Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Valère Novarina
Tradução e apresetação
19
dita, que nos foi ditada. Não procurava dominar o
português, possuí-lo, mas ao contrário piorá-lo, con-
duzi-lo ao seu fim. Escrevia em português crepuscular.
Pensava estar perdendo a cabeça. Ele acreditava morar
numa máquina que desce. Pior ainda, sempre mais
abaixo, sempre mais baixo, ele queria conduzir seu
espírito, empurrá-lo até que ele chegasse lá aonde nada
mais vale. Num lugar sem valor. Pensava mergulhar,
descer lá aonde não se vai mais adiante. Queria condu-
zir ele mesmo seu espírito ao seu fim, piorar sempre. É
um assassinato. É um espírito que se destrói. É alguém
que se mata ao falar. É algo que vai desaparecer. É por-
que ele pensa ser tempo, falar com seu próprio tempo,
ser o tempo que vai passando ao falar.
20
dedicasse. Ele não tinha nem voz, nem visões, nem
visitações, mas ele estava tocado, ele se tornava aquele
que toca, manipulário, autogênico. Atravessava esta-
dos de separação, via com suas mãos. Ele não tem
mais olhos mas o corpo inteiro como um olho. Os
pés, as mãos, os músculos, nervos, sexos, vísceras
interiores de tubos que veem, ele é a mão de uma
vista, o objeto de um som tátil, tocado e visitado. Ele
vê a mão de visão acima da sua cabeça. Ele só conse-
gue se deslocar em pensamento.
21
Dividia seu tempo em sessão de tratamento: uma
hora e cinquenta ou oito minutos; cada sessão estando
determinada de antemão e sendo obrigatoriamente
levada até o fim. Examinava sem cessar espaço, mês,
ano, duração, lugar, hora do dia; determinava horá-
rio, comprimentos, posições. Trabalhava em sessões
regradas, ia sempre além do cansaço, até o segundo
fôlego, até o terceiro corpo que se forma quando se
usou bem, exauriu o primeiro corpo... Se lhe pergun-
tassem, ele dizia estar treinando. Como um baila-
rino que vai dançar, como um saltador que vai saltar,
como um trapezista de olhos fechados que apreende
o espaço e o tempo em pensamento antes de ir para
o vazio. Se lhe perguntassem para que treinava, ele
dizia treinar para descer.
22
para se despojar de um corpo, para ter o espírito bem
renunciado, para se matar, para perder a fala.
23
Passava centenas de horas nos exercícios de preparação,
de arrumação dos lugares e dos tempos, até começar a
ouvir o tempo, até começar a ver a palavra se manter
sozinha, sair sem ele. Ele se dizia acometido de “lin-
guismo”, de uma palavra que lhe falava perpetuamente
aos ouvidos. Tinha um animal no seu animal, uma voz
na barriga, uma voz dentro. Ele estava pra sempre no
mundo das línguas, quer dizer, ele não tinha certeza de
ter um corpo, não tinha certeza de estar num mundo,
menos certeza ainda de ser um ser vivo; estava no
mundo das línguas em fusão, via tudo entrar-sair, via a
língua sozinha, via o mundo sem o homem.
24
na língua quando não havia mais ninguém dentro,
ouvia sem falar, ele ouvia os homens sem ninguém
que fala. Por ascensão circular, por travessia espiral,
por via automática, por exercícios respirados, por
vertigens, por descidas, por generadas perpétuas, do
tanto ao tanto tinha conseguido ver o tempo.
25
sem ter palavras para designá-las. Tinha renunciado
a nomear. Até que todos os objetos em frente estives-
sem a igual distância, sem inteligência, sem apreen-
são, sem compreensão, sem ação possível. O mundo
lhe era incompreensível porque ele havia renunciado
a nomeá-lo, a segurá-lo na sua mão. Ele ofereceu sua
língua às coisas. Ele não fazia mais diferença entre
o mundo e seu pensamento. Ele estava rodeado
de objetos interiores e lugar algum no mundo; ele
mesmo estava inteiramente fora. Toda ação pensada
se produzia. Só o pensamento se produzia. Ele
pensava ter tocado algo de proibido, ser o único a ter
visto. Tudo fazia um bloco, ele tinha perdido. Tinha
perdido grande parte da memória, a faculdade de se
orientar, mas em compensação gozava de um novo
órgão, de um novo sentido, de um olho para enxergar
de noite, de uma visão cega, aguda, crepuscular, de
um olho preto.
26
É um ato horrível, inominável, eu teria preferido não
fazê-lo!
27