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coleção dramaturgias

Valère Novarina

o teatro dos ouvidos

Tradução e apresetação

Angela Leite Lopes


O teatro dos ouvidos
ele pensava ter arquitetado um método para
fazer sua boca dizer tudo o que quisesse. Queria
dobrá-la, trabalhá-la, submetê-la todo dia ao trei-
namento respirado, torná-la firme, torná-la flexível,
dar-lhe músculos pelo exercício perpétuo. Até que ela
se transformasse numa boca sem fala, até falar uma
língua sem boca... Como um bailarino que quisesse
sempre dançar mais, dançar mais longe, dançar até o
fim, até que não houvesse mais ninguém no espaço.

Ele tinha renunciado a qualquer ideia de expressão,


de troca, comunicação, mestria, aprendizado. Ele teria
querido desaprender, não falar mais uma língua que

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dita, que nos foi ditada. Não procurava dominar o
português, possuí-lo, mas ao contrário piorá-lo, con-
duzi-lo ao seu fim. Escrevia em português crepuscular.
Pensava estar perdendo a cabeça. Ele acreditava morar
numa máquina que desce. Pior ainda, sempre mais
abaixo, sempre mais baixo, ele queria conduzir seu
espírito, empurrá-lo até que ele chegasse lá aonde nada
mais vale. Num lugar sem valor. Pensava mergulhar,
descer lá aonde não se vai mais adiante. Queria condu-
zir ele mesmo seu espírito ao seu fim, piorar sempre. É
um assassinato. É um espírito que se destrói. É alguém
que se mata ao falar. É algo que vai desaparecer. É por-
que ele pensa ser tempo, falar com seu próprio tempo,
ser o tempo que vai passando ao falar.

Ele pensava viver uma experiência autogênica. Ele


via uma mão de visão atrás da sua cabeça. Ele tinha
muitas vezes a sensação de ter duas cabeças. Ele não
via a luz, descia uma luz, descia a luz de um tubo. Ele
via sempre isso como uma descida, como uma escada
na luz obscura. Como um sacrifício científico. Algo
do qual foi encarregado. Era preciso que alguém se

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dedicasse. Ele não tinha nem voz, nem visões, nem
visitações, mas ele estava tocado, ele se tornava aquele
que toca, manipulário, autogênico. Atravessava esta-
dos de separação, via com suas mãos. Ele não tem
mais olhos mas o corpo inteiro como um olho. Os
pés, as mãos, os músculos, nervos, sexos, vísceras
interiores de tubos que veem, ele é a mão de uma
vista, o objeto de um som tátil, tocado e visitado. Ele
vê a mão de visão acima da sua cabeça. Ele só conse-
gue se deslocar em pensamento.

Girava as mesas, deslocava as máquinas, mudava as


cadeiras de lugar, os bancos. Ele pensava não exami-
nar nunca com o cuidado necessário o espaço à sua
volta: posições, direções, volumes, linhas de força.
Antes de começar, ele lançava primeiro o som dó para
ouvir o ar ressoar, para saber como responde. A cada
novo episódio, nova parte, era preciso que ele rearru-
masse o espaço, deslocasse de novo móveis e objetos,
destruísse a antiga cenografia, retomasse sem cessar
seus exercícios de orientação.

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Dividia seu tempo em sessão de tratamento: uma
hora e cinquenta ou oito minutos; cada sessão estando
determinada de antemão e sendo obrigatoriamente
levada até o fim. Examinava sem cessar espaço, mês,
ano, duração, lugar, hora do dia; determinava horá-
rio, comprimentos, posições. Trabalhava em sessões
regradas, ia sempre além do cansaço, até o segundo
fôlego, até o terceiro corpo que se forma quando se
usou bem, exauriu o primeiro corpo... Se lhe pergun-
tassem, ele dizia estar treinando. Como um baila-
rino que vai dançar, como um saltador que vai saltar,
como um trapezista de olhos fechados que apreende
o espaço e o tempo em pensamento antes de ir para
o vazio. Se lhe perguntassem para que treinava, ele
dizia treinar para descer.

Entre cada sessão, ele gostava de executar um tra-


balho idiota, ritmado, repetitivo: cavar, marretar,
deslocar terra, andar rápido, correr reto. Para aliviar
seu corpo automático, para ver seu corpo primeiro
se levantar, para exaurir sua cabeça, para se esvaziar,

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para se despojar de um corpo, para ter o espírito bem
renunciado, para se matar, para perder a fala.

Ele se colocava muitas vezes no limite da sombra e da


luz, com a luz que avançava sobre o papel na mesma
velocidade que a linha escrita.

Retomava todo dia os exercícios de descida, a tra-


vessia circular. Ele não recomeçava nunca do lugar
aonde tinha chegado na véspera, mas sempre mais
adiante, sempre mais atrás, mais anteriormente ao
ponto de partida. Recuando, saltando ao contrário.
Inscrevia suas palavras não para se elevar acima de
outrem pela escrita, pelo pensamento, pela língua
portuguesa dominada, mas para descer abaixo, ir
sempre mais baixo, descer sua paixão descendente,
como uma descida manipulária, como uma paixão
que lhe furou os olhos.

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Passava centenas de horas nos exercícios de preparação,
de arrumação dos lugares e dos tempos, até começar a
ouvir o tempo, até começar a ver a palavra se manter
sozinha, sair sem ele. Ele se dizia acometido de “lin-
guismo”, de uma palavra que lhe falava perpetuamente
aos ouvidos. Tinha um animal no seu animal, uma voz
na barriga, uma voz dentro. Ele estava pra sempre no
mundo das línguas, quer dizer, ele não tinha certeza de
ter um corpo, não tinha certeza de estar num mundo,
menos certeza ainda de ser um ser vivo; estava no
mundo das línguas em fusão, via tudo entrar-sair, via a
língua sozinha, via o mundo sem o homem.

Ele dizia levar o seu morto a fazer o seu vivo traba-


lhar para ouvir todas as bocas inutilizadas que falam.
Quando ele falava, ele tocava uma outra boca que
dizia a língua que não sabe. Quando ele entrava, ele
pensava fazer entrar um homem que leva uma cena.

Ele não falava com ninguém. Pensava ouvir a língua


no momento em que ninguém fala mais, ele entrava

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na língua quando não havia mais ninguém dentro,
ouvia sem falar, ele ouvia os homens sem ninguém
que fala. Por ascensão circular, por travessia espiral,
por via automática, por exercícios respirados, por
vertigens, por descidas, por generadas perpétuas, do
tanto ao tanto tinha conseguido ver o tempo.

Acometido por incapacidade, ele lançava pedaços de


sons ritmados, uns dó, uns slogans, umas ladainhas
estúpidas, uns vai-e-vem, uns dó. Ele queria ver o
espetáculo da linguagem, chamar as línguas que não
ouvimos mais. Tinha parado de ouvir, tinha conhe-
cido as nulidades, tinha chamado as línguas, tinha
dado as batidas de Molière com a própria cabeça. Ele
usava a língua portuguesa como um animal.

Tinha usado a linguagem como um animal, ele tinha


renunciado à sua cabeça, renunciado a ser, pela língua,
o mestre das coisas. Ele tinha proibido a si mesmo
nomear o que quer que fosse. Para ir às coisas, para
descer, ver mais baixo. Ele tinha aceitado ver coisas

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sem ter palavras para designá-las. Tinha renunciado
a nomear. Até que todos os objetos em frente estives-
sem a igual distância, sem inteligência, sem apreen-
são, sem compreensão, sem ação possível. O mundo
lhe era incompreensível porque ele havia renunciado
a nomeá-lo, a segurá-lo na sua mão. Ele ofereceu sua
língua às coisas. Ele não fazia mais diferença entre
o mundo e seu pensamento. Ele estava rodeado
de objetos interiores e lugar algum no mundo; ele
mesmo estava inteiramente fora. Toda ação pensada
se produzia. Só o pensamento se produzia. Ele
pensava ter tocado algo de proibido, ser o único a ter
visto. Tudo fazia um bloco, ele tinha perdido. Tinha
perdido grande parte da memória, a faculdade de se
orientar, mas em compensação gozava de um novo
órgão, de um novo sentido, de um olho para enxergar
de noite, de uma visão cega, aguda, crepuscular, de
um olho preto.

Piora! Joga os teus miolos! Renuncia! Sobe ao topo!

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É um ato horrível, inominável, eu teria preferido não
fazê-lo!

Nem corpo, nem cabeça, nem visão, nem voz, mas a


impressão de só tocar.

Ele ouve a língua na sua palavra. Ele dança para o


que não está aí. Ele dança no espaço que não está aí.
Em canto mudo, em língua sem palavra, em dança
imóvel.

Eclipse, ponto cego, buraco negro, crepusvirgina-


mento, crepusculação, síncope, branco no espaço,
na percepção, branco dos sentidos, perder a língua,
nuclear, jogar seus miolos, piorar, fazer a experiência,
descer no sopro, na coluna de ar, descer no buraco
da luz do tubo da coluna de ar, lesões experimen-
tais, buracos de memórias, vazios de sentido, verti-
gens linguais, linguismo, generada perpétua, queda

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