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Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar a concepção kantiana do homem como “cidadão de dois
mundos”, isto é, aquela aparente idéia dualista fundada a partir da doutrina do Idealismo Transcendental
do Sujeito kantiano. É desde a compreensão da razão em sentido tríduo (como razão teórica, razão
especulativa e razão prática) que podemos conceber de que modo a distinção efetuada entre “o que
podemos conhecer” e “o que podemos pensar” reflete ou produz consequências em relação à questão
acerca “do que podemos fazer”. Ao falar do homem como cidadão tanto do mundo sensível como do
mundo inteligível, Kant é incisivo em assinalar o modo pelo qual deve ser adotada tal perspectiva. Como
opções há um modo de adotá-la como se tratando de dois mundos ontologicamente separados ou somente
como dois pontos de vista conceitualmente adotados. O decorrer do estudo demonstrará que o filósofo
admite somente uma distinção conceitual, possível desde a esfera do puro pensamento. Para tanto, essa
questão será apresentada como atrelada ao problema da elucidação kantiana acerca da compatibilidade
entre natureza e liberdade no interior da filosofia crítica, além de demarcar as possibilidades de admitir
uma liberdade prática em prol do pensamento transcendental da mesma.
Palavras-chave: Causalidade da liberdade. Causalidade da natureza. Liberdade prática. Liberdade
transcendental. Unidade da razão.
Considerações Iniciais
1
A obra intitulada Crítica da Razão Pura doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRP.
2
com o que se pode conhecer no seu exercício teórico. É daí que a distinção entre
“mundo sensível” e “mundo inteligível” traz a compatibilidade entre a natureza,
pensada pelo entendimento (Verstand), e a liberdade, pensada pela razão (Vernunft), na
medida em que o pensamento nestes domínios se constitui de modo diferente, sendo
antes compatíveis e não contraditórios, já que tratam-se de dois pontos de vista
conceitualmente adotados.
Para conhecer um objeto é necessário poder provar a sua possibilidade (seja pelo
testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso
pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo, isto é, desde
que o meu conceito seja um pensamento possível, embora não possa responder que, no
conjunto de todas as possibilidades, a esse conceito corresponda ou não também um
objeto. Para atribuir, porém, a um tal conceito validade objetiva (possibilidade real, pois
a primeira era simplesmente lógica) é exigido mais. Mas essa qualquer coisa de mais
não necessita ser procurada nas fontes teóricas do conhecimento, pode também
encontrar-se nas fontes práticas (KANT, 2010, p.25).
sensibilidade e impõe para si mesmo os limites daquilo que pode conhecer, ou seja, que
pode apenas pensar a coisa em si e jamais conhecê-la mediante qualquer categoria (Cf.
KANT, 2010, p.271). Na esfera especulativa da razão, diferentemente da esfera do
conhecimento, a fim de se pensar um objeto é requerida apenas a sua possibilidade, isto
é, que o conceito ali pensado não se contradiga. Neste sentido, como observa Krings
(Apud NODARI, 2009, p.83), o pensar é aqui o que potencializa o conhecimento, em
vez de constituir meramente uma alternativa à falta dele:
O pensar inaugura um caminho /.../ Corresponde à abertura da razão /.../ Kant não
exclui absolutamente a possibilidade de poder pensar a coisa em si, muito embora
declare explicitamente não poder conhecê-la. Ele quer estabelecer, contudo, a
possibilidade de um uso supra-sensível da razão, pois, de acordo com a KrV [Crítica
da razão pura], é excluído o conhecimento, mas não o pensamento da coisa em si,
pois o pensar está essencialmente livre das condições da sensibilidade (NODARI,
2009, p.83).
a faculdade capaz de iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por sua vez,
subordinada, segundo a lei natural, a outra causa que a determine quanto ao tempo. A
5
liberdade é, neste sentido, uma ideia transcendental pura que, em primeiro lugar nada
contém de extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado
de maneira determinada em nenhuma experiência, porque é uma lei geral, até da
própria possibilidade de toda a experiência /.../ Como /.../ não se pode obter a
totalidade absoluta das condições na relação causal, a razão cria a ideia de uma
espontaneidade que poderia começar a agir por si mesma, sem que uma outra causa
tivesse devido precede-la para a determinar a agir segundo a lei do encadeamento
causal (KANT, 2010, p.463).
4
Segundo Kant, o arbítrio humano quando é determinado independentemente dos impulsos sensíveis e
unicamente pela razão pura prática chama-se arbitrium liberum; em contraposição o arbítrio
patologicamente afetado pelos impulsos sensíveis que é chamado arbitrium sensitivum, o que não é o
mesmo que um arbitrium brutum que é aquele unicamente animal e por isso patologicamente necessitado
(Cf. KANT, 2010, p.463)
5
Isto é, a razão especulativa jamais pode sequer admitir um uso, significado, objeto, ou mesmo realidade
a ideia de liberdade.
6
A liberdade prática pode ser demonstrada por experiência. Com efeito, não é apenas
aquilo que estimula, isto é, que afeta imediatamente os sentidos, que determina a
vontade humana; também possuímos um poder de ultrapassar as impressões exercidas
sobre a nossa faculdade sensível de desejar, mediante representações do que é, mesmo
longinquamente, útil ou nocivo; mas estas reflexões em torno do que é desejável em
relação a todo o nosso estado, quer dizer, acerca do que é bom e útil, repousam sobre a
razão [Vernunft]. Por isso, esta também dá leis, que são imperativos, isto é, leis
objetivas da liberdade e que exprime o que deve acontecer, embora nunca aconteça, e
distinguem-se assim, das leis naturais, que apenas tratam do que acontece; pelo que
são também chamadas leis práticas. (KANT,2010, p.637-638).
No dizer de Kant “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (KANT,
2010, p.636). E isso demonstra o significado positivo deste conceito, no sentido de que
só agora, pela faculdade da razão pura prática, a liberdade adquire validade e
demonstração. Kant afirma na Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen
Vernunft, 1788)6 que os sentidos não são os únicos a determinar a vontade humana; o
homem pode ultrapassar as impressões sensíveis da faculdade sensível de desejar7, já
que aí as reflexões sobre o que é moral e útil dizem respeito à razão prática (vontade
incondicionada). É por isso que a faculdade da razão pura prática determina a vontade:
ela dá leis objetivas a uma vontade capaz de agir segundo a liberdade (autodeterminação
ou héautonomia), e que exprime o que deve acontecer, independentemente do que
aconteça. À base dessa perspectiva Kant demonstra o uso prático da razão, como o
único capaz de oferecer um critério universalmente válido para estabelecer a lei pura a
priori para a ação.
A lei prática universal da ação permite pensar então a transição da liberdade
definida em sentido transcendental à definida em sentido prático, e possibilitada pela
causalidade incondicionada dos seres vivos enquanto “racionais” (liberdade da
vontade). Embora seja o sujeito dotado de entendimento (Verstand) e de razão
(Vernunft), sua vontade pode ser sensivelmente afetada, mas não necessita ser
sensivelmente determinada, pois a faculdade da razão pura prática é capaz de
determinar a vontade “incondicionalmente”, sem nenhum pressuposto ou inclinação
sensível. Exclusivamente sob o conceito de liberdade (causalidade incondicionada de
sua vontade) pode o homem, como ser racional, pensar a si como pertencendo ao mundo
inteligível e sujeito autônomo e, também, pensar a si mesmo como sujeito pertencendo
ao mundo sensível e obedecendo às leis da esfera fenomênica. A seguir apresenta-se a
distinção conceitual trazida por Kant entre mundo sensível e mundo inteligível. Ao
contrário das interpretações que vêem nela um prejuízo para o Projeto da Filosofia
transcendental, será defendido aqui, que ela é crucial à demonstração do primado da
razão prática no sistema arquitetônico da razão.
6
A obra intitulada Crítica da Razão Prática doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRPr.
7
Na CRPr Kant distingue uma vontade inferior, como princípios práticos materiais, são as máximas
subjetivas contingentes; de uma vontade superior, como princípios práticos formais, são as leis morais
objetivas universais (Cf. KANT, 2008a, p.38).
7
mostra sob o nome das idéias uma espontaneidade tão pura que por ela ultrapassa de
longe tudo o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento; e mostra a sua mais
elevada função na distinção que estabelece entre mundo sensível e mundo inteligível,
marcando também assim os limites ao próprio entendimento (KANT, 2008b, p.105-
106).
8
A obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes doravante será chamada sempre de modo
abreviado: FMC.
8
Considerações Finais
A divisão /.../ do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode,
pois, ser aceite [em sentido positivo], embora os conceitos admitam, sem dúvida, a
divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais (KANT, 2010, p.270-271,
grifos meus).
9
A lei moral transporta-nos, em ideia, para uma natureza em que a razão pura, se fosse
provida de um poder físico a ela adequado, produziria o soberano bem, e determina a
nossa vontade a conferir a sua forma ao mundo sensível enquanto conjunto dos seres
racionais (KANT, 2008, p.67, grifos meus).
Enfim, após esta breve análise é possível determinar que o fio condutor de Kant
para a distinção do homem como “cidadão de dois mundos”, relativo aos dois diferentes
usos da razão segundo suas diferentes esferas (razão teórica - mundo sensível; e razão
prática – mundo inteligível) é o conceito de liberdade, cuja realidade é demonstrada pela
lei apodítica da razão pura prática e que se constitui, por isso, em pedra angular do
sistema da razão pura. Ao mesmo tempo, tal conceito justifica a tríade da razão em
relação aquilo que podemos conhecer (1), o que podemos pensar (2), e o que podemos
fazer (3): o primeiro referindo-se à natureza empiricamente condicionada (razão
teórica), sob o domínio do entendimento (Verstand); o segundo como abertura ao
pensamento de objetos que não têm sentido empírico, pois concernem ao âmbito
especulativo da razão, que pensa as ideias transcendentais. E, por fim, no uso dos
conceitos inteligíveis da razão, a possibilidade de conceber a esfera prática, relativa ao
uso de conceitos para a ação e para o “fazer”, na esfera prática da razão, capaz de
efetivar o conceito de liberdade como causalidade incondicionada da vontade humana.
Portanto, só a partir da distinção apresentada por Kant, na Dialética
Transcendental, entre natureza e liberdade se pode começar a pensar a tríade dos usos
da razão, conduzindo-nos a partir disso ao pensamento do homem como cidadão de dois
mundos. Pois, só através da inquietação por uma causalidade incondicionada se justifica
toda relação causal da natureza sensível, inserida por Kant no conceito de liberdade
como pedra angular do pensamento de um possível sistema da razão.
Referências Bibliográficas
Obras de Kant:
KANT, I. Crítica da Razão Prática. Tradução: Artur Morão. 9ª Edição. Lisboa: Edições
Setenta, 2008a.
____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Lisboa:
Edições Setenta, 2008b.
9
Se preferir pode-se entender o âmbito prático como o pensamento de uma esfera puramente inteligível.
10
____. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 7ª. Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
Obras Secundárias:
Autoria:
Kant e a Concepção do Homem como “Cidadão de Dois Mundos”: A Conciliação
entre Natureza e Liberdade.....................................................................................22-32
Profª. Mestranda Vanessa Brun Bicalho (PPG-FIL/UNIOESTE);
Orientador: Prof. Dr. Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE).
E M P Ó R I O - Revista de Filosofia
Número 4 – 2011- Anual
ISSN: 1984-0039
Empório São João Del Rei Nº. 4 p.1 – 70. Jan. a Dez./2011
Empório – Revista de Filosofia
Universidade Federal de São João del-Rei
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da UFSJ
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