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DIREITOS SOCIAIS E GLOBALIZAÇÃO:

LIMITES ÉTICO-JURÍDICOS AO REALINHAMENTO CONSTITUCIONAL

DANIEL SARMENTO·

"Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial"


(Caetano Veloso)

1. Introdução. Generalidades. 2. Direitos Sociais e Constituição Dirigen-


te: do nascimento à crise. 3. O Realinhamento Constitucional. 4. Os
Direitos Sociais e as Cláusulas Pétreas. 5. Os Direitos Sociais, o Estado
e a Comunidade Internacional. 6. Conclusão

1. Introdução. Generalidades.

A globalização econômica I é o resultado de um processo histórico muito pro-


vavelmente irreversível, que se acelerou vertiginosamente nas décadas finais do
milênio que se encerra. O espantoso avanço tecnológico no campo da informática e
das telecomunicações encurtou distâncias, ampliou mercados, homogeneizou costu-
mes e diluiu a importância das fronteiras nacionais. Vivemos em um mundo menor
- mas nem por isso mais hospitaleiro e acolhedor - , onde o que ocorre a milhares
de quilômetros, fora dos limites do nosso Estado, pode influenciar, em tempo real,
a nossa vida cotidiana. Nossa sorte está cada vez mais atrelada aos humores de um
mercado financeiro internacional volátil e temperamental, dominado por atores cujo
poderio desafia qualquer autoridade estatal.
Sem embargo, afirmar o caráter irreversível do processo de globalização, não
significa chancelar a idéia de que as suas características são o produto acabado das

* Procurador da República, Procurador Regional dos Direitos do CidadãolRJ, Mestre e Douto-


rando em Direito Público pela UERJ, Professor de Direito Constitucional da Universidade Cândido
Mendes, da UERJ e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
I Sobre o impacto da globalização no campo jurídico há vasta literatura. Recomenda-se, em
especial, FARIA, José Eduardo, O Direito na Economia Globalizada .. São Paulo: Malheiros, 1999.

R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 223: 153-168, jan./mar. 200 1


leis da história, conseqüências inafastáveis da evolução da ciência e das técnicas de
produção. Esta visão encobre as dimensões ideológicas da globalização, que, nas
palavras de José Luis Fiori, "é uma realidade política que vai nascendo às costas
dos produtores e dos governos, mas é também o resultado de decisões políticas e
econômicas tomadas de forma cada vez mais concentrada por alguns oligopólios e
bancos globais e alguns poucos governos nacionais." 2
Sob o impacto da globalização, o Estado se debilita, na medida em que vai
perdendo o domínio sobre as variáveis que influem na sua economia. Deteriora-se
a sua capacidade de formulação e implementação de políticas públicas, de regula-
mentação e fiscalização do seu mercado interno, e com isso o seu poder de garantir
a eficácia dos direitos sociais.
Este enfraquecimento do Estado, embora assustador para as classes desfavore-
cidas, é festejado por aqueles que criticavam o caráter paternalista e antiliberal do
Welfare State, e que hoje pretendem, sob os aplausos da comunidade financeira
internacional, ressuscitar a idéia defunta do Estado mínimo, confiando (ou simulando
confiar) na mão invisível do mercado, como panacéia para todos os nossos males
econômicos e sociais. Para estes, o mercado deixou de ser meio para converter-se
em fim, e no seu altar, em que se reza o catecismo da ortodoxia neoliberal de Hayek
e Friedman, são imolados os direitos sociais, vistos como causas do déficit público,
de opressão e da ineficiência dos atores econômicos. O mercado, alforriado dos
mecanismos estatais regulatórios e compensatórios que o cingiam, torna-se o am-
biente propício para o mais violento darwinismo social, onde o mais fraco (leia-se
o mais pobre) é eliminado e excluído de todas as benesses da civilização.
A Nova Direita, que ganhou força a partir dos governos de Margareth Tatcher
na Inglaterra e de Ronald Reagan no Estados Unidos, conjuga o conservadorismo
no campo social (preocupação com os valores familiares tradicionais, truculência
em relação às minorias, política da law and order no campo penal etc), com o
liberalismo na seara econômica, na qual preconiza uma diminuição do tamanho do
Estado, com a redução drástica dos gastos sociais 3 .
Suas idéias econômicas tornaram-se hegemônicas na comunidade financeira
internacional, inspirando o chamado Consenso de Washington - receituário pro-
posto pela Secretaria do Tesouro dos EUA, Banco Mundial, FMI, e principais
instituições bancárias do G 7, para a estabilização das economias dos países emer-
gentes, cujas propostas básicas são abertura dos mercados internos, estrita disciplina
fiscal com corte de gastos sociais, privatizações, desregulamentação do mercado,
reforma tributária e flexibilização das relações de trabalho. 4
Por outro lado, a globalização econômica, ao elevar ao plano transnacional a
concorrência comercial, força os agentes econômicos a buscarem a redução, a qual-

2 FlORI. José Luis. Os moedeiros falsos. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 26.
3 Cfr. GIDDENS, Para Além da Esquerda e da Direita. Trad. Álvaro Hattnher. São Paulo: Editora
Unesp, 1995, p. 44/52.
4 Hoje. já começa a se esboçar um refluxo nesta tendência, depois que as economias de países
que tinham seguido à orientação de Washington. como o Tigres Asiáticos e o México, sofreram
crises avassaladoras.

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quer preço, dos seus custos, sob pena de perda da capacidade competitiva. Esta busca
tem se traduzido em diminuição da oferta de trabalho, com a crescente automatização,
e em pressões, muitas vezes vitoriosas, no sentido da flexibilização e da desregula-
mentação das relações laborais. O quadro se agrava diante da constatação de que,
em um contexto de amplo desemprego, o poder de barganha dos trabalhadores e dos
seus sindicatos praticamente desaparece, o que torna ainda mais desigual a relação
entre patrão e empregado.
Porém, a globalização também envolve aspectos positivos no que concerne à
tutela dos direitos sociais. O processo de universalização da proteção dos direitos
fundamentais 5, iniciado a partir do final da 28 Guerra Mundial, vem criando e
fortalecendo instâncias e instrumentos de controle da violação dos direitos humanos,
cuja garantia passou a ser concebida como questão que transcende a soberania estatal,
interessando a toda a comunidade internacional. Existem hoje diversas normas
internacionais sobre os direitos sociais, como o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembléia Geral da ONU em 1966,
e em vigor no Brasil desde 1992, o Protocolo Adicional à Convenção Americana de
Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado
pela OEA em 1988 e ratificado pelo Brasil em 1996, e as inúmeras convenções da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que são de caráter vinculativo para
os Estados e geram accountability no plano internacional.
Não obstante, é certo que ainda não há, pelo menos no atual estágio de desen-
volvimento da comunidade internacional, nenhuma entidade supranacional que te-
nha, na prática, como substituir o Estado, no desempenho desta sua tarefa tão
primordial que é assegurar as condições materiais mínimas para o povo, através da
tutela dos direitos sociais. Se já é difícil, por uma série de razões que não convém
aqui explorar, proteger os direitos humanos na esfera internacional, estas dificuldades
se multiplicam quando os direitos em questão são de natureza social e econômica,
e envolvem prestações positivas. De fato, as instâncias supranacionais não possuem
hoje os meios necessários para garantir, na prática, a implementação das políticas
públicas necessárias ao atendimento dos direitos de 2" geração, que dependem de
recursos econômicos .
Portanto, o horizonte que se desenha diante dos nossos olhos é sombrio, o que
não significa que não haja saídas. Se a globalização é de fato irreversível, como tudo
leva a crer, isto não quer dizer que tenhamos de aceitar placidamente todos os seus
efeitos excludentes. A lei da gravidade é também irrevogável, mas nem por isso
temos de cair no chão a todo o tempo. Parafraseando Marx - cujas idéias hoje estão
tão estigmatizadas - podemos afirmar que a busca de alternativas viáveis para o
futuro dos direitos sociais é, em nosso tempo, tarefa impostergável para todo o jurista
que não se contente em estudar o mundo que o cerca, mas queira também ajudar a
transformá-lo.

5 Veja-se, a propósito, PIOVESAN, Aávia, Direitos Humanos e o Direito Constitucional lnter-


nacional. São Paulo: Max Limonad, 1996; ALVES, J. A. Lindgren, Os Direitos Humanos coma
tema global. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.

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2. Direitos Sociais e Constituição Dirigente: do nascimento à crise.

o conceito originário de direitos fundamentais, que se cristalizou a partir do


surgimento do constitucionalismo, no século XVIII, considerava-os como instrumen-
tos que tinham por objetivo proteger o homem do Estado, garantindo liberdades
individuais e limitando a atuação dos poderes públicos 6 . Esta visão restritiva, que já
representava um notável avanço em relação ao passado, repousava sobre premissa
ideológica facilmente identificável: o individualismo liberal, que desconfiava do
Estado e acreditava no poder sacrossanto do mercado para promover a justiça e o
bem comum. Entendia-se, num otimismo que a história tratou de desmentir, que se
cada um perseguisse egoisticamente os seus interesses, o resultado geral seria favo-
rável a todos.
É interessante notar que a consagração da igualdade formal, a garantia da
liberdade indiVIdual e do direito de propriedade e a contenção do poder estatal -
idéias nucleares do constitucionalismo liberal - , eram medidas vitais para coroar a
ascensão da burguesia ao Olimpo social, em substituição à decrépita nobreza. Estas
medidas criaram o arcabouço institucional indispensável para o florescimento do
regime capitalista, pois asseguravam a segurança e a previsibilidade tão indispensá-
veis para as relações econômicas.
A cosmovisão subjacente a esta etapa de desenvolvimento dos direitos humanos
era o liberalismo político e econômico. O papel do Estado cifrava-se à garantia da
justiça e da segurança interna e externa, relegando às forças do mercado a tarefa de
eqüacionamento de todos os problemas surgidos nos planos social e econômico.
Neste sentido, não espanta que tenha havido uma notável seletividade em relação às
liberdades públicas: enquanto as liberdades contratual e empresarial eram glorifica-
das, negava-se a liberdade de associação dos trabalhadores, os seus sindicatos eram
postos à margem da lei, e as greves sofriam implacável repressão.
A premissa antropológica que se deixa entrever neste constitucionalismo liberal
é a do homem ilhado, "mônada ensimesmada" nas palavras de Marx, perseguindo
egocentricamente os stUS interesses privados, numa sociedade atomizada, fragmen-
tada, onde os vínculos sociais são extremamente frágeis e o individual prevalece
sobre o coletivo.
A tradução normativa desta filosofia política é representada pela chamada
constituição garantia, que se limita a estruturar o Estado e a proclamar certos direitos
dos cidadãos. com o fito de protegê-los do próprio Estado. Trata-se do reconheci-
mento e garantia dos direitos de la geraçã0 7 , que representam, basicamente, trinchei-

6 Sobre a trajetória histórica dos direitos fundamentais, veja-se BOBBIO, Norberto. A Era dos
Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus. 1992, COMPARATO,
Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 1999; e HENKIN,
Louis, The Age ofRights. New York: Columia University Press, 1990.
7 A referênCIa às gerações dos direitos humanos é combatida por alguns doutrinadores, que
afirmam que ela pode sugerir a superioridade dos direitos de última geração em relação aos mais
antigos. Porém, de~de que se tenha como certo que não há hierarquia alguma entre as diversas

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ras contra a intervenção arbitrária do Estado no domínio individual. Tais direitos
são assegurados pelo Poder Público sobretudo através de abstenções, razão pela qual
o Estado que os tutela pode ser mínimo. quase evanescente. Era o Estado Liberal
que se afirmava como expressão política do individualismo e do capitalismo.
Entretanto, com o passar do tempo. tornou-se claro que a simples abstenção
estatal não seria suficiente para assegurar a dignidade da vida humana. A exploração
do homem pelo homem, realizada sob o pálio do constitucionalismo liberal, atingira
o paroxismo, despertando a necessidade de redimensionamento das funções estatais.
A miséria e a desigualdade social campeavam, e imperativos éticos e pragmáticos
passaram a impor uma atuação mais marcante do Poder Público na arena econômi-
co-social.
Neste cenário, surgem dos mais variados flancos críticas ao liberalismo econô-
mico, sob cuja égide criara-se e nutrira-se o capitalismo selvagem. O marxismo, o
socialismo utópico e a doutrina social da Igreja8 , sob perspectivas diferentes, ques-
tionaram o individualismo exacerbado, latente no constitucionalismo liberal. Con-
solidou-se a convicção de que, até para o efetivo desfrute dos direitos individuais
(liberdades negativas), era necessário garantir condições mínimas de existência para
cada ser humano (liberdades positivas).
Nessa época, sob a influência das idéias marxistas, eclodiu a Revolução Russa,
em 1917, e, cerca de 40 anos depois, um terço da humanidade estava vivendo em
regimes diretamente derivados do modelo soviético, de apropriação coletiva dos
meios de produçã09 • O medo de que processos revolucionários semelhantes pudes-
sem acontecer nos países do capitalismo evoluído, certamente diminuiu as resistên-
cias na transição do Estado Liberal para o Welfare State.
Por outro lado, a extensão paulatina do direito de sufrágio a parcelas cada vez
mais amplas da população acabava permitindo que demandas por mudanças no status
quo também viessem à tona no universo normativo. Surge então, na virada para o
século XX, o Estado do Bem-Estar Social 10, e com ele a consagração constitucional
de uma nova constelação de direitos, que demandam prestações estatais positivas,
destinadas à garantia de condições mínimas de vida para a população (direito à saúde,
à previdência, à educação etc.). Estes novos direitos penetram nas constituições a
partir da Carta mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919.

gerações dos direitos humanos, não vemos nenhum problema na referência às gerações. que estão
relacionadas apenas à cronologia da aparição dos direitos fundamentais no cenário jurídico.
8 A encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, tratou da temática da justiça social,
sem no entanto empregar tal expressão. A questão voltou à baila, de forma ainda mais expressa e
contundente, na encíclica Quadragesimo Anno (1931), do Papa Pio XI, e desde então tem sido tema
recorrente no pensamento da Igreja Católica, que, no entanto. na sua linha hegemônica, sempre se
opôs ao conceito marxista da luta de classes.
9 Cfr. HOBSBAWN. Eric . Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos
Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras. 1995, p. 61/62.
10 Confira-se, a propósito, BONA VIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6" ed. São
Paulo: Ed. Malheiros, 1996. Sobre a crise universal do Welfare State, e suas conseqüências no plano
jurídico, veja-se AZEVEDO, Plauto Faraco de, Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999.

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Mas foi a grande crise do capitalismo no período entre as duas grandes guerras
mundiais, cujo apogeu consistiu no colapso da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, que
evidenciou a definitiva superação do modelo liberal de Estado (embora o neolibe-
ralismo pretenda ressuscitá-lo). A grande depressão, que se seguiu à quebra da bolsa,
tornou patente a necessidade de intervenção estatal no mercado, para corrigir rumos
e reduzir o desemprego. Neste quadro, tornam-se hegemônicas as idéias do econo-
mista inglês John Maynard Keynes, que defendia um papel ativo do Estado no cenário
econômico, na busca do pleno emprego, condenando o credo liberal de que o
mercado, relegado à própria sorte, conduziria ao melhor dos mundos. As idéias de
Keynes foram adotadas pelo Presidente Roosevelt, que delas se valeu no seu New
Deal para enfrentar e superar a crise sem precedentes que se abatera sobre a economia
norte-americana, e consolidar o poder da maior potência mundial ll .
A positivação e tutela dos direitos sociais e econômicos partiram de uma
premissa que nos parece inquestionável: diante da desigualdade de fato existente no
meio social 12 , se o Estado não agir para proteger o mais fraco do mais forte, os ideais
éticos de liberdade, igualdade e solidariedade em que se lastreia o constitucionalismo
seguramente vão se frustrar.
É importante consignar que não existe qualquer hierarquia entre os direitos
individuais e os sociais e econômicos. Os juristas mais próximos da direita costumam
enfatizar a importância superior dos direitos individuais, subordinando a eles os
direitos sociais. Alguns, inclusive, chegam a negar ajuridicidade dos direitos sociais,
equiparando-os a programas estatais de ação, despidos de eficácia jurídica, e de-
pendentes, sempre, da boa vontade do legislador infraconstitucional e da disponibi-
lidade de recursos orçamentários necessários ao seu atendimento. Esta resistência,
porém, é puramente ideológica e desprovida de embasamento científico. Já os pen-
sadores de inspiração marxista tendem a desvalorizar a importância dos direitos
individuais, retratando-os como fórmulas retóricas que visam encobrir, artificialmen-
te, a dominação da burguesia sobre a proletariado.
As duas perspectivas são igualmente equivocadas. Os direitos fundamentais
existem para a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, e esta é

11 Sem embargo, é interessante observar que as políticas do Presidente Roosevelt sofreram enorme
resistência por parte da Suprema Corte norte-americana, que se converteu no principal bastião de
defesa dos princípios do liberalismo econômico, invalidando, através do controle de constituciona-
lidade das leis, inúmeras medidas adotadas pelo governo americano que implicavam em intervenção
no mercado ou em proteção do trabalhador na relação laboral. Travou-se uma acesa batalha política
nos EUA, em que as idéias do Presidente Roosevelt prevaleceram, levando a Suprema Corte a
capitular e encerrar uma fase da sua existência conhecida como Lochner Era .. Veja-se, a propósito,
TRIBE, Laurence. American Constitucional Law. 2" ed. New York: the Foundation Press, 1988, p.
567 e ss.
12 É conhecida a crítica que a esquerda fazia ao caráter abstrato e artificial da isonomia, tal como
reconhecida pelo constitucionalismo liberal, que visava encobrir sob um manto elegante uma
situação de dominação de uma classe sobre a outra. O escritor Anatole France, em célebre comen-
tário sobre a isonomia na Constituição francesa, dizia que" a lei, na sua majestosa igualdade, proíbe
igualmente o rico e o pobre de furtarem pão e dormirem debaixo da ponte" .

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ameaçada tanto pela afronta às liberdades públicas, como pela negação de condições
mínimas de subsistência ao indivíduo. Como ressaltou com absoluta propriedade
Fábio Konder Comparato, "os direito humanos formam um conjunto uno e indivi-
sível. A liberdade individual é ilusória, sem um mínimo de igualdade social; e a
igualdade social imposta com sacrifícios dos direitos civis e políticos acaba engen-
drando, mui rapidamente, novos privilégios econômicos e sociais." 13. Esta é inclu-
sive a posição oficial da ONU, que, no art. 5° da Declaração de Viena de 1993, aceita
unanimemente por 171 estados, assinalou: "Todos os direitos humanos são univer-
sais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacio-
nal deve tratar os direitos humanos globalmente de maneira justa e eqüitativa, em
pé de igualdade e com a mesma ênfase . ..
Ocorre que a promoção dos direitos sociais exigia do Estado uma atuação mais
marcante no cenário econômico. O Estado foi assim distanciando-se da sua posição
anterior, caracterizada pela absenteísmo, e passou a assumir um papel mais ativo,
convertendo-se no maior protagonista do teatro social. O Estado Liberal transfor-
mou-se no Estado Social, preocupando-se agora não apenas com a liberdade, mas
também com o bem-estar do seu cidadão.
Estas alterações do perfil do Estado refletiram-se, como não poderia deixar de
ser, sobre o constitucionalismo. As constituições, que antes limitavam-se a traçar a
estrutura básica do Estado e a garantir direitos individuais, tornam-se mais ambicio-
sas, passando a ocupar-se de uma multiplicidade de assuntos, assumindo funções
dirigentes e arvorando-se no papel de principal diretriz da vida comunitária. No afã
de conformar a realidade social, as constituições passam a valer-se com freqüência
de normas de conteúdo programático, que traçam fins e objetivos a serem perseguidos
pelo Estado, sem especificar, de modo suficientemente preciso, de que modo os
mesmos devem ser atingidos.
No desempenho desta nova tarefa, o constitucionalismo brasileiro tem deixado
muito a desejar. Os direitos sociais e as promessas de mudança do status quo,
solenemente proclamadas nos nossos textos constitucionais, raramente saem do papel
para o mundo real, e permanecem despidos de efetividade, seja em virtude da carência
de condições materiais necessárias ao seu cumprimento, seja em razão da crônica
ausência de vontade política dos" donos do poder" para modificar as nossas escle-
rosadas estruturas sociais 14.
Sem embargo, a partir das duas crises do petróleo na década de 70, instaura-se
uma crise no Weifare State, que põe em cheque a lógica do dirigismo estatal. O
Estado, que havia se expandido de modo desordenado, tornando-se burocrático e
obeso, encontrava enormes dificuldades para se desincumbir das tarefas gigantescas
que assumira. A explosão de demandas reprimidas, gerada pela democratização
política, tornara extremamente difícil a obtenção dos recursos financeiros necessários

13 Op. cit., p. 305.


14 Cfr. BARROSO, Luis Roberto, O Direito Constitucional e a Eficácia de suas normas, Rio de
Janeiro: Renovar, p. 5/66. Sob uma perspectiva diferente, vale a pena também consultar NEVES,
Marcelo, A Constituição Simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.

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ao seu atendimento. Por outro lado, o envelhecimento populacional, decorrente dos
avanços na medicina e no saneamento básico. engendrou uma perigosa crise de
financiamento na saúde e na previdência social - pilares fundamentais sobre os
quais se assentara o Estado Social.
Esta crise se acentua em razão da globalização econômica. Esta vem alimen-
tando o processo de esfacelamento do Estado Providência, na medida em que vai
corroendo o seu poder de efetivamente subordinar. de modo soberano, os fatores
econômicos e sociais que condicionam a vida de cada comunidade política. Cada
vez mais avulta a importância de variáveis exógenas sobre a economia nacional,
sobre as quais o Estado-Nação não tem nenhum poder.
A mobilidade dos meios de produção e a volatilidade do capital financeiro atuam
hoje no sentido de libertar os agentes econômicos transnacionais das amarras do
direito interno dos países em que operam. Os Estados tornam-se reféns dos interesses
destes grandes grupos multinacionais, pois precisam dos seus investimentos. Os
países que não adaptam o seu direito interno às exigências comuns do mercado
internacional são imediatamente abandonados, pois o capital sem pátria tem como
buscar abrigo nos Estados cujas leis lhe favoreçam.
Os agentes econômicos vão criando um direito comum - a Lex Mercatoria -
permeado pela racionalidade própria do mercado, e que, formal ou informalmente,
vai se impondo aos Estados. A idéia do monopólio da produção do direito pelo
Estado distancia-se cada vez mais da realidade, e o ordenamento jurídico vai tor-
nando-se policêntrico, acolhendo regras engendradas por atores privados ou por
entidades supranacionais.
A tudo isto, se junta o dado histórico. O colapso do comunismo, simbolizado
pela queda do Muro de Berlim, eliminou uma das ideologias rivais que se defron-
tavam e disputavam espaço num mundo até então bipolar. Com o fracasso retumbante
da experiência marxista-Ieninista e o advento da Pax Americana, o capitalismo ficou
mais à vontade para impor, agora sem concessões, o seu modelo econômico e social,
que constituiria, segundo alguns, o "fim da história" 15. Como se o fiasco do socia-
lismo pudesse ofuscar os problemas crônicos do capitalismo, em especial a sua
tendência para promover a desigualdade e aprofundar a exclusão social.
Estes e outros fatores levaram autores progressistas. como o Professor Canotilho.
a proclamar. bombasticamente, mas não sem uma certa dose de melancolia, que "A
constituição dirigente morreu I"~ 16. O atestado de óbito é especialmente significativo.

15 O filósofo Francis Fukuyama. em controvertido ensaio. defendeu a tese de que, com o liberalismo
político e econômico. que se afirmou como fórmula hegemônica no Ocidente após o fim do império
soviético. atingiu-se o fim da história. e que agora caberia apenas estender estas idéias para o resto
do mundo. O autor fez um pueril e inconseqüente exercício de futurologia e. além disto tentou
fundir numa mesma teoria idéias absolutamente incompatíveis, que são o liberalismo e o determi-
nismo histórico de matriz hegeliana. Vide FUKUY AMA. Francis. "The End of History?", in
BRONNER, Stephen Eric. Twentieth Century Political Theory. New York: Routledge, 1997, p.
368/385.
16 .. Da Constituição dirigente ao Direito Comunitário dirigente", in Mercosul, Integração Regional
e Glubali::.ação. CASELLA. Paulo Borba (org). Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 205/217. Antes

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pois foi lavrado exatamente por aquele que, em obra já clássica 17 , de notável in-
fluência no constitucionalismo brasileiro, firmara o conceito da constituição dirigen-
te.
Como observou José Eduardo Faria,

"Se a conversão das economias nacionais num sistema mundial está con-
duzindo ao redimensionamento do princípio da soberania nacional, qual o
futuro das Constituições-dirigentes, aquelas que, além de consistirem num
estatuto organizatório definidor de competências e regulador de processos,
atuam também como uma espécie de 'estatuto político' dos Estados inter-
vencionistas, estabelecendo o que (como e quando) o legislador e os gover-
nantes devem fazer para a concretização das diretrizes programáticas cons-
titucionais?" 18

Enfim, o quadro não é nada promissor. Mas o rio de Heráclito não deve correr
para trás. No atual estágio de desenvolvimento da humanidade, não seria possível,
nem recomendável, retornar ao figurino do constitucionalismo liberal pré-weimaria-
no, em que as constituições limitavam-se a organizar o Estado e a garantir alguns
direitos individuais, sem apresentar qualquer projeto de transformação da sociedade.
Seria inaceitável, do ponto de vista ético, que as constituições se alheassem diante
dos conflitos distributivos e dos problemas de justiça social que são o martírio das
nações, sobretudo das subdesenvolvidas como o Brasil.

3. O Realinhamento Constitucional

Tangidos pelas exigências ditadas pelo mercado globalizado, muitos Estados


vêm modificando as suas Constituições, no afã de adaptá-las ao dinamismo de uma
ordem internacional reconfigurada. Conforme Oscar Vilhena Vieira, existem três
movimentos distintos que vêm rearticulando o constitucionalismo contemporâneo:
"a regionalização, representada pela união de estados, com fins específicos; o
cosmopolitismo ético, decorrente do desenvolvimento de um sistema universal de
direitos humanos; e a globalização econômica, que busca estabelecer um habitat
ideal para a livre circulação e atuação do capital transnacional por todo o globo" 19.

disso, em outro artigo intitulado" Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um
constitucionalismo moralmente reflexivo"." in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política n° 15:7117, o Prof. Canotilho já expressara suas novas idéias sobre a crise do constitucio-
nalismo social.
17 Refiro-me ao livro Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra: Coimbra
Editora, 1982.
18 Direito e Globali::.ação Econômica. São Paulo: Malheiros Ed, 1996. p.5.
19 VIEIRA, Oscar Vilhena ... Realinhamento Constitucional". in Direito Global, São Paulo: Max
Limonad, p. 15/16.

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Nossa análise limitar-se-á à atuação deste terceiro movimento na ordem constitucio-
nal brasileira 2o .
A Constituição brasileira de 1988 foi editada num contexto de verdadeira catarse
cívica. Ampla e intensa foi a participação popular durante o processo de constituinte,
que resultou na promulgação de uma Constituição que, em linhas gerais, tem aspectos
extremamente positivos. Timbrada pela preocupação com a democracia, com os
direitos humanos e com a justiça social, a Constituição brasileira, como averba Luis
Roberto Barroso, apresenta um grande valor simbólico, pois "foi ela o ponto culmi-
nante do processo de restauração do Estado democrático de direito e da superação
de uma perspectiva autoritária, onisciente e não pluralista do exercício do poder" 21.
Trata-se uma típica constituição dirigente, fiel ao modelo do constitucionalismo
social, pródiga em normas programáticas e na consagração de direitos sociais.
Sem embargo, como qualquer obra humana, a Constituição de 1988 tem também
os seus defeitos. Foi excessivamente detalhista e minuciosa em muitos pontos;
consagrou, em outros, promessas de difícil ou impossível realização concreta e ainda
elevou à estatura constitucional alguns interesses puramente corporativos. Taxada
por alguns de estatista, xenófoba e corporativista, a Constituição de 1988 foi pega
no contrapé pela onda neoliberal que varreu o mundo, e que se intensificou a partir
da queda do Muro de Berlim.
Assim, a partir de 1995. o governo federal, com o apoio de bancada parlamentar
amplamente majoritária, iniciou um cicIo de reformas na ordem constitucional eco-
nômica brasileira, afinado com as propostas do Consenso de Washington, envolvendo
a extinção de certas restrições existentes ao capital estrangeiro (EC n° 6 e 7) e a
flexibilização de monopólios estatais sobre o gás canalizado, as telecomunicações e
o petróleo (EC n° 5, 8 e 9).
Este processo aconteceu paralelamente à implementação de um amplo programa
de privatizações promovido pelo Estado brasileiro, que importou na alienação do
controle de empresas estatais até então tidas como altamente estratégicas para o país,
como a Vale do Rio Doce e a Telebrás. Sem entrar no mérito do conveniência destas
medidas, naturalmente polêmicas pelo seu teor ideológico, o certo é que as privati-
zações ocorreram em meio a suspeitas generalizadas de lesão ao patrimônio público
e de favorecimentos a grupos privados. em episódios que até hoje não foram sufi-
cientemente esclarecidos.
Num segundo momento. a reforma voltou-se para a próprio Estado. Através da
Emenda n° 19, pretendeu-se alterar a estrutura e a filosofia da administração pública
e reduzir seus gastos. Em lugar da administração burocrática, deveria surgir a
administração gerencial, mais eficiente, flexível e preocupada com resultados. Entre
outras medidas adotadas, foi formalmente consagrado o princípio da eficiência,

20 No nosso "Constituição e Globalização: A crise dos paradigmas do direito constitucional", in


RDA 215: 19/34. tratamos também dos outros dois movimentos citados por Oscar Vilhena Vieira.
21 "Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom pra você também?)". in 1988 - 1998: uma
década de Constituição. CAMARGO. Margarida Maria Lacombe (org.). Rio de Janeiro: Renovar.
1999. p. 43.

162
rompido o regime umco dos servidores públicos, flexibilizada a estabilidade e
disciplinada a possibilidade de imposição de teto salarial para o funcionalismo,
abrangendo todas as parcelas que compõem sua remuneração.
Fiel à mesma linha de idéias, foi aprovada a Emenda Constitucional n° 20,
reformando o nosso sistema de previdência social. O déficit da previdência, que
gasta muito mais do que arrecada, foi a principal motivação da emenda, que intro-
duziu modificações relevantes, como a instituição de um regime contributivo para
a previdência dos servidores públicos, a exigência de idade mínima para aposenta-
doria destes servidores e a substituição do critério do tempo de serviço pelo do tempo
de contribuição, para fins de aposentadoria em geral.
E outras mudanças estão por vir. Discute-se a reforma tributária, necessária para
tornar mais racional o caótico sistema de imposições fiscais existente no país (ma-
nicômio jurídico tributário, nas palavras de Alfredo Augusto Becker), evitar as
guerras fiscais e desonerar a produção. Esta reforma será de implementação extre-
mamente difícil, diante da necessidade de conciliar interesses inteiramente divergen-
tes que têm forte expressão no Congresso Nacional, e também porque se duvida da
vontade do governo de promovê-la, já que a arrecadação federal atual, em que pese
o elevado nível de sonegação, atingiu patamares bastante elevados.
Fala-se também em reforma das relações trabalhistas, que teria o objetivo de
flexibilizá-las, e reduzir assim o chamado" custo Brasil", aumentando a competiti-
vidade das empresas nacionais no mercado global, como se o maior responsável pelo
tão decantado" custo Brasil" não fosse o patamar absurdo dos juros que oneram a
produção, e que decorrem da política econômica monetarista adotada no país.
Enfim, observa-se que as mudanças na ordem constitucional brasileira obede-
ceram a uma lógica comum, que corresponde, em linhas gerais, às idéias expressas
no Consenso de Washington: abertura internacional, liberalização da economia,
privatização, controle do déficit público com contenção de gastos sociais etc. No
entanto, em relação às reformas futuras que se avizinham no horizonte, é preciso
analisar até que ponto é possível caminhar, sem violar a identidade da Carta brasileira
- Constituição de um Estado Democrático Social, que tem como epicentro axioló-
gico o princípio da dignidade da pessoa humana.
A constituição ideal do neoliberalismo não contém direitos sociais ou normas
programáticas. Castrada da sua carga substantiva, ela limitar-se-ia a estabelecer
esquemas procedimentais abertos, apelando à auto-regulamentação. O direito cons-
titucional tornar-se-ia "moralmente reflexivo", ou autopoiético - para usar a ex-
pressão da moda 22 .
É certo que as constituições não são entidades estáticas, que devam permanecer
congeladas no tempo, resistindo às mudanças que ocorrem na sociedade. O consti-

22 Por estas observações, é possível indentificar o neoliberalismo com o pós-modernismo no plano


jurídico, na esteira das lições de ARNAUD, André-Jean. Entre modernité et mondialization. Paris:
L.G.D.J., 1998. Não obstante, cumpre observar que sob o rótulo do pós-modernismo abrigam-se
as idéias mais variadas. Existem autores pós-modernos que não têm nenhuma identidade com o
neoliberalismo, como, por exemplo, o grande sociólogo português Boaventura de Souza Santos.

163
tuinte não tem como parar o tempo, e é exatamente por isso que as constituições são
dotadas de mecanismos que possibilitam a alteração dos seus dispositivos. Se estes
instrumentos não existissem, as Constituições não sobreviveriam às mudanças sociais
mais profundas, ou, pior ainda, tornar-se-iam instrumentos arbitrários, de tirania das
idéias de uma geração em relação às seguintes.
Porém, cabe analisar até que ponto estas alterações podem ir, sem destruir o
cerne axiológico da ordem constitucional, representado pelas cláusulas pétreas ex-
plícitas e implícitas. Esta discussão teórica assume relevo especial no cenário atual,
já que a lógica da globalização econômica, ditada pelas forças hegemônicas do
mercado, aponta no sentido da redução dos direitos sociais constitucionalmente
consagrados.
Hoje, infelizmente, a luta que se trava no campo destes direitos de 2a geração
não é no sentido de expandi-los, mas apenas no de evitar retrocessos. Neste sentido,
por incrível que pareça, conservar o que no passado foi formalmente conquistado já
é a grande vitória.

4. Os Direitos Sociais e as Cláusulas Pétreas

Os limites materiais ao poder constituinte derivado configuram instrumentos


indispensáveis para a proteção da identidade de determinada ordem constitucional.
Através das cláusulas pétreas, o poder soberano se autovincula, comprometendo-se
ao respeito de determinados valores fundamentais e protegendo-se, dessa forma, de
suas próprias paixões e fraquezas 23 .
O traçado destes limites envolve questão sempre delicada. Por um lado, deve-se,
em princípio, e em homenagem à democracia, reverenciar as opções adotadas por
uma maioria dos representantes do povo tão qualificada, como a necessária para
promover uma emenda na Constituição. Afinal de contas, o constituinte não deve
converter-se em tirano, aprisionando em camisa-de-força as gerações futuras e sub-
traindo-lhes a autonomia decisória e a capacidade de adaptação às mutações sociais.
Mas, por outro lado, é vital salvaguardar dos anseios muitas vezes conjunturais das
maiorias parlamentares certas decisões políticas fundamentais, que representam os
pilares de determinada ordem jurídica.
Este segundo aspecto merece destaque especial no atual cenário nacional. A
absoluta hegemonia do bloco governista no parlamento brasileiro tem permitido a
aprovação de emendas sem prévia discussão com a oposição e a sociedade, através
da conhecida tática do "rolo compressor". Muitas vezes, estas mudanças são pro-
movidas apenas para atender a interesses momentâneos do governo, e não se pode
admitir o sacrifício dos valores transcendentais em que se apoia o ordenamento
constitucional, para satisfação de necessidades puramente conjunturais.

23 Sobre as cláusulas pétreas há vasta literatura mas recomenda-se, em especial, SAMPAIO, Nelson
de Souza, O Poder de Reforma Constitucional, 3" ed, Salvador: Nova Alvorada Edições, 1995;
VIEIRA, Oscar Vilhena, A constituição e sua reserva de justiça, São Paulo: Malheiros, 1999; e
SILVA, Sayonara Grillo C. Leonardo da, Poder Reformador. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. 1997.

164
A história da humanidade já nos provou a importância dos limites materiais ao
constituinte derivado para a sobrevivência salutar dos regimes constitucionais. A
Constituição de Weimar não continha cláusulas pétreas explícitas e pôde ser desfi-
gurada através de emendas, durante o governo nacional-socialista, que tinha ampla
maioria parlamentar, de um modo que abriu o flanco para o advento do Holocausto.
No caso brasileiro, nossa Constituição referiu-se apenas aos "direitos e garan-
tias individuais" no seu art. 60, § 4°, que elenca as cláusulas pétreas, omitindo
qualquer alusão aos direitos sociais. Uma interpretação puramente gramatical do
dispositivo nos conduziria à conclusão de que estes últimos não estão protegidos, o
que permitiria que o constituinte derivado os eliminasse, ao seu talante. Porém, é
possível adotar outra postura exegética, que nos parece muito mais consentânea com
o espírito da Constituição, para sustentar que também os direitos sociais, pelo menos
no seu núcleo irredutível ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana, encon-
tram-se ao abrigo da sanha do poder reformador.
Com efeito, a nossa ordem constitucional tem como epicentro axiológico o
princípio da dignidade da pessoa humana, inscrito no art. IOdo texto constitucional
como fundamento da República. Proteger e promover esta dignidade é a tarefa
essencial do Estado, que justifica e legitima a sua existência. E a dignidade humana
é denegada tanto quando se amputa a esfera de liberdade individual, como quando
se priva o ser humano de condições mínimas de subsistência. Até autores professa-
damente liberais, como John Rawls, concordam com a idéia de que a ausência destas
condições básicas frustra o exercício das liberdades humanas 24 .
Portanto, se as cláusulas pétreas são, como afirma Oscar Vilhena Vieira, "as
reservas de justiça" da ordem constitucional, que protegem a sua identidade axio-
lógica, não há como não reconhecer que os direitos sociais e econômicos, pelo menos
no seu núcleo essencial, também estão por elas abrangidos.
O Supremo Tribunal Federal, em recente e importante decisão, tomou como
cláusula pétrea um direito de natureza social. Discutia-se, no caso, a constituciona-
lidade do art. 14 da EC n° 20/98, que restringira o valor de todos os benefícios do
regime geral de previdência social a R$ 1.200,00, o que incluiria também o salário
maternidade. O STF, por unanimidade, concedeu liminar na ADIN 1.946-DF, para,
em interpretação conforme à Constituição, excluir o salário maternidade da incidên-
cia do art. 14 da referida Emenda, decidindo:

"Salário Maternidade e Cláusulas Pétreas -1


Dando continuidade ao julgamento de medida liminar em ação direta ajui-
zada pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB contra o art. 14 da Emenda
Constitucional n° 20/98, o Tribunal, por unanimidade, deferiu o pedido
para, dando interpretação conforme à Constituição ao referido artigo,
deixar expresso que o mesmo não se aplica ao salário maternidade a que
se refere o art. r, XVIII, da CF, respondendo a Previdência Social pela

24 RA WLS, John. Liberalismo Politico. Trad. Sergio René Madero Baéz. México: Fondo de
Cultura EconófiÚca. p. 299 SS.

165
integralidade do pagamento da referida licença. Tendo em vista que não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os
direitos e garantias individuais (art. 60, § 4°, IV), o tribunal afastou a
exegese segundo a qual a norma impugnada imputaria o custo da licença-
maternidade ao empregador, concernellle à diferença dos salários acima
de R$ 1.200,00, porquanto esta ofenderia o art. r, xxx, da CF, que é um
desdobramelllo do princípio da igualdade entre homens e mulheres (CF art.
SO, 1). Levou-se em consideração também que, entre os objetivos fundamen-
tais da República Federativa do Brasil, está o de promover o bem de todos,
sem prejuízo de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras fomzas
de discriminação (CF, art. 3°, IV)" (Relator Min. Sydney Sanches, j.
29.04.99)

Embora a posição do STF não tenha sido muito clara, já que no fundamento da
decisão aludiu-se também a direito individual inscrito no art. 5° da Constituição, ela
representa, no mínimo, um importante indicativo no sentido de que nossa Corte
Suprema não deverá aceitar passivamente a exclusão de direitos econômicos e sociais
da ordem constitucional vigente. O que já é uma ótima notícia.

5. Os Direitos Sociais, o Estado e a Comunidade Internacional

É possível que o Estado Nacional seja uma formação política passageira, como
o foram a polis e o feudo. O modelo forjado a partir da Pax de Westfallia não é
eterno e está intimamente correlacionado a certos fatores econômicos, sociais e
culturais que o processo de globalização vem atingindo em profundidade. Talvez,
num futuro nem tão longíqüo assim, a Humanidade constitua uma só ordem políti-
co-jurídica, unificada em torno de um direito cosmopolita, como defendera Kant, na
sua célebre Paz Perpétua. Neste caso, espera-se apenas que este ordenamento gravite
em torno dos direitos humanos, e não das exigências nem sempre humanitárias do
mercado.
De qualquer forma, a Cosmopolis 25 é ainda um sonho distante - ou um pesa-
delo, dependendo da perspectiva do observador. Em que pese a crise que atravessa,
o Estado continua sendo o locus onde vivemos, e é ainda nele que confiamos para
impor os padrões éticos necessários à convivência em sociedade.
Neste cenário, em que os órgãos supranacionais de defesa dos direitos humanos
são ainda frágeis e não dispõem minimamente dos mecanismos necessários à garantia
dos direitos sociais, quem aposta no enfraquecimento do Estado, investe também
contra a dignidade do homem. Os países do capitalismo periférico, como o Brasil,
não se devem deixar seduzir pelo canto da sereia do neoliberalismo, pois as suas
propostas de encolhimento radical do Estado conduzem, tragicamente, ao aprofun-

25 A expressão é do sociólogo italiano ZOLO, Danilo, Cosmopolis: prospects for World Gover-
nance.

166
damento da desigualdade e à formação de uma casta de párias, excluída de todos os
benefícios da sociedade de consumo.
É certo que a era do Estado hipertrofiado, pesado e burocrático, já se foi e, pelo
menos no Brasil, ela não deixa saudades. Em nosso país, das tetas do Estado Cartorial
jorrou o alimento que nutriu nosso incipiente capitalismo, e favoreceu sempre a
mesma classe social. Na verdade, o crescimento desordenado do Estado, com a
criação de centenas de empresas estatais durante duas ditaduras, muito pouco con-
tribuiu para amenizar a miséria e as gritantes desigualdades sociais que são o flagelo
do nosso sofrido povo. Mas, por outro lado, não é aniquilando o Estado ou eliminado
os seus deveres sociais que o problema vai se resolver, pois o mercado, sozinho, não
soluciona, mas antes agrava a injustiça social. Entre Cila e Cáribdes, deve-se buscar
o ponto de equilíbrio para a trajetória do Estado, em tempos de globalização e de
capitalismo pós-industrial.
De outra banda, é necessário fortalecer as instâncias internacionais de fiscali-
zação dos direitos sociais. No âmbito dos processos de integração regional, por
exemplo, é importante instituir normas de proteção dos direitos sociais e mecanismos
efetivos de controle. O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, no célebre
acórdão proferido no caso Francovich, deu o exemplo, ao condenar o Governo
Italiano a indenizar trabalhadores, porque não dera eficácia à diretiva do Conselho
da Comunidade que impunha aos estados-membros o dever de estabelecer garantias
mínimas para o recebimento dos créditos trabalhistas dos empregados, nos casos de
falência ou insolvência do empregador. Ao comentar tal decisão, Canotilho afirma
que estamos diante da formação de um "direito comunitário dirigente", em substi-
tuição à constituição dirigente, hoje em crise26 •
No entanto, no Mercosul, os direitos humanos, em geral, e os direitos sociais,
em particular, não têm despertado as atenções merecidas. É essencial integrar a
proteção dos direitos sociais à agenda do Mercosul, que não deve ficar restrita às
questões econômicas e mercantis.
É também fundamental criar e robustecer instrumentos na esfera internacional
que permitam domesticar os atores econômicos transnacionais que, hoje, não têm
como ser subjugados pelo direito estatal. Em especial, o controle do capital especu-
lativo sem pátria, que ameaça a estabilidade das economias nacionais, demanda, com
urgência, a criação de mecanismos de regulação e fiscalização por agências interna-
cionais, já que o poderio do Estado nesta seara é quase nulo. Nesse sentido, é
interessante a proposta de criação de um tributo internacional sobre a circulação do
capital financeiro - a chamada doutrina de Tobin - que vem sendo hoje discutida
nos foros internacionais, com o apoio do Brasil 27 .
Igualmente importante é a generalização da adoção da ... cláusula social" no
comércio internacional, vinculando os agentes econômicos à observância dos direitos
trabalhistas básicos reconhecidos na esfera internacional, independentemente da

26 Da Constituição Dirigente ao Direito Comunitário Dirigente, op. cit., p. 215/216.


27 Veja-se, a propósito, CHESNAIS, François. Tobin or not Tobin? Trad. Francisco Calheiros
Ribeiro Ferreia e outros, São Paulo: Ed. Unesp, 1999.

167
legislação dos países em que operem. Se o acesso ao comércio internacional for
vedado ou dificultado para as empresas que não cumprirem as normas internacionais
que protegem os direitos básicos do trabalhador, o nível de adesão a estas normas
vai aumentar. Sem embargo, a discussão neste caso é complexa, pois a "cláusula
social" pode converter-se em barreira protecionista que favorece os países desen-
volvidos no comércio internacional, em detrimento dos subdesenvolvidos, contri-
buindo para agravar as desigualdades econômicas hoje existentes entre eles 28 .
Em suma, ali onde o Estado é fraco para garantir os direitos sociais, é importante
fortalecer os órgãos e instrumentos supranacionais vocacionados para esta finalidade.
A atuação da comunidade internacional permanecerá, no entanto, subsidiária, pois
a tarefa de garantir e proteger os direitos sociais deve continuar sendo essencialmente
estatal.

6. Conclusão

"Imagine there 's no country" , convidava sedutoramente John Lennon, na letra


da música que encantou toda uma geração. Mas o mundo que se desenhava na sua
imaginação de poeta não era, seguramente, o das leis inflexíveis do mercado globa-
lizado, mas o da solidariedade humana sem fronteiras.
O reconhecimento dos direitos sociais foi uma dura conquista da humanidade.
Porém, conquista ainda muito mais importante é a de transpor o abismo que separa
a norma da realidade social, para assegurar concretamente estes direitos, num mundo
em que bilhões de pessoas vivem abaixo da linha da miséria.
Se a globalização é de fato irreversível, cumpre então redirecioná-Ia e pintá-la
com tintas mais humanas. É preciso globalizar as vantagens que os fantásticos
avanços na ciência e tecnologia proporcionam. O Homem, e não o mercado, deve
ser o valor maior, neste mundo que caminha a passos largos para transformar-se
numa verdadeira aldeia global.

28 Vide, a propósito, DELMAS-MARTY, Mireille, Trois défis pour un droir mondial. Paris:
Éditions du Seuil, 1998, p. 65170, bem como, na doutrina nacional, AMARAL JÚNIOR, Alberto .
.. Direitos Humanos e Comércio internacional: reflexões sobre a 'cláusula social' .. , in O Cinquen-
tenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. AMARAL JÚNIOR, Alberto & PER-
RONE-MOISÉS, Cláudia (org). São Paulo: Edusp, p. 197/216.

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