um “inchaço”, ou
seja, um crescimento não benéfico do ponto de vista da qualidade de vida
da população. A cidade do Rio de Janeiro está em constante processo de
urbanização, e ele alcança um crescimento populacional em diferentes
pontos da cidade, juntamente com os avanços em infraestrutura.
O processo de favelização se instala no território de forma rápida e
extensa, englobando conjuntos habitacionais, omitindo espaços livres, ocupando
ambientes frágeis e por fim, tornando a paisagem periférica homogênea. Com
a expansão e a consolidação das favelas, elas começaram a ser entendidas
como verdadeiros problemas urbanos: como empecilho físico, que impede o
escoamento do sistema viário; como fatores principais da degradação ambiental,
devido à ausência de saneamento; como centros de insalubridade, dada as
péssimas condições de moradia; como foco de marginais, caracterizando-
se a favela como a sede da exclusão social. Por causa dessa situação, as
políticas urbanas da década de 1970 se voltaram para a urbanização das
favelas; no entanto, as políticas públicas não foram eficientes no sentido de
integrar socialmente esses territórios ao restante da sociedade urbana. Nos
dias de hoje, a sociedade urbana incorpora uma política de tolerância, ape-
sar de possuir instrumentos jurídicos mais precisos para responder à
informalidade das favelas (OLIVEIRA, 2010).
Essa política colaborou para que as favelas se transformassem em um
território marginal e, ao mesmo tempo, estruturante da paisagem periférica

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


445
da cidade. Elas se consolidaram à margem da legislação, e não se de-
frontaram com um reconhecimento jurídico que as identificassem como
um território integrante da cidade. Com a fixação das favelas, e seu re-
conhecimento como parte integrante da cidade, surge ao mesmo tempo
um novo pacto sociopolítico que, conferindo particularidades às favelas,
investigue e pratique o modelo jurídico urbanístico exposto na Consti-
tuição de 1988, que tem por objetivo garantir o acesso da população
favelada à moradia e à cidade, de forma que o espaço urbano não se
torne apenas um mecanismo de reprodução do capital.
O poder público, as ONGs, as empresas, as associações de mo-
radores e o tráfico de drogas tornaram-se os principais atores das cons-
tantes disputas pelas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Na virada
do século XIX para o século XX, a mídia e a política, entre outros, im-
puseram à percepção pública uma visão das favelas que se consolidou
com o passar dos anos, caracterizando-as, de forma universal, como
territórios sedes da pobreza e da violência, que são características
intrínsecas, ou seja, uma decorrente da outra. Classificada como a úni-
ca realidade, essa imagem ficou caracterizada como uma barreira para
o surgimento de uma visão sem preconceitos das favelas, e dificultou
que elas fossem percebidas em toda a sua complexidade.
Assim, a livre associação entre pobreza e violência que contribuiu
para a iniciativa de investimentos com o objetivo de erradicar as fa-
velas também colaborou, com o passar dos anos, para a sua consoli-
dação e urbanização. Diante disso, as interferências de novas políticas
sociais contribuíram para o surgimento de caminhos diferentes que foram
incorporados em postos públicos e nas diversas ONGs, nos quais nas-
ceram novas redes de relações, englobando espaços até então impensá-
veis, como os gabinetes públicos estaduais, federais e municipais, sendo
reconhecidos até internacionalmente. Esses conjuntos de atores contribuíram
para um processo de diferenciação social mediante o qual alguns deles tive-
ram condições de criar suas próprias ONGs. Então, na mesma medida em
que começaram a receber recursos importantes, obtidos por meios diretos
do poder público, as associações de moradores, que são importantes lide-
ranças da favela, mesmo não perdendo a sua importância política, deixa-

Laís Clemente de Oliveira


446
ram de realizar suas duas importantes funções: mobilizar os moradores e
pressionar as autoridades.
É dentro desse contexto que deve ser analisado o surgimento das fa-
velas cariocas. A ausência de políticas públicas que visassem acabar com
a crise habitacional, que até hoje é uma situação difícil de ser resolvida na
cidade, pode ser interpretada como um dos fatores principais que favorece-
ram a formação e o crescimento das favelas.
Por causa do contexto histórico da cidade, a favela passou a ser carac-
terizada como um local onde as relações e práticas sociais não são voltadas
para o crescimento social e político do indivíduo. Os moradores, que são
circundados constantemente pelo tráfico, pela violência, pela miséria e por
tantas outras “situações ruins”, são vítimas diárias do preconceito da população,
pois são vistos muitas vezes como más pessoas. Não se pode reclamar e esperar
do governo uma melhoria para a situação das favelas de braços cruzados. A
iniciativa e o voluntariado são fatores essenciais para uma mudança total da visão
panorâmica das favelas. Ao relatar sobre a consolidação delas, pôde-se perceber
que a favela não é cercada apenas de más influências, voltadas a formar
marginais; ela também envolve integrantes e programas sociais que possuem
como objetivo transformar o futuro de quem vive ali. Aqui está apresentada
outra visão da favela, na qual a maioria não tem interesse ou curiosidade em
saber que existe.
A favela é uma cidade à parte e, por essa razão, necessita de uma
atenção especial. Toda a sociedade merece dignidade onde quer que seja,
juntamente com educação e saúde, o que contribui para a motivação por
um ideal. É isso que diferencia esse território do restante da cidade. Se
a favela se integrar à cidade, talvez surja um lugar melhor, com moradia
para todos, com saúde e educação como fatores principais para o bem-
estar das pessoas – um ambiente sadio, com boa infraestrutura que atenda
as demandas de toda a sua população.
Por fim, é de extrema importância a criação de mecanismos de re-
gulação social da administração pública, a fim de minimizar ou solucionar
os problemas encontrados nas favelas, a fim de dar voz à comunidade
e priorizar as demandas nesses territórios. Nesse sentido, o contexto

O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


447
histórico da Maré apresenta um intenso confronto de lutas e de unificação das
ações de seus moradores, associações e instituições a fim reivindicar trans-
formações e garantir a melhoria da qualidade de vida ao longo do tempo.
Isso indica que, atualmente, é possível unir forças para que novas mudanças
e ações sejam realizadas, com o intuito de transformar a Maré em um bairro
consolidado e integrá-la à cidade, assegurando os direitos de cada morador.

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O processo de consolidação do Complexo da Maré na metrópole carioca


451
ESTUDOS DE ASPECTOS RELEVANTES DA
CRIAÇÃO DE PRIMATAS NÃO HUMANOS
USADOS NA PESQUISA CIENTÍFICA

Maysa Leandro de Assis*

INTRODUÇÃO

As relações entre homens e animais estão intrinsecamente conecta-


das à visão do âmbito homem–natureza, às suas relações de apropriação
e às projeções nas diferentes formas de fazer ciência ao longo dos séculos
(PAIXÃO, 2001). O pensamento e posicionamento do homem ante a
utilização de animais em diferentes âmbitos transformaram-se de acor-
do com as teorias vigentes nas esferas política e social, e também de
acordo com as concepções religiosas. O debate sempre se posicionou
quanto ao caráter abrangente ou não da perspectiva antropologista,1
nas formas de compreender e avaliar a técnica e a tecnociência em ra-
zão de uma teoria do homem na qual, segundo Protágoras (480 a.C.-
410 a.C.) no diálogo platônico2 homônimo, “O homem é a medida de
todas as coisas”.
A experimentação animal é realizada há muitos séculos, sendo os pri-
meiros estudos de dissecação3 animal, realizados em 500 a.C. por Alcméon
de Cróton (PAIXÃO, 2001). Considera-se que mesmo Hipócrates, pai da

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Mé-
dio, com habilitação em Análises Clínicas (2009-2011). Atualmente cursa Ciências Biológicas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de
conclusão de curso, contou com a orientação da professora-pesquisadora Etelcia Moraes Molinaro
(mestre em Biologia Animal), do Laboratório de Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais em
Saúde (Latec). Contato: maylessis@gmail.com.
1
Refere-se à visão ou ideologia pela qual o homem serve-se para compreender a realidade.
2
Protágoras de Platão: diálogo entre Protágoras e Sócrates, registrado por Platão.
3
Divisão em partes de uma planta ou de um animal morto.

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
453
medicina ocidental moderna, tenha realizado estudos comparativos entre
a anatomia dos órgãos de animais e humanos doentes (GREIF e TRÉZ,
2000). Também Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) realizou estudos anatô-
micos em animais, dissecando mais de cinquenta espécies e sendo por isso
considerado o pai da anatomia comparada (PAIXÃO, 2001).
As primeiras práticas de dissecação animal realizadas em público
com objetivos didáticos são atribuídas a Herófilo (335 a.C.-280 a.C.),
estudioso grego que, ao lado Erasístrato (310 a.C.-250 a.C.), fundou a
Escola de Alexandria. Já as primeiras práticas vivisseccionistas4 com fins
experimentais são atribuídas a Erasístrato, porém a primeira vivissecção
pública foi realizada por Galeno (129-199 d.C.), em Roma, para o estudo
de alterações fisiológicas, sendo que ele se utilizou de porcos, macacos e
outros animais (GREIF e TRÉZ, 2000).
Entre os séculos XV e XVII, cientistas realizavam práticas vivisseccio-
nistas. René Descartes (1596-1650), pai da filosofia moderna, considerava
a experimentação animal como a base para o conhecimento do organismo
humano, eliminando a necessidade da utilização de criminosos, prática repu-
diável. Através da física mecânica, a natureza era compreendida como uma
série harmônica de engrenagens, e os animais, encarados como máquinas
complexas, porém incapazes de expressar características associadas aos hu-
manos, como alma e inteligência (NAVARRO, 2007). É uma expressão do
pensamento cartesiano5 que concebe a ideia de automatização animal, que
desconsidera a capacidade consciente dos animais e que passou a ser hege-
mônico e tornou a experimentação animal o principal elemento nas pesquisas
científicas a partir do século XVIII e por todo o século XIX.
Pesquisadores como François Magendie (1783-1855), Claude Bernard
(1813-1878) e Louis Pasteur (1827-1895) contribuíram para a validação da
experimentação em animais como método científico indispensável, desen-
volvendo suas pesquisas pela busca das bases fisiopatológicas das doenças
dentro da lógica cartesiana: o organismo como máquina a ser desvendado
(LIMA, 2008). As elucidações desses pesquisadores, que exaltavam a impor-
4
Vivissecção diz respeito à qualquer operação feita em animal vivo, com o objetivo de realizar es-
tudo ou experimentação.
5
Cartesiano refere-se à corrente filosófica fundada por René Descartes.

Maysa Leandro de Assis


454
tância biomédica acima do bem-estar animal, mais a invenção da anestesia,
provocaram um aumento no número de animais utilizados em pesquisas. Ape-
sar disso, foi na Inglaterra do século XIX que surgiram as primeiras correntes
antivivisseccionistas, com o surgimento da Cruelty to Animal Act (Lei sobre a
Crueldade contra os Animais) em 1876, juntamente com outros movimentos
humanitários de abolição da escravatura e erradicação do trabalho infantil
(FEIJÓ, 2005).
Após a Segunda Guerra Mundial, é criado o Código de Nuremberg
(1947), o qual determinava a experimentação em animais como primeira eta-
pa nas pesquisas científicas; o código foi reafirmado com a Declaração de
Helsinque (1975), visando à preservação da condição humana após o assas-
sinato de milhões de pessoas nos campos de concentração nazistas. Parale-
lamente, surgem no século XX as primeiras sociedades protetoras dos animais
(PAIXÃO, 2001).
Em 1959, William Russel e Rex Burch criaram, em seu livro The Principles
of Humane Experimental Technique, o conceito dos 3 R’s – replace, reduce,
refine (substituir, reduzir, aperfeiçoar) –, a partir de proposta feita em 1954 por
Charles Hume, fundador da Universities Federation for Animal Welfare (UFAW),
do Reino Unido. Tal publicação introduziu nos laboratórios uma preocupação
relativa ao uso mais racional dos animais. Substituição (replace) refere-se à uti-
lização de seres não sencientes,6 ao emprego de material sem sensibilidade ou
de seres vivos menos evoluídos – como plantas e microrganismos –, de cálculos
matemáticos ou de dados computadorizados ou epidemiológicos na substi-
tuição de vertebrados conscientes. Redução (reduce) refere-se à diminuição
do número de animais utilizados nas pesquisas a fim de se obter uma amos-
tra precisa, melhorando as condições de ensaio, minimizando variáveis que
possam comprometer os resultados, e evitando-se repetições desnecessárias.
Aperfeiçoamento (refine) refere-se à diminuição na incidência ou à redução da
severidade dos procedimentos utilizados nos animais, por meio de técnicas
de analgesia, sedação e eutanásia para a redução da dor e do desconforto,
respeitando o bem-estar animal. Diz respeito também ao aperfeiçoamento do
profissional que manipula o animal (CARDOSO, 2005).

6
Senciência é a capacidade de sofrer ou sentir prazer (SINGER, 2002).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
455
A corrente dos movimentos antivivisseccionistas dividiu-se principalmente
em abolicionistas ou reducionistas, de argumentação científica ou ética. Os
abolicionistas incluem em seu repertório a dessensibilização dos cientistas,
a aplicabilidade dos resultados dos experimentos em animais devido às
diferenças anatômicas, metabólicas, genéticas e psíquicas, diferenças nos fatores
sociais, ambientais, dietéticos e psicológicos que afetam os seres humanos.
Os reducionistas não são contrários à experimentação animal, mas se
preocupam com a promoção do bem-estar animal e o respeito ao conceito
dos 3 R’s (GREIF e TRÉZ, 2000).
Com a crescente pressão dos movimentos antivivisseccionistas contra
a utilização dos animais na pesquisa biomédica, foram estabelecidas legis-
lações e comissões de ética para a validação dos modelos animais usados
em experimentações nas pesquisas científicas, avaliando se as propostas são
“ética e cientificamente justificadas”. Atualmente, a utilização de animais está
associada à pesquisa científica, à testagem de produtos nas indústrias quí-
mica, cosmética e armamentista e à educação (FEIJÓ, 2005).
Nos dias de hoje, as instituições de ensino e pesquisa possuem
comissões de ética para avaliar projetos de pesquisa que envolvam a ex-
perimentação animal (LIMA, 2008). A primeira comissão de que se tem
registro foi criada em 1907, na Universidade de Harvard, nos Estados
Unidos, a fim de solucionar um problema de escassez de animais, e não
uma questão de ordem ética (MOLINARO, 2009).
Para prevenir o uso indevido de animais na experimentação, as ins-
tituições de ensino e pesquisa no Brasil contam hoje com suas próprias
comissões de ética no uso de animais (CEUAs), formadas por cientis-
tas que não podem apresentar nenhum tipo de vínculo com os projetos
de pesquisas avaliados, membros não cientistas da sociedade civil e
representantes de organizações protecionistas. As comissões têm como
dever garantir o bem-estar animal durante e após a manipulação,
seu atendimento veterinário e a inspeção dos biotérios7 e salas de
experimentação (MOLINARO, 2009).

7
Locais onde são criados ou mantidos os animais destinados a fins científicos.

Maysa Leandro de Assis


456
PRIMATAS NÃO HUMANOS

A utilização de primatas não humanos8 nas pesquisas tem desenvol-


vimento relativamente recente, adquirindo importância pela sua eficácia
em estudos comparativos com doenças humanas, uma vez que, dentre os
modelos animais, o primata não humano é aquele de maior proximidade
filogenética ao homem (ANDRADE, 2010).
Atualmente existem 280 espécies de primatas no mundo (ANDRADE,
2010). Sua classificação taxonômica, de acordo com as novas descober-
tas e avanços no ramo da biologia molecular (com a proposta de domínios
do cientista Carl Woese), é a seguinte: Domínio Eukarya, Reino Animalia, Filo
Chordata, subfilo Vertebrata, superclasse Tetrapoda, classe Mammalia, sub-
classe Eutheria, ordem Primates. Os primatas apresentam ampla distribuição
geográfica na faixa intertropical da Terra, sendo o Brasil o país que acolhe
o maior número de espécies no mundo (MOLINARO, 2008).
A ordem Primates divide-se em duas grandes subordens: Strepsirrhini
e Haplorrhini. A subordem Strepsirrhini agrupa primatas encontrados em
Madagáscar e no sudeste asiático que possuem características anatômicas
comuns aos seus ancestrais, tais como caixa craniana reduzida, grandes órbi-
tas oculares, focinho alongado, grande capacidade olfativa e visão noturna.
Os Haplorrhini, por sua vez, apresentam maior caixa craniana, focinho curto,
tamanho corporal maior e melhor desenvolvimento da visão (MITTERMEIER,
RYLANDS e KONSTANT, 1999).
Na subordem Haplorrhini, agrupa-se a infraordem Simiiformes,
também chamada Anthropoidea (WILSON e REEDER, 2005). Os Simiiformes
dividem-se em primatas do Novo Mundo (Platyrrhini), cuja distribuição
geográfica é a região tropical compreendida entre o México e a América do
Sul, e em primatas do Velho Mundo (Catarrhini), cuja distribuição geográfica
compreende a África, o sudeste asiático e as ilhas da região, além do Japão
e do estreito de Gibraltar (ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002).

8
Primatas não humanos, também chamados infra-humanos: termologia referente a todos os mamí-
feros da ordem Primates, com exceção do homem (LUCA et al., 1996).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
457
Os platirrinos possuem o septo nasal largo, o polegar não comple-
tamente oponível 9 e têm porte menor, havendo um grupo de espécies que
possuem a cauda preênsil.10 São exclusivamente arborícolas, habitando ter-
renos florestados (ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002). Muitos cientistas
os classificam em duas famílias, Callitrichidae e Cebidae (LUCA et al., 1996),
contudo Groves (2001), em sua recente revisão sobre a ordem Primates, di-
vide os primatas do Novo Mundo nas famílias: Cebidae (Callitrichidae sendo
reagrupada dentro dessa família, como a subfamília Callitrichinae), Atelidae,
Aotidae e Pithecidae (WILSON e REEDER, 2005).
Os catarrinos apresentam dois pré-molares e dentes cúspides11 transver-
sais, maior porte, polegar oponível, cauda muitas vezes longa ou ausente e lo-
comoção quadrupal.12 Dividem-se nas famílias Cercopithecidae, Hylobatidae
e Hominidae (Pongo, Gorilla, Pan e Homo) (GROVES, 2001).

USO DE PRIMATAS NÃO HUMANOS EM PESQUISAS

Principais espécies
A expansão do uso de primatas não humanos em pesquisas está
relacionada diretamente com o aumento do número de espécies utiliza-
das, o que só foi possível graças às melhorias nos métodos de aquisição e
manutenção desses animais, com a obtenção de resultados mais seguros
(ANDRADE, 2010).
Assim como as pesquisas realizadas em outros modelos experimentais
animais, os estudos que utilizam primatas não humanos precisam de licen-
ciamento prévio concedido por comissões de ética. A legislação nacional
brasileira determina que só podem ser utilizados espécimes nascidos em
cativeiro, fora de perigo populacional (Lei de Crimes Ambientais ou Lei da

9
Polegar oponível é aquele cuja última falange possui a capacidade de se dobrar e de opor-se,
facilitando a utilização de instrumentos.
10
Cauda preênsil refere-se à capacidade de se agarrar a outras estruturas, como galhos de árvores etc.
11
Cuja ponta é formada na extremidade de atrito com outros dentes.
12
Refere-se à locomoção dos animais “quadrúpedes”, pertencentes à superclasse Tetrapoda, que
se apoiam nos quatro membros, em oposição aos bípedes, animais que se apoiam em apenas
dois membros.

Maysa Leandro de Assis


458
Natureza – lei nº 9.605/1998) em pesquisas com fins científicos ou didáticos,
realizadas por cientistas e profissionais qualificados, pertencentes a institui-
ções credenciadas (MOLINARO, 2008).
As espécies mais comumente utilizadas em pesquisas no mundo
correspondem às famílias Cebidae e Cercopithecidae. Os primatas mais
filogeneticamente aproximados aos homens, a família Hominidae, só são
utilizados em casos especiais (ANDRADE, 2010).
Da família Cercopithecidae destacam-se as espécies macaco
Rhesus (Macaca mulatta), macaco cynomolgus (Macaca fascicularis) e
o macaco verde africano (Cercopithecus sp.). Quanto aos primatas do
Novo Mundo, destacam-se o macaco-de-cheiro (Saimiri sp.), o mico co-
mum (Callithrix sp.), o macaco-prego (Cebus sp.), o sagui (Sanguinus sp.)
(MOLINARO, 2008) e o macaco-da-noite (Aotus sp.) (LUCA et al.,
1996) (quadro 1).

Quadro 1. Nome vulgar e científico das principais


espécies primatas não humanas utilizadas em pesquisa.

Nome comum Nome científico


Macaco Rhesus Macaca mulatta
Macaco cynomolgus Macaca fascicularis
Macaco verde africano Cercopithecus sp.
Macaco-de-cheiro, macaco-esquilo,
Saimiri sp.
macaco-mão-de-ouro*
Mico comum* Callithrix sp.
Macaco-prego* Cebus sp.
Sagui* Sanguinus sp.
Macaco-da-noite, macaco-coruja* Aotus sp.
*Conforme a região de distribuição geográfica, a espécie pode
ser reconhecida com diferentes nomes comuns.

Fonte: Molinaro, 2008.

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
459
Os macacos Rhesus (Macaca mulatta) são originários da Índia e de ou-
tros países do sudeste asiático. Têm grande importância na área de pesquisas
direcionadas a doenças infecciosas e metabólicas, constituindo peças-chave
nas pesquisas do fator sanguíneo Rh, em estudos de neurofisiologia e em
pesquisas referentes a agentes infecciosos relacionados à doença humana,
como o vírus da imunodeficiência símia (SIV), influenza, doença de Chagas,
leishmaniose e tuberculose (ANDRADE, 2010).
Os macacos cynomolgus (Macaca fascicularis) são provenientes da
Malásia, Indonésia, Filipinas e Índia. São utilizados como modelos experi-
mentais para doenças infecciosas como dengue, sarampo, tuberculose e
febre amarela (ANDRADE, 2010).
Os micos-de-cheiro (Saimiri sp.) são os primatas neotropicais provenien-
tes da região amazônica mais comumente utilizados nas pesquisas biomédicas
(ANDRADE, 2010), principalmente por suas características físicas: porte pe-
queno e fácil manejo. Estão envolvidos nas pesquisas de arteriosclerose huma-
na, malária, reprodução, genética, etologia, estudos neurológicos relacionados
à farmacologia e toxicologia (LUCA et al., 1996).
O gênero Aotus é utilizado em pesquisas relacionadas às doenças
infecciosas, principalmente por ser suscetível à malária humana, ao traco-
ma ocular infeccioso e a vários tipos de herpesvírus (LUCA et al., 1996).
Os macacos do gênero Cebus formam um grupo de primatas não
humanos muito bem adaptados à vida em cativeiro, sendo bastante inteli-
gentes, mas de difícil manejo. São utilizados para estudos nas áreas de far-
macologia e toxicologia, além de pesquisas envolvendo Herpesvirus hominis
tipo 2 e estudos sobre arteriosclerose e sobre o ácido úrico no sangue e na
urina (LUCA et al., 1996).

Centros de primatologia no Brasil


O primeiro centro de primatas do Brasil foi estabelecido na Fundação
Oswaldo Cruz pelo diretor e pesquisador Carlos Chagas, em 1932, e
constitui em uma colônia de macacos Rhesus (Macaca mulatta) na ilha do

Maysa Leandro de Assis


460
Pinheiro,13 no Rio de Janeiro. O objetivo inicial do centro foi o desenvolvi-
mento da vacina antiamarílica por Carlos Chagas. A espécie foi estabele-
cida em uma colônia em regime seminatural14 na ilha do Pinheiro, onde
permaneceu até setembro de 1980, quando foi transferida para o campus
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), localizado em Manguinhos, na cidade
do Rio de Janeiro, no sistema de criação em cativeiro em grupos haréns.15
Atualmente o Serviço de Criação de Primatas Não Humanos, vinculado ao
Centro de Criação de Animais de Laboratório (Cecal), conta com cerca de mil
exemplares, distribuídos entre Macaca mulatta, M. fascicularis, estabelecidos
em 1986, Saimiri sciureus e S. ustus16 (ANDRADE, 2010).
A consulta do pesquisador Albert Sabin, em 1974, acerca da possi-
bilidade de importação de macacos das espécies sagui-de-boca-grande
(Saguinus mystax) e sagui-de-manto-negro (Saguinus nigricollis), para pesquisas
sobre hepatite e certos tipos de câncer, ao presidente do Centro Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fez o Ministério da
Saúde, o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) e o Instituto
de Conservação da Natureza, além de representantes do National Institutes
of Health (NIH), dos Estados Unidos, e do World Wildlife Life – United
States, reunirem-se para a criação de um centro de primatologia no
Brasil (ANDRADE, 2010). Com isso, foi criado o Centro Nacional de
Primatas (Cenp) no município de Ananindeua, no Pará, em 1978, além
da Estação Biológica de Marapendi, na cidade do Rio de Janeiro (que
funcionou de 1961 a 1963), do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro
(que funcionou de 1963 a 1971), do Instituto de Conservação da Natu-
reza (ICN) e do Banco Biológico da Tijuca (BBT), também na cidade
do Rio de Janeiro (que funcionou de 1971 a 1979), os quais deram

13
Ilha aterrada na década de 1980 pelo Projeto Rio, do governo federal, para a urbanização do
Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro.
14
Criação em áreas abertas cercadas, como ilhas naturais ou artificiais, sem que haja quebra do meio,
e com provisão de alimentos e água (ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002).
15
O sistema de haréns consiste na criação de animais poligâmicos em grupo, em alojamentos co-
letivos, adotando-se o sistema de múltiplos machos ou de um único animal reprodutor (ANDRADE,
PINTO e OLIVEIRA, 2002).
16
As espécies Saimiri sciureus e S. ustus foram adquiridas em resgates científicos em hidrelétricas
brasileiras na região amazônica, e também alguns exemplares foram doados pelo Instituto Pasteur
da Guiana Francesa (MOLINARO, 2008).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
461
origem, em 1979, ao Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, ligado à
Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) do Rio de
Janeiro (ANDRADE, 2010).
O Centro Nacional de Primatas encontra-se atualmente entre os dez
maiores centros primatológicos do mundo (ANDRADE, 2010). O Cenp tem
por missão criar e reproduzir, em condições controladas, primatas não hu-
manos, visando ao apoio às instituições biomédicas, dentro dos princípios
éticos e de bem-estar animal, e assegurar a preservação de espécies amea-
çadas de extinção. A instituição conta com primatas não humanos originá-
rios da região amazônica e da Mata Atlântica e com uma espécie exótica
oriunda do continente africano (ANDRADE, 2010) (quadro 2).

Quadro 2. Espécies mantidas em cativeiro pelo


Centro Nacional de Primatas (Belém/PA, Brasil).

Nome comum Nome científico


Macaco-de-cheiro,
Saimiri sciureus
macaco-mão-de-ouro
Macaco-de-cheiro,
Saimiri boliviensis
boca-preta, caipussu
Sagui-de-mãos-amarelas,
Saguinus midas
sagui-de-mãos-douradas
Sagui-imperador Saguinus imperator imperator
Sagui-de-cara-suja, chuim Saguinus fuscicollis weddeli
Parauacu, macaco-cabeludo,
Pithecia irrorata
macaco-voador, saqui, acari
Macaco-barrigudo,
Lagothrix lagothricha
macaco-peludo
Macaco-verde-africano Chlorocebus aethiops
Cuxiú Chiropotes satanás utahaki
Macaco-prateado Cebus nigrivittatus
Macaco-prego Cebus apella
Caiarara, caiarara-branco Cebus albifrons

Maysa Leandro de Assis


462
Mico-estrela,
Callithrix penicillata
sagui-de-tufos-pretos
Sagui-de-tufos-brancos,
Callithrix jacchus
sagui comum
Sagui-da-cara-branca Callithrix geofroy
Sagui-da-serra Callithrix flaviceps
Sagui-de-Goeldi Callimico goeldii
Saá, sauá, zogue-zogue,
Callicebus moloch
uapuçá, orabassu
Macaco-aranha Ateles paniscus paniscus
Macaco-da-noite,
Aotus infulatus
macaco-coruja
Guariba-vermelho Alouatta seniculus
Bugio-preto Alouatta caraya
Guariba Alouatta belzebul
Fonte: Centro Nacional de Primatas, s.d.

O Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ) foi fundado


em 1979, na localidade de Paraíso, no município de Guapimirim, esta-
do do Rio de Janeiro. Desde a sua criação, possui como alvo o estudo,
a manutenção e a reprodução das formas mais ameaçadas de primatas
não humanos da Mata Atlântica, em criterioso regime de cativeiro. O
CPRJ está ligado a diversas instituições de pesquisa e universidades
(quadro 3).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
463
Quadro 3. Espécies mantidas em cativeiro pelo Centro de
Primatologia do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ, Brasil).

Nome comum Nome científico


Mico-leão-dourado Leontopithecus rosalia
Mico-leão-de-cara-dourada Leontopithecus chrysomelas
Mico-leão-preto Leontopithecus chrysopygus
Muriqui Brachyteles hypoxanthus
Sagui, mico Callithrix sp. e Saguinus sp.
Fonte: Coimbra-Filho, 2004.

O Centro de Primatologia da Universidade de Brasília (CP-UnB),


situado a 25 km da cidade de Brasília, na localidade de Fazenda Água
Limpa, é um centro de pesquisa credenciado pelo Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para fins cien-
tíficos. Seus objetivos são a criação de uma colônia de primatas neotropi-
cais para o desenvolvimento de pesquisas comportamentais e biomédicas,
além da reprodução de espécies de primatas neotropicais ameaçadas ou
em extinção (quadro 4).

Quadro 4. Espécies mantidas em cativeiro pelo Centro de Primatologia da


Universidade de Brasília (Brasília/Distrito Federal, Brasil).

Nome comum Nome científico


Sagui-de-tufos-pretos Callithrix penicillata
Sagui-de-tufos-brancos Callithrix jacchus
Sagui-de-mãos-douradas Saguinus midas
Mico-de-cheiro,
Saimiri ustus
macaco-mão-de-ouro
Macaco-prego Cebus apella
Fonte: Universidade de Brasília, 2008.

Maysa Leandro de Assis


464
O Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas
Brasileiros (CPB) foi criado em 2001 pelo Ibama, e é o centro de pesquisa
e conservação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio). Sua sede nacional localiza-se em João Pessoa, na Paraíba.
Suas principais atividades estão voltadas para as áreas de conservação
de espécies ameaçadas de extinção e para o manejo de populações selvagens
envolvidas em ciclos epidemiológicos. Dentre os trabalhos de pesquisas, o CPB
desenvolve inventários e mapeamentos das áreas de ocorrência de populações
selvagens de quatro espécies de primatas: o guigó (Callicebus coimbrai
e Callicebus barbarabrownae), o guariba-de-mãos-ruivas do Maranhão
(Alouatta belzebul ululata) e o caiarara (Cebus kaapori), consideradas espécies
ameaçadas de extinção.
É importante ressaltar que muitas universidades brasileiras mantêm
núcleos de pesquisas primatológicas, tais como a Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto (SP), a Universidade Federal da Bahia, a Universidade
Federal do Ceará, a Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), a
Universidade Federal da Paraíba e a Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (ANDRADE, 2010).

Criação e manejo de primatas não humanos


Para o sucesso e a confiabilidade dos resultados obtidos em pesqui-
sas biomédicas, é necessário respeitar as técnicas de criação e manutenção
das espécies de primatas não humanos utilizadas as quais dizem respeito às
exigências fisiológicas, genéticas, nutricionais e comportamentais de cada es-
pécie, e ao controle sanitário das instalações e dos espécimes empregados
(ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002).
É importante o conhecimento da biologia da espécie empregada na
pesquisa, uma vez que as diferentes variáveis biológicas, tais como porte
físico e habitat natural determinam padrões sociais, reprodutivos e alimenta-
res diferentes. Tais são razões pelas quais algumas espécies são arborícolas
ou terrestres, monogâmicas17 ou poligâmicas18 e apresentam hábitos sociais

17
Grupos que se constituem por famílias com um casal e seus filhotes (MOLINARO, 2008).
18
Grupos no qual o macho dominante, reprodutor ou alfa possui status para dominar o grupo de
fêmeas no acasalamento (MOLINARO, 2008).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
465
noturnos ou diurnos e alimentação onívora ou vegetariana (MOLINARO,
2008).
O alojamento dos primatas deve fornecer espaço suficiente para
que reproduzam seus hábitos normais de comportamento e locomoção,
conservem boa saúde e tenham bem-estar psicológico, em um ambiente
complexo e estimulante (ANDRADE, 2010). Os recintos devem ser
identificados com símbolo de risco biológico, ter controle de umidade,
ventilação e iluminação, e contar com tratamento de efluentes e com barreiras
que impeçam a entrada de animais exóticos e/ou vetores, sendo, por isso,
construídos em ambientes isolados, a fim de minimizar os riscos biológicos
aos trabalhadores e à comunidade, além de assegurar a qualidade sanitária
dos animais (MOLINARO, 2008).
Dependendo da necessidade do status sanitário, os primatas de
laboratório podem ser alojados em gaiolas coletivas de reprodução,
visto que o recinto individual pode ocasionar situações de estresse e
depressão nesses animais (ANDRADE, 2010), por serem animais de in-
tenso convívio social, apresentando relações localizadas em diferentes
níveis hierárquicos entre os indivíduos. A criação em grupo é realizada
em sistema de harém, na proporção de 1 macho para 3 a 12 fêmeas,
obedecendo aos padrões da espécie estudada (ANDRADE, PINTO e
OLIVEIRA, 2002), considerando somente os indivíduos de uma mesma
espécie, socialmente compatíveis entre si (MOLINARO, 2008).
As gaiolas coletivas de reprodução devem ser construídas em locais
abertos, respeitando os critérios já devidamente mencionados, sendo confec-
cionadas com materiais resistentes, de fácil higienização (de preferência em
aço inoxidável), possibilitando contenção física dos animais e tendo a resis-
tência necessária aos solavancos dos animais e às intempéries, a fim de evitar
fugas. Para isso, as entradas e saídas devem ser protegidas por portas duplas,
com sistema de travamento. É também necessária a criação de áreas con-
tíguas para o isolamento de indivíduos do restante do grupo, tanto para
descanso e privacidade quanto para facilitação da contenção individual
por parte dos trabalhadores (MOLINARO, 2008).

Maysa Leandro de Assis


466
O controle reprodutivo de fêmeas, em isolamento ou em pequenos
grupos separados dos machos (ANDRADE, 2002) pode exigir a criação
individual, da mesma forma que a manutenção de indivíduos isolados em
vias de experimentação ou em tratamento médico. O espaço deve ser su-
ficiente para proporcionar liberdade de movimento e hábitos de posturas
normais e de higidez individual, estando em conformidade com as carac-
terísticas anatômicas de cada espécie (MOLINARO, 2008).
A gaiola deve contar com comedouro e bebedouro individual, de ma-
neira a ser evitada a contaminação por urina ou fezes, havendo por isso
bandejas com recolhimento de dejetos abaixo das gaiolas. Os comedouros
e bebedouros devem ser confeccionados em material que permita fácil hi-
gienização e devem ser fixos, de forma que o primata não consiga deslocá-
los. O piso deve ser liso, com sistema de escoamento de água pelas laterais
do recinto (MOLINARO, 2008).
É imprescindível que os alojamentos tanto individuais quanto cole-
tivos contem com dispositivos de enriquecimento ambiental, dependendo
da idade, sexo, histórico, espécie e utilização dos animais. O enrique-
cimento ambiental diz respeito a um conjunto de atividades e aparatos
empregados para fornecer estímulos ambientais que visem o bem-estar
fisiológico e psicológico dos animais, proporcionando alterações nas ro-
tinas diárias e aproximando esses animais de cativeiros dos comporta-
mentos de animais de vida livre (ANDRADE, 2010).
O enriquecimento ambiental envolve as categorias de enriqueci-
mento físico, alimentar, cognitivo, sensorial e social. Trata-se da introdução
de objetos de distração, tais como brinquedos, poleiros, ninhos, cordas,
redes, pneus e mangueiras, da utilização de novos alimentos e de novas
formas de distribuí-los, ou da introdução de estímulos sensoriais externos.
Tais medidas funcionam como atividades lúdicas para evitar o estresse e o
prejuízo do animal (ANDRADE, 2010).
O manejo – conjunto de técnicas desenvolvidas para a manutenção
do animal –, com finalidade de monitoramento de saúde ou experimental,
deve obedecer aos critérios das rotinas padronizadas dos biotérios, assegu-
rando a saúde dos trabalhadores e o bem-estar dos animais, por meio da dis-

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
467
posição de materiais e equipamentos apropriados, tais como puçás, gaiolas
de contenção ou transporte, ganchos, garfos de contenção e luvas de couro,
entre outros, considerando o tamanho e a espécie do primata no procedimen-
to (MOLINARO, 2008; ANDRADE, 2010).
As gaiolas individuais devem oferecer um sistema de contenção, com
parede móvel que desliza por corrediças dentadas, puxadas pelas alças e
fixadas pelas catracas. Após a contenção física do animal, ele poderá ser
manuseado de acordo com o protocolo experimental, recomendando-se a
utilização de imobilizantes químicos (MOLINARO, 2008).
Nas gaiolas coletivas, recomenda-se a utilização de, no mínimo,
uma dupla de trabalhadores para a contenção animal por puçá, que é fei-
ta por um dos trabalhadores, enquanto a vigilância dos demais animais é
realizada pelo outro trabalhador. O puçá deve ser adequado ao tamanho
e peso da espécie em questão. O animal é então direcionado, dentro do
mesmo recinto, a uma gaiola individual, de transporte ou contenção. Tais
gaiolas são confeccionadas da mesma forma que as de manutenção in-
dividual, com a diferença de serem mais leves e adequadas ao transporte
por carrinhos, com mecanismos de travamento da porta e apoio no carri-
nho (ANDRADE, 2010; MOLINARO, 2008).
Outro ponto de fundamental importância é o corpo técnico respon-
sável pela contenção dos animais, que deve ser qualificado, receber trei-
namento adequado e supervisão de profissionais mais experientes, realizar
exames de saúde rotineiramente e trabalhar com equipamentos de prote-
ção adequados (MOLINARO, 2008).

ALGUNS ASPECTOS COMPORTAMENTAIS E


REPRODUTIVOS DO SERVIÇO DE CRIAÇÃO DE
PRIMATAS NÃO HUMANOS DO CENTRO DE CRIAÇÃO
DE ANIMAIS DE LABORATÓRIO DA FIOCRUZ

Para a análise desse aspecto deste trabalho, foram realizadas visitas


às gaiolas coletivas de reprodução do centro de primatas da Fiocruz para o
registro de exemplos de interação social dos macacos Rhesus. Na colônia,

Maysa Leandro de Assis


468
são alojados 12 conjuntos de gaiolas, divididas em dois recintos distintos, se-
parados por um corredor de serviço, utilizado pelos técnicos responsáveis pelo
manejo dos primatas. Os recintos alojam grupos sociais de 15 a 20 macacos
Rhesus, em uma área de 63 m², com uma área interna de refúgio de 7 m²
(ANDRADE, 2010), utilizada pelos símios para condições de recolhimento a
um ambiente de temperatura mais alta ou em casos em que um ou mais indi-
víduos desejem a separação temporária do grupo. Ademais, trata-se de local
propício à captura de indivíduos isoladamente (MOLINARO, 2008).
No Manual sobre cuidados e usos de animais de laboratório (INS-
TITUTE OF LABORATORY ANIMAL RESOURCES, COMISSION ON LIFE
SCIENCES e NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2003), ressalta-se a im-
portância dos alojamentos coletivos para animais sociais, que atenuam
os efeitos do estresse e os comportamentos anormais, estimulando com-
portamentos típicos da espécie e a capacidade cognitiva. Desse modo, as
acomodações coletivas não só asseguram maior bem-estar animal, como
também propiciam a aprendizagem social e reprodutiva, mediante as inte-
rações sociais dispostas de acordo com a organização social19 da espécie.
Os macacos Rhesus vivem em grupos constituídos pelo macho do-
minante (alfa), por fêmeas e outros machos adultos e infantis (ANDRADE,
2010). Observaram-se dentro das gaiolas coletivas muitos indivíduos jo-
vens que, mediante o contato com os indivíduos mais velhos, no exercí-
cio das tarefas de locomoção, alimentação e socialização (MOLINARO,
2008), estão aptos a aprender os comportamentos típicos da espécie, se-
lecionados para a sobrevivência da espécie no habitat natural. O compor-
tamento social da espécie primata, com a distribuição dos papéis sociais
entre os indivíduos – ou seja, coleta de alimentos, cuidado dos filhotes e
atividade sentinela –, capacita o grupo a sobreviver em situações de alerta
ou de escassez de recursos (ANDRADE, 2010).
Os comportamentos típicos da espécie, tais como a catação
(grooming) – remoção dos ectoparasitos de um indivíduo –, são importan-
tes para a manutenção hierárquica e são transmitidos principalmente

19
Organização social diz respeito aos graus existentes nas relações dos indivíduos de um grupo
(ANDRADE, 2010).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
469
no cuidado da mãe com o filhote, e nas interações dele com outros
filhotes e com os demais membros do grupo. Tal situação foi observa-
da muitas vezes nas mães em relação aos seus filhotes. Os mais novos
encontravam-se agarrados a elas, sendo as mães responsáveis por sua
alimentação, transporte e proteção. À medida que crescem e aprendem
certos comportamentos necessários à vida coletiva, os filhotes passam a
ajudar os pais no cuidado dos filhotes mais novos (MOLINARO, 2008),
havendo a permanência de filhotes mais velhos na companhia das mães
junto com os filhotes mais novos.
A permanência de fêmeas mais jovens junto de fêmeas mais velhas,
como foi observado nas visitas, também é importante para a aprendiza-
gem dos cuidados necessários à maternidade e à manutenção dos filhotes,
evitando-se os casos de rejeição de filhotes e sendo fator de alta relevância
na sobrevivência deles e na perpetuação do grupo (MOLINARO, 2001).
A convivência do símio com seus coespecíficos é fundamental para
a criação e a manutenção de indivíduos saudáveis, sendo essencial para o
desenvolvimento normal dos filhotes (LUCA et al., 1996). A fim de melhor
propiciar condições de bem-estar fisiológico e psicológico, as condições
de cativeiro devem simular as condições físicas e de organização social do
ambiente natural da espécie.
Outro fator muito importante relacionado à melhoria dos métodos
de criação de símios em cativeiro diz respeito à correta alimentação, que
atenda às exigências nutricionais da espécie, para a obtenção de resultados
experimentais seguros sustentados pela boa saúde dos animais (ANDRADE,
2010). Além dos requerimentos nutricionais, que variam de acordo com
o estágio no ciclo de vida – como crescimento, gestação e manutenção,
(�������������������������������������������������������������������
ANDRADE������������������������������������������������������������
, PINTO e OLIVEIRA, 2002) –, deve-se atentar para o melhora-
mento da dieta, com alimentos que fazem parte das preferências alimentares
de vida livre, melhorando o bem-estar dos animais.
Considera-se, pois, necessária a formulação de uma dieta balanceada
por meio da mistura de vários alimentos para a obtenção de um produto nutri-
cionalmente adequado (ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002), mas que tam-
bém considere a palatabilidade e o estado fisiológico do animal (ANDRADE,

Maysa Leandro de Assis


470
2010). Nesse sentido, as visitas acompanharam o momento da alimentação
diária da colônia de macacos Rhesus, em que são adicionados alimentos in
natura para o enriquecimento da dieta desses animais – no caso, legumes e
frutas frescos higienizados em solução clorada (50 mg/L) por 15 minutos sem
enxágue (ANDRADE, 2010).
A dieta dos animais é composta por ração20 seca e úmida. A pri-
meira é uma ração peletizada oferecida na colônia, por meio dos come-
douros, nas primeiras horas do dia, na seguinte dosagem: 30 gramas de
ração peletizada por quilo de peso vivo do animal para macacos Rhesus.
O alimento não consumido em 24 horas é retirado a fim de ser oferecida
nova ração (ANDRADE, 2010). A ração úmida constitui-se dos alimentos
frescos, ofertados em quantidade controlada, a fim de não prejudicar o
consumo da ração seca.
Além da vantagem de minimizar o estresse animal, a ração úmida é
fonte de vitaminas, minerais e fibras, necessárias ao bom funcionamento gas-
trointestinal dos animais (ANDRADE, PINTO e OLIVEIRA, 2002). A oferta des-
ses alimentos in natura, participando de um cardápio variado, constitui um
tipo de enriquecimento alimentar, aproximando as condições de cativeiro das
condições de vida livre. Enquanto a criação em cativeiro diminui a variedade
de alimentos ofertados e fixa-os em um horário específico, a oferta de dife-
rentes alimentos naturais traz consigo desafios cognitivos naturais (ANDRADE,
2010). Exemplos oferecidos durante as visitas ao centro de criação mostraram
o oferecimento de ovos cozidos e bananas ainda em casca. O exercício de
retirar o ovo e a banana da casca simula as condições naturais.
Outra preocupação é a apresentação e a dispersão dos alimentos,
atentando para que todos os indivíduos de diferentes graus hierárquicos
na organização social tenham acesso à alimentação (ANDRADE, PINTO
e OLIVEIRA, 2002). Os indivíduos dominantes, normalmente o macho
alfa do grupo acompanhado de uma fêmea dominante, podem impedir
o acesso aos alimentos dos outros indivíduos em estado de submissão.
Assim, o que acontece é que esses indivíduos subordinados, geralmente

20
Diz respeito à quantidade necessária de alimento para suprir às exigências nutricionais da espécie
por um período de 24 horas (ANDRADE, 2010).

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
471
macacos jovens, rapidamente recolhem seus alimentos e deixam a área.
Outra possibilidade para garantir o acesso a uma quantidade suficiente
de alimentos é o uso da bolsa gutural. Da parte dos técnicos responsá-
veis pela oferta dos alimentos, é fundamental o oferecimento em quan-
tidade suficiente para todo o grupo, dividindo-os por toda a área do
recinto (ANDRADE, 2010).
Os parâmetros de bem-estar animal, os quais, de acordo com a
literatura, podem ser expressos nas condições do estado de saúde dos
animais, no sucesso reprodutivo, na apresentação de comportamen-
tos típicos da espécie e na diversidade de comportamentos individuais
(ANDRADE, 2010), constituem atualmente o princípio norteador na
criação de animais, fazendo parte da questão ambiental de conserva-
ção e proteção de espécies primatas, muitas delas em estado próximo
à extinção, fragilizadas pela degradação ambiental.

CONCLUSÃO

O estudo dos centros de primatologia e das formas de manejo e criação


do modelo animal primata não humano, aliado à análise dos apontamentos
recolhidos durante as visitas técnicas à colônia de macacos Rhesus da Fundação
Oswaldo Cruz, ratificaram a necessidade de constante aprimoramento e esfor-
ços conjugados para oferecer qualidade na criação de símios, como a espécie
Macaca mulatta. O conhecimento das características fisiológicas, necessidades
nutricionais e aspectos comportamentais são subsídios muito importantes na
escolha das instalações, equipamentos, dieta e elementos ambientais.
A qualidade associada aos aspectos sanitários e biológicos deve ser
empregada ao lado dos parâmetros de bem-estar animal, de forma a fa-
vorecer a qualidade e a confiabilidade dos experimentos científicos, e con-
sequentemente dos resultados obtidos, mas também para levar em conta
questões ambientais de conservação e proteção das espécies de primatas
não humanas. Uma vez que a comunidade científica e a sociedade como
um todo, em determinada conjuntura histórica, desenvolveram uma preocu-

Maysa Leandro de Assis


472
pação em relação à questão ética do tratamento de animais de laboratório
utilizados nas pesquisas científicas, é imprescindível a promoção da qualida-
de de vida desses animais, além da devida preocupação com o conceito dos
3 R’s, substituição, redução e aperfeiçoamento dos estudos.
É inegável a proximidade filogenética do modelo primata não humano
com a espécie humana, e a sua eficácia e relevância nos estudos compa-
rativos com doenças humanas, constituindo tal modelo animal, portanto, a
preferência dos cientistas para aproximações aplicadas à saúde e à tecnolo-
gia humanas. Estabelecida e reconhecida essa necessidade ainda pertinente
na ciência, a análise quanto ao teor do regime de criação transforma-se em
questão fundamental, devendo atentar sempre para o respeito quanto aos
parâmetros ambientais e características sociais e comportamentais da vida
livre. A alimentação no habitat natural, o sistema reprodutivo, as condições
climático-ambientais, o controle sanitário, são todos aspectos cruciais no de-
senvolvimento de primatas não humanos aptos para a contribuição científica.
O conhecimento dos métodos de criação e manutenção de primatas
não humanos em cativeiro é fundamental não somente para a investigação
científica, mas para a conservação de papéis essenciais desempenhados por
esses animais nos ecossistemas tropicais, que, no Brasil, sendo o país que
recolhe a fauna primata mais rica do mundo, assume especial relevância.
O estudo da primatologia no cenário brasileiro é relativamente recente, al-
cançando notoriedade a partir da década de 1950, enquanto já existiam,
desde os anos 1930, muitos trabalhos científicos publicados nessa área em
outros países.
Mesmo com a consciência da importância desses animais, muitas
espécies primatas encontram-se ameaçadas de extinção devido a fatores
como a destruição de habitats, a caça, a alimentação ou a biopirataria.
Nesse sentido, o papel das instituições de pesquisa no país deverá
encaminhar-se sempre na direção da conservação e estudo de espécies,
contribuindo para a manutenção de um recurso vital nas investigações
biomédicas, o modelo animal primata não humano.

Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
473
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Estudos de aspectos relevantes da criação de primatas não humanos usados na pesquisa científica
477
SERTÃO BRASILEIRO:
PARA PROGREDIR E EDUCAR
É PRECISO SANEAR

Mônica Santos da Silva*

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende recuperar a atuação dos intelectuais parti-


dários do Movimento Sanitarista e da Liga Pró-Saneamento (médicos,
sanitaristas, cientistas, professores etc.) no período inicial da república
brasileira que pretendiam agir com a perspectiva política de formar
a nação. E, para isso acontecer, voltavam-se para o enfrentamento dos
problemas de saneamento e saúde que atingiam, principalmente, o
sertão brasileiro.
Um dos aspectos mais importantes a ser tratado refere-se àquilo que
os intelectuais entendiam quando falavam do atraso brasileiro, que impedia o
progresso econômico e o projeto de nação brasileiro. Há uma importante
divergência entre eles no que se refere a esse atraso. Uma das correntes da
época vai se basear na ciência “racialista” do período, considerando que o
grande problema era a mestiçagem. Nesse caso, a solução seria o embran-
quecimento do Brasil. Enquanto isso, muitos outros intelectuais não se basea-
vam no olhar sobre a raça como atraso ou empecilho para o progresso bra-
sileiro, e sim pesquisavam uma gama de outros problemas para identificar e
analisar os obstáculos ao progresso econômico e ao projeto de nação, para,
depois, propor as soluções a fim de que esses obstáculos fossem superados.

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio
com habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). No trabalho de construção de sua monogra-
fia de conclusão de curso, contou com a orientação do professor-pesquisador José Roberto Franco
Reis (doutor em História Social do Trabalho), do Laboratório de Formação Geral na Educação Pro-
fissional em Saúde (Labform). Contato: monica.santosds@hotmail.com.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


479
E o diagnóstico desses intelectuais foi que, por causa do abandono de algu-
mas regiões brasileiras pelo governo, as endemias surgiam e se espalhavam,
afetando em escala significativa a população.
Dessa forma, o grande problema e o principal obstáculo para
o progresso econômico e social do país, impedindo que a nação se
afirmasse, eram as políticas públicas de saúde, mais exatamente a
ausência delas, ou seja, as péssimas condições sanitárias e a falta de
saúde e educação da população, sobretudo a do interior. E é a partir
dessa compreensão que surgiu, por volta de 1910, o chamado Movimento
Sanitarista, formado por médicos-sanitaristas como Carlos Chagas,
Miguel Pereira, Belisário Penna, Arthur Neiva, entre outros. O objetivo
era, por meio das descobertas da ciência médica, reformar o campo da
saúde e sanear o país. Esse movimento detectou que os sertões brasileiros,1
por causa da falta de saneamento e das condições insalubres de vida,
tendo em vista o seu secular abandono, eram as principais áreas de
ocorrência das mais graves doenças e pestilências, o que tornava
vulnerável a população da região.
Sendo assim, reservavam para si a missão de identificar as causas
desse quadro e, sobretudo, os meios para superá-lo, criando movimentos e
instituições, como a Liga Pró-Saneamento (1918) e o Departamento Nacio-
nal de Saúde Pública (1922), e exigindo do Estado um efetivo compromisso
com o enfrentamento desta questão.

PROGRESSO BRASILEIRO:
QUESTÕES DE SAÚDE, NAÇÃO E RAÇA

A Primeira República, também conhecida como República Velha, vigorou


desde a proclamação da República, em 1889, até 1930. O contexto político do
país era bastante complexo: houve mudanças políticas e a ascensão ao poder
das oligarquias cafeeiras paulistas, com o domínio do café sobre a economia.

1
Norte e Nordeste do Brasil.

Mônica Santos da Silva


480
Saúde e nação eram os principais temas de debate entre intelec-
tuais e sanitaristas nesse momento. Havia um grande descontentamento
por parte desses sobre a precariedade e descentralização da estrutura de
saúde no Brasil. Os médicos-sanitaristas preocupavam-se com as enfer-
midades que atingiam os brasileiros em escala nacional e criticavam as
políticas de saúde. A insatisfação era grande e buscavam-se formas de
mudar esse quadro.
Em 1904, no Rio de Janeiro, o então presidente Rodrigues Alves con-
cedeu ao prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, amplos poderes para
realizar uma reforma na então capital do país. O objetivo era transformar
a paisagem urbana da cidade de forma a melhorar a imagem do Rio de
Janeiro no exterior e, assim, atrair investimentos, imigrantes e eventos interna-
cionais. Com efeito, dentre os objetivos da chamada Reforma Passos, estavam
limpar e civilizar a cidade, buscando modernizar algumas áreas; “higienizar”
certos hábitos da população; afastar doenças; e deslocar moradias populares
da região central – e, por extensão, seus habitantes.
Enquanto isso, os principais médicos-sanitaristas da época, lidera-
dos por Oswaldo Cruz, por intermédio do Instituto de Manguinhos, atual
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), atuariam combatendo as doenças tro-
picais que atingiam a cidade – como a febre amarela, a varíola e a peste
bubônica. Dentre o conjunto de medidas saneadoras, realizou-se, no caso
do combate à varíola, uma campanha que tinha como objetivo vacinar
compulsoriamente a população.
O ato de vacinação obrigatória gerou insatisfação na população, que
protestou nas ruas. A revolta geral da população travada com o governo
e com os sanitaristas transformou a capital do Brasil num verdadeiro cená-
rio de guerra. Esse “capítulo” da história ficou conhecido como Revolta da
Vacina (DIWAN, 2007, p. 92).
Apesar de não obterem o resultado positivo esperado, começava por
parte desses intelectuais uma sinalização do “imenso hospital que era o
Brasil”2 e da urgente necessidade de o governo investir em políticas de saúde
para mudar esse quadro.

2
Analogia a uma das frases mais conhecidas da época, dita por Miguel Pereira em seu discurso na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1916: “O Brasil é um imenso hospital”.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


481
Como citado anteriormente, a necessidade de formar a nação era um
dos principais temas e preocupações dos intelectuais. O que ocorria era que
a instituição da República não prometia apenas mudanças políticas e eco-
nômicas: criava um anseio de formação da nação brasileira e do progres-
so que com ela ocorreria. E é então o momento em que se evidencia um
aspecto, de vital relevância, que permeia o debate sobre saúde e nação e
progresso do país: a raça.
A questão e o conceito de raças humanas são elementos que funda-
mentaram muitas teorias nacionalistas dos intelectuais na Primeira República.
Há grandes avanços nos campos biológico, antropológico e sociológico e
uma forte influência das teorias científicas europeias. Com efeito, a ciência
europeia (ou “ciência racialista”), no que diz respeito à raça, designa como
superior a raça branca. Transferindo essa ideia para a sociedade brasilei-
ra, tem-se um paradoxo inimaginável: os intelectuais do Brasil, país que tem
origem indígena, colonizado por brancos europeus e habitado por escravos
negros africanos, nação feita de mestiços, com grande miscigenação, aderem
ao ideal de raça branca formulado na Europa.
Assim, algumas perguntas podem ser feitas: qual seria a influência
da raça na construção da nação brasileira? Quanto essa questão interfere
no problema de saúde pública do país?
Essas perguntas vão obter diversas respostas, diferentes caminhos
e olhares. Uma perspectiva fundamental que direciona a ação de gran-
de parte dos intelectuais da época é a designada eugenia, cujo objetivo
era, pretensamente, a melhoria da raça humana e sua reprodução, seu aper-
feiçoamento físico e moral. Nesse caso, a suposta “raça brasileira” seria um
problema, pois se considerava a raça branca superior não apenas à raça
negra, mas também aos mestiços. Essas teorias embasavam-se em Lamarck,
Darwin, Mendel, Galton, entre outros estudiosos, definindo a lei da heredita-
riedade determinante, em que os caracteres são passados de geração para
geração, condicionando a perpetuação da espécie. Além desses, os fatores
ambientais, em muitos casos, podem interferir e influenciar as característi-
cas hereditárias, degenerando ou regenerando uma espécie, analisando-
se então qual seria o melhor “meio” para geração das raças futuras. Vale

Mônica Santos da Silva


482
ressaltar que a hibridização (que resulta na permanência do gene mais
fraco, menos apto e na potencialização de seus defeitos e imperfeições)
era tida como antievolutiva e degenerante (DIWAN, 2007, p. 90-92).
A genialidade de um ser e a imbecilidade de outro são também de-
finidas de acordo com os caracteres adquiridos hereditariamente. As raças
humanas são consideradas espécies em que a branca é possuidora da genia-
lidade, das características ideais que todo indivíduo deveria ter, colocando a
miscigenação brasileira, o povo mestiço, como inferiores e degenerados.
Dentre o que podem ser chamadas de propostas eugenistas, havia po-
líticas diversas, como a esterilização, o segregacionismo racial, o controle de
imigração e a regulação dos casamentos. No entanto, a mais importante polí-
tica observada no Brasil seria a do “embranquecimento” da raça, resultado do
cruzamento dos indivíduos de raças diferentes com a afirmação da preferência
dos caracteres brancos, e definindo a questão da migração como central.
Tudo isso que é proposto segundo a eugenia está diretamente ligado à saúde.
O que se chama higienismo (que seria de fato atenção à saúde, cuidados e
adoção de bons hábitos, assim como um bom ambiente) era tido também
como uma forma de melhoria racial, no sentido de que isso teria interferência
e influência nas questões ambientais e, por conseguinte, nos processos de
reprodução da população na perspectiva de uma composição racial hígida
e saudável.
Com base na teoria eugenista (fortemente ligada à teoria higienista),
as questões de saúde, nação e raça são vistas como indissociáveis. No novo
cenário brasileiro, o novo governo republicano, que remete a uma maior
igualdade, a alguma democracia e a um ideário de progresso e civilização
muito forte, irá reforçar o desejo de formação da nacionalidade brasileira.
Sendo assim, algumas barreiras deveriam ser enfrentadas. Para alguns, o
principal problema era a mestiçagem, a mistura racial da população, que
a tornava em boa medida degenerada, inviabilizando a afirmação de uma
autêntica nacionalidade. No entanto, o dilema desses intelectuais é que, para
que ocorresse o embranquecimento da população, era necessária a ocor-
rência da miscigenação que, ao longo do tempo e como resultado dos inten-
sos cruzamentos raciais, levaria ao seu branqueamento. Vale ressaltar que,

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


483
nesse momento, o estímulo à imigração branca principalmente europeia é
muito forte e cada vez mais reforçado, dado que esse seria o melhor caminho
para embranquecer o país. Além disso, deveria haver também um combate a
certas doenças, como tuberculose, sífilis e doenças tropicais, pois se acredita-
va que elas eram hereditárias.
Nomes de referência na questão da eugenia são Renato Kehl,
Raimundo Nina Rodrigues (e do grupo de médicos da Faculdade de
Medicina da Bahia que se baseavam nesse autor), Monteiro Lobato (ini-
cialmente), Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, entre outros. O primeiro é
tido como o grande defensor da eugenia no país, tendo obras com títulos
como A cura da fealdade e Lições de eugenia que revelam exatamente o
olhar eugenista e racialista sobre a sociedade brasileira.
É de extrema importância mencionar dois aspectos sobre a eugenia. O
primeiro é como analisar o seu significado e o que ela representa. Hoje, ao
olhar para trás e ver como essas pessoas pensavam, ser eugenista parece
algo terrível e incabível. Entretanto, a história não pode ser vista separada-
mente do contexto em que ela ocorre. Nessa época, o modelo de vida eu-
ropeu e a ciência europeia eram referência e influenciavam todo o mundo.
Como adverte Pietra Diwan, “ser eugenista não é uma condenação, mas
sim a constatação de que muitos intelectuais do período compartilhavam e
defendiam essas ideias” (2007, p. 92).
Dessa forma, não há como simplesmente censurar o que aconteceu
ou quem era adepto sem antes analisar o processo em que os fatos acon-
teceram. O segundo aspecto é do rumo tomado pelo conceito de eugenia.
Após a Segunda Guerra Mundial e por causa das políticas de higiene
racial do nazismo, a eugenia passou a ser associada à violência contra a
humanidade, à intransigência dos governos e a um método de extinção
de seres humanos. Isso fez o termo ser esquecido ou ser pouco citado em
livros e documentos (DIWAN, 2007, p. 88).
Apesar de a eugenia ser uma corrente forte que influenciou grande
parte dos intelectuais da saúde, ela não é a única. O início do século XX
no Brasil foi marcado pela descoberta de novas doenças que atingiram
a população em escala nacional e pela preocupação dos médicos-

Mônica Santos da Silva


484
sanitaristas com o que vinha acontecendo em termos sanitários no país.
Assim, interpretações que no debate dos problemas do país priorizavam
a questão racial vão perdendo destaque, ao passo que certos intelectuais
passam a se debruçar em suas pesquisas sobre outros temas, notadamente
os que envolviam a saúde e a educação. Há grande preocupação com as
condições de vida do povo brasileiro e um questionamento sobre o que de
fato impedia o progresso do país. Como bem observa Nísia Trindade Lima:

Parece-me correto afirmar que tanto os médicos como engenhei-


ros, como os advogados preocupados com o Brasil real, além
daqueles poucos que conseguiam ter na literatura a atividade pra-
ticamente exclusiva, intentavam construir uma teoria interpretativa
do Brasil. Nesse movimento, as missões civilizatórias ao interior,
que marcaram os primeiros anos da República, desempenhariam
um importante papel. (1999, p. 53)

Assim, os olhares passam a se voltar para a saúde, sendo necessária


então uma intensa investigação por parte dos intelectuais para descobri-
rem por que a necessidade da melhoria no setor da saúde pública do país
é fundamental.

INTELECTUAIS DA SAÚDE, IDEIA DO SERTÃO


E MOVIMENTO SANITARISTA

O papel dos intelectuais da saúde das décadas de 1910 e 1920 no


contexto histórico brasileiro não é apenas de extrema importância. É um
papel vital para que ocorram as descobertas nos campos da saúde e vai
além da função que obtiveram em suas respectivas graduações, desempe-
nhando um papel de atores que detectam, com base em viagens e caminhos
percorridos, que o problema do Brasil como um todo é a precariedade
da vida e a ausência de saúde. Eles vão identificar que algumas regiões
são mais atingidas pelas doenças que outras, além de sofrerem com a
pobreza, a miséria e a falta de muitos recursos pela ausência do Esta-

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


485
do. Essas regiões são aquelas que não são parte constituinte da capital
(Rio de Janeiro), ou que não têm seu representante no governo republi-
cano do país durante a política do café com leite3 (São Paulo e Minas
Gerais), ou os litorais, regiões que têm riquezas ou algo a se explorar. São
os interiores do Brasil, as partes abandonadas e esquecidas por todos,
posteriormente conhecidas como “sertões”. Serão elas que esses intelectu-
ais redescobrirão, trazendo à tona o quadro grave do país e a urgência da
saúde e da educação para todos.
As viagens ou “missões civilizatórias” são o caminho encontrado e
percorrido pelos intelectuais para interpretar e definir a realidade brasi-
leira, quando se observa a questão de saúde e endemias que atingiam o
país (além de legitimar ideias e práticas sociais). É necessária assim uma
análise do território brasileiro, suas regiões e seus espaços. Definir que o li-
toral e o interior do país, apesar de suas distinções, não eram tão distantes,
como a elite brasileira imaginava, são fundamentais para a compreensão
e a análise da situação nacional de saúde.

Sertão: seus significados e contrastes com o litoral


O que é denominado sertão brasileiro (parte territorial corresponden-
te às regiões Norte e Nordeste do Brasil), antes da sua “(re)descoberta – sua
abordagem pelas expedições/missões científicas das duas primeiras déca-
das do século” (LIMA, 1999, p. 57), pode ser mostrado em faces distintas,
quando se analisa aquilo que é imaginado e se identifica de fato a realida-
de, passando da imaginação para o real.
Primeiramente, é importante destacar o significado que o termo tem.
Há várias designações para ele. Frequentemente, acredita-se que se origi-
nou de deserto, região pouco povoada, agreste, distante de povoações e
terras cultivadas (como é descrito em sua forma dicionarizada).

3
A política do café com leite foi uma política de revezamento do poder nacional, que teve lugar
durante a Primeira República, entre presidentes civis fortemente influenciados pelos interesses do
setor agrário dos estados de São Paulo (mais poderoso economicamente devido à produção de
café) e Minas Gerais (maior polo eleitoral do país da época e produtor de leite). Revezavam-se no
poder representantes do Partido Republicano Paulista (PRP) e do Partido Republicano Mineiro (PRM),
os quais controlavam as eleições e gozavam do apoio da elite agrária de outros estados do Brasil.

Mônica Santos da Silva


486
A literatura, que exerce grande influência sobre a sociedade,
principalmente sobre a elite brasileira (parcela da população que tem
maior acesso às obras literárias), exemplifica o sertão como uma popu-
lação rural muito ligada à natureza, e considerada incivilizada e atrasa-
da. Obras de grande destaque, como O sertanejo, de José de Alencar,
e Os sertões, de Euclides da Cunha, retratam bem a imagem que é cria-
da e mostrada para a população. Na literatura romântica e naturalista,
houve uma tentativa de tornar o índio o símbolo da nacionalidade, assim
como também uma tentativa de transferir a figura do indígena para o
homem do sertão. A retirada da Laguna, de Alfredo Taunay, “enaltece as
virtudes do sertanejo – seus valores autênticos e honradez – mas aponta
seu comportamento pouco civilizado e próximo ao do indígena” (LIMA,
1999, p. 64).
O sertão é bastante visto como lugar da barbárie, isolado geogra-
ficamente, atrasado e não civilizado, além de muitas vezes ser considera-
do inferior culturalmente e racialmente (grande presença de mestiços). É
feita uma comparação com o litoral como ideal. Esse seria o modelo em
que a raça branca e civilizada aparece como superior e mais evoluída.
Isso acontece mesmo no pensamento daqueles intelectuais que se des-
prendiam das questões raciais e evolutivas. Era a adoção de um padrão
europeu para explicar a realidade brasileira.
Tinha-se, então, como solução dos problemas antagônicos de civi-
lização e barbárie, sertão e litoral, a constatação da dura realidade dos
sertões. Vale lembrar que não se deixava de lado totalmente o para-
digma do atraso e da inferioridade do sertão, até então concebido por
certa corrente literária e grande parte da elite brasileira. Essa busca
pelo que de fato ocorria na região estava totalmente ligada ao “ideal
missionário de civilizar os sertões” (LIMA, 1999, p. 57). Afinal, é com
base nesse pensamento, que acontecerão as viagens científicas realiza-
das pelos intelectuais por todo o Brasil no início do século XX.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


487
Missões e viagens científicas aos sertões
Sertão e viagens, estas vistas como expedições
civilizatórias, são termos que se interpenetram.
O desbravamento do sertão pode ser visto como
um movimento de forte conteúdo simbólico, que
acompanhou os projetos oficiais de delimitação
de fronteiras, saneamento, utilização de recursos
naturais, povoamento e integração econômica
e política. Este movimento missionário, fortemente
associado à expansão da presença do Estado, en-
controu como atores sociais agentes informados
pelo cientificismo.
Lima, 1999, p. 67

A passagem acima exemplifica bem o papel das “expedições” inte-


lectuais. Elas visavam à construção da nação, “forjando sua unidade terri-
torial e moral” e “sendo portadoras de uma cultura heroica” (CARVALHO,
1996 apud LIMA, 1999, p. 67). Era necessária a integração dessas áreas
com o resto do país, com a inserção de um projeto nacional para reunir
litoral e sertão.
A ênfase que damos aqui é nas viagens e esforços dos intelectuais e
pesquisadores, por meio do Instituto Oswaldo Cruz, para observação e análise
da situação dessas áreas. As pesquisas realizadas por essa instituição ligadas
ao tema sertão tinham por objetivo o combate às endemias e o controle
delas mediante a adoção de profilaxias. Estavam diretamente relacionadas
às atividades exportadoras que eram a base da economia brasileira, assim
como ao saneamento de ferrovias, à construção de portos etc.
A fiscalização da malária, assim como da leishmaniose e da febre
amarela, realizada por esses pesquisadores, principalmente nas áreas
em que havia a construção de linhas férreas,4 é um dos mais importantes
objetivos. Vai além quando há uma grande preocupação e identificação dos
hábitos locais, da natureza regional e de quais as medidas compulsórias que
deverão ser tomadas.

4
A construção dessas linhas férreas ia da região Norte, passando pelo Nordeste e alcançando o
estado de Goiás.

Mônica Santos da Silva


488
É assim que, em 1908, numa dessas viagens pelo país, quando Carlos
Chagas e Belisário Penna percorriam o norte de Minas Gerais,5 que o primeiro

[...] realizou várias observações sobre um inseto hematófago,


comum na região, popularmente conhecido como barbeiro.
Verificou que o inseto era o vetor de uma doença até então
desconhecida, que associou a uma série de manifestações mór-
bidas, especialmente cardiopatia, cretinismo e hipertireoidismo.
Causada por um protozoário denominado por Carlos Chagas
Trypanossoma cruzi, a doença recebeu o nome científico de tri-
panossomíase americana, ficando conhecida como doença de
Chagas. (LIMA, 1999, p. 80)

Com a descoberta da tripanossomíase americana, novas medidas de


controle passam a ser necessárias, assim como pesquisas para o seu combate.
Algum tempo depois do ocorrido, mais especificamente no ano de 1912,
são organizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz três expedições. Uma delas,
realizada por Belisário Penna e Artur Neiva, gerou o conhecido Relatório
Neiva–Penna (NEIVA e PENNA, 1999), que mostra a questão da ausência
de saneamento do Brasil e a necessidade de preocupar-se com o interior. É
nesse momento que o papel dos intelectuais, seus discursos e visibilidade nos
meios de divulgação da época irão fomentar o debate sobre nação, saúde
pública e as proximidades até então ignoradas entre litoral e sertão. É a força
do Movimento Sanitarista na Primeira República.

Relatórios, discursos e movimentos: a precariedade do


sertão brasileiro
[...] não nos iludamos, o nosso sertão começa
para os lados da avenida Central.
Afrânio Peixoto

Essa frase, dita por Afrânio Peixoto (apud HOCHMAN, 1998,


p. 218), professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, exempli-

5
Estavam em Lassance, lugarejo do norte de Minas Gerais, por exigência da Estrada de Ferro
Central do Brasil.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


489
fica bem o fato de que a distância e o contraste entre sertão e litoral, defi-
nidos pela oposição entre civilização e atraso, não era exatamente assim. A
proximidade entre essas regiões era maior do que se imaginava. A questão
de saneamento e de saúde que afetava o sertão era reflexo do que termi-
nava na avenida Central (atual Rio Branco) na então capital Rio de Janeiro.
É dessa forma que o governo e a elite brasileira começam a despertar para
a gravidade dos problemas sertanejos, que não atingiam somente o sertão,
estavam também no litoral.
O relatório Neiva–Penna foi o meio utilizado para interpretação da
realidade sertaneja e de sua proximidade com as demais regiões, inclusive
a capital. Esse documento apresentou várias características e problemas do
interior até então desconhecidas.
Tal relatório, assim como outros que resultaram de missões realiza-
das pelo Instituto Oswaldo Cruz, era constituído por informações sobre flo-
ra, fauna, endemias e precariedade das condições de vida da população
do Norte e Nordeste brasileiro, principalmente.6 O que eles haviam não só
enxergado, mas também analisado: a questão da raça não era o problema
do sertão brasileiro, muito menos o que impedia a construção da naciona-
lidade. A ausência de saúde, de saneamento, o abandono secular dessas
regiões pelo governo, o seu isolamento e a exclusão do resto do país, a po-
breza e a miséria que eram mais evidenciados pela falta de saneamento que
gerava um ambiente propício para agravo das endemias rurais é que eram
o problema. E eram as doenças resultantes desse descaso, que, atravessan-
do as barreiras delimitadas geograficamente e territorialmente, atingiam o
Brasil por inteiro. Esclarecia-se assim o empecilho para o progresso, o que
de fato era o atraso do país: “O Brasil é um vasto hospital”, frase de Miguel
Pereira (apud HOCHMAN, 1998, p. 218).
Talvez essa seja a frase que mais marcou a década de 1910 no Brasil,
que melhor tenha expressado o cenário do país, atravessando barreiras cultu-
rais, raciais e sociais. Exemplifica que o problema é nacional, não se restrin-
gea uma área. Foi dita durante um discurso público do médico-sanitarista e
6
É importante destacar que, mesmo estando no Norte e no Nordeste a maior área daquelas iden-
tificadas como sertão, as áreas centrais do país, região Centro-Oeste, e até mesmo o Sul também
faziam parte dele.

Mônica Santos da Silva


490
professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro Miguel Pereira, em
outubro de 1916.
É de extrema relevância apontar que essas viagens tinham um ca-
ráter civilizatório e preconizavam a necessidade de que as regiões fossem
salvas da doença, do analfabetismo, da miséria. Assim, os registros rela-
tados e fotografados,7 como também os discursos pronunciados, e a visi-
bilidade em conferências nacionais e mundiais desses intelectuais tiveram
grande destaque, como forma de exposição e publicação, nos anos iniciais
do Brasil republicano. Era uma forma de mostrar para o Brasil e para o
mundo a precariedade do seu quadro de saúde.

Movimento Sanitarista – propostas e adesões


dos sanitaristas e intelectuais
O Movimento Sanitarista se formou nos anos iniciais da década de
1910 e, cronologicamente, antecedeu os acontecimentos relatados até aqui.
Entretanto, como força de mobilização e atuação, ele vai crescendo, ao
mesmo tempo em que expõe a realidade pelos meios de divulgação e de
disseminação de informações. E isso acontece conforme os relatórios são
lidos e analisados, e os discursos, conhecidos.
O principal objetivo do movimento era a reforma do setor da saúde,
com o combate às endemias, principalmente as rurais, e a instituição de
políticas de saúde eficazes. Dessa forma, o ideal de nação poderia tornar-
se realidade. As propostas previam primariamente uma maior atuação do
Estado no saneamento e na saúde, com papel fundamental e imprescindível
para as mudanças ocorrerem. Enquanto o governo permanecesse
ausente e voltado para o federalismo,8 elas não aconteceriam. O foco
de suas propostas consistia numa maciça campanha rural em busca do
saneamento. O combate à malária, à ancilostomíase e à doença de
Chagas era essencial. O movimento acreditava no poder da ciência como

7
A fotografia foi um recurso bastante utilizado pelas “missões civilizatórias”. Era um meio de registrar
aquela realidade, causando, pela imagem, grande impacto.
8
A perspectiva dos sanitaristas era de que o federalismo, característica da política brasileira no período,
punha limites à intervenção do poder central no âmbito estadual e municipal, afetando as possibilidades
de uma atuação mais efetiva (interventora e centralizada) do governo federal na saúde pública.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


491
base da ação para a profilaxia e o controle das endemias. A educação
também era fundamental para resolver problemas como analfabe-
tismo e alcoolismo, e para favorecer uma população mais saudável física
e mentalmente.
Ainda nesse contexto, era necessário chamar a atenção das elites
nacionais para com o que acontecia, mostrando que tudo só seria possí-
vel se o governo atuasse. O movimento sanitarista foi fundamental para
sinalizar ao Estado a necessidade de transformar o sistema de saúde.
E não apenas isso: objetivava ir além de entregar a responsabilidade
nas mãos das autoridades republicanas. Desejava agir e tomar suas
próprias ações para a melhoria das condições de vida do povo. É essa
vontade que transformará muitas pretensões em ações concretas.

REALIZAÇÕES, CAMPANHAS E INSTITUIÇÕES

Em fins da década de 1910 e durante toda a década de 1920, as ques-


tões envolvendo saneamento nacional iam além dos debates e propostas
dos intelectuais. Visava-se implantar medidas para garantir a saúde e condi-
ções de vida adequadas para a população. A dura realidade sertaneja era,
de forma geral, o espelho do que acontecia em todo o país. Obviamente,
essas regiões sofriam mais por conta do total abandono e isolamento do resto
do Brasil. Contudo, as questões referentes ao sanitarismo não tinham que ser
idealizadas e instituídas somente nessas áreas, até porque, quando o tema é
saúde e a (possível) ocorrência de endemias, sabe-se que não existem barrei-
ras geográficas.

Liga Pró-Saneamento do Brasil


A Liga Pró-Saneamento do Brasil, fundada em fevereiro de 1918, reunia
cientistas, médicos, sanitaristas, sociólogos, escritores e intelectuais em ge-
ral, assim como parte da elite brasileira. O seu objetivo, como parte do mo-
vimento sanitarista, era a reforma no setor da saúde do país, promovendo
uma maciça campanha de higienização e saneamento de todo o território.

Mônica Santos da Silva


492
Essa campanha teria que ser feita tanto no sertão, onde as endemias rurais
arrebatavam grande parte da população, quanto na capital e no litoral,
onde a gripe espanhola9 dizimava as pessoas. Como as doenças não se
limitam a um determinado espaço e vão do sertão para o litoral e vice-versa,
é necessário um combate em todos os campos.
Além disso, outra questão proposta pela Liga seria a uniformização dos
serviços e ações de saúde, de forma que houvesse uma centralização do poder
público. Era necessário romper com a ordem política do país, o federalismo
(em que os Estados eram autônomos e cada um seria responsável por suas
obrigações e seus problemas individualmente). Isso deveria ocorrer de forma
que houvesse a garantia de saúde e de educação válida para todos os esta-
dos brasileiros.
Enfatizava-se novamente então, uma maior atuação do Governo
Federal para garantir saúde ao povo brasileiro. A ciência e a medicina
deveriam ser superiores a qualquer forma de política (e os interesses que
nela contêm) do país.
Vale ressaltar que ideias eugenistas e higienistas ainda estarão muito
presentes neste contexto. Estes conceitos não são abandonados e ainda in-
fluenciarão boa parte das correntes da época. Entretanto, há uma mudança
de foco e o pensamento se transforma junto com a visão sobre a saúde.
Monteiro Lobato pode ser um exemplo desta mudança.

Monteiro Lobato: de eugenista à sanitarista – Jeca Tatu


como referência do homem sertanejo
É de extrema importância expor o papel de Monteiro Lobato neste con-
texto. Um escritor bastante famoso e que é exemplo da corrente de pensa-
mento influenciada pelo modelo europeu e sua ciência. Ele exemplifica suas
convicções criando seu célebre personagem, o Jeca Tatu, que representa o
homem do interior, o homem sertanejo. As transformações do personagem e
sua vida ocorrem simultaneamente à perspectiva que Lobato passa a ter com
a influência dos ideais de saneamento e saúde.

9
A gripe espanhola (ou gripe de 1918), causada pelo recém-descoberto vírus influenza, foi consi-
derada pandêmica, uma vez que atingiu quase todo o mundo, após a Primeira Guerra Mundial. No
Brasil, ela fez milhares de vítimas, e isso também alertou o governo brasileiro sobre a necessidade de
adoção de políticas de saúde para combater e controlar doenças que atingiam todo o país.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


493
Este funesto parasita da terra é o caboclo, espécie de homem
baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive
à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças, à medida
que o progresso vem chegando com a via férrea, o italia-
no, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo
em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, o pica-pau e
o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo
e sorna. (LOBATO, 1918, p. 271 apud LIMA, 1999, p. 137)

Essa passagem está presente no conto “Velha praga” de Monteiro


Lobato. Com base nela, pode-se perceber como é a imagem do ca-
boclo que o autor formula. Ele atém-se à questão da raça, da figura
do caboclo (resultante da miscigenação) como incivilizado e atrasado,
inferiorizando-a. Assim, esse trecho exemplifica o conceito negativo
que o autor tem sobre o caboclo.
Além dessa imagem do caboclo, Lobato representa o homem do
interior, rural, como primitivo, isolado, ocioso, ignorante, preguiçoso, indo-
lente e parasita, dentre outros adjetivos. Esse tipo de indivíduo é encontra-
do somente nas áreas rurais do Brasil, e é resultado dos fatores ambientais
e das características de tais regiões. Dessa forma, fica claro como o escri-
tor interpreta o sertão e o sujeito sertanejo. É dessa visão que surge o Jeca
Tatu, o famoso personagem de sua obra Urupês: “Pobre Jeca Tatu! Como
és bonito no romance e feio na realidade”10 (LOBATO, 1918, p. 281 apud
LIMA, 1999, p. 137). Aqui Lobato elabora uma análise crítica acerca do
protagonista do livro, fazendo uma analogia com a literatura romântica,
que enaltece as qualidades do indígena e do caboclo sertanejo (LIMA,
1999, p. 137): “todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa
palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem
culturas nem comodidades. De qualquer jeito se vive” (LOBATO, 1918,
p. 284 apud LIMA, 1999, p. 138).
Monteiro Lobato defendeu essa ideia a respeito do caboclo caipi-
ra por bastante tempo. Expôs isso em seus personagens, sustentando a

10
Os contos de Urupês, publicado em 1918 e que contém essas passagens, inicialmente foram publi-
cados em O Estado de S. Paulo em 1914.

Mônica Santos da Silva


494
interpretação de que o sertanejo é um degenerado, primitivo e devas-
tador da natureza e do ambiente em que vive. Contudo, redefiniu a sua
percepção sobre a questão do “piraquara do Paraíba” 11 a partir da mo-
bilização o Movimento Sanitarista, afirmando: “Jeca Tatu não é assim,
ele está assim”. Essa frase, bastante conhecida, está diretamente rela-
cionada à mudança do ponto de vista do autor, e à adesão de Lobato
à campanha do saneamento rural e passa então a propor a regenera-
ção do Jeca (LIMA, 1999).
O cenário de vida ociosa, preguiçosa e parasitária do Jeca acaba
por tomar então um rumo diferente quando Lobato enfatiza que essas
questões ocorrem por cauda das péssimas condições de vida do sertanejo,
da miséria em que ele vive: são sintomas das doenças que o atingem. Isso
é, o foco que antes era o caboclo como raça degenerada que assolava
o meio ambiente vem a ser agora a ausência de educação e saúde.
O autor se junta à Liga Pró-Saneamento e passa a lutar pela implan-
tação de políticas de saúde que atendam aos enfermos, como é o caso do
Jeca Tatu. Propõe, ainda, em seus contos, que a melhora nas condições
de vida do caipira, com saneamento, higiene, educação e saúde, podem
levar ao progresso brasileiro. Monteiro Lobato vem a defender, então, uma
posição nacionalista, lutando junto com outros intelectuais por ações sani-
tárias para todo o Brasil.

Criação do Departamento Nacional de Saúde Pública


Após a forte campanha em favor de políticas sanitárias no Brasil
realizada pela Liga Pró-Saneamento, surgiu o Departamento Nacional de
Saúde Pública (DNSP). Foi criado em dezembro de 1919, após sua aprova-
ção na Câmara e no Senado, e regulamentado por decretos que estabe-
leciam um fundo para o financiamento de obras de saneamento e a renda
dos laboratórios e institutos de pesquisa federais, entre outros. Como bem
observa Hochman:

11
Termo com que Monteiro Lobato designa o Jeca Tatu.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


495
Esse novo departamento inaugurava uma nova etapa no desen-
volvimento de políticas de saúde pública e saneamento no Brasil
e significava a ampliação das atribuições do governo federal no
campo de saúde pública. A profilaxia rural foi incluída no DNSP
através da Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural (DSPR) que,
sob comando inicial de Belisário Penna, foi o serviço de saúde
mais ativo e de maior impacto, em especial, no que dizia respeito
à presença do governo federal nos estados. (1998, p. 226)

Assim, o DNSP ampliava os serviços sanitários de combate às


endemias em todo o país, dando ênfase às áreas rurais (ao sertão)
que sofria mais com essas doenças. O departamento conseguiu levar
o Estado a ter maior atuação na saúde do que tinha tido até então,12
resultando em maior centralização do poder, o que, gradativamente,
enfraqueceu o sistema oligárquico.
Vale enfatizar que havia um grande desejo de criação de um ministério
da saúde por parte dos intelectuais, principalmente aqueles que haviam se en-
gajado na Liga Pró-Saneamento. Essa vontade se apoiava na necessidade de
uma ação mais efetiva que administrasse e introduzisse os negócios do Esta-
do relacionados à saúde (no caso, um ministro), estendendo ainda mais, as-
sim, a atuação do Estado nesse âmbito.
O DNSP correspondeu, de certa forma, a esse ministério; entretanto,
agia mais em situações de emergência e urgência, e não era suficiente
para atender à demanda da população brasileira. Por isso, o anseio por
algo maior. Essa meta, no entanto, tardou a ser realizada: o Ministério da
Saúde só foi instituído no Brasil na década de 1930, com Getúlio Vargas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período final do século XIX e início do século XX, a “ciência


racialista” era a principal corrente de pensamento, e grande parte dos
intelectuais concordava que a raça era o problema fundamental a ser

12
É importante ressaltar que o estado de São Paulo era uma exceção, pois o governo estadual,
separadamente, promovera mudanças no setor da saúde, garantindo esse direito à população local.

Mônica Santos da Silva


496
resolvido para que a nação pudesse se desenvolver. Como contraponto a
essas ideias, de forma gradativa, muitas vezes associando-as ao tema ra-
cial, médicos, sanitaristas e higienistas, entre outros, passaram a interpretar
a realidade sem dar tanta ênfase à questão racial, focando-se na medicina
como meio de investigação e identificação dos problemas de saúde que,
de fato, assolavam o país.
Assim, a interpretação de intelectuais que viviam numa mesma
sociedade e assumiam para si tarefas comuns apresentava distinções
importantes, colocando em jogo a grande questão a respeito do que
impedia a construção da nação brasileira: fatores biológicos ou ausência de
educação e saúde e, sobretudo, as doenças que atingiam todo o país. As
questões em torno da raça paulatinamente perderam importância, tendo em
vista que a doença não escolhe a quem atingir. Então, todos os brasileiros
se tornam vulneráveis. O discurso e o desejo de uma nação autêntica se
formulam de outro modo e com outro viés: o combate às endemias via
ações de saneamento, incorporando a questão educacional e da saúde
como principais problemas a se enfrentar. Aplicando essa visão a todo o
país (e principalmente, às regiões sem nenhuma assistência governamental,
o sertão), não seriam necessárias políticas determinadas por distinções
e critérios raciais para criar uma nação, uma vez que ela seria formada
pelo esforço dos brasileiros de todos os matizes, com a condição de serem
tratados em termos da sua saúde e educados adequadamente.
Entretanto, é importante ressaltar que muito do que foi dito aqui,
neste trabalho, sobre a realidade brasileira, principalmente a do sertão no
início do século XX, apesar de se referir a determinado período histórico,
ocorrido há um século, ainda é um problema vivenciado por inúmeros
brasileiros atualmente.
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado no fim do século XX
com base na garantia de saúde a todos. Porém, apesar dos inegáveis
avanços atuais, quando se possui um ministério da saúde e um sistema de
saúde que visa implantar políticas públicas universais, porquanto se reco-
nhece a saúde como um direito de todo cidadão brasileiro, esse sistema
ainda não é eficaz o suficiente para atender as necessidades da popu-
lação. As diretrizes de universalidade e equidade do SUS, por exemplo,
ainda são falhas em todo o Brasil.

Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


497
A educação, que é um direito também do cidadão, mesmo com a cria-
ção de instituições, escolas públicas e planos nacionais de educação, com a
finalidade de atender a todas as classes, também ainda é um sistema bas-
tante deficiente e, para muitos, o acesso é bem restrito, sobretudo em termos
de educação de qualidade.
E quando se percebem as fragilidades no campo da saúde e
da educação, em um mundo “globalizado”, com a presença de uma
tecnologia maciça (que está inserida em uma parte considerável do Brasil),
ainda é possível observar, em pleno século XXI, que o Nordeste brasileiro,
muitas vezes associado ao sertão, ainda é a região brasileira em que são
identificados os índices mais precários de saúde e onde existe o acesso
mais difícil e restrito à educação.
Com isso, ao parar para refletir sobre a nação brasileira e se há o sen-
timento de se sentir parte dela, pergunta-se novamente sobre o sertão e, sem
muita dificuldade, conclui-se que a realidade da “nação” não é a mesma para
todos, que os direitos não são iguais por você ser “cidadão” perante a lei. A
miséria, a pobreza, a falta de saneamento, não são apenas passado e história
da sociedade. São, ainda, presente e realidade, assim como o significado de
nação. Isso mostra que a luta pela saúde, pela educação e por direitos em
geral é uma luta contínua, exigindo atenção constante para a superação de
muitas barreiras com vistas ao enfrentamento e à melhoria das condições
de vida do povo brasileiro e ao efetivo progresso do país, sem distinções de
classe, raça e região.

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Sertão brasileiro: para progredir e educar é preciso sanear


499
OS EFEITOS DA PRÁTICA DE
EXERCÍCIOS FÍSICOS NO
SISTEMA IMUNE EM IDOSOS*

Raquel Pinto Nunes**

INTRODUÇÃO

Uma série de benefícios decorrentes da prescrição e realização de exer-


cícios físicos para o corpo humano tem sido objeto de diversos estudos, por
autores de todo o mundo, tendo por objetivo uma discussão sobre o papel
dessa prática na saúde e na boa qualidade de vida.
O exercício físico pode retardar ou mesmo atenuar o processo de
perda das funções orgânicas observado no envelhecimento biológico, pro-
movendo melhorias no condicionamento físico e na aptidão social. Dessa
forma, a prática de exercícios físicos é um fator primordial para um bom
condicionamento físico e uma boa qualidade de vida, sendo frequente a
prescrição da mesma por médicos tanto no tratamento de diversos casos
clínicos quanto no acompanhamento da saúde do paciente, inclusive em
quadros de depressão e ansiedade. Os benefícios da prática de exercícios
físicos são não apenas físicos – metabólicos, antropométricos e neuromus-

*
O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da EPSJV, sob o seguinte número de protocolo: 0025.0.0408.000-11.
**
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Análises Clínicas (2009-2011). Atualmente cursa Farmácia na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de
curso, contou com a orientação dos professores-pesquisadores Flávia Coelho Ribeiro (doutora em
Ciências), do Laboratório de Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais de Saúde (Latec), e
Paulo Roberto Soares Stephens (mestre em Ciências-Microbiologia), do Laboratório de Imunologia
Clínica do Instituto Oswaldo Cruz (IOC)/Fiocruz. Contato: raquelpnunes@hotmail.com.

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


501
culares – mas também sociais e psicológicos – melhoria do autoconceito,
da autoestima e da imagem corporal e socialização. Inclusive, resultados
positivos no controle, tratamento e prevenção de doenças como diabetes,
enfermidade cardíaca, hipertensão, arteriosclerose, varizes, enfermidades
respiratórias, artrose, artrite e dor crônica têm sido observados (MATSUDO
e MATSUDO, 1992).
O próprio conceito de envelhecimento tem sido foco de diversos
estudos e pesquisas, assim como todos os campos de estudo que estão en-
volvidos nele, que pode ser considerado um processo multifatorial e com
inúmeras características. O conceito de idoso sofre diferenciação entre
países desenvolvidos e países em desenvolvimento; no Brasil, o Estatuto do
Idoso, substanciado na lei federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003,
afirma, em seu artigo 1º, que ele se destina a indivíduos com idade supe-
rior ou igual a 60 anos de idade (BRASIL, 2003). O presente trabalho se
baseará nessa mesma definição, tendo por idoso o indivíduo com 60 anos
ou mais.
A velhice é, muitas vezes, vista sob o aspecto da decadência e da im-
produtividade, por causa do observado declínio biológico normal ao envelhe-
cimento, que resulta em manifestações de patologias diversas e dificuldades
funcionais variadas (PEREIRA et al., 2004). É estruturada, então, uma visão
negativista de estigmatização do idoso, em virtude da degradação geral ob-
servada nas funções do corpo, a qual termina por atingir o indivíduo, refletin-
do psicológica e socialmente no mesmo.
E, à medida que a pessoa envelhece, exercita-se menos e sua capaci-
dade física diminui; assim, surge o sentimento de velhice aliado ao da inca-
pacidade, que podem levar a um quadro de depressão e estresse. Esses, por
sua vez, têm como consequência a diminuição dos níveis de atividade física,
que podem levar ao aparecimento de quadros de doenças crônicas, que por
fim aceleram o processo de envelhecimento (MATSUDO e MATSUDO, 1992).
Biologicamente, o processo de envelhecimento é resultado de
gradativas danificações em células, tecidos e órgãos do corpo, que
ocorrem com o avanço da idade, sendo caracterizado como um pro-
cesso de deterioração progressiva e irreversível (ESBÉRARD, 1999 apud

Raquel Pinto Nunes


502
GAVA e ZANONI, 2005). Tal processo natural, que se caracteriza pela
perda e diminuição gradual das funções orgânicas e no qual o indivíduo
limita suas capacidades intelectuais e físicas a níveis aceitáveis, é deno-
minado senescência (PERES, NARDI e CHIES, 2003).
Com o decorrer da idade, ocorre uma progressiva diminuição
de diversas funções celulares, dentre as quais a fosforilação oxidativa
mitocondrial, a síntese de ácidos nucleicos e de proteínas estruturais e
enzimáticas, de receptores celulares e fatores de transcrição. Tal diminui-
ção progressiva se relaciona a alterações moleculares diversas também
associadas ao envelhecimento e que se apresentam como fatores deter-
minantes da incidência de neoplasias em idosos, como os mecanismos
regulatórios da proliferação e apoptose celular, expressão de genes su-
pressores tumorais, entre outros (SILVA e SILVA, 2005).
Pode ser observada, com o envelhecimento, uma série de alterações
morfológicas e funcionais em todo o corpo relacionadas às alterações celula-
res já mencionadas, referentes ao avanço da idade. Essas manifestações do
fenômeno de envelhecimento podem se apresentar de formas diferentes, inclu-
sive entre indivíduos da mesma espécie, e até mesmo em diferentes velocida-
des, uma vez que o ritmo do processo de envelhecimento é definido por uma
série de interações entre o genoma e fatores externos (MOTA, FIGUEIREDO
e DUARTE, 2004). De modo geral, o processo de envelhecimento pode ser
biologicamente descrito como o resultado de gradativos e irreversíveis danos a
células e moléculas do organismo, que dessa forma perdem a sua capacidade
de restaurar determinados danos (GAVA e ZANONI, 2005).
Dentre essas diversas alterações, são observadas também consequên-
cias do fenômeno de envelhecimento, principalmente no sistema imunológico
do organismo. O sistema imunológico, formado por diversos órgãos e células
específicas, atua na eliminação de patógenos do organismo, bem como no
controle interno, evitando o desenvolvimento de imunopatologias. Os dife-
rentes mecanismos de defesa do corpo que o sistema imune comporta são
divididos em imunidade inata e imunidade adaptativa (MOTA et al., 2009).
A imunossenescência é o envelhecimento funcional do sistema imune,
associado a alterações na função efetora desse sistema de proteção do or-

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


503
ganismo, o que leva a uma maior suscetibilidade a doenças autoimunes, in-
fecções e neoplasias, e, consequentemente, a um maior índice de fenômenos
dessa natureza (MOTA et al., 2009). É a diminuição das respostas humoral
e celular que evidencia o processo de imunossenescência (EWERS, RIZZO e
KALIL FILHO, 2008; MOTA et al., 2009), processo esse que não está necessa-
riamente associado a alguma doença, sendo fenômeno normal decorrente de
uma série de alterações morfológicas e funcionais das células imunes (PERES,
NARDI e CHIES, 2003).
Muitas dessas alterações podem ter correlação, inclusive, com o
estresse, que se caracteriza como o grau de desgaste total sobre os
diversos aspectos do organismo e do indivíduo, causado pela vida. As
alterações imunes decorrentes do estresse podem ser justificadas pela
secreção do hormônio cortisol pelo córtex da adrenal, que além de
exercer efeitos sobre o metabolismo da glicose, funciona como um ini-
bidor do sistema imune (PEREIRA et al., 2004). Além disso, outro meca-
nismo de resposta ao estresse consiste na secreção de adrenalina e no-
radrenalina, que aumentam a pressão sanguínea, o que representa um
alto risco principalmente para idosos hipertensos (PEREIRA et al., 2004).
Diversos autores destacam, também, a relação existente entre o
envelhecimento e a intensificação de processos inflamatórios com os
quais diversas doenças crônicas estão relacionadas. Essa predisposi-
ção para processos inflamatórios se dá pelo aumento da liberação de
determinadas citocinas pró-inflamatórias, o que consiste numa das
consequências do processo de envelhecimento. O aumento dessas ci-
tocinas, assim, vem sendo relacionado com um aumento no risco de
doenças cardíacas em geral, de diabetes tipo II e de aterosclerose,
além de doença de Alzheimer, doença de Parkinson e artrite reuma-
toide. Assim, as altas concentrações de citocinas pró-inflamatórias no
soro poderiam estar associadas a um marcador potencial de doenças
crônicas (SANTOS e SANTOS, 2010).
Uma série de autores afirma que muitos dos benefícios da prática
de exercícios físicos estariam associados a uma integração empiricamente
comprovada entre essa prática e o funcionamento do sistema imune. Essa

Raquel Pinto Nunes


504
integração é observada pela indução de alterações transitórias no sistema
imunológico mediante o exercício físico, regulando uma série de mecanismos
do sistema imune e neuroendócrino por meio de diversos sinais, como
neurotransmissores, hormônios e citocinas, e pode ter sua base explicada
pela inter-relação existente entre o sistema nervoso, o sistema endócrino e o
sistema imunológico (LEANDRO et al., 2002).
Dessa forma, torna-se viável estabelecer uma relação entre algumas
características do declínio da função imune observadas no processo de en-
velhecimento com características estimuladoras dessa função imunológica
observadas na prática de exercícios físicos. Assim, vários estudos avaliam
possíveis combinações dessas características no sentido de analisar os possí-
veis benefícios dessa prática num organismo que sofre com a queda gradual
de suas funções imunes, num processo de imunossenescência.

ENVELHECIMENTO CELULAR E BIOLÓGICO

O envelhecimento é um processo natural do desenvolvimento que en-


volve diversas alterações em âmbitos tanto biológicos quanto psíquicos ou
sociais do indivíduo, uma vez que se desenvolve de maneira simultânea a fa-
tores endógenos e exógenos. Por essa simultaneidade de aspectos envolvidos
no processo, ele é caracterizado como multifatorial (SANTOS, ANDRADE e
BUENO, 2009), pode se desenvolver de maneiras diferentes entre indivíduos
da mesma espécie (MOTA, FIGUEIREDO e DUARTE, 2004), manifestando-
se de maneira mais evidente na velhice (SANTOS, 2010).
O declínio biológico normal pelo qual diversos autores caracterizam
esse processo gera uma associação do conceito de velhice com uma ideia de
decadência e improdutividade. Esse envelhecimento natural, que comprome-
te progressivamente aspectos físicos e cognitivos, é denominado senescência
(PEREIRA et al., 2004), e é resultado da danificação de moléculas, células e
tecidos, os quais perdem gradativamente a capacidade de reparar esse dano
(GAVA e ZANONI, 2005). Assim, ele se caracteriza como um processo de
deterioração progressiva irreversível (GAVA e ZANONI, 2005).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


505
Biologicamente, existem diversas teorias que tentam explicar os as-
pectos do envelhecimento humano, sendo que as principais se baseiam
em fatores relacionados à genética, à imunologia e aos radicais livres.
Tem-se, porém, uma grande dificuldade de obtenção de uma definição
exata e uma teoria concreta e absoluta acerca do processo de envelhe-
cimento, visto que todas as células, tecidos e órgãos do organismo não
se comportam da mesma maneira em relação a esse processo (GAVA e
ZANONI, 2005).

Alterações celulares evidenciadas no envelhecimento


Com o envelhecimento, diversas funções celulares diminuem progres-
sivamente, e algumas alterações funcionais nas células consideradas normais
são observadas. De acordo com Silva e Silva (2005), destacam-se, entre elas,
redução da fosforilação mitocondrial, redução da síntese de ácidos nucleicos
e de proteínas estruturais e enzimáticas, redução de receptores enzimáticos e
fatores de transcrição, diminuição da capacidade de captação de nutrientes,
diminuição da capacidade de reparo de lesões cromossômicas e acúmulo do
pigmento de lipofuscina, o que evidencia lesão oxidativa.
Essas alterações funcionais estariam relacionadas com alterações mor-
fológicas nas células – núcleos irregulares com lobos anormais, mitocôndrias
pleomórficas, retículo endoplasmático reduzido, aparelho de Golgi distorcido
e encurtamento telomérico – que ocorrem no processo de envelhecimento.

Alterações morfológicas evidenciadas no


envelhecimento
Todas as modificações celulares acima resultam numa série de alte-
rações funcionais e anatômicas no organismo e que constituem o reflexo
mais perceptível dessas modificações celulares. As alterações morfológicas,
uma vez que o envelhecimento é um processo que afeta todo o organismo,
podem ser observadas em diversos sistemas e em todo o indivíduo, e são as
responsáveis pela construção da visão negativista que a sociedade carrega
acerca do envelhecimento e dos idosos.

Raquel Pinto Nunes


506
Matsudo e Matsudo (1992) destacam, dessa gama de alterações
funcionais e fisiológicas evidenciadas no decorrer do envelhecimento, de-
terminadas alterações observadas em nível antropométrico, muscular, neu-
ral, pulmonar e cardiovascular (quadro 1).

Quadro 1. Alterações funcionais e fisiológicas


evidenciadas no envelhecimento.

ganho de peso
diminuição da altura
Nível antropométrico incremento de gordura corporal
diminuição da massa muscular
diminuição da densidade óssea
perda de 10 a 20% da massa muscular
diminuição na habilidade para manter
força estática
maior índice de fadiga muscular
diminuição do tamanho e número de
fibras musculares
Nível muscular diminuição dos estoques de ATP,
creatina-fosfato, glicogênio e proteína
mitocondrial
diminuição de enzimas glicolíticas e
oxidativas
diminuição da capacidade de
regeneração
diminuição do número e tamanho dos
neurônios
Nível neural menor velocidade de movimento dos
neurônios
diminuição do fluxo sanguíneo cerebral
diminuição da capacidade vital
Nível pulmonar menor mobilidade da
parede torácica

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


507
diminuição da frequência cardíaca
diminuição do gasto cardíaco
diminuição da utilização de O2
pelos tecidos
aumento da pressão arterial
Nível cardiovascular
aumento da concentração
de ácido lático
aumento do débito de O2
menor capacidade de adaptação e
recuperação do exercício físico
diminuição da agilidade
diminuição da coordenação
diminuição do equilíbrio
Outros diminuição da flexibilidade
diminuição da mobilidade articular
aumento da rigidez de cartilagens,
tendões e ligamentos
Fonte: Adaptado de Matsudo e Matsudo, 1992.

Destaca-se, por fim, o caráter multissistêmico do envelhecimento bio-


lógico, evidenciado em todo o funcionamento do organismo, com alterações
que explicitam a deterioração geral de funções orgânicas e fisiológicas. Dessa
forma, também é afetado o sistema imunológico do indivíduo idoso, acarretan-
do maior susceptibilidade a quadros de doenças crônicas e diversas patologias.

O SISTEMA IMUNOLÓGICO E A IMUNOSSENESCÊNCIA

Dentre os diversos fenômenos biológicos envolvidos no processo de


envelhecimento humano, estão as alterações que se manifestam no sistema
imunológico. O sistema imunológico constitui o sistema responsável pela
defesa do organismo, na eliminação não apenas de agentes patogênicos –
como vírus, fungos, bactérias, protozoários e parasitas multicelulares –, mas

Raquel Pinto Nunes


508
também de células tumorais. Os variados mecanismos desse sistema atu-
am também no controle interno do organismo contra o desenvolvimento
de imunopatologias (MOTA et al., 2009). Tais mecanismos são didatica-
mente divididos em imunidade inata e imunidade adaptativa, apesar de,
efetivamente, estarem ambas intimamente interligadas no organismo.
Em indivíduos idosos, o sistema imune normalmente se apresenta depri-
mido e limitado, e diversos estudos atribuem a isso a explicação para a maior
incidência de doenças crônico-degenerativas e neoplasias nessa fase, além da
maior suscetibilidade a infecções diversas. Da mesma forma, essa falha no
funcionamento do sistema imune afeta o reconhecimento de estruturas
do próprio organismo, levando o sistema imune a reconhecê-las como
um organismo estranho, o que explica a maior incidência de quadros de
doenças autoimunes (SILVA e SILVA, 2005). Tem-se, assim, por imunosse-
nescência o envelhecimento normal – não necessariamente associado a
doenças (PERES, NARDI e CHIES, 2003) – do sistema imunológico com
o decorrer da idade (EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008).
Esse processo de envelhecimento imunológico evidencia-se por uma
diminuição tanto na resposta imune celular quanto na resposta imune hu-
moral (MOTA et al., 2009), uma vez que as alterações relacionadas ao pro-
cesso podem ocorrer em qualquer etapa do desenvolvimento da resposta
imune – por se tratar de um processo multifatorial e que envolve reorganiza-
ções e mudanças no desenvolvimento regulatório (EWERS, RIZZO e KALIL
FILHO, 2008).
As alterações celulares e moleculares que podem resultar na dimi-
nuição da função imunológica do idoso podem ser classificadas, segundo
Silva e Silva (2005), em três tipos: diminuição do número absoluto de cé-
lulas; diminuição do número relativo de células; e diminuição da eficiência
funcional das células. Essas mudanças estão relacionadas com as altera-
ções normais das funções celulares e fisiológicas observadas em todo o
organismo, como discutido no item “Envelhecimento celular e biológico”.

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


509
Alterações observadas na medula óssea e no timo
As células do sistema imune possuem curto período de vida; logo,
necessitam ser constantemente renovadas, e essa reposição ocorre por
meio do pool de células-tronco hematopoiéticas (MOTA et al., 2009). Com
o envelhecimento, porém, esse pool sofre uma diminuição na capacidade de
autorrenovação (PERES, NARDI e CHIES, 2003), o que pode comprometer
todos os eventos que dependem de sua integridade, incluindo a produção
de células imunes e, consequentemente, a geração de resposta imunológica
(MOTA et al., 2009).
A comparação do perfil de expressão de células-tronco hematopoié-
ticas jovens e idosas revelou que os genes que medeiam o destino e função
linfoide eram sistematicamente inibidos com o envelhecimento, enquanto os
genes de especificidade mieloide eram ativados (MOTA et al., 2009).
Durante o envelhecimento, o timo sofre diversas alterações que
afetarão diretamente a produção de células T (PERES, NARDI e CHIES,
2003). O timo senil perde a capacidade de influenciar funções como a de
repovoamento de áreas de linfonodos dependentes de linfócitos T (SILVA
e SILVA, 2005).
A redução do tamanho e a substituição de tecido tímico por tecido
adiposo – involução tímica – é a principal alteração anatômico-histológica
observada no envelhecimento, e se inicia já antes da fase adulta (MOTA
et al., 2009; PERES, NARDI e CHIES, 2003). Possíveis mecanismos que
levariam a essa atrofia tímica são a exaustão clonal – relacionada ao
encurtamento dos telômeros das células tímicas –, alterações no DNA des-
sas células e alterações da estabilidade molecular na estrutura das células
(SILVA e SILVA, 2005).
A atrofia tímica está relacionada a alterações na quantidade de célu-
las T ativas – a qual não é compensada pelos linfócitos dos órgãos linfoides
periféricos – e a deficiências de citocinas e hormônios tímicos (MOTA et al.,
2009). Porém, Peres, Nardi e Chies (2003) destacam que, mesmo com a
queda na taxa de saída de células ao longo do processo de involução tímica,
o número de células T na periferia de um indivíduo idoso saudável permanece
praticamente constante, enquanto Silva e Silva (2005) dizem que, na verdade,

Raquel Pinto Nunes


510
ocorre uma diminuição no número absoluto de linfócitos T circulantes, com a
manutenção no número de linfócitos B.
É importante destacar, ainda, que as células epiteliais tímicas produ-
zem número significativo de fatores estimulantes de colônias – envolvidos na
maturação de linfócitos – e de citocinas hematopoiéticas, como IL-1, IL-3,
IL-6 e IL-7. Observa-se, inclusive, que no envelhecimento fica inibida a secre-
ção de IL-7, essencial na manutenção e desenvolvimento dos linfócitos, pelas
células da medula óssea, sendo estimulada a produção de IL-6 (MOTA et
al., 2009).

Alterações observadas na imunidade inata


A imunidade inata é a primeira linha de defesa do organismo e é
constituída por barreiras físicas e por mecanismos celulares e moleculares.
Quando comparada com a imunidade adaptativa, ela é menos específica: é
a imunidade que nasce com o próprio organismo – seus mecanismos existem
mesmo antes da exposição dele ao patógeno – e estimula as respostas
imunológicas adquiridas, podendo influenciar sua natureza e otimizá-la
(ABBAS, LICHTMAN e PILLAI, 2008).
Tem-se como uma característica normal do envelhecimento o de-
sarranjo das barreiras epiteliais da pele, pulmão e área gastrointestinal,
o que permite a invasão de microrganismos patogênicos às mucosas.
Essa invasão tem consequências ainda mais desafiadoras para a imuni-
dade do indivíduo idoso (MALAFAIA, 2008).
Os neutrófilos são células fagocíticas descritas como os elementos celu-
lares mais importantes e numerosos da imunidade inata (ABBAS, LICHTMAN
e PILLAI, 2008). Mesmo que não tenha sido observada alteração no seu nú-
mero em indivíduos idosos, seus neutrófilos apresentam significativas altera-
ções funcionais e nos sinais de transdução que emitem (MALAFAIA, 2008).
Funções como a quimiotaxia, produção de ânion superóxido e apoptose mos-
tram-se alteradas, o que pode ser explicado por modificações de sinalização
de receptores (MOTA et al., 2009).
Mudanças na capacidade fagocítica e bactericida dos neutrófilos tam-
bém são observadas com o envelhecimento, com o declínio dessas atividades

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


511
celulares. Os neutrófilos senis são incapazes de permanecer vivos no sítio de
infecção por tempo suficiente para desempenhar a atividade fagocitária, o
que se explica pela menor resposta a citocinas que normalmente prolongam
essa atividade. Tal redução fagocítica no idoso sofre influência, ainda, da
apoptose prematura que caracteriza tais células senis (MOTA et al., 2009).
Os macrófagos são células fagocíticas presentes em diversos tecidos, e
persistem nos locais de infecção por mais tempo de que os neutrófilos (ABBAS,
LICHTMAN e PILLAI, 2008). Observa-se na imunossenescência um declínio
geral das suas atividades, o que pode ser relacionado com uma queda na
sua capacidade de responder à ativação ou com um declínio nos sinais de
ativação provenientes de outras células (SANTOS e SANTOS, 2010).
Em relação aos macrófagos de um indivíduo idoso, destacam-se, além
de alterações semelhantes às observadas nos neutrófilos, uma diminuição na
quantidade de precursores macrofágicos – monócitos – da medula óssea e
uma redução na produção de moléculas de sinalização (MOTA et al., 2009).
Pode-se ressaltar, inclusive, a ineficiência dessas células num indivíduo idoso
na regulação da expressão de moléculas do complexo de histocompatibili-
dade da classe II (MHC-II), o que prejudica a apresentação de antígenos e a
ativação das células TCD4+ diretamente (MALAFAIA, 2008).
As células dendríticas – principal ponte entre as imunidades inata e
adaptativa – são semelhantes tanto em idosos quanto em jovens no que diz
respeito à produção de citocinas, embora as células senis secretem mais IL-6
e TNF-α. Já em relação à fagocitose do corpo apoptótico, essa se apresenta
anormal em indivíduos envelhecidos, além de observar-se uma falha na ge-
ração de respostas anti-inflamatórias, o que poderia explicar o aumento dos
processos inflamatórios vinculado ao envelhecimento (MOTA et al., 2009).
Pode-se destacar, também, que a densidade dessas células na pele, bem
como a expressão de moléculas MHC-II e a capacidade de apresentação
de antígenos apresentam-se alteradas em animais envelhecidos (MALAFAIA,
2008). Ewers, Rizzo e Kalil Filho (2008) destacam não haver diminuição gene-
ralizada no número de células dendríticas no organismo, mas uma diminuição
numérica em alguns órgãos ou tecidos em particular – como os linfonodos
e a mucosa oral. Porém, Ewers, Rizzo e Kalil Filho (2008) também afirmam

Raquel Pinto Nunes


512
que alguns estudos descrevem diminuições no número de células dendríticas
de origem mieloide e células dendríticas imaturas no sangue de indivíduos
idosos, o que também explicaria o aumento na incidência de fenômenos au-
toimunes nessa faixa etária.
As células natural-killer (NK) são populações de linfócitos grandes e
granulosos presentes no sangue, e, principalmente, no baço (MOTA et al.,
2009), que reconhecem células do corpo infectadas ou expostas a altas car-
gas de estresse, destruindo-as diretamente e secretando citocinas inflamató-
rias. As células NK constituem, também, importante fonte de IFN-γ, citocina
de ativação dos macrófagos (ABBAS, LICHTMAN e PILLAI, 2008).
Em relação às células NK no envelhecimento, observa-se um aumento
no número de células circulantes, ao passo que a atividade dessas células
encontra-se diminuída. A diminuição na resposta a citocinas, por exemplo,
resulta em declínios na citotoxicidade celular e na síntese de citocinas e qui-
miocinas (MOTA et al., 2009; MALAFAIA, 2008).
Existem, porém, controvérsias quanto a esse aumento, visto que alguns
autores indicam que, na verdade, ocorre uma diminuição ou uma manuten-
ção desse número (SILVA e SILVA, 2005). Sabe-se, ainda, que a atividade das
células NK está relacionada a níveis séricos de vitamina D ingerida (EWERS,
RIZZO e KALIL FILHO, 2008), sendo esse um possível interferente nos diferen-
tes resultados publicados.
Relacionam-se, ainda, as células NKs ao controle de células ne-
oplásicas; assim, a diminuição da sua capacidade de lise contribui-
ria para o desenvolvimento de neoplasias em indivíduos idosos (PERES,
NARDI e CHIES, 2003). Malafaia (2008) considera, ainda, aspectos
moleculares da imunossenescência, explicitando que defeitos tanto no
nível da expressão quanto da função de receptores toll-like são observa-
dos durante o envelhecimento, o que pode aumentar a susceptibilidade a
infecções bacterianas, micóticas e virais na população idosa, além
da severidade das mesmas.
As citocinas são os grandes mediadores da resposta imune e contro-
lam diferentes funções celulares (EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008). O
envelhecimento, por sua vez, tem sido associado a alterações na produção

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


513
dessas citocinas (SANTOS e SANTOS, 2010), o que se reflete em alterações
em diversos mecanismos celulares.
De modo geral, observa-se um aumento na produção de citocinas
pró-inflamatórias em indivíduos idosos, frente a uma diminuição na pro-
dução de citocinas anti-inflamatórias (SANTOS e SANTOS, 2010). Essa
tendência estaria associada ao maior índice de quadros inflamatórios em
idosos, o que pode relacionar-se com o desenvolvimento comum de al-
gumas doenças crônicas nessa faixa etária, como aterosclerose, artrite,
demência e outras.
Diversos estudos se contrapõem em relação aos níveis de produção de
determinadas citocinas, como evidenciado no quadro 2.

Quadro 2. Alterações dos níveis de produção de citocinas no envelhecimento.

Principais alvos celulares e Comportamento no


Citocina Referências
efeitos biológicos envelhecimento
Células endoteliais: ativa- Ewers, Rizzo
IL-1 ção (inflamação, coagula- Aumento e Kalil Filho,
ção) 2008
Células T: proliferação, sín-
tese aumentada de citoci-
nas; potencializa apoptose
mediada por Faz; promove
desenvolvimento de células Peres, Nardi
IL-2 T reguladoras, sobrevida Diminuição e Chies,
2003
Células NK: proliferação,
ativação
Células B: proliferação,
síntese de anticorpos

Fator estimulante de Peres, Nardi


IL-3 colônia, envolvida na Aumento e Chies,
maturação de linfócitos 2003

Raquel Pinto Nunes


514
Peres, Nardi e Chies
Células B: troca de isótopo (2003) mencionam,
para IgE em seu trabalho, dife-
rentes autores que
Células T: diferenciação de
afirmam a ocorrência Peres, Nardi
TH2, proliferação
IL-4 de diminuição, manu- e Chies,
Macrófagos: inibição me-
tenção ou aumento 2003
diada por IFN-γ
na produção de IL-4,
Mastócitos: proliferação o que impossibilita a
(in vitro) elaboração de uma
conclusão objetiva.

Eosinófilos: ativação produ-


Peres, Nardi
ção aumentada
IL-5 Manutenção e Chies,
Células B: proliferação,
2003
produção de IgA (in vitro)

Ewers, Rizzo
e Kalil Filho,
2008
Fígado: síntese de proteí- Peres, Nardi
IL-6 Aumento
nas de fase aguda e Chies,
2003
Mota et al.,
2009
Linfócitos: maturação e Mota et al.,
IL-7 Inibição
desenvolvimento 2009

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


515
Macrófagos, células
dendríticas: inibição de Peres, Nardi
IL-10 produção de IL-12 e ex- Aumento e Chies,
pressão de coestimuladores 2003
e moléculas MHC classe II

Células endoteliais: ativa-


ção (inflamação, coagula- Ewers, Rizzo
ção) e Kalil Filho,
Neutrófilos: ativação 2008
Hipotálamo: febre Santos e
TNF-α Fígado: síntese de proteí- Aumento Santos,
nas de fase aguda 2010
Músculo, gordura: catabo- Peres, Nardi
lismo (caquexia) e Chies,
Muitos tipos de células: 2003
apoptose

Macrófagos: ativação (fun-


ções microbicidas aumen-
tadas)
Células B: troca de isótopo
para subclasses de Ig de
opsonização e fixação do
complemento Peres, Nardi
IFN-γ Células T: diferenciação de Aumento e Chies,
TH1 2003
Outras: expressão aumen-
tada de moléculas MHC de
classe I e classe II, pro-
cessamento de antígeno e
apresentação às células T
aumentadas.

Raquel Pinto Nunes


516
Alterações observadas na imunidade adaptativa
Diferentemente da resposta imune inata, as respostas da imunidade
adaptativa são estimuladas pela exposição a agentes infecciosos e, dessa for-
ma, sua magnitude e capacidade defensiva aumentam a cada exposição a
determinado microrganismo. Assim, atribuem-se a essa imunidade algumas
características fundamentais, como especificidade, diversidade, memória, ex-
pansão clonal, especialização e homeostasia, além da tolerância a antígenos
do próprio organismo (ABBAS, LICHTMAN e PILLAI, 2008).
Em idosos saudáveis, observa-se, de maneira geral, um decrés-
cimo de 10 a 15% no número de linfócitos totais – podendo chegar a
30%, segundo alguns estudos (SILVA e SILVA, 2005) –, decréscimo que é
responsável pela diminuição da capacidade do idoso em responder a es-
tímulos antigênicos (MALAFAIA, 2008). Outro dado importante é a dimi-
nuição da resposta imune mediada por células, o que traz como conse-
quência uma diminuição da hipersensibilidade tardia, comprometendo a
vigilância imunológica para o câncer, por exemplo (SILVA e SILVA, 2005).
Enquanto alguns estudos apontam para a não alteração no número de
linfócitos T com o envelhecimento (PERES, NARDI e CHIES, 2003; MOTA et
al., 2009), outros autores defendem o declínio no número dessas células no
indivíduo idoso (SANTOS e SANTOS, 2010; SILVA e SILVA, 2005). O que se
sabe, porém, é que as células T periféricas, em idosos, apresentam algumas
alterações fenotípicas e funcionais (PERES, NARDI e CHIES, 2003). Entre elas,
destacam-se a diminuição na expressão de moléculas de superfície, altera-
ções na sinalização intracelular, aumento na razão de apoptose e diminuição
na capacidade proliferativa (SANTOS e SANTOS, 2010). Algumas das pos-
síveis explicações para essas alterações envolvem interações regulatórias e a
formação de células T de memória (PERES, NARDI e CHIES, 2003).
A diminuição na capacidade de ativação e proliferação das célu-
las T com o envelhecimento não é consenso. Enquanto alguns estudos
apontam para uma diminuição dessa capacidade (EWERS, RIZZO e KALIL
FILHO, 2008), outros defendem a manutenção da mesma (PERES, NARDI
e CHIES, 2003).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


517
Estudos que defendem a ocorrência de alteração na capacidade de
ativação e proliferação de células T associam esse fenômeno a defeitos nos
eventos precoces da cascata de sinalização. Esses defeitos poderiam ser na
fosforilação da tirosina, na mobilização do cálcio, na translocação do núcleo
e na produção de IL-2 (EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008). A diminuição
na produção de IL-2 estaria relacionada com um decréscimo de células T
helper 1, responsáveis pela produção da mesma (MOTA et al., 2009).
Num indivíduo jovem, existe uma superioridade numérica de células T
virgens em relação às células T maduras. Com a imunossenescência, porém,
observa-se uma inversão dessa proporcionalidade de subpopulações celula-
res (PERES, NARDI e CHIES, 2003; MOTA et al., 2009). Isso é resultado do
contato do organismo com diferentes patógenos ao longo da vida, que resulta
numa maior produção de células de defesa especializadas (PERES, NARDI e
CHIES, 2003).
Não se sabe, porém, se essas células mantêm a sua eficiência na res-
posta imune com o envelhecimento do indivíduo (PERES, NARDI e CHIES,
2003), mas estudos defendem que elas tendem a se multiplicar menos diante
da exposição ao antígeno em relação às células mais jovens (MOTA et al.,
2009). Isso seria explicado pelo fato de as células T de memória normalmente
possuírem a molécula CD28 – proteína responsável pelo estímulo à divisão
celular ante a presença do antígeno – em sua superfície, e, com o envelheci-
mento, essas células tendem a perder essa molécula de superfície (MOTA et
al., 2009).
Em relação também a essa eficiência de atuação dos linfócitos T senis,
observa-se o aumento do número de linfócitos T autorreativos – linfócitos que
respondem a componentes moleculares do próprio hospedeiro – com o enve-
lhecimento (SILVA e SILVA, 2005).
Alterações qualitativas e quantitativas na imunidade humoral são
associadas ao envelhecimento, como um declínio numérico e funcional de dos
linfócitos B com o envelhecimento (SANTOS e SANTOS, 2010; PERES, NARDI
e CHIES, 2003). Essa diminuição do número de linfócitos B no organismo, por
exemplo, pode desencadear uma leucemia crônica B, quadro muito comum
em idosos (EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008).

Raquel Pinto Nunes


518
Alguns mecanismos que explicam essas alterações funcionais são
a diminuição na capacidade de diferenciação e alterações na sinalização
intracelular (SANTOS e SANTOS, 2010). Em linfócitos B senis, sua afinidade,
idiotipo e isotipo encontram-se diferenciados em relação a células jovens
(PERES, NARDI e CHIES, 2003; MALAFAIA, 2008). Outros estudos,
porém, defendem que essas mudanças na funcionalidade de linfócitos B
não se devem a mudanças nessas próprias células, mas em seu ambiente –
como a estimulação incompleta de outras células ou alterações nas
citocinas circulantes (SANTOS e SANTOS, 2010).
Outra alteração qualitativa na atuação dos linfócitos B de indivíduos
idosos encontra-se na própria produção de anticorpos. Os anticorpos produ-
zidos por essas células senis não atuam de forma adequada – não opsonizam
adequadamente antígenos, por exemplo, mesmo com elevada concentração
e alta especificidade (MOTA et al., 2009).
Na imunossenescência, a imunoglobulina IgG, responsável pelas
ações de opsonização, ativação do complemento, mediação de citotoxici-
dade e inibição por feedback das células B, e a imunoglobulina IgA, envol-
vida na imunidade de mucosas, estão normalmente aumentadas, enquanto
os níveis de IgM, receptor de antígeno de células B naïve e responsável
pela ativação do complemento, permanecem inalterados (EWERS, RIZZO
e KALIL FILHO, 2008; MOTA et al., 2009; SILVA e SILVA, 2005). Os níveis
de IgG1, IgG2 e IgG3, por sua vez, mostram-se significativamente alterados,
enquanto os níveis de IgG4 não (EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008). Há,
porém, uma perda de anticorpos IgG de alta afinidade durante o envelheci-
mento, o que contribui para o aumento da susceptibilidade e da gravidade de
doenças infecciosas em idosos, assim como uma menor eficiência na vacina-
ção dos mesmos (MOTA et al., 2009; MALAFAIA, 2008).
É importante destacar que IgG1 e IgG3 estão relacionadas com
a resposta humoral contra vírus e bactérias; IgG2 e IgM – esta, uma
imunoglobulina de fase aguda –, estão relacionadas com respostas con-
tra polissacarídeos; e IgG4 e IgE estão relacionadas com respostas contra
parasitas e envolvida nas reações de hipersensibilidade (EWERS, RIZZO
e KALIL FILHO, 2008).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


519
Morte celular na imunossenescência
No sistema imune, o papel principal da apoptose celular está na se-
leção do repertório de linfócitos T no timo, além da seleção de linfócitos T
e B autorreativos e da regulação da memória imunológica e das células NK
(EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008).
No envelhecimento, observa-se uma linfopenia progressiva de células
T tanto CD4+ quanto CD8+, o que se dá pelo decréscimo de precursores na
medula óssea, pela redução do potencial proliferativo e/ou pelo aumento
da apoptose.

Parece contraintuitivo que um aumento na apoptose seja temporal-


mente associado a um aumento nas doenças autoimunes, entretan-
to, há duas hipóteses. A primeira seria um aumento preferencial na
morte de células T reguladoras; a segunda, a perda progressiva de
linfócitos T que respondem contra antígenos nominais e que permi-
tiria o desenvolvimento de clones autorreativos, pois abriria “espa-
ço” na periferia para o desenvolvimento dessas células. (EWERS,
RIZZO e KALIL FILHO, 2008, p. S19)

Autoimunidade na imunossenescência
Na autoimunidade, pode ocorrer uma falha nos mecanismos de
controle do sistema imune no que diz respeito à sua propriedade de to-
lerância a componentes próprios do organismo, levando a uma resposta
imunológica contra esses componentes e também à criação de autoanti-
corpos naturais (MALAFAIA, 2008).
A progressiva ativação de macrófagos e células relacionadas
parece ser a principal consequência da exposição crônica a antíge-
nos, porém a contínua mudança antigênica seria a responsável pelo
progressivo estado pró-inflamatório existente na imunossenescência. A
indução e a manutenção de tolerância antígeno específica pelo sis-
tema imune é, desse modo, primordial para a prevenção de doenças
autoimunes, bem como na proteção contra microrganismos, levando à
manutenção do equilíbrio imune. Tal tolerância é mediada, por exem-
plo, pela ação das células dendríticas, que realizam o reconhecimento

Raquel Pinto Nunes


520
de estruturas próprias e não próprias do organismo (EWERS, RIZZO e
KALIL FILHO, 2008).
O funcionamento dessas células, porém, encontra-se alterado em indi-
víduos idosos, além de ser relatada a diminuição do número delas no sangue
(EWERS, RIZZO e KALIL FILHO, 2008). Tais fatores poderiam contribuir para
a ineficiência no reconhecimento de estruturas próprias ao organismo, acarre-
tando maior incidência de fenômenos de natureza relativa tanto à autoimuni-
dade quanto a processos inflamatórios em geral.
Silva e Silva (2005) destacam que a autoimunidade não deve ser associada
apenas a uma deficiência imunológica, uma vez que ela contribui inclusive, no
idoso, para um aumento da atividade dos anticorpos anti-idiotípicos.1 Além
disso, o aumento da incidência de autoanticorpos e de doenças autoimunes em
indivíduos idosos também pode estar relacionado com alterações funcionais
observadas em células T, especialmente células T supressoras (PERES, NARDI
e CHIES, 2003). A redução da atividade tímica também tem se mostrado um
fator contribuinte da geração de autoanticorpos em idosos.

Todo ser humano normal possui linfócitos potencialmente


autorreativos circulantes e acredita-se que estes linfócitos não
desenvolvem reações indesejáveis por estarem sob o controle
de linfócitos supressores. No entanto, com a involução tímica
e com a consequente migração reduzida de novas células a
partir desse órgão, o repertório de células T periféricas deve
se sustentar principalmente através da proliferação de linfócitos
preexistentes. (PERES, NARDI e CHIES, 2003, p. 191)

Dessa forma, tem-se um delicado equilíbrio que pode ser quebrado


caso ocorra ausência ou diminuição excessiva do número de células T su-
pressoras capazes de impedir o desenvolvimento de uma resposta autoimune
(PERES, NARDI e CHIES, 2003).

1
Anticorpos dirigidos contra outros anticorpos, que têm sua produção aumentada em indivíduos
idosos e modulada por linfócitos T periféricos, os quais possuem longa sobrevida (SILVA e SILVA,
2005).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


521
Neoplasias e imunossenescência
As neoplasias malignas, conhecidas popularmente como câncer, são
resultado de alterações no processo apoptótico e/ou proliferativo de deter-
minadas células, que leva a um desequilíbrio denominado heterostase. Tal
desequilíbrio favorece um acúmulo desordenado de células, o qual dá origem
a um neoplasma capaz de gerar sintomas e sinais que caracterizam o quadro
(SILVA e SILVA, 2005).
Na imunossenescência, tem-se uma diminuição da atividade efetora
das células NK, que são células fundamentais no controle das células tumorais
(MOTA et al., 2009; MALAFAIA, 2008). Dessa forma, a imunossenescência se
caracteriza como um favorecedor do desenvolvimento de neoplasias no orga-
nismo, visto que a diminuição da capacidade de lise da NK contribui para que
não haja controle dessas células neoplásicas (PERES, NARDI e CHIES, 2003).

OS EFEITOS E A IMPORTÂNCIA DA PRÁTICA DE


EXERCÍCIOS FÍSICOS

Uma série de benefícios decorrentes da prescrição e da realização


de exercícios físicos para o corpo humano tem sido tema recorrente em
diversos estudos, realizados por autores de todo o mundo, tendo como ob-
jetivo uma discussão sobre o papel dessa prática na promoção da saúde
e de uma boa qualidade de vida.
O exercício físico pode retardar ou mesmo atenuar o processo de perda
das funções orgânicas observadas no envelhecimento biológico, promo-
vendo melhorias não apenas no condicionamento físico, mas também na
aptidão social do praticante (CHEIK et al., 2003). “O exercício físico leva o
indivíduo a uma maior participação social, resultando em um bom nível de
bem-estar biopsicofísico, fatores esses que contribuem para a melhoria de sua
qualidade de vida” (CHEIK et al., 2003, p. 48).
Dentre os benefícios psicossociais oriundos da prática de exercícios fí-
sicos, destacam-se a melhoria do autoconceito, da autoestima, da imagem
corporal e da socialização (MATSUDO e MATSUDO, 1992) e o combate

Raquel Pinto Nunes


522
ao estresse (MADUREIRA e MADUREIRA, 2000). Dessa forma, a prática
de exercícios físicos é um fator primordial para uma boa qualidade de
vida, sendo frequente a prescrição da mesma por médicos tanto no tra-
tamento de diversos casos clínicos quanto no acompanhamento da saúde
do paciente, o que evidencia seu caráter preventivo – anterior ao apareci-
mento e manifestação clínica da doença (CHEIK et al., 2003). Estudos
clínicos demonstram, inclusive, que a regularidade de tal prática, além de
ter efeitos metabólicos, antropométricos ou neuromusculares (MATSUDO
e MATSUDO, 1992), estaria associada à prevenção de doenças crônico-
degenerativas (LEANDRO et al., 2007).
É importante, contudo, ressaltar a diferenciação feita entre os termos
atividade física e exercício físico. O primeiro é utilizado de modo mais am-
plo, referindo-se a qualquer movimento muscular esquelético que resulte
em gasto energético maior do que aquele dos níveis de repouso. O se-
gundo, no entanto, é mais específico, referindo-se à prática planejada, es-
truturada e repetitiva de exercícios físicos, com o objetivo de aumentar ou
manter a saúde e as condições físicas do praticante (CHEIK et al., 2003).

Os efeitos da prática de exercícios físicos em idosos


A relação entre prática de exercícios físicos, saúde e envelhecimento
vem sendo amplamente discutida. Tal prática seria um fator determinante para
um processo de envelhecimento saudável (MATSUDO, MATSUDO e BARROS
NETO, 2001), e a relação entre esses dois fatores se baseia na atribuição de
diversas das consequências deletérias do envelhecimento à ausência de prá-
tica de atividades físicas ao longo da vida (MATSUDO e MATSUDO, 1992).
Os exercícios físicos mais recomendados a idosos são os exercícios
aeróbios de baixo impacto – como caminhada, natação, ciclismo e hidrogi-
nástica –, por estarem associados a um menor risco de lesões ao indivíduo.
Tais exercícios propiciam múltiplos efeitos benéficos em nível antropométri-
co, metabólico, neuromuscular e psicológico, tendo importância tanto na
prevenção quanto no tratamento de diversas doenças e quadros clínicos,
inclusive neoplasias (MATSUDO e MATSUDO, 1992).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


523
Por fim, o fato de a prática de exercícios físicos se apresentar
como fator essencial no controle do peso e da gordura corporal traz
para ela o benefício do controle de outras doenças e casos clínicos
associados à idade, como doenças cardiovasculares, diabetes, hiper-
tensão, acidente vascular cerebral, artrite, apneia do sono, prejuízo da
mobilidade e aumento da mortalidade (MATSUDO, 2002).

Efeitos da prática de exercícios físicos no sistema


imunológico
O exercício físico, ao gerar um desvio da homeostase orgânica, leva
à reorganização das respostas de diversos sistemas do organismo (ROSA e
VAISBERG, 2002), entre eles o sistema imune, no qual induz diversas alte-
rações transitórias. As alterações ocorridas durante e depois do esforço são
definidas pela intensidade, duração da prática e tipo de exercício realizado.
Apesar de o exercício físico ser genericamente classificado como um estímulo
estressante, a resposta do organismo ao mesmo é dividida em dois compo-
nentes: a resposta aguda e a adaptação crônica (ROSA e VAISBERG, 2002).
“Na resposta aguda ao exercício, os sistemas imunológico e neuroendócrino
interagem através de sinais moleculares na forma de hormonas, citocinas e
neurotransmissores” (LEANDRO et al., 2002, p. 80).
O funcionamento do sistema imune depende da relação estabele-
cida entre o eixo imunoneuroendócrino, o qual compreende os sistemas
nervoso, endócrino e imunológico, relacionando-se de maneira intrínseca,
por meio de substâncias peptídicas e neurotransmissores (KRINSKI et al.,
2008). Os mecanismos que modulam a resposta imune ao exercício físico
são divididos em três grupos: hormonais, metabólicos e mecânicos (ROSA
e VAISBERG, 2002).
Dentre os hormônios que atuam no sistema imune durante o exercício
físico se destacam as catecolaminas (LEANDRO et al., 2007), o cortisol, o
hormônio do crescimento e peptídeos opioides (ROSA e VAISBERG, 2002).
Já dentre os fatores metabólicos e mecânicos, destacam-se a glutamina –
aminoácido de fundamental importância no metabolismo de células mus-
culares e de células do sistema imunológico –, a hipóxia, a hipertemia e a

Raquel Pinto Nunes


524
lesão muscular como gerador de um processo inflamatório localizado (ROSA
e VAISBERG, 2002).
Relaciona-se o exercício físico moderado a um aumento na função
de diversos componentes do sistema imune, como no caso dos leucócitos e
macrófagos, entre outros. De maneira geral, é estabelecido que o exercício
físico praticado moderadamente leva ao aumento da função imunológica e,
consequentemente, à diminuição da susceptibilidade do indivíduo a doenças
(LEANDRO et al., 2007).
O exercício físico intenso pode induzir uma inibição de muitos
mecanismos de defesa do organismo, dentre os quais podem ser cita-
dos: a atividade das células NK, a resposta proliferativa dos linfócitos
e a produção de anticorpos pelos plasmócitos. Tais alterações resultam
num estado de imunodepressão, além de levarem a processos alérgicos
e autoimunes (LEANDRO et al., 2007). Em resposta ao exercício físico
intenso, observa-se a neutrofilia, a linfopenia e a monocitose, redistri-
buição de células essa que está ligada à liberação de adrenalina no
organismo (LEANDRO et al., 2007).
No período de recuperação da prática de exercícios físicos, os exer-
cícios moderados produzem um efeito benéfico ao sistema imune, ao au-
mentarem o tempo de circulação de leucócitos (KRINSKI et al., 2008).
Consequentemente tem-se um aumento do potencial de defesa do sistema
imunológico, contribuindo no combate a microrganismos patogênicos.
Em relação aos neutrófilos, tem-se, na resposta à prática de exer-
cício físico moderado, um aumento da função quimiotática e fagocítica,
além da capacidade microbicida dessas células imunológicas (ROSA e
VAISBERG, 2002).
O estresse provocado pelo exercício físico – tanto na resposta
aguda quanto na resposta crônica ao mesmo – também tem efeito esti-
mulante na maioria das funções dos macrófagos. Esse estímulo estaria
associado a hormônios como cortisol, prolactina e tiroxina, que têm
sua secreção aumentada e se relacionam com o aumento observado
na atividade metabólica, enzimática lisossomal e fagocítica (ROSA e
VAISBERG, 2002). “Foi demonstrado também um aumento da capaci-

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


525
dade tumoricida dos macrófagos peritoneais, provavelmente decorren-
te da maior produção de TNF-α e de óxido nítrico” (ROSA e VAISBERG,
2002, p. 169).
Imediatamente após a prática de exercícios físicos, descreve-se, ainda,
um aumento de 150 a 300% no número de células NK no sangue periférico,
o que decorre do aumento da densidade de receptores β-alergênicos em sua
superfície celular. Esse aumento transitório se deve à ação do cortisol (ROSA
e VAISBERG, 2002).
A atividade funcional dessas células é evidente tanto em atletas idosos
quanto em jovens, aumentando de 40 a 100% após o exercício de alta inten-
sidade, o que está relacionado não aos níveis de cortisol e epinefrina – que
atuam apenas na redistribuição das células –, mas aos níveis de endorfinas
(ROSA e VAISBERG, 2002). Verifica-se também, em estado de repouso, uma
maior atividade das células NK em indivíduos atletas (KRINSKI et al., 2008).
No referente ao aumento do nível de atividade citotóxica das células NK, a
liberação de alguns fatores do sistema complemento, como interferons, in-
terleucinas (IL-2) e o hormônio b-endorfina, é apontada como coadjuvante
desse processo (KRINSKI et al., 2008).
Rosa e Vaisberg (2002), em seu estudo experimental, demonstraram
um aumento da resposta proliferativa das células T a mitógenos em indiví-
duos que praticam regularmente exercícios físicos moderados quando com-
parados com indivíduos que não se exercitam.
A concentração de imunoglobulinas séricas sofre um aumento após
o exercício de alta ou média intensidades, haja vista a redução do volume
plasmático que se segue ao exercício. Adicionalmente, também, tem-se um
aumento de imunoglobulinas, decorrente do afluxo de proteínas do extra para
o intravascular (ROSA e VAISBERG, 2002).
Após exercício muito intenso, observa-se um quadro de neutro-
filia associada à ação das catecolaminas (ROSA e VAISBERG, 2002;
KRINSKI et al., 2008). Horas após esse exercício, ocorre um novo pico
de neutrofilia, que se deve à mobilização de células da medula óssea, em
resposta ao aumento da concentração de cortisol no plasma (ROSA e
VAISBERG, 2002).

Raquel Pinto Nunes


526
Os mecanismos propostos na tentativa de explicar o decréscimo da ati-
vidade dos neutrófilos pós-exercício extenuante estariam associados a altera-
ções na expressão de receptores da membrana celular, os quais iniciam uma
cascata de eventos intracelulares que conduzem ao lançamento de enzimas e
à produção de reativos intermediários de oxigênio, levando a um extravasa-
mento de neutrófilos para os tecidos lesados (KRINSKI et al., 2008).
Em relação aos macrófagos, o exercício agudo leva a um quadro de
monocitose transitória – decorrente da ação das catecolaminas – e, duran-
te a inflamação, o exercício exaustivo diminui o número de macrófagos re-
crutados para o sítio inflamatório (ROSA e VAISBERG, 2002). É importante
ressaltar também que o exercício exaustivo se apresenta como um fator
associado à diminuição da expressão do MHC de classe II – estrutura
fundamental na apresentação de antígenos – assim como à queda da fun-
ção antiviral dos macrófagos alveolares (ROSA e VAISBERG, 2002).
Exercícios físicos de alta intensidade e longa duração induzem a uma
linfocitose imediata, que ocorre de forma transitória e desaparece em um
curto período após o esforço (KRINSKI et al., 2008). As taxas de linfócitos
TCD8+ apresentam um aumento de 50 a 100% após o exercício agudo, ao
passo que as de linfócitos TCD4+ e de linfócitos B apresentam poucas alte-
rações frente ao exercício (ROSA e VAISBERG, 2002).
O quadro de linfopenia observado ao fim do exercício pode estar
relacionado com a redução dos níveis de adrenalina, seguida do aumen-
to na concentração de cortisol e hormônios de crescimento. Isso leva a
uma redistribuição de leucócitos e linfócitos, gerando um efeito imunos-
supressor no organismo. Outra provável justificativa para esse quadro de
linfocitopenia se encontra no processo apoptótico que se desencadeia por
intermédio do estresse oxidativo e à redução dos níveis de substratos me-
tabólicos, como o glicogênio e a glutamina (KRINSKI et al., 2008).
Funcionalmente, observa-se uma queda, que persiste por várias
horas, da proliferação linfocitária após a realização de exercício físico
intenso. Tal inibição se relaciona à ação da epinefrina e do cortisol. O
cortisol inibe tal proliferação tanto por ação direta na célula quanto por
inibição da produção de IL-2 (ROSA e VAISBERG, 2002).

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


527
Após o exercício intenso em indivíduos não treinados,4 tem-se uma
supressão da produção de imunoglobulinas. Já em atletas bem condiciona-
dos, o exercício, mesmo de alta intensidade, não provoca qualquer altera-
ção (ROSA e VAISBERG, 2002). Tem-se, porém, um comportamento dife-
renciado da IgA quando em comparação com as outras imunoglobulinas,
pois ocorre uma diminuição de até 50% nos valores basais dessa imunoglo-
bulina em atletas considerados de elite após o esforço intenso, o que está
relacionado com a maior incidência de infecções de vias aéreas superiores
observada em atletas submetidos a grandes esforços (ROSA e VAISBERG,
2002; KRINSKI et al., 2008).
Associa-se o exercício de alta intensidade à lesão de células mus-
culares, o que consequentemente gera uma resposta de fase aguda, que
envolve sistema complemento, neutrófilos, macrófagos, citocinas e prote-
ínas de fase aguda (ROSA e VAISBERG, 2002). Não há consenso em re-
lação aos achados referentes às alterações nos níveis de citocinas. Rosa e
Vaisberg (2002) descreveram um aumento plasmático de IL-1 e IL-6, e do
receptor solúvel de IL-2, IL-6, IFN-γ, TNF-α, dentre outras. Esses achados
estariam relacionados com a intensidade do exercício realizado (ROSA e
VAISBERG, 2002).

Quadro 3. Alterações no sistema imunológico em


decorrência do exercício físico.

Fator Exercício físico moderado Exercício físico intenso


Aumento do número de
Leucócitos Diminuição do número
circulantes
Aumento da função qui- Diminuição funcional,
Neutrófilos
miotática e fagocítica neutrofilia
Monocitose; diminuição
Estímulo à função de
da expressão de
Macrófagos quimiotaxia, fagocitose e
MHC-II e queda da
atividade citotóxica
função antiviral

4
Indivíduos que não realizam prática regular de exercícios físicos.

Raquel Pinto Nunes


528
Linfocitose imediata;
Aumento da resposta pro-
Linfócitos inibição da proliferação
liferativa
linfocitária
O comportamento da
produção de imunoglo-
bulinas após a prática de
Imunoglobulinas exercícios físicos é variável
em relação à condição do
praticante de treinado ou
não treinado

CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DA CORRELAÇÃO


ENTRE O ENVELHECIMENTO E A PRÁTICA DE
EXERCÍCIOS FÍSICOS NO SISTEMA IMUNOLÓGICO

Foram descritas, anteriormente, uma série de influências que o processo


de envelhecimento e a prática de exercícios físicos moderados exercem sobre
o sistema imunológico. De modo geral, tem-se que seus efeitos são inversos,
visto que, enquanto o primeiro – envelhecimento – influencia negativamente
no funcionamento do sistema imune, o segundo – exercícios físicos – exerce
influência no sentido de beneficiar tal sistema.
Tendo por objetos de análise indivíduos idosos que realizam a prática
moderada de exercícios físicos, pode-se inferir que, simultaneamente às
consequências depreciativas do processo de envelhecimento, tal prática
influencia positivamente no funcionamento do sistema imune. Nesse sentido,
torna-se viável o estabelecimento de uma relação de neutralização dos efeitos
negativos de um fator – imunossenescência – pelos efeitos positivos do outro –
prática moderada de exercícios físicos. Em consequência, promover-se-ia uma
resultante positiva às defesas do organismo idoso.
Em relação à ação dos neutrófilos no processo de imunossenescência,
além de outras alterações em sua atividade, podemos destacar uma queda

Os efeitos da prática de exercícios físicos no sistema imune em idosos


529
na função de quimiotaxia, na sua capacidade fagocítica e na sua capacidade
bactericida (MOTA et al., 2009). Já no que diz respeito ao estímulo à prática
moderada de exercícios físicos, observa-se um aumento dessas funções ce-
lulares (ROSA e VAISBERG, 2002). Desse modo, é possível inferir que, num
indivíduo idoso que mantenha tal prática de exercício ao longo da vida, tais
efeitos se neutralizem, promovendo uma resultante positiva às defesas do or-
ganismo idoso.
Na imunossenescência, a ação dos macrófagos encontra-se afeta-
da, com um declínio geral de suas atividades – o que pode ser relacio-
nado à queda na capacidade dos mesmos de responderem à ativação
(SANTOS e SANTOS, 2010). Tem-se, na imunossenescência, uma me-
nor capacidade de quimiotaxia por parte dessas células (MALAFAIA,
2008), capacidade que se observa estimulada em praticantes de exercí-
cios físicos moderados (ROSA e VAISBERG, 2002).
Se em indivíduos senescentes, as atividades – principalmente cito-
tóxicas – das células NK encontram-se diminuídas (MOTA et al., 2009;
MALAFAIA, 2008), indivíduos que praticam exercícios físicos modera-
dos apresentam uma elevação dessas atividades quando se comparam
esses índices com os índices de repouso (KRINSKI et al., 2008).
Em resposta ao exercício físico moderado, ocorre um aumento na res-
posta proliferativa dos linfócitos T a mitógenos em indivíduos treinados quando
comparados com indivíduos não treinados (ROSA e VAISBERG, 2002), o que
se opõe à diminuição da capacidade proliferativa dessas células, observada
na imunossenescência (SANTOS e SANTOS, 2010).

Quadro 4. Balanceamento de efeitos do envelhecimento e


da prática de exercícios físicos no sistema imunológico.

Componentes Envelhecimento Exercício físico


• ↓ Quimiotaxia
• ↑ Quimiotaxia
• ↓ Capacidade fagocítica
Neutrófilos • ↑ Capacidade fagocítica
• ↓ Capacidade
• ↑ Capacidade bactericida
bactericida

Raquel Pinto Nunes


530
Macrófagos • ↓ Quimiotaxia • ↑ Quimiotaxia
Células NK • ↓ Atividade citotóxica • ↑ Atividade citotóxica
• ↓ Capacidade
Linfócitos T • ↑ Capacidade proliferativa
proliferativa
Imunoglobulinas • ↓ Produção • ↑ Produção

Em relação ao comportamento das imunoglobulinas nas duas variáveis


estudadas, destaca-se que, em um indivíduo idoso, a quantidade de anticor-
pos produzidos diante de um antígeno estranho é menor quando comparada
à quantidade produzida por um indivíduo mais jovem (MOTA et al., 2009).
Porém, Rosa e Vaisberg (2002) mencionam um aumento de imunoglobulinas
séricas após a prática de exercícios de alta ou média intensidade.
Fica claro, por fim, o caráter desse estímulo para o sistema imunológico,
o qual, em diversos exemplos, estimula positivamente componentes que têm
sua atividade prejudicada pelo processo de imunossenescência. Dessa forma,
a prática de exercícios físicos, quando realizada moderadamente, é compro-
vadamente benéfica para todo o corpo. Assim, torna-se viável a hipótese pro-
posta, da neutralização de alguns dos efeitos negativos do envelhecimento no
sistema imune pela prática de exercícios físicos moderados e ao longo da vida.

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Raquel Pinto Nunes


534
A MÚSICA PUNK COMO EXPRESSÃO DE
UM MOVIMENTO JOVEM

Steffi Lema Suárez Penetra*

A vida diz respeito ao concreto, ao fundo do


poço, gente patética, aborrecida, e um índice de
desemprego mais alto do que nunca. O punk está
ajudando a garotada a pensar. É disto que todo
mundo tem medo, porque existem muitos garotos
pensando atualmente. O punk reflete a vida como
ela é, nos apartamentos desconfortáveis dos bair-
ros pobres, e não o mundo de fantasia e aliena-
ção que é o que a maioria dos artistas criam.
Antonio Bivar

Após a Segunda Guerra Mundial, estava instaurado um conflito ide-


ológico entre a esquerda, associada à União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), e a direita capitalista, cuja principal representação era
os Estados Unidos (EUA).
Em meados de 1950, consolidados como centro da ordem capitalis-
ta que surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos
representavam a única potência industrial praticamente intacta, que pouco
havia sofrido as consequências econômicas e territoriais devastadoras da-
quele conflito.
A fim de fortalecer o capitalismo mundial e de firmar sua hegemonia
em meio a essa disputa de ideais que caracterizou a fase histórica deno-
minada Guerra Fria, o governo estadunidense forjou uma série de acordos

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa História na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No trabalho
de construção de sua monografia de conclusão de curso, contou com a orientação das professoras-
pesquisadoras Gladys Miyashiro Miyashiro (mestre em Saúde Pública), do Laboratório de Educação
Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa), e Jeanine Bogaerts (mestre em Música), do Laboratório de
Formação Geral na Educação Profissional em Saúde (Labform). Contato: steffilema@gmail.com.

A música punk como expressão de um movimento jovem


535
internacionais que lhe conferiram estabilidade e tinham como propósito
promover o crescimento econômico por intermédio de medidas que impli-
cavam uma balança comercial favorável ao sistema capitalista.
Dentre as medidas inauguradas pelo governo norte-americano para
consolidação da hegemonia capitalista, estava a implantação da Doutrina
Truman, um conjunto de medidas que justificava a intervenção militar em
qualquer país a fim de evitar a chegada de comunistas ao poder, e o Plano
Marshall, um programa de ajuda econômica dos Estados Unidos aos países
europeus que combatessem o avanço do comunismo. Além disso, em conse-
quência da oposição de interesses entre os polos representativos dos modos
de produção existentes, houve um amplo avanço na indústria bélica.
Diversos países capitalistas devastados pela guerra recuperavam-se
economicamente, o que acarretou o desenvolvimento da tecnologia e, con-
sequentemente, uma mudança de hábitos. Produtos como a geladeira, a te-
levisão, a lavadora de roupas automática e os discos de vinil tornaram-se
acessíveis a uma parcela da população que antes não tinha condição finan-
ceira para tê-los. Essa fase, na qual ocorre um grande e repentino crescimento
econômico-industrial, ficou conhecida como os “anos de ouro do capitalis-
mo”. Surgia, então, a sociedade de consumo de massa.
Em mais uma tentativa de conter a expansão da esquerda, os
Estados Unidos, em 1964, mesmo desfrutando da posição privilegiada
de centro capitalista na ordem mundial, intervieram diretamente no
conflito conhecido como Guerra do Vietnã, que envolvia o Vietnã do
Norte, apoiado pela URSS, e o Vietnã do Sul, capitalista (BALANCO e
COSTA PINTO, 2007).
A participação dos Estados Unidos nesse confronto e a brutalidade dos
bombardeios fizeram surgir em parte da sociedade americana, especialmente
nos jovens, um sentimento de repulsa à guerra. Começaram a despontar os
primeiros movimentos contraculturais do período, como o dos hippies.

Depois da Primeira Guerra Mundial, o comportamento social da


juventude tornou-se um fenômeno de inquestionável oposição
aos valores defendidos pelas velhas gerações, pois a morte de
centenas de jovens nos campos de batalha, enquanto as velhas

Steffi Lema Suárez Penetra


536
gerações ficavam na retaguarda, [...] gerou nos jovens um senti-
mento de repulsa contra tudo aquilo que representava o mundo
dos adultos. (SOUSA, 2002, p. 32)

O movimento hippie foi um marco na história dos movimentos antiguerra


e anticapitalismo e, apesar de muitos considerarem que seu início coincide
com o início das correntes contestadoras integradas majoritariamente por
jovens, vale ressaltar que anteriormente, por volta dos anos 1940-1950, já
havia grupos de jovens guiados por ideologias exclusivas, como os adeptos
da corrente existencialista, os beatniks e os teddy boys.
Os beatniks compuseram um grupo que começou a crescer em
meados dos anos 1950 e cujas principais características ideológicas
eram a oposição ao materialismo e a busca pela melhoria do “ser
interior”. Já a corrente existencialista, influenciada por Sartre, ganhou
maior destaque entre os intelectuais e universitários franceses durante
a década de 1940.
Em relação aos anos 1950 e aos acontecimentos desse período que
influenciaram as gerações posteriores, pode-se dizer que, nesse momento
da história, o cinema, o teatro e a música apresentavam uma nova maneira de
ser jovem. Impelidos pelos seus ídolos, os adolescentes criavam um jeito ino-
vador de viver, desenvolvendo uma vida em grupo em oposição aos modos
de vida preconcebidos pelo mundo dos adultos (SOUSA, 2002).
Enquanto nos Estados Unidos os beatniks fixavam ideias que tratavam
da fuga aos rigores da família, à formalidade do trabalho e à disciplina da
escola, configurando um sonho de liberdade que incluía o desejo de conhecer
outras culturas e divulgá-las para o mundo, escrever poesia, ouvir jazz e viajar,
os teddy boys, na Inglaterra, questionavam a ordem estabelecida e procura-
vam debochar da aristocracia inglesa por meio de suas roupas. Os teddy boys
formavam um grupo de indivíduos envolvidos com o rock, estilo musical que
se tornou tradução exata da insatisfação dos jovens em uma sociedade que os
obrigava a seguir normas rígidas. O poder de aglutinação do rock fazia dele
uma resposta juvenil às pressões do modelo hegemônico.
Segundo Sousa (2002), a insubordinação aos valores da cultura do-
minante foi uma das principais características dos jovens dos anos 1950,

A música punk como expressão de um movimento jovem


537
que, lutando contra o tédio burocrático, forjaram o nascimento de novos
símbolos, imagens e emoções para as suas vidas, criando, dessa maneira,
as bases de sustentação da contracultura dos anos 1960 e 1970.
O hippie surge nos anos 1960 pela combinação de insatisfações já
presentes nos grupos dos anos 1950 aliadas a questões mais recentes, como
a Guerra do Vietnã. A filosofia do movimento hippie compreendia três grandes
eixos de movimentação: a retirada da cidade para o campo, da família para
a vida em comunidade e do racionalismo cientificista para os mistérios e des-
cobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas (PEREIRA apud TINTI,
2004). Os hippies se opunham a todas as guerras e defendiam o amor livre,
quer no sentido de amor aos outros seres, quer no de praticar uma atividade
sexual libertária – vide a famosa expressão “Faça amor, não guerra”.
Os hippies usavam roupagem colorida, túnicas, sandálias e cabelos
compridos. A flor foi um dos seus emblemas e chegou-se a usar a expressão
flower power, ou “poder da flor”, como designação do movimento. Houve até
uma música, dentre as canções-hino do movimento, que dizia “Não se esque-
ça de usar algumas flores em seu cabelo” (SERRA, 2008).
Os Estados Unidos alimentaram a Guerra do Vietnã de 1964 até
1973, ano em que retiraram suas tropas da região vietnamita. Os soldados
norte-americanos, mesmo usando tecnologia avançada e armamentos mo-
dernos, não foram capazes de vencer o exército dos vietcongues e saíram
moralmente afligidos dessa derrota militar. Ademais, a guerra causou pre-
juízo financeiro de bilhões de dólares aos Estados Unidos, e quase 60 mil
estadunidenses morreram.
No mesmo período em que os Estados Unidos enfrentavam o fracas-
so na Guerra do Vietnã, iniciou-se a crise mundial do petróleo. Os países
árabes, principais fornecedores mundiais de petróleo, protestando contra
o apoio do governo norte-americano a Israel na Guerra do Yom Kippur,
uniram-se e diminuíram a oferta desse produto, elevando os preços. Logo,
os Estados Unidos e a Europa encontraram-se num momento de estagnação
econômica e inflação, entrando em prolongada recessão. Com a econo-
mia mundial desestabilizada, os anos de ouro do capitalismo chegavam
ao fim.

Steffi Lema Suárez Penetra


538
Nesse contexto de guerra perdida e crise financeira mundial, o movi-
mento hippie também perde parcela considerável de sua força. As vias pa-
cíficas se mostravam ineficientes para resolver os problemas relacionados à
ordem capitalista. Além disso, os tentáculos da indústria cultural incorporaram
e difundiram, com fins comerciais, elementos do visual hippie.
O termo “indústria cultural” foi primeiramente empregado por Adorno
e Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento, publicado em 1947. No es-
boço apresentado aos colegas, os autores falavam em “cultura de massas”,
porém a expressão foi substituída porque não se tratava de uma cultura que
brota espontaneamente das próprias massas. Em todos os setores, são fabri-
cados produtos orientados para o consumo de massas e esse consumo é de-
terminado em grande medida por esses próprios produtos. O consumidor não
é, como a indústria cultural gostaria de fazer acreditar, o sujeito da indústria
cultural, e sim o seu objeto (ADORNO, 1963).

A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de


uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem
ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los
abertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maqui-
naria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém,
tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha
ao trabalho. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 60)

Assimiladas pela indústria cultural, as roupas coloridas, uma alusão


à psicodelia, rasgadas e desbotadas, indício de desacordo com o consu-
mismo, largas e confortáveis, e as calças boca de sino já não eram acessó-
rios exclusivos do guarda-roupa hippie, fazendo com que seu uso perdesse
o sentido contestador e sua capacidade de chocar os conservadores. No
início dos anos 1970, então, o modelo de vida natural e distanciado de
bens materiais exibiu sinais de esgotamento.
Embora o movimento hippie tenha parado de produzir o impacto
do início, durante o seu percurso deixou legados, principalmente no
que diz respeito às ações empreendidas contra a Guerra do Vietnã. Os
acontecimentos da guerra exerceram significativa influência na produ-
ção musical da época, o que pode ser constatado na música Feel Like I’m

A música punk como expressão de um movimento jovem


539
Fixing To Die Rag (Next Stop Vietnam),1 de Country Joe McDonald, vete-
rano da Guerra do Vietnã que se apresentou no Festival de Woodstock,
em 1969.
Então, apesar dos “anos de ouro” e do potencial transformador que o
movimento hippie um dia possa ter aparentado, tudo parecia decair. O mo-
vimento hippie já não estava mais no auge, e o sistema capitalista como um
todo encontrava-se em uma conjuntura perigosa. Algumas nações ainda não
haviam se reabilitado completamente da destruição causada pela Segunda
Guerra Mundial e os Estados Unidos enfrentavam obstáculos difíceis.
Os anos 1970 começaram sinistros para o capitalismo. O desem-
prego, as desigualdades e a pobreza aumentavam e tornavam-se mais evi-
dentes, criando a situação perfeita para o desencadeamento de rebeliões.
As novas circunstâncias solicitavam novas respostas.

O JOVEM DOS ANOS 1960-1970

Há algum tempo, os jovens vêm desempenhando papéis importantes


na vida em sociedade, ganhando maior visibilidade em diversas áreas. No
entanto, essa identificação do adolescente como uma categoria social que
não faz parte do mundo infantil e tampouco do mundo adulto só se iniciou
nas sociedades pós-industriais.
Na Idade Média, não havia uma denominação específica para o es-
trato social hoje em dia conhecido como “juventude”. A vida do sujeito era
dividida em duas etapas, infância e fase adulta. Assim que a criança come-

1
Tradução de partes da música citada: Venham todos vocês, grandes homens!/ Tio Sam precisa de sua
ajuda novamente/ Ele se encontra numa situação ruim [...] Então solte seus livros e pegue uma arma/ Nós
vamos nos divertir muito/ E é um! Dois! Três!/ Pelo que estamos lutando? / Não me pergunte, eu não me
importo/ A próxima parada é o Vietnã/ [...] Não é hora de se perguntar por que/ Todos nós vamos morrer/
Vamos lá, Wall Street, não demore/ [...] Há muito do bom dinheiro para ser feito/ [...] Vamos confiar e rezar
para que, caso eles soltem a bomba,/ Eles a soltem sobre o vietcongue/ Vamos lá, generais, mexam-se
rápido/ [...] Agora vocês podem sair e pegar aqueles vermelhos/ Porque comunista bom é comunista
morto/ E você sabe que a paz só pode ser conquistada/ Quando nós tivermos explodido todos eles/ Em
nome do reino que está por vir/ Vamos lá, mães de toda parte da terra!/ Levem seus garotos para fora do
Vietnã/ Vamos lá, pais, não hesitem!/ Enviem seus filhos para fora antes que seja tarde/ E vocês podem ser
os primeiros em seu quarteirão/ A ter seu menino de volta em casa dentro de uma caixa.

Steffi Lema Suárez Penetra


540
çava a demonstrar agilidade física e mínima capacidade de socialização, já
partilhava as mesmas tarefas dos adultos (SOUSA, 2002).
Por volta do século XV, iniciou-se a construção de certos espaços
que possibilitavam o encontro de jovens, como a escola. Somente no sé-
culo seguinte, todavia, ocorreram as primeiras transformações nos centros
educacionais que permitiriam maior contato entre jovens da mesma idade,
como a ideia de classes escolares e, daí, a separação dos alunos por
idade. A modificação das estruturas tradicionais de ensino foi uma das
bases para a formação de uma camada intermediária, que representava o
período de passagem da fase infantil para a fase adulta.
A partir do século XIX e mais fortemente no século XX, a escola deixou de
ser um privilégio das camadas mais ricas da população e expandiu-se para ou-
tros segmentos sociais. A escola moderna, cada dia abrangendo mais pessoas
de diferentes status e com uma organização que facilitava o distanciamento da
criança e do jovem de sua respectiva família, possibilitou aos estudantes fica-
rem cada vez mais próximos de outras culturas, que lhes forneciam componen-
tes para a formação de uma personalidade nova e própria, que não dependia
só das ideias introduzidas no indivíduo pela família.
Além da expansão do acesso à escola, as cidades e o espaço urbano
se desenvolveram, ocasionando a popularização e a dilatação dos espaços
públicos de interação social, como praças e parques, o que levou o jovem
a se distanciar de sua família, ir atrás de maneiras de viver mais flexíveis e
construir novos valores longe da rigidez da hierarquia familiar. Iniciou-se a
formação dos denominados grupos informais, representando o anseio dos
jovens por liberdade e pela emancipação perante as pressões sociais.
Para além dos fatores já citados, a partir de 1950 ocorreu a difusão
e a melhoria dos meios de comunicação de massa, como o rádio e a tele-
visão, e, após a Segunda Guerra Mundial, houve intensa popularização do
cinema e da imprensa. Esse salto tecnológico forneceu à juventude novos
veículos de manifestação e de disseminação de ideias particulares, que se
mostravam coletivas, pois cada jovem identificava no outro, seja esse outro
o ator de cinema ou o autor da música da rádio, os seus problemas. Logo,
cada jovem começou a notar que não estava sozinho em suas insatisfações.

A música punk como expressão de um movimento jovem


541
Nesse sentido, a expansão da tecnologia possibilitou à juventude passar de
receptora a criadora (GUMES, 2004).
A juventude, então, começou a perceber que seu papel era de sim-
ples mantenedora; que sua inserção na sociedade se dava de maneira que
ela era projetada para servir ao mesmo sistema que a mandava para as
guerras e a mantinha em situações degradantes. Ao final da Guerra do
Vietnã e com o advento da crise do petróleo, as condições de vida ficaram
piores, sobretudo, como de costume, nas periferias. A juventude estava
sem expectativas de futuro e desiludida.

Em meados dos anos 70 o jovem subitamente se vê órfão de


ideais e perde o poder de ação. [...] quando tudo parecia estar
acabado, ecoou na Inglaterra um novo grito de rebeldia: nasciam
os punks. Os punks são, pois, filhos da desilusão expressa por
John Lennon no fim dos anos 60 e da falta de perspectiva que a
juventude vivia em meados dos anos 70. (SOUSA, 2002, p. 40)

O ambiente de pessimismo que permeou esse início de década for-


neceu as bases para outro movimento juvenil e para uma nova mentalidade
de oposição. Os alvos privilegiados do terror começaram a despertar “a
consciência da escravização na abundância e a consciência de que deve ser
diferente” (MARCUSE, 1999, p. 76).

O SURGIMENTO DO PUNK

No início da década de 1970, John Lennon, um dos grandes ídolos


do movimento hippie, declarou: “O sonho acabou”. A verdade, contudo,
é que para muitos jovens, que se confrontavam com uma realidade dura e
não se sentiam representados por nenhuma liderança ou movimento, o sonho
nunca existira. A cultura da paz e do amor não fazia sentido para rapazes
e moças que sofriam os efeitos diretos das influências sociais da sociedade de
consumo. E, assim como acontecera com elementos visuais do movimen-
to hippie, o rock, antes uma ferramenta de contestação social, havia se

Steffi Lema Suárez Penetra


542
tornado um produto do capitalismo vendido pela indústria cultural. Des-
sa forma, envolvendo motivos que tratavam desde a indignação contra a
mercantilização de elementos culturais, que perdiam seu sentido original,
até o intenso desânimo dos jovens moradores da periferia, surgia o movi-
mento punk.
Ao longo do desenvolvimento do movimento punk, assim como acon-
tece com outras mobilizações culturais e sociais, houve um momento de ápice
de atenção invocada, como se uma situação fosse a responsável por causar
a “explosão” do movimento. No caso do punk, se é que é possível fixar um
momento específico, os responsáveis por isso foram os integrantes da banda
Sex Pistols. Em razão disso, é válido, antes de tratar de questões mais gerais
do movimento, contar um pouco a trajetória do conjunto Sex Pistols.
Por suas atitudes subversivas, os sex pistols2 foram, aparentemente,
os maiores propagadores do movimento punk. A banda Sex Pistols foi for-
mada em 1975, em Londres, por frequentadores da loja Sex, de Malcolm
McLaren, ponto de encontro de jovens apreciadores de rock (BIVAR, 1982).
Nesse lugar, dois jovens de estilo supostamente atrevido e violento
convidaram um vendedor da loja, Glenn Matlock, para fazer parte da
banda que eles queriam formar. Esses garotos eram Steve Jones e Paul
Cook. Mais tarde, John Lydon, outro visitante assíduo do mesmo estabele-
cimento, ingressou no projeto musical. John Lydon acabaria ganhando o
apelido de Johnny Rotten (Joãozinho Podre), uma alusão aos seus dentes
podres. Em 1977, dois anos mais tarde, Matlock sairia da banda e Sid
Vicious ocuparia seu lugar. A banda Sex Pistols estava formada e seu em-
presário era McLaren.
Malcolm McLaren já havia efetuado alguns empreendimentos ar-
tísticos antes e sua ideia para o Sex Pistols era criar uma imagem oposta
ao bem, porque considerava o bem como uma condição do “normal”, e
isso lhe parecia assustador (McCAIN e McNEIL, 2004). Como McLaren já
tinha alguns contatos no meio artístico, conseguiu espaços para que o Sex
Pistols se apresentasse em eventos em Londres. Uma dessas apresentações

2
Denominação dada ao conjunto dos integrantes da banda Sex Pistols, como se cada rapaz que
formava a banda fosse um “sex pistol”.

A música punk como expressão de um movimento jovem


543
se deu em um concurso de travestis, que era um acontecimento importante
na cidade. No dia seguinte, a banda já era notícia em vários jornais e revis-
tas especializados. Especialmente na cena underground, entre os revoltados
contra as autoridades e os indignados com a situação de miséria das peri-
ferias, o Sex Pistols estava obtendo algum reconhecimento. Seus integrantes
compunham músicas cujo objetivo era expor as suas realidades cotidianas e,
sendo eles moradores da periferia londrina e parte de um contexto acometi-
do pelo analfabetismo, pelo desemprego e pela violência, demonstravam em
suas músicas indignação contra o sistema, fazendo performances agressivas
como meio de expor a raiva pelas dificuldades e as injustiças que viviam.
Em outubro de 1976, o Sex Pistols lançou a música Anarchy in the
U.K., que atacava o conservadorismo do Império Britânico. No final do
mesmo ano, em dezembro, a banda foi convidada para uma entrevista em
um programa de televisão. O programa ia ao ar às cinco da tarde, após
a hora do chá, horário em que as famílias de uma Inglaterra extrema-
mente conservadora normalmente se reúnem para ver televisão. Durante
a apresentação do programa, Johnny Rotten, pela primeira vez na história
da televisão, fala um palavrão diante das câmeras. O apresentador do
programa foi suspenso por duas semanas. Houve até um cidadão que
quebrou a própria televisão, sob a alegação de que não podia admitir
uma coisa daquelas (BIVAR, 1982).
Foi nesse dia o salto do punk: da periferia para os recatados lares
ingleses e para o mundo. “Para o mundo”, porque a imprensa sensaciona-
lista produziu tanto alvoroço que as vendas de Anarchy in the U.K. alcan-
çaram o marco de 10 mil cópias diárias.

Os Sex Pistols foram grandes divulgadores do punk no mundo


todo através de seus atos [...]. Eles eram extremamente mordazes
ao quebrar todos os protocolos dos bons costumes ingleses toda
vez que apareciam publicamente. (MILANI, 2008, p. 4)

A fim de atribuir uma designação à maneira de pensar e de agir daque-


les jovens que chocaram a sociedade na década de 1970, a mídia utilizou o
vocábulo punk. Comumente utilizado em discussões entre rivais, queria dizer

Steffi Lema Suárez Penetra


544
“coisa podre”, “sem valor”. No caso do confronto entre o Sex Pistols e o con-
servadorismo britânico, esse termo, ao ser usado pela mídia, passou a indicar
a irritação dos protetores do governo contra aquele grupo determinado.
Para o sistema, aqueles insubmissos eram “lixo”, “podridão” (SOUSA, 2002).
Apesar de terem sido os “grandes divulgadores do punk no mundo”,
como afirma Milani (2008) em Dinâmicas ideológicas no movimento punk,
vale ressaltar que os Sex Pistols não formaram o primeiro conjunto com
características punks. Antes deles, e também muito importantes no cenário
underground, surgiram os Ramones, nos Estados Unidos, em 1974.
Após esse estouro dentro da Inglaterra, extremamente conservadora
e defensora da sua estrutura social que ignorava os milhares de jovens de-
pendentes do seguro-desemprego, o punk passou a chamar a atenção do
mundo, e jovens de vários países começaram a se identificar com a situa-
ção social e, consequentemente, com as ideias e ações que configuravam
uma crítica às condições de vida daqueles jovens londrinos. O movimento
punk foi, portanto, uma resposta em forma de ataque por parte dos
jovens que não vislumbravam futuro em um mundo perpassado pelo
pessimismo, sentimento que então prevalecia mais fortemente entre os
indivíduos marginalizados.
O movimento punk tinha como combustíveis básicos, inicialmente, a
vontade de destruir e a violência. Essa é a distinção mais expressiva entre
os punks e os hippies. Os punks achavam impossível ter “paz e amor” como
lema de atuação porque a sociedade era violenta com as pessoas e trans-
pirava ódio e raiva em variadas formas; logo, a atitude mais sensata dos
prejudicados era responder aos abusos que sofriam.

Um argumento comum entre pacifistas é que revolucionários não


deveriam empregar a violência porque o Estado, depois, a utili-
zará para “justificar” repressões violentas. Bom, para quem estas
repressões violentas são justificáveis, e por que aqueles que dizem
ser contra a violência não estão tentando injustificá-las? Por que
ativistas contra a violência buscam mudar a moralidade da socie-
dade, em como esta vê a opressão ou a guerra, mas aceitam a
moralidade da opressão como natural e intocável?

A música punk como expressão de um movimento jovem


545
Esta ideia de consequências repressivas inevitáveis na militância,
frequentemente, vai além da hipocrisia que leva a culpar a vítima
por completo e aprovar a violência repressiva. Os [...] que são
cotidianamente oprimidos pela polícia e pela violência estrutural
são aconselhados a não responder com violência porque isto
poderia justificar a violência do Estado já mobilizada contra eles.
(GELDERLOOS, 2011, p. 27-29).

Os punks se opuseram continuamente a todo tipo de regra social e aos


códigos de ética que a ordem capitalista estabelecia. Para eles, os jovens na
margem miserável da sociedade só eram lembrados pelo governo em casos
de necessidade e sacrifício, como nas guerras; então, não fazia sentido agir
como um membro socialmente normal se eles eram deixados de lado pela
sociedade, como se não fizessem parte dela.

Para esses jovens, a desesperança repousa no horizonte e traba-


lhar, para essa sociedade, significa contribuir para a manutenção
da miséria. Daí porque a ideia obsessiva de destruir todos os va-
lores da ordem vigente, pois assim eles entendem que, ao eliminar
essa estrutura social, estarão dando os primeiros passos para a
construção de uma nova sociedade. (SOUSA, 2002, p. 87)

Por suas atitudes violentas e transgressoras, os adeptos do movimento


punk ganharam a fama de rebeldes sem causa. No entanto, como afirma
Milani (2008), seria hipocrisia acusá-los de “rebeldes sem causa”, dado que
o movimento surgiu de um contexto socioeconômico carregado de desem-
prego, abismos sociais, violência e exploração.

O regime impõe sempre, e de modo inevitável, à classe ope-


rária, mesmo com a mais pacífica marcha dos acontecimen-
tos, sacrifícios sem medida. Milhares e dezenas de milhares
de homens que trabalham durante toda a sua vida para criar
riquezas alheias perecem em virtude da fome e da inanição
constantes, morrem prematuramente em consequência das en-
fermidades contraídas nas insuportáveis condições de traba-
lho, residências miseráveis e falta de descanso. Merece cem

Steffi Lema Suárez Penetra


546
vezes o nome de herói quem prefere sucumbir na luta aberta
contra os defensores e guardiães desse regime abominável a
perecer em morte lenta como uma besta de carga submersa no
embrutecimento, extenuada e submissa. (LENIN, 1961)

Dentro desse contexto, é comum que haja explosões, e elas “desper-


tam para a vida consciente camadas mais extensas de operários atormenta-
dos pela miséria e a ignorância, propagam entre eles o espírito de um nobre
ódio aos opressores e aos inimigos da liberdade” (LENIN, 1961).
O punk foi resultado de uma convulsão social que estimulou a união
de jovens ao redor de experiências em comum. Sobre esse movimento, seria
irreal dizer que não houve uma intensa modificação de comportamentos por
parte de seus partidários. Ao longo dos anos, pode-se perceber que a fixa-
ção unicamente pela ideia de destruição dissipou-se, dando abertura para
a politização e a aproximação, principalmente, com os ideais anarquistas.
Na transição entre as décadas de 1970 e 1980, o significado do
ser-punk passou a ser desfigurado por seus opositores e pela grande mídia
burguesa, e os punks passaram a sofrer uma perseguição por parte das
forças de segurança do Estado, legitimada pela população. Tentando mini-
mizar esses momentos de tensão, os punks buscaram elaborar uma lingua-
gem mais estruturada e politizada. Organizados ao redor dessa mudança de
comportamento, passaram a investir mais em meios de contestação menos
violentos, a fim de expor para a sociedade sua verdadeira identidade.
A tentativa de deturpar a imagem punk para a sociedade tinha nos
meios de comunicação de massa um mecanismo de viabilização, afinal o
discurso da grande mídia é pautado na ideologia burguesa que, por sua vez,

[...] tenta fazer-se passar por uma espécie de senso comum... de


“opinião pública” [...]. Esse consenso manipulado que se visa im-
por é também a partilha de uma outra ideia que não precisa ser
explicitada para ficar a pairar suspensa, ao nível subconsciente
dos espectadores, mas sempre que necessário pronta a ser reati-
vada, segundo a qual o capitalismo é a realidade, a ordem natural
das coisas; e a realidade é um dado intransponível, imóvel e in-
transformável, contra o qual nada se pode fazer. (GUSMÃO, 2011)

A música punk como expressão de um movimento jovem


547
De todo modo, apesar da contribuição dos meios de comunicação,
as classes dominantes enfrentam obstáculos, afinal o conflito é inerente à
ordem capitalista. E o punk foi um estorvo porque o capitalismo era o alvo
central de críticas e de descarga de violência do discurso punk.

Certa perplexidade toma conta da sociedade, que, assustada


com tanta revolta acumulada, pergunta: “O que vocês querem?”
A resposta soa enfática, mas também enigmática. “Nada, só
destruir”. “Mas por quê?”, insiste a ordem. A resposta [...] sepulta
as utopias dos anos 60 e traz à tona as incertezas que circunda-
vam o universo dos jovens dos anos 70 e 80: “Porque não há
futuro nem para mim nem para você”. (SOUSA, 2002, p. 86-87)

Conforme dito anteriormente, porém, sabe-se que o punk sofreu uma


transição e estabeleceu suas bases em torno de concepções e ideais sólidos,
adotando uma postura mais ideologizada em relação à realidade social e
construindo um estilo de atuação mais politizado, transformando-se em um
movimento social, com causas e objetivos mais definidos e esclarecidos.
Um movimento social, basicamente, é constituído por um grupo de pes-
soas com interesses em comum, que se identificam em torno de um conjunto
de ideias e de um objetivo e se mobilizam de forma organizada a fim de con-
quistar esse objetivo (GOHN, 1997). Mais especificamente, e segundo Manuel
Castells (2003), os movimentos sociais são sistemas de práticas sociais con-
traditórias à ordem social urbana ou rural e tem como meta transformar a
estrutura do sistema. Sendo assim, o punk pode ser caracterizado como um
movimento social, por ser composto por um grupo de pessoas com o objetivo
de acabar com as mazelas do capitalismo e de conscientizar a sociedade a
respeito dos problemas sociais.
Nota-se, então, que o punk ganhou destaque no quadro revolucio-
nário, engajou-se em conjunto com outros movimentos na luta por seus
ideais e entrou na categoria de movimento social. Porém, antes disso, o
punk já existia há cerca de dez anos. Foi durante esse tempo que ante-
cedeu a politização do punk, marcado pela contestação e pelo protesto,
que os elementos culturais do que viria a ser um movimento social tiveram
maior notoriedade.

Steffi Lema Suárez Penetra


548
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DO PUNK

As manifestações culturais do movimento punk se mostram em va-


riadas formas, entre elas a poesia, a música, os fanzines e o visual. Em
todos esses tipos de expressão, é possível perceber um ataque aos valores
vigentes e uma insatisfação com as imposições do sistema capitalista.
O fanzine – fan (fã) + magazine (revista) – é o veículo pelo qual se es-
tabelecem os principais debates do movimento punk: drogas, violência, discri-
minação etc. Os fanzines nasceram da necessidade básica de tornar público
tudo o que a grande imprensa desprezava em relação ao universo punk em
um meio independente de comunicação.
Por intermédio dos fanzines, criou-se uma rede alternativa de informa-
ção que divulga para os jovens as notícias omitidas pelos meios de comu-
nicação comerciais e que auxiliou na unificação do discurso e da linha de
ação das comunidades punks.
No que concerne às poesias punks, pode-se afirmar que, assim como
os fanzines, elas não obtiveram grande destaque fora do movimento; no
entanto, esses textos expressavam com clareza os assuntos corresponden-
tes à ideologia punk, como pode ser observado no poema a seguir:

Esconder?
Esconder o quê?
Esconder-se de quem?
Não nos escondemos.
Nos mostramos.
Demonstramos.
Aqui estamos!
Taqui a tatuagem
Que adora a minha pele,
O metal do cinto e da pulseira.
Um patch, e outro, e mais outro,
Minhas calças estão cheias deles.
Não me escondo, me mostro.
Pra quem quer ou não quer ver.
Você não quer? Não? Sabe por quê?
Eu te faço lembrar da sua apatia.
Eu te incomodo... ótimo!

A música punk como expressão de um movimento jovem


549
Esconder?
Sim, a gente esconde sim.
Eu tenho um piercing
atravessado na língua
e ela também.
Eu o escondo em sua boca
e ela na minha.
Mas o nosso tesão
a gente não esconde nunca...
Tesão e indignação a gente mostra!
(Um poema punk, Latuff)

Além de se manifestarem por fanzines e pela poesia, normalmente


publicada nos próprios fanzines, os punks fizeram uso intenso do visual e da
música com o objetivo de chamar atenção, reclamar e expor sua revolta.
O visual constituiu um elemento de destaque, especialmente
no início do movimento, contribuindo para o aparecimento cênico do
punk, que vinha tentando resgatar os traços de insubordinação que es-
tiveram presentes nos movimentos contraculturais que o antecederam.
A estética punk é uma combinação de alguns elementos, como alfine-
tes, calças jeans rasgadas, jaquetas de couro com mensagens inscritas
nas costas, coturnos, piercings, correntes, cortes de cabelo moicano,
às vezes colorido, e, em alguns casos, lápis ou sombra no olho. Dessa
forma, o corpo se transforma numa vitrine por meio da qual o jovem
desfila, metaforicamente, sentimentos de discordância.
Os punks, em suas vestimentas, revelam sua luta contra a padroni-
zação dos indivíduos. Por isso, a utilização do visual diferente teve maior
importância nos primórdios do movimento, por ser aquele o momento de
fazer aparecer a nova contracultura. Essa fase inicial foi um choque para a
sociedade, que via aquilo como sujo, desrespeitoso, um atentado ao que se
convencionou como boa moral e bons costumes (MELÃO, 2010).

[...] o punk evoluiu além da tática de choque dos cabelos colo-


ridos e coleiras de cachorro para ter uma filosofia relativamente
coesa, que tem pouco ou nada a ver com um estilo de moda em
particular. Embora tenha sido útil na época – e ainda hoje seja

Steffi Lema Suárez Penetra


550
divertido – chocar as pessoas com a aparência é menos impor-
tante do que chocar com ideias. (O’HARA, 1992, p. 40)

E, assim como havia ocorrido com signos do movimento hippie, os


meios de comunicação de massa tentaram apoderar-se de elementos es-
téticos do punk para transformá-los em mercadoria, ocasionando a perda
de sentido da sua utilização. A partir de então, os coturnos, as roupas
pretas e rasgadas e os alfinetes passaram a fazer parte do visual de pes-
soas que não estavam engajadas no movimento e perderam parte de seu
conteúdo transgressivo.

Depois de ensejar uma das mais radicais transformações na música


popular, o próprio punk foi transformado em argumento de consu-
mo. O visual desleixado, as roupas rasgadas e sujas usadas pelos
primeiros punks ganharam a sua versão para butiques luxuosas.
Bandas recém-formadas e que tinham feito apenas algumas apre-
sentações eram contratadas pelas gravadoras, ansiosas por desco-
brirem os “novos” Sex Pistols. (VITECK, 2007, p. 54)

A indústria da moda, aliada à mídia, tentava criar um rebelde de ga-


leria, descompromissado com os ideais punks. O visual punk, no entanto,
não podia ser completamente vendido porque possuía características não
comercializáveis, como a utilização de símbolos malvistos. A suástica era um
dos símbolos usado indiscriminadamente por punks que, de certa forma, não
podia ser vendido por ser alvo de estranhamento excessivo.

Quando a maioria das pessoas olha para uma suástica, a primeira


coisa em que pensa é na Segunda Guerra Mundial, no nazismo e
no Holocausto. [...] No entanto, [...] considera-se que é um dos mais
antigos símbolos místicos da humanidade. A palavra “suástica” vem
do sânscrito e significa “aquilo que traz boa sorte”. (NUNES, 2007)

A música, juntamente com o visual, configura o aspecto cultural mais


evidente do punk, e pode-se afirmar que ela foi o principal veículo de
transmissão dos ideais punks.

A música punk como expressão de um movimento jovem


551
POR QUE A MÚSICA?

A música – e, mais especificamente, o rock – desempenhou um papel


central nas culturas juvenis e na formação de novas identidades, principal-
mente após os anos 1950, no período pós-guerra, época em que se apre-
sentou como definidora de padrões e gostos, e como aglutinadora de jovens
em torno de seus estilos de vida.
O rock passou por um estágio de ruptura de padrões nos anos 1950
e adquiriu importante caráter contracultural com os hippies, nos anos
1960, época em que se tornou uma ferramenta de contestação social. No
entanto, essa postura contestadora que o rock havia adotado começou a
se perder, na medida em que se tornava mais um produto do capitalismo,
vendido pela indústria cultural numa lógica de mercado (MELÃO, 2010).
Nessa fase de comercialização do rock, entrou em cena uma vertente
desse estilo conhecida como rock progressivo. Surgido no final da década de
1960, representava uma nova maneira de trabalhar os instrumentos típicos
do rock. Seus atributos principais eram músicas longas, sem refrão, ou até
mesmo sem letra, somente instrumentais; uso de instrumentos alternativos
e incomuns no rock, como flauta e violoncelo, realizando uma aproximação
com a música erudita; utilização de equipamentos eletrônicos a fim de tornar
o som mais complexo; longa duração das músicas, algumas chegando a ter
mais de 30 minutos de duração etc. (PACIEVITCH, 2011). Além disso, o rock
progressivo não estava vinculado a questões sociais: era uma música comple-
tamente comercial e suas letras tratavam de temas que não condiziam com
a realidade das pessoas que sofriam com a crise econômica que assolava
inclusive as grandes economias da época.
Criticando o “entreguismo” dos astros dos anos 1960 e sugerindo uma
estética mais crua e violenta para salvar o rock e os jovens da alienação, os
jovens punks dos anos 1970 deram um novo rumo ao rock. Os pioneiros do
movimento punk emergiram com uma nova proposta:

Durante os anos 1960 e 1970, o rock era repleto das rock stars,
celebridades ligadas à música que eram contratadas pelas gran-
des gravadoras, elas levavam uma vida extremamente luxuosa,

Steffi Lema Suárez Penetra


552
andavam de limusines e moravam em mansões. Os fãs raramente
chegavam perto desses músicos... Tudo isso fazia com que o rock
se distanciasse de seu público, e boa parte dos jovens já não se
identificava mais com ele. (MILANI, 2008, p. 3)

Na década de 1950, o rock foi lançado com uma conotação sexual,


fato que abriu caminho para as ideias hippies de amor livre nos anos 1960.
No final dos anos 1960, o rock estava ligado às drogas, outro tabu. No
início dos anos 1970, porém, as culturas do sexo e das drogas já haviam
se tornado rotina e, então, o rock se fundamentou no último grande tabu,
a violência, configurando uma nova forma de protesto social (SOUSA,
2002, p. 85-86).
O punk misturou anarquia, contestação e música, colocando em cena
um rock sem sofisticação, uma música que qualquer pessoa poderia fazer.
A estética do punk é bruta e feia, como a realidade dos subúrbios ingleses
(GUMES, 2004, p. 8). O punk rock é a percepção da música como cami-
nho consciente de expressão ideológica; o punk adquiriu caráter denuncia-
tivo. Nesse estilo, a rebeldia é manifestada pelo discurso, pelas letras das
músicas. Nas composições, não existe preocupação com uma linguagem
elaborada. As letras das músicas são, em geral, compostas em tom panfle-
tário, com críticas às instituições sociais. O texto verbal foi a ferramenta de
contestação mais eficiente encontrada por esse movimento para criticar a
sociedade organizada e suas instituições (MELÃO, 2010, p. 89).
Para exemplificar a agressividade, a indignação e a crítica presentes na
música punk, serão mostradas a seguir traduções de trechos das composições
God Save the Queen (Deus Salve a Rainha), do conjunto inglês Sex Pistols, e
Aos fuzilados da CSN, da banda de punk rock brasileira Garotos Podres.

Deus salve a rainha


Seu regime fascista
Fez de você um retardado
Uma bomba de hidrogênio em potencial
Deus salve a rainha
Ela não é um ser humano
Não há futuro
Nos sonhos da Inglaterra [...]

A música punk como expressão de um movimento jovem


553
Deus salve a rainha
Porque turistas são dinheiro
E nossa representante
Não é o que parece.
(God Save the Queen, Sex Pistols)

Aos que habitam cortiços e favelas e,


mesmo que acordados pelas sirenes das fábricas,
não deixam de sonhar, de ter esperanças
pois o futuro vos pertence
Pois o futuro vos pertence!
Pois o futuro vos pertence!
Aos que carregam rosas sem temer machucar as mãos
pois seu sangue não é azul nem verde do dólar,
mas vermelho da fúria amordaçada
de um grito de liberdade preso na garganta
Pois o futuro vos pertence!
Pois o futuro vos pertence!
Fuzilados da CSN,
Assassinados no campo,
Torturados no Dops,
Espancados na greve
A cada passo desta marcha
Camponeses e operários
tombam homens fuzilados
Mas, por mais rosas que os poderosos matem,
nunca conseguirão deter a primavera!
Pois o futuro vos pertence!
Pois o futuro vos pertence!
(Aos fuzilados da CSN, Garotos Podres)

As músicas, além do discurso simples e objetivo da composição, pos-


suem um som tosco, cru – uma resposta à mercantilização do rock. Os
punks se reuniam para formar bandas de garagem que não priorizavam
as habilidades apuradas em termos técnicos; queriam tocar à sua maneira,
revelar as suas experiências e expor a realidade do subúrbio.
A música punk confrontou a maneira vigente de fazer música. O
rock progressivo, estilo adaptado para a sociedade de consumo e mais
preocupado com as técnicas musicais do que com as questões sociais,
viu-se em choque com o punk, que era exatamente o seu contrário. A

Steffi Lema Suárez Penetra


554
música punk, assim, foi um estilo musical de contestação desde o princípio,
tanto no que diz respeito à sua resposta aos rumos que o rock havia tomado
quanto no que diz respeito à contestação exibida nas letras das músicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os punks eram contra todos os tipos de instituições relacionadas


ao sistema capitalista porque elas impõem grilhões, na forma de valores,
que tiram a autonomia do indivíduo. Da frase-lema “Faça você mesmo”
traduz-se que os punks eram a favor da ação direta: o indivíduo deveria
lutar contra o que acha errado em vez de esperar que fizessem isso por ele.
Os punks foram vistos como adolescentes revoltados por grande parte
da sociedade, e de fato o eram, porque vestiam roupas diferentes, coloriam os
cabelos, tatuavam seus corpos e usavam piercings. Visualmente, eram aber-
rações. O visual foi mais que uma estratégia para chamar a atenção; foi
uma crítica aos modelos estéticos impostos e tinha por objetivo difundir uma
posição contrária.
Essas características, aliadas à cultura de violência fortemente presen-
te, contribuíram para que os jovens desse grupo, então vistos como rebeldes
sem causa, fossem perseguidos pela polícia e pela sociedade, que costumava
legitimar apenas as lutas lideradas por ícones considerados pacifistas. O pro-
blema que se apresenta é que

[...] os proponentes da não violência que vêm de áreas privilegia-


das, com as comodidades materiais e psicológicas garantidas e
protegidas por uma ordem violenta, não crescem com complexos
de inferioridade violentamente marcados no seu interior. A arro-
gância das afirmações dos pacifistas de que podem chegar a ditar
quais formas de luta são morais e efetivas para as pessoas que
vivem de forma muito diferente, e que encaram circunstâncias muito
mais violentas, é espantosa. (GELDERLOOS, 2011, p. 31)

A música punk como expressão de um movimento jovem


555
O punk, porém, não se organiza de forma independente para atingir
seus objetivos, mas se integra a outros movimentos. Dessa forma, o punk não
possui uma atuação regular e constante em uma área específica, mas sim
opera de maneira pontual dentro de variados espaços. Provavelmente isso
acontece porque os adeptos do movimento punk possuem um pensamento,
de certa forma utópico, de mudar os valores da sociedade. “�������������
Utópico������
” por-
que é muito difícil modificar crenças e tradições enraizadas na sociedade
somente com ações pontuais e sem um trabalho político permanente.
Não é uma tarefa simples mudar, por meio de manifestações que
mais chocam do que realmente conscientizam, a maneira de pensar de uma
pessoa, quiçá de uma sociedade, que se habituou a ser conformada, aco-
modada. Quando um punk se veste de maneira diferente, ele passa a men-
sagem de que é contra a moda, contra a imposição, no entanto seu visual
não é capaz de mostrar aos indivíduos que o veem por que ele pensa e
age assim.
Dentre as manifestações do punk, a mais famosa foi a música, que
vinha contestando e demonstrando insatisfação em duas direções. Primeiro,
a música punk era simples e objetiva, diferentemente da música que estava
ganhando espaço na época; segundo, a mensagem passada por meio
da composição exteriorizava a desordem e a raiva contra o sistema político.
No final da década de 1960, a tendência era o rock progressivo,
uma maneira de fazer rock que trouxe grande complexidade técnica para
esse estilo, mas que não possuía compromisso com as questões sociais;
pelo contrário, o rock progressivo era um estilo que criava, em suas mú-
sicas longas e sem objetivos sociais, universos idealizados que não condi-
ziam com a realidade das periferias.
Contrariando essas características, os pioneiros do movimento
punk apresentaram à sociedade uma proposta de rock básico, com ba-
tidas simplificadas e pouca elaboração melódica. Resumidamente, sem
requintes. Além disso, as letras das músicas punks normalmente tratavam
de temas relacionados com a realidade dos subúrbios, subvertendo a au-
sência de compromisso social do rock progressivo. Eis, para exemplificar
o aspecto contestador, a letra da música “Oi! Tudo bem?”, que consiste

Steffi Lema Suárez Penetra


556
em uma representação de uma ligação telefônica, da banda brasileira
Garotos Podres, formada em 1982:

(O telefone toca)
- Oi, tudo bem?
- Tudo bem... fora o tédio que me consome todas as 24 horas do
dia, fora a decepção de ontem, a decepção de hoje e a desespe-
rança crônica no amanhã. Tenho vontade de chorar, raiva de não
poder. Quero gritar até ficar rouco! Quero gritar até ficar louco!
Isso sem contar com a ânsia de vômito, reação a tal pergunta
idiota. Fora tudo isso, tudo bem.

A sonoridade da música punk é violenta, agressiva, utilizando batidas


fortes que ajudam a enfatizar a questão do “aqui” e do “agora” (JANOTTI
JUNIOR, 2004). O punk na música surgiu refletindo a “vida como ela é”,
fora do mundo de fantasia e alienação criado pela maioria dos músicos da
época. A música punk foi uma volta às raízes do rock and roll; ela trouxe o
rock novamente para a esfera contestadora.
E agora, para suavizar um pouco todo esse discurso sobre violência,
guerra e desilusão, a letra da música Baby, I Love You (Querida, eu te amo),
da banda de punk rock norte-americana Ramones. Dessa vez, o tema da
composição não é revolta ou indignação. É uma música sobre amor, porque
os punks também amam.

Eu já alguma vez te falei


Como é bom te abraçar?
Não é algo fácil de explicar
Embora eu realmente esteja tentando
Eu acho que posso começar a chorar
Meu coração não pode esperar outro dia
Quando você me beija eu só consigo...
Me beija eu só consigo...
Me beija eu só consigo dizer:
Querida, eu amo você
Querida, eu amo você
Querida, eu amo você

A música punk como expressão de um movimento jovem


557
Querida, eu amo somente você
Eu não posso viver sem você
Eu amo tudo a seu respeito
Eu não posso evitar se me sinto desse jeito
Oh, eu estou tão feliz por ter te encontrado
Eu quero meus braços ao seu redor
Eu amo ouvir você chamar meu nome
Me fale, querida, que você sente o mesmo
Querida, eu amo você
Eu amo somente você!
(Baby, I Love You, Ramones)

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A música punk como expressão de um movimento jovem


561
O PANORAMA HISTÓRICO DO HIP-HOP

Tais Almeida da Silva*

CONTEXTO HISTÓRICO ANTERIOR AO HIP-HOP NOS


ESTADOS UNIDOS

Há aproximadamente cinquenta anos, o sul dos Estados Unidos viveu o


ápice das segregações sociais entre negros e brancos. As leis segregacionistas
eram tão fortes e presentes no cotidiano das pessoas que até mesmo para
os hábitos mais rotineiros, como beber água, havia leis que determinavam
locais específicos para cada cor de pele realizar esse ato. Essa espécie de
separação legitimada por conta da quantidade de melanina de um indiví-
duo não apenas contribuiu para a naturalização do racismo nesse ambiente,
como também oficializou a posição racista do Estado e da sociedade. As leis
que legitimaram o racismo nos Estados Unidos nesse momento foram tão rigoro-
sas que o sistema chegou a ser comparado com o regime opressor que vigorava
na África do Sul e, com isso, a década de 1960 nos Estados Unidos ficou co-
nhecida como apartheid estadunidense (PIMENTEL, 1997, p. 1).
Na tentativa de fugir desse modelo separatista rigoroso e na ex-
pectativa de alcançar melhores condições de vida, um grande número
de americanos negros começou a migrar para o norte industrial do país,
principalmente para Nova York. “O crescimento das redes multinacionais

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Bacharelado em Dança na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão
de curso, contou com a orientação dos professores-pesquisadores Flávio Henrique Marcolino da Paixão
(mestre em Biologia Parasitária), do Laboratório de Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais de
Saúde (Latec) e Kelly Pereira de Carvalho (mestre em Linguística Aplicada), do Laboratório de Formação
Geral na Educação Profissional em Saúde (Labform). Contato: taisalmeida.t@gmail.com.

O panorama histórico do hip-hop


563
de telecomunicações, a competição da economia global, a grande re-
volução tecnológica, a formação de novas e internacionais divisões de
trabalho” (ROSE, 1997, p. 195) foram alguns dos fatores que contribuíram
para as novas políticas de Estado e para o grande fluxo migratório para
Nova York. Assim, como a mão de obra negra era mais barata e, nesse
momento, as reformulações do sistema econômico exigiam um maior con-
tingente de trabalhadores de base, o Estado, juntamente com os setores
econômicos, iniciou um processo de construção da imagem de um país de
oportunidades, afim também de incentivar a imigração dos negros para o
norte industrial.
De fato, o novo modelo econômico do país conseguiu atrair grande
contingente de negros e outros estrangeiros (principalmente hispânicos) à
região. Contudo, a terra prometida pelo american way of life (“estilo de vida
americano”)1 tinha se tornado na verdade um local dividido em dois grandes
blocos: os brancos administradores da movimentação financeira e comercial
de Nova York, que enriqueciam progressivamente, e os negros e latinos, que
constituíam o setor dos subempregados e que empobreciam progressivamente
(ROSE, 1997, p. 197). Em consequência, a separação entre esses blocos não
foi apenas social e econômica: ela também foi física.
Sendo assim, em pouco tempo os bairros pobres de Nova York fica-
ram conhecidos como guetos.2 Estes mostraram também sua importân-
cia para a manutenção do Estado nesse período, isto porque expandia
os lucros extraídos de um grupo social visto como desprezível além de
evitar o contato com seus indivíduos, de forma que atenuasse a ameaça
de contaminação simbólica dos quais essas pessoas seriam portadoras
(WACQUANT, 2008, p. 76).

1
Ideologia que se tornou o carro-chefe da mídia nas produções dos Estados Unidos. Tinha por
objetivo construir a imagem de uma terra de oportunidades de trabalho, de consumo de diversos
produtos e de ascensão social.
2
Na Europa medieval, o gietto (de onde se originou a palavra gueto) era usado para se referir a áreas
específicas onde os judeus foram confinados e obrigados a viver. Inicialmente, esses locais foram vendidos
para o povo judeu como um privilégio, isto é, um ambiente onde poderiam administrar e controlar
seus próprios estabelecimentos. Contudo, em 1516, os giettos venezianos passaram a ser locais de
enclausuramento social. Isso porque, por meio de uma ordem direta do Estado, foi obrigatório o
realojamento dos judeus em uma ilha isolada e cercada por muros (apelidada de gietto nuevo), com a
justificativa de que se estaria tentando “proteger seus habitantes cristãos do contato contaminador com
corpos considerados sujos e perigosamente sensuais” (WACQUANT, 2008, p. 79).

Tais Almeida da Silva


564
Devido ao fenômeno econômico conhecido como imperialismo,3 houve
um processo de desindustrialização coletiva nos guetos americanos, resultado
do desemprego exacerbado da população descartável do sistema – no caso,
os negros. Atrelado a isso, nota-se um recuo multifacetado do Estado em
suas obrigações, ou seja, serviços básicos, como educação, saúde, cultura, lazer
e segurança, passaram a ser, quando não inexistentes, de extrema precariedade.
Assim, foram agregados outros valores à figura do gueto, tais como a imagem
de um lugar inóspito, insalubre, um território de medo, de constante insegurança,
povoado por selvagens e vetores de heresias.
Nessa celeuma de fatos que oprimiam massivamente uma única etnia,
o gueto mostrou sua outra faceta. Ao mesmo tempo em que serve de instrumento
de coerção e controle social de um povo, ele se mostra também uma “máquina de
produzir identidades maculadas” (WACQUANT, 2008, p. 89). A discriminação
racial, a falta de empregos, o descaso das autoridades, ou seja, a submissão
a essas e outras experiências sociais são os motivos que levam à construção
de uma identidade social tão distinta.
As semelhanças coletivas das pessoas do gueto são tão fortes e evi-
dentes que se sobressaem às diferenças individuais de cada ser. A situação
em comum vivida por eles refletiu-se, numa série de novos significados,
sobre o seu cotidiano, consequentemente, gerando essa aproximação en-
tre os indivíduos. Por esse mesmo motivo, o principal fator que estigmatiza
e distingue o morador do gueto dos demais é também o fator em comum
mais evidente entre seus componentes e, logo, o que promove essa iden-
tificação. Nesse sentido, a mesma arma que aponta para um lado, em
outro momento se transforma em escudo, ou seja, a cor de um indivíduo,
que por tanto tempo foi exclusivamente motivo de discriminação, torna-se
também motivo de orgulho e de identidade de uma classe.
Podemos notar que esse processo se expandiu de tal forma que
surgiram com ele algumas expressões que descrevem o orgulho da identi-

3
Segundo Bottomore: “O imperialismo refere-se ao processo de acumulação capitalista em escala
mundial na fase do capitalismo monopolista e a teoria do imperialismo é a investigação da acumu-
lação no contexto de um mercado mundial criado por essa acumulação. A teoria tem três elementos:
1) a análise da acumulação capitalista, 2) a periodização do capitalismo em fases ou estágios e 3) a
localização do fenômeno no contexto da divisão política do mundo em países” (2001, p. 187).

O panorama histórico do hip-hop


565
dade negra dos afro-americanos. Não foi à toa que gritos como “Black is
Beautiful” (preto é lindo), “I’m Black and Proud!” (Sou preto e me orgulho
disso), ou ainda, “Black Power” (Poder dos negros) surgiam e rapidamente
se tornavam lemas desse povo. O negro que por tanto tempo aceitou a
imposição de aparência, costumes, vestimentas, entre outras coisas, oriun-
das do povo branco, passou a se orgulhar do seu próprio modo de ser.
Desse modo, junto com os cabelos que se revoltavam contra os métodos
de alisamento e progressivamente iam ganhando forma nos Black Power,
a luta pelo reconhecimento do negro aos poucos ganha força e desenha
figuras de representatividade internacional.
Na luta pelo reconhecimento, surgiram grandes líderes que serviram
de identificação e representatividade da população negra. Martin Luther King
e Malcolm X influenciaram gerações com seus ideais de restabelecer nos
negros a “autoestima, a capacidade de organização comunitária e a solida-
riedade” (PIMENTEL, 1997, p. 2). Cabe aqui salientar que, apesar de ambos
terem contribuído no processo de resistência dos negros e de seus discur-
sos por vezes se assemelharem em diversos pontos, Luther King e Malcolm
X eram pessoas diferentes e, logo, pensavam também de maneiras distintas.
Nascido em 19 de maio de 1925, Malcolm Little vivenciou o estado
de penúria dos guetos durante toda a sua infância. Aos seis anos, viu seu
próprio pai ser brutalmente assassinado pela Ku Klux Klan.4 Já na adoles-
cência, tendo ido morar no Harlem, Malcolm entrou para o crime e foi
preso em 1946 assaltando residências. A cadeia foi uma espécie de catar-
se para ele: ali ele se converteu ao islamismo e se filiou à seita Nação Islã,
que defendia ter o homem surgido na África e que, portanto, o negro se-
ria a civilização mais avançada. Outra importante mudança que a prisão
trouxe a Malcolm Little foi justamente a troca de seu nome: ele resolveu
substituir seu sobrenome pela incógnita “X” como forma de negar a do-
minação histórica do colonizador sobre os negros (PIMENTEL, 1997, p. 2).

4
A Klu Klux Klan é um grupo racista norte-americano que se baseia na supremacia da raça
branca e que anda encapuzado com máscaras brancas, perseguindo os negros nos Estados
Unidos. Surgiu em 1865 no sul desse país e ataca os negros por acreditar que são “preguiçosos,
inconstantes e economicamente incapazes e, por natureza, destinados à escravidão” (SILVA
JÚNIOR, s.d.).

Tais Almeida da Silva


566
Em 1952, ao sair do presídio, Malcolm X se tornou rapidamente
um reconhecido líder dos negros de todo o país. Suas ideias defendiam
“a separação das raças, a independência econômica e a criação de
um Estado autônomo para os negros” (UOL EDUCAÇÃO, s.d.) e, para
alcançar esses objetivos, os negros deveriam usar também a luta física
se necessário. “Somos não violentos com os não violentos conosco.
Deixamos de ser não violentos com os que forem violentos conosco”
(PANTERA, 1995). Porém, as ideias pregadas por Malcolm, como defender
a separação das raças e a defesa agressiva dos negros, não estavam de
acordo com os parâmetros da Nação Islã. Por isso, após se desentender com
integrantes do grupo, Malcolm abandona a Nação Islã para seguir carreira
política. Em 1965, X é assassinado durante um discurso no Harlem, e suspeita-
se da participação da própria Nação Islã no crime (PIMENTEL, 1997, p. 2).
Em 1929, nascia um líder negro que coatuaria com Malcolm X no
cenário desse período. Martin Luther King Jr., pastor batista, nascido em
Atlanta, seguidor do líder Mahatma Gandhi, defendia desde o início de sua
militância a resistência pacífica dos negros. “Estou convencido de que a me-
lhor arma contra o povo oprimido na luta pela liberdade e justiça é a arma
da não violência” (PANTERA, 1995). Em 1964, Martin Luther King ganhou o
Prêmio Nobel da Paz, sendo a sua atuação mundialmente reconhecida. Um
pouco depois, em 1968, fez o seu discurso mais ilustre, “I Have a Dream”
(Eu tenho um sonho), coincidentemente ou não, exatamente um dia antes de
seu assassinato.
Durante muito tempo, esses dois líderes representavam duas alternati-
vas quase opostas para a atuação dos negros na luta por seus direitos. Assim,
enquanto Luther King buscava a solução para os problemas da população
negra dentro das normas da lei americana, a posição de Malcolm X era mais
radical e a favor de que os negros não medissem esforços para conseguir
seus direitos civis. A divisão das ideias dos líderes também dividia o seu povo,
encontrando-se no mesmo espaço aqueles que eram pacíficos veementes e
os que eram mais radicais.
Oriundo da mistura dos ideais de Malcolm X e Martin Luther King Jr.,
no ano de 1966 é fundado, por Bobby Seale e Huey P. Newton, o Partido

O panorama histórico do hip-hop


567
Pantera Negra para a Autodefesa (Black Panther Party for Self-Defense), como
foi originalmente chamado. Lutando contra os dois “I” (inércia e ignorância),
os Panteras Negras buscavam utilizar instrumentos legais para diminuir a re-
pressão contra o seu povo. Dessa forma, os Panteras respaldaram-se na lei
que permitia o porte de armas por qualquer cidadão dos Estados Unidos a
fim de conter a ação violenta dos policiais brancos nos bairros negros. Isto é, o
intuito era usar armas apenas em legítima defesa (e de qualquer outro negro)
diante de uma agressão policial, dado que era muito comum um negro sofrer
violência e, até mesmo, morto por um policial e nada ser feito quanto a isso
(PIMENTEL, 1997, p. 4).
O Partido Pantera Negra se organizou por meio de um manifesto cha-
mado de Programa dos Dez Pontos, que reivindicava mudanças desejadas
para a comunidade. À medida que o partido crescia e ganhava adeptos em
todo o país, as coerções ao movimento também aumentavam. Dessa ma-
neira, foi iniciado um conflito declarado entre a força legitimadora branca
(principalmente por meio da atuação do Estado) e a resistência dos Pante-
ras. Por causa dos grandes ataques, o partido chegou ao seu fim, porém,
naquele momento, fora plantado o poder de uma luta nos Estados Unidos
“não contra os brancos, mas contra a repressão” (PANTERA, 1995).
Juntamente com os rugidos dos Panteras e de toda uma sociedade
negra que lutava por melhores condições de vida, ecoava das caixas de som
um novo movimento musical que dava ritmo e compasso às reivindicações.
Naquele momento, essa linguagem musical refletia e traduzia diversas
aspirações de uma sociedade, e todo o contexto histórico no qual estava
inserida, explícito ou não em seus versos. Assim, os estilos musicais devem ser
encarados para além de um conjunto harmônico de compassos e arranjos,
isto é, devem ser vistos também como discursos acerca da realidade dos
negros norte-americanos (HINKEL e MAHEIRIE, 2007, p. 91).
Dessa forma, músicos negros, como Marvin Gaye, Ray Charles e James
Brown, protagonizaram na década de 1960 o soul e o utilizaram como um
modo de abordar na sociedade questões como orgulho racial, condições de
vida dos negros e direitos civis, entre outros assuntos. Com a movimentação
do soul, explodiram algumas músicas que se tornaram verdadeiros hinos de

Tais Almeida da Silva


568
batalha dessa geração, como a que trazia a frase “Say it loud: I’m black and
proud”, de Steve Biko, famoso líder sul-africano, que ganhou arranjo com
James Brown e se tornou conhecida para além das fronteiras dos guetos.
Enquanto o soul se popularizava e conseguia difundir as causas da luta até às
pessoas mais distantes, a indústria fonográfica começava a se apropriar desse
ritmo, e o soul perdia com isso seu poder de denúncia social para simples-
mente ser um entretenimento.
Em contrapartida, no final dos anos 1960, grandes músicos do soul
inovavam em suas canções, dando origem ao que viria a ser conhecido
como funk. O termo funk, que designa algo que tem odor forte, acrescentou
ao soul uma roupagem mais dançante – foi justamente pela presença de
mais swing em suas batidas que Earl Palmer nomeou funk pela primeira vez
a esse novo ritmo. “O funk oferecia ritmos pesados e bruscos com arranjos
agressivos, que vieram para radicalizar a proposta do soul” (SOUZA, 2010,
p. 61). Como esperado, o funk explodiu nos Estados Unidos, sendo, pos-
teriormente, apropriado pela indústria; antes, porém, transportou para os
quatro cantos do mundo uma nova ideologia, uma nova forma de tocar, de
vestir e de dançar.
Dos momentos de lazer até os cultos religiosos, a história do africano
sempre foi permeada de manifestações corporais, ou seja, danças. Os es-
cravos trouxeram para a América essa cultura, que perdura por gerações e
se mostrou, nessa época, nas funk styles (danças do estilo funk). A primeira
delas foi o locking, surgido no final da década de 1960 na cidade de Los
Angeles. Don Campbell, inspirado pela febre nacional da série Perdidos no
espaço, de Irwin Allen, começou a desenvolver uma dança que lembrava
a movimentação dos robôs. Ao som das batidas dançantes do funk, e com
os passos fortes dos robôs, surgia o locking, que, com o tempo, assumiu
características próprias que justificavam até mesmo o seu nome – a palavra
“locking”, que significa “travando”, simbolizou a maneira mais rígida de dan-
çar lembrada pelo estilo dos robôs. Em meados dos anos 1970, a dança, já
bem mais desenvolvida com um leque de movimentos específicos, explodiu
pelo mundo após a aparição do grupo The Lockers (criado pelo próprio Don
Campbell) num famoso programa da televisão, o Soul Train. A partir desse
momento, o locking se transformou em uma febre mundial, estando presen-

O panorama histórico do hip-hop


569
te em apresentações de grandes artistas como James Brown, Jackson Five,
Frank Sinatra, entre tantos outros artistas de sucesso (LEAL, 2007, p. 58).
Outro estilo de dança que também foi categorizado dentro das funk
styles foi o popping. Em 1972 na cidade de Fresno, também na Califórnia,
Boogaloo Sam, com seu grupo Eletric Boogaloo, criou uma nova forma de
dançar que também derivava da febre robótica. O diferencial dessa dança
em relação ao locking é que esse se preocupava mais em imitar comple-
tamente a movimentação dos robôs e a fazer movimentos que imitavam
descargas elétricas nas batidas fortes da música.
Foi assim que o swing do funk desencadeou o aparecimento de
algumas danças que irão complementar essa conjuntura de manifesta-
ções musicais que explode nos guetos. Entretanto, independentemente de
sua origem específica, tanto o locking quanto o popping são expressões
corporais diretamente anteriores à dança característica do movimento
hip-hop (o breakdance), e que, por isso, nos ajudam a entender o con-
texto em que o breakdance surgirá e de que forma ele entra na lógica de
um movimento social cultural que muda a rotina dos guetos americanos.
As danças apresentadas ao longo desse trabalho não devem ser enca-
radas como um processo de puro entretenimento e/ou alienadas do processo
de reivindicação muito evidente nas músicas. Além da diversão que permeia
também o cenário musical, o ato de dançar se mostrou crucial para os indiví-
duos daquela sociedade expressarem toda a revolta contida na subjetividade
e lutarem contra a sua exclusão social (ALVES e DIAS, 2004, p. 1). Com a sua
dança, os negros encontraram um modo de sentir sua existência na vida, de
serem aplaudidos e reconhecidos por aquilo que sabiam fazer e de notar
que eram sujeitos importantes e que não deviam ser excluídos da sociedade.
“quando seus corpos dançavam, era o momento em que eles deixavam de
ser pobres, trabalhadores, excluídos, desempregados para serem aplaudidos”
(GUARATO, 2008, p. 81). Assim, a dança contribuiu para a tomada de cons-
ciência do negro de si mesmo e fez aumentarem suas mobilizações na luta por
melhores condições de vida.

Tais Almeida da Silva


570
SURGIMENTO DO HIP-HOP

Como visto, os anos 1960 e 1970 foram o estopim para o aparecimento


de modelos culturais próprios dos guetos que tinham um teor de reivindica-
ção bastante evidente. Os guetos estadunidenses, principalmente os nova-
iorquinos, foram como uma panela de pressão que teve como ingredientes o
desemprego da América pós-industrial, o racismo, a pobreza, a luta pelos di-
reitos civis, líderes negros conhecidos mundialmente, músicas e danças criadas
pelos negros e, quando tudo isso explodiu, deixou nessa sociedade uma nova
cultura, caracterizada pela mistura de todos esses elementos (ROSE, 1997,
p. 192).
Foi nesse movimento que começaram a surgir os indícios dessa nova
cultura dos guetos, com o aparecimento das festas de rua conhecidas como
block parties. Em 1969, Kool Herc trouxe suas raízes da África para as ruas
do Bronx, a música negra agora circulava através das Herculoids – carroce-
rias acopladas a grandes caixas de som (técnica dos famosos sound systems
de Kingston). Em uma praça, em uma rua, qualquer que fosse o espaço
público, a caminhonete do Herc parava e em pouquíssimo tempo uma mul-
tidão aparecia para “balançar o esqueleto” (LEAL, 2007, p. 24).
Juntamente com aquele som, começaram a aparecer pessoas que
criavam rimas improvisadas em cima das batidas. Temas como violência,
sexo, drogas e política passaram a ser desenvolvidos nesses versos, já
delineando a função social que o rap assumiria, numa técnica impor-
tada da Jamaica, onde já existia uma tradição no reggae de improvisar
em cima de instrumentos musicais. Esses artistas nos guetos dos Estados
Unidos ficaram primeiramente conhecidos como Toasters, os quais além de
rimar em cima das batidas se utilizavam de gírias particulares das periferias
negras para dificultar a compreensão dos assuntos pelos brancos. Esse es-
tilo de cantar falado em rimas originou posteriormente um dos elementos
constituintes da cultura hip-hop, os MCs (mestres de cerimônia ou contro-
ladores do microfone) (LEAL, 2007, p. 26). Com o desenvolvimento do hip-
hop, também foi criada a nomenclatura rapper para diferenciá-los dos MCs.
Segundo Afrika Bambaataa, “O MC pode animar a plateia, apresentar,

O panorama histórico do hip-hop


571
rimar, fazer curadoria... É infinita a capacidade de performance do MC!
Já rapper5 não precisa ter todas as facetas multifuncionais do MC”.6
Kool Herc consagrou grande importância à cultura hip-hop em
1973, na festa de aniversário de 16 anos de sua irmã, quando criou, pela
mixagem com dois discos iguais, uma repetição incessante de determi-
nado trecho de música, que ficou conhecido como break ou “quebrada”
da música (SOUZA, 2000, p. 77). A nova batida, apelidada por Herc de
breakbeat, explodiu no sul do Bronx, levando novos disc-jockeys (DJs) –
por exemplo, o DJ Hollywood – a trabalhar e a desenvolver esse ritmo. A
segunda grande criação musical dos guetos nesse momento foi o scratch,
inventado pelo DJ Grandmaster Flash. Chamava-se scratch ao movimento
de “vai e vem” feito com o disco pelo DJ, de modo a produzir o som de
arranhar (“scratch”). O breakbeat assumiu grande importância na história
do hip-hop, pois serviu de base para os MCs cantarem e para o próprio
scratch surgir, assim o DJ Kool Herc foi e é consagrado até hoje por muitos
como o “pai” do hip-hop.
As funções de DJ e MC surgiram e se desenvolveram de forma autôno-
ma, porém cabe destacar que elas são quase interdependentes, afinal as ba-
tidas criadas pelos DJs foram usadas pelos MCs para cantar e vice-versa. Por
isso, após a criação de tantas músicas que utilizam a técnica do falar cantado
junto com o breakbeat, foi criada a nomenclatura rap (de rhythm and poetry,
ou ritmo e poesia) para definir esse estilo musical, fruto do trabalho conjunto
entre MCs e DJs. Assim, o rap começa a se popularizar nos guetos por sua
forma simples de fazer e acaba contribuindo para disseminar ideias que ques-
tionam a realidade desses lugares. “O rap surgia num meio de pobreza, mas
de gente criativa que inventava mais uma vez a alternativa para continuar a ter
momentos de alegria, diversão e arte. Falar é barato, já diziam os Steatsonics”
(PIMENTEL, 1997, p. 7).
Com a criação do rap, surgem, nas block parties, jovens que “come-
çaram a competir misturando passos de soul, funk, movimentos acrobáticos e
outros” (SOUZA, 2010, p. 66). Da árvore do locking e do popping começava
5
Rapper é a nomeação dada aos cantores de rap; um rapper não precisa necessariamente fazer
rimas improvisadas, como o MC.
6
Ver http://acordahiphop.fazbarulho.com.br/search?q=bambaatta. Acesso em: 27 set. 2010.

Tais Almeida da Silva


572
a surgir uma nova dança, um tanto mais acrobática, e que explorava bastante
o estilo musical do breakbeat. Foi a partir daí que os passos footworks, top
rock e freezes integraram a dança do break das músicas ou, como ficou co-
nhecida, breakdance. Da mesma forma, os garotos e garotas que faziam seus
movimentos nas quebradas das músicas ficaram conhecidos como break boy,
ou b-boy, e break girl, ou b-girl.
Os muros que dividiam a cidade não ficaram de fora das manifes-
tações artísticas que apresentavam a pobreza dos negros. Inicialmente, o
grafite era expresso por tags,7 ou pichações, em trens e muros e que tinham
por finalidade demarcar o território de gangues dentro das próprias peri-
ferias. Segundo Pimentel (1997, p. 9), Taki 183 foi o precursor do grafite,
pois foi ele quem desencadeou uma disputa para ver quem pichava em
mais lugares. Porém, é só com o artista Phase 2 que os tags começam a
ganhar a forma do grafite que conhecemos hoje, uma vez que com ele os
tags passaram a ser painéis coloridos a céu aberto, com a possibilidade
de escreverem mensagens por meio de imagens em locais públicos. Num
primeiro momento, seus desenhos mostravam apenas mensagens politi-
camente neutras, contudo, por causa da grande difusão e do aperfeiçoa-
mento de sua técnica, ele e outros grafiteiros passaram a usufruir de sua
particularidade para contestar a sociedade.
O grafite foi o primeiro elemento a ultrapassar as fronteiras dos gue-
tos. Os trens e os muros grafitados levavam um estilo de vida marginaliza-
do para quem não vivenciava aquela realidade. Com isso, mesmo que os
brancos não fossem ver aquela cultura que estava surgindo nos guetos, o
grafite levava a cultura hip-hop pelos trens que circulavam para toda a cidade
(PIMENTEL, 1997).
MCs, DJs, b-boys e grafiteiros, um a um, foram aparecendo e se unin-
do. Todos nascidos nas periferias dos Estados Unidos, todos reclamantes das
condições sociais em que viviam. Juntos, criaram uma movimentação que ia
além do entretenimento para aqueles que não tinham tantas opções de lazer:
plantavam também um ideal político, uma mobilização para os que foram por
tanto tempo oprimidos e subordinados a uma classe etnicamente dominante.

7
Conhecidas como assinaturas.

O panorama histórico do hip-hop


573
Em 1978, Afrika Bambaataa, um dos principais DJs da época, viu o potencial
surgindo desses elementos e nomeou a todos como pilares de uma cultura
nascida nos guetos, a cultura hip-hop, a cultura que “balançava os quadris”
(MACARI, Fábio, 1994, apud PIMENTEL, 1997, p. 10).

HIP-HOP À BRASILEIRA

Os meios de comunicação de massa rapidamente difundiram o hip-hop


para os quatro cantos do mundo. Contudo no Brasil, antes mesmo de o hip-
hop surgir nas telas da TV e nos rádios, as periferias das metrópoles brasileiras
já tinham arquitetado um cenário que facilitaria a sua instalação e propaga-
ção pelas cidades (MENEZES e COSTA, 2010, p. 459).
Tudo começou aqui nos anos 1970, quando bailes blacks lotavam,
principalmente nas periferias do Rio de Janeiro e São Paulo, e, com isso, já
começavam a articular o movimento negro por meio da música e da dança,
que se direcionavam para as camadas mais pobres da sociedade. O desen-
volvimento da música black (soul e funk) se firmou principalmente na cida-
de carioca, quando se chegou a reunir “mais de 1 milhão de jovens [que]
frequentam toda semana os mais de 500 bailes espalhados pela Grande
Rio” (PIMENTEL, 1997, p. 15). O movimento conhecido como Black Rio,
que ganhou caderno próprio no Jornal do Brasil, também foi responsável
por anunciar nomes de grandes artistas, como Gerson King Combo, Jorge
Ben e Tim Maia. Depois de tanta coerção da ditadura sobre as produções
musicais negras, o movimento Black Rio foi se diluindo e dando espaço a
uma nova mistura da black music com o Miami bass,8 dando origem poste-
riormente ao funk carioca.
Enquanto o Rio de Janeiro estava no ápice do movimento da música
black, São Paulo, já não tendo tanta participação no cenário nacional
desse estilo musical, começa a mostrar os primeiros sinais da cultura hip-
hop por volta de 1982. O primeiro elemento a se evidenciar em São Paulo

8
Miami bass, ou som de Miami, é um estilo musical derivado do electro conhecido por suas batidas
aceleradas e conteúdo sexual nas letras.

Tais Almeida da Silva


574
foi o break, com Nelson Triunfo e seu grupo Funk & Cia. apresentando-se
diariamente na esquina das ruas 24 de Maio e Dom José de Barros. O
lançamento mundial de filmes como Beat Street (ou Na onda do break,
como lançado no Brasil), Breaking 1 e Breaking 2, que contavam um pou-
co da história do hip-hop nos Estados Unidos, mas, principalmente do
break, contribuíram diretamente para a difusão dessa dança no país. As-
sim, em São Paulo, sob influência da companhia de Nelson Triunfo e das
produções cinematográficas que surgiram, começam a se formar diversos
grupos de dançarinos, como Nação Zulu, Back Spin Break Dance, Street
Warriors e Crazy Crew (PIMENTEL, 1997, p. 16).
Pouco tempo depois, os guardas que faziam policiamento na rua 24
de Maio começam a proibir os grupos de dançarem no local. Foi então
que João Break, depois de tentar organizar as rodas de dança dentro da
estação Tiradentes do metrô e de ter sido novamente expulso pelos guar-
das locais, fez migrarem as rodas de dança para a estação de metrô São
Bento. A partir daí, a estação São Bento se torna o principal ponto de
encontro de simpatizantes e integrantes da cultura hip-hop de São Paulo
(HISTÓRIA DO HIP-HOP EM SÃO PAULO, 2009).
Mesmo com poucos recursos, além dos b-boys, que já dominavam o
local, o rap também começava a aparecer e a se desenvolver na estação.
Os tagarelas (nome dados aos primeiros MCs de São Paulo, por causa da
forma rápida de cantar) se reuniam na São Bento para trocar rimas e fazer
improvisações ao som de beat box9 ou mesmo através de batuques de latas e
palmas. Também não foi diferente com o grafite, que, na década de 1980, ti-
nha surgido primeiramente na forma de pichações, e já na estação São Bento
começam a aparecer aqueles que trocavam desenhos e desenvolviam o gra-
fite no entorno do local. A estação São Bento tinha se tornado um grande
ponto de encontro irradiador da cultura hip-hop no Brasil (HERSCHMANN,
2000, p. 186).
Não demorou muito para que surgissem LPs com os raps de São
Paulo. O primeiro deles foi o “Hip-hop cultura de rua”, lançado em 1988

9
Beat box (caixa de batida) consiste na imitação dos sons reproduzidos pelas caixas de hip-hop por
meio apenas da percussão vocal e nasal.

O panorama histórico do hip-hop


575
pela Eldorado, que reunia produções dos principais MCs da São Bento;
em seguida surgiram o “Ousadia do rap”, do grupo Kaskatas, “O som
das ruas”, da equipe Chic Show, “Situation rap”, pela FAT Records, e
“Consciência black”, da Zimbabwe (PIMENTEL, 1997, p. 18).
A partir dos anos 1990, o hip-hop em São Paulo começa a sofrer mu-
danças bruscas no seu perfil. A maioria dos raps que surgira em São Paulo
até então não tinha o intuito de discutir questões da realidade social. A partir
desse momento, começam a aparecer com maior força os raps chamados, a
princípio, de “rap estorinha”, com a função de conscientizar a população. Os
integrantes do hip-hop também foram renovados, alguns b-boys se distancia-
ram da cultura pelo avanço da idade e pelas impossibilidades que o corpo
colocava e outros integrantes também se afastaram, à medida que a “febre”
do hip-hop passava. A própria São Bento perdeu seu monopólio da cultura
hip-hop paulista e se tornou concorrente da praça Roosevelt, de modo que a
primeira se tornou um ponto de encontro apenas de b-boys e a segunda, de
MCs. Outro ponto marcante foram as formações das posses,10 sendo a pri-
meira delas a surgir o Sindicato Negro, em 1989, na própria praça Roosevelt
(ANDRADE apud PIMENTEL, 1997, p. 20). O objetivo desses espaços era
“tomar posse” do hip-hop para melhor organizá-lo e desenvolvê-lo, criando,
para isso, espaços de discussão, seminários, festas, entre outros.
Segundo Herschmann (2000, p. 187), São Paulo começou a se
tornar o principal centro irradiador do hip-hop no Brasil a partir dos anos
1990, período de surgimento expressivo na indústria fonográfica nacio-
nal de grupos como Racionais MCs, Sistema Negro, DMN (Defensores
do Movimento Negro), Câmbio Negro, MRN (Movimento e Ritmo Negro)
e Pavilhão 9, além da dupla Thaíde e DJ Hum. O principal ponto que
marcou o divisor de águas do hip-hop em São Paulo foi a criação do
MH2O (Movimento Hip-Hop Organizado) no início desse período, em
1989 (PIMENTEL, 1997, p. 19).
Desde então, essa nova fase do hip-hop em São Paulo não só mu-
dou um pouco seu público-alvo, como também abriu novos canais de
comunicação com a sociedade. Um deles foi o programa semanal “YO!

10
Conhecidas também como grupos ou organizações.

Tais Almeida da Silva


576
MTV RAPS!”, na TV a cabo, que falava um pouco sobre o cenário do hip-
hop no Brasil, mas, principalmente, do que acontecia em São Paulo. Além
disso, essa época também foi marcada pelo apoio do estado à cultura
hip-hop, apoio esse que se deu pela implantação de projetos de hip-hop
nas escolas, pela remuneração para alguns grafiteiros por suas pinturas e
pela criação da lei municipal nº 13.924/2004, que dispõe sobre a institui-
ção da Semana do Hip-Hop no calendário anual da cidade de São Paulo
(VENTURA, 2009, p. 606-607).
Com a difusão do hip-hop na mídia nacional, outras regiões tam-
bém começaram a aderir a ele, como o Nordeste, onde, apesar das fortes
características culturais da região, o hip-hop teve grande aceitação por
parte dos jovens negros das periferias. Assim, o ato de cantar, dançar,
tocar e grafitar no hip-hop se transformava também, no Brasil, numa lin-
guagem única para os moradores de periferia, que encontraram nele um
meio de expressar as angústias vividas e suas indignações (MENEZES e
COSTA, 2010, p. 3).
Apesar de toda a difusão em São Paulo, as primeiras façanhas do
hip-hop no Rio de Janeiro demoraram a ganhar visibilidade nacional, em-
bora já muito presentes as manifestações na cidade. Enquanto a longa
estrada da black music deixava as calçadas cariocas, entrava em cena um
novo ritmo oriundo das próprias comunidades e que também dialogava para
o mesmo público do hip-hop: o funk carioca surgiu e sua enorme popula-
rização contribuiu, de certa forma, para o ofuscamento do hip-hop no Rio,
além, é claro, de todo o sucesso da black music na cidade, que levou ao
crescimento tardio do hip-hop na mesma e ao pioneirismo do mesmo em
São Paulo.
Assim, coatuando na cidade carioca, em 1993, o hip-hop carioca
começou a mostrar suas primeiras façanhas. Na Cidade de Deus,11 surgiu
a primeira rádio que veicularia o hip-hop na cidade, sob o comando do
DJ TR (Teste de Raça) e do rapper MV (Mensageiro da Verdade) Bill entrava
em cena a rádio comunitária “SOS Comunidade” (VENTURA, 2009,
p. 606). No mesmo ano foi lançado o CD “Tiro inicial”, um dos primeiros

11
Comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

O panorama histórico do hip-hop


577
discos a serem lançados no Rio de Janeiro com produções dos grupos
de rap de maior sucesso da época: Geração Futuro, as Damas do Rap,
Consciência Urbana, os Filhos do Gueto e o rapper Gabriel o Pensador.
Uma das composições mais marcantes da obra foi Filhos do Brasil, em que
Gabriel o Pensador fala sobre o caso das mães de Acari que tiveram seus
filhos sequestrados e mortos em um extermínio no interior do estado
do Rio de Janeiro.12 Esse CD foi uma produção do hip-hop que teve
grande colaboração do movimento negro, nesse caso, especialmente, do
Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (Ceap), que tentava
renovar sua discussão com a sociedade por meio do hip-hop.
O primeiro MC de grande sucesso nacional oriundo da Cidade Ma-
ravilhosa foi Gabriel o Pensador. Ele lançou seu primeiro CD em 1993
pela famosa gravadora Chaos (atual Sony Music) e, desde então, foi mo-
tivo de muitas polêmicas, a principal delas foi o fato do mesmo ser um
cantor de rap branco e de classe média, fato que gerou um estranhamento
e um enorme estigma, além da recorrente associação de que o hip-hop
no Rio de Janeiro era feito por playboys13 (HERSCHMANN, 2000, p. 188).
Outra grande polêmica foi a música desse cantor “Estou feliz, matei o pre-
sidente”, que foi proibida de tocar nas rádios FM por estabelecer analogia
com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello (LEAL,
2007, p. 178).
Ao mesmo tempo em que Gabriel o Pensador contribuía para a
popularização nas mídias do hip-hop no Rio de Janeiro, o Ceap também
contribuía para a difusão do ritmo na cidade, a partir da realização de
festas, reuniões, CDs, entre outros. Essa parceria do movimento negro
com o hip-hop começou quando alguns integrantes do Programa Racial do
Ceap assistiram a uma apresentação do grupo de rap Geração Futuro. Os
integrantes do Ceap, que já conheciam a parceria do movimento negro
com o hip-hop em São Paulo, quando viram que o hip-hop também estava
presente no Rio de Janeiro, convidaram o esse grupo para conhecer o
Programa Racial. “Faltava apenas orientação e sentido de organização,

12
Ver: http://www.redecontraviolencia.org/Casos/1990/213.html.
13
Gíria que se refere aos jovens brancos de classe média que explicitam uma vida luxuosa por meio
de roupas, joias e automóveis.

Tais Almeida da Silva


578
atributos facilmente adquiríveis, dada a vontade política dos garotos do rap”,
afirmou Arcélio Dias, militante do Ceap e um dos coordenadores de seu
Programa Racial (apud GONÇALVES, 1997, p. 51). A partir desse momento,
o Ceap começou a promover encontro de MCs e discussões sobre questões
raciais e militância política. Portanto, o movimento hip-hop, que no Rio de
Janeiro não era visto tanto pelo viés político nem mesmo por membros mais
conservadores do movimento negro, começou a se aliar e a ganhar força
por meio de frentes políticas (GONÇALVES, 1997, p. 52).
Com o desenvolvimento da força hip-hop dentro do Ceap, surgiu a
ideia de criar uma associação específica para isso. Desse modo, em março
de 1993 foi criada a Associação Hip-Hop Atitude Consciente (Atcon) com
o intuito de “propagar a cultura e politização para as massas carentes de
nossa sociedade capitalista dependente” (Estatuto da Atcon, reproduzido em
GONÇALVES, 1997, p. 117). A Atcon também foi responsável por anunciar
grandes atores da cena hip-hop carioca, como Big Richard, MV Bill, DJ TR,
Gaspar, o grupo Geração Futura e o grupo Artigo 288. E, à medida que a
Atcon se desenvolvia, a cultura hip-hop no Rio de Janeiro encontrava novas
formas de ganhar força na cidade.
O primeiro grande evento próprio da cultura hip-hop no Rio de Janeiro foi
o “I CDD SOS Consciência”,14 organizado pelos membros da Atcon na Cidade
de Deus. No dia 20 de junho de 1993, o evento foi montado na quadra do Ciep
Luiz Carlos Prestes com ajuda apenas da associação de moradores da comu-
nidade, de grupos de rap e de amigos admiradores da cultura hip-hop. Sem
muito luxo, os recursos para movimentar o evento vieram dos próprios colabora-
dores que emprestavam o que podiam para o evento se concretizar. Quanto ao
público, não foram somente os moradores curiosos, mas também, pessoas de
fora da comunidade a procurar o local em busca do novo som carioca. Assim, o
evento foi embalado pelos shows de artistas como MC Zezé, Guardiões da Cor,
Geração Futuro, Damas do Rap, Artigo 288, Filhos do Gueto, NAT, Consciên-
cia Urbana e Gabriel O Pensador, dentre outros. Esse evento marcou a Cidade
de Deus como um ponto de reunião do hip-hop no Rio de Janeiro e serviu de
abertura para que novos eventos como esse surgissem.

14
CDD é a sigla do bairro Cidade de Deus.

O panorama histórico do hip-hop


579
Apesar do grande sucesso do evento, a Atcon começou a entrar em
crise por conta de desavenças internas. Com isso, Big Richard é destituído
da presidência e em seu lugar assume Frio Bira (ex-integrante do grupo
Consciência Urbana), como novo presidente, e Edwiges (do grupo Damas
do Rap), como vice-presidente. Sem apoio do Ceap e com nova estrutura, a
Atcon organizou, em julho de 1994, a “II CDD SOS Consciência”. Por causa
do sucesso da primeira edição, o evento foi um pouco maior que o anterior.
Recebendo apoio até mesmo da prefeitura do Rio de Janeiro, a segunda
edição contou com a apresentação de 25 grupos (na primeira, eram 12
apenas). O II CDD também marcou o fim de um dos principais grupos de
hip-hop na trajetória do Rio de Janeiro por esse campo: por conta de conflitos
internos entre MV Bill e Michael, o grupo Geração Futura chegava ao fim.
O acirramento de posições no grupo acabou por levar MV Bill ao trabalho
independente, unindo-se depois ao DJ TR para fazer suas “bases musicais”.
Como visto, o ano de 1993 foi de grande abertura para os grupos de
hip-hop no Rio de Janeiro. Contudo, é fácil notar que muito antes de CDs,
shows e demais produções surgirem em 1993, houve o despertar pela cul-
tura hip-hop em diversos jovens. Na maioria das vezes, o interesse surgia
pela identificação com a realidade social abordada nos raps e filmes esta-
dunidenses e/ou pelo entusiasmo por aquela nova expressão embalada de
sprays15 e movimentos acrobáticos, que desafiavam o corpo.
Em 1989, o hip-hop já começava a aparecer na cidade paulista vizi-
nha ao Rio, entretanto, apesar de já existirem diversos admiradores da cultura
aqui, nenhum movimento forte era notado devido principalmente à explosão
do funk carioca. Assim, cabe aqui perguntar por que em 1993 essa cultura
contida ultrapassaria as barreiras do funk e viria à tona?
De fato, não foi por acaso: 1993 foi um ano marcado pela violência
atroz na Cidade Maravilhosa. No final do ano anterior, o Rio de Janeiro já
ficara barbarizado com os arrastões na praia de Ipanema, com a chacina de
meninos na Candelária e, ainda, com a chacina de moradores de Vigário
Geral. O primeiro arrastão ocorreu em 18 de outubro de 1992, em que jo-
vens de facções rivais das comunidades de Parada de Lucas e Vigário Geral

15
Recipiente de tinta usado para fazer os grafites.

Tais Almeida da Silva


580
se encontraram na praia de Ipanema e promoveram uma grande briga que
culminou num arrastão. O acontecimento foi associado pela mídia como
envolvendo as mesmas pessoas que frequentavam um tipo de baile funk
muito violento, recorrente na época, conhecido como “baile de corredor”.
Com isso, a propaganda preconceituosa contra os bailes funks, que já ron-
dava as casas cariocas, agora ficara evidente pelos meios de comunicação
(VENTURA, 2009, p. 8).
O segundo incidente, talvez o mais trágico e cruel, aconteceu em
julho de 1993, na calçada da igreja da Candelária, localizada no centro da
cidade do Rio de Janeiro. De madrugada, quando meninos de rua dormiam
na calçada, três carros passaram e atiraram em direção às crianças. Inde-
fesas, oito delas morreram assassinadas. A maioria dos acusados pelo caso
era de policiais militares. Como se não bastassem os arrastões e a Chacina
da Candelária, no final de agosto, vinte e um moradores de Vigário Geral
foram assassinados dentro de suas próprias casas por policiais militares.
Segundo Gonçalves (1997, p. 69), 1993 foi marcado pela “violência
pública, doméstica, e a do Estado, assaltos, chacinas, sequestros, arras-
tões, saques, linchamentos e estupros”. Uma reação em cadeia de acon-
tecimentos violentos que barbarizaram a cidade e que se refletiam numa
cultura do medo16 de tudo e todos, principalmente da força policial e das
facções criminosas que surgiram no mesmo ano. Esse clima hostil gerado
por cenas em que as vítimas normalmente se tratavam de jovens e crianças
negras e pobres oriundas de periferias foi um dos fatores que culminou no
aparecimento da primeira geração do hip-hop carioca. Isso pode ser nota-
do em trechos de raps que surgiram no momento: “A polícia, órgão de re-
pressão/ que ao invés de proteger aterroriza o cidadão” (Hora da verdade,
Artigo 288) ou em “Arrastão na praia não tem problema algum/ Chacina
de menores é aqui, 021/ Polícia, cocaína, Comando Vermelho/ Sarajevo é
brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro” (Zerovinteum, Planet Hemp).
A violação de direitos acabou por desencadear uma reação da po-
pulação através também dos meios artísticos. No mesmo ano em que se
evidenciou a violência policial e a discriminação com moradores de perife-

16
Segundo Gonçalves (1997, p. 69), esse termo foi criado pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares.

O panorama histórico do hip-hop


581
rias, também apareceu com maior intensidade o movimento hip-hop como
canal de resistência e reivindicação política. Portanto, apesar dos motivos
trágicos, o ano de 1993 se tornou o ponto de partida para a maior visibili-
dade do movimento hip-hop no Rio de Janeiro (VENTURA, 2009, p. 613).
No dia 22 de abril de 1995, outro grande evento do hip-hop carioca
aconteceu, só que dessa vez o cenário foi a Vila do João, no Complexo
da Maré. Membro da Atcon e do grupo Realidade Social, Fernando Xchackal
teve a ideia de realizar em sua própria comunidade um evento de hip-hop, que
foi chamado de Voz Ativa. O Voz Ativa obteve grande apoio de setores gover-
namentais – da vereadora Jurema Batista, da Caixa Econômica Federal e do
projeto da prefeitura Rio Funk – e também da comunidade, que organizaram
o evento na “Rua 14” com 23 bandas de rap nacional.
Os eventos anteriormente destacados foram direcionados quase que
exclusivamente aos MCs, isto é, nesses eventos não foram apresentados gru-
pos de dançarinos ou de grafiteiros, por mais que alguns deles se dirigissem
ao local para ouvir rap. Dessa maneira, desde os primeiros eventos de hip-
hop no Rio de Janeiro é evidente uma dicotomia entre os seus elementos nos
seus espaços de aglutinação. Assim, os dançarinos cariocas, que, diferente-
mente de São Paulo não tinham eventos periódicos direcionados para eles,
começaram a fazer suas próprias rodas em praças públicas e a frequentar
os bailes charmes da cidade, os quais, apesar de também não estarem to-
talmente vinculados à cultura hip-hop, tocavam um estilo de música um pou-
co mais lento, mas que também era “bom para dançar” (HERSCHMANN,
2000, p. 186). Já os grafiteiros não tinham um ponto de encontro defini-
do, entretanto Ventura (2009, p. 611) destaca que, em 1994, alguns deles
se encontravam e faziam performances de grafite nas festas da Fundição
Progresso, na Lapa.
Cabe salientar a importância que esses eventos festeiros têm para
a cultura hip-hop. Como descrito anteriormente, o hip-hop começou a se
caracterizar como uma cultura própria dos guetos dos Estados Unidos à
medida que se desenvolviam as block parties nas praças. Além disso, o MC,
o DJ e a dança de rua surgiram com o intuito de se efetivarem em festas.
Isto é, boa parte das pessoas que buscava as festas ia para “balançar os

Tais Almeida da Silva


582
quadris” (de onde também se originou o próprio nome da cultura). Quanto
aos MCs, eles também surgiram nas festas como figuras responsáveis por
animar o local com improvisações sobre o cotidiano daquelas pessoas; já
os DJs, figuras centrais do evento, eram responsáveis pelo sucesso do MC
e da dança.
Nesse sentido, mesmo com poucos recursos, as festas são uma mar-
ca da cultura hip-hop e contribuem para a sua difusão nos locais em que
se instalam. Sendo assim, devem-se destacar os locais que concentravam os
principais polos festivos na cidade carioca para que melhor se possa entender
a dinâmica do hip-hop na cidade.
Além da Cidade de Deus e do Complexo da Maré, outro bairro ca-
rioca também começou a se tornar centro de convergência de reuniões e
festas. Segundo Ventura (2009, p. 611), a Lapa passou a concentrar esses
eventos por ser um bairro central, que dispunha de transporte para boa parte
das favelas cariocas, além de a área também ser considerada “campo
neutro”.17 Em consequência, além do Ceap, fincaram-se no bairro outras insti-
tuições do movimento negro que também estavam fazendo articulações com
o hip-hop, como o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Federação dos
Blocos Afros do Rio de Janeiro (Febarj).
Segundo Leal (2007, p. 187), as primeiras festas cariocas eram
organizadas por LZA (lê-se Elza) Cohen na Fundição Progresso na Lapa,
Rio de Janeiro. Porém, foi em outro endereço da Lapa que os dançari-
nos, MCs, DJs, grafiteiros e demais amantes da cultura hip-hop se en-
contravam semanalmente. A festa “Zoeira Hip-Hop” em pouco tempo se
tornou famosa na cidade pelo grande salão de mesas de sinuca e por
ser o único lugar que tocava toda semana exclusivamente rap no Rio.
Apesar do sucesso da festa, em meados de 2002 a falta de verbas para
a realização da mesma leva à venda do espaço para uma igreja batis-
ta e, em consequência, naquele ano, a “Zoeira Hip-Hop” chega ao seu
fim na Lapa (A batalha do real, 2003).

17
Na cidade do Rio de Janeiro, existem grupos criminosos armados que agem e controlam as co-
munidades da cidade. Esses grupos, conhecidos como facções, disputam territórios de periferias da
cidade para venda de drogas e armas.

O panorama histórico do hip-hop


583
Além de toda a cena do hip-hop que se instalou efetivamente no en-
torno da Lapa, vale destacar a trajetória de duas organizações próprias do
hip-hop que possuem grande representação no currículo das organizações
no Rio de Janeiro: o grupo Lutarmada e o grupo Breaking Consciente da
Rocinha (GBCR).
O Lutarmada foi criado em 2004, em “um encontro de amigos que se
juntavam para curtir um som e tomar cerveja na Zona Norte” (SOUZA, 2010,
p. 83). De maneira despretensiosa, a reunião começou a se transformar num
coletivo de hip-hop quando Gas-PA (a sigla PA é redução de poeta ativista)18
teve a iniciativa de passar um filme que levasse a refletir sobre a realidade.
O filme escolhido foi Panther (PANTERA, 1995), e, apesar de se passar nos
Estados Unidos, as condições de vida dos personagens se assemelhavam
bastante com as dos jovens moradores de periferias brasileiras. Assim, após
o filme, uma perplexidade inspiradora rondava aqueles jovens: “Como
é possível que uma organização nascida por dois jovens, em menos de
um ano, pudesse tomar conta de todos os Estados Unidos?” (GAS-PA in
SOUZA, 2010, p. 83).
Com isso, surgiu a ideia de criar uma organização que tivesse como
base a cultura hip-hop, mas que não restringisse a sua ação à execução de
seus elementos. Dessa forma, o coletivo Lutarmada se oficializou no Rio
de Janeiro, afiliado à ideologia da esquerda política brasileira com os
lemas: “Nossa arma é nossa informação” e “Mobilizar entretendo, entre-
ter mobilizando” (GAS-PA, 2005). Para isso, o Lutarmada promove a exi-
bição de filmes e leituras, principalmente nas periferias cariocas, a fim de
“conscientizar as camadas populares das condições de subalternidade
e discriminação impostas pela sociedade” (SOUZA, 2010, p. 85).
Já o GBCR surgiu justamente na época da febre do breakdance na
televisão brasileira. Alguns jovens interessados nesse movimento se junta-
vam para treinar constantemente em quintais de amigos ou nas próprias
ruas das comunidades e, nesses locais, assistiam aos poucos vídeos de
b-boys de Nova York a que tinham acesso, para tentar realizar aqueles

18
Nascido e criado nas periferias da Zona Norte do Rio de Janeiro, Gas-PA se envolve com a cultura
hip-hop desde os seus primeiros sinais no Brasil, e, assim, ainda nos anos 1980 se transforma em um MC.

Tais Almeida da Silva


584
passos. Luck19 e seus companheiros começaram a fazer sucesso nas comu-
nidades e começaram a ser convidados para fazer pequenas apresentações
em algumas organizações, até que surgiu a ideia de fundar uma organiza-
ção para difundir a dança e captar recursos com essa arte, uma vez que os
trabalhos eram poucos e eles não queriam depender do dinheiro de apre-
sentações esporádicas.
Como o principal ponto de encontro desses jovens era a Rocinha, o
grupo se chamou a princípio de Gangue Breaking Consciente da Rocinha –
posteriormente o termo “gangue” seria substituído por “grupo”. Em março de
2004, o GBCR seria o primeiro grupo no Rio de Janeiro a se filiar à organi-
zação Universal Zulu Nation, a partir de um convite de seu próprio fundador
Afrika Bambaataa. O GCBR promoveu batalhas20 e realizou oficinas de to-
dos os elementos em diversas comunidades, mas o campo principal de atua-
ção continuou sendo o breaking na Rocinha. Um dos grandes projetos do
grupo é o programa de TV Rocinha Hip-Hop que é transmitido ao vivo uma
vez por semana na TV Rocinha a fim de divulgar sobre o cenário do hip-
hop nacional e internacional. Cabe salientar que um dos grandes diferenciais
dessa organização do hip-hop é o de tentar fazer do hip-hop uma profissão
para esses jovens, ou seja, fazer que essa arte consiga trazer dinheiro para
o sustento dos mesmos (SOUZA, 2010, p. 87).

A ATUAL CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO CULTURAL


HIP-HOP NO RIO DE JANEIRO

Antes de ressaltar as modificações que ocorreram no hip-hop no Rio


de Janeiro, cabe destacar primeiramente aquilo que se manteve no cená-
rio musical carioca: a sobreposição com o funk carioca na cidade. Como

19
Luck atua no hip-hop há 27 anos e fundou o GBCR há 7 anos. Luck saiu da Baixada Fluminense
para a Rocinha para melhor direcionar o grupo.
20
As batalhas no hip-hop são disputas de dança entre os dançarinos. Podem ocorrer individualmente,
em duplas, trios ou grupos. Normalmente, têm um jurado que avalia qual dançarino fez a melhor
performance na música apresentada. Ver documentário Sou Rocinha Hip-Hop, de Cavi Borges e Miila
Derzet (2004).

O panorama histórico do hip-hop


585
dito anteriormente, o funk carioca surgiu sobre grande influência do próprio
hip-hop. No entanto, a partir de sua “nacionalização”, ele não só se confirmou
como cultura própria e independente, mas também concorreu no mesmo es-
paço que o hip-hop. Desde os primeiros sinais do funk, a sua sobreposição na
cidade é evidente e, com o decorrer dos anos, esse fato só tem se concretizado
cada vez mais.
Pelo fato de boa parte das letras do gênero não terem um comprometi-
mento com questões sociais e a batida não ser tão elaborada, o funk também
se tornou alvo de críticas de alguns integrantes da cultura hip-hop – “A qua-
lidade musical desse funk é pobre e as letras deveriam melhorar” (ROONEY
apud LEAL, 2007, p. 248). Em contrapartida, há aqueles que questionam os
que criticam o funk e que escutam raps que tratam de assuntos similares, como
pode ser visto em um trecho do depoimento do DJ Deco: “as letras do funk ca-
rioca, muitas delas, não são muito piores, ou não são tão piores do que muitas
das letras do rap gringo que a gente gosta de ouvir” (apud LEAL, 2007, p. 246).
Nessa perspectiva, não só o passado do funk carioca, como também seu pre-
sente podem ser comparados ao hip-hop, uma vez que ambos possuem uma
“versão midiática”, que insiste em mostrar apenas as produções apolíticas,
como também têm frentes que o utilizam como forma de protesto21 e, em con-
sequência disso, as produções comprometidas ficam ofuscadas pelas demais.
Comprometido socialmente ou não, o importante aqui é ressaltar que o funk é
trilha sonora das periferias do Rio de Janeiro, e, sendo ambientado no mesmo
lugar, o hip-hop se rendeu a esse estilo e o incorporou na biblioteca musical
de muitos eventos, como é o caso da Groove Party.22
Por falar em festa, a segmentação entre eventos para b-boys e outros
para MCs se tornou cada vez mais clara. A própria Groove Party é exem-
plo de uma festa direcionada para dançarinos que conta raramente com
a presença de algum MC. Um dos grandes problemas dessa dicotomia é
que, por um lado, boa parte dos dançarinos acaba por não escutar, muito

21
Uma das principais instituições que utilizam o funk como um movimento social cultural no Rio de
Janeiro é a Associação Parceiros e Amigos do Funk (Apafunk).
22
A Groove Party é uma festa idealizada por dois dançarinos e um DJ da cultura hip-hop. É uma
festa que normalmente acontece todo mês, em locais diferentes do Rio de Janeiro, e que tem por
objetivo difundir as danças da cultura hip-hop. No seu material de divulgação, são citados ritmos
como breakbeat, soul, funk americano, hip-hop, house e funk carioca.

Tais Almeida da Silva


586
menos dançar, rap nacional e, por outro, boa parte dos MCs, quando pro-
duzem suas músicas, dão atenção somente para o que vai ser tratado na
letra e acabam não dando a devida atenção à qualidade da batida (LEAL,
2008, p. 259). Alguns atuantes do hip-hop que também compartilham dessa
visão estão tentando mudar essa cena por meio da promoção de eventos
em que sejam privilegiados os dois elementos. Contudo, devido à segrega-
ção que persistiu durante muitos anos, o preconceito ainda é muito forte dos
dois lados e, assim, uma grande resistência ainda insiste para dançar rap
nacional e para fazer raps com batidas mais elaboradas.
Outro ponto marcante das festas de hip-hop é o direcionamento
do público-alvo. Com a sua popularização, boates localizadas na Zona
Nobre da cidade passaram a realizar festas direcionadas para o hip-
hop. As festas de hip-hop desse caráter tinham como princípio atender
integrantes do movimento e moradores de periferia; contudo, o local e o
alto preço do ingresso dessas festas foram um modo de restringir econo-
micamente o acesso dos moradores de periferia.
Como o movimento hip-hop é uma cultura, está sujeito a algumas
modificações, de acordo com os hábitos da sociedade em que se instala. E como
os hábitos são mutáveis, cabe aqui destacar dois fenômenos que ocorreram
no hip-hop nos Estados Unidos e que foram incorporados imediatamente ao
do Rio de Janeiro. Quando Bambaataa determinou os elementos daquela
nova cultura do gueto, ele incluiu apenas os segmentos mais presentes no seu
campo de visão. Sendo assim, apesar de alguns setores estarem no mesmo
local, dirigirem-se às mesmas pessoas e terem os mesmos ideais, não foram
contemplados inicialmente como elementos da cultura hip-hop. Esse é o caso
do basquete de rua e das demais danças que surgiram nas festas dos Bronxs,
que, hoje em dia, são chamadas convencionalmente de danças urbanas:
house dance, wacking, hip-hop dance – baseada nos passos sociais23 que
surgiam nas festas –, entre outras. No entanto, esses elementos, com o tempo,
foram incorporados indiretamente à cultura, de modo que, em muitos eventos
do hip-hop, quando não são exclusivos para eles, esses elementos estão

23
Entende-se como passo social aqueles movimentos que surgem em meio às festas, que geralmente
têm nomes específicos e populares, e que são repetidos por grandes grupos de pessoas nas festas.

O panorama histórico do hip-hop


587
incorporados. Porém, devido ao não posicionamento de Afrika Bambaataa
quanto à inclusão oficial desses segmentos, existem integrantes mais
tradicionais que restringem a cultura aos quatro elementos iniciais.
No que tange as modificações exclusivas do hip-hop no Rio, uma
grande contribuição para o desenvolvimento da cultura foi a conquista de
festas próprias semanais. Diferentemente dos anos 1990, em que os bailes
charme eram os principais locais de encontro dos dançarinos e amantes do
hip-hop, a Febarj se tornou a protagonista desse cenário. Com duas festas
organizadas nos finais de semana (Fúria Hip-Hop e Hip-Hop na Fita), a
Febarj, que inicialmente se articulava com o hip-hop por meio de debates,
concretizou sua posição à medida que as festas se firmavam como principal
ponto de encontro do hip-hop no Rio.
Dentre as organizações não governamentais (ONGs) que trabalham
com projetos voltados para o hip-hop no Rio de Janeiro, cabe aqui ressaltar
uma organização que tem tido notório destaque na mídia por suas ações para
o movimento hip-hop: a Central Única das Favelas (Cufa).
A Cufa tem como o principal fundador o rapper MV Bill. Segundo a
página na internet da própria instituição, a Cufa, instalada no Rio de Janeiro
embaixo do viaduto de Madureira, surgiu em 1999 e tem como propósito
utilizar o hip-hop “como ferramenta de integração e inclusão social”.24 Para
isso, promove oficinas de break, grafite, escolinha de basquete de rua, skate,
informática, gastronomia e audiovisual. Ainda segundo o site, as oficinas que
não se direcionam à cultura hip-hop diretamente são oferecidas com o intuito
de elevar “a autoestima da periferia quando levam conhecimento a ela,
oferecendo-lhe novas perspectivas”.25 Dessa forma, as oficinas “extras” são
vistas como responsáveis por conscientizar as camadas desprivilegiadas da
população, por meio de cursos profissionalizantes.
É importante ressaltar a ideologia de atuação da Cufa para que se
possa discutir a visão de atuação de muitas instituições sociais voltadas para
o hip-hop. Como dito anteriormente, o movimento cultural hip-hop atua,
através de seus elementos, como um movimento artístico e político. Dessa

24
Ver http://cufasinop.blogspot.com.br/2010_06_01_archive.html. Acesso em: 13 nov. 2013.
25
Ver http://cufasinop.blogspot.com.br/2010_06_01_archive.html. Acesso em: 13 nov. 2013.

Tais Almeida da Silva


588
forma, desde o princípio, o hip-hop não tinha a pretensão de ser apenas uma
nova forma de entretenimento, e sim, também, de ser um meio de construção
política e interação social do indivíduo. Contudo, apesar do caráter teóri-
co de muitas instituições ressaltar a visão social do hip-hop, atitudes como criar
oficinas profissionalizantes a fim de que o cidadão adquira conscientização e
consiga atuar no mercado de trabalho enfraquecem a credibilidade do poder
de atuação política e profissional do hip-hop.
Cabe aqui destacar também a perda de credibilidade de integrantes e
instituições do hip-hop por causa das “discordâncias” entre seu discurso e sua
prática. Inclusive, a própria Cufa sofre diversas críticas por parte dos próprios
integrantes da cultura por sua aparente “incoerência” de atuação. De modo
geral, as críticas são decorrentes de algumas atitudes da instituição e de seu
líder, MV Bill, que vão de encontro à ideologia do início do trabalho do mes-
mo. Como exemplo, no trecho da música Cidadão comum refém, de MV Bill,
“programado pra matar pá pá, atire depois pra perguntar/ se ele trabalhava
ou se traficava só sei que deitado no chão ele tá”, é nítida uma crítica à atua-
ção das Forças Armadas contra a população. No entanto, em 2004, a Cufa
apoiou a presença das tropas do Exército no Haiti. Outro exemplo em que
fica evidente essa contradição é em “Sentados na poltrona recebendo ordens
que serão ditadas na telona” (Causa e efeito, MV Bill) e na aparição de MV Bill
em quadros da TV Globo, como Malhação e Criança Esperança.
Diante das análises acima, é possível entender a atual dinâmica do mo-
vimento hip-hop no Rio de Janeiro como um processo extremamente plural,
que varia de acordo com os objetivos de seus integrantes. E, sendo assim, não
existe uma identidade única: há várias identidades que não lhe configuram
no final nenhuma ou, então, que lhe configuram uma identidade extrema-
mente mista. Isto é, o hip-hop carioca está representado em tantas instituições
de visões e representações diferentes, sendo que nenhuma soberania suprema
é notada entre elas, que se torna praticamente impossível tentar delinear um
“rosto” para o hip-hop no Rio.
Como visto, o hip-hop, que era inicialmente apenas produto das
periferias, tomou posse de diversos espaços, e nesse processo se sujeita
às diversas interpretações do caminho. Entretanto, cabe destacar que não

O panorama histórico do hip-hop


589
existem movimentos inteiramente bons ou ruins, todos são sintomas da
sociedade em que residem e causam diferentes impactos nas estruturas sociais
(SOUZA, 2010, p. 95). Por isso, devemos considerar que, apesar de todas as
divergências políticas e ideológicas, os atores sociais apresentados lidam com
o mesmo instrumento: o movimento cultural hip-hop, e que, assim, as suas
representações devem ser constantemente questionadas por seus líderes para
que entretenimento e crítica política andem juntos e atinjam com maior inten-
sidade as estruturas sociais.

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O panorama histórico do hip-hop


591
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PANTERA [PANTHER]. Direção Mario Van Peebles. Roteiro Melvin Van
Peeble. Elenco Kadeem Hardison, Bokeem Woodbine, Courtney B. Vance,
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Films–Nova York: TriBeCa, 1995. Duração: 93 min.
SOU ROCINHA HIP-HOP. Direção Cavi Borges e Miila Derzet. Rio de
Janeiro, 2004. Duração: 20 min.

Tais Almeida da Silva


592
ANOTAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA
DA OPOSIÇÃO CONCEITUAL ENTRE
OCIDENTE E ORIENTE

Talita de Andrade Ferreira*

A oposição conceitual entre “Ocidente” e “Oriente” tem sido central


no pensamento político e social, ao menos do chamado Ocidente desde
quando foi forjada na Antiguidade. Contudo, se podemos identificar uma
forte persistência dessa oposição conceitual ao longo de mais de dois mil
anos de história, não é possível atribuí-la à existência de um par de conceitos
ou de ideias perenes e inalteráveis, sendo tão somente reivindicada de tem-
pos em tempos, em contextos os mais diversos, sem que, com isso, seus sen-
tidos não tenham sido alterados ou, até mesmo, radicalmente transformados.
Cada vez que essa oposição conceitual foi evocada, o seu significado não
apenas sofreu o impacto dos contextos específicos de seus usos, mas foi, ali
mesmo, no emaranhado das relações sociais, das disputas políticas e dos
debates intelectuais, em maior ou menor grau, forjado.
Daí termos como uma das principais exigências metodológicas para a
elaboração de uma história da oposição conceitual entre Ocidente e Orien-
te a necessidade de compreendermos os seus usos específicos em contextos
históricos singulares, ou ainda, conforme as palavras do historiador alemão
Reinhart Koselleck, de cujos apontamentos teórico-metodológicos tentamos
nos servir, “a obrigação de compreender os conflitos sociais e políticos do
passado por meio das delimitações conceituais e da interpretação dos usos
da linguagem feitos pelos contemporâneos de então” (2006, p. 103).

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Mé-
dio com habilitação em Análises Clínicas (2009-2011). Atualmente cursa Ciências Biológicas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de
conclusão de curso, contou com a orientação do professor-pesquisador José Victor Regadas Luiz
(doutorando em Ciência Política), do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional em
Saúde (Labform). Contato: talita_de_andrade@hotmail.com.

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


593
Desse modo, buscamos refutar tanto uma visão essencialista das
ideias, que lhes atribui uma autonomia indevida, ainda tão comum na
história do pensamento político e social, quanto um tratamento anacrônico
dos conceitos, esse ainda mais recorrente, que transfere irrefletidamente
para o passado os sentidos contemporâneos dos conceitos.
Esse “historicismo radical”, que enfatiza o estudo contextualizado e sin-
crônico dos usos específicos dos conceitos, não prescinde da compreensão
diacrônica de sua estrutura semântica de longa duração. Afinal, se os con-
ceitos, por si mesmos, não possuem história própria, o mesmo não se pode
dizer de seus usos. Embora o uso pragmático dos conceitos em situações es-
pecíficas seja único e, por essa razão, não repetível, o seu entendimento só é
possível graças à conservação de seus sentidos semânticos, transmitidos no
tempo pelo seu uso repetido. Trata-se da mesma relação dialética identificada
nos estudos semiológicos de Ferdinand de Saussure (1975) entre linguagem
(langue) e fala (parole).1 Assim, seguindo as indicações de Koselleck, “deve-
mos partir teoricamente da possibilidade de que em cada uso pragmático
da linguagem, que é sempre sincrônico, e relativo a uma situação específica,
esteja contida também uma diacronia” (1992, p. 135). Dessa forma, em cada
uso particular de um conceito pode-se notar a presença de diferentes tempo-
ralidades, incorporadas à sua estrutura semântica, que até certo ponto são
independentes daqueles que os utilizam.
No caso aqui examinado, a história dos conceitos de Ocidente e
Oriente, as orientações teórico-metodológicas devem levar em consi-
deração a estrutura semântica básica desse tipo de conceito. Confor-
me a definição de Koselleck (1992), estaríamos diante de um par de
conceitos de tipo oposto e assimétrico. Enquanto “Ocidente” (e seus
conceitos correlatos) implicaria a delimitação de um “nós”, isto é, de
uma “unidade de ação” por meio de um “reconhecimento mútuo”, o
“Oriente”, sendo o seu oposto, a sua imagem invertida, designaria por
exclusão um “eles”, ou seja, um determinado conjunto (de pessoas,
regiões, países), de modo depreciativo.

1
Nas palavras de Roland Barthes, “só podemos manejar uma fala quando a destacamos na língua;
mas, por outro lado, a língua só é possível a partir da fala [...] trata-se realmente, portanto, de uma
verdadeira dialética” (2006, p. 19).

Talita de Andrade Ferreira


594
Assim, a história conhece numerosos conceitos opostos que são
aplicados de um modo que o reconhecimento mútuo fica excluído.
Do conceito utilizado para si próprio decorre a denominação usada
para o outro, que, para ele, equivale linguisticamente a uma priva-
ção, mas que na realidade pode ser equiparado a uma espoliação.
Trata-se, nesse caso, de conceitos opostos assimétricos. Seu oposto
é contrário, porém de maneira desigual. (KOSELLECK, 2006,
p. 193)

Nesse sentido, a conhecida tese de Edward Said (2007) de que o


Oriente é uma invenção do Ocidente, “o resto não ocidental” por assim
dizer, vem a calhar. Caracterizando o Oriente de forma deturpada, o Oci-
dente encontraria também uma forma de se definir e se elevar – e é bom que
se esclareça, de maneira igualmente deturpada. Segundo palavras de José
Henrique Bortoluci, “o Oriente (‘estagnado, irracional e atrasado’) é ‘cons-
truído’ como um contraste, um ‘outro’ a partir do qual se pode caracterizar
o próprio Ocidente (‘dinâmico, racional e progressista’)” (2008, p. 173).
Nas páginas seguintes, examinamos alguns momentos cruciais para a
construção da ideia de Oriente pelo Ocidente, traçando a maneira como
se constituiu historicamente tal oposição conceitual com base nos usos particu-
lares desses conceitos em contextos específicos. Sendo impossível uma recons-
tituição histórica integral, pois toda história é, inevitavelmente, uma seleção,
optamos por analisar quatro momentos de elaboração dessa oposição con-
ceitual: a oposição entre helenos e bárbaros na Grécia Antiga (não só pelo seu
caráter inaugural, por assim dizer, mas por causa do largo impacto que ela teve
na história do pensamento político do Ocidente); a formulação da categoria
de despotismo oriental por Montesquieu (por sua vasta influência na cons-
tituição do pensamento político iluminista em oposição ao Antigo Regime);
a oposição entre mundo livre ou sociedade aberta e totalitarismo (em parti-
cular o soviético, por causa da centralidade dessa disputa política no último
século, sobretudo durante o período da Guerra Fria); e, por fim, a oposição
mais recente entre a democracia e o fundamentalismo e o terrorismo islâmi-
cos (que teve grande impulso depois da guerra ao terror desencadeada pe-
los Estados Unidos em resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001).

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


595
Cabe salientar ainda que este trabalho busca delinear não somente
uma história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente, mas tam-
bém fazer uma crítica dessa oposição. Exploramos o potencial crítico da
história conceitual, pois julgamos ser essa abordagem de grande valor
na tarefa de desnaturalização e estranhamento de conceitos e práticas
políticas e sociais que tendem a depreciar e a subjugar determinados
grupos em benefício de outros.

HELENOS E BÁRBAROS

Uma das primeiras, senão a primeira, forma de oposição entre Oriente


e Ocidente pode ser percebida na dicotomia conceitual binária, universal,
antitética e assimétrica entre helenos e bárbaros na Grécia Antiga. Dividindo
o mundo conhecido de então, os gregos formaram uma oposição conceitual
cujo alcance geográfico, e mesmo cultural, é imenso. A assimetria dessa
oposição é estabelecida pela caracterização da barbaridade como um
contraponto à autodenominação da helenidade, bem como pelo fato de
que aqueles chamados de bárbaros reconheciam os helenos, mas não a
sua própria condição bárbara (KOSELLECK, 2006). Segundo Edward Said,
esse não reconhecimento denuncia o quanto a demarcação dos conceitos
é arbitrária, posto que os “bárbaros” não precisariam ter consciência de sua
condição. “Basta que ‘nós’ tracemos essas fronteiras em nossas mentes; ‘eles’
se tornam ‘eles’ de acordo com as demarcações” (SAID, 2007, p. 91). Em
suma, numa direção, os termos utilizados funcionam; na outra, se perdem.
Essa separação pode ser analisada em diferentes momentos,
porém, inicialmente, sua perspectiva é espacial. A “helenidade”, ou seja,
a consciência não estrangeira, estaria baseada “numa ideia muito pouco
rigorosa do que existe ‘lá fora’ para além do território conhecido” (SAID, 2007,
p. 91). Assim, esse par de conceitos passa a vigorar do século VI a.C. ao
século IV a.C., denominando-se bárbaro todo aquele que fosse não grego.

O menosprezo aos estrangeiros, aos que balbuciavam ao falar, ou


cuja linguagem não se entendia, cristalizou-se em uma série de epí-

Talita de Andrade Ferreira


596
tetos negativos que desclassificavam toda a humanidade que vivia
fora da Grécia. (KOSELLECK, 2006, p. 198)

Logo, o surgimento da identidade helênica pode ser atribuído a uma


negação do outro, visto como diferente do “eu”, uma diferença a princípio
geográfica. Porém “as fronteiras geográficas acompanham as sociais, étnicas,
e culturais de maneiras previsíveis” (SAID, 2007, p. 91). Logo, a separação
não estava ligada somente ao âmbito espacial, mas fazia atribuição também
à physis,2 a partir do momento em que se classificava um indivíduo de “não
grego”, ao qual, pelo simples fato de ser denominado estrangeiro, seriam
atribuídas, implicitamente, diversas determinações negativas.
Dentro desse contexto, o Ocidente acaba por determinar características
específicas e imutáveis, uma espécie de essencialismo oriental, que permeia
tudo o que o oriental faz ou é e que passa a constituir “a base comum e
inalienável de todos os seres considerados” (SAID, 2007, p. 146), ou seja,
os orientais bárbaros. O que distancia e contrasta ainda mais os conceitos,
pois os gregos assinalam e reforçam características da “helenidade”, caracte-
rísticas que possuiriam e que, postas em comparação com as características
dos bárbaros, apenas realçariam o aspecto negativo delas, e o aspecto posi-
tivo das características dos helenos (KOSELLECK, 2006).
As características atribuídas às duas faces da oposição possuem duas
diferentes justificativas. A primeira seria natural: os bárbaros teriam caracterís-
ticas inatas que os tornariam inferiores. Como caracteres dessa essencialidade
bárbara estariam a irracionalidade e a desorganização, que seriam natural-
mente determinadas. O fato de os bárbaros serem movidos por paixões, não
possuírem razão e não serem capazes de fazer distinções denuncia que um
ser dessa espécie só poderia ser dominado pelo corpo, em vez de pela alma –
que seria o ideal para um membro constituinte da polis. A alma seria superior
ao corpo, portanto o domínio pela alma “é natural e conveniente, ao passo
que a equidade entre ambos ou o domínio do inferior é sempre doloroso”
(ARISTÓTELES, 1999, p. 150).

2
Do grego, natureza ou essência. Conceitualmente, um princípio intrínseco a cada coisa em específico
que a destinaria a determinado fim ou forma, mantendo a identidade dela mesmo que de forma dinâ-
mica, preservando, portanto, a sua unidade e estabilidade em ordem com o universo como um todo.

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


597
Uma explicação para o enaltecimento da posse da razão e repúdio
a uma suposta irracionalidade bárbara seria o reconhecimento da razão
como um caractere superior, transcendente, quase divino – o que pode ser cul-
turalmente exemplificado na sociedade grega por meio da sua mitologia
e da história do roubo do fogo do Olimpo para a humanidade, fogo
que representa, simbolicamente, a razão, a inteligência e o conhecimento.
Nota-se que essa explicação da mitologia grega da origem da capacidade
racional do homem tem reflexo, mesmo que indiretamente, no pensamento
filosófico e na forma como a sociedade helênica pensa a si mesma. Se esses
indivíduos se consideram portadores de uma qualidade divina, evidentemente
inferiorizariam aqueles que não consideram portadores da mesma capacidade.
Sinal de inferioridade bárbara seria também a ausência de uma organi-
zação política, que representaria, para Aristóteles, a salvação para o homem,
uma vez que ele não pode ser autossuficiente – e, sendo o Estado a autossu-
ficiência, é também a perfeição. “E aquele que por natureza, e não por mero
acidente, não tem cidade nem Estado, ou é muito mau ou muito bom, ou
sub-humano ou super-humano” (ARISTÓTELES, 1999, p. 146). Sem comando,
organização e capacidade crítica, os bárbaros são tidos como incapazes de
distinguir o bem do mal e de praticar a justiça: são como animais. Unida a
essas características, aparece a relação senhor–escravo, determinada natu-
ralmente pela racionalidade e pela capacidade de dominar do primeiro por
meio de sua inteligência e pela capacidade de executar ordens que resulta da
força corporal do segundo.
Havendo diferença corporal, consequentemente ela também existi-
ria na alma. Logo, os bárbaros seriam considerados escravos por natureza
e os helenos, que possuiriam características equivalentes às de senhores,
poderiam conquistá-los ou até mesmo exterminá-los, de forma justa, bem
como rebaixá-los à servidão, submetendo-os de acordo com as suas qua-
lidades naturais. No primeiro caso, a dominação e predomínio helênico
são externos; no segundo, internos. Essa explicação foi utilizada pelos gre-
gos para justificar tanto a sua expansão militar e cultural quanto o suposto
direito de terem os bárbaros estrangeiros como propriedade e parte da
construção da estrutura interna do Estado (KOSELLECK, 2006).

Talita de Andrade Ferreira


598
Se comparados os modos de vida helena e bárbara dos tempos antigos
numa segunda forma de justificativa, agora de uma perspectiva histórica,
poderia dizer-se que também os helenos compartilhavam as características
selvagens e depreciativas que tanto criticariam mais tarde, formando uma
oposição entre civilização – “helenidade” – e barbárie, com a construção de uma
espécie de linha temporal do progresso na qual os helenos desenvolveram-se
culturalmente rumo à civilização, ao passo que a barbárie não realizou tal avanço.
Trata-se de uma “não simultaneidade de estágios culturais” (KOSELLECK,
2006, p. 201). Também a posse ou não de uma consciência histórica poderia
diferenciar um povo bárbaro de uma sociedade civilizada e culta.
Posteriormente, uma quebra na determinação dos conceitos acaba
por mudar drasticamente a natureza e a condição de mobilidade entre
os polos opostos, além de introduzir a substituição por outro tipo de divisão:
a oposição entre cristãos e pagãos (KOSELLECK, 2006). Se antes as
determinações eram feitas em relação direta à localização espacial, essa
ligação agora é rompida. O bárbaro passa a ser aquele que não possui
uma formação cultural, e que não sabe falar grego corretamente. Isso muda
completamente as condições dos indivíduos, uma vez que não seria mais
impossível para alguns serem considerados helenos. A desnaturalização da
oposição, que passa de geográfica para social, torna-a agora exclusivamente
justificativa de organização interna e uma oposição, digamos, bem mais
flexível no que diz respeito à dominação. “O dualismo passou então a servir
como uma garantia indireta da função social da camada helenista, educada
para governar” (KOSELLECK, 2006, p. 203).
Com o tempo, após uma grande expansão territorial e o surgimento de
uma terceira divisão – os romanos –, a oposição heleno-bárbara acaba por
perder força. Inicialmente no que diz respeito à sua abrangência. E, posterior-
mente, ao se deparar com uma opção mais convincente: com o surgimento do
cristianismo após longo período de conquista militar e exaustão dos efeitos dos
choques entre culturas, apresenta-se uma nova religião que promete união e
salvação de quem quer que seja, independentemente de suas classificações,
helenos ou não, e se torna uma opção muito positiva e atraente, quando se
considera a oposição anterior. A oposição entre cristãos e pagãos passa então
a ter maior espaço, até substituir a anterior de fato (TOYNBEE, 1955).

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


599
DESPOTISMO ORIENTAL EM O ESPÍRITO DAS
LEIS DE MONTESQUIEU

Enquanto percebemos na oposição histórica anteriormente citada o


início de uma passagem da atribuição “oriental” do âmbito espacial para
uma caracterização essencial, percebemos que, em uma divisão posterior,
essa physis oriental torna-se legítima. Assim como os gregos, a tradição eu-
ropeia procurou, a partir da formulação e criação de formas de sociedade
e governos degenerados e associados ao mundo “não europeu”, definir,
por meio de uma negação de um oposto também delimitado, a concepção
que se tem da própria sociedade europeia, servindo ela como o “principal
critério de distinção entre Ocidente e não Ocidente (e, sobretudo, Oriente)”
(BORTOLUCI, 2008, p. 184). Logo, com o surgimento da ideia de despotis-
mo formulada por Montesquieu, naturaliza-se essa forma de governo como
oriental, uma vez que desde a origem da dicotomia Oriente–Ocidente esse
tipo de governo aparenta acompanhá-la como governo próprio – ou seja,
natural – aos países asiáticos, segundo Aristóteles, referindo-se aos persas
(BOBBIO, 1979).
Em O espírito das leis, Montesquieu se posiciona a respeito das relações
e formas de governo existentes no período, com enfoque na busca das leis que
regeriam os fatos humanos, deixando transparecer a sua influência iluminista.
Como espelho da mudança intelectual e científica em curso, Montesquieu,
em sua abordagem, alia experiência prática à dedução lógica, unindo a ra-
cionalidade empírica de Bacon à racionalidade dedutiva de Descartes. Toma,
portanto, as leis como relação entre uma razão a priori e os seres existentes
que possibilita a existência, a ordem e a constância, deles e do universo. Os
resultados observados no mundo real, então, não poderiam ser fruto de uma
fatalidade cega (BOBBIO, 1979). Montesquieu, pautado na utilização da ra-
cionalidade e da ciência, determina a predominância das leis no universo.
Essas derivariam “da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm
suas leis” (MONTESQUIEU, 1979, p. 25). E é unindo observação prática e
dedutivismo que Montesquieu determina uma série de padrões relativos às
formas de governo, na tentativa de compreender a sociedade. Na definição
de suas formas de governo, Montesquieu supõe

Talita de Andrade Ferreira


600
[...] três definições, antes três fatos: um que o governo republi-
cano é aquele que o povo, como um todo, ou somente uma
parcela o povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquele
em que um só governa, mas de acordo como leis fixas e estabe-
lecidas, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa, sem
obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus
caprichos. (MONTESQUIEU, 1979, p. 31)

Cada uma dessas formas de governo participa em diferentes graus da


preferência do autor. Em primeiro lugar, estaria a monarquia, que ele defen-
de não explicitamente, ainda que essa preferência fique clara ao longo do
livro. Influenciado pela forma de governo da Inglaterra, Montesquieu deixa
transparecer sua posição política na formulação da principal teoria de O
espírito das leis: a teoria da separação dos três poderes, colocando sua
classe – a aristocracia – em posição privilegiadamente segura em relação
às demais. Impedido o Poder Executivo de interferir no Judiciário, e os ma-
gistrados populares de julgar seus nobres, tanto o rei quanto a burguesia
ficariam limitados à superioridade da nobreza. Em seguida, em sua ordem
de preferência, a república, que, embora não inspirasse antipatia aparente,
contrariaria seus interesses, mantendo o povo no poder, sendo considera-
da, ademais, uma forma de organização política arcaica (MONTESQUIEU,
1979). Por fim, a definição de governo mais rejeitada por Montesquieu seria
o despotismo, uma novidade, dado que essa forma de governo era consi-
derada anteriormente como uma subdivisão ou, até mesmo, uma degene-
ração da ideia de monarquia. Porém, para o autor é necessário destacar
uma nova classificação, pois expandiu o seu campo de observação. Assim,
não mais somente a sociedade europeia é estudada, mas também o mundo
extraeuropeu, e Montesquieu,

[...] baseando-se nas transformações ocorridas na sociedade euro-


peia, classifica todos os Estados como repúblicas ou principados,
com um acréscimo: a categoria que serve para incluir no esquema
geral as formas de governo do mundo oriental. (BOBBIO, 1979,
p. 122)

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


601
Além dos diversos determinantes que distinguem as formas de go-
verno, a principal diferença seria a ideia de princípios, em que cada
forma teria uma variável particular. São os estímulos que levam o gover-
no a manter seu funcionamento e manutenção, e que várias vezes são
chamados por Montesquieu de “molas propulsoras” (BOBBIO, 1979):
em relação a um governo, “seu princípio é o que o faz agir”, “as paixões
humanas que o movimentam” (MONTESQUIEU, 1979, p. 42).
Na república, o princípio seria a virtude, não a virtude moral, signifi-
cado comumente associado ao termo, mas o que o autor chama de virtude
política, do cidadão, isto é, o amor dele à sua pátria, e como as decisões
são tomadas por uma maioria que se encontra, simultaneamente, como so-
berano e súdito, aplicando-se a todos de forma igualitária, a conscientização
política deve ser em prol de um bem comum.
Na monarquia, o princípio seria a honra, que, ao contrário da virtude,
pode-se definir como uma extravagância do ego, exigindo preferências e dis-
tinções que resultariam de interesses pessoais, como a ambição e o desejo de re-
conhecimento e glória. Para Montesquieu, o impulso particular que esse princípio
causa em cada um dos indivíduos leva a uma movimentação do todo. A presença
de poderes intermediários – como a nobreza – e o fato de soberanos e súditos
estarem igualmente submetidos às determinações de leis seriam características
essenciais contra o possível desvirtuamento e para a não evolução da monar-
quia ao despotismo.
O medo, princípio do despotismo, manteria a obediência por meio de
ameaças e castigos atrozes dos súditos em relação ao tirano, instaurando o
terror nos dominados, tornando todos os homens iguais entre si na condição de
escravidão e inferioridade diante do déspota. As principais diferenças entre essa
definição de governo para a república e a monarquia são, respectivamente, a
concentração do poder nas mãos de um só e a ação não limitada nem por
classes intermediárias, nem por leis a que todos deveriam obedecer – diferenças
que, unidas, tornam esse tipo de governo, para Montesquieu, o pior.
As diversas características do despotismo que o tornariam tão terrível
parecem estar ligadas por uma cadeia de causalidades. De um fato predeter-
minado surgem vários outros. E esse fato primeiro seria a regionalização, se-

Talita de Andrade Ferreira


602
gundo a qual a predisposição ao surgimento do despotismo estaria de acordo
com a fertilidade do terreno, o clima, o relevo e outras determinações físicas
que poderiam instigar um governo à disputa e facilitar a formação de ambien-
tes hostis. Porém, essas atribuições não se limitariam somente aos conflitos
por posse de terras e bens, mas também influenciariam o comportamento
dos indivíduos, positiva ou negativamente, uma vez que a esterilidade das
terras “torna os homens laboriosos, sóbrios, habituados ao trabalho”, ao pas-
so que “a fertilidade de uma região oferece, juntamente com a abastança, a
indolência e certo amor pela conservação da vida” (MONTESQUIEU, 1979,
p. 248). Influenciando o modo como eram vistas as atitudes dos povos asiá-
ticos, essa naturalização já introduz uma nova característica a qual, segundo
a definição de Montesquieu, seriam naturalmente preguiçosos, sem coragem,
impressionáveis e voluptuosos. Condições impostas pelo clima, sendo esse
mais quente, refletiriam na condição física dos indivíduos, favorecendo uma
indolência natural, tanto do corpo quanto da alma, ao mesmo tempo em que
também aumentariam a exposição dos nervos e, consequentemente, a sensi-
bilidade aos prazeres. Esse fato tornaria esses indivíduos, chamados “povos do
Sul”, predispostos à dependência a paixões e vícios (MONTESQUIEU, 1979).
Dessa forma, a naturalização do despotismo corresponde à atribui-
ção ao oriental de uma tendência à servidão. Segundo Montesquieu, para
povos com essa natureza, os quais não contariam nem com o governo
de si mesmos, por causa de tamanha preguiça e indolência, o ideal seria que
fossem dominados, combinando assim perfeitamente a índole à forma de
Estado. A escravidão política, que seria parte implícita do governo des-
pótico, une-se à escravidão civil, uma vez que, nesse tipo de governo,
como todos seriam escravos políticos, a escravidão servil “quase não é
mais penosa que a condição de súdito” (MONTESQUIEU, 1979, p. 213).
Logo, mais uma característica é atribuída às sociedades asiáticas: para elas, a
escravidão seria natural, e todos os seus indivíduos possuiriam natureza servil,
sendo escravos desde o déspota até o mais inferior dos súditos. Aqui, o antigo
argumento aristotélico que naturaliza e, portanto, aprova a existência de se-
nhores e escravos, é retomado a partir de uma moderna perspectiva científica.

Há países em que o calor enerva o corpo e enfraquece tanto a


coragem que os homens só efetuam um dever penoso por temor

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


603
do castigo: a escravatura, portanto, choca menos a razão e,
sendo o senhor tão cobarde em relação a seu príncipe como o
escravo o é a seu respeito, a escravidão civil é, aí, acompanhada
também da escravidão política. (MONTESQUIEU, 1979, p. 216)

Outra característica que contribuiria para esse espírito de servidão ca-


racterístico dessa forma de governo seria a falta de racionalidade inerente aos
indivíduos dessa sociedade. Em seu livro, Montesquieu expõe o relato de mis-
sionários sobre a vida dos selvagens da Luisiana em um capítulo denomina-
do “Ideia do despotismo”: “Quando os selvagens da Luisiana querem colher
uma fruta, cortam a árvore embaixo e apanham-na. Eis o governo despótico”
(MONTESQUIEU, 1979, p. 71). Embora não seja explícito, é evidente que
Montesquieu quis associar o despotismo a certa irracionalidade, baseada na
atitude dos “selvagens”, considerada por ele não muito inteligente. Obviamente,
essa seria uma das contribuições à formação da identidade “ocidental”, em
contraponto com a imagem do “oriental”: “Os diversos autores desta tradição
buscaram decantar os princípios gerais da ‘racionalidade’ criativa e progressista
ocidental a partir da contraposição à ausência desses condicionantes nas cultu-
ras não ocidentais” (BORTOLUCI, 2008, p. 192). Logo, as sociedades asiáticas
não teriam tido uma passagem equivalente ao iluminismo na qual deixariam
de se pautar em conceitos meramente tradicionais e passariam a buscar novos
comportamentos e respostas com base em uma racionalidade científica.
Associado à autoridade e à vilania do tirano estaria outro fator, ligado
à irracionalidade oriental: a conduta de vida religiosamente condicionada.
Para Montesquieu, mais que o poder do príncipe, a religião teria suma im-
portância no governo despótico. Nenhum indivíduo, poder ou regra poderia
se opor à vontade do déspota, porém, a religião governaria acima dele:
“Nesses Estados, a religião tem mais influência do que em qualquer outro; é
um temor adicionado ao temor” (MONTESQUIEU, 1979, p. 72).
Logo, a religião oriental, com seu caráter irracional, contribuiria para a
manutenção do despotismo, condicionando seus súditos à obediência, pois,
quando “não estão ligados à glória e à grandeza do Estado pela honra, o es-
tão pela força e pelo princípio da religião” (MONTESQUIEU, 1979, p. 72), em
uma espécie de imposição do poder patriarcal, ao passo que as religiões oci-

Talita de Andrade Ferreira


604
dentais seriam impessoais como resultado da crescente racionalização da so-
ciedade, que se refletiria nas religiões europeias.3 Haveria até uma adequação
de determinadas religiões às formas de governo na qual a religião maometana
“que só fala do gládio” e “age sobre os homens com este espírito destruidor
que a fundou” (MONTESQUIEU, 1979, p. 367), seria mais adequada a gover-
nos despóticos. Já a religião cristã, que possui “brandura tão recomendada no
Evangelho”, “se opõe à cólera despótica com a qual o príncipe faria justiça e
exerceria suas crueldades” (MONTESQUIEU, 1979, p. 366).
Consequência dessa irracionalidade inerente a essa forma de governo
e às sociedades orientais em geral seria o caráter estacionário de sua história.
A racionalidade ocidental se desenvolveria juntamente com o desenvolvimento
histórico. Em contraposição ao dinamismo histórico do Ocidente, as socie-
dades não europeias – e irracionais – seriam classificadas como a-históricas.
Logo, quando não há desenvolvimento da racionalidade, não há progresso.4
A explicação dessa falta de dinamismo, para Montesquieu, estaria novamente
vinculada à natureza dos indivíduos (MONTESQUIEU, 1979).

4
A influência desses fatores também explicaria o desenvolvimento social ocidental e oriental por Marx,
por meio da teoria do modo asiático de produção, aparentemente influenciada por duas espécies de
eurocentrismo. Na primeira, adere-se a uma interpretação evolucionista da história, de acordo com
uma descrição ortodoxa de continuação: escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo, sucessiva-
mente. Na segunda, pode-se chegar à defesa de uma visão dualista do desenvolvimento histórico, na
qual haveria o desenvolvimento ocidental dinâmico, privilegiado em relação ao oriental, estacionário
(BORTOLUCI, 2008, p. 187). Porém, em ambos, o embasamento para essas formulações seria co-
mum: a ausência de classes entre o déspota e as aldeias e a não apropriação da terra impossibilitariam
o surgimento do capitalismo, que derivaria de uma mudança a partir do sistema feudal, com a “acumu-
lação primitiva de capital”. Sendo assim, segundo essa interpretação marxista, as forças produtivas das
sociedades asiáticas não poderiam evoluir, permanecendo imóveis. O próprio Marx, no entanto, faria
uma revisão dessa tese nos seus últimos anos de vida, como fica claro em sua correspondência com
a socialista russa Vera Zasulich, de março de 1881, quando explica que aquela sequência histórica
valia apenas para a Europa Ocidental. Para a Rússia, pelo menos, haveria outra “possibilidade teóri-
ca”. “Na Rússia, graças a uma combinação única de circunstâncias, a comunidade rural, que ainda
existe em escala nacional, pode desfazer-se gradualmente de seus aspectos primitivos e desenvolver-se
diretamente como elemento de produção coletiva nacional. É precisamente por causa de sua contem-
poraneidade com a produção capitalista, que ela pode se apropriar de todas as realizações positivas
desta, sem passar por seus terríveis percalços” (MARX, 1881). Contudo, Marx não deixa de salientar
o que para ele era uma distinção importante entre a Rússia e as Índias Orientais. “A Rússia não vive
isolada do mundo moderno; tampouco é presa de algum conquistador estrangeiro como as Índias
Orientais” (MARX, 1881). Se esse desenvolvimento hipotético é negado às Índias Orientais, isto não se
deve aqui à sua própria formação, ou à sua suposta não contemporaneidade com o capitalismo, mas
à dominação estrangeira, que, de algum modo não evidenciado, interditaria este possível caminho.

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


605
Nota-se a passagem de uma explicação de um fato natural, bio-
lógico, gradativamente tornando-se uma determinação do comporta-
mento para, por fim, determinar a índole natural de cada indivíduo.
Podemos notar aqui claramente como o projeto iluminista influencia às
tentativas do autor de padronizar a sociedade, que se dá por meio da
explicação do mundo por “leis”, que constituiria um exemplo da ten-
dência moderna a favor da especificidade conceitual. O que poderia
ilustrar claramente a “natureza do oriental” seria a descrição da figura do
déspota: um homem que, para Montesquieu, dedica a sua existência com-
pletamente aos prazeres, cuja vontade insaciável cresceria proporcionalmente
à quantidade de seu poder, ao passo que menos se dedica ao seu governo:
“o déspota não observa regulamento algum e seus caprichos destroem todos
os demais” (MONTESQUIEU, 1979, p. 45).

MUNDO LIVRE E SOCIEDADE ABERTA VERSUS


TOTALITARISMO NA GUERRA FRIA

Avançando uma pouco mais na linha cronológica ligada à ideia do


domínio por meio do temor e da concentração do poder, com enfoque no
período da Guerra Fria, temos a oposição entre Oriente e Ocidente, configu-
rada na contraposição da sociedade liberal e seus inimigos, ou de sociedade
aberta e sociedade fechada, de liberalismo e totalitarismo. O surgimento des-
ses termos no período entreguerras e durante a Segunda Guerra Mundial teria
passado por dois tipos de estágios. No primeiro, o totalitarismo foi associado
inicialmente à Alemanha hitleriana e ao fascismo italiano. Vinculado a um
forte ideal de transformação social – tendo sido adotado inicialmente pelos
seus próprios líderes por causa do seu caráter de ruptura – para depois ser
associado cada vez mais à interferência, senão substituição, da vida privada
pela pública e, consequentemente, à perda de liberdade, junto com a substi-
tuição da dimensão dinâmica, como movimento, pela estática, como regime,
do termo. No segundo estágio, inclui-se o stalinismo nessas classificações,
associando-o a outras formas de governo consideradas autoritárias, como o

Talita de Andrade Ferreira


606
nazismo e o fascismo, ligando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), consequentemente, ao totalitarismo. Segundo Toynbee (1955), esse
período de suposta agressão e ameaça russa para com o Ocidente seria
até justificável se considerarmos os fatos “segundo a perspectiva do historiador,
em lugar da perspectiva do jornalista” (TOYNBEE, 1955, p. 17), na qual o
Ocidente teria se encontrado sempre na posição de agressor. E, quando os
papéis se invertem, é “uma estranha experiência estar sofrendo nas mãos do
mundo o mesmo que o mundo esteve sofrendo em mãos ocidentais durante
os últimos séculos” (TOYNBEE, 1955, p. 13).
Cronologicamente, estaríamos ainda, portanto, nas definições cabí-
veis à Segunda Guerra Mundial. Várias atribuições eram feitas também, no
período, ao totalitarismo. Com a tentativa de explicação dessas formas de
governo, alguns autores definiram como “totalitários” os regimes derivados
da crise do capitalismo. Porém, outra vertente acabou por ser mais bem
aceita, como já citado anteriormente de forma breve: a da caracterização
do “totalitarismo” por meio de sua comparação e associação com as prin-
cipais formas de governo denominadas “autoritárias” na época: stalinismo,
fascismo e nazismo. A obtenção de pontos comuns entre essas formas de
governo seria decisiva para a construção do termo totalitarismo.

Às características comuns, além daquelas acima apontadas, refe-


rentes às instituições políticas (ditador, partido único, controle da
economia), também somava as similaridades psicológicas (faná-
tica hostilidade ao liberalismo, individualismo), o culto da força e
desejo de expansão. E era exatamente esta última característica
que sugeria um prognóstico da proximidade da guerra, opondo
o totalitarismo às democracias ocidentais. (LUIZ, 2008, p. 123)

Nesse período histórico, no qual os Estados Unidos passaram a ser he-


gemônicos mundialmente, o novo e o melhor alvo ideológico seria o comunis-
mo. Logo, com a adoção cada vez maior, até mesmo por parte da população,
do termo “totalitarismo” relacionado ao regime soviético, inicia-se um grande
esforço de influência ideológica para a construção da imagem da URSS como
“império do mal” – e, é claro, dos Estados Unidos e seus aliados como “impé-
rio do bem”. A determinação cada vez maior da URSS como uma ameaça se

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


607
relaciona diretamente com as ligações cada vez mais próximas do stalinismo
soviético com a Alemanha hitleriana. Portanto, o termo totalitarismo

[...] passou a ter um papel essencial de ligar os ex-aliados soviéticos


da América à Alemanha nazista. Os ânimos antialemães foram
agora direcionados para o sentimento anticomunista. A Alemanha
estava sendo “destotalitarizada”, enquanto os russos deixavam de
ser os “aliados da democracia” do período de guerra, passando a
ser identificados cada vez mais com o totalitarismo. (LUIZ, 2008,
p. 119)

Afinal, por que a comparação e a equiparação de tantas características


e formas de governos distintos? Ora, a resposta mais uma vez estaria asso-
ciada à formação do “outro”. Em cada um dos momentos do século XX, o
“inimigo” global mudou de acordo com a guerra do momento, e o Ocidente,
que sempre teria sido uma figura política dominante, constrói sua imagem
pela deturpação da imagem do seu rival político. Porém, como já foi explici-
tado, por causa desses fatos históricos, a formulação da imagem do “opos-
to” – e, portanto, do próprio Ocidente – sofreu grande diversificação. Desse
ponto, obtemos a resposta para a pergunta anterior: a comparação permitiria
a construção do “outro não ocidental” com uma melhor coerência e continui-
dade, o que pode ser percebido nas tentativas dos teóricos do período de de-
finir a categoria de totalitarismo. Portanto a categoria de totalitarismo, em sua
versão melhor aceita, estaria sempre em choque com os princípios liberais de
liberdade e igualdade, além de estar, na maior parte das vezes, representada
por rivais e ameaças políticas de nações capitalistas.
A diversificação no que tange a definição do totalitarismo pode ser mui-
to bem ilustrada pela intervenção de Hannah Arendt. Em seu livro As origens
do totalitarismo, de 1949, dividido em antissemitismo, imperialismo e totalita-
rismo, Arendt coloca como princípio comum do nazismo – principalmente es-
tudado na primeira parte da obra – e da Rússia soviética o terror, que definiria
o viés totalitário de ambos os regimes.
Em um primeiro momento, Arendt associa o totalitarismo ao regime
nazista, dando destaque ao “imperialismo racial” e ao seu caráter antisse-
mítico, também atribuído ao domínio colonial britânico. No entanto, o foco

Talita de Andrade Ferreira


608
da obra é radicalmente modificado, passando a apontar principalmente
para a União Soviética, relacionando-a diretamente com a Alemanha na-
zista. Isso decorre do fato de que “o livro de Arendt resulta, na realidade,
de dois níveis distintos que remetem a dois períodos de composições diver-
sas e separadas uma da outra pelo corte temporal do desencadeamento
da Guerra Fria” (LOSURDO, 2006, p. 57). A categoria imperialismo cede
lugar à categoria totalitarismo e, a partir daí, percebemos uma constante
tentativa de adaptação da definição de totalitarismo.
Com o advento da Guerra Fria, a autora atribui ao marxismo
grande responsabilidade pelo totalitarismo. De forma confusa, Arendt fizera
anteriormente uma distinção entre leninismo e stalinismo, estabelecendo uma
diferença entre “a ditadura revolucionária de Lenin e o regime totalitário de
Stalin” (LOSURDO, 2006, p. 61). Na primeira haveria uma relação imediata
entre o líder e a população, ao passo que, no segundo, Stalin, para impor o
regime totalitário que desejava, “precisa desorganizar a massa de modo que
possa tornar-se objeto do poder carismático e inconteste do chefe infalível”
(LOSURDO, 2006, p. 61). Entretanto, Arendt abandona essas distinções e
atribui o peso do marxismo como inspirador totalitário da União Soviética,
sem diferenciações históricas: “plano e sem obstáculos passa a ser o percurso
que conduz de Marx ao totalitarismo passando por Lenin” (LOSURDO, 2006,
p. 63). Porém, mudança de opinião mais marcante pode ser apontada com
respeito ao próprio Marx. Se ele é, em um primeiro momento, apontado
positivamente, como possuidor de um “zelo fanático pela justiça” (ARENDT
apud LOSURDO, 2006, p. 58), acaba por ser responsabilizado por uma
parcela do totalitarismo no século XX. Assim, “o que caracteriza o totalitarismo
comunista” para Arendt “é o sacrifício, inspirado e estimulado por Marx,
da moral sobre o altar da filosofia da História e de suas leis ‘necessárias’”
(LOSURDO, 2006, p. 58).
Outro autor que associou a ameaça à sociedade liberal ao totalita-
rismo é Karl Popper, autor de A sociedade aberta e seus inimigos (1944),
que esclarece ser o objetivo dessa obra o de desenvolver a compreensão
do totalitarismo e refutá-lo. Ao longo de todo o livro, o autor procura de-
senvolver a jornada da sociedade liberal democrática, sendo as suas atri-
buições de “liberdade, igualdade e fraternidade” as melhores opções para

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


609
o decurso da história: a democracia “fornece um arcabouço institucional que
permite a reforma sem violência e, assim, o uso da razão nos assuntos polí-
ticos” (POPPER, 1987, p. 23). Porém, ela sempre encontrou, desde o seu
surgimento, empecilhos – os “inimigos” da sociedade liberal – que a
colocam à prova da “experimentação e erro”, baseados em filosofias
que procuram anular a sua racionalidade. O principal empecilho para
o autor é o historicismo, que, para ele, consiste na “profecia histórica”,
isto é, a prática das ciências sociais de formular filosofias que tentariam
descobrir leis históricas que habilitam a profetizar o curso dos aconteci-
mentos históricos. Para Popper, o historicismo é apenas mais um artifício dos
inimigos da sociedade liberal para abolir o racionalismo científico e retirar da
sociedade responsabilidades adquiridas com a passagem para a civilização.
Secundariamente, outra filosofia dessa espécie é o tribalismo: “a ênfase sobre
a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto,
é um elemento que encontraremos em muitas formas de teorias historicistas”
(POPPER, 1987, p. 23). O tribalismo é uma força contrária ao individualismo –
o impulsionador para a sociedade democrática e para o progresso –, trazen-
do a sociedade de volta para o totalitarismo. Das constantes “tentativas” de
assalto à sociedade liberal desses movimentos reacionários que buscam
devolvê-la ao tribalismo decorre não ter se completado ainda a passagem
para a civilização. Para Popper, a sociedade liberal individualista, o caminho
do progresso, é a sociedade aberta, e a sociedade tribal ou totalitária, a so-
ciedade fechada.
Em seu livro, Popper faz uma crítica a três autores principais, Platão,
Hegel e Marx, que seriam os principais ofensores, pelo menos teoricamente –
da sociedade aberta. No que diz respeito ao primeiro autor, Popper o
relaciona com a defesa do tribalismo e do Estado totalitário, sendo contra
a democracia. Já Hegel é criticado pelo desenvolvimento de suas teorias
como necessidade de uma filosofia oficial do Estado prussiano, perver-
tendo os ideais da sociedade aberta em favor da monarquia, por meio
do impedimento do argumento racional e pela utilização do historicismo.
Seria Hegel então o “elo perdido” entre o tribalismo de Platão e o totali-
tarismo moderno, melhor representado por Marx, com o desenvolvimento
do marxismo. Essa última ideologia possui, para Popper, elevada e real

Talita de Andrade Ferreira


610
periculosidade, pois sua teoria historicista de caráter oracular extrapola a
teoria, formando e baseando movimentos sociais revolucionários, entre-
tanto sem bases concretas como uma reformadora social.

FUNDAMENTALISMO E TERRORISMO ISLÂMICO VERSUS


DEMOCRACIA HOJE

Ao buscarmos mais uma configuração da dicotomia Oriente–Ocidente


na atualidade, deparamo-nos com outra oposição, repercutida nos diversos
meios de comunicação, exibindo o combate a um terrorismo sempre asso-
ciado ao islamismo apresentado como inspirador de diversos desastres e
atentados à vida humana. Esse novo vilão da atualidade pode ser traduzido
em grande parte pelo povo árabe, que seria representante dessa nova “seita
do mal”. De modo bem superficial e abrupto, como também nos é apresen-
tado pela mídia, esse seria o cenário do conflito no qual se opõe a civilização
norte-americana à barbárie islâmica. Entretanto, essa constitui apenas uma
prévia, bastante pobre e dogmática, de toda uma conjetura de conflitos oca-
sionados por choques entre civilizações, porém não choques ocasionais – em-
bora historicamente comuns –, mas marcados pela presença do colonialismo,
dando origem às revoltas em prol da libertação nacional.
Apesar de geral em relação à dicotomia Oriente–Ocidente, a passa-
gem da dominação dessas classificações para o plano político, até então
considerado um assunto sumariamente teórico, é especialmente importante
aqui. Edward Said, em seu livro Orientalismo, define o tema do título como
o “sistema do conhecimento europeu ou ocidental sobre o Oriente” (SAID,
2007, p. 272), desde o início uma espécie de área quase científica na qual
o Ocidente pode não somente estudar o Oriente, mas também manipu-
lar e definir ele própria no que consiste seu objeto de estudo. Sempre de
forma depreciativa, essas definições vão de mãos dadas com a definição
do próprio Ocidente, mediante a figura do “oposto”. Iniciando-se na ten-
tativa de formação de um conhecimento sobre o Oriente, o orientalismo
começa a construção sistemática erudita europeia sobre ele, na tentativa de

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


611
catalogá-lo e torná-lo didático para o Ocidente. Posteriormente, a tendência
orientalista procede à sua reestruturação, renovação e corroboração de sua
tradição, por meio de ilustrações reais, isto é, experiências formando “todo
um arquivo internamente estruturado é construído a partir da literatura que
pertence a estas experiências”, dando origem a “um número restrito de con-
densações típicas: a viagem, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto
polêmico” (SAID, 2007, p. 96).
Portanto, o orientalismo teria passado de um processo a princípio teóri-
co para uma prática na qual a aplicação do conhecimento à realidade exprime
a dominação europeia sobre o Oriente. É a partir desse ponto que o orien-
talismo encontra maior firmeza em instituições e governos das potências
ocidentais. E é dessa forma que o orientalismo entra no século XX, ou seja,
que o choque entre Oriente e Ocidente começa a abarcar, de forma decisiva,
o plano político. Essa nova dimensão une-se a uma unilateralidade na análise
dos acontecimentos, resultando na vilanização de uma parte do globo, ao
passo que a outra é elevada a uma condição superior.
Baseando-se nessas premissas e considerando essa unilateralidade,
temos o fato de que tanto o fundamentalismo quanto o terrorismo – ou qual-
quer outra atribuição depreciativa dessa espécie – não é uma característica
exclusiva do Oriente Médio, ou dele contra nós: também são encontrados em
países hegemônicos que se consideram isentos de quaisquer culpas relativas
a essas práticas. Por mais que sejam consideradas condenáveis algumas
das ações desses movimentos, geralmente eles se organizam em prol de
uma defesa à invasão imperialista, e não apenas como fruto de um “ódio
cego ao Ocidente”. Se essas tragédias ocorrem, certamente algum fator
contrário à vivência harmônica dos indivíduos foi o estopim. E, atualmen-
te, o desespero aparenta ser para muitos o caminho para uma liberdade
ditada pelo imperialismo.
É claro que não podemos generalizar todas as manifestações atuais
como plausíveis e recomendáveis. Não devemos virar as costas para a exis-
tência real, por exemplo, do fundamentalismo e do terrorismo, sem considerar
essas premissas básicas. Portanto, torna-se inviável a caracterização de uma
determinada nação em uma imagem transcendente, representativa do “bem”,

Talita de Andrade Ferreira


612
quando ela possui boa parcela de influência e culpa – sendo geralmente a
causa direta – a respeito das manifestações promovidas pelo seu “oposto bár-
baro”. E ainda mais se essa imagem é, em grande parte, autoconstruída. Além
disso, os epítetos atualmente atribuídos ao Oriente Médio – que caracterizam
os seus indivíduos como fundamentalistas, terroristas e outras adjetivações de-
preciativas – não necessariamente podem ser atribuídos em sentido único,
ou seja, de forma restrita ao Oriente. E no caso, o exemplo mais presente de
“civilização” e nação hegemônica, e mais uma vez baseada na configuração
dos opostos assimétricos, seria a civilização estadunidense, representante da
civilização ocidental atual.
A formação do Ocidente atual se dá na trajetória de modificações
ao longo da história em relação a esse conceito. Diversos requisi-
tos movem a definição de Ocidente para os Estados Unidos na atua-
lidade, entre eles o mercado, a política, a religião e a raça. Podemos
sempre notar a mobilidade com que o conceito definido passa a ser,
dependendo das circunstâncias, até mesmo o seu oposto. Um exem-
plo disso é a transformação de potências consideradas ocidentais em
bárbaras orientais, como a Rússia a partir do acontecimento da Revo-
lução de Outubro. Esses afastamentos da condição original acabam
por levar a uma modificação das potências europeias representativas
da “consciência ocidental”. “Em todo caso, ‘o Ocidente anglo-saxão’
tende a se tornar o Ocidente enquanto tal, enquanto o Oriente pare-
ce iniciar-se já na Europa continental, cujos habitantes pareciam fazer
parte dos povos de cor” (LOSURDO, 2010, p. 249). A partir daí, o povo
inglês passa a receber a principal parcela da atribuição de detentores da iden-
tidade ocidental, não só na Europa, mas também do outro lado do oceano,
por meio da passagem de uma herança histórica.
Os Estados Unidos ganham então, cada vez mais, uma imagem ideal
de civilização. “A partir da Revolução Americana, a condenação do despo-
tismo e da corrupção moral tende a excluir a Europa em seu conjunto do
lugar sagrado da civilização e do Ocidente mais autêntico” (LOSURDO,
2010, p. 249). Ainda assim, as ideias de “raça eleita”, de “povo escolhi-
do” e de exclusão de culturas e raças, ainda que teoricamente rejeitadas
pelo mais novo Ocidente anglo-saxão, são herdadas pela sociedade norte-

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


613
americana, perfeitamente ilustradas no período final do século XIX,
com os negros e peles-vermelhas culturalmente segregados e vítimas
de genocídio pautados no temor da mestiçagem. Alcançam-se, assim,
classificações de superioridade como a da “supremacia branca” e a
unidade em torno da língua inglesa, fazendo-se uma ponte entre o
Ocidente europeu e o Ocidente estadunidense. De forma geral, a cons-
ciência ocidental andaria então de mãos dadas com essa hostilidade e
desconfiança. Esse aspecto é agravado pelo fato de essa consciência
ter se formado ao longo do avanço militar e político ocidental. Domeni-
co Losurdo evoca uma esclarecedora definição da sociedade ocidental
que solicita transcrição:

O Ocidente é a cultura que ao mesmo tempo teoriza e pratica


com maior rigor e eficácia a limitação do poder (com a concre-
tização de instituições políticas que constituem ineludível ponto
de referência), e que com mais sucesso e em escala mais am-
pla se empenhou no desenvolvimento da escravidão-mercadoria
com base racial e na expropriação, dizimação e aniquilamento
das populações coloniais consideradas inúteis até como instru-
mentos de trabalho (com a imposição, portanto, de um poder
absoluto do homem sobre o homem). (LOSURDO, 2010, p. 266)

Esse comportamento pode ser observado na política externa dos Estados


Unidos e, mais especificamente, ainda, naquela relativa ao Oriente Médio,
em que se instaura uma atitude de “aspirante a império mundial”, possuindo
um poder que permitiria aos Estados Unidos comportarem-se como um
“juiz universal, um juiz que, além do mais, dita as regras do discurso e sanciona
de modo inapelável as normas, as acusações e os pecados (LOSURDO, 2010,
p. 283). O costume de realizar interferências nas políticas externas de todo
o globo e julgamentos – seus “decretos de excomunhão” – é um reflexo
claro da característica ocidental de erguer sua “moral superior” acima de
qualquer outra. O terrorismo, atualmente o pior inimigo da civilização,
embora não tenha sido bem definido explicitamente para o mundo, é um
termo utilizado naturalmente e comumente pelos líderes estadunidenses,
sem maiores comprometimentos com a sua profundidade. Mesmo assim, é

Talita de Andrade Ferreira


614
em geral atribuído ao islamismo, que acabou por se tornar a seita incentiva-
dora dessa prática, e, consequentemente, aos seus supostos representantes,
o povo árabe. O terrorismo, no senso comum, acabou por ser banalizado
como algo natural no Oriente Médio. Já temos construída, portanto, a imagem
do “outro” oriental. Isso, não por ser falso o fato de a prática terrorista realmente
ser utilizada por grupos extremistas, mas por essa atribuição ser feita de modo
unilateral, ou seja, apenas ao inimigo do Ocidente. Segundo Losurdo, “aqui
são justamente aqueles que gostam de se arvorar em campeões da luta contra
o terrorismo que aparecem como terroristas” (LOSURDO, 2010, p. 19). Na
visão das potências globais há uma forma de terrorismo que foi padronizada
como “o terrorismo”. As manifestações a favor da libertação nacional e
contra o imperialismo, o terrorismo dos mais fracos – em detrimento do vasto
armamento bélico das potências –, a ideia difundida do “culto da morte” em
atentados suicidas – embora também possam ser vistos de outro modo como
atitudes de desespero – são algumas das caracterizações desse terrorismo
delinquente, já tido como o único existente. Mas quais ações tornam também
o Ocidente uma instituição terrorista?
Segundo Losurdo, “a denúncia insistente, obsessiva, do terrorismo visa
apenas criminalizar toda forma de resistência à ocupação militar, não limi-
tar o conflito ou impedir sua barbarização” (LOSURDO, 2010, p. 48). Na
posição de juiz da civilização, nenhuma nação deve oferecer resistência ao
desejo de alcance universal dos Estados Unidos, sob pena de duras repre-
sálias. A chamada “ocupação militar” tem sido o principal pretexto para a
utilização do terrorismo por parte dos Estados Unidos. “Sobre o conjunto
das relações internacionais paira agora o espectro de um terrorismo per-
manente, planetário e totalizante” e “justo o país responsável por isso e que
se recusa a qualquer reflexão autocrítica sobre esse acontecimento – os
Estados Unidos – pretende decidir de modo soberano e inapelável quem é
terrorista e quem não é” (LOSURDO, 2010, p. 22). Ainda que o terrorismo
de massa seja também realizado por grupos isolados, quando aplicado pe-
las potências mundiais, acaba por causar efeitos muito mais devastadores,
por causa do maior poder bélico e, além disso, por visarem o cumprimento
de suas ordens políticas ao redor do globo, mediante a utilização da po-
pulação como reféns de forma geral. Os ataques contra a população “são

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


615
uma mensagem ao governo inimigo: eis o preço a pagar se não houver
capitulação ou, ao menos, uma mudança radical de política” (LOSURDO,
2010, p. 24). Outra forma também de utilizar a população como amea-
ça é o corte de elementos necessários ao suprimento da população, na
forma de embargos econômicos. Nesse caso, os resultados do de terro-
rismo são lentos, obrigando os civis a viverem em condições precárias, e
embora não se fira e mate instantaneamente com bombardeios, também
há muitas vítimas, de forma bem mais penosa.
Falando agora no que para a opinião dos países dominantes seria a
ideologia dos países terroristas, o conceito de “fundamentalismo” é também
um dos vários termos sancionados no julgamento realizado pelo Ocidente,
a respeito do islamismo e de sua hostilidade ao judaísmo e ao mundo oci-
dental. Para Losurdo:

Pode-se falar de “estímulo ao fundamentalismo” toda vez que hou-


ver referência a valores, de um modo ou de outro, tão “sagrados”
que, se preciso, legitimem o abandono das normas jurídicas po-
sitivamente sancionadas. Sem dúvida, trata-se de ver sempre de
novo a força desse “estímulo”, a rigidez do limite entre “sagrado”
e “profano” e, sobretudo, a real abrangência da área sagrada em
cujo âmbito vigoram valores e normas indiscutíveis e irrenunciáveis.
(2010, p. 59)

A formulação de normas políticas com base em cânones religiosos


seria uma manifestação do fundamentalismo. Baseando-se nessa defini-
ção, as nações pertencentes ao Ocidente também estariam incluídas nessa
atitude. Historicamente, são encontrados seus traços tanto no cristianismo
quanto no judaísmo, além de atualmente os Estados Unidos pautarem seus
discursos sempre em uma certeza da nação escolhida, e de que “a vontade
de Deus é a vontade da América”.
Portanto, afirmar que o islã é sinônimo do fundamentalismo e, mais
ainda, negar a presença de traços fundamentalistas no cristianismo e no
judaísmo é “abandonar-se à ideologia da guerra” (LOSURDO, 2010, p. 64).
A aceitação desse termo de forma unilateral, aplicando-o somente às nações
do Oriente Médio de cultura islâmica, é mais uma tentativa de deslegitimar

Talita de Andrade Ferreira


616
as formas de resistência do inimigo. Além disso, o conceito de fundamen-
talismo pode ser associado não só a aspectos religiosos, mas também a
ideologias que tomaram importância tão grande que transcende o plano
de um simples ponto de vista. E o “americanismo” é tido como uma dou-
trina à qual nenhum cidadão deve deixar de seguir. A religião oficializada
acaba por se fundir à ideologia de supremacia da nação, em uma histó-
ria “que é sagrada no plano político e religioso; de fato, o conteúdo de
verdade da Bíblia e da Constituição estadunidense é idêntico” (LOSURDO,
2010, p. 85), servindo para legitimar quaisquer das suas ações. Há uma
utilização do cristianismo e do judaísmo como reforços para a ideologia
de guerra.

Se, para ser aceito, o catolicismo teve de fazer calar seu univer-
salismo, o judaísmo teve de deslocar a ênfase do profetismo, que
alimentava as esperanças das classes e dos povos oprimidos a
se recuperarem, para o tema do povo eleito, reinterpretado de
modo a abraçar, além de Israel propriamente dito, também o
novo Israel representado pela República estadunidense. Dessa
forma, além da óbvia dimensão geopolítica, a aliança de Israel
com os Estados Unidos assume um significado também teológico.
(LOSURDO, 2010, p. 93)

Até mesmo, portanto, a religião, é condicionada aos desígnios das


potências hegemônicas. E é esse o principal objetivo com a formulação de
conceitos que etiquetam as outras nações do mundo: tornar possível a do-
minação e o seguimento sem resistência das decisões políticas tomadas. A
ideologia da guerra seria “a linguagem do império que, embora entre pau-
sas e derrotas, mas com renovada teimosia e apoiando-se em um aparato
militar cada dia mais poderoso e monstruoso, procura estender seu poder
para cada canto do mundo” (LOSURDO, 2010, p. 280).
Dessa forma, podemos chegar à conclusão de que a imagem
“antiterrorista” do Ocidente não é assim tão sólida. Ela serve apenas
para legitimar represálias a resistências à dominação dos países he-
gemônicos, de forma a criminalizar completamente qualquer tipo de
manifestação dessa espécie.

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


617
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A oposição Oriente–Ocidente é uma dicotomia cuja origem remonta a


períodos históricos bastante remotos e que vem se modificando e assumindo
diferentes configurações desde então – helenos e bárbaros, despotismo e civili-
zação, sociedade aberta e totalitarismo, e islamismo e democracia norte-ame-
ricana –, o que mostra as características mais importantes desse conflito em
cada período da história e também, de uma forma geral, dado que as diversas
imputações nas diferentes formas da dicotomia Oriente–Ocidente apresentam
uma continuidade que vai além das dicotomias específicas, historicamente
identificadas. Uma das características da oposição Oriente–Ocidente é o seu
caráter unilateral. Ambos os conceitos só são legitimados pelo Ocidente, que
representa o bloco dominante – desde sempre em posição privilegiada de po-
der – e o próprio Ocidente aparece sempre como o extremo oposto do Oriente,
formulando simultaneamente a própria imagem, mediante a negativização do
“outro não ocidental”, o qual sempre tem ligadas a si diversas atribuições de-
precativas. Dessa forma, constrói-se a imagem do Oriente inferior, atrasado,
indolente, libidinoso, irracional, violento, perigoso e distante, e do Ocidente
civilizado, racional, viril, transcendental e, principalmente, superior. Para isso,
as constantes justificativas de uma suposta “atitude oriental” são encontradas
na naturalização baseada em teorias evolutivas voltadas para o aspecto bioló-
gi-co, na natureza de determinadas formas de governo e modelo econômico,
nos costumes, na religiosidade, e todos esses pontos – que surgem em cada
diferente configuração da dicotomia e são sempre reutilizados – têm sempre
um caminho contrário à direção do Ocidente, que sempre possui a solução
para essas decisões errôneas.
O Ocidente, dentro das atribuições que recebeu ao longo da história, é
tido como a base da civilização. Palco de constante progresso, todo o tempo
exibe seu iluminismo e sua revolução científica para o mundo. Ele seria o de-
tentor do conhecimento, e quem desejasse esse conhecimento devia segui-lo,
reproduzindo os seus passos. A razão acaba por ser sempre a justificativa para
todas as decisões tomadas no Ocidente, e ela é a base para a formulação de
uma “teoria da modernização”, implícita à história do Ocidente. Para Octavio
Ianni, essa teoria:

Talita de Andrade Ferreira


618
Tem por suposto fundamental que tudo que é social se moderniza
ou tende a modernizar-se, nos moldes do ocidentalismo, a des-
peito dos impasses, ambiguidades, dualidades ou retrocessos.
Modernizar pode ser secularizar, individualizar, urbanizar, indus-
trializar, mercantilizar, racionalizar. Implica o suposto de que o que
já ocorreu e continua a ocorrer na Inglaterra, França, Alemanha,
Estados Unidos, Canadá, Japão e em outras nações, naturalmente
em diferentes gradações, certamente estará ocorrendo em todas as
demais nações da Europa, Ásia, Oceania, África, América Latina e
Caribe. (IANNI, 2006, p. 99)

Segundo essa teoria, portanto, esse “avanço” seria inevitável, ine-


rente ao processo de expansão capitalista, que acaba por criar a ilusão
de integração mundial, por meio de seus processos que parecem dissolver
todas as separações e fronteiras. “Por sobre tudo o que é local e nacional,
desenvolvem-se relações, processos, e estruturas dinamizadas pela moder-
nização, em geral traduzida em técnicas sociais de produção e controle”
(IANNI, 2006, p. 102). A despeito das desigualdades no desenvolvimento
e das contradições culturais, e de todos os efeitos negativos que causam,
o Ocidente avança como exemplo de civilização. O Ocidente constrói,
gradativamente, uma imagem elevada por uma superioridade e transcen-
dência exclusivas, pautado em um evolucionismo social, considerando-se
o patamar máximo da história. Nesse aspecto, reside o erro, constrói à sua
própria imagem. Geralmente, a prática de definir o outro não é contem-
plada de forma total – poucas coisas ou nenhuma conseguem ou podem
ser completamente compreendidas – tampouco reduzir a si mesmo a uma
classificação, uma vez que as influências do ego sempre interferem. E,
aparentemente, foi o que ocorreu. Com a sua superioridade em diversos
aspectos, o Ocidente se considerou capaz de definir, explicar e modificar
não apenas a si, mas também ao Oriente.
A construção de conceitos é, dessa forma, ideológica. Na tentativa de
depreciação do outro e de elevação de si mesmo, o Ocidente recorre a recur-
sos com fundamentos sem comprovação real. Mesmo assim, eles são ampla-
mente difundidos, em várias épocas, e, incrivelmente, acabam servindo ao seu
principal objetivo de legitimar a dominação – política, econômica, ideológica

Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


619
e em outros vários aspectos – do Ocidente sobre o Oriente, caindo em um
relativismo que pode fazer-nos até duvidar da validade desses conceitos e
dessa oposição. Pois é exatamente esse o questionamento que devemos
nos fazer com relação à formulação tanto dessa dicotomia quanto dos concei-
tos que ela sustenta. Concluindo, os conceitos de Oriente e Ocidente são uma
invenção que deveria ser eliminada e que possuiria, como única utilidade prá-
tica, a legitimação da relação de superioridade do Ocidente sobre o Oriente.

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Anotações sobre a história da oposição conceitual entre Ocidente e Oriente


621
RESPOSTA IMUNE À LEISHMANIOSE
VISCERAL HUMANA E ASPECTOS
IMUNOPATOLÓGICOS DA COINFECÇÃO
COM HIV

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves*

INTRODUÇÃO

A leishmaniose é causada por protozoários digenéticos1 da família


Trypanosomatidae e do gênero Leishmania. Cada parasita desse gênero
tem morfologia semelhante, porém não são idênticos entre si, de forma
que a doença pode ser caracterizada por sua diversidade e complexidade,
sendo causada por mais de vinte espécies de Leishmania, as quais são
transmitidas por cerca de trinta diferentes espécies de flebotomíneos
(CHAPPIUS et al., 2007). A leishmaniose pode ser dividida em três gru-
pos distintos: leishmaniose tegumentar cutânea, leishmaniose tegumentar
mucocutânea e leishmaniose visceral (ALVAR et al., 2008).
Os casos de leishmaniose distribuem-se mundialmente, so-
bretudo nas áreas próximas ao Mediterrâneo, bem como em países
da América, Ásia, África, Oriente Médio e Europa (PALATINCK-DE-

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Análises Clínicas (2009-2011). Atualmente, cursa Odontologia na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de
curso, contou com a orientação da professora-pesquisadora Flávia Coelho Ribeiro (doutora em
Pesquisa Clínica em Animais), do Laboratório de Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais de
Saúde (Latec) e com a coorientação de Elisângela Oliveira de Freitas (doutoranda em Microbiologia e
Imunologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: thayanneofg@yahoo.com.br.
1
Protozoários digenéticos são aqueles que completam o seu ciclo de vida passando por, pelo me-
nos, dois hospedeiros.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
623
SOUZA et al,, 2009). Aparecem em 88 países desses continentes, sendo
que 72 deles são países em desenvolvimento (CARNAÚBA JUNIOR et
al., 2009). Nesses últimos, a leishmaniose é considerada doença endê-
mica, e 90% dos episódios da doença estão concentradas em cinco pa-
íses: Índia, Bangladesh, Nepal, Sudão e Brasil (MARQUES et al., 2007).
Novos casos de leishmaniose são registrados anualmente, de
maneira que existe a estimativa de que, atualmente, exista uma prevalência
de 12 milhões de casos de leishmaniose no mundo (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2013). O número de novos casos anuais da doença gira
em torno de 2 milhões, dos quais 500 mil casos são de leishmaniose visceral
de 1 a 1,5 milhão de casos são de leishmaniose tegumentar. No Brasil, são
reportados anualmente de 2.500 a 5.000 novos casos de leishmaniose visceral
(CARNAÚBA JUNIOR et al., 2009), sendo que, até 1993, aproximadamente
90% dos casos de leishmaniose visceral humana ocorriam na região Nordeste.
Em 2002, 64,02% dos casos correspondiam ao Nordeste, tendo a doença
se difundido para o Norte (14,12%), o Centro-Oeste (8,22%) e o Sudeste
(13,63%). Além disso, o Brasil teve um total de 50.060 casos de leishmaniose
visceral entre 1990 e 2006, o que representa cerca de 90% do total de casos
registrados nas Américas. Entre 2000 e 2006, por sua vez, houve um aumento
de aproximadamente 3.362 casos no país (NICO, 2010).

CARACTERÍSTICAS DA LEISHMANIOSE

O gênero Leishmania possui um ciclo biológico heteroxênico,2


apresentando durante o seu desenvolvimento dois estágios: promastigo-
tas e amastigotas. A promastigota é uma forma flagelada extracelular,
móvel e alongada, com 10-20 µm; são encontradas no tubo digestivo das
fêmeas hematófagas de flebotomíneo do gênero Plebotomus, no Velho
Mundo, e do gênero Lutzomyia, no Novo Mundo. Por sua vez, as amas-
tigotas possuem forma arredondada, com diâmetro de 3-7 µm, e intra-

2
Heteroxênico é sinônimo de digenético, isto é, corresponde a protozoários que completam o seu
ciclo de vida passando por pelo menos dois hospedeiros.

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


624
celular, e se desenvolvem no sistema fagocítico3 mononuclear (SFM) do
hospedeiro (BACELLAR e CARVALHO, 2005; CHAPPIUS et al., 2007).
As formas promastigotas da Leishmania são inoculadas na pele do
hospedeiro vertebrado juntamente com a saliva do flebotomíneo, no mo-
mento do repasto sanguíneo do vetor, e são fagocitadas pelas células
do SFM (macrófagos, monócitos, neutrófilos e células dendríticas4), dife-
renciando-se nas formas amastigotas. Os parasitas intracelulares, então,
se multiplicam por divisões binárias e conseguem romper os macrófagos
infectados. Ao romperem essas células, as amastigotas são liberadas, in-
fectando outros macrófagos e fagócitos, adquirindo uma localização final
na pele, no baço, no fígado, na medula óssea e nos linfonodos (LIESE,
SCHLEICHER e BOGDAN, 2008; MARQUES et al., 2007).
O ciclo é completado quando flebotomíneos realizam o repasto
sanguíneo em hospedeiros vertebrados infectados e recebem as formas
amastigotas da Leishmania. Nesse caso, as amastigotas atingem o tubo
digestório do vetor, onde, após várias etapas, diferenciam-se em pro-
mastigotas metacíclicas, fase infectiva do parasito. Portanto, é durante
o repasto sanguíneo em mamíferos que os flebotomíneos inoculam os
parasitas juntamente com a saliva, provocando assim, a infecção (REY,
2001; LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN, 2008; NICO, 2010).

3
O sistema fagocítico mononuclear responsabiliza-se por grande parte da imunidade celular,
atuando na defesa contra microrganismos, incluindo bactérias, fungos, vírus, parasitas e corpos
estranhos, bem como na remoção de células mortas e partículas inaladas, entre outros.
4
São células do sistema imunológico cuja principal função é o reconhecimento inicial de antígenos,
seu processamento e apresentação para linfócitos T.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
625
Figura 1. Ciclo digenético da leishmaniose.
Fonte: Centers for Disease Control and Prevention, 2012.

São inúmeras as espécies de Leishmania capazes de infectar o ho-


mem. A interação entre o parasita e o hospedeiro delineará a infecção re-
sultante e a sua evolução. Além disso, as diferentes manifestações clínicas
dependerão das complexas interações resultantes da invasividade, dos tro-
pismos e da patogenicidade do parasita, como também da suscetibilidade
genética e da resposta imunológica do indivíduo (ROBERTS, HANDMAN
e FOOTE, 2000; LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN, 2008).
Os pacientes que desenvolvem a leishmaniose visceral apresen-
tam acometimento do fígado, baço, medula óssea e tecidos linfoides.
O agravamento dos casos clínicos de leishmaniose visceral está vin-
culado à imunodepressão determinada pela doença e à possibilidade
de que ela assuma formas graves ou letais quando concomitante com
quadros de carência nutricional. Pode resultar em morte se não tratada
precocemente. As espécies de parasitas que causam a leishmaniose vis-
ceral são L. donovani, L. infantum e L. chagasi (CHAPPIUS et al., 2007).
No Brasil, a leishmaniose visceral, também chamada de calazar (que
em híndi significa peste negra), atinge praticamente todas as regiões, sendo
o Nordeste a área mais afetada (REY, 2001). Esse espectro da doença
no Novo Mundo, e principalmente no Brasil, é causado por L. chagasi, enquan-

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


626
to no Velho Mundo é provocada predominantemente pela L. infantum (BRASIL,
2007). Contrariamente às espécies de Leishmania que causam a leishmanio-
se cutânea, a L. donovani e a L. infantum (chagasi) desenvolvem um espec-
tro sistêmico da doença que se caracteriza pelo viscerotropismo (afinidade
pelas vísceras) do parasita, gerando a hepatoesplenomegalia,5 e constituindo
a forma mais severa da leishmaniose: pode levar à morte se não tratada rapi-
damente (ENGWERDA, ATO e KAYE, 2004).
Originalmente, os ambientes propícios à disseminação da leishma-
niose visceral são aqueles com baixo nível socioeconômico, situação de
pobreza, saneamento básico precário e desnutrição frequente. No en-
tanto, o crescente processo de urbanização, o desmatamento e a migra-
ção têm acarretado a expansão das áreas endêmicas da leishmaniose
visceral e o surgimento de novos casos da doença, sobretudo nos centros
urbanos (RABELLO, ORSINI e DISCH, 2003; NICO, 2010).

ASPECTOS DA COINFECÇÃO LEISHMANIOSE


VISCERAL/HIV

Em relação ao vírus da imunodeficiência adquirida (HIV, do inglês


Human Immunodeficiency Virus), de acordo com os dados da Organiza-
ção Mundial de Saúde (OMS), estima-se que, no mundo, 39,5 milhões de
pessoas são portadores do vírus HIV, sendo que um terço dessa popula-
ção vive em áreas endêmicas de leishmaniose visceral (WORLD HEALTH
ORGANIZATION��������������������������������������������������������
, 2010). O período entre a aquisição do HIV e a manifes-
tação da síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS, do inglês Acquired
Immunodeficiency Syndrome) pode durar anos, uma vez que os indivíduos po-
dem permanecer assintomáticos. Entretanto, o indivíduo portador do HIV está
constantemente em risco em relação a infecções oportunistas, podendo a
leishmaniose visceral ser caracterizada como uma delas (SANTOS-OLIVEIRA
et al., 2010). Nesse caso, o HIV modifica o curso natural da leishmaniose,
isto é, a infecção por HIV aumenta as chances de desenvolvimento da leish-

5
Aumento no tamanho do fígado e do baço.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
627
maniose visceral em áreas endêmicas e, além disso, reduz a possibilidade
de uma resposta terapêutica e aumenta significativamente a probabi-
lidade de reincidências da leishmaniose visceral (MARQUES et al., 2007;
ALVAR et al., 2008).
Os primeiros casos de coinfecção leishmaniose visceral/HIV fo-
ram notificados na década de 1980 em diversas partes da Europa,
principalmente na Espanha, Itália, França e Portugal (MARQUES et al.,
2007). A maioria dos casos descritos na Europa, porém, foi observada
em pacientes usuários de drogas injetáveis. Dessa maneira, existe a pos-
sibilidade de que a coinfecção seja causada pelo contato de seringas con-
taminadas pelo vírus HIV com sangue infectado por Leishmania (RUSSO et
al., 2003; SANTOS-OLIVEIRA et al., 2010).
A coinfecção leishmaniose visceral/HIV é registrada em aproximada-
mente 2 a 9% de todos os casos de leishmaniose visceral identificados em
países endêmicos, sendo que essa proporção poderá aumentar significati-
vamente. No entanto, a taxa de indivíduos coinfectados é considerada in-
determinada, pelo fato de a leishmaniose visceral acometer, principalmente,
as populações negligenciadas e também por não ser caracterizada como
uma doença definidora da AIDS, o que acarreta a sua não notificação
(MARQUES et al., 2007; ALVAR et al., 2008).
A resposta imune celular é considerada o maior mecanismo de
defesa contra a leishmaniose e, por isso, o estado imunológico do indi-
víduo pode determinar tanto a regressão espontânea da doença quanto
o desenvolvimento progressivo dela (SANTOS-OLIVEIRA et al., 2010).
Com o desenvolvimento da leishmaniose visceral, desenvolvem-se, con-
sequentemente, as condições favoráveis para a progressão clínica dos
pacientes infectados pelo vírus HIV. Sendo assim, o aumento da carga
viral no organismo é responsável pelo aumento das taxas de mortalida-
de apresentadas pelos pacientes acometidos pela coinfecção leishma-
niose visceral/HIV (OLIVIER et al., 2003).
É importante destacar que a associação entre a leishmaniose visce-
ral e o vírus do HIV exibe um efeito cumulativo na imunodepressão dos in-
divíduos acometidos pela coinfecção, apresentando uma evolução clínica

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


628
diferenciada. Assim, pacientes coinfectados apresentam contagens muito
baixas de linfócitos TCD4+, o que consequentemente fará que os indiví-
duos afetados pelo vírus HIV apresentem leishmaniose visceral persistente.
Essa, então, poderá ser subclínica, assintomática, por longos períodos ou,
como na maioria dos casos, pode levar o indivíduo a óbito (MARQUES et
al., 2007).

RESPOSTA IMUNE À LEISHMANIOSE


VISCERAL AMERICANA

Nos pacientes que apresentam desenvolvimento da leishmaniose


visceral ocorre diminuição da resposta imune celular contra a Leishmania,
diminuição que, por sua vez, está relacionada com a queda na prolifera-
ção linfocitária e na sua capacidade de produzir interferon-gama (IFN-γ).6
Portanto, os pacientes portadores de leishmaniose visceral apresentam
teste de hipersensibilidade tardia negativo, e as células mononucleares
presentes no sangue periférico não produzem IFN-γ, IL-2 e IL-12, 7 quando
em contato com antígenos do parasita (BACELLAR e CARVALHO, 2005;
McFARLANE et al., 2008). Sendo assim, a resistência ao parasita está
vinculada à produção de IFN-γ pelas células TCD4+8 da linhagem Th1, 9
as quais são estimuladas pela produção de IL-12. Por sua vez, a suscetibili-
dade à e, portanto, a multiplicação e a disseminação da Leishmania, estão
relacionadas com a progressão da resposta imune Th2,10 que produz IL-4,
6
A molécula de interferon-gama, secretada por determinadas células T ativadas, é importante no
combate a agentes nocivos ao organismo, bem como está envolvida no processo de proliferação,
diferenciação e resposta dos linfócitos B e T.
7
As interleucinas (IL-1 a IL-17) correspondem a um grande grupo de citocinas sintetizadas por
linfócitos T, fagócitos mononucleares e células teciduais. Possuem uma variedade de funções, de
modo que cada interleucina atua sobre um grupo limitado e específico de células que expressam
receptores específicos.
8
Também conhecidas como linfócitos T auxiliares. São responsáveis por coordenar a resposta
imune específica, logo respondem a diferentes perfis de citocinas e direcionam para diferentes
padrões de funções efetoras.
9
É um grupo de linfócitos T relacionado a respostas inflamatórias mediadas por células; liberam
principalmente as citocinas IFN-γ, TNF-β e IL-2.
10
É um grupo de linfócitos T que estimula a produção de anticorpos, principalmente IgE; caracteriza-se
pela produção de IL-4 e IL-5 e também pelo controle de respostas alérgicas.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
629
IL-5 e IL-10, interleucinas que, nessa doença, são as citocinas responsáveis
pela imunodepressão do indivíduo (BACELLAR e CARVALHO, 2005).

MECANISMOS DA RESPOSTA INATA NO COMBATE


À LEISHMANIA

Apesar de a resposta imune adaptativa ser essencial para a destruição


da Leishmania, a resposta imune inata também exerce um papel importante
na resistência do hospedeiro contra infecções por parasitas intracelulares.
Nessa perspectiva, a resposta inata poderia atuar tanto no controle do cresci-
mento do patógeno durante os estágios iniciais da infecção quanto na li-
beração de citocinas para o microambiente onde as células T específicas
para o parasita se encontram (PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005). Des-
sa maneira, células imunes (macrófagos, células dendríticas, células natural
killers (NK)11 e células CD4+ e CD8+12), citocinas (IFN-γ e IL-12) e moléculas
efetoras da produção de óxido nítrico (NO) por indução da sintetase de óxido
nítrico são os componentes fundamentais para a resposta imune ao parasita
(LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN, 2008).
As células encontradas na primeira fase da infecção são respon-
sáveis pela resposta inespecífica – isto é, pela resposta inata do orga-
nismo – e podem influenciar no desenvolvimento da resistência ou da
suscetibilidade do indivíduo à doença (BACELLAR e CARVALHO, 2005).
Entre as células que desempenham uma função contra os parasitas da
Leishmania, estão os monócitos/macrófagos, os neutrófilos, os eosinó-
filos, as células NK e os mastócitos (LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN,
2008). Dentre essas células, os neutrófilos são responsáveis, principal-
mente, pela diminuição da carga parasitária de Leishmania nas células
do baço (PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005).

11
São células participantes da imunidade inata. Destroem células que não expressam MHC de classe I,
como células tumorais ou infectadas por vírus.
12
Também chamados de linfócitos T citotóxicos. São responsáveis pela destruição de agentes nocivos
ao organismo mediante a liberação de grânulos contendo proteínas que danificam as células-alvo.

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


630
Para o desenvolvimento de uma resposta imune eficaz contra a
Leishmania, inicialmente os estímulos gerados pela presença do parasita na
pele resultarão na migração de neutrófilos, eosinófilos e células NK para o sítio
de infecção. Essa indução pode ser direta, quando as moléculas da própria
Leishmania estimulam a chegada dos neutrófilos e eosinófilos, ou indireta,
quando o parasita estimula a produção de citocinas, como a IL-8, ou proteínas
inflamatórias (MIP-α e MIP-β) e quimiotáticas (MCP-1) dos macrófagos. Essas
citocinas, portanto, estimularão, respectivamente, a migração de neutrófilos,
células NK e monócitos (BONILLA-ESCOBAR, 2005).
As células NK, por exemplo, desempenham importantes funções na
resposta imune à leishmaniose visceral, sendo fundamental para a interli-
gação entre a resposta imune inata e a resposta adaptativa mediada por
células. Nesse caso, as células NK estimulam a produção do fator de necro-
se tumoral (TNF-α) e de IFN-γ, que são as principais citocinas no estímulo
às funções efetoras dos macrófagos e no desenvolvimento da resposta Th1
(PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005).
Por sua vez, os neutrófilos são as células essenciais para o início de
uma resposta inflamatória e para a destruição de diferentes microrganismos
invasores, por intermediários de oxigênio ou pela liberação de enzimas lí-
ticas armazenadas em seus grânulos. Além disso, durante a resposta infla-
matória, o neutrófilo é responsável pela liberação de citocinas e quimiocinas
capazes de recrutarem células apresentadoras de antígenos para o sítio de
infecção (McFARLANE et al., 2008).
Durante o repasto sanguíneo da fêmea hematófaga de flebotomíneo,
ocorre a inoculação das formas promastigotas metacíclicas da Leishmania no
hospedeiro. Sendo assim, o parasita se adere a um fagócito por meio de
receptores presentes em sua superfície celular e, após ser fagocitado, per-
manece dentro do fagosossomo.13 Esse, em seguida, é associado a vários
lisossomos para destruir o patógeno, de maneira que a Leishmania apresenta
todo o maquinário necessário para a destruição da Leishmania (HANDMAN
e BULLEN, 2002).

13
Estrutura citoplasmática que armazena o antígeno fagocitado.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
631
As formas promastigotas são fagocitadas, inicialmente, por neutrófilos.
Essas células são as primeiras a migrar para o local de infecção, e podem ser
destruídas pela ação de produtos do metabolismo oxidativo – como o peró-
xido de hidrogênio (H2O2) –, atividade enzimática e produção de óxido nítrico
(NO). Os neutrófilos infectados começam a secretar quimiocinas como a IL-8 e
MIP-1β, moléculas importantes para atrair mais neutrófilos e macrófagos para
o sítio de infecção (BACELLAR e CARVALHO, 2005).
Dentro do fagolisossomo14 dos macrófagos, principalmente, a
Leishmania sofre uma série de alterações bioquímicas e metabólicas,
mediante as quais se transforma na forma amastigota intracelular. Nesse
caso, a Leishmania é capaz de sobreviver no meio intracelular, pois resiste às
enzimas microbicidas e ao pH ácido do meio. Pode também inibir a fusão
do vacúolo15 com o fagolisossomo e, além disso, aproveitar os nutrientes que
entram na célula para a sua sobrevivência. Ou seja, a Leishmania desenvolve
mecanismos de escape para a atividade microbicida do macrófago, de
maneira a proliferar-se e romper os macrófagos, a fim de infectar outras
células, disseminando a infecção (HANDMAN e BULLEN, 2002).
O controle da leishmaniose visceral é dependente da imunidade
mediada por células, porém, dentre as células fagocitárias, os macrófagos
apresentam duas características distintas e opostas durante a instalação
intracelular da Leishmania. De um lado, são as principais células respon-
sáveis pelo controle e destruição dos protozoários parasitas intracelulares
por meio de mecanismos oxidativos ou não oxidativos. De outro, funcio-
nam como hospedeiros para a Leishmania, proporcionando um ambiente
celular estável que permite a sobrevivência e a proliferação dessa e, con-
sequentemente, a permanência e disseminação da infecção (BACELLAR e
CARVALHO, 2005).
Nessa perspectiva, para controlar a proliferação intracelular da
Leishmania, torna-se indispensável à produção de óxido nítrico pela óxido
nítrico sintetase (iNOS), uma vez que a Leishmania é suscetível aos reati-
vos intermediários de nitrogênio gerados por neutrófilos e macrófagos. A
iNOS é estimulada, principalmente, pela liberação de IFN-γ, o qual esti-
mula a ação microbicida mediada pelo NO. Assim, a liberação de NO

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


632
acarreta a morte das Leishmanias que parasitam os macrófagos e durante
o desenvolvimento da leishmaniose visceral a iNOS é fundamental para o
controle da carga parasitária no fígado (BACELLAR e CARVALHO, 2005;
LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN, 2008).
Além disso, a morte programada da célula (apoptose) é um pro-
cesso vantajoso para o organismo hospedeiro, isto é, as células fago-
cíticas evitariam a sobrevivência dos parasitas em seu interior por um
tempo muito prolongado, além de diminuírem os danos aos tecidos pro-
vocados por suas degranulações. Entretanto, a apoptose pode ser indu-
zida ou retardada por estímulos produzidos pelos patógenos. No caso
da leishmaniose, tanto a presença intracelular do parasita quanto os
seus constituintes podem inibir ou retardar a apoptose dos macrófagos.
Desse modo, os parasitas sobrevivem por mais tempo e podem infectar
outras populações celulares (PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005).
A atividade leishmanicida do macrófago pode ser influenciada pela
produção do fator de crescimento (TGF-β). Essa citocina está relacionada com
inibição das atividades dos macrófagos, diminuição da produção de IFN-γ e
redução na expressão de moléculas de MHC II.16 Além disso, está relaciona-
do com a supressão da produção de NO em macrófagos infectados por
Leishmania, ou seja, favorece o desenvolvimento da infecção (BACELLAR
e CARVALHO, 2005).
Níveis de NO produzidos por macrófagos ativados por IFN-γ ou pelo fa-
tor de necrose tumoral alfa (TNF-α) estão relacionados com a resistência à infec-
ção. Por outra parte, os não possuidores do gene de iNOS não têm capacidade
de controlá-la. Logo, percebe-se que os macrófagos e as células NK possuem
funções importantes no combate à Leishmania, isto é, a produção de IL-12 por
macrófagos é capaz de estimular a citotoxicidade e a produção de IFN-γ pelas
células NK, além de favorecer o desenvolvimento da imunidade mediada
por células, nesse caso a Th1 (PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005).

16
O complexo principal de histocompatibilidade (MHC) da classe II está envolvido na apresentação
de antígenos, de forma que expõe na superfície das células apresentadoras de antígenos os epítopos
a serem reconhecidos por linfócitos T.

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
633
MECANISMOS DE ESCAPE DO PARASITA

A Leishmania consegue suportar, inibir ou controlar a atividade leishma-


nicida do macrófago e, sob determinadas circunstâncias, pode dificultar a indu-
ção das respostas imunes inata e adaptativa (TRIPATHI, SINGH e NAIK, 2007).
Além de sobreviver e se desenvolver no interior de macrófagos, como outros
patógenos, a Leishmania é capaz de desenvolver mecanismos peculiares para
a sua sobrevivência no interior celular e, portanto, manter o seu ciclo de vida.
Nessa perspectiva, torna-se necessário que o parasita resista não ape-
nas às condições adversas encontradas no flebotomíneo, mas também ao
sistema imune do hospedeiro antes de entrar no macrófago. Logo, para im-
pedir a sua destruição, a Leishmania apresenta em sua superfície celular mo-
léculas de lipofosfoglicano (LPG), metaloprotease gp63 e vários receptores
que facilitam a sua endocitose. Em seguida, a Leishmania é capaz de impedir
a sua destruição no fagolisossomo do macrófago, por meio de adaptações
que inibem os mecanismos de defesa celular (CUNNINGHAM, 2002) (fig. 2).

Figura 2. Mecanismos de escape utilizados pela Leishmania.


Fonte: Reproduzido de Bogdan et al., 1996.

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


634
Um dos primeiros mecanismos de resposta imune à Leishmania é a ati-
vação do sistema complemento. Apesar de as promastigotas metacíclicas não
apresentarem resistência à lise por esse mecanismo, elas conseguem utilizá-
lo para a entrada no macrófago, uma vez que os macrófagos reconhecem os
receptores do complemento. Nesse caso, as moléculas de C3b são deposita-
das na superfície celular do parasita, mas as longas moléculas de LPG evitam
que o complexo de ataque à membrana (C5b-9) seja formado na membrana
das promastigotas e, consequentemente, que as Leishmanias sejam destruídas
(CUNNINGHAM, 2002).
Outro fator pode ser encontrado no momento de inoculação, pois
a saliva do inseto vetor tem papel essencial no processo inflamatório: au-
menta a vasodilatação e o fluxo sanguíneo, além de apresentar peptídeos
que inibem a produção de TNF-α pelos macrófagos, reduzindo a sua ca-
pacidade de liberação de NO.
Usando diversos receptores, as promastigotas podem também entrar
nas células dendríticas da epiderme, nas quais ocorrerá a transformação
para as formas amastigotas. Apesar de os parasitas não conseguirem se
multiplicar nessas células, elas fornecem ambiente favorável à sua sobrevi-
vência, pois não produzem NO (CUNNINGHAM, 2002).

MECANISMOS DA RESPOSTA ADAPTATIVA CONTRA


A LEISHMANIA

No processo de desenvolvimento de uma resposta imune específica


para a Leishmania, é essencial que as células inatas apresentem os epítopos
do patógeno para os linfócitos T. No caso da leishmaniose visceral, uma apre-
sentação de antígenos adequada estimulará a proliferação de linfócitos TCD4+
da subpopulação Th1, e, consequentemente, ativará os macrófagos que vão
controlar a infecção. Contudo, o parasita pode apresentar mecanismos de
escape que, nesse caso, interferem na apresentação de antígenos e no funcio-
namento dos macrófagos, isso é, induzem uma menor expressão, menor apre-
sentação ou maior degradação do MHC durante a apresentação de antígenos
(BONILLA-ESCOBAR, 2005).

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
635
A ausência de células T implica o desenvolvimento da leishmaniose após
a inoculação do parasita no hospedeiro, ao passo que a presença de células
T normais favorece a resistência. Sendo assim, na resposta imune adaptativa
à Leishmania, as células TCD4+ têm papel fundamental na resistência; já as
células TCD8+ participam mais efetivamente da memória imunológica do que
da eliminação do parasita (GOTO e LINDOSO, 2004; TRIPATHI, SINGH
e NAIK, 2007).
A IL-12 é a principal citocina para a progressão de uma resposta imune
protetora contra a Leishmania e para o controle e cura da infecção, sendo
fundamental no desencadeamento das atividades das células NK e, portanto,
no controle na sobrevivência do parasita (GOTO e LINDOSO, 2004; LIESE,
SCHLEICHER e BOGDAN, 2008).
Existem diversos mecanismos relacionados à imunidade contra as
leishmanioses. No caso da leishmaniose visceral, os pacientes resistentes
à infecção possuem resposta imune baseada no aumento da resposta lin-
foproliferativa de células TCD4+ e TCD8+, e na produção de IL-2, IFN-γ e
IL-12, estando esta resposta também ligada à produção do TGF-β. Por ou-
tra parte, a suscetibilidade à leishmaniose está vinculada à resposta imune
mediada pela linhagem Th2 e, consequentemente, pela produção de IL-4
e IL-10, que são citocinas mediadoras das alterações imunológicas obser-
vadas na leishmaniose visceral (GOTO e LINDOSO, 2004; BACELLAR e
CARVALHO, 2005; McFARLANE et al., 2008).
Dentre as diferentes respostas imunes apresentadas pelos indivíduos
acometidos por leishmaniose visceral, tem-se que os pacientes assintomáti-
cos desenvolvem melhores mecanismos antiparasitários, estando associados
à proteção contra a doença e à ausência de sinais e sintomas clínicos. Em
outros casos, os indivíduos curados apresentam aumento nas taxas de neu-
trófilos e células NK, que estão ligados ao aumento de monócitos e da pro-
dução de IL-12. Sendo assim, pode-se perceber a existência de uma relação
entre as citocinas e as células da resposta imune inata com certos fatores da
resposta adaptativa que possibilitam ou a criação de um ambiente de células
específicas contra a Leishmania ou a proliferação do parasita (PERUHYPE-
MAGALHÃES et al., 2005).

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


636
Em pacientes com leishmaniose visceral ativa, a forma clínica da
doença será determinada de acordo com a resposta imune apresen-
tada pelo indivíduo. Logo, a infecção sistêmica é caracterizada pela
disseminação da Leishmania pelos linfonodos, baço, fígado, medula óssea
e outros órgãos e aumento na quantidade de anticorpos circulantes. Além
disso, há ausência da resposta mediada por células Th1, uma diminuição
na produção de IL-12, IFN-γ e alta produção de IL-4 e IL-10. Sendo assim,
apresentam inchaço do fígado e do baço (hepatoesplenomegalia), que
são sinais característicos da doença e consequência do aumento da
carga parasitária nesses órgãos (PERUHYPE-MAGALHÃES et al., 2005;
TRIPATHI, SINGH e NAIK, 2007).
Por sua vez, em indivíduos assintomáticos encontrados em regiões en-
dêmicas, é observado o desenvolvimento de uma resposta Th1 protetora e
permanente, de maneira que a estimulação da produção de IL-12 tem maior
expressividade nesses pacientes e naqueles que foram curados da doença, ao
contrário dos pacientes que apresentam a forma ativa da doença (PERUHYPE-
MAGALHÃES et al., 2005; LIESE, SCHLEICHER e BOGDAN, 2008).
Após a cura, os níveis de IFN-γ, IL-4 e IL-10 são mantidos,
sugerindo uma coexistência das respostas imunes Th1 e TH2. Apesar
de a expressão de IL-10 estar associada às propriedades inibitórias dos
macrófagos do hospedeiro, o aumento de sua expressão, nesse caso,
pode indicar um papel de balanceamento. Ou seja, esse aumento impede
a extrema polarização da resposta imune e, consequentemente, diminui os
danos teciduais (TRIPATHI, SINGH e NAIK, 2007).
O resultado da infecção por Leishmania é determinado pelo equilí-
brio entre as duas subpopulações de células T específicas para o antígeno.
Assim, as infecções por espécies do parasita que provocam a leishmaniose
visceral apresentam desenvolvimento diferenciado, podendo resultar em
uma infecção subclínica, com a presença de uma imunidade protetora, ou
progredir para a doença clínica, que pode ser fatal quando não tratada
rapidamente (TRIPATHI, SINGH e NAIK, 2007). Sendo assim, os fatores e
as manifestações clínicas da doença serão determinados por diferentes ca-
racterísticas do hospedeiro e do parasita, as quais, por sua vez, podem es-

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
637
tar relacionadas à carga genética do indivíduo, à virulência da Leishmania
e à sua espécie, ou à área de inoculação do parasita (ALVAR et al., 2008).

ASPECTOS IMUNOPATOLÓGICOS DA COINFECÇÃO


LEISHMANIOSE VISCERAL/HIV

A leishmaniose é considerada um problema de saúde pública,


sobretudo nas áreas tropicais e subtropicais do mundo, de modo que as
maiores taxas de indivíduos apresentando a coinfecção �����������������
leishmaniose�����
vis-
ceral/HIV distribuem-se por essas áreas. De acordo com dados clínicos
e epidemiológicos, a Leishmania pode ser encontrada como um parasi-
ta oportunista em pacientes imunocomprometidos pela AIDS (OLIVIER
et al., 2003).
A concomitância entre leishmaniose e infecção por HIV foi regis-
trada pela primeira vez em 1985, quando surgiram diversos casos de
coinfecção em 35 países da Europa. A implantação da terapia antirre-
troviral (HAART, do inglês Highly Active Antiretroviral Therapy) acarretou
a diminuição das taxas de indivíduos coinfectados nessas localidades,
porém esses índices têm aumentado em diversas áreas onde essas duas
doenças se sobrepõem (ALVAR et al., 2008). Essa sobreposição ocorre,
sobretudo, como resultado da urbanização da leishmaniose visceral,
mas também pode se originar do excesso de migrantes que adquirem
HIV em áreas urbanas e, em seguida, retornam às zonas rurais onde a
leishmaniose é endêmica (RABELLO, ORSINI e DISCH, 2003; ALVAR et
al., 2008).
Nas áreas endêmicas de leishmaniose, a infecção por HIV amplia os
riscos de pacientes desenvolverem leishmaniose visceral, além de reduzir
as probabilidades de resposta terapêutica e aumentar as chances de rein-
cidências. Ao mesmo tempo, a leishmaniose visceral constrói um ambiente
favorável ao progresso da infecção por HIV no hospedeiro e, consequen-
temente, ao desenvolvimento da AIDS. Dessa forma, a associação entre
a leishmaniose visceral e o HIV atinge as células imunes do indivíduo,

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


638
provocando uma ineficiência da resposta imunológica e, portanto, o de-
senvolvimento da coinfecção (ALVAR et al., 2008) (fig. 3).

Figura 3. Sobrevivência de pacientes da Catania (Itália)


coinfectados com leishmaniose visceral/HIV (I) e pacientes
com AIDS e sem leishmaniose viral (II) que receberam tratamento.
Fonte: Reproduzido de Russo et al., 2003.

A existência de uma coinfecção do vírus HIV com determinados micror-


ganismos, inclusive com os parasitas de Leishmania, pode acarretar a progres-
são de uma patogenia direta e a sua morbidade. Além disso, pode funcionar
como um importante e ativo componente para o desenvolvimento da infecção
por HIV em direção à AIDS. O vírus apresenta um grande período de latên-
cia, de modo que o indivíduo, mesmo sem desenvolver a AIDS, vai apresentar
variadas e repetidas infecções oportunistas, por causa do seu estado de imu-
nodepressão (OLIVIER et al., 2003).
As infecções oportunistas podem induzir respostas inflamatórias e
ocorrências de sinalização celular no hospedeiro que são capazes de estimular
a replicação viral. Nesse sentido, a ativação celular após a infecção por
patógenos oportunistas pode levar à ativação de determinadas sequências
dos elementos regulatórios (LTR) do HIV-1, os quais podem induzir a
expressão de genes do HIV e, portanto, a aceleração na replicação viral e
o desenvolvimento da doença (OLIVIER et al., 2003).
Durante a coinfecção leishmaniose visceral/HIV, a Leishmania tem os
macrófagos como células-alvo, ao mesmo tempo em que o HIV atinge os
linfócitos TCD4+ e também pode utilizar os macrófagos como veículo de

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
639
disseminação pelo corpo do hospedeiro. Sendo assim, a existência dos dois
patógenos no organismo produz efeitos cumulativos no sistema imune que
favorecem as suas sobrevivências. Nesse caso, a Leishmania, por meio
de seus mecanismos de escape e de suas moléculas de lipofosfoglicanos
(LPG), permite a maior replicação do HIV e a progressão da AIDS, ao mes-
mo tempo em que o HIV debilita o sistema imune, favorecendo a sobrevivên-
cia da Leishmania (ALVAR et al., 2008).
A superfície celular da Leishmania é formada por uma camada de LPG,
além de diversos componentes estruturais que poderiam induzir a replica-
ção viral em diferentes células monocíticas infectadas pelo HIV (ALVAR et al.,
2008). Após a inoculação das promastigotas metacíclicas de Leishmania no
hospedeiro humano, o LPG é o principal glicoconjugado expresso e organi-
zado de maneira a permitir a entrada, a permanência e a sobrevivência do
parasita no espaço intracelular dos macrófagos. Dessa forma, após a endo-
citose do parasita pelo macrófago, a Leishmania perde grande parte de
sua camada de LPG, restando somente componentes intramembranares,
como o núcleo de fosfasitil inositol (core-PI), o qual somente é encontrado
na superfície das formas amastigotas (OLIVIER et al., 2003).
Portanto, quando o parasita se encontra dentro do fagolissomo, a
função do LPG está relacionada à alteração dos componentes de sinaliza-
ção das células do hospedeiro e também à inibição de diversas atividades
macrofágicas, inclusive a produção de radicais oxigenados. Assim, desen-
volvendo diversos mecanismos de escape, e, consequentemente, diminuindo
a capacidade do sistema imune de combater a infecção, a Leishmania con-
tribui diretamente para a sobrevivência do HIV e, portanto, para a imunode-
pressão do indivíduo (OLIVIER et al., 2003).
Durante a coinfecção leishmaniose visceral/HIV, a LPG de Leishmania
acelera o processo de replicação viral dentro das células monocíticas
de um paciente com infecção viral latente; além disso, pode induzir a
transcrição de LTR do HIV e sua replicação nos linfócitos TCD4+ (OLIVIER
et al., 2003). Porém o parasita não interfere diretamente na expressão viral,
mas sim configura o ciclo de vida do vírus mediante fenômenos indiretos
que estimulam a liberação de TNF-α, de IL-1 e pode regular a expressão

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


640
de genes de replicação do HIV pelo fator transcripicional (NF-kβ) (ALVAR
et al., 2008).
Durante a leishmaniose visceral, a imunidade está diretamente relaciona-
da à progressão da infecção, de maneira que a presença de uma resposta lin-
foproliferativa das células Th1 está relacionada à resistência (COTA, SOUSA e
RABELLO, 2011). O desenvolvimento da infecção viral pode gerar a diminuição
ou a ausência de uma imunidade protetora, permitindo assim, a prolifera-
ção da Leishmania nas células do hospedeiro que, consequentemente, atuarão
no estímulo à replicação do HIV ou de seus produtos (OLIVIER et al., 2003).

Quadro 1. Características das infecções concomitantes de Leishmania e HIV.

EFEITOS DA INFECÇÃO POR LEISHMANIA NA INFECÇÃO POR HIV


Causa Consequência
↑ Expressão do gene para a replicação do
↑ Transcrição do LTR do HIV
HIV
↑ Acelera a replicação viral em células
↑ LPG da Leishmania
monocíticas
↑ TNF- α e IL-1 ↑ Expressão do gene de HIV
↑ Expressão do receptor CCR5 +
↑ Infecção por HIV → ↑ carga viral
EFEITOS DA INFECÇÃO DE HIV SOBRE A INFECÇÃO POR LEISHMANIA
Causa Consequência
↑ Sobrevivência de Leishmania
Aparecimento de Leishmania em
↑ Imunossupressão
localizações atípicas
Leishmaniose mais severa
↓ Resposta protetora para patógenos
↓ Resposta Th1 (Th1 → Th2) intracelulares (↓ atividade macrofágica,
↓ produção de citocinas e ↓ fagocitose)
↑ Taxa de reincidências clínicas
↑ Resposta Th2
após tratamento
↑ Suscetibilidade para a
↑ TGF-β (inibidor da resposta imune)
leishmaniose sistêmica

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
641
A imunidade mediada por células é profundamente interrompida pela
infecção por HIV, uma vez que o vírus pode interagir com linfócitos, monócitos,
macrófagos e células B. Isto é, o HIV corrobora com a destruição de células T
e macrófagos que incapacitam o sistema imune do hospedeiro, impedindo
que esse previna e combata diversas infecções oportunistas. Nesse caso, as
taxas de destruição das células TCD4+ estão correlacionadas ao aparecimen-
to das infecções oportunistas e também ao agravamento das manifestações
clínicas (OLIVIER et al., 2003).
Um organismo infectado por HIV pode provocar defeitos no funciona-
mento das células apresentadoras de antígenos do hospedeiro e, portanto,
induzir a secreção de citocinas relacionadas à subpopulação Th2. Como as
respostas eficazes para o controle das infecções dependem frequentemente
da presença de citocinas da subpopulação Th1, o perfil imunológico dos
pacientes torna-se favorável à multiplicação e à disseminação dos parasitas.
Assim, a imunodepressão induzida pela infecção por HIV pode permitir a
progressão de uma infecção latente de Leishmania e, por isso, facilitar o
desenvolvimento da leishmaniose visceral (OLIVIER et al., 2003).
Pacientes coinfectados apresentam altas taxas de CCR5+ circulantes
devido a estímulos da Leishmania. O CCR5+ é o principal receptor do HIV
responsável pela entrada do vírus nas células-alvo, estando também rela-
cionado à expressão de uma alta carga viral e pela progressão acelerada
da infecção do HIV. Entretanto, a replicação viral não é a única conse-
quência da coinfecção, pois nesses pacientes também se observas altas
incidências da disseminação da Leishmania, com o aumento da parasite-
mia do sangue periférico, o que funciona como um indicador do aumento
parasitário incontrolado (ALVAR et al., 2008).
Ambos os microrganismos podem invadir e se proliferar nos macró-
fagos, estabelecendo interações que exacerbem os efeitos das infecções.
Logo, o aumento da carga parasitária ocorre em maiores proporções
durante a concomitância com o HIV do que em uma infecção somente
por Leishmania, uma vez que o vírus causa danos nas funções efetoras
do sistema imunológico e, sobretudo nas atividades macrofágicas, como
a fagocitose, a destruição de patógenos intracelulares e a produção de

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


642
citocinas. Além disso, o ciclo de vida do vírus HIV é caracterizado por um
período de latência e subsequente replicação viral, que permite a proli-
feração de patógenos oportunistas que possam modificar o perfil imuno-
lógico do indivíduo e aumentar as consequências da infecção por HIV.
Assim, a infecção pelo vírus pode estimular a liberação de IL-4 e IL-10 e
diminuir a produção de IFN-γ, IL-2 e IL-12 pelas células monocíticas do
sangue periférico, de maneira que induz a proliferação da linhagem Th2
e, portanto, permite a sobrevivência da Leishmania (ALVAR et al., 2008).
A infecção por Leishmania também está associada a prejuízos às
células do sistema imune e à queda dos índices de células TCD4+ do orga-
nismo. Sendo assim, a resistência e a suscetibilidade do hospedeiro estão
relacionadas, respectivamente, com as respostas Th1 e Th2. Além disso, a
produção de TNF-α auxilia na progressão da infecção viral e é relatada em
indivíduos com leishmaniose visceral ativa. Ou seja, ambas as infecções
geram uma depressão do sistema imune (OLIVIER et al., 2003).
Nessa perspectiva, o desenvolvimento da leishmaniose visceral em
indivíduos imunocompetentes está correlacionada à ativação das células B
(resposta humoral) e consequente supressão das respostas imunes medi-
adas por células, que são eficazes contra o parasita. Este último padrão
de resposta imune é essencial para o processo de recuperação do indi-
víduo e também para a proteção contra outras infecções, de maneira que
é reestabelecido após o sucesso terapêutico. Os pacientes coinfectados
com HIV apresentam menores concentrações de anticorpos antileishmania
e, em muitos casos, maiores taxas de reincidências clínicas de leishmaniose
visceral após o tratamento contra a leishmaniose do que os imunocompe-
tentes (OLIVIER et al., 2003).
As infecções por Leishmania e HIV apresentam características se-
melhantes em relação às mudanças que provocam nas subpopulações de
células monocíticas do hospedeiro. Estas alterações podem ser caracteri-
zadas pela diminuição do número de células TCD4+ e NK, de forma que
os indivíduos coinfectados expressam prejuízos sinérgicos sobre o sistema
imune, mas as consequências da infecção por HIV podem prevalecer sobre
as da leishmaniose visceral (OLIVIER et al., 2003).

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
643
Os índices de células TCD4+ no sangue periférico dos pacientes coin-
fectados são semelhantes àqueles encontrados em indivíduos HIV posi-
tivo/leishmaniose visceral negativo. Além disso, taxas de células TCD8+ apre-
sentam-se elevadas durante a coinfecção após o tratamento da leishmaniose,
indicando que estas células desempenham papel importante na resposta imu-
ne pós-tratamento ou também pode corresponder a uma substituição das
células TCD4+ devido à diminuição desta na circulação (OLIVIER et al., 2003).
As manifestações clínicas dos pacientes coinfectados dependem das
espécies de Leishmania infectantes e das células participantes da resposta
imune do hospedeiro. A infecção por Leishmania pode permanecer as-
sintomática ou apresentar sinais e sintomas que sejam restritos à pele ou
às mucosas (na leishmaniose tegumentar) ou, em outros casos, se distri-
buir pelos sistemas viscerais do corpo (na leishmaniose visceral). Todas as
formas de leishmaniose se configuram como infecções oportunistas em
pacientes com HIV, sendo, no Brasil, 43%, 20% e 37% dos casos de coin-
fecção devido à leishmaniose mucocutânea, cutânea e visceral (RABELLO,
ORSINI e DISCH, 2003; ALVAR et al., 2008) (fig. 4).

Figura 4. Formas clínicas da leishmaniose presentes nos casos de


coinfecção registrados no Brasil em junho de 2002.
Fonte: Reproduzido de Rabello, Orsini e Disch, 2003.

Thayanne Oliveira de Freitas Gonçalves


644
Os pacientes que apresentam leishmaniose em coinfecção com o HIV
têm, geralmente, características clínicas semelhantes às dos indivíduos não
coinfectados como, por exemplo, febre, perda de peso e hepatoesplenome-
galia. A distribuição dos parasitas pelo organismo é parecida com aquela de
imunocompetentes, porém há casos onde a Leishmania pode aparecer em
localizações atípicas como, por exemplo, em tecidos do intestino (ALVAR et
al., 2008; OLIVIER et al., 2003). Além disso, os pacientes podem desen-
volver uma leishmaniose mais severa e mais resistente ao tratamento e, em
alguns casos, desenvolver leishmaniose tegumentar, embora tenham sido
infectados por espécies de Leishmania específicas, causadoras de leishma-
niose visceral (OLIVIER et al., 2003).
Em indivíduos coinfectados, a presença de ambos os patógenos modifi-
ca a resposta imunológica mediante complexos mecanismos que atuam siner-
gicamente para a queda de uma resposta Th1, evidenciando-se, nesses casos,
uma resposta do tipo Th2 (exacerbada pelo vírus) que produz altos níveis de
IL-4 e IL-10. Em indivíduos imunocompetentes, os casos agudos de leishma-
niose visceral respondem satisfatoriamente ao tratamento antileishmanial,
de modo que ocorre uma melhora da infecção e o desaparecimento de si-
nais e sintomas da doença. Porém, em coinfectados esse tratamento é difi-
cultado e, portanto, torna-se necessário um controle frequente da doença
(OLIVIER et al., 2003; COTA, SOUSA e RABELLO, 2011).
Os pacientes que apresentam coinfecção leishmaniose visceral/HIV tam-
bém podem utilizar a HAART para controlar a evolução da infecção pelo HIV.
Nesse caso, o tratamento procura elevar as taxas de células TCD4+ do indiví-
duo, fato que também, em alguns casos, pode impedir o avanço da leishma-
niose visceral. O uso da HAART permite que os pacientes apresentem menores
probabilidades de reincidência da leishmaniose visceral e melhorem suas con-
tagens de células TCD4+ quando comparados com aqueles que não utilizam
a HAART. Nesse caso, o tratamento favorece uma mudança imunológica do
padrão de resposta imune Th2 para Th1 em indivíduos infectados com leish-
maniose visceral/HIV. Ou seja, a HAART controla a proliferação dos microrga-
nismos no hospedeiro com mais eficiência (COTA, SOUSA e RABELLO, 2011).
Indivíduos com HIV que recebem HAART diminuem suas probabilidades
de adquirir outras infecções oportunistas, de maneira que a introdução dessa

Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
645
terapêutica gera uma queda na incidência de leishmaniose visceral e, conse-
quentemente, nas taxas da coinfecção leishmaniose visceral/HIV em algumas
regiões endêmicas, como a Europa (COTA, SOUSA e RABELLO, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resposta imunológica durante a leishmaniose visceral envolve as


células TCD4+ da subpopulação Th2, a qual é induzida por diversos me-
canismos de escape da Leishmania e permite que o parasita sobreviva no
meio intracelular dos macrófagos e se dissemine pelo organismo do indiví-
duo. Por sua vez, o HIV tem as células TCD4+ como alvo para a infecção,
de forma que impede o desenvolvimento de uma resposta imune eficaz.
Dessa forma, a concomitância de infecções por Leishmania e HIV acar-
reta a imunossupressão do paciente e se caracteriza por uma evolução mais
acelerada dos sinais e sintomas clínicos. Isso ocorre, uma vez que cada pa-
tógeno favorece a sobrevivência do outro, potencializando a progressão das
infecções. Durante a coinfecção, a resposta imunológica desencadeada é se-
melhante a dos indivíduos que possuem apenas a leishmaniose visceral, isto é,
o sistema imunológico apresenta uma resposta Th2.
Nesse sentido, a coinfecção leishmaniose visceral/ HIV se apresenta
como um problema de saúde emergente, sobretudo pela urbanização da
leishmaniose e pela ruralização da AIDS. Logo, novas pesquisas devem
ser desenvolvidas visando melhorias quanto à prevenção, ao diagnóstico
precoce e tratamentos eficazes.

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Resposta imune à leishmaniose visceral humana e aspectos imunopatológicos da coinfecção com HIV
649
TERAPIA GÊNICA E BIOÉTICA

Victoria Gomes Pereira dos Santos*

INTRODUÇÃO

Terapia gênica é um procedimento médico que envolve a modificação


genética de células como forma de tratar doenças. Essa técnica, ainda expe-
rimental, visa substituir um gene defeituoso por um gene normal (ou suprimir
sua expressão gênica), por meio de um vetor, na tentativa de remover – ou
reduzir – o efeito do gene com anomalia. No entanto, a remoção de um
gene do organismo não é algo simples de ser realizado (NARDI, TEIXEIRA
e SILVA, 2002).
A técnica da terapia gênica pode ser aplicada de duas maneiras: em
células germinativas – aquelas que podem dar origem aos gametas, que,
no caso do ser humano e dos outros animais, são os espermatozoides e
óvulos; e em suas células-tronco formadoras – ou células somáticas, todas
as outras células que não possuem relação reprodutiva.
O método somático – utilizado para tratar doenças oriundas de diversos
tecidos que não se envolvem na produção de gametas – é dividido em duas
grandes categorias: ex vivo, no qual as células são manipuladas de forma ex-
tracorpórea e depois transplantadas para o corpo do indivíduo, e in vivo, em
que os genes são modificados nas células dentro do corpo, um método extre-

*
Ex-aluna do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Gerência em Serviços de Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Ciências Biológicas na
Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro (UniRio). No trabalho de construção de sua monogra-
fia de conclusão de curso, contou com a orientação dos professores-pesquisadores Ray Luiza Soares
Salgado Müller (Mestre em Educação Profissional em Saúde) e Alexander de Carvalho (mestre em
Filosofia), ambos do Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional em Saúde (Labform).
Contato: vicky.gps25@yahoo.com.br.

Terapia gênica e bioética


651
mamente incomum. A técnica somática é vista como um tratamento médico no
qual se tenta resolver uma anomalia já existente.
O método germinativo, que é realizado antes da formação do indiví-
duo (sendo as modificações necessárias realizadas na fase embrionária), é
considerado por muitos estudiosos um risco para as gerações futuras, por
apresentar alto índice de mortalidade durante o procedimento.
Com o desenvolvimento das pesquisas acerca da geneterapia e com
o aprimoramento do conhecimento sobre a possibilidade de aplicação prá-
tica dessas pesquisas, estima-se ser possível uma manipulação sem riscos
(ou ao menos com baixos riscos) dos genes de uma pessoa, seja para tratar
ou curar uma doença, seja para simples melhoramento genético. Caso fosse
adotado o melhoramento genético como foco de aplicação, seria possível –
com a utilização da técnica de forma correta – alterar características de uma
pessoa, como cor dos olhos ou propensão a determinado tipo físico.
A partir dos estudos das possibilidades de desenvolvimento e aplica-
ção da terapia gênica, bem como de seus riscos laboratoriais e práticos,
surgem incessantes discussões sobre suas consequências. Esses debates
acontecem em torno de riscos puramente fisiológicos – no que diz respei-
to aos danos puramente físicos, sua segurança quanto aos possíveis erros
e efeitos colaterais oriundos da aplicação da técnica – até em relação
às consequências práticas que giram em torno de toda a sociedade –
no que diz respeito aos possíveis danos morais.
O ser humano, membro de uma sociedade composta por diversidades
de opiniões, está submetido a limitações morais e regras preestabelecidas em
nome de um suposto bem comum. Dito isso, a terapia gênica tem sua aplica-
ção limitada não somente pela não completa garantia de segurança e eficácia
quanto a sua aplicação, mas também por discussões e limites éticos que im-
põem o que pode ou não ser feito com esse conhecimento adquirido.
O objetivo geral desta pesquisa foi avaliar os principais aspectos
éticos relacionados ao avanço da engenharia genética. Especificamente,
buscamos nos ater aos avanços envolvendo a engenharia genética que
dizem respeito aos pontos principais em torno do desenvolvimento da te-
rapia gênica.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


652
A pesquisa realizada neste trabalho teve como objetivo explicitar os
avanços do desenvolvimento da terapia gênica e apontar algumas das ques-
tões éticas surgidas em decorrência da aplicação dos mesmos, sem preten-
são de esgotar qualquer discussão a respeito, limitando-se apenas a revisões
bibliográficas de artigos, livros, periódicos e teses já escritas sobre o assunto.

TERAPIA GÊNICA

O primeiro indício de surgimento da engenharia genética aconteceu


em 1973, quando Stanley Cohen e Herbert Boyer fizeram a primeira trans-
ferência genética registrada: inseriu-se um gene de um sapo africano do
gênero Xenopus na bactéria Escherichia coli (WATSON, 2008).
Genética, do grego genno – fazer nascer –, é o ramo da biologia de-
dicado ao estudo da hereditariedade, dos genes e das diferenças entre os or-
ganismos. O monge agostiniano Gregor Mendel é considerado, por mérito, o
pai da genética. Nascido em 1822 em uma família de fazendeiros, aos 21
anos entrou para um mosteiro. Em 1856, iniciou experimentos científicos com
ervilhas e, como resultado desses experimentos, concluiu existirem elementos
autônomos responsáveis pelas características hereditárias.
Mendel, no entanto, não foi pioneiro no que diz respeito ao interesse pelo
estudo genético. Embora essa ciência tenha sido nomeada apenas em 1909
pelo biólogo britânico William Bateson, os gregos – dentre eles Hipócrates e
Aristóteles – já refletiam e buscavam explicações sobre a hereditariedade. Dos
gregos, passando por Mendel, muito foi feito até que se chegasse a Cohen e
Boyer, e muitas teorias sobre hereditariedade e técnicas foram desenvolvidas.
A primeira hipótese que se tem notícia sobre hereditariedade é a pan-
gênese, uma teoria criada por Hipócrates 1 – médico e filósofo grego – por

1
Hipócrates é, ainda, responsável pelo conceito de hereditariedade por caracteres adquiridos, que
diz que qualquer mudança ocorrida durante a vida de um indivíduo pode ser transmitida ao seu des-
cendente. Por exemplo, um homem que apresenta um ganho muscular grande nos braços durante
a fase adulta por utilizar essa parte do corpo para grandes esforços provavelmente teria um filho
com os músculos do braço bem desenvolvidos. Essa hipótese seria desenvolvida, posteriormente,
por Jean-Baptiste de Lamarck.

Terapia gênica e bioética


653
volta de 410 a.C., segundo a qual “a atividade sexual implicava a trans-
ferência de miniaturas dos órgãos do corpo” (WATSON, 2008, p. 19).
Ou seja, para ele, a transmissão de características hereditárias acontecia
como resultado da produção – por todas as partes do corpo – de partícu-
las muito pequenas, uma espécie de “miniórgãos”, chamados gêmulas e
que eram transmitidas no curso da reprodução sexuada.
Cerca de um século após a criação da pangênese de Hipócrates,
outro filósofo grego, Aristóteles, desenvolveu uma teoria razoável sobre
a hereditariedade em que defendia a existência de alguma substância
responsável pela herança genética, substância essa que estaria presente
presente no sêmen do pai. Aristóteles utilizava o termo “sêmen” como re-
lativo à “semente”. Por essa teoria, Aristóteles rejeitava as ideias vigentes
na época, que alegavam causas espirituais e/ou emocionais para explicar
as semelhanças entre pais e filhos.
Aristóteles indagou “por que não admitir diretamente que o sêmen
origina o sangue e a carne, ao invés de afirmar que o sêmen é ele próprio
tanto sangue quanto carne?” (apud BEVERIDGE, 1981, p. 55). Aristóteles tinha
ciência da hipótese, ainda aceita na época, da pangênese e a rejeitou, uma vez
que a teoria de Hipócrates poderia ser coerente para explicar alguns pontos,
mas não todos: um homem com os olhos castanhos provavelmente teria um
filho com olhos castanhos, mas se a cor do cabelo, assim como a dos olhos,
seria transmitida por gêmulas, como explicar que os filhos de um homem com
cabelo grisalho nasçam com o cabelo preto, por exemplo, e não com cabe-
los grisalhos?
No século XVII, surgiu outra abordagem: o chamado “pré-formismo”.
Essa teoria difundia a ideia de que o óvulo ou o espermatozoide (não houve
consenso sobre qual deles) contém um indivíduo completo pré-formado –
o chamado homúnculo. Ou seja, o indivíduo já estaria formado no interior
de um dos gametas e teria apenas que crescer e se desenvolver.
Um ponto interessante do pré-formismo é o que diz respeito às cha-
madas doenças genéticas. Pela pangênese, as doenças genéticas, assim
como qualquer outra característica, seriam transmitidas por meio de gêmu-
las. No pré-formismo, havia inúmeras justificativas para a existência dessas

Victoria Gomes Pereira dos Santos


654
doenças: fossem a manifestação da fúria de Deus ou a interferência de demô-
nios, fossem decorrência da falta ou excesso de algo na “semente” paterna ou,
até mesmo, efeito de algum “mau pensamento” da mãe durante a gravidez.
Os microscópios da época ainda eram precários e a imagem, de má
qualidade; portanto, era difícil a visualização exata do que quer que seja.
No início do século XIX, com o aperfeiçoamento dos microscópios, o pré-
formismo foi, então, rapidamente descartado, uma vez que não foi encon-
trado nenhum homúnculo nos gametas.
A teoria da pangênese, no entanto, perdurou, mesmo com o aperfei-
çoamento dos microscópios. Ela foi mantida com o argumento de que as
gêmulas eram simplesmente pequenas demais para serem vistas, mesmo
com um microscópio.
Essa hipótese foi descartada somente quando August Weismann,
na década de 1870, realizou um experimento relativamente simples: ele
cortou o rabo de algumas gerações sucessivas de ratos. De acordo com a
pangênese, os ratos das gerações seguintes deveriam nascer sem a cauda,
uma vez que não teriam como produzir gêmulas referentes a essa parte do
corpo. Porém não foi o que aconteceu. As gerações seguintes dos ratos
nasceram com rabo, mesmo sendo descendentes de várias gerações de
ratos mutilados, com o que ficou provado que a pangênese não se aplica-
va, e, portanto, não poderia ser sustentada.
As especificidades da hereditariedade só seriam entendidas, de fato,
por Gregor Mendel. Por volta de 1856, Mendel iniciou uma série de expe-
rimentos sobre hereditariedade por meio de um estudo com as ervilhas que
cultivava em um canteiro do jardim do mosteiro. Em seus estudos, Mendel
notou alguns fatores específicos (mais tarde nomeados “genes” pelo dinamar-
quês Wilhelm Johannsen) que ocorrem em pares, sendo que os descendentes
recebem um de cada genitor.
Após a morte de Mendel, os cientistas, contando com os avanços tec-
nológicos para estudar a estrutura celular, nomearam de “cromossomo” os
corpos finos e compridos presentes no interior do núcleo das células. Edwar
Zacharias (1881) provou que os cromossomos contêm o DNA descoberto
por Johann Miescher doze anos antes, a partir do estudo do pus humano.

Terapia gênica e bioética


655
No início do século XX, Walter Sutton, um estudante de medicina da
Universidade de Colúmbia, ao estudar os cromossomos usando como ob-
jeto de análise uma espécie comum de gafanhotos, percebeu que eles ti-
nham alto grau de semelhança com os elementos autônomos de Mendel e
que quase todos eram duplos, mas não todos. Sutton notou que as células
sexuais não apareciam aos pares, o que também se assemelhava às descri-
ções de Mendel quanto às células das ervilhas. Paralelamente na Alemanha,
Theodor Boveri encontrou os mesmos resultados, por vias independentes de
Sutton. Esses estudos levaram à chamada teoria cromossômica da heredita-
riedade de Sutton-Boveri, ou apenas teoria Sutton-Boveri.
Em 1915, o norte-americano Thomas Morgan publica um livro no qual
descreve experimentos com Drosophila (a chamada “mosquinha-da-fruta”) e
mostra que os genes estão dispostos nos cromossomos. Doze anos depois,
Hermann Muller comprova que a exposição de cromossomos a raios X pode
resultar em mutações gênicas.
Descobre-se que o DNA está relacionado à hereditariedade em 1944,
e Chase e Hershey demonstram que o DNA é a estrutura responsável pela
transmissão das características hereditárias, em 1952.
Também em 1952, o britânico Francis Crick e o norte-americano James
Watson decifram a estrutura de dupla hélice do DNA, que lhes rendeu o prê-
mio Nobel de Medicina.
Como dito anteriormente, as pesquisas de Cohen e Boyer marcam
o surgimento da engenharia genética. Segundo Candeias, “falar de enge-
nharia genética2 é caracterizar um conjunto de processos que permitem a
manipulação do genoma de micro-organismos vivos, com a consequente
alteração das capacidades de cada espécie” (1991, p. 3).
Em 1978, o suíço Werner Arber e os norte-americanos Daniel Nathans
e Hamilton Smith ganharam o prêmio Nobel de Medicina por terem isolado
as enzimas de restrição – substâncias capazes de “cortar” o DNA em determi-

2
Ainda de acordo com Candeias (1991, p. 3), as técnicas de engenharia genética começaram a se definir
no início da década de 1970, com a chamada clonagem molecular. A clonagem molecular é a técnica
central da metodologia de DNA recombinante e tem como objetivo obter um elevado número de cópias
de um fragmento gênico de interesse que terá diversas aplicações na área da manipulação genética.
Essa técnica pode ser realizada de duas formas, in vivo e in vitro.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


656
nados pontos, de forma precisa – que, juntamente com a ligase (enzima que
catalisa reações entre duas fitas de DNA), formam a base inicial da tecnologia
do DNA recombinante.3
Iniciou-se, com isso, a chamada era da manipulação genética. A partir
desse momento, a engenharia genética passou a cortar e a modificar molécu-
las de DNA com a utilização de enzimas específicas (WATSON, 2008).
A engenharia genética apresenta inúmeras possibilidades de apli-
cação. Dentre elas, podem-se destacar aplicações na agricultura – se-
leção de plantas desejáveis, a partir da alteração do seu genótipo, por
exemplo – e na pecuária – produção de vacinas e rações balanceadas
com proteínas específicas para o desenvolvimento do animal.
Outra aplicação da engenharia genética é na chamada medicina
forense. Tornou-se possível, por exemplo, determinar a paternidade e pro-
var se o DNA encontrado em uma cena de crime pertence ou não ao
suspeito por meio do método de identificação de DNA fingerprinting.45
Dentre as chamadas aplicações terapêuticas da engenharia genética –
das quais se pode destacar a produção de insulina artificial –, este traba-
lho deter-se-á na chamada terapia gênica, ou geneterapia.
Mesmo que a terapia gênica seja uma técnica ainda experimental
e em fase de aperfeiçoamento, tratá-la como uma ideia extremamente
nova é um equívoco. Segundo Anderson (2011a), as primeiras referências
científicas em torno da realização da terapia gênica voltada para huma-
nos são de 1966, tendo como pensadores originais Edward Tatum – mi-
crobiologista e bioquímico estadunidense – e Joshua Lederberg – médico
estadunidense especializado em biologia molecular.
A década de 1960 foi marcada por discussões acerca do tema, mas
todas elas eram apenas aprendizados teóricos sobre um assunto que ainda
não se havia desenvolvido na prática.
3
Segundo Pierce (2004) apud Andrade (2008), a tecnologia do DNA recombinante é um conjunto de
técnicas para localizar, isolar, alterar e estudar segmentos de DNA. O termo recombinante é devido fre-
quentemente tais técnicas serem usadas para combinar o material genético de fontes distintas.
4
DNA fingerprinting é basicamente a identificação de sequências específicas no DNA humano que
são altamente variáveis e, portanto, são características de cada pessoa. Apesar dessa variabili-
dade que permite a individualização, há semelhanças à medida que o grau de parentesco é mais
próximo, o que permite a identificação de filhos, pais, irmãos etc.

Terapia gênica e bioética


657
Em 1969, Lederberg teve acesso a um artigo na Lancet – uma impor-
tante revista médica – que descrevia duas irmãs alemãs portadoras de argi-
ninemia.5 Lederberg tinha convivido por muitos anos com Stanfield Rogers
e introduziu-o no assunto do artigo. Rogers era um estudioso do vírus de
Shope, causador do papiloma, um tipo de tumor epitelial benigno, numa
espécie de coelho, que, após o estudo, percebeu que os animais infectados
com esse vírus tinham diminuição do nível de arginina do sangue, aparente-
mente sem outros efeitos colaterais.
Na década seguinte, Rogers administrou o vírus de Shope nas duas
meninas alemãs. Foi o primeiro experimento de terapia gênica registrado.
Ele descreveu essas experiências, em 1975, na Academia de Conferências
Científicas de Nova York, em um trabalho intitulado “Questões éticas e cien-
tíficas levantadas para usos humanos da genética molecular” (ANDERSON,
2011a, p. 4). Ele escreveu:

Essas crianças eram epilépticas, espásticas, grosseiramente


retardadas e progressivamente tornando-se pior. Tendo em
conta as experiências de laboratório de quase quarenta anos
antes, parecia valer à pena correr o risco (que não tinha razão
de acreditar que existisse, de qualquer forma) de administrar
o vírus par a as crianças na esperança de substituir suas enzi-
mas geneticamente defeituosas. Como o uso das informações
genéticas de um vírus para substituir aquelas perdidas devido
a uma deficiência nunca tinha sido tentado antes, um cui-
dado extremo foi usado. As crianças com argininemia recebe-
ram uma dose de vírus que havia sido purificado com cloreto
de césio e foi demonstrado por meio de uma microscopia
eletrônica que continha apenas o vírus de Shope. Estudos
imunológicos em culturas de células não revelaram qualquer
outro vírus ou efeitos nocivos [...]. (ROGERS apud ANDERSON,
2011a, p. 5; minha tradução)

5
Também chamada deficiência de arginase, é uma herança autossômica recessiva, distúrbio do
ciclo da ureia, em que uma deficiência da enzima arginase provoca um acúmulo de arginina (um dos
aminoácidos componentes das proteínas dos seres vivos) e de amônia no sangue.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


658
Por diversas razões técnicas e legais, uma dose “terapêutica” do
vírus (que teoricamente corresponderia à cura da doença) não foi admi-
nistrada. A repercussão do caso (que não obteve sucesso) foi grande, e
Rogers não voltou a se envolver com experimentos em humanos. Segundo
Nardi, Teixeira e Silva:

O conhecimento dos genes responsáveis por características normais


ou patológicas permite a plena aplicação dos princípios da medici-
na genômica, que deverá modificar os procedimentos médicos no
diagnóstico e tratamento de várias doenças e onde se inclui a terapia
gênica. (2002, p. 110)

A manipulação do genoma ainda é uma área muito rudimentar da


medicina, sendo praticada, principalmente, em laboratórios de pesquisa com
sua aplicação experimentalmente restrita (LINDEN, 2010). A expectativa dos
cientistas é que, assim como na área comercial – onde já há produtos sendo
vendidos, aprovados para uso médico (PEARSON et al., 2004) –, “a libera-
ção de protocolos e manipulação do genoma para a prática médica e o
respectivo mercado de biológicos avancem cautelosamente ao longo dos pró-
ximos anos” (LINDEN, 2010, p. 31).
No que diz respeito às técnicas laboratoriais, a geneterapia pode
ser aplicada sob duas formas: em métodos somáticos (utilizado para
tratar doenças provenientes de células adultas de distintos tecidos, to-
dos os que não envolvem a produção de gametas) ou germinativos
(utilizado em células gaméticas, aquelas com potencial reprodutivo).
De acordo com Anderson (2011b, p. 1), existem três categorias de
terapia gênica somática: ex vivo, in vivo (as duas grandes categorias prin-
cipais) e in situ.
No procedimento ex vivo (ou in vitro), as células são removidas do corpo e
faz-se cultura das mesmas. Usam-se vetores para inserir nelas o gene isolado
e, por infusão,6 as células tratadas são devolvidas ao organismo. Esse procedi-
mento é feito, geralmente com células do sangue – porque são mais fáceis e
remover e retornar ao organismo –, mas, em determinados casos, escolhem-

6
Ato de administração de fluidos.

Terapia gênica e bioética


659
se células específicas. Por exemplo, no tratamento da hemofilia, é preferível
usar células de um tecido que possibilite a liberação do fator de coagulação
no sangue e, por isso, o uso de células do fígado mostra-se mais apropriadas
(ANDERSON, 2011b; AZEVÊDO, 1997; MENK e VENTURA, 2007).
No in vivo, o gene isolado para suplantar a ação do gene defeituoso
é levado diretamente ao organismo do paciente. Não há exemplos clínicos
desta categoria ainda, mas caso a terapia gênica compra sua promessa
como uma opção terapêutica, procedimentos in vivo devem ser desenvol-
vidos (ANDERSON 2011b; AZEVÊDO, 1997).
Na categoria in situ, o vetor é colocado diretamente nos tecidos afe-
tados. Pode significar uma categoria intermediária entre in vivo e in vitro.
A aplicação da terapia gênica pode ser dividida em “modalidades”. Tanto
doenças hereditárias como as adquiridas podem ser tratadas pela geneterapia.
Como já apresentado, o alvo inicial principal eram as doenças monogênicas,
mas há possibilidades de aplicação da técnica nas chamadas doenças com-
plexas, bem como em tumores e por meio das vacinas de DNA.
As doenças monogênicas – também chamadas de doenças men-
delianas – são relativamente raras, mas, em números, atingem um gran-
de quantitativo mundial. Em parte, as doenças monogênicas são as re-
lativamente mais simples de serem tratadas pela geneterapia: como são
resultado da mutação de apenas um gene específico, após a localização
deste, a introdução de um gene de funcionamento normal que suprimisse
a ação anômala, poderia reverter o quadro clínico.
Atualmente, entretanto, a maioria dos experimentos clínicos da gene-
terapia está voltada para as chamadas doenças complexas, as quais não
são causadas por um único gene, muitas das quais são adquiridas durante a
vida. Essas são as comumente chamadas doenças complexas, poligênicas ou
multifatoriais (porque são transmitidas “em famílias” – ou seja, são, de certa
forma, hereditárias –, mas não apresentam os padrões de transmissão men-
delianos), e as mais conhecidas são doenças cardíacas precoces, diabetes e
asma. Nesses casos, não há cura por meio de procedimentos genéticos, ape-
nas tratamentos paliativos, feitos por intervenções que visam somente o não
desenvolvimento da doença.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


660
Essas intervenções podem ser baseadas no conhecimento de determi-
nantes genéticos de suscetibilidade ou gravidade, ou na oportunidade de alte-
rar mecanismos fundamentais ou a fisiologia das células, dos órgãos ou sis-
temas dos pelas doenças (FLOTTE, 2007 apud LINDEN, 2010). As principais
estratégias são aumentar a resistência celular, estimular sistemas de reparo
ou regeneração, ou ainda recompor características funcionais específicas de
determinados sistemas orgânicos, mediante modulação de genes não neces-
sariamente associados à causa da doença (BAGLEY et al., 2008; LUNDBERG
et al., 2008).
Existem, ainda, as doenças infecciosas, sobre as quais os genes tam-
bém exercem efeito. Embora a maioria das doenças infecciosas tenha como
causa a exposição ambiental, devido a micro-organismos específicos, os
genes podem ser responsáveis pela maior ou menor suscetibilidade ou re-
sistência às infecções microbianas ou determinar as manifestações clínicas
dessas infecções.
No caso dos cânceres, o gene terapêutico tem um caráter diferente:
a eliminação das células tumorais. É o caso no qual se tem as maiores
possibilidades de aplicação da terapia gênica na clínica em curto prazo.
Esse procedimento se dá em duas vias: primeiro, o gene inserido interage
de forma que gere produto prejudicial às células tumorais, que atinge ape-
nas o tumor, e, em outra via, este gene busca despertar a resposta imune
contra o tumor, eliminando-o (MENK e VENTURA, 2007).
Há ainda as vacinas de DNA. Menk e Ventura explicam sua compo-
sição e modo de atuação:

Elas são compostas pela clonagem do gene de um antígeno7 prove-


niente de um patógeno,8 em um plasmídeo bacteriano. Isso possibi-
lita obter esse plasmídeo em grande quantidade a partir do cultivo
de bactérias e purificá-lo (DNA apenas).
Ao ser injetado num tecido, a parte eucariótica desse plasmídeo
expressa a proteína antigênica e gera uma resposta imune, de for-

7
É uma substância ou molécula que, quando introduzida no corpo, desencadeia a produção de um
anticorpo pelo sistema imunológico, que então o mata ou neutraliza-o, já que é reconhecido como
um invasor ao organismo, potencialmente prejudicial.
8
Agente infeccioso – vírus, bactéria ou fungo – que causa doença a seus hospedeiros.

Terapia gênica e bioética


661
ma similar a uma vacina normal composta por antígenos proteicos.
No caso das vacinas de DNA, no entanto, descobriu-se que algu-
mas delas, além de despertar uma resposta imune que protege o
indivíduo contra uma infecção futura (prevenção), podem também
atenuar a sintomatologia de uma infecção em andamento, atuando
como uma vacina terapêutica. (2007, p. 54)

Tanto para as células somáticas quanto para as germinativas, em inser-


ção in vivo ou in vitro, há a necessidade de utilização de vetores para a inserção
do gene funcional no organismo. Isso porque a membrana plasmática de célu-
las eucarióticas, como forma de proteção ao organismo, apresenta uma série
de formas de impedir a entrada de substâncias estranhas à célula e torna difícil
a ocorrência alterações errôneas durante o metabolismo celular.

O vetor ideal possui algumas características altamente desejá-


veis, entre as quais podemos destacar as seguintes: capacidade
de acomodação de um transgene 9 de tamanho ilimitado, baixa
imunogenicidade10 e citotoxidade,11 expressão estável do trans-
gene, direcionamento para tipos específicos de células ou tecidos,
baixo custo, fácil produção e manipulação e ainda possibilida-
de de regular a expressão do gene exógeno no tempo e/ou na
quantidade. Até o presente momento, este vetor não pode ser [...]
obtido. (NARDI, TEIXEIRA e SILVA, 2002, p. 111)

Os vetores mais utilizados são os plasmídeos (que apresentam uma


atuação limitada) e os vírus. Plasmídeos são sequências simples de DNA,
presentes em bactérias, nas quais é possível inserir um gene terapêutico por
técnicas de DNA recombinante (VOSS, 2007). Segundo Nascimento et al.
(1999, p. 13), para que um plasmídeo seja um bom vetor, deve possuir algu-
mas características específicas, dentre elas “possuir um gene que codifica um
produto que distingue a célula transformada da célula não transformada”.

9
É um gene resultante da transferência (natural ou decorrente de alguma técnica de manipulação
genética) de um determinado gene ou material genético de um organismo para outro.
10
Imunogenicidade é a propriedade de ser imunogênico, ou seja, de ter resistência natural (ou
adquirida) a um agente infeccioso ou tóxico. No caso dos vetores, o agente em questão é o gene
inserido em seu organismo.
11
Capacidade de ser citotóxico, ou seja, apresentar tóxicidade para células.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


662
Para vencer a resistência das células à introdução de plasmídeos, é
preciso fragilizar a membrana celular. Isso pode ser feito por diversos métodos,
mas os mais comuns são o emprego de choques elétricos ou substâncias que
fragilizam quimicamente a membrana celular (LINDEN, 2008).
Essas técnicas são, entretanto, muito limitadas, sendo o emprego
de vetores plasmidiais restrito a algumas circunstâncias, tais como sua in-
trodução por injeção intramuscular, como no caso das vacinas de DNA,
já descritas anteriormente.
Em contrapartida, os vírus12 são microrganismos especializados exa-
tamente em invadir células e, portanto, não há grandes problemas para
utilizá-lo como vetor no que diz respeito à eficácia de introduzir material
genético em outro organismo.
Do balanço entre riscos e vantagens de cada tipo de vetor viral, os mais
comumente utilizados (devido à maior eficácia no processo) são o retrovírus, o
adenovírus ou o adenovírus associado. Por serem vírus patogênicos, na constru-
ção dos vetores a parte viral patogênica é removida, por medida de segurança.
Além disso, todos os sistemas virais utilizados trabalham com vírus deficientes em
replicação (ROMANO, 2000 apud NARDI, TEIXEIRA e SILVA, 2002).
Os retrovírus são os preferidos nas experiências clínicas em terapia
gênica por apresentarem algumas vantagens em relação aos outros, como
integração eficiente ao genoma da célula e sistema muito conhecido e
estudado.13 Porém, seu uso é restrito à terapia in vitro, por possuírem baixa
taxa de eficiência na categoria in vivo 14 e por infectaram exclusivamente as
células que se dividem,15 além de apresentarem risco de reversão ao tipo
selvagem16 (AZEVÊDO, 1997; DANI, 2010).

12
Os vetores virais podem ser fragmentos de DNA de vírus contendo o DNA a ser transferido ou mes-
mo a partícula viral formada por proteínas virais empacotando um DNA viral modificado de maneira
a tornar o vetor menos tóxico, menos patogênico ou não patogênico (DANI, 2010).
13
Essa é uma característica muito importante para as práticas laboratoriais, já que, caso haja algum
problema no decorrer do processo, é mais fácil sua resolução por conhecer em seu funcionamento.
14
Dani (2000, p. 4) diz que há “baixa taxa de entrega in vivo”, ou seja, a eficiência de entrega da
carga genética quando feita dentro do próprio organismo não é satisfatória, podendo ocorrer falhas
no processo.
15
A localização do momento exato de divisão celular é mais facilmente visível fora do corpo do organismo.
16
O que poria o organismo a receber a carga genética em risco, já que o vírus em questão ficaria
fora de controle. Esta possibilidade é uma das principais preocupações dos pesquisadores e institui-
ções de vigilância em saúde pública.

Terapia gênica e bioética


663
Não obstante, a integração dos retrovírus com o genoma humano não
ocorre somente por meio de prática laboratoriais, mas também ao acaso.
Esse fato é também preocupante, pois existe, entre outras, a possibilidade de
transformação neoplásica17 de células do paciente por mutagênese insercio-
nal.18 Contudo, experiências demonstram que esse risco é baixo.
Contrariamente aos retrovírus, os adenovírus representam preocu-
pações relativamente em menor escala, mas também apresentam signifi-
cativa menor eficácia como vetores. O fato de poderem infectar qualquer
tipo de célula constitui vantagens. Por outro lado, apresentam a grande
desvantagem de conterem genes com potencial de estimular resposta imu-
ne no paciente e, consequentemente, efeitos adversos (AZEVÊDO, 1997).
Algumas características desfavoráveis dos vetores adenovirais e re-
trovirais levam, em alguns casos, ao uso de vetores alternativamente in-
dicados para contornar esses problemas. Esses vetores são baseados no
vírus adenoassociado (AAV, do inglês, adenoassociated virus), um peque-
no vírus que possui uma única molécula de DNA fita simples (AZEVÊDO,
1997). O AAV é chamado de dependovírus, porque somente é capaz de
se replicar em uma célula na presença de um vírus auxiliar que lhe forneça
os fatores auxiliares essenciais para sua replicação (DANI, 2010).
O AAV tem despertado grande interesse como um vetor potencial
para transferência de genes em tentativas de terapia gênica humana. Isso
ocorre por apresentarem algumas características bastante favoráveis, den-
tre elas o fato de não possuírem nenhuma relação com doenças humanas,
mas, em contrapartida, o poder de infectar de uma ampla gama celular
derivada de diversos tecidos quando manipulados com essa finalidade.
Além disso, podem ser aplicados em células que se encontrem em proces-
so de divisão ou não (DANI, 2010).
Segundo Nardi, Teixeira e Silva (2002), os métodos de transferência
gênica são comumente divididos em três grandes grupos: os métodos físi-
cos, os métodos químicos e os métodos biológicos.

17
Neoplasia é um conjunto de doenças caracterizadas pelo crescimento anormal e em certas situa-
ções pela invasão de órgãos à distância.
18
Mutação causada pela introdução de sequencias estranhas de DNA.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


664
A escolha do método a ser empregado é feita de acordo com a
patologia, a célula ou tecido-alvo, o tamanho e tipo de transgene
a ser expresso e o tempo e quantidade de expressão que se deseja
obter, entre outros fatores. (2002, p. 111)

Os métodos físicos – onde o transgene é introduzido na célula de forma


mecânica – são mais utilizados para a introdução de plasmídeos em células.
Os métodos físicos mais conhecidos são a microinjeção, a eletroporação e
a biolística. A microinjeção é um dos métodos mais antigos e com menor
utilização prática nos dias de hoje. Consiste na introdução de uma pequena
quantidade de DNA diretamente no núcleo da célula-alvo com o auxílio de
um aparelho denominado micromanipulador. A vantagem de precisar de uma
pequena quantidade de DNA para sua execução e de ser um método relati-
vamente simples é suprimida pela realidade de que o sucesso alcançado por
essa prática é baixo, de que a operação do micromanipulador é delicada (e,
por isso, depende de profissionais estritamente qualificados) e de que o núme-
ro de células que podem ser transformadas é muito pequeno.
A eletroporação consiste na aplicação de pulsos elétricos curtos de alta
voltagem nas células que estão em contato com uma solução de DNA plasmi-
dial. Esses “choques” promovem a formação de poros na membrana celular,
permitindo que macromoléculas – no caso as moléculas de DNA – migrem
através desses poros (NARDI, TEIXEIRA e SILVA, 2002; IORIO, DI STASI e
BORGES, 2007). As aplicações práticas variam desde transferência genética
para plantas, bactérias, leveduras, até transporte de quimioterápicos.
Na biolística, microesferas (de outro ou tungstênio) cobertas com
DNA são aceleradas por um gás que as projeta contra as células, auxi-
liando a entrada de DNA no núcleo destas. Apesar de eficiente, essa téc-
nica apresenta um alto índice de morte celular (NARDI, TEIXEIRA e SILVA,
2002). Devido aos amplos agravantes de uso, esses sistemas fiscos, ao
invés de serem utilizados como métodos diretos, atualmente vêm sendo
utilizados para o desenvolvimento das vacinas de DNA.
Já os métodos químicos – onde o vetor é alguma substância de ori-
gem química – utilizam-se das características do DNA e das membranas ce-
lulares para, com a utilização de compostos químicos, garantirem a entrada

Terapia gênica e bioética


665
de material genético nas células. Em geral, os compostos utilizados são os
chamados catiônicos, ou seja, aqueles que possuem carga total positiva.
Entre as vantagens, podem-se citar a simplicidade e a baixa imuno-
genicidade. Em contrapartida, apresenta níveis de eficiência variáveis e
de difícil previsão, com instabilidade em sua expressão (NARDI, TEIXEIRA
e SILVA, 2002).
Os métodos biológicos consistem no emprego de organismos que
naturalmente possuem a capacidade de transferir material genético, que são
os vetores plasmidiais e virais já descritos anteriormente.
Como toda nova proposta de tratamento, a terapia gênica deve ser
testada em protocolos pré-clínicos e em protocolos clínicos que se desen-
volvem em uma série de etapas ou fases.

PROTOCOLOS CLÍNICOS E PRÉ-CLÍNICOS PARA


TERAPIA GÊNICA

Protocolos clínicos são recursos de tecnologia em saúde classifi-


cados como lógicos ao lado dos recursos humanos, físicos ou materiais
(SCHNEID, 2003). Há quem os considere “instrumentos com o objetivo de
atenuar a variabilidade de conduta clinica e garantir um atendimento mais
qualificado ao paciente” (MAHMUD, 2002, p. 7).
Outros consideram que o “benefício esperado para a saúde do ser
humano em função do avanço da tecnologia nas últimas décadas encontra-
se comprometido”, e isso se deve à “limitação dos recursos e pela dificul-
dade para sistematizar de forma racional a disponibilização e a distribuição
desses recursos”, devido ao rigor dos protocolos (SCHNEID, 2003).
Independente da opinião defendida, o fato é que, segundo Menk e
Ventura (2007, p. 52), a “relativa facilidade de manipulação dos vetores
genéticos derivados de vírus e o aumento na capacidade de se isolar ge-
nes humanos geraram expectativas de avanço rápido nesse tipo de terapia
e muita excitação na mídia e mesmo nas pesquisas na área”.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


666
Esse entusiasmo inicial, no entanto, não foi confirmado, e vá-
rios problemas foram encontrados em protocolos clínicos de
terapia gênica realizados em seres humanos, o que deixou cla-
ro que ainda temos uma longa estrada a percorrer antes que
o emprego dessa tecnologia possa ser incorporado de forma
mais genérica ao dia-a-dia dos hospitais. No entanto, avanços
claros têm sido conseguidos, e novas abordagens têm amplia-
do o espectro de ação da terapia gênica, abrindo novos hori-
zontes de uso. (MENK e VENTURA, 2007, p. 52)

Oficialmente, o primeiro protocolo clínico para terapia gênica foi


aprovado em setembro de 1990 e, desde então, em 21 anos, o número de
protocolos aprovados aumentou significativamente.
Como já dito, os protocolos pré-clínicos e protocolos clínicos se de-
senvolvem em uma série de etapas ou fases. De acordo com o disponibili-
zado no sítio da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica,
um ensaio clínico é uma pesquisa científica que pretende responder uma
pergunta sobre determinada intervenção que deve ser controlada a fim de
avaliar-se sua segurança e eficácia.
Antes de começar a testar novos medicamentos ou tratamentos em se-
res humanos, as substâncias ou técnicas são testadas em laboratório e em
animais de experimentação. Esta é a chamada fase pré-clinica, ou fase não
clínica. O principal objetivo desta fase é verificar como a medicação ou técni-
ca se comporta em um organismo.
Após o fim da fase pré-clínica, inicia-se a fase clínica, que é a fase de
testes em seres humanos, que é divida em quatro fases principais sucessivas,
e somente após o término de todas as fases é que o produto (medicamento,
técnica ou o que quer que esteja sendo testado) pode ser disponibilizado
para uso. No caso da terapia gênica, os protocolos são requeridos cada vez
que sua aplicação se direciona para uma doença diferente.
A primeira fase testa a terapia pela primeira vez com o objetivo de-
sejado, com a função de avaliar a segurança do produto investigado. Se o
procedimento se mostrar seguro, passa-se, então, para a fase II.

Terapia gênica e bioética


667
Nessa, o objetivo é avaliar a eficácia da técnica, isto é, se ela fun-
ciona com o objetivo proposto, ou seja, para tratar determinada doença, e
também obter informações mais detalhadas sobre a segurança – reações
adversas, toxicidade. Somente se os resultados forem satisfatórios o estudo
clínico passa para a próxima fase.
Na fase III, o novo tratamento é comparado com o tratamento padrão
existente, caso exista. Geralmente, os estudos desta fase são randomizados,
isto é, os pacientes são divididos em dois grupos: o grupo controle (recebe o
tratamento padrão) e o grupo investigacional (recebe a nova medicação).
Algumas vezes, os estudos fase III são realizados para verificar se a
combinação do novo tratamento com o padrão (caso exista) é favorável, ou
se o ideal seria a completa substituição pelo tratamento em desenvolvimento.
A fase IV é utilizada para confirmar que os resultados obtidos na fase
anterior são aplicáveis em todas as situações, ou apenas em alguma espe-
cífica. Permitem acompanhar os efeitos dos medicamentos a longo prazo.
Após esgotadas todas as fases do ensaio clínico, o protocolo é apro-
vado ou não, com base nos resultados obtidos. Nardi, Teixeira e Silva
(2002) expõem que a maior parte dos estudos em andamento atualmente
encontra-se, ainda, na fase I, ou seja, sua segurança está sendo testada.
As questões que surgem acerca da aplicação da terapia gênica vão
além da segurança (ou falta dela) que ronda as práticas com vetores, in-
cluem também debates morais sobre suas aplicações.

BIOÉTICA E TERAPIA GÊNICA: ALÉM DA DEFINIÇÃO


TERAPÊUTICA

Falar em ética é se referir à “condição para que possamos viver e convi-


ver em sociedade, respeitando o diferente e nos responsabilizando por nossas
próprias escolhas” (BUENO, 2007, p. 4), “um conjunto de princípios e dispo-
sições voltados para a ação, historicamente produzidos, cujo objetivo é balizar
as ações humanas” (FERREIRA et al., 2000).

Victoria Gomes Pereira dos Santos


668
Valls (1994) aponta que, didaticamente, costuma-se separar os pro-
blemas teóricos da ética em dois campos: os problemas gerais, que cons-
tituem as bases de quaisquer discussões (por exemplo, a liberdade e o
direito à vida), e os problemas específicos, de aplicação concreta. Nesse
campo, encontram-se problemas como os da ética profissional, política,
sexual, de pesquisa.
Em relação ao segundo campo, Dias destaca que, no que diz respeito
à aplicação prática dos conceitos éticos, “seria importante refletir sobre uma
nova ética, uma ética preocupada não apenas com o comportamento hu-
mano, mas uma ética também preocupada com a vida em geral: a bioética”
(s.d., p. 5). Segundo Henk:

A bioética [...] trata de temas específicos como nascer/não nascer


(aborto), morrer/não morrer (eutanásia), saúde/doença (ética bio-
médica), bem-estar/mal-estar (ética biopsicológicas) e se ocupa de
novos campos de atuação do conhecimento, como clonagem (ética
genética), irresponsabilidade perante os pósteros (ética de gerações),
depredação da natureza extra-humana circundante e agressões ao
equilíbrio sistêmico das espécies (ecoética), e assim por diante. Dentre
as diversas práticas da bioética destacam-se atividades terapêuticas
em sentido amplo. Todo e qualquer exercício das relações profis-
sionais de médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, nutricionistas,
biólogos, fisioterapeutas e demais técnicos especializados em saú-
de e doença, bem como os usuários das novas técnicas biomédicas
e farmacológicas tornam-se destinatários do discurso bioético e fi-
cam, também na condição de pacientes, devendo respostas à bioé-
tica. (2005, p. 124)

Ainda de acordo com Henk, “a bioética nos familiariza com o geno-


ma humano, [...], a fecundação in vitro, [...], a escolha e predeterminação
do sexo, a reprodução assistida, a clonagem humana, o descarte de em-
briões não menos do que com pacientes terminais” (2005, p. 124).
Etimologicamente, bioética significa “ética da vida”. O termo teve ori-
gem com Van Rensselaer Potter, em seu livro Bioethics: bridge to the future
(1971), sendo definida como “a ciência da sobrevivência humana”, conceito

Terapia gênica e bioética


669
este utilizado em contexto institucional primeiramente por André Hellegers,
na Universidade de Georgetown.

Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios


(vida) e ethike (ética). Pode-se defini-la como o estudo siste-
mático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, con-
duta e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da
saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num
contexto interdisciplinar. (REICH apud PESSINE, 2002, p. 17)

Clotet diz que “a bioética tenta focalizar a reflexão ética no fenômeno


da vida [...], trata de questões relevantes para a pessoa e a humanidade”
(1997, p. 1). De maneira geral, essa afirmação parece intuitiva: ora, se
bioética é a ética aplicada à vida, definida pelo próprio criador do conceito
como algo que deve ser aplicado em benefício do homem e de sua
sobrevivência e, logo, de sua vida, a colocação de Clotet não se mostra
como uma afirmação problemática.
O ser humano, enquanto membro de uma sociedade composta por
diversidades de opiniões, está submetido a limitações morais e regras preesta-
belecidas em nome de um suposto bem comum. Sendo assim, a terapia gênica
tem sua aplicação limitada não somente pela não completa garantia de segu-
rança e eficácia de sua aplicação, mas também por discussões e limites éticos
que impõem o que pode ou não ser feito com esse conhecimento adquirido.
Os problemas decorrentes das decisões acerca do desenvolvimento
da genética19 são muitos e diversos. Entretanto, dois serão destacados:
o primeiro diz respeito à responsabilidade moral e os limites do conheci-
mento genético contemporâneo e o segundo, a questões éticas sobre o
controle da hereditariedade.
Longe da intenção de esgotar as discussões acerca de algum dos
temas, a seguir serão apenas pontuadas as questões pertinentes para que
se reflita sobre os assuntos.
O primeiro problema refere-se ao fato de a aplicação dos conheci-
mentos poder ferir o princípio ético da responsabilidade. Responsabilidade,
19
Tópicos destacados por Chauí, 2006, p. 341.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


670
etimologicamente, do latim respondere, significa ser capaz de comprometer-
se. Sobral diz que “o termo ‘responsabilidade’ une o responder pelos próprios
atos, o responder por, e a responsividade, o responder a alguém ou a alguma
coisa” (2009, p. 124).
Falar em responsabilidade moral significa propor uma situação
em que haja um agente consciente com relação aos atos que pratica
voluntariamente e sobre o qual deve recair a responsabilidade por esses
(GREGÓRIO, 1999).
Marcuse relaciona, então, especificamente ao conhecimento cien-
tífico, e diz que “a ciência (isto é, o cientista) é responsável pelo uso que
a sociedade faz da ciência; o cientista é responsável pelas consequências
sociais da ciência” (2009, p. 159).
Ainda no âmbito da responsabilidade científica, Lacey coloca a se-
guinte questão: “o que está atualmente envolvido nas responsabilidades dos
cientistas?” (2008, p. 297).

De que maneira a pesquisa científica deve ser conduzida de modo


a assegurar que a natureza seja respeitada, – que suas potencia-
lidades regenerativas não sejam ulteriormente solapadas, e que
sejam restabelecidas onde quer que seja possível – e que o bem
estar de todos, em todos os lugares, possa ampliar-se? (LACEY,
2008, p. 297)

Lacey fala em garantir o respeito à natureza. Modanese explica:

[...] definir ou conceituar natureza não é algo tão simples; pois


não se refere apenas às coisas, bichos, plantas, rios ou relevo,
mas também à maneira como vemos essas coisas integradas a
um conceito que nós criamos e relacionamos à totalidade, a qual
chamamos natureza. Por outro lado, como tudo aquilo que é da
iniciativa humana é também parte integrante da natureza, não
haveria problemas em admitir-se que várias naturezas têm se su-
cedido ao longo da historia da humanidade. (2011, p. 4)

Terapia gênica e bioética


671
Retomando, então, a questão da responsabilidade moral, no que diz
respeito à responsabilidade para com a natureza 20 destacada por Lacey, sur-
ge o que chamamos de ética ambiental. Trata-se de uma ampliação da ideia
de ética, referindo-se à maneira de o homem agir em relação à natureza, e
torna-se válida – dentro dos padrões da sociedade pós-Revolução Industrial –
na medida em que a preservação da vida humana apenas torna-se possível
quando inserida no contexto de preservação da vida de todos os seres vivos.
Chauí exemplifica essa ideia com os chamados transgênicos, e diz:

Tendo em vista a proliferação dos vegetais transgênicos [...] e


o abandono da biodiversidade natural em proveito de espécies
únicas, não podemos deixar de levantar a hipótese de altera-
ções ambientais que provoquem a extinção de várias dessas
espécies únicas com efeitos gigantescos não somente sobre a
vida humana (fome, miséria, doenças, mortes), mas sobre todo
o planeta. (2006, p. 342)

Ou seja, a manipulação desses vegetais pode ser favorável na medida


em que apresenta alguns benefícios, por exemplo, a possibilidade da inserção
de algum componente nutricional favorável e o fato de garantir maior estabili-
dade dos custos de produção (já que pode se manipulado de modo a evitar
ataques de pragas).
Mas, a partir do momento em que a produção de transgênicos torna-
se predominante e há o abandono da biodiversidade natural – ou seja,
há o abandono nas chamadas sementes crioulas 21 – começa o perigo.
Os organismos geneticamente modificados (OGMs), quando feitos, são
criados de modo a se adaptar a um determinado ambiente, com, por
exemplo, condições climáticas específicas.
Em caso de alguma mudança drástica nas condições ambientais, es-
ses transgênicos não vão mais poder ser utilizados da maneira como foram
feitos, e, como as sementes crioulas não mais são utilizadas, possivelmente
surgirão os problemas destacados por Chauí (2006).

20
Natureza enquanto ambiente no qual há relação entre o homem e o que não foi mutado por ele.
21
Semente nativa, livre de quaisquer modificações genéticas, típica de determinada região.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


672
Neste ponto, então, começamos a falar em limites para o conheci-
mento genético, não somente para as plantas. Voltando à terapia gênica,
com a possibilidade de manipulação de seres humanos, a questão a ser
levantada é: quais os limites para essa manipulação, quando falarmos em
seres humanos?
Se fica acordada a superioridade dos homens em relação às outras
espécies, e no que diz respeito aos vegetais as consequências são tão
grandes, deve ser pensado o que aconteceria caso as manipulações fos-
sem feitas sem limites éticos impostos.
As espécies transgênicas, quando não restringidas, são um perigo
para a biodiversidade planetária e para a vida. A diversidade genética (ou
biodiversidade) tanto nas espécies humanas como nos animais e vegetais
é uma recurso planetário precioso que deve ser preservado e controlado.
Quanto ao segundo problema, falar sobre controle da heredita-
riedade diz respeito, especificamente, à terapia gênica germinativa, e
será divido em dois pontos, um científico e um moral.
Como já explicado, a terapia gênica germinativa possibilita que haja
a manipulação de características de um ser humano antes de seu nasci-
mento, tanto no que diz respeito ao reparo ou substituição de um gene
com mutação que causará uma doença, por vezes, fatal, quanto ao que diz
respeito a manipular características meramente físicas, como porte físico ou
cor dos olhos.
Falar em doença implica em entender o que é saúde. O problema em
questão seria que a genética – assim como qualquer outra ciência – não pos-
sui definição do que pode ser considerado doença, o que deixaria sujeito à
interpretações próprias das partes interessadas sobre o que pode ser tratado.
Um exemplo disso é encontrado na Declaração Universal sobre o
Genoma Humano e os Direitos Humanos – da teoria à prática. Esse docu-
mento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco) (1997) apresenta um ponto que deve ser ao menos citado:
a saúde no que diz respeito ao seu conceito.
No decorrer dos 25 artigos, a palavra “doença” aparece quatro vezes
e “saúde”, seis, em todas elas sem uma definição precisa, em termos como

Terapia gênica e bioética


673
“estado de saúde”, “direito à saúde” e “saúde pública”. Em nenhuma dessas
aparições estes termos são esclarecidos e conceituados. Essa não conceitua-
ção do que deve ser tratado como âmbito da saúde é um problema porque há
uma grande discrepância entre o conceito estrito – que trata saúde meramente
como ausência de doença – e o conceito ampliado de saúde, definido na
Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) – que diz que “saúde
é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas
a ausência de enfermidade”. Não há, igualmente, qualquer conceituação do
termo “doença”.
Sendo assim, como se daria a aplicação da terapia gênica germi-
nativa sem o devido esclarecimento sobre o que pode ser tratado como
doença e o que deve ser considerado apenas melhoramento genético?
A dificuldade de definir o que é terapia e o que é melhoramento fica
mais facilmente visível ao tentar definir a seriedade de uma doença gené-
tica. Segundo Frias:

Embora, em geral, se considere que melhoramentos sejam menos


decisivos para a determinação do bem-estar, há casos em que
evitar uma doença ou defeito genético pode ser menos impor-
tante para o bem-estar do que garantir um melhoramento. Por
exemplo, se fosse possível selecionar embriões cujo sistema imu-
nológico tivesse um funcionamento acima do normal, isso seria
mais importante para seu bem-estar do que evitar disfunções me-
nos sérias, como polidactilia, miopia, calvície etc. (2010, p. 248)

Diante de tantas dificuldades colocadas pela distinção entre terapia e me-


lhoramento, seria interessante descobrir princípios capazes de dizer quando algo
pode ser considerado passível de tratamento por terapia gênica germinativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A terapia gênica é uma ciência jovem, uma técnica promissora, mas


ainda não amadureceu o suficiente para poder ser testada em larga es-

Victoria Gomes Pereira dos Santos


674
cala. Apesar do progresso alcançado, as tentativas da terapia são ainda
escassas para que se possa falar em sucesso do ponto de vista clínico. O
sucesso da terapia gênica permanece como uma perspectiva para um
futuro próximo.
Para isso, deve se ter o propósito de aprimorar o conhecimento
biológico da base do método de terapia gênica, e isso envolve o apri-
moramento dos métodos laboratoriais até o esclarecimento dos efeitos
funcionais do gene anômalo que se pretende substituir e/ou silenciar.
Isso porque esta técnica, se comprovado seu sucesso, pode se tornar
uma ferramenta efetiva nas mãos dos médicos, em prol da melhoria da
qualidade de vida dos pacientes.
O desenvolvimento ou não da terapia gênica depende não so-
mente da quebra das barreiras de conhecimento acerca da genotipagem
humana, mas também da possibilidade de aplicação das descobertas
advindas das pesquisas. É necessário, portanto, ter conhecimento so-
bre todos os aspectos referentes à técnica para que se possa ponderar,
entre benefícios e malefícios, que medidas devem ser tomadas sobre
sua aplicação.
Ou seja, para seu completo sucesso, não se pode pensar apenas no
âmbito biológico que cerca a técnica. Certamente o aperfeiçoamento téc-
nico é essencial para que a geneterapia seja aceita e passe a ser utilizada
como opção de tratamento. Mas a regulamentação acerca desta também
é de fundamental importância para que seu uso seja feito de modo a apre-
sentar o menor risco possível.
Como toda questão que envolva diretamente a manipulação da vida hu-
mana, surgem grandes problemas em torno da terapia gênica. Os debates são
importantes para que haja essa regulamentação. Os pontos apresentados neste
trabalho não chegam perto de abordar toda a extensão de assuntos em torno
deste método, mas a partir deles pode-se ter uma base para iniciar discussões.
As questões que aqui foram brevemente abordadas tratam de proble-
mas acerca das dificuldades de aplicação de qualquer conhecimento pela
exigência de eficácia e de prováveis problemas sociais que seriam ocasio-
nados caso não houvesse regulamentação de poder sobre as descobertas.

Terapia gênica e bioética


675
Tratam, ainda, da responsabilidade moral acerca das pesquisas e do risco
de enquadrar os seres humanos em alguma categoria predefinida.
Deve-se levar em conta que a bioética não deve limitar-se a aspectos
científicos, envolvendo, também aspectos culturais, sociais, econômicos,
ético-morais, políticos e legais. Com isso, pode-se perceber que o desen-
volvimento ou não da terapia gênica depende não somente da quebra de
barreiras de conhecimento acerca da genotipagem humana, mas, sobre-
tudo, da deliberação sobre as consequências de sua aplicação segundo
os aspectos acima citados.
Como para uma boa deliberação é preciso ter clareza previamente
sobre os termos sobre os quais esta se incide, as discussões sobre esse tema
muito dificilmente se esgotarão, já que sempre aparecerá uma ideia nova, um
outro argumento, e é provável que não haja consenso.
Em relação aos pontos apresentados neste trabalho, as questões
levantadas permitem algumas colocações. Primeiramente, deve-se impedir
a simplificação de termos que estabelece uma relação entre os comporta-
mentos das pessoas e supostos anomalias no DNA humano. Isso porque,
caso isso aconteça, passa-se a considerar que certos comportamentos são
preestabelecidos e irreparáveis, e retoma-se uma antiga segregação so-
cial, com uma base supostamente científica, que divide os homens entre
bons e maus evolutivamente.
A transferência de genes deve ser considerada zona de perigo e não
deve ser realizada deliberadamente, ainda porque a ciência não tem o perfei-
to conhecimento do alcance e das consequências deste intercâmbio genético.
É importante ressaltar, ainda, que o acúmulo de conhecimento não ga-
rante que ele será posto em prática de modo correto. Ou seja, mesmo que o
desenvolvimento dessa técnica se faça de modo satisfatório, a ponto de serem
conhecidas todas as possibilidades, não há a garantia de que sua aplicação
seja perfeita.
O futuro desenvolvimento e possível expansão do conhecimento acer-
ca da genética afeta a humanidade como um todo e, por isso, é preciso
sempre ter prudência ao tratar sobre assuntos que envolvam este tema.

Victoria Gomes Pereira dos Santos


676
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Terapia gênica e bioética


679
REDAÇÃO DA BULA DE MEDICAMENTOS:
UMA ANÁLISE INTERDISCIPLINAR

Yuri Ferreira Coloneze*

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “o


estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas
a ausência de enfermidade” (SCLIAR, 2007, p. 36-37). Esse conceito,
divulgado na Carta de Princípios de 7 de abril de 1948, desde então Dia
Mundial da Saúde, implicou o reconhecimento do direito à saúde e da
obrigação do Estado na promoção e proteção da mesma.
Na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986,
resultado de intenso movimento “que se estabeleceu em diversos países da
América Latina durante as décadas de 1970 e 1980, como resposta aos
regimes autoritários e à crise dos sistemas públicos de saúde” (BATISTELLA,
2007, p. 51), o conceito de saúde foi ampliado, o que possibilitou o enten-
dimento de que saúde é um resultado das formas de organização social,
que podem gerar grandes desigualdades entre indivíduos que vivem em
uma mesma sociedade (BATISTELLA, 2007).
Esse redimensionamento se refletiu na Constituição brasileira de 1988,
que inscreveu a saúde entre os direitos sociais, reconhecendo-a como um di-

*
Ex-aluno do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio, com
habilitação em Vigilância em Saúde (2009-2011). Atualmente cursa Ciências Econômicas na Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No trabalho de construção de sua monografia de conclusão de
curso, contou com a orientação das professoras-pesquisadoras Bianca Ramos Marins (doutora em Vigi-
lância Sanitária de Produtos INCQS/FIOCRUZ) do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância
em Saúde (Lavsa) e Viviane dos Ramos Soares (mestre em Linguística) do Laboratório de Formação Geral
na Educação Profissional em Saúde (Labform). Contato: colonezeyuri@hotmail.com.

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


681
reito fundamental de qualquer indivíduo, não estando relacionada somente
à ausência de doença, mas ao bem-estar, tanto psicológico quanto físico, do
ser humano. Em 1990, na sua regulamentação, por meio da Lei Orgânica
da Saúde (lei nº 8.080), foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS).
A criação do SUS constitui um projeto social único, o qual busca
materializar ações de promoção, prevenção e assistência à saúde dos bra-
sileiros, além de ser um exemplo importante do papel do Estado na

[...] formulação e execução de políticas econômicas e sociais que


visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no
estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e
igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção
e recuperação. (BRASIL, 1990)

Uma importante estratégia de materialização dessas ações adotada


pelo SUS é a comunicação em saúde, que diz respeito a um “conjunto de
técnicas e meios a serem utilizados de acordo com os objetivos da área
da saúde, notadamente para transmitir informações de saúde para a po-
pulação” (CARDOSO e ARAÚJO, 2008, p. 95). Essa definição permite-
nos dizer que a comunicação em saúde pode ter a ver tanto com a relação
médico-paciente, quanto com os materiais educativos veiculados no cam-
po da saúde, como, por exemplo, informações transmitidas por meio de
campanhas realizadas pelo Ministério da Saúde (MS) ou encontradas nas
bulas de medicamento, que, neste artigo, serão objeto de estudo.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão
regulador das bulas no Brasil, a bula é um “documento legal sanitário que
contém informações técnico-científicas e orientadoras sobre os medica-
mentos para o seu uso racional” (BRASIL, 2009). Considerando, então,
sua importância, o órgão estabeleceu, por meio de diferentes resoluções
da diretoria colegiada (RDCs),1 que esse documento deve ser reavaliado
e harmonizado devido à própria assimetria nas informações, em especial
daquelas voltadas aos pacientes, com o objetivo de proporcionar-lhes “in-
1
RDC: ato normativo, de intervenção ou de alteração do regimento interno, bem como para deta-
lhamento de área de ação ou normas de organização de cada diretoria. Relacionada, nesse caso, à
Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Yuri Ferreira Coloneze


682
formação clara e adequada sobre os produtos, com especificação correta
de qualidade, características, composição, quantidade, bem como sobre
os riscos que apresenta” (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANI-
TÁRIA, 2008, p. 28).
Nesse sentido, vale destacar as resoluções contidas na RDC nº 140,
de 29 de maio de 2003, e na RDC de nº 47, de 8 de setembro de 2009.
A primeira estabelece, teoricamente, a revisão das bulas de todos os me-
dicamentos comercializados no Brasil, enfatizando aspectos relacionados
à linguagem, como a ordem direta frasal e a coerência textual (BRASIL,
2003). Além disso, normatiza a disponibilidade da bula em dois formatos:
um voltado aos profissionais em saúde e outro, aos pacientes.
Já a segunda normatiza que a bula deve estar disponível em diferentes
formatos, como: bula em formato especial, fornecida à pessoa portadora de
deficiência visual, bula para o paciente, em linguagem apropriada e de fácil
compreensão, e a bula para o profissional em saúde, com conteúdo detalha-
do tecnicamente. E também aponta para a divisão da mesma em três partes:
identificação do medicamento, informações ao paciente e dizeres legais.
Entretanto, apesar das disposições presentes na legislação brasileira
atual, uma breve observação das bulas, especialmente daquelas voltadas
diretamente aos pacientes, revela inadequações como, por exemplo, a pre-
sença de frases estanques, com vocabulário técnico-científico utilizado entre
profissionais da área da saúde, como “xerodermia”.2
Essas inadequações podem dificultar o processo de compreen-
são da bula, invalidando seu entendimento como “principal instrumento
que permite ao paciente saber com exatidão como usar e como evitar
os riscos do consumo do medicamento prescrito pelo seu médico ou
cirurgião-dentista” (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA,
2009, p. 5).
Por essa razão, deve-se ressaltar a necessidade de uma formulação
adequada das bulas para a população, o que sugere a reorganização e a
reordenação das informações presentes na bula, a partir das recomenda-

2
Pele seca.

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


683
ções feitas pelo órgão regulador destes textos (AGÊNCIA NACIONAL DE
VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2009).
Embora sejam textos informativos e constituam material educativo for-
necido aos usuários de medicamentos, informando-os sobre características
(físicas, químicas e organolépticas3) de um determinado medicamento e, tam-
bém, alertando-os dos acerca dos riscos da automedicação e da possibili-
dade de prescrição para utilização dos mesmos, são escassos os trabalhos
brasileiros sobre a elaboração de bulas de medicamento.
Nessa discussão, é fundamental considerar que a leitura de um texto
é, segundo Koch e Elias,

[...] o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de com-


preensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe
sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair a informação, deco-
dificando letra por letra, palavra por palavra. (2008, p. 12)

Outro fator associado à leitura, e que também deve ser atentamente


observado, é a compreensão textual, pois “compreender um enunciado
não é somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar
saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar, construindo um con-
texto que não é um dado preestabelecido e estável” (MAINGUENEAU,
2008, p. 20).
Além disso, vale ressaltar que, para tratar de questões legislativas
e linguísticas sobre a redação das bulas de medicamento, é importante
compreender que este texto é entendido enquanto gênero textual nos
termos propostos por Bakthin: “Qualquer enunciado considerado iso-
ladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que
denominamos gênero do discurso” (2004, p. 279). Isso significa que gê-
neros textuais, segundo a explicação bakhtiniana, são enunciados produ-
zidos em um determinado contexto de atividade humana caracterizado
por temas, estilos e estruturas específicas.

3
Organolépticas: propriedades relacionadas aos sentidos, como cheiro, cor, paladar, entre outros.

Yuri Ferreira Coloneze


684
Cumpre observar ainda que não é somente a bula que deve ser con-
siderada como única solução para uma transmissão adequada de infor-
mações sobre quaisquer medicamentos, até porque existem outras práticas
que podem ser adotadas no processo de comunicação em saúde no Brasil.
Exemplo disso é a educação em saúde, que

[...] pode ser definida como uma prática social que preconiza não
só a mudança de hábitos, práticas e atitudes, a transmissão e
apreensão de conhecimentos, mas principalmente, a mudança
gradual na forma de pensar, sentir e agir através da seleção e
utilização de métodos pedagógicos participativos e problematiza-
dores. (MOISÉS, 2003, p. 162)

Diante do exposto, este artigo tem como finalidade apresentar os


resultados de uma análise interdisciplinar das bulas de medicamentos de
venda livre. Para tanto, será necessário: a) apresentar o papel do Estado
na formulação e veiculação das bulas; b) descrever as medidas legislativas
tomadas pelo Estado, a fim de atender às necessidades expostas pela po-
pulação; c) analisar o item “Informações ao Paciente” (um dos conteúdos
obrigatórios da Anvisa, na estrutura textual da bula de medicamentos),
tanto em relação à legislação quanto às marcas linguísticas do texto;
e d) identificar as marcas linguísticas típicas da bula de medicamento, en-
quanto gênero textual.

O PROCESSO DE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS BULAS


DE MEDICAMENTO NO BRASIL

A procura pela cura de doenças é um fato que remete à Antigui-


dade. A necessidade de estabelecer um equilíbrio entre o estado de
saúde e de doença faz diversos atores sociais se esmerarem na busca
por formas de intervir tanto no meio social em que o homem coabi-
ta, como no próprio corpo do homem. Nesse sentido, o medicamento
é considerado atualmente como uma ferramenta de intervenção na

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


685
evolução de determinada doença, tanto para obtenção da cura quanto
para redução de efeitos da enfermidade em humanos.
Por causa da utilização intensa de medicamentos no Brasil, também pas-
sou a ser de grande importância que os processos relacionados a estes produtos
possuam determinadas características, como: qualidade, segurança e eficácia.
Exemplo disso é a atuação da Vigilância Sanitária, órgão criado pelo Estado
com a responsabilidade de registrar medicamentos e formular normas le-
gais para concessão destes registros, em que pode ser incluído o conteúdo
das bulas (CALDEIRA, NEVES e PERINI, 2008).
Hoje, o formato e o conteúdo das bulas são descritos de acordo
com a RDC nº 47/2009, com o objetivo de que as mesmas estejam ade-
quadas para seus possíveis públicos-alvo: os profissionais de saúde e os
consumidores. É importante compreender que as normas do presente são
fruto de um processo de evolução histórica das bulas de medicamentos e
de suas normas reguladoras.
De 1953 a 2006, podem ser destacados quatro atos normativos rela-
cionados às bulas, tanto em relação à estrutura quanto ao seu conteúdo: a
portaria nº 49, de 10 de agosto de 1959, do Serviço Nacional de Fiscaliza-
ção da Medicina e Farmácia (SNFMF); a portaria nº 65, de 28 de dezembro
de 1984, da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS); a portaria
nº 110, de 10 de março de 1997, da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS);
e a RDC nº 140, de 29 de maio de 2003, da Anvisa (CALDEIRA, NEVES e
PERINI, 2008).
Entre 1950 até 1973, as normas específicas acerca de princípios ativos,
apresentavam instruções que deveriam estar contidas no ato de licenciamento
do produto (antigo registro do medicamento). Nesse período, foi observado
que indicações terapêuticas, restrições à venda, esquema de posologia
e efeitos colaterais eram definidos para determinadas substâncias, fato que
influenciava e produzia alterações nas bulas e em rótulos de medicamen-
tos licenciados antes da norma ter sido publicada. Somado a isto, houve a
notação da padronização e da inserção de frases de advertência.
Além disso, notou-se que, antes da criação do Ministério da Saúde,
em 1953, a bula foi tratada em legislação não específica, a destacar o de-

Yuri Ferreira Coloneze


686
creto nº 20.377, de 8 de setembro de 1931, que regulamentou o exercício
da profissão farmacêutica no Brasil. Momento em que a bula é considerada
pela primeira vez como um documento necessário para avaliação do pedido
de licença.
Em janeiro de 1946, o decreto nº 20.397 aprovou o Regulamento da
Indústria Farmacêutica no Brasil, a ser aplicado pelo SNFMF, que envolve
a licença dos itens que estariam presentes em rótulos e bulas. O primeiro
regulamento voltado para as bulas, em que foi definida a ordenação dos
itens, ocorreu em 1959 com a portaria nº 49:

Essa norma regulamentou a apresentação e o exame de rótulos e


textos de bulas, entretanto dispensou a sua obrigatoriedade quando
as informações constassem na rotulagem. Além disso, determinou
que a mesma não poderia conter informações diferentes daque-
las apresentadas no ato da licença da especialidade farmacêutica.
(CALDEIRA, NEVES e PERINI, 2008, p. 738-739)

Após isso, em 1977, o decreto nº 79.094, regulamentou a lei nº 6.360/


1976, momento em que os medicamentos e outros produtos e serviços foram
submetidos à vigilância sanitária. No título X desse decreto, Da Rotulagem e
Publicidade, normas foram direcionadas para bulas, rótulos, etiquetas e mate-
riais impressos com produtos de interesse sanitário:

A bula, além de outros materiais impressos, deveriam ter dimen-


sões necessárias à fácil leitura visual, tendo como limite mínimo
de 1 mm de tamanho de letra. Além disso, as contraindicações,
precauções e efeitos colaterais deveriam ser impressos em le-
tras maiores dos que os utilizados nas demais indicações e em
linguagem acessível ao consumidor. Sendo este decreto, o pri-
meiro a tratar do tamanho mínimo de letra e da necessidade
de linguagem acessível ao leigo. (CALDEIRA, NEVES e PERINI,
2008, p. 739)

Já a portaria nº 65, do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS),


instituiu o roteiro que deveria ser adotado para texto de uma determinada
bula (modelo-padrão). Além disso, a Divisão de Medicamentos (Dimed) ficou

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


687
responsável pelos estudos sobre a bula, partindo por classe terapêutica e
depois de produto a produto. E por determinar quais itens eram obrigatórios
e, quando fosse necessário, quais textos padrões deveriam ser reproduzidos,
fato que na prática não aconteceu. Essa portaria também fez a divisão de
informações em identificação do produto, informação ao paciente, informação
técnica e dizeres legais (CALDEIRA, NEVES e PERINI, 2008).
Em 1997, a Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) publicou a por-
taria nº 110, mantendo essa estrutura, mas também incluiu outros itens
obrigatórios. “Seguindo a tendência da portaria nº. 65, de 1984, a SVS
se comprometeu a elaborar dizeres de bula para cada princípio ativo ou
associação, de acordo com a respectiva classe terapêutica.” (CALDEIRA,
NEVES e PERINI, 2008, p. 739).
A inovação que esta portaria trouxe envolveu a classificação das in-
formações em mínimos e máximos essenciais. Nos primeiros, não poderia
haver omissão dos itens e as novas informações deveriam ter embasamento
científico. E os mínimos essenciais

[...] compreendiam toda informação ao paciente e os subitens da


informação técnica: contraindicações, advertências, interações me-
dicamentosas, reações adversas, superdosagem, pacientes idosos.
Os máximos essenciais se referiam às indicações e posologia, e
não poderiam ser acrescentadas informações além daquela padro-
nizada. (CALDEIRA, NEVES e PERINI, 2008, p. 739)

A SVS acabou ficando com a responsabilidade de publicar, no


Diário Oficial da União, os mínimos e máximos essenciais. Já os demais
itens, relacionados a especificações do produto, seriam elaborados pe-
las empresas farmacêuticas.
Após a publicação do regimento interno, pela diretoria colegiada, e
da portaria nº 593, de 25 de agosto de 2000, a Agência Nacional de Vigi-
lância Sanitária foi estruturada e criada, substituindo a SVS. A Anvisa, “ór-
gão criado como uma autarquia especial com independência administrati-
va, dirigentes com estabilidade e autonomia financeira” (CALDEIRA, NEVES
e PERINI, 2008, p. 739), revisando o arcabouço legal e editando, em 2003,
o conjunto de normas para o registro de medicamentos.

Yuri Ferreira Coloneze


688
A partir deste período, houve uma reformulação da legislação espe-
cífica das bulas, publicada como RDC nº 140 em 29 de maio de 2003,
momento em que as bulas foram divididas em duas: bula para o paciente
(identificação do medicamento, informações ao paciente, dizeres legais)
e bula para o profissional de saúde (identificação do medicamento, informa-
ções técnicas aos profissionais de saúde, dizeres legais).
No tópico “Informações ao paciente”, foi ressaltada a importância
de utilizar uma linguagem acessível ao procurar organizar o texto em for-
mato diferenciado, com perguntas e respostas. Um novo caminho para
a caracterização de um processo mais eficaz em relação à elaboração
de uma bula direcionada aos consumidores, pois poderia estabelecer um
“diálogo” entre a bula e o leitor.
Segundo Caldeira, Neves e Perini (2008, p. 739), outros pontos que
tiveram destaque quando comparados aos que estavam presentes na legis-
lação anterior são:
• Criação da lista de medicamentos-padrão para texto de bula (para
harmonizar o conteúdo das bulas nacionais, a partir da criação de um
texto-padrão para cada princípio ativo);
• Aumento do tamanho mínimo de letra de 1 mm para 1,5 mm;
• Adoção da classificação de risco para gestantes;
• Utilização da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) ao
se referir a sinais, sintomas e doenças; atualização das informações
comparando com bulas internacionais; apresentação dos resultados
dos estudos de eficácia;
• Inclusão da descrição das características organolépticas do medica-
mento (para auxiliar na detecção de medicamentos falsificados ou com
alterações);
• Envio da bula eletronicamente pelo Sistema de Gerenciamento Ele-
trônico de Bulas e publicação oficial dos textos no Bulário Eletrônico da
Anvisa e no Compêndio de Bulas de Medicamento (CBM).
Em 17 de maio de 2005, com a resolução RDC nº 126, ocorreu
a publicação do Bulário Eletrônico da Anvisa e do CBM. A partir desse

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


689
momento, as empresas farmacêuticas que tivessem bulas divulgadas nes-
sas publicações, liberariam no mercado as que já estavam atualizadas e
elaboradas em dois formatos, um para pacientes e outro para profissionais
de saúde (CALDEIRA, NEVES e PERINI, 2008).
O Bulário Eletrônico da Anvisa foi criado com o objetivo de ser um
banco de dados acessível via Internet aos profissionais de saúde e aos
consumidores, apresentando as informações dos textos de bula dos me-
dicamentos registrados e comercializados no Brasil, até com a inclusão
para portadores de deficiência visual. “O portal traz ainda matérias sobre
educação em saúde, notícias relacionadas à atualização das bulas, a le-
gislação em vigor sobre o assunto, perguntas frequentes e outros endere-
ços eletrônicos de interesse na área de saúde.” (CALDEIA, NEVES, PERINI,
2008, p. 741).
Entretanto, vale ressaltar que nessa página do Bulário Eletrônico somen-
te é oferecida busca para localizar determinado medicamento; o portal, além
de não trazer matérias sobre educação em saúde e perguntas frequentes,
também não apresenta notícias relacionadas à atualização das bulas. Esse
fato pode ser encarado tanto como um desrespeito ao consumidor, que tem
como direito garantido, o acesso a informações claras sobre um determinado
produto, quanto como exemplo da falta de cumprimento de um dever do Es-
tado, responsável por ter um órgão que deve, como uma de suas finalidades,
oferecer uma bula disponível em diversos meios de comunicação.

O DESAFIO DE SE PENSAR EM COMUNICAÇÃO EM


SAÚDE PARA O SUS

A partir da segunda metade do século XIX, surgem esforços


no uso de variados recursos com objetivo de informar a população
sobre doenças, cuidados, produtos com fins terapêuticos, entre outros
(MORAES, 2007).
No século XX, o crescimento urbano, associado aos novos processos
de produção e estilos de vida, gerou uma urgência na utilização de comu-

Yuri Ferreira Coloneze


690
nicação na área da saúde. Os enfoques e problemas produziram diversos
modos de utilização das comunicações, num “momento em que jornais e
revistas se multiplicavam, as propagandas tornavam-se parte do cotidiano,
os rádios e o cinema introduziam novos temas e modos de enunciação”
(MORAES, 2007, p. 63), sendo que, ao longo do tempo, tanto o Estado
quanto as instituições de saúde passaram a utilizar o recurso da comuni-
cação para veicular seus projetos e ações, tendo como objetivo enfrentar
situações endêmicas ou epidêmicas (MORAES, 2007).
Por essas razões, é importante salientar que, no mundo atual, a comuni-
cação ganhou muita importância, principalmente, devido ao intenso desenvol-
vimento de tecnologias de informação e comunicação. Acentuando-se, assim,

[...] tanto a potência da comunicação como atividade econô-


mica – incluindo a informática, a telecomunicação e a publi-
cidade – quanto a feição midiatizada de nossa sociedade e o
papel decisivo da mídia na seleção de nossa agenda política.
(CARDOSO, 2007, p. 46)

Apesar dessa complexidade, ainda é perceptível o predomínio na saú-


de de que a “comunicação é apenas a ação de transmitir informações ou de
ideias de um polo emissor para um polo receptor” (CARDOSO, 2007, p. 46).
Nesse sentido, grande parte das preocupações envolvem a utilização ade-
quada de linguagem e veículos para garantir o sucesso da comunicação, ou
seja, que a mensagem seja recebida e compreendida tal como foi pensada e
elaborada pelo emissor.
Essa ideia sobre a comunicação pode ser problemática se for levado
em consideração alguns aspectos, como ver “a comunicação como um
instrumento, um conjunto de meios e veículos que levam uma mensagem
pronta e acabada”, dar pouca importância “aos contextos da comunica-
ção e aos processos, ambientes ou situações nas quais as pessoas atri-
buem sentidos às informações e aos acontecimentos” e não levar em con-
sideração “as desigualdades, as diferentes realidades e interesses sociais e
por isso transformar qualquer discordância, resistência ou dificuldade em
falta de informação ou ruído na comunicação” (CARDOSO, 2007, p. 46).

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


691
Logo, é importante observar que essa visão, aparentemente neutra, pode
acabar priorizando os interesses e objetivos dos próprios emissores, fato que se
transforma em um poder historicamente excludente e concentrado nas mãos
de poucos indivíduos (CARDOSO, 2007). E que para resultar em um avanço
do Sistema Único de Saúde é necessário outro modelo de comunicação, até
porque a “comunicação se afirma como elemento essencial para a promoção
da saúde, ao funcionar como uma área estratégica para interação e troca
de informações entre as instituições, comunidades e indivíduos” (INSTITUTO
NACIONAL DO CÂNCER, 2007, p. 16).
Nesse contexto, a democratização da informação acaba surgindo
como um dos principais objetivos para a melhoria da qualidade e univer-
salidade da saúde no país. O desafio, agora, é concretizar outro modelo
de comunicação, que garanta o fortalecimento do SUS e que alimente
práticas que possuam maior coerência com a visão ampliada de saúde,
como a descentralização e maior participação da sociedade.
Demonstrando assim, o quanto as práticas de comunicação, que des-
de a década de 1980 são insuficientes e até contraditórias com o projeto
que conceitua saúde, são resultado tanto das condições de vida quanto das
possibilidades de participação, de forma democrática, da sociedade em po-
líticas públicas (CARDOSO, 2007).
A questão central é que, “ao capilarizar a rede do SUS, as políticas
governamentais de comunicação não acompanharam o processo de descen-
tralização” (INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER, 2007, p. 16), trabalhando
com um discurso único em que os atores somente reproduzem a mensagem
hegemônica do governo, havendo pouca interação com a sociedade.
Atualmente, uma nova postura política tem contribuído para o forta-
lecimento da descentralização das decisões do SUS nos conselhos e con-
ferências, espaços em que as discussões passam a ser consolidadas e nos
quais pode ocorrer a deliberação de variados interesses e pontos de vista.
Esse novo posicionamento acaba por culminar em uma nova reflexão
sobre diversas áreas presentes no próprio SUS, inclusive a comunicação,
em que o debate democrático permite o surgimento de novas indaga-
ções, entre elas: “Como, então, continuar a pensar em apenas um polo

Yuri Ferreira Coloneze


692
emissor, quando aqueles que eram considerados público-alvo, recep-
tores estáticos e desprovidos de saberes, participam e reivindicam seu
lugar no debate público?” (CARDOSO, 2007, p. 47).
Com base nessa questão, é possível ver quão importante é a demo-
cratização da informação para controle e promoção da cidadania, na busca
por uma proposta de comunicação que reconheça e traduza as diferentes
realidades de saúde no país, considerando os variados atores e interesses,
além das autoridades sanitárias.
O desafio é o rompimento do modelo comum, que tem como foco
o trabalho dos profissionais de comunicação para a produção intensa de
materiais promocionais, dando ênfase à publicidade. Para passar a trabalhar
no âmbito da promoção da saúde, seja aumentando o conhecimento da po-
pulação sobre os riscos e determinantes do processo saúde-doença, seja na
capacitação de líderes comunitários, entre outros (CARDOSO, 2007).
A utilização dessa abordagem pode favorecer práticas dialógicas e
plurais, justamente ao destacar a construção coletiva de materiais, respeitan-
do à diversidade e características regionais, étnicas, culturais e tecnológicas
(possibilidades de acesso). E também, devido à possibilidade de uma maior
participação popular, pois é possível trabalhar melhor com a cidadania, forta-
lecendo assim, a autonomia individual e da sociedade.
Outra questão importante de ser analisada é a presença da saúde na
mídia. Para avaliar essa questão, a Organização Pan-Americana de Saúde
(Opas) e a OMS patrocinaram uma pesquisa em 1997, chamada Comsalud,
que envolveu pesquisadores tanto brasileiros quanto de outros países latino-
americanos, na elaboração de um mapeamento de temas que apresenta-
vam relação com a saúde na mídia.
Foram mapeados jornais de grande circulação, programas de te-
levisão e rádio, levando em consideração o enfoque dado a um possível
tema relacionado à saúde. As conclusões não foram boas, no Brasil, todos
os veículos pesquisados utilizavam apenas 5,90% de seu espaço total para
falar algo sobre o campo citado. Revistas davam mais espaço (16%), seguidas
por rádios (5,28%), jornais (1,9%) e televisão (0,4%), quase sempre abordando
de forma negativa os temas, ora associando os serviços de saúde à incompe-
tência ora a mensagens negativas.

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


693
Logo, é evidente que para um avanço no desenvolvimento de uma
nova forma de comunicação, deve-se lembrar alguns pontos considerados
essenciais para que isso aconteça: superar a visão instrumental da comuni-
cação, maior comunicação no SUS (sendo essa descentralizada, inclusiva e
plural), maior espaço para o campo saúde nas mídias em geral, democrati-
zar o acesso às tecnologias de comunicação e investir em pesquisa e ensino,
tanto dos profissionais da saúde, quanto dos profissionais relacionados a
área da comunicação.
Além disso, é sempre bom lembrar um último ponto, talvez um dos
mais importantes para a realização desse processo de transformação da
comunicação para o campo saúde, o fato de que “a política deve estar
articulada com as novas possibilidades tecnológicas das redes digitais, e
estar assentada em metodologias que possibilitem uma participação mais
direta do cidadão na formulação e na fiscalização das ações na área da
saúde” (INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER, 2007, p. 18).
Apesar de se ressaltar que deve haver modificações e adaptações no
modelo de comunicação em saúde voltado para o SUS, também é necessário
compreender que esse processo é gradual e que, ao longo dos anos, vêm
ocorrendo avanços no debate. Exemplo disso é a deliberação da XI e da XII
Conferências Nacionais de Saúde de constituição de uma Rede Nacional e
Pública de Comunicação e Saúde (CARDOSO, 2007).
Entretanto, mesmo havendo esta proposta, existem inúmeros obstáculos
a serem enfrentados para que uma política que assuma um conceito de comu-
nicação tão ampliado quanto o conceito de saúde, seja posto em prática. Parte
está relacionada às mesmas razões que dificultam o avanço do SUS, por ser um
projeto que tem como característica incluir e que acaba por ser contrário a fortes
interesses políticos e econômicos. E a outra parte compreende alguns pontos, já
citados anteriormente, essenciais para que aconteça algum avanço no processo
de criação de um novo modelo de comunicação (CARDOSO, 2007).
Sendo assim, é de suma importância reafirmar a orientação demo-
crática e equitativa da comunicação, em que a mesma “figura como um
lugar privilegiado de produção e de circulação de informações em saúde”
(MORAES, 2007, p. 62), visto que, nas últimas décadas, as políticas em

Yuri Ferreira Coloneze


694
saúde vêm dependendo do uso racional da comunicação, seja para for-
mular ações, seja para influenciar o cotidiano.
A comunicação “é o enfrentamento de linguagens verbais e não ver-
bais de produção de sentidos que viabiliza condições de maior explicitação e
eficácia dos enunciados, dos processos de recepção e de circulação destas
informações” (MORAES, 2007, p. 63). Ou seja, é um elemento estratégico
na construção do SUS, em que para garantir o êxito do mesmo é essencial a
manutenção de um diálogo permanente com a comunicação, “investindo no
debate sobre o processo de construção de uma sociedade democrática, equi-
tativa, descentralizada, comprometida com o controle social e com o respeito
à cidadania” (MORAES, 2007, p. 65).
A informação é de fundamental importância, na garantia da democra-
cia, da equidade, da justiça e da qualidade de vida. Por isso a urgência da
inclusão e prática da comunicação em saúde nos SUS, procurando enfatizar
“um pacto pela qualidade, acesso e apropriação da comunicação e das infor-
mações sobre saúde, ampliando a perspectiva da comunicação pública, que
aceita o dissenso e constrói sujeitos e protagonistas que ajudam a consolidar
o SUS” (MORAES, 2007, p. 65).

ANÁLISE DAS BULAS DE MEDICAMENTO

Pelo que já foi apresentado, é claro e evidente que a bula de medi-


camento é um gênero de grande valor. Até porque, segundo dados publi-
cados pela revista Veja, em 10 de janeiro de 2001,

[...] o Brasil é o quinto país do mundo em consumo de medicamen-


tos, com uma farmácia para cada 3.000 habitantes, mais que o
dobro do recomendado pela Organização Mundial de Saúde. O
país é também campeão em mortes por intoxicação e, segundo
dados da Fundação Oswaldo Cruz, também citados pela revista,
30% das 80.000 mortes anuais por intoxicação têm como causa o
uso indevido de medicamentos. É provável que estes (tristes) fatos
estejam relacionados a uma criticável tendência à automedicação

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


695
por parte do brasileiro. Desaprovamos a prática da automedica-
ção, mas defendemos o argumento de que o acesso às informa-
ções contidas nas bulas é um direito do cidadão. (Apud PERFEITO,
OHUSCHI e BORGES, 2007, p. 2)

É importante ressaltar que as bulas dos medicamentos Novalgina,


Tylenol4 e Neosaldina5 foram selecionadas e utilizadas como objetos de estudo
com base em alguns critérios, entre eles o fato de que esses três medicamentos
estão entre os dez mais vendidos no país, segundo pesquisa recente feita pelo
Institute of Management Studies Health (IMS),6 divulgada pela revista Época na
reportagem “Rivotril: porque o medicamento é o segundo mais vendido no
país?” (2008 apud SEGATTO et al., 2009).
Sendo que, os três produtos farmacêuticos citados estão, respecti-
vamente, em quinto, segundo e sétimo lugares como medicamentos mais
vendidos no Brasil em 2004. Em nono, quinto e oitavo lugares, em 2008.
Também aparecendo em segundo e quarto em 1998 (Tylenol não apa-
rece na lista de medicamentos mais vendidos em 1998). Demonstrando
assim, que esses medicamentos são consumidos em grande escala pela
população brasileira, um fato que se vem repetindo há mais de dez anos,
conforme os dados do quadro 1.

4
Novalgina e Tylenol são analgésicos e antitérmicos, usados para aliviar a dor e reduzir ou
prevenir a febre.
5
Neosaldina é um analgésico e antiespasmódico indicado no tratamento da dor de cabeça ou cólicas.
6
Responsável por auditar a indústria farmacêutica.

Yuri Ferreira Coloneze


696
Quadro 1. Medicamentos mais vendidos no Brasil: 1998, 2004 e 2008.

1998 2004 2008


Cataflan (analgésico e Microvlar Microvlar
1
anti-inflamatório) (anticoncepcional) (anticoncepcional)

Neosaldina
Novalgina (analgésico e Rivotril (ansiolítico e
2 (analgésico e
antitérmico) anticonvulsivante)
antiespasmódico)

Hipoglós (pomada Hipoglós (pomada Puran T4 (hormônio


3
contra assaduras) contra assaduras) tireoidiano)

Buscopan Composto
Neosaldina (analgésico Hipoglós (pomada
4 (antiespasmódico e
e antiespasmódico) contra assaduras)
analgésico)

Voltaren (antirreumático, Neosaldina


Novalgina (analgésico
5 anti-inflamatório e (analgésico e
e antitérmico)
analgésico) antiespasmódico)

Buscopan
Rivotril (ansiolítico e Composto
6 Lexotan (ansiolítico)
anticonvulsivante) (antiespasmódico e
analgésico)

Salonpas
Tylenol (analgésico e
7 Redoxon (vitamina C) (analgésico e anti-
antitérmico)
inflamatório)

Buscopan Composto
Cataflan (analgésico e Tylenol (analgésico
8 (antiespasmódico e
anti-inflamatório) e antitérmico)
analgésico)

Sorine Novalgina
Neovlar
9 (descongestionante (analgésico e anti-
(anticoncepcional)
nasal) inflamatório)

Vick Vaporub (unguento Ciclo 21


10 Luftal (antigases)
descongestionante) (anticoncepcional)

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


697
Além disso, vale comentar que a escolha das bulas dos analgésicos
Novalgina, Neosaldina e Tylenol obedeceu a outros dois critérios: por se
tratarem de medicamentos que não precisam de prescrição médica, ou seja,
são de venda livre,7 e, também, por terem como princípios ativos8 o parace-
tamol 9 (Tylenol) e a dipirona sódica10 (Novalgina e Neosaldina), princípios
consumidos e conhecidos não somente no Brasil, mas em vários outros paí-
ses (PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007).
O medicamento Neosaldina é fabricado por Nycomed Pharma
LTDA.,11 Novalgina é produzida por Sanofi-Aventis Farmacêutica LTDA.12
e o Tylenol é direcionado ao mercado pelo laboratório Janssen-Cilag Far-
macêutica LTDA.13 (PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007).
Ao longo do processo de estudo, foram encontradas algumas difi-
culdades relacionadas a obter bulas de medicamento impressas, pois nos
estabelecimentos farmacêuticos pesquisados, os medicamentos eram ven-
didos já na forma fracionada.14
A venda de medicamentos na forma fracionada, apesar de não
ser foco deste estudo, também deve ser observada e possivelmente
estudada futuramente, pois a estratégia da Anvisa ao vender um medi-
camento dessa forma parece ser o modo encontrado pelo órgão para

7
Venda livre, quando a utilização de determinado medicamento não está restrita a populações especiais
(como pode ser observado nos medicamentos de venda restrita), mas sim a todo e qualquer consumidor.
8
Princípios ativos são substâncias responsáveis pelo efeito do medicamentos.
9
Paracetamol é um princípio ativo utilizado no tratamento de dor moderada inflamatória.
10
Dipirona sódica é um princípio ativo usado no tratamento de manifestações dolorosas e febre.
11
O Nycomed Pharma LTDA. está entre os doze maiores laboratórios do país e faz parte do grupo
Takeda, a maior companhia farmacêutica do Japão e uma das líderes da indústria farmacêutica
no mundo. O farmacêutico responsável é Wagner Moi.
12
Sanofi-Aventis Farmacêutica LTDA. é uma das empresas líderes da indústria farmacêutica mundial,
estando presente em mais de cem países. Pertence ao grupo Sanofi, um dos maiores grupos farma-
cêuticos do mundo, que possui a maior empresa do setor na Europa, e que está na liderança entre
as empresas localizadas nos países emergentes. A farmacêutica responsável é Antonia A. Oliveira.
13
Laboratório Janssen-Cilag Farmacêutica LTDA. é uma divisão farmacêutica da Johnson & Johnson,
a maior empresa do mundo na fabricação de produtos para cuidados com a saúde. O farmacêutico
responsável é Marcos R. Pereira.
14
É importante ressaltar que as bulas de Neosaldina e Tylenol só foram obtidas após intensa pro-
cura em algumas farmácias, sendo que, em uma delas, o farmacêutico comentou que é fornecida
uma bula para cada embalagem adquirida pela farmácia (com 100 ou 200 comprimidos, agrupa-
dos na forma de blister), um fato muito interessante, porque estabelece até uma contradição com o
próprio blister da Neosaldina, que apresenta a frase “Exija a bula”. Já a bula de Novalgina só foi
encontrada por meio da compra do medicamento em formato de solução oral (gotas).

Yuri Ferreira Coloneze


698
evitar a automedicação, mas as informações presentes em um blister
são muito curtas e pouco explicativas quando comparadas às de uma
bula. Somado a esse fator, está a questão de que, quando um compri-
mido é extraído, há perda de informações, além de que as cores utiliza-
das podem prejudicar o exercício de leitura do conteúdo apresentado.
A seguir serão apresentados os resultados da análise da redação
das bulas de medicamentos, dividida em duas seções: análise técnico-
sanitária e análise linguística. Essa divisão foi feita pelo fato de o texto
observado envolver a atuação de duas áreas de conhecimento distintas: a
vigilância sanitária e a língua portuguesa. Entretanto, é importante lembrar
que esta divisão não foi pensada no sentido de dissociar forma e conteúdo
no processo de leitura, até porque esss esferas estão em constante asso-
ciação neste processo.

Análise técnico-sanitária
Antes da apresentação da análise técnico-sanitária é de grande im-
portância lembrar que, conforme a resolução RDC nº47/2009, o corpo do
texto das bulas de medicamento direcionado ao paciente deve ser dividi-
do em: identificação do medicamento, informações ao paciente e dizeres
legais. Nas bulas analisadas, foram encontradas as seguintes estruturas
(construção composicional do gênero):

a) Identificação do medicamento (corresponde a determinadas


descrições de um medicamento): tópico em que é apresentado o nome da
marca (Novalgina, Neosaldina e Tylenol) e, logo abaixo, o nome do prin-
cípio ativo (dipirona sódica, para os dois primeiros, e paracetamol, para
o terceiro), restrição para faixa etária, via de administração, composição,
forma farmacêutica e maneira como ocorre a produção do medicamento
e como o mesmo se apresenta (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA
SANITÁRIA, 2009).

b) Informações ao paciente: item de grande importância, pois


é aquele direcionado explicitamente, aos consumidores, devendo trazer
informações claras e objetivas (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


699
SANITÁRIA, 2009), sendo que, segundo a resolução RDC nº 47/2009, a
apresentação desse tópico deve ser realizada em forma de perguntas e
respostas, em um total de nove questionamentos possíveis. Essas perguntas
estão organizadas da forma a seguir:
1) “Para que este medicamento foi indicado?”
De acordo com a RDC nº 47/2009, esta pergunta deve descrever as
indicações de uso do medicamento, registradas na Anvisa. Apresen-
tando o objetivo terapêutico, ou seja, se é destinado para o tratamento
diagnóstico, auxiliar ou prevenção de alguma doença.
2) “Como o medicamento funciona?”
Para a RDC supracitada, a segunda pergunta deve descrever as ações
do medicamento em linguagem acessível aos consumidores e informar
o tempo médio estimado para que um medicamento dê início a ação
farmacológica, ou seja, seu efeito.
3) “Quando não devo usar este medicamento?”
A resposta a essa pergunta deve apresentar as contraindicações de um
medicamento, ou seja, quando este não pode ser utilizado.
4) “O que devo saber antes de usar este medicamento?”
É necessário que essa pergunta descreva as precauções e advertências
relacionadas à necessária utilização de determinado medicamento com
alguns cuidados. Pode incluir informações para populações especiais
(diabéticos, por exemplo), alterações de condições fisiológicas (altera-
ções tanto internas quanto externas ao corpo humano), sensibilidade
cruzada (quadro alérgico provocado pelo uso de algum medicamento)
e interações medicamentosas (quando ocorre mistura entre um determi-
nado medicamento com bebidas e alimentos).
5) “Onde e por quanto tempo posso guardar este medicamento?”
Deve explicitar os cuidados específicos para o armazenamento do me-
dicamento e informar o prazo de validade do mesmo a partir da data
de fabricação constante no registro, citando o número de meses, além
de apresentar as características físicas (forma do medicamento) e orga-
nolépticas (cor, odor e sabor).

Yuri Ferreira Coloneze


700
6) “Como devo usar o medicamento?”
A resposta deve explicar a dosagem (posologia) adequada, de acordo
com faixa etária e populações especiais, e o intervalo entre cada uma,
além do tempo de tratamento e o risco (quando aplicável) de uso por
via de administração não recomendada.
7) “O que devo fazer quando eu me esquecer de usar este medicamento?”
Essa resposta tem de descrever a conduta adequada, caso haja esque-
cimento de administração (dose omitida).
8) “Quais os males que este medicamento pode causar?”
Questão que apresenta possíveis reações adversas (efeitos colaterais)
ao uso do medicamento, comentando sobre frequência e gravidade
do efeito.
9) “O que fazer se alguém usar uma quantidade maior do que a indi-
cada deste medicamento?”
Esta última pergunta deve apresentar e descrever os sintomas que ca-
racterizam a superdose e quais medidas preventivas tem de ser to-
madas quando ocorrer um caso de intoxicação, até a obtenção de
socorro médico.

c) Dizeres legais: esse item traz “o número do registro no Ministério


da Saúde, o nome e o número no Conselho Regional de Farmácia
(CRF) do farmacêutico responsável, o nome da empresa fabricante e o
telefone do Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC)” (PERFEITO, OHUSCHI
e BORGES, 2007, p. 6).
Para ilustração dos resultados da análise técnico-sanitária das bu-
las de medicamento utilizadas, será apresentada uma lista de verifica-
ção com dez itens exigidos pela Anvisa, segundo a RDC nº 47/2009, os
quais correspondem aos requisitos que as indústrias farmacêuticas de-
vem obedecer no que diz respeito à elaboração adequada de bulas de
medicamento para os consumidores.
Em cada pergunta, as bulas estarão sendo analisadas sobre os crité-
rios de conformidade ou não, em relação ao que foi estabelecido na resolu-
ção da diretoria colegiada do órgão. Vale ressaltar que cada item (pergunta)

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


701
pode ser desmembrado em subitens. Subentende-se que uma não confor-
midade encontrada em um determinado subitem leva a uma não conformi-
dade do item macro.15

Quadro 2. Lista de verificação relacionada à conformidade e


à não conformidade da forma e conteúdo e de itens presentes no
tópico “Informações ao paciente” (RDC nº 47/2009 da Anvisa).

CONFORME NÃO CONFORME


Novalgina Neosaldina Tylenol Novalgina Neosaldina Tylenol
Forma e
conteúdo das X X X
bulas
Para que este
medicamento X X X
foi indicado?
Como o
medicamento X X X
funciona?
Quando não
devo usar este X X X
medicamento?

O que devo
saber antes
X X X
de usar este
medicamento?

15
A avaliação completa pode ser encontrada no trabalho monográfico intitulado “Redação de bulas
de medicamento: uma análise interdisciplinar”, de Yuri Ferreira Coloneze, disponível na Biblioteca
Emília Bustamante, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV). O trabalho foi apre-
sentado na EPSJV em dezembro de 2011, como um dos pré-requisitos para obtenção do Certificado
de Conclusão do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio,
com habilitação em Vigilância em Saúde.

Yuri Ferreira Coloneze


702
Onde e
por quanto
tempo posso X X X
guardar este
medicamento?

Como
devo usar o X X X
medicamento?

O que
devo fazer
quando eu
X X X
me esquecer
de usar este
medicamento?

Quais os
males que este
X X X
medicamento
pode causar?

O que fazer
se alguém
usar uma
quantidade X X X
maior do que a
indicada deste
medicamento?

Existem alguns resultados apresentados no quadro 2 que devem ser


comentados, como o fato de que somente no segundo item as três bulas
estão em conformidade com a RDC atual; a partir do quinto item, todas as
bulas apresentaram não conformidade; a bula de Tylenol foi a que apresen-
tou número menor de não conformidades dentre as bulas analisadas. Esses
resultados são extremamente alarmantes, até porque as bulas são textos cujo
objetivo é fornecer informações para a população sobre determinado medi-

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


703
camento, desde a forma de armazenamento até as suas contraindicações e
reações adversas. Mas é perceptível que esse fornecimento pode ficar muito
prejudicado devido a variadas inadequações presentes no corpo das bulas.
Exemplo disso é a falta de termos explicativos para consumidores,
após a utilização de termos técnicos nas bulas de Novalgina e Neosaldina; a
falta de frases relacionadas a precauções e advertências para determinados
grupos populacionais, como mulheres e crianças; falta de informações sobre
prazos de validade e de mencionar os riscos relacionados ao uso por via
não recomendada, algo presente nas três bulas.
O que fica claro é que, mesmo com a retomada do debate em
relação à elaboração das bulas, que não é tão recente, os resultados con-
tinuam insatisfatórios. O grande problema é, se as bulas produzidas não
conseguem atender nem a normas estabelecidas pelo principal órgão de
fiscalização das mesmas, como encontrar um caminho para elaboração
de um texto direcionado aos consumidores.
Outra questão interessante é que, os medicamentos utilizados neste
trabalho são chamados de medicamentos de venda livre, logo, uma grande parte
da população brasileira consome estes medicamentos, ou seja, o consumidor
tem acesso às bulas, mas elas não estão a serviço de suas necessidades, visto
que todas apresentam número expressivo de inadequações técnicas.
Logo, ainda observando os resultados apresentados no quadro 2, aca-
ba por ser de grande necessidade uma nova análise no processo de elabo-
ração das bulas de medicamento, em que vale lembrar que, um caminho
para isso pode estar numa dupla e conjunta atuação, da área técnica com a
área de língua portuguesa, atuando nos dois principais aspectos que com-
põem esse gênero textual, as normas e a coesão e coerência das bulas.

ANÁLISE LINGUÍSTICA

Antes da análise linguística das bulas, é importante ressaltar a carac-


terização deste texto enquanto gênero textual, pois para Bakhtin existem três
aspectos que caracterizam um determinado texto nesse aspecto: “o conteúdo

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temático, isto é, aquilo que pode ser dizível num gênero (os assuntos, os te-
mas típicos); o estilo, ou seja, a escolha dos recursos linguístico-expressivos do
gênero; a construção composicional, ou formas de organização textual” (apud
PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007, p. 3).
Conforme Bakhtin, esses três elementos “estão indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da comunicação” (2003,
p. 262), como, por exemplo, o campo da saúde. Aspectos que também
estão intimamente associados às condições de produção: quem fala;
para quem fala; com que finalidade; em que época, local e suporte
(apud PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007, p. 3).
Entretanto, é importante salientar que cada gênero não está “solto”
no espaço, ele está dentro de um conjunto ideológico de variadas forças,
que são chamadas de esferas comunicativas: esferas do cotidiano, exem-
plificadas pelas esferas familiares e comunitárias, e as esferas dos sistemas
ideológicos constituídos, nas quais estão incluídas a ciência, a religião, a
política, a arte etc. E em cada uma dessas esferas há um específico conjunto
de gêneros, o que pode ser exemplificado pela esfera jornalística, em que há
o editorial, o artigo de opinião, entre outros. Ademais, vale ressaltar que todas
as esferas conversam entre si (PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007).
Por essas razões, pode-se concluir que os aspectos a serem observados
e analisados em textos de diferentes gêneros discursivos são referentes a:
• contexto de produção: “autor/enunciador, destinatário/interlocutor,
finalidade, época e local de publicação e circulação”;
• conteúdo temático: “ideologicamente conformado – temas avalia-
tivamente manifestados por meio dos gêneros, explorando-se, assim,
sobretudo na leitura, para além da decodificação, a predição, inferên-
cia, críticas, criação de situações-problema, emoções suscitadas etc.;”
• construção, forma composicional: “elementos de estrutura comu-
nicativa e de significação”;
•marcas linguísticas: “de regularidade na construção composicional
e linguística do gênero, veiculadas, dentre outras, pela expressividade
do locutor” (PERFEITO, OHUSCHI e BORGES, 2007, p. 3).

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Ao enxergar o fato de que a bula é um gênero de grande impor-
tância na vida cotidiana dos indivíduos e que também tem como interlo-
cutores os profissionais da área da saúde, acaba por ficar claro uma de
suas principais características. Um gênero textual cuja leitura pode ser
feita por qualquer cidadão, seja para orientá-lo sobre informações de
um medicamento qualquer, seja para amenizar um mal-estar (PERFEITO,
OHUSCHI e BORGES, 2007).
Ao longo deste procedimento de análise foi perceptível o fato de que
houve avanços em relação a questões que envolvem a linguística, entretanto,
será de grande importância que a Anvisa compreenda que, para estabeleci-
mento de uma análise adequada da redação de uma bula de medicamentos
deve se levar em consideração tanto aspectos técnicos quanto linguísticos,
ou seja, a forma e o conteúdo das bulas de medicamento. Esferas que estão
interligadas e que podem contribuir na formação de um texto de fácil compre-
ensão tanto para consumidores quanto para profissionais da saúde.
As três bulas apresentam marcas linguísticas16 que as caracterizam
como gênero textual. Essas marcas são apontadas e exemplificadas, resu-
midamente, a seguir.

16
As partes das bulas utilizadas como exemplo neste artigo foram transcritas.

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Interlocuções diretas: exemplificadas no formato pergunta/resposta
presente nas bulas de Novalgina e Tylenol, e no uso do pronome de trata-
mento você na bula de Tylenol, o que provavelmente está relacionado com
uma tentativa do enunciador de aproximação do texto ao leitor. É importante
comentar que essa marca linguística não foi utilizada na bula de Neosaldina,
que seguiu outro formato que não é orientado pela RDC vigente.

Novalgina Neosaldina Tylenol


INFORMAÇÕES AO AÇÃO ESPERADA QUANDO NÃO
PACIENTE/COMO DO MEDICAMENTO: DEVO USAR ESTE
ESTE MEDICAMENTO Neosaldina® é um MEDICAMENTO?
FUNCIONA? medicamento com
Contraindicações
atividade analgésica
NOVALGINA® é um
e antiespasmódica Você não deve tomar
medicamento à base
indicado para o TYLENOL® se tiver
de dipirona sódica,
tratamento de diversos hipersensibilidade
utilizado no tratamento
tipos de dor de (alergia) ao
das manifestações
cabeça ou cólicas. paracetamol ou aos
dolorosas e febre.
outros componentes
Para todas as formas
da fórmula.
farmacêuticas, os efeitos
analgésico e antitérmico
podem ser esperados
em 30 a 60 minutos
após a administração e
geralmente duram cerca
de 4 horas.

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Verbos modalizadores: indicando obrigação e possibilidade, refor-
çando a ideia de que a bula de medicamentos é um gênero textual instrutivo,
ou seja, que oferece, neste estudo especificamente, como usar de forma ade-
quada um medicamento. Podem ser observador nas três bulas, mediante a
utilização das flexões de verbos: deve-se, não devem, pode e não deve.

Novalgina Neosaldina Tylenol


Pacientes idosos Interações Gravidez e
medicamentosas amamentação
Em pacientes idosos
deve-se considerar a Pode ocorrer Em casos de uso por
possibilidade de desen- hipotermia grave mulheres grávidas ou
volvimento de insuficiên- quando Neosaldina® amamentando, a admi-
cia hepática e renal. for associada à nistração deve ser feita
clorpromazina. por períodos curtos.
Crianças
Pela presença da Este medicamento não
Crianças menores de deve ser utilizado por
dipirona, Neosaldina®
3 meses de idade ou mulheres grávidas sem
não deve ser utilizada
peso inferior a 5 kg orientação médica ou
concomitante
não devem ser tratadas do cirurgião-dentista.
ao álcool, pois
com NOVALGINA®. É
pode ocorrer
recomendada supervi-
potencialização dos
são médica quando se
efeitos do álcool. Em
administra em crianças
pacientes recebendo
com mais de 3 meses
concomitante
e crianças pequenas.
tratamento com
ciclosporina, os níveis
de ciclosporina
no plasma podem
ser reduzidos.
Portanto, dosagens
da concentração
plasmática de
ciclosporina são
recomendadas em
intervalos regulares.

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Operadores argumentativos (conjunções): utilizados para manuten-
ção de aspectos coesivos do texto, e que estão presentes nas três bulas: como
(causa), e (adição), se (condição), ou (alternância), pois (explicação) e ou se.

Novalgina Neosaldina Tylenol


Por que este medica- Gravidez e lactação: Advertências
mento foi indicado?
informe imediatamente Você não deve tomar
Este medicamento é ao médico se houver mais do que a dose
indicado como analgé- suspeita de gravidez, recomendada (super-
sico e antitérmico. durante ou após o dose) para provocar
uso do medicamento e maior alívio, pois
se estiver amamentando. pode causar sérios
problemas de saúde.
Você não deve usar o
medicamento para dor
por mais de
10 dias ou para febre
por mais de 3 dias,
exceto sob orientação
médica. Você deve
consultar seu médico
se a dor ou febre con-
tinuarem ou piorarem,
se surgirem novos
sintomas ou se apare-
cerem vermelhidão ou
edema, pois estes sin-
tomas podem ser sinais
de doenças graves.

Redação da bula de medicamentos: uma análise interdisciplinar


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Adjetivos: são elementos utilizados para qualificar determinados sinto-
mas, especificamente. Os adjetivos leves e moderadas, presentes no exemplo
abaixo, foram colocados para caracterizar o substantivo dores.

Tylenol
Por que este medicamento foi indicado?
TYLENOL® é indicado em adultos para a redução da febre e para o alívio
temporário de dores leves a moderadas, tais como: dores associadas a gripes e
resfriados comuns, dor de cabeça, dor de dente, dor nas costas, dores muscu-
lares, dores associadas a artrites e cólicas menstruais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre língua e saúde, mais especificamente entre língua por-


tuguesa e vigilância sanitária, na produção de bulas adequadas para os
consumidores é de vital importância, seja procurando se aproximar do leitor
leigo por meio de uma linguagem mais acessível, mais clara em relação a
questão gramatical, seja tentando ser mais coerente no uso cada vez mais
reduzido de termos técnicos.
Com base na análise das bulas, ficou claro que o processo de reformu-
lação ainda tem um longo caminho a percorrer. O que pode ser observado
especialmente pela análise da bula de Novalgina e de Neosaldina. No que diz
respeito à primeira bula, o enunciador optou pela utilização, em grande escala,
de termos técnicos. Já a análise da segunda permitiu-nos observar que a obje-
tividade gerou, em determinados momentos, certa confusão.
Já a bula de Tylenol apresentou boa utilização de operadores argumenta-
tivos e utilizou poucos termos técnicos ao longo de sua redação, mas apresentou
várias inadequações em relação a análise técnico-sanitária. Esses resultados
sugerem algumas perguntas a serem discutidas posteriormente:
• na ausência de explicação de termos técnicos, as informações trazidas
por eles têm grande possibilidade de não serem compreendidas pelo

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leitor leigo. Nesse caso, como justificar a manutenção desses termos,
os quais estão relacionados frequentemente às reações adversas raras?
• em que medida as indústrias farmacêuticas ou os laboratórios, res-
ponsáveis pela elaboração das bulas de medicamento de venda livre
têm interesse em fortalecer a relação entre médicos e pacientes, contri-
buindo, assim, para minimizar a automedicação?
Além disso, vale lembrar que, ao longo dos anos, variados veículos
de comunicação apresentaram informações sobre o início da reformula-
ção das bulas para pacientes. Entretanto, conforme observado ao longo
das análises presentes neste estudo, ainda existem bulas com inadequa-
ções tanto em relação à questão técnica quanto à questão linguística,
prejudicando, assim, a compreensão dos cidadãos.
É sempre necessário observar que a bula é um gênero textual impor-
tante para a sociedade, mas esse texto não substitui e não poderá substituir
a relação médico–paciente. Além disso, é de vital importância ressaltar o
papel do cidadão, que também pode contribuir nesse processo, encami-
nhando dúvidas e questionamentos para a ouvidoria da Anvisa e para a
Gerência Geral de Medicamentos (GGMED), setor que está intimamente
relacionado com os medicamentos e, consequentemente, com as bulas.
Uma das grandes dificuldades ao longo da elaboração deste estudo
foi a escassez de textos relacionados às bulas e à importância das mesmas.
O que caracteriza um grande problema, pois como construir novos caminhos
para o processo de elaboração das bulas se o tema carece de discussões e
debates? O interessante é que o tema aparece, de forma mais intensa, em
alguns períodos, mas pouco se faz em relação ao desenvolvimento de estudos
desse gênero textual tão importante, algo que deveria ser considerado e re-
pensado, principalmente pelo órgão regulador das mesmas, a Anvisa.

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Este livro foi impresso pela Editora e Papeis Nova Aliança, para a
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, em abril de 2014.
Utilizaram-se as fontes Futura, Minister e Mexacali na composição,
papel offset 75g/m2 no miolo e cartão supremo 250g/m2 na capa.

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