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KANT E A CONCEPÇÃO DO HOMEM COMO “CIDADÃO DE DOIS MUNDOS”:

A CONCILIAÇÃO ENTRE NATUREZA E LIBERDADE

Vanessa Brun Bicalho


Mestranda em Filosofia
Orientador: Dr. Luciano Carlos Utteich
UNIOESTE

Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar a concepção kantiana do homem como “cidadão de dois
mundos”, isto é, aquela aparente idéia dualista fundada a partir da doutrina do Idealismo Transcendental
do Sujeito kantiano. É desde a compreensão da razão em sentido tríduo (como razão teórica, razão
especulativa e razão prática) que podemos conceber de que modo a distinção efetuada entre “o que
podemos conhecer” e “o que podemos pensar” reflete ou produz consequências em relação à questão
acerca “do que podemos fazer”. Ao falar do homem como cidadão tanto do mundo sensível como do
mundo inteligível, Kant é incisivo em assinalar o modo pelo qual deve ser adotada tal perspectiva. Como
opções há um modo de adotá-la como se tratando de dois mundos ontologicamente separados ou somente
como dois pontos de vista conceitualmente adotados. O decorrer do estudo demonstrará que o filósofo
admite somente uma distinção conceitual, possível desde a esfera do puro pensamento. Para tanto, essa
questão será apresentada como atrelada ao problema da elucidação kantiana acerca da compatibilidade
entre natureza e liberdade no interior da filosofia crítica, além de demarcar as possibilidades de admitir
uma liberdade prática em prol do pensamento transcendental da mesma.
Palavras-chave: Causalidade da liberdade. Causalidade da natureza. Liberdade prática. Liberdade
transcendental. Unidade da razão.

Considerações Iniciais

A exposição do desenvolvimento do conceito transcendental e prático da


liberdade, na justificativa de contrapor-se ao problema da causalidade condicionada da
natureza, é o que torna possível compreender a teoria kantiana da “dupla natureza” do
sujeito. Quando Kant fala do homem como “cidadão de dois mundos” refere-se,
intrinsecamente, à distinção apresentada na Dialética Transcendental da Crítica da
Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft, 1781)1 entre causalidade pela natureza e
causalidade pela liberdade, na qual admite a possibilidade de compatibilizar natureza e
liberdade no interior de seu sistema. Ocorre que a afirmação da liberdade transcendental
como uma espontaneidade absoluta capaz de iniciar em si e por si mesma a totalidade
da relação causal na esfera dos fenômenos não tem sua realidade demonstrada por um
recuo à experiência, porque se trata de um conceito transcendental da razão (Vernunft),
que não carece de nenhuma intuição e nem se aplica a objetos da experiência por meio
de categorias. Diante do impasse de justificar a realidade desta causalidade
incondicionada criada pela razão, Kant abre para as implicações práticas do conceito de
liberdade, em detrimento do efeito meramente especulativo do conceito transcendental
da mesma. Ele funda assim a liberdade prática sob o pensamento do seu conceito
transcendental, em visto de que, dirá, a “supressão da liberdade transcendental anularia
simultaneamente toda a liberdade prática” (KANT, 2010, p. 464).
Apresenta-se nisso a indispensabilidade de se compreender o desenvolvimento
do conceito de liberdade a fim de se justificar o pensamento da “dupla natureza” do
homem. Neste sentido, a fundamentação kantiana dos “objetos” de experiência que a
razão teórica (Verstand) conhece é necessária e indispensável, mas por si não é
suficiente em face do interesse e da necessidade da razão (Vernunft) na busca de
totalidade e sistematicidade. No dizer de Kant, a possibilidade de se fundar outro uso da
razão, fora do mundo dos fenômenos, torna capaz a satisfação daquela necessidade ao
se tratar de uma esfera de coisas puramente inteligíveis, cujo uso não entra em conflito

1
A obra intitulada Crítica da Razão Pura doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRP.
2

com o que se pode conhecer no seu exercício teórico. É daí que a distinção entre
“mundo sensível” e “mundo inteligível” traz a compatibilidade entre a natureza,
pensada pelo entendimento (Verstand), e a liberdade, pensada pela razão (Vernunft), na
medida em que o pensamento nestes domínios se constitui de modo diferente, sendo
antes compatíveis e não contraditórios, já que tratam-se de dois pontos de vista
conceitualmente adotados.

1. A distinção entre conhecer (fenômeno) e pensar (noumeno)

No capítulo dedicado à “Solução das idéias cosmológicas” da “Dialética


Transcendental”, Kant compatibiliza natureza e liberdade sem causar dano ao projeto de
Filosofia Crítica. Nesta seção Kant afirma que em relação a tudo o que acontece existem
somente duas espécies de causalidade: a causalidade pela natureza e a causalidade pela
liberdade. A causalidade natural diz respeito ao fenômeno, no qual se apresenta a
possibilidade de pensar a ligação de um estado precedente a um estado atual a partir de
uma regra2 12. Pelo contrário, a causalidade da liberdade é entendida em sentido
transcendental, como a faculdade capaz de iniciar por si mesma um estado e que não se
encontra subordinada ao tempo e nem à lei natural3. Para Kant a necessidade de uma
causalidade incondicionada que justifique toda cadeia causal da natureza empírica se
fundamenta na proposta de não reduzir o conjunto da natureza ao simples fenômeno. É
por conta da impossibilidade de obter a totalidade absoluta das suas condições na
natureza que a razão cria a ideia de uma espontaneidade, capaz de iniciar em si mesma e
por si mesma um evento no conjunto dos fenômenos (Cf. KANT, 2010, p.462-463).
Ainda que seja colocada para o entendimento (Verstand) a tarefa de conceber
empiricamente a totalidade absoluta das condições de todas as relações de causalidade
sensível, isto não se mostra possível porque a razão (Vernunft) é a faculdade de que
depende o pensamento de tal causalidade, como a faculdade que tematiza o
incondicionado e investiga uma primeira causa como condição da natureza. Por isso a
figura numênica é aquela que apresenta a elucidação do problema da causalidade da
natureza: ela mostra como devendo ser pensado fora da esfera do conhecer o princípio
incondicionado, que fundamenta toda causalidade fenomênica e cujos efeitos se
manifestam na natureza.
Ao situar-se exclusivamente na esfera numênica, o conceito de uma causalidade
incondicionada, garantida pelo conceito de liberdade transcendental, permite ser
pensado. É desde esta esfera puramente inteligível que também se deixam pensar os
limites (Grenze) do conhecimento no uso das categorias do entendimento, já que a razão
teórica (Verstand) não dá conta de conhecer esta totalidade (Cf. KANT, 2010, p.269).
Na dimensão especulativa da razão a liberdade tem de ser pensada, a fim de satisfazer
em sua plenitude o pensamento acerca do domínio dos objetos de conhecimento. Kant
insere a distinção entre conhecer (ordem do fenômeno) e pensar (ordem do noumeno)
porque, embora não seja possível conhecer o conceito transcendental de liberdade, é
2
A causalidade da natureza, exprime Kant, “repousa em condições de tempo, e o estado precedente, se
sempre tivesse sido, não teria produzido um efeito que se mostra pela primeira vez no tempo, a
causalidade da causa do que acontece ou começa, também começou e, segundo o princípio do
entendimento, tem necessidade, por sua vez, de uma causa” (KANT, 2010, p.462-463).
3
A respeito da causalidade incondicionada da liberdade, define Kant: “A liberdade é, neste sentido
[sentido especulativo da razão], uma idéia transcendental pura que, em primeiro lugar, nada contém
extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira determinada em
nenhuma experiência, porque é uma lei geral, até da própria possibilidade de toda experiência” (KANT,
2010, p.463).
3

logicamente permitido pensá-lo sem nenhuma contradição, como expressa na seguinte


passagem:

Para conhecer um objeto é necessário poder provar a sua possibilidade (seja pelo
testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso
pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo, isto é, desde
que o meu conceito seja um pensamento possível, embora não possa responder que, no
conjunto de todas as possibilidades, a esse conceito corresponda ou não também um
objeto. Para atribuir, porém, a um tal conceito validade objetiva (possibilidade real, pois
a primeira era simplesmente lógica) é exigido mais. Mas essa qualquer coisa de mais
não necessita ser procurada nas fontes teóricas do conhecimento, pode também
encontrar-se nas fontes práticas (KANT, 2010, p.25).

Ao ser determinada a extensão e os limites do conhecimento através do uso do


entendimento (Verstand), têm-se a perspectiva da razão (Vernunft) que permite pensar o
uso das categorias para além da esfera do conhecimento, como uma exigência e
necessidade de poder pensar a coisa em si (Dinge an sich), sem entrar com isso em
contradição com a esfera teórica da razão. Neste sentido, a fundamentação da
possibilidade do conhecimento a priori leva consigo ainda a possibilidade de um uso
das categorias no puro pensamento. E para compreender a possibilidade de um uso das
categorias no puro pensamento é preciso resgatar a atividade da razão teórica
(Verstand), no conhecimento dos objetos sensíveis, e fazer compreender que na esfera
da razão pura (Vernunft) se trata apenas de pensar, especulativamente, objetos
transcendentais, sem tratar de conhecê-los (em sentido determinado e empiricamente).
Para o conhecimento pela razão teórica exigem-se duas faculdades, por meio das quais
se efetiva a atividade objetiva de toda experiência possível: a sensibilidade, que consiste
na receptividade pura das representações dadas, e o entendimento, que consiste na
capacidade de pensar um objeto mediante a espontaneidade pura dos conceitos.
Mediante a faculdade do entendimento o objeto é pensado como posto em relação com a
representação dada pela faculdade da sensibilidade. A intuição dada pela sensibilidade e
os conceitos pensados pelo entendimento constituem assim, segundo Kant: “os
elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição
que de qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar
um conhecimento” (KANT, 2010, p. 88).
E isso justifica que sem a união destas duas faculdades nenhum conhecimento de
objetos é possível. Por outro lado, como na esfera do noumeno não se encontra a
unidade do espaço e do tempo (dados como formas puras da sensibilidade), cessa nela a
aplicação legítima (realidade objetiva) das categorias. Neste espaço, denominado de
espaço-vazio, têm-se o lugar para o uso dos conceitos transcendentais. A exigência é de
que tal espaço seja preenchido por objetos que fazem sentido de ser pensados, isto é,
objetos cujos predicados não produzam em si mesmo contradição. Kant denomina tal
espaço de esfera especulativa da razão ou esfera do noumeno em sentido negativo,
porque diz respeito àquilo que o entendimento deve pensar só como coisa em si (Dinge
an sich) (Cf. KANT, 2010, p. 268-269). Esta esfera puramente especulativa da razão
(númeno em sentido negativo) é concebida como lugar de um conceito-limite, um
pensamento que deve “cercear a pretensão da sensibilidade e, portanto, para uso
simplesmente negativo” (KANT, 2010, p.270).
Muito embora seja caracterizada como possível apenas para um “uso negativo”,
nem por isso tal esfera deve ser admitida à título de uma ficção arbitrária, uma vez ela
diz respeito a uma ampliação negativa do entendimento, que simultaneamente limita a
4

sensibilidade e impõe para si mesmo os limites daquilo que pode conhecer, ou seja, que
pode apenas pensar a coisa em si e jamais conhecê-la mediante qualquer categoria (Cf.
KANT, 2010, p.271). Na esfera especulativa da razão, diferentemente da esfera do
conhecimento, a fim de se pensar um objeto é requerida apenas a sua possibilidade, isto
é, que o conceito ali pensado não se contradiga. Neste sentido, como observa Krings
(Apud NODARI, 2009, p.83), o pensar é aqui o que potencializa o conhecimento, em
vez de constituir meramente uma alternativa à falta dele:

O pensar inaugura um caminho /.../ Corresponde à abertura da razão /.../ Kant não
exclui absolutamente a possibilidade de poder pensar a coisa em si, muito embora
declare explicitamente não poder conhecê-la. Ele quer estabelecer, contudo, a
possibilidade de um uso supra-sensível da razão, pois, de acordo com a KrV [Crítica
da razão pura], é excluído o conhecimento, mas não o pensamento da coisa em si,
pois o pensar está essencialmente livre das condições da sensibilidade (NODARI,
2009, p.83).

Assim, na sistemática da razão pura, a partir da noção de coisa em si (Dinge an


sich) Kant procura legitimar a esfera do puro pensamento, já que devido a ela é
assentado o estatuto da distinção entre conhecer e pensar, apresentando com isso à razão
especulativa a possibilidade de um conhecimento em geral. Desde aqui (dimensão
inteligível) a razão abre o espaço para pensar o conceito de liberdade como condição
incondicionada à natureza empírica. Contudo, de modo necessário, para validar a esfera
inteligível da razão, pensada segundo o conceito de liberdade transcendental, possível
pela razão especulativa, Kant atrela o desenvolvimento da faculdade da razão pura
prática como elemento indispensável à elucidação do espaço do puro pensamento.
E, neste sentido, é justamente a correta compreensão da diferença entre as
esferas do conhecimento e do puro pensamento, e do conceito de liberdade, pensado do
ponto de vista especulativo, enquanto liberdade transcendental, e do ponto de vista
prático, enquanto liberdade prática, que faculta o caráter não contraditório da noção da
“dupla” natureza humana. A partir da transição do conceito de liberdade transcendental
para o conceito prático da mesma dá-se por garantido o esclarecimento acerca do
desenvolvimento dos conceitos tomados por Kant para explicitar o homem como
“cidadão de dois mundos”.

2. A passagem da Liberdade Transcendental para a Liberdade Prática


como justificativa ao pensamento do homem como cidadão de dois mundos

A distinção entre “mundo sensível” e “mundo inteligível” demonstra a


compatibilidade entre causalidade da natureza e causalidade da liberdade, pois, embora
se pareçam contraditórias, a causalidade condicionada deve ser fundamentada por um
tipo de causa diferente da existente na esfera fenomênica. Anteriormente vimos porque
devia existir uma espontaneidade absoluta da razão como dando início, por si mesma, à
série causal no puro pensamento, cujos efeitos se fazem mostrar no domínio do mundo
natural, a fim de que uma investigação dessa ordem na causação empírica não levasse a
um regresso ao infinito. Essa espontaneidade Kant denominou liberdade transcendental:
ela se opõe à lei natural e, devido seu estatuto puramente inteligível, não se encontra em
nenhuma experiência. Kant concebe o conceito de liberdade transcendental como:

a faculdade capaz de iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por sua vez,
subordinada, segundo a lei natural, a outra causa que a determine quanto ao tempo. A
5

liberdade é, neste sentido, uma ideia transcendental pura que, em primeiro lugar nada
contém de extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado
de maneira determinada em nenhuma experiência, porque é uma lei geral, até da
própria possibilidade de toda a experiência /.../ Como /.../ não se pode obter a
totalidade absoluta das condições na relação causal, a razão cria a ideia de uma
espontaneidade que poderia começar a agir por si mesma, sem que uma outra causa
tivesse devido precede-la para a determinar a agir segundo a lei do encadeamento
causal (KANT, 2010, p.463).

Assim, vê-se como perfeitamente possível fundamentar o conceito de liberdade


transcendental em harmonia com a natureza sensível, pois se toda causalidade no
mundo dos fenômenos fosse simplesmente causalidade pela natureza, todos os
acontecimentos seriam sempre determinados por outros acontecimentos, segundo leis
necessárias dos fenômenos, e o arbítrio seria determinado, reduzindo todas as causas e
ações a meras considerações naturais. Acontece que a causalidade pelo fenômeno não é
tão determinante, pois o arbítrio humano4 (como arbitrium liberum) possui uma
causalidade capaz de produzir por si uma série de acontecimentos sem precisar se
remeter à causalidade pela natureza, evitando um regresso ao infinito no encadeamento
natural (Cf. KANT, 2010, p.463-464).
A liberdade não é apenas uma antinomia da razão pura especulativa que não
possui nenhuma validade na esfera teórica; antes é uma ideia possível de ser pensada
sem incoerência, pois se trata de um conceito inteligível da razão. É à base disso que se
justifica a teoria kantiana dos dois mundos, pois o conceito de liberdade, a fim de ser
efetivado, pressupõe a existência de uma esfera puramente inteligível. A causalidade
incondicionada, criada pela razão pura especulativa (liberdade transcendental), não está
submetida nem à forma e nem às condições do tempo; ela não nasce nem começa a
produzir um efeito em determinado tempo, pois é empiricamente incondicionada, já que
sua condição (faculdade da razão pura) se encontra fora de todo condicionado pela
sensibilidade (Cf. KANT, 2010, p.474.).
O conceito de liberdade pertencente à faculdade da razão pura deve ser
concebido tanto negativamente, isto é, como a independência da vontade das condições
empíricas, quanto também positivamente, como a faculdade capaz de iniciar por si
mesma uma série de acontecimentos na esfera dos fenômenos.
A passagem do conceito de liberdade transcendental para o conceito “prático” da
mesma só é possível porque a razão especulativa está restringida a poder conceber este
conceito a partir do pensamento não-contraditório de suas propriedades5. Por este
motivo Kant diz ser essencial justificar um uso prático da faculdade da razão pura
(Vernunft), atribuindo assim “significado” ao conceito de liberdade. A liberdade prática
é possível pela faculdade da razão pura concebida na sua dimensão prática, mas a razão
só se torna prática quando o sujeito dotado de razão e vontade se torna independente de
coações ou conquista a independência dos impulsos sensíveis do mundo fenomênico.
Kant caracteriza a liberdade prática na CRP como:

4
Segundo Kant, o arbítrio humano quando é determinado independentemente dos impulsos sensíveis e
unicamente pela razão pura prática chama-se arbitrium liberum; em contraposição o arbítrio
patologicamente afetado pelos impulsos sensíveis que é chamado arbitrium sensitivum, o que não é o
mesmo que um arbitrium brutum que é aquele unicamente animal e por isso patologicamente necessitado
(Cf. KANT, 2010, p.463)
5
Isto é, a razão especulativa jamais pode sequer admitir um uso, significado, objeto, ou mesmo realidade
a ideia de liberdade.
6

A liberdade prática pode ser demonstrada por experiência. Com efeito, não é apenas
aquilo que estimula, isto é, que afeta imediatamente os sentidos, que determina a
vontade humana; também possuímos um poder de ultrapassar as impressões exercidas
sobre a nossa faculdade sensível de desejar, mediante representações do que é, mesmo
longinquamente, útil ou nocivo; mas estas reflexões em torno do que é desejável em
relação a todo o nosso estado, quer dizer, acerca do que é bom e útil, repousam sobre a
razão [Vernunft]. Por isso, esta também dá leis, que são imperativos, isto é, leis
objetivas da liberdade e que exprime o que deve acontecer, embora nunca aconteça, e
distinguem-se assim, das leis naturais, que apenas tratam do que acontece; pelo que
são também chamadas leis práticas. (KANT,2010, p.637-638).

No dizer de Kant “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade” (KANT,
2010, p.636). E isso demonstra o significado positivo deste conceito, no sentido de que
só agora, pela faculdade da razão pura prática, a liberdade adquire validade e
demonstração. Kant afirma na Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen
Vernunft, 1788)6 que os sentidos não são os únicos a determinar a vontade humana; o
homem pode ultrapassar as impressões sensíveis da faculdade sensível de desejar7, já
que aí as reflexões sobre o que é moral e útil dizem respeito à razão prática (vontade
incondicionada). É por isso que a faculdade da razão pura prática determina a vontade:
ela dá leis objetivas a uma vontade capaz de agir segundo a liberdade (autodeterminação
ou héautonomia), e que exprime o que deve acontecer, independentemente do que
aconteça. À base dessa perspectiva Kant demonstra o uso prático da razão, como o
único capaz de oferecer um critério universalmente válido para estabelecer a lei pura a
priori para a ação.
A lei prática universal da ação permite pensar então a transição da liberdade
definida em sentido transcendental à definida em sentido prático, e possibilitada pela
causalidade incondicionada dos seres vivos enquanto “racionais” (liberdade da
vontade). Embora seja o sujeito dotado de entendimento (Verstand) e de razão
(Vernunft), sua vontade pode ser sensivelmente afetada, mas não necessita ser
sensivelmente determinada, pois a faculdade da razão pura prática é capaz de
determinar a vontade “incondicionalmente”, sem nenhum pressuposto ou inclinação
sensível. Exclusivamente sob o conceito de liberdade (causalidade incondicionada de
sua vontade) pode o homem, como ser racional, pensar a si como pertencendo ao mundo
inteligível e sujeito autônomo e, também, pensar a si mesmo como sujeito pertencendo
ao mundo sensível e obedecendo às leis da esfera fenomênica. A seguir apresenta-se a
distinção conceitual trazida por Kant entre mundo sensível e mundo inteligível. Ao
contrário das interpretações que vêem nela um prejuízo para o Projeto da Filosofia
transcendental, será defendido aqui, que ela é crucial à demonstração do primado da
razão prática no sistema arquitetônico da razão.

3. A distinção entre Mundo Sensível (natura ectypa) e Mundo Inteligível


(natura archetypa)

6
A obra intitulada Crítica da Razão Prática doravante será chamada sempre de modo abreviado: CRPr.
7
Na CRPr Kant distingue uma vontade inferior, como princípios práticos materiais, são as máximas
subjetivas contingentes; de uma vontade superior, como princípios práticos formais, são as leis morais
objetivas universais (Cf. KANT, 2008a, p.38).
7

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik


der Sitten 1785)8 Kant enuncia a superioridade da razão (Vernunft) sobre o
entendimento (Verstand), afirmando que a faculdade da razão é “pura atividade” e
espontaneidade, e se encontra acima do entendimento. Mesmo que este último consista
numa atividade própria, ele só pode retirar de si conceitos que servem para submeter as
representações sensíveis a regras e reuni-las numa consciência. Logo, sem o uso da
sensibilidade o entendimento não tem condições de pensar conceitual e
determinadamente nada. O entendimento nunca pode tentar conhecer, determinar ou
sequer validar conceitos da ordem do inteligível, pois tal tarefa cabe só à razão
(Vernunft): esta é a única faculdade que pensa os conceitos transcendentais sem levar a
contradições (conflitos) naquilo que é capaz de fazer no uso puramente inteligível. A
faculdade pura da razão, segundo Kant:

mostra sob o nome das idéias uma espontaneidade tão pura que por ela ultrapassa de
longe tudo o que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento; e mostra a sua mais
elevada função na distinção que estabelece entre mundo sensível e mundo inteligível,
marcando também assim os limites ao próprio entendimento (KANT, 2008b, p.105-
106).

A partir destas considerações é perfeitamente possível pensar o homem a partir


de dois pontos de vista: como sujeito dotado de entendimento (Verstand) pertencente ao
mundo sensível e estando sob leis naturais – heteronomia; e também como sujeito
dotado de razão (Vernunft), pertencente ao mundo inteligível, e se encontrando sob leis
fundamentadas unicamente pela liberdade – autonomia. Assim, só quando se concebe
como livre, isto é, age unicamente pelo pressuposto de liberdade (porque reconhece o
princípio da autonomia da sua vontade), o sujeito se transpõe ao mundo inteligível e se
torna membro deste mundo, sem deixar de se pensar ainda como membro do mundo
sensível. Mas, nem sempre está a dupla perspectiva possível de suas ações em
conformidade apenas com o princípio da liberdade. Por conta disso deve se considerar
como membro de dois mundos: como um ser finito, pela ideia de uma natureza sensível,
e como um membro infinito, pela ideia de uma natureza inteligível. E mesmo que todas
as ações sejam sentidas no mundo empírico, elas têm como fonte o mundo inteligível.
Assim como afirma Kant:

O mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e portanto, também das


suas leis, sendo assim, com respeito a minha vontade (que pertence totalmente ao
mundo inteligível), imediatamente legislador, e devendo também ser pensado como
tal, resulta daqui que, posto por outro lado me conheça como ser pertencente ao
mundo sensível, terei; como inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo
inteligível, isto é à razão, que na ideia de liberdade contém a lei desse mundo (KANT,
2008b,p.108).

Na CRPr Kant está convencido ao admitir que o mundo inteligível (natura


archetypa) é o arquétipo do mundo sensível (natura ectypa) e que por isto é o
fundamento de toda natureza sensivelmente determinada. Essa natureza inteligível,
possível pelo pressuposto da liberdade, se fundamenta sob a lei universal a priori da
razão pura prática que, nas palavras de Kant, constitui:

8
A obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes doravante será chamada sempre de modo
abreviado: FMC.
8

A lei moral; a qual é, pois, a lei fundamental de uma natureza supra-sensível e de um


puro mundo inteligível cujo equivalente deve existir no mundo sensível sem, no
entanto, fazer dano às leis do mesmo. Esse mundo poder-se-ia chamar o arquétipo
(natura archetypa), que conhecemos simplesmente pela razão; o segundo, porém,
porque contém o efeito possível da ideia do primeiro enquanto princípio de
determinação da vontade, poderia chamar-se a reprodução (natura ectypa) (KANT,
2008a, p.66-67).

É possível agora compreender em que sentido Kant determina dois diferentes


pontos de vista (duas diferentes esferas) sobre a concepção da dupla natureza do
homem: o ser humano não é somente sensível, nem somente inteligível; ele não
pertence apenas ao mundo sensível, nem tão pouco habita somente o mundo inteligível.
Através da faculdade da razão pura prática o sujeito se considera livre das inclinações e
impulsos sensíveis e se deixa determinar unicamente pela lei moral, deduzida pelo
princípio da liberdade. A partir disso ele se torna capaz de contemplar-se
simultaneamente como “cidadão de dois mundos”, porque se revela capaz de pensar a si
como pertencente ao mundo sensível sujeito às determinações empíricas das leis da
natureza e como pertencente ao mundo inteligível pela ideia da liberdade da vontade.
Portanto, a natureza da razão, enquanto inteligível e fundamentando por isso a natureza
sensível do homem, não pode suprimir esta última, visto que o homem é
simultaneamente finito do seu ponto de vista teórico (mundo sensível) e infinito do seu
ponto de vista supra-sensível (mundo inteligível). A natureza sensível é o ponto de
partida para o pensamento da liberdade e a liberdade é a condição de possibilidade da
natureza sensível. Por isso as duas esferas são igualmente necessárias para a efetivação
do sistema da unidade de razão em Kant.

Considerações Finais

A solução proposta ao problema da incompatibilidade entre natureza e liberdade


se soluciona ao serem apresentadas as alternativas que permitem concebê-las como
existindo simultaneamente. Embora se apresentem como completamente distintas e
podendo ser contraditórias, o elemento decisivo para concedê-las a partir de um
pensamento harmônico reside no fato de Kant não concebê-las como naturezas
ontologicamente distintas e separadas. A dupla concepção de mundo, trazida pelo
filósofo, é só uma distinção realizada no puro pensamento, isto é, são apenas dois
“pontos de vista” de uma mesma razão, que se difere só no seu uso. Kant introduz uma
distinção no pensamento acerca do mundo inteligível, mostrando que não é ultrapassado
aqui nenhum limite factual, pois o pensamento de objetos inteligíveis independe de
intuições. Essa distinção entre natural e intelectual, a partir do caráter meramente
conceitual, Kant enfatiza na seguinte passagem da CRP, na qual diz:

A divisão /.../ do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode,
pois, ser aceite [em sentido positivo], embora os conceitos admitam, sem dúvida, a
divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais (KANT, 2010, p.270-271,
grifos meus).
9

A abertura para o pensamento prático9 é assim a solução encontrada para


conceber o lugar de validação da ideia de liberdade. Sem tal lugar a causalidade seria
sempre condicionada e a razão seria sempre só teórica (Verstand), não podendo o
sujeito ser pensado a não ser do ponto de vista finito, e tal como as coisas ele se
limitaria apenas a um aspecto fenomênico. Todavia, o conceito de “necessidade prática”
é o conceito que coloca no seu devido lugar os objetos da razão, pois ele confirma,
conforme a FMC: “O conceito de um mundo inteligível é portanto apenas um ponto de
vista que a razão vê forçada a tomar fora dos fenômenos para se pensar a si mesma
como prática” (KANT, 2008b, p.115, grifos meus).
Portanto, por se tratar de duas esferas conceitualmente distintas, oriundas de uma
mesma razão, a passagem do mundo sensível ao mundo inteligível é possível pela idéia
de liberdade prática na ordem do pensamento puro. Sobre tal prerrogativa, afirma Kant
na CRPr que:

A lei moral transporta-nos, em ideia, para uma natureza em que a razão pura, se fosse
provida de um poder físico a ela adequado, produziria o soberano bem, e determina a
nossa vontade a conferir a sua forma ao mundo sensível enquanto conjunto dos seres
racionais (KANT, 2008, p.67, grifos meus).

Enfim, após esta breve análise é possível determinar que o fio condutor de Kant
para a distinção do homem como “cidadão de dois mundos”, relativo aos dois diferentes
usos da razão segundo suas diferentes esferas (razão teórica - mundo sensível; e razão
prática – mundo inteligível) é o conceito de liberdade, cuja realidade é demonstrada pela
lei apodítica da razão pura prática e que se constitui, por isso, em pedra angular do
sistema da razão pura. Ao mesmo tempo, tal conceito justifica a tríade da razão em
relação aquilo que podemos conhecer (1), o que podemos pensar (2), e o que podemos
fazer (3): o primeiro referindo-se à natureza empiricamente condicionada (razão
teórica), sob o domínio do entendimento (Verstand); o segundo como abertura ao
pensamento de objetos que não têm sentido empírico, pois concernem ao âmbito
especulativo da razão, que pensa as ideias transcendentais. E, por fim, no uso dos
conceitos inteligíveis da razão, a possibilidade de conceber a esfera prática, relativa ao
uso de conceitos para a ação e para o “fazer”, na esfera prática da razão, capaz de
efetivar o conceito de liberdade como causalidade incondicionada da vontade humana.
Portanto, só a partir da distinção apresentada por Kant, na Dialética
Transcendental, entre natureza e liberdade se pode começar a pensar a tríade dos usos
da razão, conduzindo-nos a partir disso ao pensamento do homem como cidadão de dois
mundos. Pois, só através da inquietação por uma causalidade incondicionada se justifica
toda relação causal da natureza sensível, inserida por Kant no conceito de liberdade
como pedra angular do pensamento de um possível sistema da razão.

Referências Bibliográficas

Obras de Kant:
KANT, I. Crítica da Razão Prática. Tradução: Artur Morão. 9ª Edição. Lisboa: Edições
Setenta, 2008a.
____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Lisboa:
Edições Setenta, 2008b.

9
Se preferir pode-se entender o âmbito prático como o pensamento de uma esfera puramente inteligível.
10

____. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. 7ª. Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

Obras Secundárias:

ESTEVES, J. C. R. Kant tinha de compatibilizar Tese e Antítese da 3ª Antinomia da


“Crítica da Razão Pura”?. In: Analytica, Rio de Janeiro: UFRJ, v.2, n.1, 1997. p.123-
173.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. Tradução: Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
NODARI, P. C. A teoria dos dois mundos e o conceito de liberdade em Kant. Caxias do
Sul, RS: Educs,2009.
PAVÃO, A. Liberdade Transcendental e Liberdade Prática na Crítica da Razão Pura. In:
Síntese, Belo Horizonte: v.29, n.94, 2002, p.171-190.

Autoria:
Kant e a Concepção do Homem como “Cidadão de Dois Mundos”: A Conciliação
entre Natureza e Liberdade.....................................................................................22-32
Profª. Mestranda Vanessa Brun Bicalho (PPG-FIL/UNIOESTE);
Orientador: Prof. Dr. Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE).

E M P Ó R I O - Revista de Filosofia
Número 4 – 2011- Anual
ISSN: 1984-0039
Empório São João Del Rei Nº. 4 p.1 – 70. Jan. a Dez./2011
Empório – Revista de Filosofia
Universidade Federal de São João del-Rei
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