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RESSONÂNCIAS FILOSÓFICAS

XXII Simpósio de Filosofia Moderna e


Contemporânea da UNIOESTE

Volume II:
Artigos
Imagem da capa:
https://pixabay.com/pt/coruja-bird-animal-natureza-1996169/
Célia Machado Benvenho
José Dias
Junior Cunha
(Organizadores)

RESSONÂNCIAS FILOSÓFICAS
XXII Simpósio de Filosofia Moderna e
Contemporânea da UNIOESTE

Volume II:
Artigos

Primeira Edição E-book

Toledo - PR
2018
Copyright 2018 by
Organizadores
EDITORA:
Daniela Valentini
CONSELHO EDITORIAL:
Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR
Dr. José Aparecido Pereira – PUC-PR
Dr. José Beluci Caporalini - UEM
Dra. Lorella Congiunti – PUU – Roma
REVISÃO FINAL:
Prof.ª Luciana Bovo Andretto
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Junior Cunha
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Ressonâncias filosóficas: volume II: artigos /


R435 organizadores, Célia Machado Benvenho, José
Dias, Junior Cunha. – 1. ed. e-book –
Toledo, PR: Vivens, 2018.
558 p.: il; color.

“XXII Simpósio de Filosofia Moderna e


Contemporânea da UNIOESTE”
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.vivens.com.br>
ISBN: 978-85-92670-63-40

1. Filosofia.

CDD 22. ed. 106.3

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi


Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores


Os textos aqui publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................................................... 11

I A AUTONOMIA DO CAMPO ESTÉTICO E SUAS


RELAÇÕES COM O CAMPO MORAL SEGUNDO SCHILLER
........................................................................................................................... 13

II A CONCEPÇÃO JUSFILOSÓFICA DO ABORTO SOB A


ÓTICA DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004)............................... 27

III AFINAL DE CONTAS, QUEM SOMOS NÓS?


sobre a interpretação heideggeriana da oὐσία na física ............................................ 41

IV A IMPOSSIBILIDADE DA LIBERDADE PLENA


DECORRENTE DA VONTADE .......................................................... 53

V A LIQUIDEZ E A ESQUIZOFRENIA NAS RELAÇÕES


SOCIAIS UMA PERSPECTIVA EM MARCUSE ............................. 61

VI A METÁFORA DA “CARNE” NA LINGUAGEM DE


MERLEAU-PONTY .................................................................................. 67

VII A “MITEZZA” BOBBIANA ............................................................ 77

VIII A RELAÇÃO DE PARTIDOS: COMUNISTA E


PROLETÁRIO ............................................................................................. 91

IX A VIDA HUMANA COMO PRESSUPOSTO NECESSÁRIO


PARA TODOS OS DIREITOS HUMANOS.................................... 101

X CETICISMO ACADÊMICO E A DIALÉTICA NEGATIVA. 115

XI CHARLES PARSONS E A FILOSOFIA DA ARITMÉTICA


DE KANT .................................................................................................... 125
8 Ressonâncias filosóficas - Artigos

XII CONCEPÇÃO ONTOLÓGICA DO CORPO ENQUANTO


IMANENTE AO MUNDO: UMA BREVE ANÁLISE DAS
TEORIAS DE GABRIEL MARCEL E MERLEAU PONTY A
LUZ DO SPINOZISMO ......................................................................... 135

XIV DIGNIDADE HUMANA ENTRE A LIBERDADE E


IGUALDADE: RETORNO A KANT E ROUSSEAU ................... 147

XV DO PROBLEMA MENTE-CORPO AO PROBLEMA DO


"EU" COMO IDENTIDADE .............................................................. 157

XVI DOS PRÉ-SOCRÁTICOS A ARISTÓTELES: O


NASCIMENTO DA ATITUDE CRÍTICA E O SEU FIM .......... 167

XVII ELECTRA E A MÁ-FÉ SARTREANA: BRINCANDO DE


SER ................................................................................................................ 189

XVIII FABULAÇÕES EM TORNO DA FILOSOFIA DE


RANCIÈRE E SUA RELAÇÃO COM O PENSAMENTO
ANARQUISTA ........................................................................................... 201

XIX FENOMENOLOGIA ENQUANTO ATITUDE E ESCRITA


FILOSÓFICA ............................................................................................. 217

XX FILOSOFIA NA WEB E EXERCÍCIO DO PENSAMENTO


NA MODERNIDADE LÍQUIDA ....................................................... 237

XXI FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES:


A MORAL E A AÇÃO HUMANA PENSADAS POR KANT ..... 261

XXII HANNAH ARENDT


uma crítica á noção de progresso a partir de sobre a violência ............................... 269

XXIII INTENCIONALIDADE COMO PRINCÍPIO DE


DEMARCAÇÃO DOS FENÔMENOS PSÍQUICOS .................... 277

XXIV KANT E A REVALORIZAÇÃO DA ESTÉTICA ............... 291


Sumário 9

XXV LUDWIG FEUERBACH E O PROBLEMA DO


FETICHISMO ........................................................................................... 313

XXVI MESTRE ECKHART E A CONCEPÇÃO DE DEUS ..... 321

XXVII NOTA SOBRE OS CONCEITOS ESCOLÁSTICO E


CÓSMICO DE FILOSOFIA EM KANT ........................................... 329

XXVIII O BOM SELVAGEM E O CIDADÃO CIVILIZADO


CORROMPIDO
noções de uma teoria de J-J. Rousseau................................................................. 337

XXIX O CORPO NA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO


DE MERLEAU-PONTY ........................................................................ 351

XXX O IMATERIALISMO NA FILOSOFIA DE GEORGE


BERKELEY ................................................................................................ 363

XXXI O PAPEL DA ANGÚSTIA EM HEIDEGGER .................. 369

XXXII O PAPEL DA SUBJETIVIDADE NO PRINCÍPIO


EMANCIPATÓRIO DE RANCIÈRE ............................................... 379

XXXIII O PAUPERISMO DA FILOSOFIA


a questão da objetividade nas ciências sociais e a crítica ao racionalismo crítico de Karl
Popper............................................................................................................... 389

XXXIV O SENTIDO HISTÓRICO NA FILOSOFIA DO JOVEM


NIETZSCHE.............................................................................................. 409

XXXV O “SER” DE DEUS É OU NÃO É


na concepção de Feuerbach e Agostinho .............................................................. 415

XXXVI OS BENEFÍCIOS DA GUARDA COMPARTILHADA


EM SEUS ASPECTOS LEGAIS, PSICOLÓGICOS E
FILOSÓFICOS .......................................................................................... 425
10 Ressonâncias filosóficas - Artigos

XXXVII PERFEIÇÃO CRISTÃ E SANTIFICAÇÃO


PROGRESSIVA EM JOHN WESLEY ............................................... 439

XXXVIII RAZÕES DA TOLERÂNCIA E DA IGUALDADE NO


CAMPO DA EDUCAÇÃO ...................................................................... 459

XXXIX REFLEXÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS


PRAGMÁTICOS DA LINGUAGEM EM AUSTIN E GRICE ... 471

XXXX SOCIALISMO E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO


DO JOVEM LEFORT ............................................................................. 481

XXXXI TEMPO E MEMÓRIA EM AGOSTINHO DE HIPONA


o ser humano volta-se para o seu interior ............................................................ 495

XXXXII UM ESTUDO CRÍTICO SOBRE O PRINCÍPIO DA


LIBERDADE RELIGIOSA E A LAICIDADE ESTATAL EM
FACE DA TEORIA HABERMASIANA
a Racionalidade Instrumental e a Fé .................................................................. 505

XXXXIII UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE STEPHEN


C. PEPPER FOCADO EM SEU LIVRO WORLD
HYPOTHESES .......................................................................................... 523

XXXXIV UNIDADE PSICOFÍSICA E AUTONOMIA DO


PENSAMENTO EM ARISTÓTELES
ingano sobre De Anima III 4-5 e Castoriadis sobre a imaginação ...................... 535

XXXXV VERIFICAR A IGUALDADE


as ocupações estudantis pensadas à luz da filosofia de Rancière ............................ 549
APRESENTAÇÃO

Este livro recolhe os textos completos provenientes das


Comunicações apresentadas no XXII Simpósio de Filosofia Moderna e
Contemporânea da UNIOESTE, realizado entre 06 e 10 de novembro de
2017, no campus de Toledo-PR. Participantes de diferentes instituições do
país discorreram sobre temas de História da Filosofia e da Ciência,
Metafísica, Fenomenologia, Estética, Filosofia Política, Ética, Ensino de
Filosofia e outras áreas de conhecimento. Os textos completos referentes
às comunicações apresentadas estão publicados no volume II desta
coleção, assim como os textos decorrentes das Conferências e Minicursos
estão publicados no volume III desta coleção.
O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da
UNIOESTE de 2017 foi a vigésima segunda edição consecutiva do
evento, promovido pelos cursos de Graduação e Pós-Graduação em
Filosofia de nossa universidade. Esta regularidade do evento, somada ao
contínuo crescimento em quantidade e qualidade, mostra a força do
trabalho em equipe, que envolve professores, estudantes e técnicos da
instituição. Tivemos, em 2017, mais de trezentos e cinquenta participantes
inscritos, com expressiva participação de público em todas as atividades
oferecidas; recebemos conferencistas da Itália, da Espanha e da Argentina,
além de nomes significativos da filosofia do Brasil; sete conferências e três
minicursos simultâneos foram apresentados; ocorreram 120
comunicações (nas várias áreas de pesquisa filosófica e das ciências
humanas) e apresentamos diversificada agenda cultural, incluindo
lançamentos de livros. A comunidade do município se fez presença
marcante, tanto na plateia quanto no auxílio ao financiamento e
manutenção do evento. Prova-se, assim, que o trabalho sólido é sempre
possível, se instituições e comunidade solidariamente se empenham.
Ao longo desses 22 anos, a participação de estudantes e
pesquisadores tem se mantido significativa; tanto de universidades do
Estado do Paraná, tais como UEL, UEM, PUCPR, UNICENTRO,
UENP, UEPG, UNICESUMAR, UEPG, UNIPAR, FAG, UFPR,
UNILA, UNESPAR, IFPR, UTFPR, quanto de outros estados brasileiros,
dentre as quais podemos citar a PUCRS, UNISINOS, UFRGS, UNIFRA,
UFSM, UPF, UFSC, UFFS, UESC, UNICAMP, UFABC, UNESP, USP,
PUCSP, UFRJ, UERJ, UFF, UFMG, UFOP, UFSCAR, UFBA, UNB,
UFU, UFC, UFPE, UFAL, etc. O mesmo tem ocorrido com jovens
12 Ressonâncias filosóficas - Artigos

professores e pesquisadores, muitos deles ainda estudantes em programas


de Mestrado e Doutorado de vários Estados, além, evidentemente, dos
palestrantes de renome nacional e internacional que prestigiaram nossos
eventos com suas conferências, provindos principalmente dos seguintes
países e instituições: Lisboa, Udelar/Uruguay, Asheville/EUA, Duisburg-
Essen/Alemanha, Évora/Portugal, Univ. Valladolid/Espanha,
UBA/Argentina, Univ. Tel Aviv, UCA/Argentina, UMSB/Venezuela,
Sorbonne/Paris, Unsam/Argentina, Lille/França, Universidade de
Urbino/Itália, Coimbra/Portugal, Piza/Itália.
É sensível a influência do SIMPÓSIO DE FILOSOFIA da
UNIOESTE sobre os acadêmicos de Filosofia e sobre seu interesse na
pesquisa e na atividade filosófica, no estado e em âmbito nacional. A
convivência com outros acadêmicos e docentes tem servido de incentivo
em diversas áreas. É, portanto, um evento integrado e vinculado às várias
atividades filosóficas, tais como pesquisas, ciclos de palestras, grupos de
pesquisa cadastrados no CNPq e na Fundação Araucária, grupos de
estudos, seminários, Grupo Pet-Filosofia, Grupo PIBID-Filosofia, cursos
de especialização e outras atividades afins; é expressão do trabalho e do
desempenho de seus docentes, em nível interno e externo.
Por fim, esta tradição de ser um evento de qualidade e em sua
vigésima segunda edição não seria possível sem o apoio financeiro das
agências de fomento: Fundação Fausto Castilho, Fundação Araucária,
Reitoria e Pró-Reitoria de Extensão da UNIOESTE (PROEX) e
PPGFIL/Unioeste (Programa de Pós-Graduação em Filosofia). Sem esse
aporte, a participação dos renomados convidados do exterior e de
professores brasileiros que sempre abrilhantaram as edições anteriores
estaria inviabilizada. Nossa gratidão a todos os mencionados, direta e
indiretamente, fica registrada aqui, junto ao convite para que as próximas
edições continuem mostrando nosso compromisso brasileiro, paranaense
e toledense com a difusão pública da pesquisa, do ensino e da extensão
em Filosofia.

Os Organizadores
I

A AUTONOMIA DO CAMPO ESTÉTICO E SUAS RELAÇÕES


COM O CAMPO MORAL SEGUNDO SCHILLER

Paulo Borges de Santana Júnior*

RESUMO

Recentemente, testemunham-se muitos casos de discursos que


questionam exposições artísticas em nome de valores morais. Além dos
efeitos imediatos que tais discursos impõem particularmente contra
algumas obras, é preciso também projetar os seus efeitos indiretos – tanto
na forma de inibição ao patrocínio e à realização de exposições mais
“ousadas”, quanto na forma de produção de preconceitos no domínio
ético. Diante desse contexto, parece ressurgir a relevância da tradicional
questão sobre a autonomia do campo estético. Nesse horizonte, Schiller
se destaca por apresentar uma resposta que defende a autonomia do
estético e que, simultaneamente, afirma a dimensão estética como
intermediária à dimensão moral. Mas Como é possível pensar, sem contradição, o
estético como fim em si mesmo e como meio para a moralidade? O esclarecimento
dessa questão exige a mobilidade entre dois pontos de vistas diferentes: os
fundamentos específicos do estético e do moral; e as relações desses dois
campos, sobretudo, nas ações humanas. Do ponto de vista de seus
fundamentos (da legitimação), cada campo é autossuficiente. Porém,
enquanto aspectos da humanidade, tais campos vivem em constantes
trocas e interferências recíprocas. Nessa última perspectiva, Schiller
concebe o estético como meio para a moralidade em dois sentidos
diferentes. Por um lado, o gosto refinado pode auxiliar a conformidade
moral; por outro, o estético, enquanto unificação entre entendimento e
sensibilidade, será imprescindível para a efetivação de uma genuína moral
no ser humano. Tais reflexões conduzem à compreensão de que, ao

* Doutorando pela Universidade de São Paulo; e-mail: paulo.santana@usp.br;


http://lattes.cnpq.br/1503481482254393
Bolsista pelo processo nº 2017/07914-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
14 Ressonâncias filosóficas - Artigos

respeitar a autonomia do estético, promove-se uma concepção de humano


mais ampla.

PALAVRAS-CHAVE: Schiller; Autonomia estética; Liberdade;


Humanidade.

INTRODUÇÃO

Gostaria de começar essa apresentação com uma introdução que


tratasse não especificamente do meu texto, mas da temática geral a
respeito da autonomia do campo estético. Nos dias de hoje,
testemunhamos um discurso moralizante a se colocar de maneira bem
intimidadora nas escolas, nas universidades, no debate político, nas
sentenças judiciais e também nas exposições de arte. Essa invasão do
discurso moralizante prejudica todas essas áreas, mas quero enfatizar
sumariamente os seus efeitos no campo da expressão estética.
Cabe salientar que nesses conflitos não está em jogo propriamente
princípios morais, mas sim uma instrumentalização de preceitos morais
(fórmulas prontas) para perpetuar ou engendrar, na nossa sociedade,
características de intolerância diante da diversidade presente nas
expressões humanas. A reprodução mecânica dos discursos moralizantes
tem como efeito não a promoção de princípios morais, mas sim o
crescimento do preconceito e o fechamento da nossa sociedade diante
daquilo que se mostra de modo mais original, mais vivo, mais livre. Um
discurso que fala em nome da moral, mas que não se compromete com a
noção de liberdade tampouco com a coerência dos seus princípios, na
verdade, quer apenas se aproveitar da forma imperativa do dever e do
apelo quase unânime das pautas morais para deturpar algum
acontecimento e promover certos grupos ou iniciativas, cujas finalidades
são frequentemente obscuras para a grande maioria da população.
Por esse motivo, não podemos dizer que a autonomia do campo
estético está ameaçada atualmente pelos princípios morais, mas sim pela
reprodução de preconceitos disfarçada de bons costumes ou de boa
conduta. Vemos, hoje, os conceitos de bem e mal sendo utilizados de
maneira vazia em questionamentos e também em ações judiciais para
justificar o fechamento ou impedimento de exposições. Há um esforço de
fazer com que as expressões dos artistas sejam avaliadas pelas lentes cada
vez mais embaçadas da preservação dos costumes, e, quando reprovadas
por essas lentes, as expressões são simplesmente acusadas de corrupção.
A autonomia do campo estético... 15

Cabe aqui lembrar, nos exemplos de Sócrates, como a acusação de


corrupção é vaga e esconde as verdadeiras motivações de uma sentença
judicial. O que assistimos, na verdade, não é a moral se voltando contra a
arte, mas sim a limitação e o impedimento do exercício autônomo de
artistas e expositores, limitação e impedimento que têm conscientemente
um resultado direto contra o livre-pensamento da nossa sociedade. Desse
modo, refletir sobre a autonomia do campo estético não se restringe a uma
defesa acerca da autonomia do criador da obra, mas também faz parte de
uma defesa ampla da autonomia de pensamento do público, ou seja, da
autonomia de pensamento de todas as pessoas em sociedade.
Dessa maneira, recorre-se às ideias de Schiller, um autor que desde
o século XVIII compreendia que o campo estético estava profundamente
vinculado ao aperfeiçoamento da humanidade. Ressaltar a dimensão
profunda desse vínculo é um modo de preservar esse campo das
pretensões moralizadoras que muitas vezes atentam contra a sua
autonomia.

1.1 FORMULAÇÃO DA PERGUNTA

Para compreender como Schiller trata a autonomia do estético,


convém lembrar que, para o autor, o estético não se reduz ao sentimento
ou à natureza sensível da humanidade. Schiller desvincula o estético do
prazer puramente empírico e o concebe como um impulso formado pela
relação recíproca dos dois impulsos fundamentais no humano: o formal
(racional) e o material (sensível). Desse modo, a característica estética
surge quando, nas ações humanas, manifesta-se algo que não pode ser
reduzido isoladamente a nenhuma de suas partes. A característica estética
é aquela que se contrapõe às características parciais do homem para
manifestar um ser que é simultaneamente racional e sensível. Essa
concepção do estético, como interação dos dois impulsos fundamentais
da humanidade, é imprescindível para entender como Schiller consegue
defender tanto a autonomia do estético quanto a concepção do estético
como um estado intermediário da determinação moral. Com essa concepção
do estético enquanto interação entre sensível e racional, pode-se superar a
formulação binária da questão: o estético é um fim em si mesmo ou é um
meio para a moralidade? E, consequentemente, reformular tal questão da
seguinte maneira: como o campo estético consegue manter-se autônomo e,
ao mesmo tempo, se colocar como intermediário para a aquisição de um
estado moral?
16 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Para responder de maneira mais completa a essa questão, divide-


se a apresentação em dois momentos, os quais correspondem a textos
distintos de Schiller. Num primeiro momento, com base no texto Sobre a
utilidade moral dos costumes estéticos, trata-se da relação entre moral e estética
no nível dos costumes, ou seja, no nível da exterioridade, no nível da
aparência. Em suma, indica-se que essa relação externa, apesar de sua
pertinência, não contribui especificamente para o campo estético
tampouco para o moral. Num segundo momento, com base na terceira
parte de Cartas para a educação estética do homem, demonstra-se como a
qualidade estética é condição para a efetivação da moralidade no humano,
mas sem permitir a instrumentalização das noções de beleza ou dos
princípios estéticos.

1.2 A UTILIDADE DOS COSTUMES ESTÉTICOS (A RELAÇÃO


EXTERNA ENTRE MORAL E ESTÉTICA)

Ao se limitar ao nível dos costumes, a consideração acerca da


relação entre moral e estética pode identificá-la como utilidade na medida
em que os costumes estéticos, ou seja, o refinamento das condutas, têm o
poder de enfraquecer as determinações mais imediatas ou naturais,
abrindo, desse modo, espaço para uma possível determinação da própria
vontade ou de representações intelectuais. Pensando o conceito de
humanidade em função do tempo ou de sua história, nota-se como
primeiro estágio uma determinação imediata feita pela natureza e pelas
necessidades materiais; o refinamento proporcionado pelo gosto em geral
atuaria, nesse caso, como um estágio intermediário, conduzindo a
humanidade a determinações menos rústicas, mais suaves, leves ou
formais. Uma vez intensificada a receptividade humana para essas
determinações mais formais, as condutas morais, cujos motivos ou
justificações exigem frequentemente a renúncia a prazeres imediatos,
teriam mais facilidade para se fazerem presentes entre as pessoas. As ações
do gosto e as ações morais têm em comum a renúncia às determinações
imediatas das inclinações sensíveis, e é essa semelhança que está na base
da chamada utilidade moral dos costumes estéticos, ideia presente no
título desse texto.
Os costumes estéticos podem ter uma semelhança externa com a
moralidade na medida em que tais costumes enfraquecem a determinação
natural em seu nível mais imediato. Mas convém frisar que Schiller possui
uma concepção de moral bem próxima da kantiana. Por isso, a semelhança
A autonomia do campo estético... 17

das ações estéticas com as ações morais não possui propriamente valor
moral. Por exemplo, se alguém afastasse o egoísmo do fundamento de
suas ações não pelo dever de tratar as pessoas como fins em si mesmas,
mas pelo fato de o egoísmo ser uma atitude rude ou grosseira, com certeza
teria ações conformes à moral, mas não teria ações com um valor moral.
Nas palavras de Schiller: “o ético nunca pode ter outro fundamento do
que a si mesmo. O gosto pode favorecer a moralidade da conduta, mas ele
nunca pode produzir algo de moral através de sua influência” (SCHILLER,
2004, p. 55). Diante disso, a chamada utilidade moral diz respeito apenas
à conformidade (ou legalidade) moral das ações e não ao seu valor
propriamente moral. Desse modo, qual é a relevância de afirmar a utilidade
moral dos costumes estéticos?
Aqui convém evidenciar qual é a perspectiva que justifica ou
mesmo torna necessária a preocupação com a legalidade moral das ações
independentemente do seu valor propriamente moral. É justamente um
pessimismo acerca da situação moral dos homens de sua época que faz
Schiller defender a relevância da legalidade moral.

Se não quisermos tomar nenhuma medida para a legalidade de nossa


conduta, por ela não ter valor moral, a ordem do mundo poderia se
dissolver e, antes de nossos princípios [morais] ficarem prontos, todos
os laços da sociedade seriam dilacerados. Quanto mais contingente é,
porém, nossa moralidade, tanto mais necessário é encontrar precauções
para a legalidade, e uma negligência descuidada ou orgulhosa desta pode
nos ser moralmente imputada (SCHILLER, 2004, p. 66).

Num momento hipotético em que fosse grande a carência de


moralidade na esfera humana, seria orgulho ou ingenuidade insistir na
exigência do valor moral das ações, ou se quisermos ir mais além, nesses
momentos, seria nulo o enrijecimento do discurso moral ou a imposição
mais violenta dos seus preceitos. Segundo Schiller, seria até mesmo
responsabilidade moral promover, pelos costumes estéticos, a legalidade
moral das ações independentemente da verdadeira virtude. O motivo
disso é que a legalidade moral, mesmo sem o seu valor propriamente dito,
ainda é capaz de manter os laços de uma sociedade, e, sob essa perspectiva
social, a promoção do gosto e dos costumes estéticos, apesar de seu
aspecto meramente externo, se tornam imprescindíveis. Assim, o gosto,
longe de ser um auxílio à verdadeira moral, exerceria um constrangimento
social visando conscientemente apenas à legalidade moral, e nessa utilidade
18 Ressonâncias filosóficas - Artigos

o gosto seria mais eficaz do que um discurso que afirmasse de maneira


impositiva valores morais.
Em suma, essa é a argumentação de Schiller para justificar a
utilidade moral dos costumes estéticos enquanto promoção da legalidade
moral das ações sob a perspectiva da sociedade, perspectiva em que seria
descabido depositar todas as esperanças diretamente nas virtudes puras da
humanidade. Mas além dessa resposta, o fim do texto nos fornece uma
instigante imagem simbolizando seus argumentos.

Do mesmo modo que o louco, que pressente o seu próximo paroxismo,


afasta todas as facas e se deixa prender voluntariamente para não ser
responsável num estado sadio pelos crimes do seu cérebro destruído –
do mesmo modo também nós estamos obrigados a nos prender pela
religião e pelas leis estéticas para que nossa paixão não fira a ordem física
nos períodos do seu domínio (SCHILLER, 2004, p. 66).

Nessa imagem podemos considerar que o estético, sem ter


propriamente poder para evitar a “loucura”, isto é, a falta de valor moral
entre os humanos, é capaz de diminuir os danos que possam provir dessa
falta e, mais especificamente, os danos que poderiam romper, no limite, as
próprias relações sociais. Nessa imagem, as leis estéticas servem como
prisões, nas quais, durante um momento de lucidez, o louco por vontade
própria se prende. Com essa utilidade, o campo estético cumpre uma
função simplesmente análoga à função da religião. Ou seja, sob esse
aspecto, as leis estéticas praticamente perdem a sua peculiaridade e se
confundem com a própria religião, na medida em que ambas podem ser
vistas como prisões ou “âncoras” tornadas atrativas (ou em razão da
beleza ou em razão da imortalidade da alma) para aqueles que possuem
uma moral contingente ou impotente diante das “tentações” do mundo.
Em poucas palavras, na verdade, há uma relevância ou mesmo
uma necessidade de fazer considerações entre o estético e o moral em
função dos costumes, isto é, em função das relações externas entre tais
domínios. Essa relevância se justifica pela sociedade, não propriamente pelo
bem da sociedade, mas sim pela sua existência mínima, pela sua simples
conservação. Mas, nessa perspectiva, o campo moral se limita à mera
legalidade, e o campo estético se limita à mera função de impedir a
selvageria humana. Portanto, enquanto permanece-se nessa perspectiva,
não se avança nada nem em termos genuinamente morais tampouco em
termos propriamente estéticos. Será em termos completamente diferentes
que Schiller justificará o seu projeto de uma Educação Estética do Homem.
A autonomia do campo estético... 19

1.3 O CONCEITO DE DETERMINABILIDADE (A RELAÇÃO


ENTRE ESTÉTICA E MORAL NO ÂNIMO DO SER
HUMANO)

A questão sobre o modo como o estético pode ser um


intermediário para a moral sem perder a sua autonomia nos leva
imediatamente para a terceira parte1 de Educação Estética do Homem, mais
precisamente para as cartas de XVIII a XXII. Essas são as cartas em que
Schiller argumenta com teor mais especulativo; e, nessa argumentação, o
conceito de determinabilidade atuará de maneira central. Para entender o
conceito de determinabilidade, é necessário compreender como ele atua
na relação com os conceitos de determinação passiva e ativa.
No contexto da filosofia moral kantiana ou pós-kantiana, o ser
racional sensível pode ser determinado de maneira passiva (sensível) ou
ativa (inteligível). A determinação passiva é a determinação pela matéria
ou pela natureza, ela significa o estado de heteronomia, no qual o ser
humano é determinado por leis que se fundamentam nos objetos e não no
seu poder enquanto sujeito legislador de si mesmo. A determinação ativa
é a determinação alcançada pelos princípios formais da razão, e somente
essa determinação significa autonomia moral, ou seja, a liberdade de
atribuir a si mesmo leis que possuem fundamentação diretamente na
representação do sujeito. As doutrinas morais que se associam à tradição
kantiana possuem, assim, a tarefa de mostrar como o ser humano
conseguiria passar da determinação passiva para a determinação ativa.
Quais são os meios que precisam ser mobilizados para que essa passagem
seja realizada efetivamente e não apenas de maneira ilusória? A dificuldade
da passagem da determinação passiva para a ativa consiste em que, entre
essas determinações, há o abismo entre a matéria e a forma pura. Como
um sujeito que tem suas ações desde o nascimento condicionadas pela
matéria consegue alcançar uma determinação que precisa ser puramente
formal para ser considerada ativa ou livre?
A resposta de Schiller para esse problema é aprofundar ainda mais
o abismo entre o formal e o material, afirmando até mesmo que, na
interação entre matéria e forma que percebemos na experiência, é

1Cartas I a IX (setembro de 1794); Cartas X a XVII (nov-dez de 1794); Cartas XVIII a


XXVIII (fevereiro a junho de 1795).
20 Ressonâncias filosóficas - Artigos

impossível existir propriamente uma mistura entre esses elementos2. A


oposição entre a determinação ativa e a determinação passiva no ser racional
sensível não pode ser suprimida por nenhuma delas individualmente. Há
aqui a preocupação em alcançar uma representação pura do estado de
determinação ativa e do estado de determinação passiva, ou seja, por mais
que na experiência identifiquem-se esses estados em sucessão um ao
outro, para Schiller é preciso fazer uma representação transcendental da
oposição entre eles. Somente depois desse passo “especulativo”, o
conceito chave da estética de Schiller, a beleza, pode exercer o seu poder
de ligar realmente esses dois estados. Caso contrário, a ligação efetivada
pela beleza seria concebida simplesmente como mistura, como algo
pertencente ao empírico e não um poder transcendental que tem como
origem o próprio sujeito.
Como entender essa oposição transcendental entre determinação
passiva e ativa? Schiller defende que a passagem direta de uma
determinação natural para uma determinação moral é impossível, porque
os princípios morais são fundamentalmente formais e, dessa maneira, eles
só poderiam determinar efetivamente o ser humano depois da supressão
da determinação natural. A força da forma pura poderia determinar
plenamente somente após o ser humano anular a sua determinação
natural, pois, caso contrário, em vez de uma determinação genuinamente
moral, esse impulso formal conseguiria apenas refinar ou civilizar as
determinações previamente constituídas pela matéria sensível. Ou seja,
nesse caso, a matéria, por mais refinada que possa ser sua aparência,
continuaria sendo o fundamento efetivo de determinação do ser humano.
Sem a compreensão da oposição transcendental entre determinação
passiva e ativa, o mero refinamento dos costumes seria indistinguível da
moralidade.
À luz dessa oposição transcendental entre matéria e forma,
percebe-se que o impulso formal do ser humano, em vez de suprimir
diretamente a determinação passiva, na verdade, pressupõe essa supressão
para que possa efetivamente iniciar uma determinação ativa (determinação
com base no conceito moral de liberdade). Assim, a sucessão entre a
determinação passiva e a ativa precisa pressupor um estado que seria o
ponto zero entre as duas determinações, um estado que poderíamos
chamar de determinabilidade.

2 Apesar de Schiller não dar esse exemplo, pode-se entender esse argumento como a
relação entre dois elementos (água e óleo) que mesmo quando estão num mesmo
recipiente não se misturam efetivamente (um não tem o poder de dissolver o outro).
A autonomia do campo estético... 21

Determinabilidade é um conceito que significa, ao mesmo tempo,


a ausência de determinação presente e a possibilidade de determinação
futura. Convém entender primeiramente o sentido passivo desse termo.
A determinabilidade passiva é “o estado do espírito humano antes de
qualquer determinação pela impressão dos sentidos” (SCHILLER, 2010,
p. 91). Do ponto de vista conceitual, a determinabilidade passiva se refere
às representações formais puras da intuição: tempo e espaço. Aqui é
evidente que Schiller se fundamenta na Estética transcendental de Kant.
Consideradas em si mesmas, as formas puras do tempo e do espaço são
infinitas, uma vez que estão ausentes os limites que provêm das
representações particulares de conteúdos. Mas, na abstração de todas as
suas representações particulares, a infinitude do espaço e tempo só se
mantém nas suas representações vazias, enquanto entes da imaginação. Só
há realidade do tempo ou do espaço quando estes estão dentro dos limites
de uma representação singular. Enquanto formas puras da sensibilidade
sem referência a nenhuma determinação dada, tempo e espaço são
infinitos, mas também são apenas ficções da imaginação, por isso, sua
característica de determinabilidade é considerada passiva.
Resta frisar novamente que não temos a experiência de um estado
de determinabilidade passiva, esse estado funciona como um começo
hipotético ou conjectural. Ele é um pressuposto para a explicação da
origem temporal da determinação material, mas é digno de nota que essa
pressuposição não ocorre apenas no nível conceitual. Aliás, muito antes
de se conjecturar sobre essa origem através de representações abstratas,
tais conjecturas já eram feitas por meio de imagens. No nível imagético da
literatura ou da religião, encontramos facilmente a necessidade da
invenção de uma imagem que simbolize a infinitude vazia ou irreal desse
conceito de determinabilidade passiva: A Era de Ouro de Hesíodo, o
paraíso anterior à queda do Genesis, ou mesmo – quando pensamos na
modernidade –, a valorização de uma primeira infância presente na
literatura desde o Romantismo. A determinabilidade passiva pode ser
entendida como esse momento hipotético anterior ao padecimento que o
homem sente em relação à matéria. Esse conceito de uma infinitude vazia
possui um estatuto transcendental porque, apesar de não descrever
propriamente nenhum estado psicológico do ânimo, é colocado como
condição de possibilidade para pensar (ou explicar) o início da
determinação material sobre a humanidade.
Assim como uma determinabilidade será condição para pensarmos
o início da determinação material, Schiller estabelece outro estado que será
22 Ressonâncias filosóficas - Artigos

condição para o início no tempo da determinação formal no ser humano: a


determinabilidade ativa. Mas ao contrário, da primeira, Schiller precisa
afirmar o caráter real da determinabilidade ativa, pois ela tem a difícil tarefa
de suprimir a determinação material e manter a presença da própria
matéria sensível, sem a qual o ser humano não existiria ou seria outro ser:
um anjo ou um deus. Ou, nas palavras de Schiller:

A determinação que [o ser humano] recebe pela sensação tem, portanto,


de ser retida, pois ele não pode perder a realidade; ao mesmo tempo,
entretanto, à medida que é limitação, [a determinação passiva] tem de ser
suprimida, pois deve ter lugar uma determinabilidade ilimitada. A tarefa,
portanto, é destruir e conservar a um só tempo a determinação do
estado, o que só é possível se lhe opusermos outra [determinação]. Os pratos
da balança equilibram-se quando vazios e também quando suportam
pesos iguais (SCHILLER, 2010, p. 98).

A determinabilidade ativa é um estado de equilíbrio entre a matéria


e a forma, mas tal equilíbrio não pode ser a ausência ou a eliminação
completa da matéria (como era a noção fictícia de determinabilidade
passiva). Por isso, o equilíbrio aqui almejado significa conseguir com que
o impulso formal se faça presente no ser humano em igual medida ao
impulso material. A determinação passiva é um estado em que a matéria
tem mais peso do que o formal; a determinação ativa é um estado em que,
no nível do fundamento da ação, a forma tem mais peso do que a matéria;
por fim, a determinabilidade ativa é um estado em que a balança possui
um equilíbrio real entre os dois pesos. Portanto, compreendermos que a
determinabilidade suprime a determinação passiva, não pela anulação da
matéria, mas pela efetivação da forma, ou seja, pela capacidade de tornar
o ânimo do ser humano receptivo à qualidade formal das representações
da razão.

1.4 A DETERMINABILIDADE: INTERMEDIÁRIO, SIM;


INSTRUMENTO, NÃO

Essa determinabilidade real não é um instrumento da


determinação moral, por dois motivos: (i) ela não utiliza nem busca como
fundamento os princípios formais da moralidade; e (ii) ela é condição
necessária, mas não suficiente do início da determinação moral no ser
humano. Em outras palavras, ela é condição para que a vontade do ser
humano se manifeste de maneira mais imediata em relação às
A autonomia do campo estético... 23

determinações naturais, mas a qualidade moral da vontade permanece um


efeito direto da forma da lei moral.
A determinabilidade real pressupõe apenas o exercício e o
fortalecimento das disposições formais que desde sempre existem no ser
humano em sociedade e que não podem ser reduzidas diretamente ao
domínio moral, pois também pertencem (dentro da tradição kantiana) ao
domínio teórico e a instância a priori também do gosto. A
determinabilidade real visa ao conceito pleno de ser humano, conceito no
qual os impulsos formais e materiais possuem a mesma importância e, desse
modo, situa-se no campo estético. Pelo contrário, na determinação moral,
o ânimo precisa ser direcionado, de maneira pura, pelo conceito de
liberdade moral; aqui o impulso formal não é simplesmente uma
disposição, mas precisa ser o fundamento de determinação da vontade e
excluir a referência a qualquer elemento material. A determinação moral
tem interesse apenas numa das partes do ser humano e exige a realização
do dever independente de qualquer condição do mundo sensível,
enquanto a determinabilidade real tem interesse no ser humano, por
inteiro, deixando em aberto a índole moral da sua vontade.
Aqui poderia surgir a pergunta: qual é o verdadeiro dever do ser
humano? O dever com o seu conceito pleno ou o dever com a sua parte
puramente racional? No entanto, em Schiller, é mais interessante notar
como, no desenrolar da vida do ser humano, o progresso3 da determinação
moral pressupõe o progresso da determinabilidade ativa, ou seja, do
campo estético.
O campo estético ou o efeito que a beleza tem sobre o ânimo é
justamente essa determinabilidade ativa. Esse campo tem seu domínio e
efeitos próprios e, por esse motivo, não pode ser considerado um
instrumento para a moralidade; porém, o resultado do impulso estético no
ânimo do ser humano é condição sem a qual se torna incompreensível o
início no tempo de uma determinação moral sobre o humano e, portanto, o
estético, mesmo sem se representar desse modo enquanto intenção ou
horizonte, é um estado intermediário entre a determinação natural e a
determinação moral, intermediário que não favorece positivamente o
3 A questão do progresso é muito interessante. Pois os discursos moralizantes que
buscam se impor como limitações e impedimentos nos campos da estética ou mesmos
em outros campos como o da ciência, da religião, do uso corpo, nunca estão preocupados
com o progresso moral, mas sim com o risco da corrupção. Um discurso moralizante, na
medida em que prega contra esse conceito vago da corrupção, na verdade, pressupõe a
incapacidade do ser humano em ser um sujeito moralmente livre. Em suma, o discurso
moralizante corrompe ativamente a noção de liberdade humana.
24 Ressonâncias filosóficas - Artigos

direcionamento da vontade à lei moral. Desse modo, o estético possui um


fim em si mesmo, ou seja, uma autonomia, na medida em que o efeito da
beleza é independente de qualquer mandamento ou resultado moral e
também na medida em que o efeito da beleza apenas exclui, da matéria, o
seu caráter determinante sem impor determinação nenhuma à vontade do
ser humano. Por outro lado, o estético também é um meio, ou seja, uma
condição intermediária para o aperfeiçoamento moral do ser humano no
mundo, na medida em que torna real um estado zero, um momento de
ausência de determinação que é condição negativa (isto é, não suficiente)
para a compreensão do início da determinação moral no ser humano.
É importante aqui distinguir o que é fundamento do que é
resultado. Em poucas palavras, a determinabilidade real é um estado que
tem fundamento na autonomia do belo no campo estético e,
simultaneamente, tem como resultado um momento em que o ser humano
se põe livre de toda a coerção material e se torna capaz de expressar no
mundo de maneira imediata a verdadeira natureza da sua vontade (seja tal
vontade moral ou não).
É importante, frisar por último, que quando não há respeito à
peculiaridade e à autonomia do campo estético, também se perde o estado
intermediário à determinação moral, ou seja, compromete-se uma
verdadeira efetividade da moral no mundo. Uma instrumentalização ou
limitação do campo estético, feita por preceitos morais, resulta em perdas
para os dois domínios. A peculiaridade do domínio moral é uma
determinação formal que precisa se efetivar sobre a vontade de maneira
autossuficiente, sem o recurso a móbiles sensíveis. Recorrer ao estético
para promover intencionalmente normas morais significa tanto a morte da
arte quanto o reconhecimento da falência moral do ser humano na medida
em que mistura elementos materiais naquilo que deveria ser puramente
formal. Comprometer a autonomia do estético é igualmente comprometer
a própria autonomia moral, em suma, é obstruir a capacidade do ser
humano em determinar a si mesmo.
Dessa maneira, segundo a proposta da Educação Estética de Schiller,
podemos elencar conceitos, do ponto de vista estético e do ponto de vista
moral, para argumentar como a defesa da autonomia dos dois campos é o
melhor modo de conceber o ser humano de maneira mais plena e,
simultaneamente, mais ética. Por conseguinte, o conflito entre o discurso
estético e o moral significa um desconhecimento, uma desconfiança e um
retrocesso sobre as dimensões e as forças do ser humano.
A autonomia do campo estético... 25

REFERÊNCIAS

SCHILLER, F. A educação estética do homem. Trad. de Roberto Schwarz e


Márcio Suzuki. São Paulo: Ed. Iluminuras. 2010

______. Cultura estética e liberdade. Trad. e introd. de Ricardo Barbosa in


Cultura estética e liberdade. São Paulo: Hedra. 2009.

______. Sobre a utilidade moral dos costumes estéticos. Trad. R.


Barbosa. In BARBOSA, R. Schiller & a cultura estética. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. 2004. (pp. 55-67)

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Trad. de Valério Rohden. São Paulo:


Ed Martins Fontes. 2003.

______. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. de Valério Rohden e António


Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2002.

SUZUKI, M. O belo como imperativo. In. SCHILLER, F. A educação


estética do homem. São Paulo: Ed. Iluminuras. 2010

BARBOSA, R. Schiller & a cultura estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.


2004.
II

A CONCEPÇÃO JUSFILOSÓFICA DO ABORTO SOB A ÓTICA


DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004)

Reginaldo César Pinheiro*


José Dias**

RESUMO

O presente estudo tem por finalidade analisar a concepção jusfilosófica do


aborto sob a ótica de Norberto Bobbio (1909-2004). Ainda que não se
tenham estatísticas precisas, é possível afirmar que grande parcela da
sociedade se manifesta favoravelmente ao aborto. Neste aspecto, a visão
de Bobbio ganha destaque por ser atual, lançada sob um ponto de vista
eminentemente ético e despida de valores religiosos. Surpreende o filósofo
o fato de leigos deixarem ao alvedrio dos crentes as assertivas de que não
se deve matar. Sob seu prisma, o aborto envolve direitos e deveres de
forma bastante conflituosa. Em primeiro lugar, destaca o direito do
nascituro de nascer; em segundo, o direito da mulher a não ser sacrificada
por uma criança que não quer; e em terceiro, o direito das sociedades em
geral, que buscam exercer certo controle de natalidade, com vistas a evitar
a superpovoamento das cidades. A solução encontrada é a comparação de
direitos, sendo que o direito do nascituro é o fundamental e os outros
direitos derivados. O direito das mulheres e da sociedade é utilizado para

* Unioeste; e-mail: reginaldocesarpinheiro@yahoo.com.br


**Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em
Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela
Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito
Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma,
Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da
UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura
em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.
E-mail: jfad_br@hotmail.com; Lattes: lattes.cnpq.br/9950007997056231
28 Ressonâncias filosóficas - Artigos

justificar o aborto, mas podem ser alcançados sem ele. Sem embargo, a
adoção de métodos contraceptivos ou de planejamento familiar, são
medidas que contemplam os direitos secundários, mas que só podem ser
exercidos até a concepção. Após a concepção, o direito do nascituro só é
assegurado com seu nascimento. Muitos sustentam que os altos índices de
aborto seriam justa causa para sua realização. A debilidade desse
argumento se constata por analogia, pois o alto índice de roubo de carros
não legitima tal prática. Ainda, a máxima “meu corpo, minhas regras”, a
despeito da autonomia da mulher, não aplica em relação ao aborto, pois
nesse caso há ‘outro’ no corpo da mulher.

PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Direito à Vida; Ética; Imperativo


Categórico.

INTRODUÇÃO

Sempre que se discute a vida, bem como sobre o Direito à Vida, a


primeira vertente argumentativa que se apresenta é a jurídica, como se o
tema fosse de domínio exclusivo dos juristas a discussão de tais temas. O
imaginário popular entende como responsabilidade da área jurídica tudo o
que for de direito seja assegurado, seja para assegurar. Mas, ao estabelecer
o princípio ético Não Matar! como um imperativo categórico, Norberto
Bobbio remete a discussão do campo estritamente jurídico para o campo
filosófico. Haja vista que o estabelecimento de um imperativo categórico
é o princípio geral e supremo de toda e qualquer moral e da qual a
discussão jurídica é dele derivada. Pensar no direito à vida é também, mas
não só área do direito. O direito, porém, é uma das vertentes derivadas da
filosofia a defender a vida como ordem categorial incondicional.
Chama a atenção a expressão de Norberto Bobbio, no livro A Era
dos Direitos (2004), em que afirma: “o problema fundamental em relação
aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-
los.” (p. 23). Parece que, hodiernamente, não se tem dúvidas sobre a
importância e o valor da vida para homem. Vale ressaltar aqui que o direito
à vida se infere a partir de toda e qualquer situação que possa, ainda que
minimamente, feri-la ou aniquilá-la. Por mais claro que o direito natural à
vida esteja presente no ideário popular, muito ainda se tem a pensar e
refletir sobre tal tema, pois, mesmo com tantos recursos e entendimento
à respeito do humano, o que mais lhe restringe esse direito é seu
semelhante.
A concepção jusfilosófica do aborto... 29

Muitos são os ataques humanos contra seus semelhantes que lhes


ferem o direito natural de viver. Aqui, porém, limitar-se-á àquilo que
Bobbio pensa como impedimento à vida e ao direito de viver que atende
a legalidade, isto é, fere o imperativo categórico, mas está de acordo com
a legislação e a moral vigente. Nesse sentido, constatar as exceções que
foram criadas dentro da legislação que regulamenta a conduta das pessoas,
conferindo-lhes o direito e impedir o direito, parece minimamente
preocupante. Desse modo, como defender ou discursar, para além dos
púlpitos religiosos, a defesa de um imperativo categórico onde uma
legislação menor o fere diretamente? Como pensar o direito de viver,
ignorando-o como imperativo ético “válido em sentido absoluto”,
conforme defendeu Bobbio, em uma cultura e uma moral que visa
legitimar e legalizar condutas que ferem deliberadamente tal direito?
Por essa razão, o presente estudo visa analisar a relação entre as
(in)coerências da legislação brasileira iluminadas com o pensamento de
Norberto Bobbio no que tange a vida e o seu imperativo categórico Não
Matar!; com especial atenção aos aspectos legais e garantidores dos direitos
à vida do nascituro e, de uma mesma legislação, que permite retirá-la.
Situação que, aparentemente, apresenta-se certa incoerência e sem
qualquer parâmetro conceitual.

2.1 A FUNÇÃO DA LEI NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE


DIREITO

As discussões sobre o aborto, do ponto de vista filosófico,


percorrem também e necessariamente o campo jurídico e a problemática
nele existente. Afinal, atualmente “a produção legislativa não obedece a
uma lógica formal e material razoável” (NUNES e BUSSINGUER, 2012)
e que os “parlamentares consomem seu tempo e suas energias na
apresentação e votação de projetos de interesse meramente pessoais e
voltados, muitas vezes, para sua própria manutenção no sistema”.
(NUNES e BUSSINGUER, 2012). Ainda que não sejam interesses de
ordem pessoal, os legisladores propõem e aprovam leis sem maiores
delongas ou esclarecimentos conceituais basilares. Sucumbem à pressão
de grupos segmentados da sociedade. Assim, em uma clara visão mercantil
eleitoreira da política um sistema legislador e construído.
Dessa constatação, nota-se, em princípio, um desvio da finalidade
precípua das leis idealizada por Montesquieu, segundo o qual “as leis, no
seu significado mais extenso, são relações necessárias que derivam da
30 Ressonâncias filosóficas - Artigos

natureza das coisas” (MONTESQUIEU, 1996, p. 11). De modo que


defender qualquer legislação que incida contra a vida, fere diretamente o
direito natural de viver e o direito natural da coisa humana é sua vida.
Rousseau também entende que a vontade geral, consubstanciada nas leis
“deve partir de todos para aplicar-se a todos, e de que ela perde sua
explicação natural quando tende a algum objetivo individual e
determinado” (ROUSSEAU, 1996, p. 55). (Grifou-se). Com isso, a
vontade do legislador deve corresponder aos anseios da coletividade.
Muito embora tais anseios devam se pautar na vontade geral e não na
vontade de todos. A vontade de todos é a soma das vontades individuais,
enquanto que a vontade de todos manifesta na vontade do legislador, com
assentimento da assembleia, por ser a melhor decisão a todos,
independentemente dos desejos e necessidades individuais. Percebe-se,
assim, um claro desvio de conduta do legislador democrático que se dispõe
a atender e propor leis que violem o bem maior do humano que é sua vida.
Na obra O Futuro da Democracia, Bobbio discorre sobre as
diferenças entre o “governo dos homens” e o “governo das leis”. O
primeiro, governo dos homens, governam sob a égide de suas paixões,
atendendo as vontades individuais. Já o governo das leis que assegura
igualdade e proteção aos cidadãos. Para Bobbio “o governo das leis
garante a igualdade contra as discriminações arbitrárias impostas pelo
tirano” (BOBBIO, 2000b, p. 641) e, por isso, conclui que “a democracia é
o governo das leis por excelência”. (BOBBIO, 2000a, p. 185). Portanto, é
no estado democrático que se pode falar em direitos que precisam ser
assegurados com igualdade. Garantidos por uma legislação que vise
proteger a vida de todos, sem exclusão de ninguém, por mais que fira
alguma vontade individual.
Assim, se as leis são importantes para Bobbio enquanto modo de
governar, torna-se de relevância também saber se o seu conteúdo pode
conspirar em desfavor da democracia, infringindo direitos. E considerar a
hipótese do confronto da legislação com algum imperativo categórico ou,
na espécie, com o imperativo categórico Não Matar! A dúvida é persistente,
pois em certa feita Bobbio afirmou: “Que existam leis igualitárias e leis
desigualitárias é um outro problema: é um problema que diz respeito não
à forma da lei mas ao conteúdo” (BOBBIO, 2000a, p. 172). De forma
resumida, a lei quanto à sua forma, abrange aspectos relacionados à
legitimidade e competência para legislar; sendo que quanto ao seu
conteúdo, abrange aspectos relacionados ao regramento estabelecido, que
segundo Bobbio, pode trazer algum conteúdo justo ou injusto.
A concepção jusfilosófica do aborto... 31

Aprende-se com Bobbio que possam existir leis que não


promovam ou mesmo desprezem a igualdade dos legislados. Afinal, anota-
se de Canotilho, que as “leis verdadeiras são as leis boas e justas dadas no
sentido do bem comum” (CANOTILHO, 2003, p. 713) e de Laurentis e
Dias que “o conteúdo de toda lei deve se identificar com um ideal de
justiça, racionalidade e universalidade” (2016, p. 167). A resposta parece
estar no próprio Bobbio que – amparado em Rousseau (1996, p. 44) –
afirmou que “a atribuição do Estado do direito à própria vida serve não
para destruí-la, mas para garanti-la contra o ataque dos outros” (BOBBIO,
2004, p. 150).
Ainda para problematizar, qualquer Estado, valendo-se de seus
legisladores, pode promulgar em sua constituição a pena de morte. Assim,
matar se torna legalmente aceitável e, em alguns casos, até recomendável.
Rousseau assegura que:

A pena de morte infligida aos criminosos pode ser encarada, de certo


modo, sob o mesmo ponto de vista: é para não ser a vítima de um
assassino que alguém consente em morrer, caso se torne assassino. Nesse
tratado, longe de dispor de sua própria vida, só se pensa em garanti-la, e
não é para presumir-se que, por isso, qualquer dos contratantes
premedite-se enforcar (ROUSSEAU, 1996, p. 44).

Sob outro prisma, Dias interpreta o pensamento bobbiano em


relação ao aborto e ao direito à vida como sendo direitos de primeira
geração, ao afirmar:

Segundo Bobbio, o conflito político por excelência é o conflito entre o


poder de uns e as liberdades dos outros. “Poder” e “liberdade” são dois
termos correlatos: ‘numa relação intersubjetiva quanto mais se estende o
poder de um dos sujeitos, tanto mais se restringe a liberdade do outro’.
Aos pedidos de limites do poder do Estado correspondem aos direitos de
liberdade ou a um não-fazer da parte do Estado, que é a chamada a primeira
geração dos direitos. Este não-fazer da parte do Estado pertence o direito
à vida, em sentido negativo: Não matar! Dito com outras palavras: Deixar
viver! (2011a, p. 50).

Desse modo, o Estado tem não só o poder, mas o dever de garantir


a vida e a viver; como um guardião dos direitos de primeira geração e, por
essa razão, não lhe é conferido a tarefa ou a faculdade de elaborar leis que
conspirem contra a vida.
32 Ressonâncias filosóficas - Artigos

2.2 O IMPERATIVO CATEGÓRICO

Torna-se imperioso questionar se uma lei pode ser boa, justa ou


decorrente da vontade de seu povo, se ela ignora um imperativo
categórico? Especificamente em relação ao Direito à Vida, como podem
ser escritas ignorando o imperativo categórico Não Matar!?
José Francisco de Assis Dias (2011b, p. 17), destaca que o
imperativo categórico Não Matar! surgiu de uma entrevista concedida por
Norberto Bobbio ao jornal Corriere dela Sera, em 8 de maio de 1981, onde,
foi perguntado: “Toda a sua longa atividade, professor Bobbio, os seus
livros, o seu ensinamento sob o testemunho de um espírito firmemente
laico; imagina que terá surpresa no mundo laico por estas suas declarações
[referindo-se sobre sua posição contrária ao aborto]?”. E Bobbio
respondeu: “Eu queria perguntar qual surpresa pode existir no fato que
um leigo considere como válido em sentido absoluto, como um
imperativo categórico, o “Não matar!”; e me surpreendo que os leigos
deixem aos que creem o privilégio e a honra de afirmar que não se deve
matar.”
Nesse aspecto, cabe observar que o imperativo categórico Não
Matar!, formulado por Bobbio, partiu das reflexões de Kant, o qual
asseverou que “um imperativo é uma regra prática pela qual uma ação em si
mesma contingente é tomada necessária” (KANT, 2003, p. 65). Logo, é a
partir da definição de imperativo categórico em Kant “age sempre em
conformidade com uma máxima que desejarias que pudesse ser ao mesmo
tempo uma lei universal” (2003, p. 67-68) é que Bobbio formula o seu
imperativo categórico Não Matar!. Então, a discussão que se apresenta no
campo da legislação perpassa e depende, necessariamente, do campo
filosófico. Visto que o imperativo “não é propriamente pensado como
uma norma de justiça, mas como um princípio geral e supremo da moral
no qual está contido o princípio da justiça” (KELSEN, 2009, p. 56).
Esses objetivos individuais e determinados das leis, criticados por
Rousseau, ficam mais demonstrados quando se verifica, preliminarmente,
que a produção legislativa acerca do Direto à Vida revela valores muito
distintos. Cumpre esclarecer que este estudo tomará como parâmetro
delimitador as quatro formas de explicitação do Direito à Vida estabelecidas
por Bobbio: não matar, não abortar, socorrer quem está em perigo de vida
e oferecer os meios de sustento a quem deles for carente. Afirma Bobbio:

Já que não há direito de um indivíduo sem o correspondente dever de


outro, e já que todo dever pressupõe uma norma imperativa, o debate
A concepção jusfilosófica do aborto... 33

sobre as quatro formas em que se explicita o direito à vida remente ao


debate sobre o fundamento de validade e, eventualmente, sobre os
limites do dever de não matar, de não abortar (ou de não provocar o
aborto), de socorrer quem está em perigo de vida, de oferecer os meios
mínimos de sustento a quem deles é carente (BOBBIO, 2004, p. 170-
171).

Sob o prisma de Bobbio (1981), o aborto suscita discussões


complexas, pois envolvem direitos e deveres de forma bastante
conflituosa. Em primeiro lugar, destaca o direito do nascituro (o direito de
nascer); em segundo, o direito da mulher a não ser sacrificada por uma
criança que não quer; e em terceiro, o direito das sociedades em geral, que
buscam exercer certo controle de natalidade, com vistas a evitar a
superpovoamento das cidades. A solução encontrada é a comparação de
direitos, sendo que o direito do nascituro é o fundamental e os outros (o
da mulher e o da sociedade), direitos derivados.
O direito das mulheres e da sociedade, muitas vezes é utilizado
para justificar o aborto, mas podem ser alcançados sem o recurso do
aborto. Sem embargo, a adoção de métodos contraceptivos ou de
planejamento familiar, são medidas que contemplam os direitos
secundários, mas que só podem ser exercidos até a concepção. Após a
concepção, o direito do nascituro só pode ser satisfeito permitindo o seu
nascimento. Muitos sustentam que os altos índices de aborto seriam justa
causa para sua realização. Contudo, o argumento é débil, pois o fato de
também se ter altos índices de roubo de carros, não se legitimaria o roubo
nesta modalidade.
Sob outro prisma, a máxima “meu corpo, minhas regras”, a
despeito da autonomia da mulher sobre o próprio corpo, não deve ser
aplicado em relação ao aborto, pois no caso do aborto há um ‘outro’ no
corpo da mulher. Nas palavras de Bobbio (1981): “O suicida dispõe de sua
própria vida. Com o aborto se dispõe de uma vida alheia”.
34 Ressonâncias filosóficas - Artigos

2.3 O IMPERATIVO E A LEGISLAÇÃO

A lei brasileira estabelece parâmetros muito distintos em relação


ao direito à vida e notadamente em relação ao aborto.
Exemplificativamente, a Lei nº 11.804/2008 estabeleceu, em seu art. 2º, o
direito aos alimentos gravídicos, com vistas a assegurar os meios materiais
necessários ao desenvolvimento do nascituro:

Art. 2o Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores


suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e
que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as
referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica,
exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais
prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico,
além de outras que o juiz considere pertinentes. (grifou-se)

O mesmo se verifica no Código Civil Brasileiro, em seu art. 2º,


estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento
com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”; deixando claro que se estabeleceu a concepção como marco
jurídico inicial de existência da vida e que se assegurou os direitos do
nascituro.
Porém, o Código Penal Brasileiro, estabeleceu hipóteses em que
não se pune o aborto “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”
ou “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”
(art. 128, incisos I e II). Acrescente-se, que o Supremo Tribunal Federal,
no julgamento da ADPF 54, considerou ausente de punição o aborto de
feto anencéfalo. A ADPF é a abreviatura de Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, que se constitui em um tipo de ação judicial proposta
exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, visando provocar o
Supremo Tribunal Federal a analisar alguma matéria sob a ótica da
Constituição Federal. Nesse sentido:

ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo


absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO
ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER –
LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE –
DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS
FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se
inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto
A concepção jusfilosófica do aborto... 35

anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e
II, do Código Penal. (STF. ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO
AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013
RTJ VOL-00226-01 PP-00011).

Essa diferença valorativa e até mesmo conceitual do direito natural


à vida é observada na legislação brasileira; o que provoca uma situação, no
mínimo, inquietante, pois a vida humana não deveria ser matéria que
comportasse exceções. Não olvidar-se, sobre a possibilidade de se admitir
a perda do Direito à Vida, embora não sejam consideradas exceções,
Bobbio afirmou: “As circunstâncias nas quais se pode perder o direito à
vida são sobretudo duas: quando tal direito entra em conflito com um
direito fundamental considerado como superior; e quando o titular do
direito não reconhece e viola o igual direito dos outros, ou quando se
choca com um outro direito ou com o direito do outro.” (BOBBIO, 2004,
p. 172-173). Em outras palavras, tratou-se dos institutos da legítima defesa
e do estado de necessidade que, em que pese admitidos em seu aspecto
legal, não são considerados legítimos por Bobbio, pelo fato do Estado
possuir o “monopólio da força” e, portanto, outros meios para o
estabelecimento de sanções (DIAS, 2011b, p. 71).
Afinal, conforme asseverou Dias “Bobbio afirmou que o princípio
ético Não matar! é válido em sentido absoluto, como um imperativo
categórico, porque a vida humana é o valor primordial enquanto condição
para todos os valores” (DIAS, 2008, p. 164-165). Ainda que:

Em outras palavras, o princípio ético Não matar é um imperativo


categórico por que: - ‘categórico’ é o valor da vida que esse imperativo
entende proteger; - impõe um dever perfeito em vista de proteger o valor
primordial da vida humana, comum a todos os homens; - não tem outros
argumentos para impor-se senão a sua própria força, porque o ‘dever’
vai cumprido por princípio, independentemente das suas razões, sem
alguma consideração das circunstâncias em que vem de vem em quando
aplicado; - porém, não prescreve outra conduta que aquela assumida por
livre decisão no respeito do dever moral (DIAS, 2008, p. 357).

Assim, a vida é

‘o’ direito fundamental por excelência de ‘todos’ os homens; não de


alguns privilegiados ou daqueles psíquicos e somaticamente melhor
36 Ressonâncias filosóficas - Artigos

desenvolvidos. Mas de todos os indivíduos que compartilham a mesma


natureza humana: a humanitas (DIAS, 2008, p. 358).

Dessa constatação, é possível inferir que se negligenciarmos, sob


qualquer aspecto, o Direito à Vida, todos os demais direitos estarão sob
risco, pois são deles dependentes e derivados. Não por acaso, afirmou
Moraes que “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já
que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os
demais direitos” (MORAES, 1999, p. 60-61). No mesmo sentido, afirmou
Maluf:

O primeiro dos direitos cuja garantia ressalta dos termos do art. 153 é o
direito à vida, que, aliás, pressupõe todos os outros direitos. É de
evidência axiomática – frisa Nogueira Itagiba – que, excluído o direito à
vida, não se necessitaria falar em direito à liberdade, à segurança
individual e à propriedade (MALUF, 1980, p. 392-393).

2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalmente, tem-se que Não Matar! – entendido aqui como o


direito à vida e a viver– constitui-se em um verdadeiro imperativo
categórico kantiano, devendo ser aplicado, em sentido absoluto, também
em relação ao aborto ou a qualquer outra forma de ceifar a vida humana.
Daí decorre que qualquer legislação que não assegure esse direito
imperioso da vida em toda e qualquer condição e situação não será,
minimamente, igualitária.
A função da legislação e normatizar e regularizar costumes
culturalmente consolidados e punir àqueles que não cumprem ou agem de
acordo com os mesmos. Por que? Para salvaguardar a perpetuação da
existência humana. Essa é a ideia da lei. Existe para assegurar que
tenhamos o direito de viver e que tal vida seja o mais digna possível.
Qualquer lei que fira ou viole tal segurança está em desacordo com os
princípios filosóficos e categoriais que desde os contratualistas estão
buscando fundamentar.
A concepção jusfilosófica do aborto... 37

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julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080
DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-
00011).
A concepção jusfilosófica do aborto... 39

VANNUCHI, Paulo. Bobbio, a trajetória de um questionador. Lua


Nova, São Paulo, n. 53, p. 69-97, 2001.
III

AFINAL DE CONTAS, QUEM SOMOS NÓS?


sobre a interpretação heideggeriana da oὐσία na física

Hugo Tostes Martins*

RESUMO

O presente texto visa tratar da interpretação heideggeriana do conceito de


oὐσία compreendida na investigação que tece a respeito da φύσις no
contexto da Física de Aristóteles. Segundo Heidegger o termo οὐσία na
cunhagem aristotélica ganha uma significação fundamental e decisiva. A
palavra οὐσία designa "aquilo que se encontra aí defronte". Assim, a φύσις
é ao modo daquilo que se encontra defronte; significa: presente enquanto
presentar por si. O que nos coloca diante de uma metafísica outra, que
com a transformação da φύσις por natura, com os romanos, desemboca no
moderno modo como nos relacionamos com o ente em sua totalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Oὐσία; Metafísica; Modernidade

INTRODUÇÃO

O título desse trabalho já nos coloca numa postura fundamental


para o modo como nos compreendemos a cada vez que somos. "Afinal
de contas" - o que isso quer dizer? Há realmente um "afinal de contas"?
Por "contas" entendemos aquilo que é o resultado de um procedimento
lógico pautado no cálculo. Calculamos um mais um mais um e no final das
contas dizemos que o resultado é três; se é que calculei bem. Temos até
um verbo para isso - calcular. Calculamos as coisas. Os entes. O problema
é que com o "afinal de contas", tal qual expressão linguística, escondemos
uma determinação fundamental, quando pensamos já modernamente.
Calculamos as coisas e a nós mesmos, sendo nós pensado então como
uma coisa entre outras coisas. Em alguma medida trataremos dessa

* Universidade Estadual de Maringá; e-mail: psicosynthesis@gmail.com


42 Ressonâncias filosóficas - Artigos

questão, contudo sem desviar demasiadamente do propósito do texto, que


logo será apresentada.
A seguinte pergunta ecoa: o que é uma coisa? É intricada a
discução sobre a coisidade da coisa e no que consiste a diferença entre
uma coisa e um ente. Se é que há tal diferença. Cirsunscreveremos antes o
debate para o que chamamos por "ente" ou o pensando abstratamente:
"entidade"; que é uma tradução possível da palavra grega oὐσία. Portanto,
é sobre a oὐσία grega que estaremos tratando. Todavia a pensaremos num
contexto bem específico, a saber, na Física de Aristóteles. Contudo
invetigaremos o conceito de oὐσία na Física segundo a interpretação
heideggeriana. A rica possibilidade interpretativa do termo e assim outras
acomodações possíveis de sua tradução, como "substância" ou "essência",
não serão explorados explicitamente.
Conduzir um termo cunhado em um tempo histórico e pertinente
a uma outra cultura para nossa não é uma tarefa amiúde simples e precisa
ser cautelosamente acomodada. Tal qual como o transplante de uma
planta para um novo solo, é preciso conhecer as peculiaridades
pertinentes, para que as raízes possam daí retirar o alimento
adequadamente e conforme convém. A acomodação converge
inevitávelmente para nós e nos coloca como uma questão que diz respeito
ao modo como nos compreendemos. É assim, que numa determinada
altura de nosso debate, nos encaminharemos mesmo que tangentemente,
para a questão da modernidade e do cálculo. Em vista das considerações
heideggerianas sobre a metafísica da modernidade e a relação dessa com
sua interpretação do conceito de oὐσία na Física de Aristóteles.

3.1 A INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DE OὐΣΊΑ

A interpretação heideggeriana do conceito de oὐσία a que iremos


nos referir está localizada na investigação que tece a respeito da φύσις
compreendida no contexto da Física de Aristóteles. Heidegger aponta que
a tradução romana do termo ψύσις por natura conduziu posteriormente a
uma alteração fundamental na maneira como os gregos a concebiam;
situação essa relacionada com uma outra metafísica. Entendendo aqui, no
contexto heideggeriano, por metafísica o modo como nos relacionamos
com ente em sua totalidade. Conduzir um termo de um contexto e tempo
para outro nunca é uma tarefa isenta de desafios, o que transcorre em toda
preocupação heideggeriana de dar voz ao que o conceito traz de sua
máxima significancia no lugar e como foi utilizado. Proceder esse que leva
Afinal de contas, quem somos nós? 43

a adentrarmos no domínio do outro, daquilo que não é familiar e na


condição de estranhamento perceber com maior acuidade o que nos
pertence e como nos pertence. A insistência etimológica é como um
escavar e descobrir um mundo que está sob a poeira dos tempos, mas que
dizem sobre a formação de nosso próprio modo de pensar.
Destarte a pertinencia está em compreender a φύσις tal como os
gregos, e no que nos toca, na cunhagem aristotélica empenhada na Física,
afim de embrenharmos uma correta interepretação do que está em jogo
ou ao menos assim o tentarmos.
Traçado esse horizonte, a φύσις tem uma fundamental e
fundamental porque é fundamentante, relação com o conceito de oὐσία.
O que tentaremos explicitar ao longo do texto.
Para Heidegger, o conceito de φύσις tem um significado que não é
meramente arbitrário. Ele que está relacionado com o modo como nós
nos voltamos para os entes em geral. A cada vez que esse "voltar-se" se
faz de uma determinada maneira funda uma μετὰ τὰ φυσικά. O que vai
para o ente em seu além desse voltando para o mesmo uma vez que está
sempre em um direcionar para o ente para ir além. O que trata da maneira
como inquirimos sobre a verdade do ente e o modo como respondemos,
a cada vez que somos, a esse inquirir. Mesmo que nada saibamos sobre
esse inquirir, já nos situamos num campo pertinente a esse inquirir no
comportamento que emitimos no mundo ao sermos. Uma investigação
sobre a φύσις é nesse encaminhamento um perscrutar sobre a metafísica
grega e em estranhamento, um compreender a nossa. Tal que perguntar
pelo ente em sua totalidade é perguntar pela φύσις.

A disposição estrutural da respectiva verdade "sobre" o ente no seu todo


chama-se "metafísica". Não importa se essa vem expressa em sentenças
ou não, se o que é expresso se transforma em um sistema ou não.
Metafísica é aquele saber no qual a humanidade da história do Ocidente
guarda a verdade das relações com o ente na totalidade e a verdade sobre
esse. Meta-física é "física" em um sentido plenamente essencial - isto é,
um saber a respeito da φύσις (ἐπιστήμη φυσική). (HEIDEGGER, 2008,
p. 256)

No entanto, qual é o caminho aristotélico que nos reporta a um


saber a respeito da φύσις? Heidegger destaca o termo αίνησις, cujo o
conceito é no projeto sobre a determinação sobre a essência da φύσις
fundamental. Compreenderemos αίνησις como mobilidade e que na
interpretação que estamos seguindo reporta ao cerne da delimitação da
44 Ressonâncias filosóficas - Artigos

essência do movimento - κίνησις; tal qual como traço fundamental da


φύσις. A questão do movimento passa a ser então uma pegunta
fundamental. Aristóteles distingue diversos tipos de movimento, mas isso
não corrobora que prefere um tipo em relação a outro. As diversas
concepções de κίνησις parecem conduzir para um questionamento sobre
a fundamentação da essência da φύσις como κίνησις; a despeito de seus
diferentes modos de acontecer. O "ser movido" aparece como uma
característica essencial da φύσις e, portanto, diz algo a respeito do ser da
φύσις - μετὰ τὰ φυσικά. A φύσις é e enquanto "é" o é tal qual κίνησις. O
que aí está, o está tal qual como está - repouso ao olhar, mas está mesmo
ao olhar como o que o descobre como movimento. Co-pertinencia de:
descobrir no e em repouso e movimento.
A leitura heideggeriana sobre esse ponto pode ser encontrada
quando interpreta a seguinte passagem da Física: "ἡμῖν δ᾿ ὑποκείσθω τὰ
φύσει ἤ πάντα ἤ ἔνια κινούμενα εἶναι· δῆλον δ᾿ἐκ τἧς ἐπαγωγἧς" (A. 2, 185
a 12ss). Sobre ela, escreve:

Ἐπαγωγή/ significa a condução para aquilo que se vê, quando olhamos


de antemão para além do ente. Mas em que direção? Para o ser. É só
quando já temos em vista o arbórico que podemos con-statar árvores
singulares. O ver e tornar visível o que assim já está na mirada como o
arbórico é ἐπαγωγή. A ἐπαγωγή é o "concluir" (Ausmachen) no duplo
sentido de: primeiro elevar à visão e depois fixar ao mesmo tempo o que
foi visto. (HEIDEGGER, 2008, p. 256)

A circunscrição do problema da φύσις como um problema


metafísico e assim um indagar pelo ser do ente que temos em vista como
φύσις, trata de sua essência enquanto aquilo que o essencializa. Heidegger
conceberá como a "causa originária".
A questão da causa originária não está na relação de causa e efeito,
como algo que causa outro algo. Antes, é o abrir mesmo enquanto
possibilidade para o algo - para que o ente seja o que é. A abertura como
âmbito do acontecimento da φύσις. Causa original que nos coloca numa
relação com o constante enquanto insconstante. Constante concebido não
pela predominancia de um algo no tempo. Mas o eclodir da presença,
"acção, entendida a partir da correlação entre a potência e o acto como o
pôr-se em obra da verdade" (BLANC, 2014, p.1). Tentaremos tornar isso
mais claro ao longo do texto.
Segundo Heidegger os gregos não pensavam o contante a partir
da contraposição. Para ele o pensamento moderno pautado na
Afinal de contas, quem somos nós? 45

subjetividade é que possibilita esse modo de compreender. Ou seja,


quando temos um sujeito que observa um objeto que fora dele se mantém
constante no tempo. Destarte uma subjetividade em vista de uma
objetividade. Diversamente, o constante grego da φύσις, no entender
heideggeriano, é aquilo que perdura por si mesmo em si mesmo no eclodir
da abertura da causa originária.

Pensaríamos de maneira completamente estranha aos gregos, se


quiséssemos compreender o constante como objeto que se nos contrapõe.
Contra-posto é a "tradução" de objeto. O ente só pode ser experimentado
como objeto onde o homem se tornou o sujeito, que na objetivação
daquilo com que encontra experimenta a relação fundamental para com
o ente como a dominação e amestramento do mesmo. Para os gregos, o
homem jamais é sujeito; e, por isso, o ente não-humano também jamais
terá o caráter de objeto (contra-posto). Φύσις é aquilo a que se deve um
modo específico de estar-em-si-mesmo do constante. (HEIDEGGER,
2008, p. 258)

Destacado a distinção entre o constante grego e moderno a


investigação heideggeriana irá apontar a importância da ἀρχή para tal.
Afirma Heidegger que "a φύσις é ἀρχή" (2008, p. 259). Mas o que é a ἀρχή?
Segundo o encaminhamento que tomamos a ἀρχή é o ponto de partida e
o dispor da mobilidade. Uma vez que não é pelo modo da contraposição
moderna que estamos pensando o contante da φύσις é pela ἀρχή que
encontraremos a chave interpretativa para compreendermos aquilo que
perdura a cada vez na φύσις tal como οὐσία - entidade. O ente desvelado
enquanto presença tem em-si um dispor para e como mobilidade que o
mantém enquanto o é sendo. É nesse caráter da οὐσία que encontramos o
constante e não na contraposição.
Buscando a essência da φύσις vimos que a mobilidade lhe pertence
e ao modo que a mesma aparece num determinado ente enquanto
constante e como movimento. Também delineamos que essas
características diferem no entender de Heidegger do modo moderno de
compreendermos o que se mantém no movimento, conclusão essa
chegada pela sua interpretação do conceito de ἀρχή como partida e dispor
da mobilidade que a engloba a cada vez e a mantém. Agora cabe sublinhar
que toda mobilidade é uma transformação. Uma μεταβολή. Um algo que
leva a outro algo. Contudo, a μεταβολή como transformação deve ser
pensada nesse contexto como "e-rupção". O que brota, surge, com a
abertura do ser – o desvelar. Trata-se do modo específico de como os entes
46 Ressonâncias filosóficas - Artigos

vem a presença a cada vez. Escreve Blanc:

O movimento, na sua tripla expressão (deslocação de lugar, crescimento


e diminuição e alteração), apresenta a estrutura formal de uma
"passagem de isto a isto" (metabolé ek tinos eis ti), através da qual algo,
até aí velado e ausente, aparece, vem à presença. Assemelha-se assim à
"fabricação", que é, também ela, um movimento de "trazer-para-diante"
(hervor-bringen), uma produção, porém não tem, como esta, fora de si
o seu princípio motor, mas nele. A natureza é, por isso, um "princípio
originante" (arché) que se põe a si mesmo em presença, um eclodir que
se desdobra num regressar a si, uma génese que se retira em si e se
ausenta. (2014, p. 119)

Como partida e dispor para o movimento-transformação, "Φύσις


é ἀρχή κινήσεως" (HEIDEGGER, 2008, p. 260).
Conforme vimos, a metafísica moderna desvela os entes como
objetos. Esse caráter desmboca na disponibilidade dos objetos ao sujeito,
pensados como contraposição. O aí e a mão para a utilização - um
utilizável, portanto. Todavia, segundo a leitura heideggeriana, Aristóteles
não descarta a utilizibilidade dos objetos, mas reserva para essa específica
relação o termo τέχνη.
Os utensílios por não possuírem uma ἀρχή neles mesmos são, ao
modo como são, diferentes da φύσις ao modo da οὐσία, que possui a ἀρχή
nele mesma. Assim, a τέχνη desvela a φύσις diferentemente. Uma cama,
por exemplo, objeto da τέχνη, ganha seu aspecto (εἶδος) diversamente de
uma árvore. Nesse sentido, Heidegger pode afirmar que a árvore tem
"mais" φύσις do que a cama - a árvore é por si mesma e a cama não. A
ψύσις de cada qual são diferentes. Uma ao modo de ser contruída, um
objeto da τέχνη, e a outra como um ente (οὐσία) que é por si mesma.
Entretanto alerta Heidegger que não devemos tomar a φύσις como
algo que se faz a si mesmo. Tal qual um artefato que faz a si mesmo.
Lembremos que a φύσις não é um artefato, ela pode ser ao modo do
artefato. A φύσις é por si mesma, mas não se faz a si mesma. Poderíamos
facilmente cair, por familiaridade, no conceito de "orgânico" ou
"organismo", como um artefato que faz a si mesmo, que se auto-produz.
O que não é o caso. A discrepância, entre um ente ao modo da τέχνη e um
ao modo da οὐσία (que é por si mesma), reside no fato que a τέχνη só pode
vir ao encontro φύσις, mas não ser ela mesma. A φύσις não faz a si mesma,
mas é por si mesma a cada vez que é.
A pedra de toque está na compreensão do conceito de οὐσία. O
Afinal de contas, quem somos nós? 47

que proporciona clareza sobre a distinção entre artefatos da τέχνη e φύσις


ao modo da οὐσία. Como o leitor já deve ter percebido, ora usamos o
termo ente, ora οὐσία. Por ente podemos entender um determinado. Se
temos um lápis em nossas mãos, podemos dizer que temos um
determinado ente em nossas mãos. Contudo, o termo "ente" pode ser
usado para todo e qualquer ente. Falamos "ente" e não o especificamos
explicitamente. Todavía, delineando cautelosamente o que Heidegger quer
referir por οὐσία, devemos ter em vista a entidade do ente; o que trata do
abstrato de "ente". A entidade é aquilo que caracteriza o ente enquanto tal.
Para nossos fins, evitaremos utilizar a tradução e manteremos o
termo como cunhado em grego - οὐσία. Mas cabe ressaltar, que para
Heidegger, "entidade" é a tradução mais adequada para οὐσία.

A frase decisiva diz: καὶ ἔστι πάντα οὐσία - e tudo isto - a saber, o ente
que provém da φύσις - possui o ser do modo da entidade. A expressão
"entidade" (Seiendheit), bem bruta para a escuta habitual, é a única
tradução adequada para οὐσία. Todavía, também essa expressão não diz
muito, sim, ela quase não diz nada. E é precisamente neste ponto que
reside a sua vantagem: evitamos as outras "traduções" correntes, isto é,
interpretações de οὐσία como "substância" e "essencialidade". Φύσις é
οὐσία, isto é, entidade - aquilo que caracteriza o ente como um tal,
precisamente o ser. (2008, p. 272)

O termo οὐσία não é expressamente, a princípio, um termo


filosófico. É na cunhagem aristotélica que ganha uma significação
fundamental e decisava. A palavra οὐσία designa "aquilo que se encontra
aí defronte". A φύσις é ao modo daquilo que se encontra defronte; o que
conforme estamos acompanhando significa: presente enquanto presentar
por si. Constante e movimento. A si mesmo enquanto transformação no
presentar.
Cabe, contudo, explicitar em que medida a φύσις é οὐσία. Ou seja,
como "ela possui o caráter da entidade (do ser)" (HEIDEGGER, 2008, p.
273). Para isso, Heidegger chama atenção, para o uso do "particípio
ὑποκείμενον de modo correspondente com o τὸ ὂν" (2008, p.273). Τὸ ὂν
signifigca tanto um determinado ente, como "isto que é". Igualmente, no
olhar heideggeriano, ὑποκείμενον pode significar tanto "o que se encontra
defronte", como "o próprio encontrar-se defronte" (2008, p.273).
Na Física encontramos a seguinte passagem: "ὑποκείμενον γάρ τι
καὶ ἐν ὑποκειμένῳ ἐστιν ἡ φύσις ἀεί" (192b 36-37). Heidegger entenderá
48 Ressonâncias filosóficas - Artigos

essa passagem da seguinte maneira: "pois a φύσις é sempre algo assim


como um encontrar-se defronte e "em" algo que se encontra defronte" e
logo acrescenta: "Gostar-se-ia logo de apontar que aqui traduzimos de
modo "falso"; a frase de Aristóteles não diz: ὑποκεῖσθαι γάρ τι, ela não fala
sobre um encontrar-se defronte, mas sobre algo que se encontra defronte"
(HEIDEGGER, 2008, p. 273). A ligeira diferença desagua na
compreensão já muitas vezes mencionada de οὐσία como "presença".
Segundo Blanc, "a originalidade da leitura heideggeriana de
Aristóteles reside no seu carácter fenomenológico" (2014, p. 215). A
compressão de οὐσία como presença desdobra-se numa série de
questionamentos. Podemos mesmo indagar a pertinência etimológica da
leitura heideggeriana dos termos gregos, mas de sobremaneira o lugar de
suas contribuições para pensar o que é o fenômeno. Levando em
consideração a importância que atribui a οὐσία como a maneira do ser
essencializar a si mesmo tal qual como φύσις.
Fenômeno, na linguagem heideggeriana, é o que eclode no existir
e que presenteia a si mesmo. Se esse é o caso, temos aqui uma
compreensão do ente em sua totalidade - uma metafísica, que pauta outro
desvelamento - acontecer. Esse, por sua vez, ocorre históricamente. Isso
significa que o acontecemento pertence a um tempo historial, e o modo
como ocorre marca o comportamento do homem como época. A
antiguidade, o medievo, a modernidade. Uma época é o modo como o
acontecimento acontece em uma e numa determinada compreensão do
ente em sua totalidade, a cada vez que o homem é.
A interpretação heideggeriana nos conduz a pensarmos a nossa
própria relação com o ente em sua totalidade, na medida em que causa um
estranhamento quando pensamos sobre a maneira grega de ser.

Quando os gregos concebem o ser ora como o postar-se-em-si


ὑποστασις - substantia, ora como encontrar-se defronte ὑποκείμενον -
subjectum, então ambas as coisas se equivalem, pois neste âmbito ele tem
em vista uma única e mesma coisa: aquilo que se presenta a partir de si,
o presentar-se. A frase decisiva de Aristóteles em relação à interpretação
da φύσις diz: a φύσις deve ser concebida como οὐσία, como um modo e
uma maneira do ganhar a presença. (HEIDEGGER, 2008, p. 273-274)

O questionamento sobre o conceito de οὐσία é de sobremaneira


uma crítica à modernidade. Época caracteriza por Heidegger como a do
"esquecimento do ser". Não se trata de não perguntarmos mais pelo ser
ele mesmo, mas sobretudo, de que esquecemos da própria pergunta
Afinal de contas, quem somos nós? 49

enquando possibilidade. De outra maneira, não vivemos somente num


tempo em que o homem está cego para o ser; antes, a cegueira é a cegueira
da própria cegueira. Esse delineamento, quando na sua máxima
compleição, é o extremo da presentificação da essência da metafísica do
mundo moderno.
A objetivação do ente frente ao proceder técnico deita suas raízes
por todo o globo encobrindo a possibilidade de vir a tona ao olhar a
presença da presença. Como o que surge no aberto - desvelamento - está
relacionado, fatícamente, com a maneira como compreendemos verdade.
Os gregos pensavam verdade como ἀλήθεια, pensada como
"desvelamento". Mas desvela o que? A οὐσία. A οὐσία é numa relação
essencial com a própria essência da verdade; a verdade é o desvelar da
οὐσία. Destarte, não é o caso de pensarmos a verdade como uma
concordância de um ente para com outro, que na língua latina ganha o
tonus de veritas, aquilo que está de acordo, concordo. A veritas trata de uma
outra compreensão de mundo, que difere da ἀλήθεια grega. A adequação
entre um enunciado e outro, em um encadeamento causal, não dá conta
de "encontrar" a causalidade originária de que tratamos. O problema está
com a possibilidade mesma da própria veritas; que desvela o ente, a cada
vez, em um poder assegurar a adequação e a conformidade.
Segundo Heidegger a Física de Aristóteles tem um peso que ainda
não soubemos dar na história da filosofia. O que de um lado está vinculado
pela insuficiente interpretação da escolástica e por outro pela necessidade
de uma abordagem fenomenológica hermenêutica do texto, o que permite
Heidegger desdobrar os encaminhamentos que temos acompanhado ao
longo desse.
Como vimos para a compreenção de φύσις está em jogo a de οὐσία.
Tal qual "presentação constante" está aí ao modo do dispor como
mobilidade e transformação. A transformação, no entanto, carrega em si
um τέλος, que no entender heideggeriano, diz respeito a uma determinação
essencial da própria οὐσία, tratando de uma direção que pertence ao ser si
mesmo da οὐσία. Uma macieira produz maçãs, a criança torna-se homem.
Não damos ser, o ser se dá a si mesmo. Acontecimento no seio do
desvelamento, ocorre em direção-a, escapando a subjetividade desejante.
Em outras palavras: ao exercício da vontade. A própria vontade já está no
horizonte do ser.
Enquanto acontecimento-presentar-se é ao modo da produção
que o τέλος ocorre. Contudo cabe ressaltar: diferentemente da τέχνη.
Devemos então perguntar pela essência da produção afim de entendê-la.
50 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A produção por sua vez ocorre em uma "matéria", "substrato". Mas o que
queremos dizer com "matéria"?
A palavra grega para matéria é ὑλή. Para Heidegger a palavra quer
dizer "floresta", "bosque", a "mata", aquilo no qual está aí, disponível para
o produzir. Produzir é dar uma forma-a. Uma árvore num bosque está
disponível-a. A madeira dela proveniente é um utilizável, como algo que
está a mão e ao dispor da τέχνη como empreendimento humano. Ao modo
da τέχνη a transformação-produção não será por si mesma. Entretanto
buscamos a transformação-produção num outro âmbito - a que é por si
mesma. Heidegger destaca que para Aristóteles a ὑλή é τὸ δυνάμει e
acrescenta que "Δύναμις significa a capacidade, ou melhor, a aptidão para"
(2008, p. 293). O que fornece uma outra chave interpretativa da produção.

[...] produzir, pensado de forma grega [...] significa: trazer de lá para a


presença, como algo pronto, como algo que possui tal ou tal aspecto. A
ὑλή é o disponível apto, é aquilo que, como carne e ossos, pertence a um
ente que possui nele mesmo o dispor desde o início de sua mobilidade.
Todavia, um ente só é o que sempre é e como é ao compor-se no aspecto.
(HEIDEGGER, 2008, p. 293)

A "composição no aspecto" é pensada como μορφή, que no


contexto aristotélico está vinculado fundamentalmente com o λόγος. Que
tem na "determinação grega essencial do homem como ζῶον λóγον ἔχον"
(HEIDEGGER, 2008, p. 290)

[...] do modo como pensa a μορφή, Aristóteles felizmente diz na própria


frase que introduz esse conceito decisivo para sua interpretação da φύσις:
ἡ μορφὴ καὶ τὸ εἶδος τὸ κατὰ τὸν λὸγον: "a μορφὴ, e isto quer dizer τὸ
εἶδος, aquilo que é de acordo com o λόγος". (HEIDEGGER, 2008, p.
287)

Uma vez pensado como determinação fundamental da essência do


homem, λόγος é o lugar da abertura do acontecimento. A οὐσία surge no
e pelo λόγος e esse destinado ao homem reporta ao que ele mesmo é -
lugar da clareira do ser.
Detarte o λόγος no homem trata de seu modo de ser enquanto
lugar do acontecimento. Esse é o desvelar da verdade que resguarda ao
desvelar o próprio desvelamento. O velar é co-pertinente ao desvelamento.
Mas notemos que a φύσις enquanto acontecimento ocorre tal qual
transformação como um constante vir-a-ser. Aquilo que não é pertence a
Afinal de contas, quem somos nós? 51

essência do que é e o que é carrega consigo a essência do que não é. O


presentar da entidade é κίνησις - μεταβολή.

3.2 O LUGAR DO PENSAMENTO

A preocupação heideggeriana converge em compreender o


pensamento grego a partir do modo como pertecia a compreensão do ente
em sua totalidade no seio de seu acontecimento histórico. O que diverge
e situa a modernidade. Procedimento que exige uma exegese rigosora dos
termos gregos. Investigação pelos significados e sentidos das palavras
gregas que considera o peso e lugar a elas pertinentes. O desafio de pensar
o outro descortina um mundo completamente diverso. Que no
pensamento heideggeriano, quanto ao que estamos tratando, torna-se
numa crítica à modernidade. Essa carrega um grande desafio. A metafísica
da modernidade, segundo aponta, desdobra-se na "desertificação" do
globo, sob a insígne do fechamento completo da pergunta pelo ser.
É importante notar que o esforço de pensarmos os gregos ao seu
modo leva o olhar para fora da familiaridade, o que, por sua vez, conduz
a entendermos melhor nosso próprio aconteciemento histórico e a
postura que devemos assumir. Heidegger, citando passagens de
Aristóteles, no qual compara a cegueira da φύσις com a cegueira física,
aponta que assim como um cego físico de nascença não sabe o que é uma
cor pois nunca a viu, igualmente estamos na situação moderna parindo
cegos para o ser - φύσις. Trata-se sobretudo da ausência de uma disposição
para a filosofia. Platão, já nos alertava na República, que quanto mais
médicos e advogados temos em uma sociedade mais corrompida está - o
que vemos hoje?
Em O que é isto - a Filosofia? Heidegger discorre sobre a relação
entre a disposição fundamental do espanto com o início da Filosofia;
atualmente quão espantados estamos? Num tempo de ausência de
espanto, maravilhamento, que disposição está no e para o comportamento
humano? Nossa cotidianidade é pautada pela técnica de sobremaneira que
o pensamento técnico se apoderou como nosso próprio pensar. Quando
ponderamos sobre os dois modos de conceber a produção da οὐσία, de
que tratamos, vemos que o proceder técnico subjulga em nosso tempo a
irrupção ela mesma. Somos utilizados pelos utensílios. Nos tornamos uma
peça em uma engrenagem. E a pergunta é: qual é o τέλος do ser da história?
Do acontecimento histórico? O que seguramente pensamos estar em
nossas mãos? O desafio de assumir nossa história talvez deite suas raízes
52 Ressonâncias filosóficas - Artigos

em uma outra decisão sobre a vontade. Heidegger a irá chamar de


Gelassenheit - serenidade.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Physics. Trad. Wicksteed, P. H., Cornford, F. M.


Harvard University Press, 2005.
BARNES, J. The Cambridge Companion to ARISTOTLE. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.
BLANC, M. "A interpretação heideggeriana de Aristóteles". Revista
Filosófica de Coimbra, n.° 47, 2014.
HEIDEGGER, M. Marcas do Caminho. Trad. Enio Paulo Giachini e
Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
_______. Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles: introdução à pesquisa
fenomenológica. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
IV

A IMPOSSIBILIDADE DA LIBERDADE PLENA


DECORRENTE DA VONTADE

Méry Betânia Icislowski*

RESUMO

Apesar da forte ligação ética neste artigo é perceptível que o filósofo Artur
Schopenhauer na obra O livre arbítrio pende para a metafísica em uma
investigação de caráter epistemológico, o objetivo é trazer a debate e
análise um dos temas mais antigos na história da filosofia: “O que se
entende por liberdade?” O autor apresenta três definições distintas:
Primeiro a liberdade física, que consiste na ausência de qualquer obstáculo
material. Se diz que os homens e animais são livres quando não há
impedimento físico para suas ações, podendo assim obedecer a sua
vontade. Segunda a liberdade intelectual, que está mais próxima da
liberdade física, segundo Aristóteles essas podem ser voluntárias,
involuntárias ou ainda mistas, entende-se por involuntárias as ações
cometidas por força ou por ignorância, o ato em que o princípio é exterior
ao indivíduo, diferentemente uma ação voluntaria é quando o princípio
motivador da ação se encontre no indivíduo, que ele conheça as
consequências da ação. Entretanto atos mistos, caracterizam-se pela
consciência plena de que a ação praticada é ruim, porém, devido as
circunstâncias, é necessário tal pratica para evitar algo pior. E por fim a
liberdade moral que equivale ao livre arbítrio. O conceito de livre arbítrio
nos passa a ideia de possibilidade de querer, entretanto o autor também
coloca em evidência este ponto, questionando “e podes também querer o
que queres?” Chegando ao conceito de que a liberdade é ausência de toda
a necessidade; uma noção de caráter negativo, partindo desta definição,
cabe agora entender o que o filósofo define como necessário; o resultado
de uma razão dada, de modo que Schopenhauer chega a uma definição de
liberdade sendo o que não é necessário com relação a toda razão suficiente.
Em outros termos, isto indicaria uma vontade individual e independente.

* Toledo 2017
54 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Conforme a teoria schopenhaueriana o problema do livre-arbítrio está no


fato de que todas as ações humanas a fim de expor liberdade, sempre são
persuadidas por uma razão e sendo desta maneira, sempre são decorrentes
de motivos externos. Além destes as escolhas estão sempre determinadas
pela vontade, que Schopenhauer define como sendo livre em sim mesma,
a essência metafísica que compõe a natureza do ser. Isto significa que há
uma causa que interfere em cada ação tomada pelo homem. Descartando
desta discussão os crédulos religiosos a fim de buscar (além do discorrer
dos conceitos citados) a problemática em relação ao livre arbítrio e se é
possível haver uma liberdade plena.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; vontade; livre-arbítrio; necessidade;


caráter; Schopenhauer

4.1 A IMPOSSIBILIDADE DA LIBERDADE PLENA


DECORRENTE DA VONTADE

O escopo a ser demostrado neste artigo é analisar sobretudo uma


das problemáticas mais antiga da história da filosofia, não devemos nos
esquecer de que, na antiguidade e ainda hoje, a liberdade é tida como um
fim de grande valor, capaz de mobilizar indivíduos como também a
sociedade. Na Grécia Antiga, como em vários outros povos havia
constantes guerras que almejavam a liberdade, a ideia de se submeterem-
se a outro povo e aceitar ordem não agradava aos gregos, desta maneira
entravam em conflito com estrangeiros, lutaram conta a Pérsia,
Macedônia, Esparta, Roma e outros menos influentes na mitologia o
desejo de liberdade já estava presente, Prometeu em benefício aos homens
que sofriam as mais diversas mazelas roupa o fogo do olimpo, e entrega a
humanidade, seus ato provoca a fúria de Zeus que como castiço e lição
aos demais tira sua liberdade ao decretar que Hefesto o acorrentasse no
topo do monte Cáucaso, por 30 mil anos, ondem diariamente teria o
fígado devorado por uma águia, porém como prometeu era imortal seu
órgão se regenerava constantemente sento assim um ciclo de tortura. 1
Sabendo que a mitologia girava em torno da vida grega
percebemos que a ideia de Liberdade antecede a própria filosofia tal como
conhecemos hoje, ainda na antiguidade a partir da descoberta da Filosofia
o tema é abordados por filósofos reconhecidos como Aristóteles em sua
obra dedicada a seu filho Ética a Nicômaco.
1 ÉSQUILO, 2005
A impossibilidade da liberdade plena... 55

O valor da liberdade está explícito ao observarmos que a privação


desta é considerada crime sendo injustificada legalmente e castigo para
criminosos que configuram perigo aos demais cidadãos. Normalmente
falamos sobre o tema mesmo que indiretamente, está na nossa cultura não
só como conceito intelectual a ser longamente meditado, mas também
como entretenimento em filme, musicas, livros etc...
Decorrente a esta busca, e a importância do tema é natural que
venhamos a nos questionar sobre este conceito, bem como o filosofo
moderno Artur Schopenhauer, trilhando algumas de suas obras nos
deparamos com o impasse, seria possibilidade de uma liberdade plena?
Para entendermos tal indagação primeiramente é necessário nos
voltarmos as definições encontradas na obra O livre arbítrio do filosofo
alemão, por intermédio desta obtemos três categorias distintas de
liberdade.
A primeira é a liberdade física, essa está mais perto do senso
comum que as demais, pois ela se configura através de um caráter
negativo, sendo isto a ausência de qualquer obstáculo de natureza material,
deste modo podemos dizer que um cão que não está preso por sua coleira
é livre, da mesma maneira que um homem que estava amarrado ao ser
solto está livre, desta forma podemos também dizer que um homem com
boa saúde tem uma existência livre de preocupações2, estes obstáculos
podem variar dos mais distintos tipos e formas, entretendo sempre irão
agir sobre o sujeito que pratica a ação os privando de exercer sua prática,
Schopenhauer ainda aporta a liberdade sobre um ponto de vista positivo,
visto que a palavra livre toma o lugar de indicadora da qualidade que
abrange qualquer ser com capacidade de se movimentar por ato exclusivo
da sua própria vontade, não procedendo senão de acordo com seu querer,
o filosofo ressalta que tal consideração não muda a noção aqui aportada.
Por este sentido físico de liberdade é que podemos afirmar a
liberdade tanto de homens como de animais ao que não haja
impedimentos físicos ou matérias, assim tendo a possibilidade de agir
segundo sua própria vontade, sobre este ponto de vista não há como
negar a liberdade, nem cultivar dúvidas sobre ela, pois através da nossa
experiência ela confirma sua existência empírica. Assim, visualizando a
característica dos animais de agirem pela e unicamente sua vontade
própria, podemos deduzir certamente que estes são livres, e ainda se
descartarmos adversidades que podem vir a interferir nesta vontade,
consequentemente a idéia de liberdade se resumiria a potência de agir. É
2 SCHOPENHAUER, 2006
56 Ressonâncias filosóficas - Artigos

este sentido básico que muito se assemelha ao senso comum que abrange
o que chamamos de liberdade política, quando uma determinada
sociedade está sobre um regime que se sobrepõe ao cidadão este seguira
regras forjadas pelo governo obedecerá a normas que vão conta sua
vontade, afirma Schopenhauer “A liberdade política deve esta, por
conseguinte imanada à liberdade física”3.
Visto que já esmiuçamos o conceito de liberdade física, devemos
nos empenar, não mais em uma visão do significado popular, mas em uma
busca de real cunho filosófico.
O próximo conceito é a liberdade intelectual, Schopenhauer neste
momento faz uso da definição de Aristóteles usando suas palavras os
voluntários e os involuntários. Esta liberdade está próxima à liberdade
física, é citada mais como um complemento a lista, segundo o filósofo da
Grécia antiga essas podem ser voluntárias, involuntárias ou ainda mistas.
Entende-se por involuntárias as ações cometidas por força ou por
ignorância, o ato em que o princípio é exterior ao indivíduo,
diferentemente uma ação voluntária é quando o princípio motivador da
ação se encontre no indivíduo, que ele conheça as consequências da ação.
Entretanto atos mistos, caracterizam-se pela consciência plena de que a
ação praticada é ruim, porém, devido as circunstâncias, é necessária tal
prática para evitar algo pior.
Por fim chegamos a problemática pela qual estamos nos guiando,
a liberdade moral, ou livre arbítrio, facilmente perceptível ao analisarmos
uma situação em que o individuo tem a liberdade física assegurada bem
como a vontade de agir, porém por adversidades não materias ele prefere
não cometer a ação que sua vontade certamente está enclinada, esta recusa
da própria vontade pode ser decorrente das mais variadas causas, medos,
promessas, benefício a longo prazo e outros, assim como na liberdade
física a moral depende da ausência destes agentes limitadores, a escolha
por seguir sua vontade parte da simples analise de qual dentre os motivou
no caso que implicam a ação é mais relevante, na liberdade física ainda que
de forma mais sutil por depende efusivamente da força e estratégias
imanentes portanto a escolha sempre presará pelo motivo oposto mais
forte, se o sujeito em questão tiver capacidade e potencial para tal escolha
determinada por si, analisamos que pasta um motivo ser comparado a um
que vá contra e o sujeito terá que escolher o que lhe parece mais valioso “
como prova disso [...] o mais poderoso entre todos os motivos, na ordem

3 SCHOPENHAUER, 1944, p 31.


A impossibilidade da liberdade plena... 57

natural; o instintivo amor à vida, parece em outros casos inferior a tantos


outros, como se observa no suicídio, [...]” 4.
O filósofo moderno neste momento nos apresenta uma nova
questão, seria a vontade livre? A definição de liberdade que já possuímos
se refere a potência de agir, porém agora sob um novo ângulo podemos
deduzi-la como potência de querer, pois sabemos que mesmo sem
atributos materiais que nos impeçam ainda devemos levar em
consideração a liberdade moral e seus aspectos. Logo, por efeito somos
levados a questionar o próprio querer como sendo livre ou não, pois
voltando a liberdade física que se comprova empiricamente, temos a plena
noção de que liberdade é “fazer tudo aquilo que eu quero” seria isto o
mesmo que perguntar “posso querer o que eu quero?” se concordarmos
que podemos, estaremos afirmando que cada vontade é precedida por uma
vontade anterior, isso de forma indefinidamente ou não seria possível e
nos restringiríamos a simplesmente parar na primeira vontade, como
fundadora de si mesma e livre, sem a necessidade te cairmos na em algum
tipo de argumento do terceiro homem5.
Para compreendermos o conceito de liberdade, além do que
podemos comprovar empiricamente, é preciso analisar o conceito de
necessidade, pois vimos que a liberdade física se relaciona com a potência
de agir diferentemente da liberdade moral que se relaciona com a potência
de querer consequentemente Schopenhauer nos apresenta um ato livre
como a ausência de toda necessidade, permanecendo assim o sentido
negativo do conceito .
No sendo comum da definição é simples “diz-se necessário aquilo
cujo contrário é impossível, ou aquilo que não pode ser de modo diverso”
6
porém este sentido é puramente linguístico é não devemos nos prender
a ele, a definição exposta pelo filosofo é “ necessária é aquilo que segue a
razão suficiente”7, conceito este que Schopenhauer já havia feito suas
considerações em sua tese de doutorado, Da raiz quádrupla do princípio de
razão suficiente, neste tratado ele defende o princípio de razão suficiente é
formado por quatro raízes:, a raiz do devir, do conhecer, do ser e a do agir,
cada qual se refere aos fenômenos do mundo, está razão é a causa por trás
da matemática, lógica e etc. Sendo assim, efeito e consequência, na lógica
é a conclusão que se atinge com base nas premissas por exemplo, desta

4 SCHOPENAUER,1944, p33
5 PLATÃO, 2003
6 SCHOPENHAUER, 1944, p35
7 SCHOPENHAUER, 1944, p35
58 Ressonâncias filosóficas - Artigos

forma tudo ato é meramente uma consequência de uma causa anterior, a


consequência é necessária, portanto a liberdade estaria em uma ação sem
impedimentos, um ato que não é determinado necessário com relação a
toda razão suficiente, em outros termos, isso indicaria uma vontade
individual e independente, entretanto o problema do livre arbítrio está no
fato de toda a ação humana a fim de expor liberdade, é sempre persuadida
por uma razão, é sempre decorrente de motivos, sendo desta , maneira a
ação se torna um efeito do princípio motivador ou causador, além destes
fatores que influenciam as decisões, Schopenhauer entende as escolhas
estando ligadas e tendo como princípio a vontade que ele define como
sendo livre em si, é perceptível através de atos do sujeito em relação com
a causalidade, a vontade é a substância por traz de todas as ações cometidas
por todos os corpos, por exemplo quando sentimos sede, tanto a sede
como o ato de beber água é a vontade em ação, isso novamente indica a
necessidade de uma causa anterior que interfere em cada ação praticada
pelo sujeito, pois o homem sendo e estando no tempo e espaço sofre com
a causalidade, mesmo que está causas não sejam perceptíveis através dos
cinco sentidos, mesmo que o princípio causador só ocorra em pensamento
tem a mesma potência e força que as causas mecânicas, como uma
promessa ou o medo. A partir deste quadro vemos que a vontade é
responsável por designar as volições humanas, sendo esta afetada
diretamente pelo caráter, este segundo o filosofo, corresponderia ao que
pode-se entender como nossa essência, aquilo que verdadeiramente
somos, sendo assim individual, inato, particular e ainda imutável, portando
não sofre alterações ao decorrer da vida, além de ser o que diferencia cada
pessoa, se a duas pessoas forem fornecidos motivos idênticos, é fato que
iram agir de acordo com seu caráter cada qual agira de uma forma.
Entretanto, o sujeito se relaciona primeiramente com a
necessidade, sendo assim, a vontade sendo livre não se apresenta como
tal na escolhas, decorrente de já estar inserida a uma situação de
necessidade, em outros termos, o sujeito não é livre, mas seus atos em
relação à vontade sim, vontade que ainda estaria sujeita a causalidade pois
o equívoco ocorreria ao que não tendo conhecimento do agente causador
o sujeito seria levado a uma ilusão de liberdade, deduzindo que tal escolha
seria fundada em si.
A impossibilidade da liberdade plena... 59

REFERÊNCIAS

SCHOPENHAUER, Arthur. O livre arbítrio. Trad. Lohengrin de Oliveira.


Prefácio de Afonso Bertagnoli. Biblioteca de Autores Célebres, 1. Ed.
São Paulo: Ed. e Publ. Brasil, 1944.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.


Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Prefácio e


notas Jair Barboza; revisão da tradução Karina Jannini. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

NOGUEIRA JR, Renato. A ética da compaixão na filosofia de Schopenhauer.


Disponivel em
<http://www.ufrrj.br/graduacao/prodocencia/publicacoes/eticaalterida
de/artigos/Renato_Nogueira.pdf> Acesso em: 11 out. 2017.

ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Trad. J. B. de Mello e Souza. 2005

PLATÃO. Parmênides. Trad. Apresentação e notas de Mura Iglésias e


Fernando Rodrigues. ed. PUC-Rio; São Paulo; Loyola, 2003.
V

A LIQUIDEZ E A ESQUIZOFRENIA NAS RELAÇÕES


SOCIAIS UMA PERSPECTIVA EM MARCUSE

Letícia Nunes Goulart*

RESUMO:

Este trabalho tem como fito tematizar a ideia de relações sociais em nossa
sociedade. Procurando compreender como indivíduo chegou a um ponto
crítico de consumir produtos sem se questionar acerca disso trocando suas
relações de amor e afeto por mercadorias. Percebe - se um momento em
que nunca se consumiu tanto e que muitas vezes se perceberam tanto
descontentamentos. Constata-se um mundo de pessoas consumistas,
vivendo em uma sociedade de farturas e, ao mesmo tempo, empobrecida
de afeto. Nesse contexto, pessoas trabalham horas a fio sem se dar conta
disto, por estarem consumindo cada vez mais. Nota-se assim, que o mal-
estar hoje, já não se limita a problemas como a fome, miséria, desemprego,
crenças, depressão, instabilidade financeira entre outros, mas a uma
submissão à lógica de consumo que tende a fortalecer frustrações e
reforçar as relações de opressão. Esses fatores evidenciam uma realidade
de grande contradição e aflição real nesta sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Consumo; Esquizofrenia; Felicidade; Liquidez;


Relações Sociais.

Em uma sociedade cada vez mais narcisista, onde o EU e os seus


interesses materializados pelo ter/consumir são muito mais admiráveis
que qualquer outro, esta temática se tornou, também, importante para a
filosofia: afinal, porque estaríamos nos tornando cada vez mais vítimas de
um sistema de “relações liquidas” que já não levam em conta as suas
próprias necessidades. Vivemos em um mundo no qual o instrumento
(tecnologia) que foi inventado para diminuir as necessidades humanas

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Campus Toledo; e-mail:


leticia.ngoulart@outlook.com
62 Ressonâncias filosóficas - Artigos

parece ter se tornado o fim, levando o homem a servir a máquina e


perdendo a consciência crítica. Dito de outra forma, através da sedução
do consumo, a sociedade mantém a população submetida a sua própria
lógica exigências. Os instrumentos utilizados para isso são a comunicação
em massa e a publicidade que cria uma cultura de formação de desejos que
passam a ser divulgados como necessidades, gerando um modo de
pensamento que ajuda a reforçar o sistema existente. Sistema ao qual cria
ideias e pensamentos que acabam se tornando homogêneos.
Consumo desregrado que leva as pessoas a se alienar, não
assumindo a responsabilidade de suas escolhas. Nesse contexto, nota-se
uma completa falta de liberdade que projeta um falso prazer em comprar
para anular problemas como depressão ou estresse criados pela agitação
cotidiana. Segundo Herbert Marcuse “demonstra - se uma preocupação
com o desenvolvimento descontrolado de tecnologia e das falsas
necessidades que ela cria, argumentando que há movimentos repressivos
das liberdades individuais e um desmoronamento da razão (MARCUSE,
1973, p.19)”. Suas obras questionam a real necessidade deste consumo
para a felicidade e como o consumo se tornou um instrumento por meio
do qual se atrela, cada vez mais, o indivíduo ao sistema do capital. A
“necessidade” nos dirige a certos objetos, modos de pensar, de agir até
mesmo de se relacionar. Autenticando uma sociedade baseada na
repressão e na exploração. Por exemplo, uma pessoa levada a desejar uma
vestimenta de determinada marca e que não possua dinheiro para compra-
la, passará a ver nesse objeto uma necessidade oposta à possibilidade de
adquiri-lo em detrimento da falta de dinheiro. Esta pessoa, então, passa a
venerar o dinheiro e fazer de tudo para obtê-lo, a fim de satisfazer a
necessidade de compra, embora estas necessidades talvez nem sejam
“reais” e os objetos de desejo se tornem facilmente descartáveis para que
um novo tome seu lugar. As pessoas estão servindo ao dinheiro que, em
princípio, deveria facilitar suas vidas, estão docilmente servindo ao sistema
sem que percebam toda uma estrutura manipuladora cujo principal
chamariz e instrumento são os delírios de consumo. A vestimenta tão
desejada, nesse contexto, acaba se tornando um símbolo de status social,
uma espécie de manifestação ou compensação das frustrações afetivas que
resulta desta própria sociedade e que se legitima novamente pelo
consumo. O desejo criado como uma falsa necessidade bloqueada pela
falta de dinheiro torna-se algo a ser venerado, revelando uma lógica de
vinculação e dependências que, por sua vez, acarreta parcelamentos fáceis,
cheques pré-datados entre outros instrumentos que atrelam o indivíduo a
A liquidez e a esquizofrenia... 63

sociedade, inviabilizando um pensamento crítico sobre ela, tanto quanto


sobre seu destino pessoal.
O filósofo e sociólogo Herbert Marcuse1 é conhecido por ter se
apropriado de modo produtivo do pensamento psicanalítico de Sigmund
Freud. Segundo Freud (1856 – 1939) em O Mal – Estar na Civilização (1996,
p.09) “é impossível fugir a impressão de que as pessoas comumente falsos
padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para
elas mesmas e os admiram-nos outros, subestimando tudo aquilo que
verdadeiramente tem valor na vida”. Ao que parece, enquanto a sociedade,
não lançar novas sensibilidades, ou seja, novas referências que não o poder
de consumo, não haverá uma “nova sociedade”. Vivemos em um mundo
onde as mercadorias parecem ter vida própria. Estas mercadorias “chegam
até o indivíduo e como elementos que parecem conter propriedades
humanas” por terem sido concebidas por seres humanos que transferem
e projetam nelas desejos alheios como se fossem seus. Há mais relações
humanas por trás dos produtos do que se pode imaginar, e quanto mais se
atribui valor às coisas, mais se reduzem as relações sociais. Projeta-se todo
o desejo reprimido no “consumo”, pois é mais fácil “gastar” do que
debater sobre o assunto ou enfrentar as raízes da aflição ou ainda,
modificar as relações sociais que nos deixam humanamente falhos e
vulneráveis. Estamos nos tornando seres apáticos, temos dificuldade de
nos colocar no lugar do outro, ficando indiferentes sobre questões como
violência e a mídia, ou seja, o mundo passa a ser apresentado como um
encantamento no qual tudo acaba se tornando “normal”, “natural”.
Podemos observar nas famílias, uma crescente dificuldade de diálogo a

1 [...] foi no pensamento de Freud que Marcuse parece ter encontrado um dos maiores
instrumentos/referências para desenvolver essa perspectiva de ampliação da perspectiva
emancipatória, buscando, simultaneamente, ampliar tanto temática quanto socialmente
as referências capazes de se contrapor à lógica da sociedade capitalista. Marcuse busca
apoiado de modo especial na teoria freudiana da contraposição entre princípio do prazer
e princípio de realidade, afirma que do que se trata de fato é de desenvolver um outro
princípio de realidade que não o que rege a sociedade atual. Com essa perspectiva a ênfase
de processos emancipatórios pode ser direcionada muito mais aos aspectos qualitativos
pelos quais um princípio de realidade se orienta. A busca de elementos para fundar um
novo princípio de realidade, assim, a orientar a identificar do lugar social da negação. Em
Freud se justifica o caráter repressivo dos instintos pelo fato de esse autor pressupor um
conflito irreconciliável entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. Como os
instintos básicos estriam sempre em busca do predomínio de prazer, a luta contra eles
seria um constante no interior da civilização: daí o constante e insuperável mal-estar na
civilização (SCHÜTZ, 2013, p. 702).
64 Ressonâncias filosóficas - Artigos

ponto de não se discutir mais sobre assuntos básicos e mesmo de se


perguntar questões simples, como foi seu dia? ou você está bem? Sem que
estejamos olhando para o aparelho eletrônico. Há uma relação íntima entre
o estímulo do consumo, indiferença e a violência.
A sociedade está reprimindo áreas próprias das relações humanas,
sociais e intersubjetivas e as substituindo por mercadorias como remédios,
álcool, drogas, dentre outras. Assim, toda a estrutura de opressão social e
econômica permanece inalterada, pois os verdadeiros motivos não são
enfrentados e, por vezes, nem compreendidos. A partir de tais questões,
isto é, incidindo na possibilidade de sua superação, faz-se necessário se
libertar dos ditames do consumo. Ou seja, o prazer exagerado faz parte de
um estilo de vida alienado, que atualmente, acabou se tornando
dominante, como um projeto de realização baseada em uma falsa
felicidade que leva o homem a se sacrificar para tentar alcançar seus
objetivos por meio do trabalho. “Enquanto a falta de liberdade estiver
escondida nas necessidades e não somente na sua satisfação, aquelas tem
que ser liberadas primeiro. Isto não constitui nenhum ato de educação, de
renovação moral do homem, mas um processo econômico e político”
(MAAR in MARCUSE, 1997, p.191).
É importante observar que o capitalismo2 facilita os meios de
integração entre felicidade e liberdade, proporcionando o estágio máximo
de dominação: “a realidade da felicidade é a realidade da liberdade, como
autodeterminação da humanidade emancipada na sua luta comum com a
natureza” (MAAR in MARCUSE, 1997, p.197). Nessa totalidade, os
interesses particulares dos indivíduos conduzem a sociedade a uma esfera
de loucura, na qual os interesses individuais são deuses acima de qualquer
coisa, aonde papel do outro não faz sentido, é meramente descartado não
se abrindo para novas experiências, suspendendo a razão e as relações de
afetividade, amizade, amor e sexualidade existentes. Lutando contra
própria natureza e a autonomia, sacrificando a liberdade, convívio e a

2 Os meios de produção à disposição da coletividade, a reorganização do processo de


produção visando às necessidades do conjunto, à redução da jornada de trabalho, à
participação ativa dos indivíduos na administração do todo, pertencem ao conteúdo desse
processo. Com a abertura de todas as possibilidades subjetivas e objetivas de
desenvolvimento existentes, as próprias necessidades se transformarão: aquelas baseadas
na coerção social da repressão, na injustiça, na sujeira e na miséria teriam que desaparecer.
Mas nada impede que ainda existam doentes, loucos e criminosos. O reino da necessidade
continua existindo, assim como a própria luta com a natureza e entre os homens (MAAR
in MARCUSE, 1997, p.191).
A liquidez e a esquizofrenia... 65

satisfação de simplesmente estar com alguém ou consigo mesmo mais


intimamente.
Desejos e pensamentos são tomados pelo condicionamento,
forjando uma dominação sutil que não precisa recorrer a qualquer tipo de
força ou pensamento crítico: tudo já está dado. A racionalidade é, assim,
dominada pela submissão eficiente a qual “[...] o homem aprende que a
obediência às instruções é o único meio de se obter resultados desejados.
Ser bem-sucedido é o mesmo que adaptar-se ao aparato. Não há lugar para
a autonomia” (MARCUSE, 1999, p.80) o trabalho vem, assim, em
primeiro lugar na vida do homem e as tecnologias, que são colocadas
como falsas necessidades pela indústria cultural, passam a ser um meio de
poder das grandes empresas: o indivíduo entende que horas extras de labor
são muito mais recompensadoras, ocasionando uma falsa sensação de
prazer. Em paralelo a isso, o homem renuncia à natureza e se subordina
às mais variáveis meios para se ganhar dinheiro. Há, dessa forma, pedidos
de socorro consumistas atrelados a um sistema que sabe exatamente pelo
que o sujeito passa. Há pessoas treinadas para criar falsas necessidades3:
saber o que estamos sentindo, pensando, se estamos com dor, se brigamos
com namorado, enfim. Em cada esquina encontra-se uma igreja com
soluções diversas que atendem a públicos diversos, prometendo meios de
salvação variados, ou seja, uma garantia para a “alma” em troca de
dinheiro. Nossa sociedade sustenta a repressão e os fetiches que fornecem
propriedades materiais que mantêm, inclusive, sentimentos como amor,
amizade, paz entre outros.
São anúncios de bem - estar programados para que o indivíduo
não precise pensar refletir sobre algo que poderia ser simples, mas, que o
consumo levou a uma proporção tão grandiosa que para cada sentimento
que envolve as substâncias do nosso cérebro, a mídia tem uma solução de
prazer e satisfação voltada para relações liquidas4 e esquizofrênicas, onde

3 Nos países industrializados desenvolvidos ocorre o enquadramento dos oprimidos com


base na administração total das forças produtivas e da crescente satisfação das
necessidades que fecha a sociedade à sua transformação necessária. Produtividade e
prosperidade associadas a uma tecnologia a serviço política monopolista parecem tornar
a sociedade industrial imune em sua estrutura vigente (MAAR in MARCUSE, 1997, p.41).
4 É justamente em virtude dessa receptividade, dessa entrega declarada da sensibilidade

aos objetos ( homens e coisas) que a sensibilidade pode tornar –se fonte da felicidade,
pois nela, de maneira totalmente imediata, o isolamento do indivíduo é superado, e ele
pode aprender os objetos sem que a mediação essencial deles pelo processo da vida social
e, portanto, seu lado infeliz, seja construtivo da fruição. No processo do conhecimento,
na razão, ocorre precisamente o contrario. Aqui a espontaneidade do indivíduo se choca
66 Ressonâncias filosóficas - Artigos

a palavra “não” se torna chave para o insuportável, e o insuportável se


torna descartável.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços


humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 190 p.

DORIA, Francisco Antônio. Marcuse: Vida e Obra. 3. Rio de Janeiro, RJ.


Ed. Paz e Terra, 1983.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Ed. Imago,


1997.

MAAR, Wolfgang Leo. Introdução. Marcuse: Em busca de uma Ética


Materialista. Herbert Marcuse. Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro – RJ.
Ed. Paz e Terra S.A. 1997.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. 6° Edição. Boston: Editora


Zahar, 1966.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da Sociedade industrial: o homem


Unidimensional. Rio de Janeiro, 1973.

SCHÜTZ, Rosalvo. Por um outro princípio de realidade: novos lugares


emotivos sociais da negação segundo Herbert Marcuse. Educação e
Filosofia, Uberlândia, v. 27, n.54, p. 699 – 718.

necessariamente contra o objeto como contra uma coisa estranha: a razão tem que
superar essa estranheza e captar o objeto na sua essência: não apenas como ele se dá e
aparece, mas também no seu devir (MAAR in MARCUSE, 1997, p. 171).
VI

A METÁFORA DA “CARNE” NA LINGUAGEM DE


MERLEAU-PONTY

Litiara Kohl Dors*

RESUMO:

Este artigo procura mostrar como Merleau-Ponty comunica a metáfora da


“carne”, que se consolidou em suas últimas obras como uma nova
ontologia opondo-se radicalmente ao dualismo presente tanto no
pensamento cartesiano como na fenomenologia de Husserl. Pretendemos,
inicialmente, mostrar em que medida Merleau-Ponty concebe o
pensamento de Descartes e também de Husserl como perspectivas
dualistas para, posteriormente, apresentar a metáfora da carne como uma
ontologia que se propõe romper com os limites impostos, tanto pela
ciência quanto pela filosofia, na relação sujeito e objeto. A “carne” é,
portanto, a expressão de uma zona intercambiável, onde não há barreiras
rígidas entre o subjetivo e o objetivo e, aos olhos de Merleau-Ponty, faz-
se sentir em vários aspectos da experiência humana, como na arte, na
linguagem e nas relações intersubjetivas. Por fim, pretendemos ainda
mostrar como o filósofo comunica, através de seu estilo de escrita, a
verdadeira essência da “carne”.

PALAVRAS-CHAVE: Metáfora da carne; Merleau-Ponty;


Fenomenologia.

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: litiara@hotmail.com


68 Ressonâncias filosóficas - Artigos

6.1 A CRÍTICA DE MERLEAU-PONTY AO PENSAMENTO DE


DESCARTES E HUSSERL

Merleau-Ponty apresenta, como um dos pilares centrais de sua


fenomenologia, o anseio de formular uma ontologia que desbanque
qualquer movimento dualista, retirando a ênfase que ora se voltava ao
sujeito, ora ao objeto e que permeiam tanto o movimento racionalista,
onde o mundo é constituído pela consciência, quanto o empirismo, em
que a experiência e, portanto, o mundo, se torna a cede do conhecimento.
A filosofia merleau-pontyana resulta, então, em uma filosofia que trata de
definir o que é a consciência opondo-se aos movimentos dualistas que se
conjugam entre corpo e razão, muito interior e exterior, sujeito e objeto e
que permeiam tanto o pensamento cartesiano quanto a fenomenologia de
Husserl.
Efetuando uma breve retomada acerca da filosofia destes últimos
autores, podemos colocar em relevo o fato de que Descartes encontrou
na consciência pura, o solo para o encontro das verdades certas e
indubitáveis, colocando em segundo plano o corpo e, portanto, os
sentidos, que para ele se manifestavam enquanto fonte de enganos. É o
que bem retrata o filósofo na segunda meditação ao afirmar que:

Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me
de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras
me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a
figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu
intelecto1. O que poderá, pois, ser considerado
verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no
mundo de certo (DESCARTES, 1979, p. 91).

Esse lugar do mundo e dos sentidos enquanto terreno não


confiável para o conhecimento verdadeiro é diversas vezes retomada por
Merleau-Ponty na tentativa de mostrar que há um equivoco em Descartes.
Ou seja; aos olhos de Merleau-Ponty, as raízes do verdadeiro
conhecimento encontram-se na percepção.
O pensamento dualista cartesiano encontra-se claramente
expresso na sexta meditação, aonde Descartes reafirma a sobreposição da
consciência – espírito, ou razão – sobre o corpo, como fonte do que é
verdadeiro:

1 Tradução nossa.
A metáfora da “carne”... 69

Já que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na


medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de
outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que é apenas
uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha
alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta
de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele. (DESCARTES,
1979, p. 142).

Tendo em vista que Descartes procurava apresentar um método


que pudesse ser aplicável tanto à filosofia quanto às ciências, fica claro que
seu procedimento racionalista acaba servindo de influência para muitos
campos da ciência, inclusive para a psicologia clássica que ganhou maior
expressão no século XIX, aonde Merleau-Ponty acaba por concentrar
grande parte de suas críticas.
Na contramão do racionalismo, desponta o movimento empirista,
embasado no conhecimento a partir da experiência, mas que do mesmo
modo que o primeiro, não deixa de efetuar uma cisão entre os fenômenos
que pertencem ao mundo e àqueles da consciência.
Sobre Husserl, que é considerado o pai da Fenomenologia
Transcendental, devemos mencionar que definiu a si mesmo como um
“neocartesiano” e que se dedicou a mostrar, sobretudo, que a consciência
é dotada de “intencionalidade2”. Dizer que a consciência é “intencional”
significa apontar para o fato de que “toda a consciência é consciência de
algo”, ou seja; embora Husserl acabe por retomar o projeto cartesiano do
método, o que o diferencia de seu mestre é a apresentação da consciência
em sua relação com o mundo. Para a fenomenologia husserliana, não
haverá consciência se não houver um mundo de objetos ao qual ela possa
entrar em relação.
Contudo, Husserl não abandona o projeto de “colocar o mundo
em suspenso3” para fazer emergir um “ego puro” ou “transcendental” o

2 Essa ideia de “intencionalidade” tem suas raízes na psicologia de Brentano, de quem


Husserl foi aluno. Brentano afirma, sobre a intencionalidade que: “todo fenômeno
psíquico contém em si algo como seu objeto, se bem que não todos do mesmo modo.
Na representação há algo representado; no juízo há algo admitido ou rechaçado; no amor,
amado; no ódio odiado; no apetite, apetecido, etc.” (BRENTANO, 1935, p. 81-82).
3 O método de redução fenomenológica adotado por Husserl consiste em admitir a

existência de um ego transcendental que é anterior à experiência natural e que é o polo


articulador da consciência individual no mundo. A partir disso, a redução se dá a partir
da suspensão dos juízos, valores e ideias que tem suas raízes no mundo natural para se
chegar ao ego puro ou transcendental.
70 Ressonâncias filosóficas - Artigos

que, em certo sentido, não o retira de um posicionamento idealista acerca


do conhecimento.

6.2 MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIA DA “CARNE”

A fenomenologia que Merleau-Ponty pretende desenvolver parte


das críticas a esse dualismo apresentado tanto pelo pensamento de cunho
cartesiano quanto por Husserl. Já em uma de suas obras iniciais publicada
em 1945, Phénoménologie de la perception, o filósofo apresenta a ideia de uma
“consciência perceptiva”; isto é, uma consciência que não pode ser
desvinculada do corpo e que, portanto, está intimamente ligada aos
sentidos e à percepção. Não é por acaso, que nesta mesma obra, Merleau-
Ponty apresenta um texto intitulado “O corpo como ser sexuado”, aonde
debate mais diretamente com a psicanálise, mostrando sua simpatia à
iniciativa freudiana de restituir ao corpo o seu significado, tornando este,
não mais um mero mecanismo receptor de estímulos como propunham
os fisiólogos e psicólogos clássicos, mas, como bem nomeia o filósofo
francês, fazendo do corpo um “ser” produto e produtor de sentidos.
No último escrito que o autor pode concluir em vida, denominado
L’oeil et l’esprit, Merleau-Ponty tece uma crítica à Dióptrica de Descartes, que
pretendia desvelar os mecanismos fisiológicos da visão, ao mesmo tempo
em que manifesta sua admiração pela pintura de Paul Cézanne, que
representava, para ele, uma verdadeira revelação do espírito em comunhão
com o corpo, neste caso em especial o olho, que, imbuído do espírito,
capta o mundo, para manifestá-lo na tela.
Essa manifestação que se dá na pintura de Cézanne não pode ser
considerada uma simples réplica do mundo exterior, tal como aparece ao
olho enquanto um órgão fisiológico, uma vez que o pintor coloca em sua
arte, elementos de sua própria subjetividade. Contudo, porque o mundo
dos sentidos é compartilhado e por haver também um mundo
intersubjetivo, do qual nos ocuparemos mais detalhadamente adiante, é
que o admirador da obra pode captar a subjetividade do autor e colocar,
também, elementos de sua própria subjetividade na interpretação da obra.
A pintura de Cézanne não tinha a pretensão de esboçar a
perspectiva perfeita; aos olhos de Merleau-Ponty, Cézanne pintava o
mundo como este fazia sentir em seu espírito, no mais recôndito de seu
ser, desviando-se da busca de revelar o objeto em sua “verdade”; ou seja,
do exato modo como se apresentava ao observador. A relação, portanto,
entre o olho e o espírito, se dá em Cézanne, de maneira “carnal”, pois se
A metáfora da “carne”... 71

trata de um espírito entrelaçado com a percepção, visto que “o espírito sai


pelos olhos para passear pelas coisas, uma vez que não cessa de ajustar
sobre elas sua vidência” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 24). É essa ideia
que está presente na crítica de Merleau-Ponty à filosofia e em especial à
ciência, quando inicia este mesmo artigo afirmando que “a ciência
manipula as coisas e renuncia habitá-las”4 (MERLEAU-PONTY, 2004, p.
15).
É lícito mencionarmos aqui, que o filósofo não descarta o valor
dos rigorosos métodos científicos para o desenvolvimento do
conhecimento. Porém, a crítica se concentra na ideia de que a ciência não
é a única maneira válida de conhecer e de que, especialmente quanto aos
métodos aplicados à psicologia, estes deveriam ser revistos, uma vez que
se trata da compreensão do que há de peculiar no humano: a existência
perpassada pelo mundo intersubjetivo.
A metáfora da “carne” se insere em uma tentativa de mostrar que
há permeabilidade entre o “ser” e as coisas. Quer dizer: não há como
conhecer o mundo separando sujeito conhecedor e objeto conhecido. Tal
separação, tão insistentemente pretendida por filósofos e cientistas, em
especial os estudiosos da psicologia clássica, não seria legítima tendo em
vista que ao tentar romper o elo entre o homem e o mundo, deixa-se
escapar o que de mais misterioso há na manifestação do “ser”.
Se em alguns momentos o filósofo assume uma maior
sensibilidade, isto é, deixando-se sentir nas entrelinhas, ao apresentar sua
fenomenologia, é justamente porque sua tentativa concentra-se em uma
“reabilitação ontológica do sensível” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 210),
pois há muito que a ciência e a filosofia fecharam os olhos para o mistério
das coisas ao relegar ao segundo plano o conhecimento sensível expresso
na verdadeira arte, seja na poesia, na música e, para Merleau-Ponty,
especialmente na pintura. Eis aqui o “ser”, jorrando em sua verdadeira
fonte. O corpo capta o mundo através dos sentidos deixando-se penetrar
por ele num movimento de “promiscuidade5” ou “entrelaçamento”. Isso

4 Pensamos que Merleau-Ponty está se referindo especialmente às ciências humanas,


como por exemplo, a psicologia que despontou no Séc. XIX, em que se buscava, acima
de tudo, uma total separação entre sujeito e objeto no tocante ao estudo do psiquismo.
5 Gostaríamos de registrar, aqui, sobre o estilo de escrita de Merleau-Ponty, que ao tomar

contato mais íntimo com a obra do filósofo, o leitor é lentamente surpreendido por um
jogo de palavras que exprimem a sensibilidade do autor. Supomos que é justamente esta
perspicácia na escrita que conduz o leitor ao entendimento, ou a um sentir mais profundo,
do pensamento merleau-pontyano, uma vez que, para ele, a filosofia não se separa da
sensibilidade.
72 Ressonâncias filosóficas - Artigos

significa que não há separação nem sobreposição entre a consciência e o


corpo, como supunha Descartes; e, num âmbito mais profundo, não
poderíamos sequer dizer de uma “relação” entre consciência e corpo, visto
que o cerne do pensamento de Merleau-Ponty está justamente em apontar
que não há consciência sem corpo, mundo sem consciência, ou
consciência sem mundo, e nisso se constitui a “carne”.
A “carne” como metáfora de união, mas também de
diferenciação6, entre homem e mundo vem mostrar uma nova amplitude
da qual o corpo é portador: o corpo habita e é habitado pelo espírito. A
“carne” é, portanto, “o tecido comum de que somos feitos” (MERLEAU-
PONTY, 1964, p. 257). Ou, ainda:

a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do


visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente,
atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as
coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas
como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e
mesmo essa dupla relação, por deiscência ou fissão de sua massa
(MERLEAU-PONTY, 1964, p. 189).

O corpo pode ser, portanto, concebido enquanto uma extensão da


“carne” do mundo, o quiasma que possuímos com as coisas e que nos
permite ser com as coisas, já que a “carne” é, em sentido estrito, o “ser de
entremeio ou entre-dois, um interser” (MERLEAU-PONTY, 1995, p.
293). É esse “ser” que alguns representantes da filosofia ocidental se
recusam revelar, quando optam por possuir o conhecimento das coisas
mediante o pensamento. Neste sentido, ao tecer a crítica a este
pensamento que é reduzido “deliberadamente ao conjunto das técnicas de
tomada ou de captação que ele inventa” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.
15) para possuir as coisas que o filósofo afirma que:

É preciso que o pensamento de ciência – pensamento de sobrevoo,


pensamento de objeto em geral – torne a se colocar num “há” prévio,
na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais
como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que
é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual

6 Devemos esclarecer que a metáfora da “carne” não se trata de uma ideia de um


psiquismo alargado, onde tudo estaria unido a tudo, sem que houvesse diferenciação. A
“carne” é o “quiasma” entre as coisas, contudo, sua estrutura ainda permite que haja,
simultaneamente, diferenciação e união.
A metáfora da “carne”... 73

que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas


palavras e meus atos (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 17).

Este lugar, “o solo do mundo sensível”, no qual o filósofo insiste


em firmar as estruturas de sua nova ontologia, trata-se justamente do
terreno intercambiável entre sujeito e objeto. Isso significa ainda que o
“ser” encontra-se entranhado na experiência humana do mundo e que não
pode, jamais, ser meticulosamente separado pelo “pensamento de...”,
como propunha a filosofia cartesiana. A verdadeira reflexão é, portanto,
anterior ao pensamento.
Mediante esta perspectiva de reflexividade “carnal” diante da qual
situa o corpo, a verdadeira filosofia e ciência, a pintura e até mesmo a
linguagem, surge uma nova metáfora na obra de Merleau-Ponty,
identificada por uma ideia de “arqueologia”, que busca escavar um “ser
selvagem”, o qual se encontra ainda em estado bruto neste “solo do
mundo sensível”, que pode ser traduzível simplesmente por
“sensibilidade”, e que não deve ser subjugado aos desígnios da
racionalidade, sob pena de perder-se de seu mais profundo sentido.
Escavar um ser selvagem significa dar voz à questão sempre retomada:
“Como nomear, onde colocar no mundo do entendimento essas
operações ocultas, e os filtros, os ídolos que elas preparam?” (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 27). O autor segue em busca de respostas retomando
sempre a experiência sensível que se manifesta num certo estilo de arte, de
filosofia e da experiência intersubjetiva.
Vejamos agora, a retomada merleau-pontyana da ideia de “carne”,
a propósito do fenômeno da linguagem, em seu escrito intitulado “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio”, ao afirmar que:

Se o signo só quer dizer algo na medida em que se destaca dos outros


signos, seu sentido está totalmente envolvido na linguagem, a palavra
intervém sempre sobre um fundo de palavra, nunca é senão uma dobra
no imenso tecido da fala. Para compreendê-la, não temos de consultar
algum léxico interior que nos proporcionasse, com relação às palavras
ou às formas, puros pensamentos que estas recobririam: basta que nos
deixemos envolver por sua vida, por seu movimento de diferenciação e
de articulação, por sua gesticulação eloquente (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 64).

Isso significa que também na linguagem há um mecanismo vivo e


autêntico, um ser que se mostra no movimento mesmo da experiência e
que pousa tacitamente nas entrelinhas de um texto ou de um discurso,
74 Ressonâncias filosóficas - Artigos

tornando a escapar, como água entre os dedos, quando submetido aos


crivos da pura razão. A verdadeira linguagem é aquela que tem algo novo
a dizer, mas este novo dito é sempre permeável à interpretação de um
leitor. Quando um texto é atraído pela experiência de um leitor, deixa de
ser obra pura de seu autor porque, assim como na pintura, há lacunas que
são preenchidas pela percepção daquele que os lê. Tal movimento se dá
porque, assim como a intersubjetividade, a verdadeira linguagem é a
expressão da “carne”.
A palavra é, portanto, um elo entre os homens, aquilo que
“carnalmente” se interpõe no contato humano, atestando que nunca
“somos” sozinhos, uma vez que nossa expressão no mundo é sempre
permeada e captada pela experiência e percepção de um outro. Ao se
referir a esse tal mistério da linguagem, Merleau-Ponty escreve:

[Palavras] ditas por quem? Ditas a quem? Não por um espírito a um


espírito, mas por um ser que tem corpo e linguagem a um ser que tem
corpo e linguagem, cada um dos dois puxando o outro por fios invisíveis
como aqueles que sustentam as marionetes, fazendo o outro falar,
fazendo-o pensar, fazendo-o tornar-se aquilo que é, e que nunca teria sido
sozinho. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 19)

Tornamos a chamar a atenção aqui, ao fato de que novamente,


nesta passagem, o filósofo retoma o tema do corpo como co-extensivo ao
“ser”, sendo que também a linguagem aparece como expressão ontológica
desembocando na questão da intersubjetividade quando, logo adiante,
Merleau-Ponty afirma que “Diz-se que há um muro entro nós e os outros,
mas é um muro que fazemos juntos: cada qual coloca sua pedra no vão
deixado pelo outro.” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 19).
Em um de seus escritos tardios, Le visible et l’invisible o autor segue
mostrando que no âmbito da intersubjetividade, há também um
enovelamento dos sentidos. Observemos como, a partir deste tema, a
“carnalidade” se esboça:

Eis este rosto bem conhecido, este sorriso, estas modulações de voz,
cujo estilo me é tão familiar como eu o sou a mim mesmo. Talvez, em
muitos momentos de minha vida, o outro se reduza para mim a este
espetáculo que pode ser um sortilégio. Mas altere-se a voz, que surja o
insólito na partição do diálogo ou, ao contrário, que uma resposta
responda bem demais ao que eu pensava sem tê-lo dito inteiramente –
e, súbito, irrompe a evidência de que também acolá, minuto por
minuto, a vida é vivida: em algum lugar atrás desses olhos, atrás
A metáfora da “carne”... 75

desses gestos, ou melhor, diante deles, ou ainda em torno deles, vindo


de não sei que fundo falso do espaço, outro mundo privado
transparece através do tecido privado do meu, e por um momento é
nele que vivo, sou apenas aquele que responde à interpelação que me
é feita. Por certo, a menor retomada da atenção me convence de que
esse outro que me invade é todo feito de minha substância: suas cores,
sua dor, seu mundo, precisamente enquanto seus, como os conceberia
eu senão a partir das cores que vejo, das dores que tive, do mundo em
que vivo? Pelo menos, meu mundo privado deixou de ser apenas meu;
é, agora, instrumento manejado pelo outro, dimensão de uma vida
generalizada que se enxertou na minha (MERLEAU-PONTY, 1964,
p. 25-26).

Esta passagem mostra que há um entrelaçamento entre as minhas


experiências e as experiências do outro. Isto significa que as percepções
particulares acerca do mundo são sempre permeadas pelas influências
afetivas manifestadas por outros humanos, seja pelos antepassados que
deixaram de legado a cultura, seja pelos indivíduos mais próximos, que
acompanham e permeiam o mundo subjetivo de um homem desde o
momento do seu nascimento. É por isso que podemos localizar a
fenomenologia de Merleau-Ponty no terreno, não mais da alteridade, mas
da intersubjetividade, uma vez que agora o “eu” se coloca não mais em
oposição ao “outro”, mas em um campo comum, seja ele o campo do
mundo intersubjetivo.

6.3 A “CARNALIDADE” NA LINGUAGEM DE MERLEAU-


PONTY

A breve exposição do pensamento merleau-pontyano e as


passagens escritas pelo autor que foram apresentadas até aqui, têm por
objetivo principal, ilustrar o modo particular mediante o qual Merleau-
Ponty comunica suas ideias. Trata-se de uma escrita elaborada com rigor
filosófico que se mostra, em um dos aspectos de maior autenticidade do
autor, em nossa opinião, pela via da afetividade.
Aos nossos olhos, essa personalidade afetiva que se esboça nas
obras do filósofo, segue um movimento muito próximo àquilo que ele
identifica em uma pintura de Cézanne e que não poderia ser diferente em
relação à filosofia, porque aquilo que Merleau-Ponty compreende por
“carne” só pode ser comunicado a partir de uma elaboração do sensível.
Compreender a “metáfora da carne” trata-se, sobretudo, de um sentir, nas
entrelinhas dos textos, a presença tácita da “carne” e é isso que o filósofo
76 Ressonâncias filosóficas - Artigos

parece pretender ao valer-se de termos pouco convencionais à filosofia


como: “promiscuidade”, “arqueologia”, “ser selvagem” e até mesmo
“carne”. Mesmo os títulos escolhidos para algumas obras, revelam um tom
provocador à imaginação do leitor ao insinuarem movimentos ambíguos
como é o caso de O visível e o invisível e A linguagem indireta e as vozes do silêncio.
Gostaríamos ainda de chamar atenção ao fato de que, embora nem
sempre apareça menção direta à “metáfora da carne” nos textos de
Merleau-Ponty, esta parece ser sempre retomada e desdobrada nas novas
perspectivas apresentadas pelo filósofo, seja no âmbito do corpo, da
pintura, da linguagem ou da intersubjetividade. Este desdobramento
afirma, a cada vez, ao leitor atento, que a revelação do “ser” só se dá na
presença concreta do homem no mundo e no desfrutar criativo dos
objetos que este nos apresenta, visto que, como bem afirmou o filósofo
“o Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”
(MERLEAU-PONTY, 1964, p. 187).

REFERÊNCIAS

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português: Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. R. Moura. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.

_____. Signes. Paris: Gallimard, 1960. Em português: Signos. Trad. M. E.


G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VII

A “MITEZZA” BOBBIANA

Geraldo Luiz Cheron*

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo analisar e caracterizar a mitezza


bobbiana. De uma forma ampla e não restritiva, a mitezza – mansidão – é
caracterizada como uma virtude não política e um dever moral capaz de
conduzir à harmonia, à tolerância e à democracia, com vistas ao bem-viver.
Sob outro aspecto, o imperativo é caracterizado como uma regra prática
moral, em que uma ação é tomada como necessária e segundo a qual Kant
estabeleceu: “age sempre em conformidade com uma máxima que
desejarias que pudesse ser ao mesmo tempo uma lei universal” (KANT,
2003, p. 67). A mitezza é uma virtude que deve ser inerente a todos os seres
humanos. Afinal, a virtude está acima do próprio Estado, da res-pública e
das próprias leis. A mansidão, portanto, deve iluminar as mentes humanas
diante dos conflitos existenciais provocados cotidianamente e
historicamente pelos próprios humanos. A convergência do pensamento
de Kant e Bobbio é que a virtude é a máxima humana; sendo que para o
primeiro surge com a boa vontade, para o segundo surge com a mitezza. Por
fim, conclui-se que tanto a serenidade bobbiana quanto o imperativo
kantiano têm caráter de universalidade e virtude; sendo correto afirmar
que a mansidão se configura como sendo um autêntico imperativo
categórico.

PALAVRAS-CHAVE: Mansidão; Imperativo; Virtude; Ética.

* Unioeste; e-mail: gerlcheron@gmail.com; lattes: lattes.cnpq.br/6140559791973639


78 Ressonâncias filosóficas - Artigos

INTRODUÇÃO

A mitezza bobbiana é caracterizada como uma virtude não política


e um dever moral capaz de conduzir à harmonia, à tolerância e à
democracia, com vistas ao bem-viver de acordo com normas e regras,
válidas para todos os seres humanos em qualquer contexto de vida ou
circunstância.
A história tem comprovado que a humanidade sempre careceu de
muita serenidade e de boa vontade para enfrentar os problemas
existenciais e as dificuldades da vida. Precisou criar regras de
comportamento, de conduta para garantir que todos cumprissem seus
deveres e tivessem os direitos democráticos assegurados, diante de ânimos
acirrados e disputas que ferissem a liberdade de cada um em certas
situações.
Esta é uma situação que vem sendo praticada desde há muito
tempo, pois definir o uso de regras, de respeito, de normas e condutas
pautadas na virtude e deveres como algo universal, válida para todos em
qualquer tempo e lugar para a promoção da paz e do bom relacionamento
entre os seres humanos é primordial. Além de regras e normas há a
necessidade de buscar a mansidão como meta de vida constante perante
tantos conflitos gerados na cotidianidade da vida, pois somente uma
pessoa serena seria capaz de enfrentar problemas da vida sem se sucumbir
diante destes.
Sem dúvida faz-se necessário à prescrição de limites para o bom
comportamento humano, pois se presencia um exagero de
individualismos consentidos em muitas esferas privadas e de convívio
social, do qual é preciso que haja uma moral e uma ética capaz de
normatizar a vida dos homens para equilibrar a convivência em seus
abusos muitas vezes declarados ou velados e definir os espaços que cada
um pode ocupar neste mundo.

7.1 O CONCEITO DE VIRTUDE

É muito importante repensar o agir dos seres humanos porque


sempre haverá a necessidade de regras e de normas para guiá-los. Não é
possível imaginar uma sociedade que não tenha que seguir algum princípio
de moralidade e de virtuosidade para poder conviver com os outros.
Talvez a vida fosse um caos se não houvesse acordos de convivência:
“Uma guerra de todos contra todos”, como diria Thomas Hobbes (1983,
A “mitezza” bobbiana... 79

p. 77). Sem a observação de normas e regras de convivência, um atacaria


o outro sem piedade, decorrendo disso uma série de agressões e
consequentemente de autodestruição, colocando em risco não só a vida
pessoal de cada um, mas inclusive a segurança de todos. Por isso é
importante uma grande força de vontade para o cumprimento do dever
de modo específico, do dever interno, distinto do dever externo, de que
se ocupa a doutrina do direito que para Bobbio:

A virtude é aí definida como a força de vontade necessária para o


cumprimento do próprio dever, como a força moral de que o homem
necessita para combater os vícios que se opõem, como obstáculos, ao
cumprimento do dever (BOBBIO, 2011, p. 29).

Sem força de vontade para direcionar seus instintos,


provavelmente o homem/mulher sucumbiria facilmente. Por isso há uma
urgência de regras e de normas de conduta, para direcionar a vida de cada
um para o caminho do bem. Mesmo assim, ainda se nota que ocorrem
muitas injustiças, muitos desrespeitos entre as pessoas, como situações de
violência, desigualdade no relacionamento de uns para com os outros. Se
com regras já é difícil, imagina sem. Como seria a convivência sem a
determinação de princípios, valores e de obrigações coletivas ou de
contratos para se orientarem nas mais diferentes situações?
Kant propõe um princípio moral que pode servir de base para todo
o agir humano, chamado de imperativo categórico. Este princípio define
as ações que devem ser observadas por cada um/uma e que deve se pautar
em certos fundamentos sendo válidos para todos, pois uma ação
moralmente boa é aquela realizada de acordo com certos princípios
universais. Age de tal forma que a tua máxima seja espelho para todos.
Quem assim proceder não precisará de se preocupar com os resultados
finais de seus atos. Essa é a regra: “agir de tal forma que daquilo que deves
fazer surja o que for possível. Pois o que deve ser moralmente bom não
basta que seja conforme à lei moral, mas, isto sim, tem de se cumprir pela
lei moral” (KANT, 2003, p. 16). Se isso não for possível de ser feito,
provavelmente o imoral irá produzir um efeito tal que inviabilizará toda e
qualquer ação que seja voltada para o bem. O que vale na prática é que a
moral seja perfeita, pura e essa metafísica verdadeiramente deverá estar em
primeiro plano. Caso contrário, não estará cumprindo com a sua finalidade
porque não poderá ser uma e única razão.
Kant afirma que há uma moral a priori, anterior a qualquer
experiência, sobre a qual fundamenta a sua construção filosófica sobre a
80 Ressonâncias filosóficas - Artigos

moral, e passa a estabelecer as demais regras, algumas máximas que cada


um deve seguir embasado na razão. Assim agindo deve-se comportar-se
como se a própria máxima fosse uma lei válida para todos. Orientar-se por
dever, pela razão, sem nenhum interesse, senão a própria razão. Tratar o
outro sempre como um fim em si mesmo, nunca como um meio: “age de
tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio” (KANT, 2003, p. 59).

O homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como


fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta
ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas
direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais,
deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. Os seres
racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já
como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser
empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita
todo o arbítrio (e é um objeto de respeito). O homem não é uma coisa;
não é portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples meio,
mas, pelo contrário, deve ser considerado em suas ações como fim em
si mesmo, pela sua universalidade, pois se aplica a todos os seres
racionais (KANT, 2003, p. 58-63).

A proposta de Kant é que em primeiro lugar uma pessoa pode


querer fazer algo, mas antes precisa pensar se quer que a sua ação seja uma
regra universal, válida para todos. Sob esta perspectiva é que se tem a base
para prosseguir. A moral não pode se fundamentar em dados observáveis,
simplesmente, ou somente na experiência que cada um faz socialmente ou
individualmente, pois ela ocorre a priori. Isto é:

A moral não deve ser empírica, ou seja, não deve ser baseada na
experiência humana, não deve ter como fundamento a necessidade social
ou individual. Assim, esta pura filosofia moral só poderia ser a priori
(JUNIOR, 2012. p. 113).

O desejo de que a ação individual de cada um se converta numa


lei universal, quer dizer que ela deva fazer parte da totalidade das coisas,
desta natureza também universal, da qual a razão é uma parte. Essa norma
mostra que a ética de Kant vai além do tempo, não dependendo de
padrões sociais. Está ligada a uma natureza humana universal, por meio
da qual todo ser humano pode utilizar-se de tal norma e agir segundo a
A “mitezza” bobbiana... 81

razão. Quanto aos fins, sobre a relação da vontade com a lei moral: “age
como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei
universal da natureza” (KANT, 2003, p. 52).
Segundo Kant, uma ação para ser moral precisa passar pela prova
da vontade que quer que esta se transforme numa lei universal. Segundo
esse princípio, a vontade está acima da lei, sendo, pois legisladora dela
mesma. Sendo a moral uma lei da natureza então ela só pode ser universal.
Assim como as leis da natureza são superiores aos desejos dos homens, o
mesmo acontece com a moral, ela não pode sucumbir aos caprichos da
temporalidade. Nesse sentido o homem se vê como um gerador de leis
morais, de tal forma que estas se transformem em leis que sejam universais
mesmo que isso lhe acarrete problemas de interesses pessoais relacionados
com as suas inclinações.

A moral de Kant tem como fundamento a razão, sendo totalmente a


priori, e que o critério de ação do indivíduo, do ponto de vista ético, deve
ser o desejo de que sua ação se torne uma lei universal. Além disso,
dividiu as ações humanas em “por dever” e “conforme o dever”. Tendo
isso, conhece-se a base da moral kantiana (JUNIOR, 2012, p. 120).

Na passagem do conhecimento moral da razão vulgar para o


conhecimento filosófico, na metafísica dos costumes, Kant fala da Boa
Vontade. Ela é boa pelo querer em si mesma, independente da vontade da
pessoa. É a única coisa que pode ser pensada sem limitações. Desse modo
não há como fugir desta verdade, correndo o risco de errar. Uma coisa
para ser boa ou ruim depende do fim desejado. Se alguma (razão) não
contribuir para um fim desejado, ela tem validade. Mas se contribuir, então
ela pode conduzir à boa vontade que neste sentido é boa. Assim, a boa
vontade é: “A argúcia de espírito, a capacidade de julgar ou como queiram
chamar os talentos do espírito, ou ainda a coragem valorosa, a decisão, a
firmeza de propósitos como qualidades boas e desejáveis” (KANT, 2003.
P. 21).
Mas existem coisas que podem se tornar perigosas, se a vontade
que deve usar desses dons naturais, e cuja constituição particular, por isso,
se chama caráter, não for boa. Isto prova que a boa vontade é boa em si
mesma. A boa vontade em si torna-se uma máxima universal, ganhando
um valor supremo, elevado. É uma inclinação da pessoa para o bem. Ou
seja: “Agir em conformidade com o dever é agir em nome dos valores
morais, mas com uma finalidade egoísta. Já agir por dever é agir segundo
uma ação livre e autônoma” (FAGGION, 2003, p. 184).
82 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Para Kant conservar cada qual a sua vida é um dever, e trata-se, além
disso, de uma coisa para que todos têm inclinação imediata. “Os homens
conservam a sua vida conforme o dever sem dúvida, mas não por dever e se ele
conserva a vida por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral” (KANT,
2003, p, 25). A ação que se volta para a inclinação só tem sentido moral se agir
pelo próprio dever. Garantir a felicidade por propensão não é um dever. Os
desejos devem estar adequados ao dever. O dever é a necessidade de uma ação
por respeito à lei. E se o desejo não estiver de acordo com o dever, cumpre-se a
lei, a boa vontade, e tal máxima precisa se converter em lei universal. O que vale
é o princípio da ação e não a ação, ou seja, a ação se apoia no dever e este por
sua vez na boa vontade.
Kant argumenta que a boa vontade, assim, seria a vontade de ação
que obedece ao dever, que está de acordo com a lei moral, que se baseia
na razão, não na inclinação. Para que a vontade seja boa, ela deve estar de
acordo com a máxima de que a vontade se transforme numa lei universal.
Assim, a boa vontade, a vontade de agir segundo a lei moral, é a vontade
que o desejo de que a máxima da ação se converta em lei universal.
Portanto, a boa vontade gera a boa ação, que está de acordo com a lei
moral, e por isso a ação seria moral também. Assim, “Agir em
conformidade com o dever é agir em nome dos valores morais, mas com
uma finalidade egoísta. Já agir por dever é agir segundo uma ação livre e
autônoma” (FONTANA & MORMUL, 2016, p. 184).
Kant recorre à temperança nas emoções e paixões, da filosofia de
Platão, de que só é boa a boa vontade pelo querer em si mesmo, que
independe do desejo ou da vontade da pessoa, pois ela é uma “jóia” e
dispensa a utilidade. Afirma que a razão pura é para o conhecimento e não
para a ação que seria unicamente exclusividade da boa vontade. “Se em
um ser dotado de razão e vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse
a sua conservação, o seu bem-estar, em uma palavra a sua felicidade, não
escolheria a razão, mas os instintos” (KANT, 2003, p. 23). Entende que
se os seres vivos têm uma razão, a vontade é a felicidade. Se for fim,
teleologia dos seres vivos, do que ter razão e vontade como conduta da
felicidade, a razão seria submissão da natureza, desamor, desejo e boa
vontade, em outras palavras, a razão atrapalharia o princípio da felicidade
e se ela não leva a um fim, ela é ruim, o papel dela seria de conduzir o ser
humano à boa vontade. Mas a vontade nasce da razão e não do instinto,
desejo. Só um ser racional possui tal capacidade.
Kant coloca como principio básico e fundamental da moralidade
o imperativo categórico: “Age sempre em conformidade com uma
máxima que desejarias que pudesse ser ao mesmo tempo uma lei
A “mitezza” bobbiana... 83

universal” (KANT, 2003, p.67). Sobre tais juízos morais, as coisas não são
nem positivas, nem negativas em relação ao bem e ao mal. Os interesses
morais nem sempre estão de acordo com as atitudes humanas, mas sim,
ligadas ao que cada indivíduo quer fazer. O imperativo categórico nada
mais é que a manifestação de um princípio imediato de forma incisiva
sobre a vontade, atuando como uma regra geral da razão.
Os imperativos são entendidos como um dever utilizado para
configurar a necessidade de uma lei objetiva da razão com uma vontade,
que subjetivamente não é determinada como algo necessário, mas
extremamente importante no entendimento conceitual do imperativo
categórico. Ele configura uma ação pertinente ao mundo sensível, que leva
o indivíduo a buscar prazeres no campo do sensível e ao mesmo tempo
inteligíveis, mas em relação ao último deve se comportar de acordo com a
razão pura livre dos sentidos.
“Todos os imperativos se expressam pelo dever e mostra assim a
relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade, uma obrigação”
(KANT, 2003, p. 44). O imperativo categórico kantiano passa a ser o único
meio de expressão rigorosa da moralidade. Ao invés de se relacionar
substancialmente com a ação material e o que dela resulta, surge como
decorrência de suas partes com o princípio do qual ela mesma determina.
O essencialmente bom na ação está no seu efeito, seja qual for o resultado.
Esse imperativo pode ser denominado de imperativo da moralidade capaz
de conduzir o homem a felicidade.
Portanto, o imperativo categórico kantiano é um preceito para
pensar uma ética rigorosamente racional, sem lançar mão de um discurso
unificador, metafísico, seguindo os determinantes da moral dominante,
numa sociedade cristã, coincidindo com uma moral evangélica. Mas uma
ética que navega nos limites de uma razão que acaba sendo um grande
problema para a filosofia, ainda não resolvido, apesar de um relativismo
que coloca a ética como um mecanismo de alguns notórios do saber.

7.2 A MANSIDÃO BOBBIANA

Comparando o imperativo categórico kantiano (1724-1804), e o


Elogio da Serenidade, Bobbiano (1909-2004) percebe-se que este descreve
que antigamente quase toda ética se restringia a questões sobre a virtude.
Faz menção a ética a Nicômaco, do filósofo grego Aristóteles, mas que
atualmente mudou. Hoje, segundo ele, os filósofos morais discutem
valores e opções, e de sua maior ou menor racionalidade, bem como a
84 Ressonâncias filosóficas - Artigos

respeito de regras ou normas e, consequentemente, de direitos e deveres.


Uma das obras que trata de direitos e deveres se refere ao filósofo Kant,
segunda parte da metafísica dos costumes, voltada para uma ética do
dever, e de modo específico do dever interno distinto do dever externo,
de que se ocupa a doutrina do direito. Contudo é muito discutível que a
ética tradicional se oponha a ética das virtudes, à ética das regras, das leis.
Estes temas são entrelaçados mesmo na ética antiga, pois ordena a virtude
do respeito.
Segundo Bobbio em vez dos filósofos ficarem buscando
problemas entre os dois modos de tratar a moral, no que se refere à ética
das virtudes e a ética dos deveres, seria mais interessante se pudessem
perceber que estas duas morais tem pontos de vistas diferentes, mas não
divergentes para julgarem aquilo que é bom e aquilo que é mau na conduta
dos homens tanto no que se referem a si mesmos quanto nas suas relações
recíprocas. Ele afirma que as contrariedades entre elas, como se uma ética
excluísse a outra, se refere ao ponto de vista do observador. Pois o que
cada uma busca na verdade é o Bem maior com seu fim último. Com a
seguinte diferença: “A primeira descreve, indica e propõe a ação boa como
exemplo; a segunda prescreve como um comportamento que se deve ter,
como um dever” (BOBBIO, 2011, p. 32). Desse modo, não seria
interessante ficar com estes antagonismos entre virtude e ética. Seria mais
prudente pensar sobre a reciprocidade existente entre elas. Em outras
palavras, diria: “as diversas e não opostas exigências práticas de que
nascem e às quais obedecem. A ética das virtudes contrapor-se-ia à ética
das regras. A ética das regras é aquela dos direitos e dos deveres”
(BOBBIO, 2011, p. 31).
Bobbio (1909-2004) introduz ainda a ideia de virtudes fortes e
virtudes fracas. Entre virtudes fortes e virtudes fracas, há uma diferença
que deve ser feita, pois de um lado estão as virtudes fortes, como a
coragem, a firmeza, a bravura, a ousadia, a audácia, a generosidade, a
liberdade, a clemência, que são características dos poderosos que podem
ser chamadas de “virtudes reais” ou “senhoriais”, “virtudes aristocráticas”,
próprias de quem tem o ofício de governar, dirigir, comandar, guiar, e a
responsabilidade de fundar e manter os Estados. Estas virtudes se
manifestam na vida política, e nesta sublimação ou perversão da política
que é a guerra.
De outro lado existem outras virtudes que Bobbio as chama de
virtudes fracas, como a humildade, a modéstia, a moderação, o recato, a
sobriedade, a temperança, a decência, a inocência, a ingenuidade, a
A “mitezza” bobbiana... 85

simplicidade, e entre elas a mansuetude, a doçura e a serenidade, estas


pertencem ao homem sem importância, ao pobre, aquele sem voz e nem
vez, que tem uma baixa estima de si mesmo, e do qual ninguém nem
sequer percebe que ele existe. Para Bobbio estas virtudes são “fracas” não
porque sejam inferiores ou menos úteis e pobre e, portanto, menos
apreciáveis, mas porque caracterizam aquela outra parte da sociedade onde
estão os humilhados, os invisíveis, e os ofendidos, aqueles que não têm e
nem fazem história.
Assim, Bobbio escolhe sua virtude: a serenidade. “A serenidade é
a única suprema potência” (BOBBIO, 2011, p. 35). Usa a palavra
“potência” para designar virtude que faz pensar no contrário da potência,
na impotência, ainda que não resignada que consiste em “deixar o outro
ser aquilo que é” (BOBBIO, 2011, p. 35), é considerada uma virtude social
no sentido próprio, originário, da palavra. Ele coloca o tema fundamental
da virtude da serenidade na fenomenologia das virtudes. Distingue ainda
virtudes éticas e dianoéticas no sentido Kantiano, contudo afirma que a
serenidade é uma virtude ética.
Para Bobbio a serenidade não é arrogância, nem insolência, ou
prepotência, que são virtudes ou vícios, segundo as diversas
interpretações, do homem político. “A serenidade não é uma virtude
política, antes é a mais impolítica das virtudes” (BOBBIO, 2011, P. 39).
Fala isso num sentido maquiavélico, schimittiano. Nesse sentido a
serenidade chega a ser o outro lado da política, pois a política não é tudo
e segundo ele, a ideia de pensar que tudo é política é algo monstruoso. Ele
defende que a serenidade está acima da política. Porque na luta política
mesmo na democracia, a luta pelo poder, que não recorre à violência, os
homens serenos ou suaves não tem como participar. O símbolo do
homem político são o “leão e a raposa”. O “cordeiro”, o suave, não é um
animal político: “quando muito, é a vítima predestinada, cujo sacrifício
serve aos poderosos para aplacar os demônios da história”. O lobo come
quem se finge de cordeiro. Também o lobo é um animal político: o homo
“homini lúpus” de Hobbes no estado de natureza é o início da política; o
“princecps principi lúpus” nas relações internacionais é uma continuação
dele (BOBBIO, 2011, p. 39).
A serenidade segundo Bobbiio (1009-2004) é o contrário da
arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos,
que justifica a prepotência. O indivíduo sereno não tem grande opinião
sobre si mesmo, não porque se desestime, mas porque é mais propenso a
acreditar nas misérias que na grandeza do homem, e se vê como um
86 Ressonâncias filosóficas - Artigos

homem igual a todos os demais. Com maior razão, a serenidade é contrária


à insolência, que é a arrogância ostentada. O indivíduo sereno não ostenta
nada, nem sequer a própria serenidade. Ele diz que ficar mostrando-se
vistosamente, descaradamente, as próprias virtudes, é por si só um vício,
e por isso deve ser evitado.
Bobbio chega a afirmar que a prepotência é abuso de potência não
só ostentada, mas concretamente exercida. Que verdadeiro sereno é aquele
que deixa o outro ser, ainda quando o outro é o arrogante, o insolente, o
prepotente. A serenidade é uma virtude passiva. O contrário da serenidade
é o abuso do poder, o excesso, a pretensão. O sereno pode ser o
antecipador de um mundo melhor. A serenidade é um dom sem limites
preestabelecidos e obrigatórios.
Bobbio descreve cuidadosamente o modo de ser em relação ao
outro, de que a serenidade resvala no território da tolerância e do respeito
pelas ideias e pelos modos de viver dos outros. No entanto o indivíduo
sereno é tolerante e respeitoso, mas não é apenas isso. A tolerância é
recíproca: para que exista a tolerância é preciso que se esteja ao menos em
dois. Uma situação de tolerância existe quando um tolera o outro, pois do
contrário seria uma prepotência. Vale o mesmo com o respeito:

Todo homem tem o direito de exigir o respeito dos próprios semelhantes


e reciprocamente está obrigado ele próprio a respeitar os demais”
(KANT). Mas o sereno não exige tal reciprocidade: “A serenidade é uma
disposição em relação aos outros que não precisa ser correspondida para
se revelar em toda a sua dimensão (BOBBIO, 20011, p. 43).

Nesse sentido para Bobbio, a serenidade se concretiza na


simplicidade e por isso converteu-se numa prática universal. Trata-se de
uma “metafísica, porque afunda suas raízes numa concepção de mundo”
jamais justificada, de uma escolha histórica, uma reação contra a sociedade
violenta em que as pessoas são obrigadas a viverem. “A serenidade é,
portanto, uma virtude não política. Ou mesmo, neste mundo
ensanguentado pelo ódio provocado por grandes pequenos potentes, a
antítese da política” (BOBBIO, 2011, p. 46).
A serenidade bobbiana equivale à Boa Vontade kantiana. Tudo o
que existe segundo este princípio, é limitado, com exceção da boa vontade,
porque não adianta ter um bom caráter, ou ser uma pessoa muito corajosa,
ser firme, ter bons argumentos, saber falar fluentemente, julgar, porque
sem a boa vontade nem a felicidade é possível. Nem mesmo a temperança,
as paixões, as emoções são boas sem a boa vontade. Tudo isso são
A “mitezza” bobbiana... 87

qualidades desejáveis, mas se o caráter não for bom de nada adianta. Tanto
a boa vontade quanto a serenidade são “os valores da firmeza, da
seriedade, do desinteresse e da abnegação” (DIAS, 2009, p. 69).
No caso da moralidade, Bobbio sugere que uma moral religiosa
fundada nos preceitos de um ser superior, é uma moral heterônoma, pois
segue a regra de que quem dá a norma e quem a cumpre são pessoas
distintas (BOBBIO, 2009, p. 95). O imperativo categórico é aquele que
prescreve uma ação boa em si mesma, sem condição alguma, é o
imperativo da moralidade. Já os imperativos hipotéticos são aqueles que
prescrevem ações como meios para se chegar a certas finalidades, por isso
eles são condicionados e representam as regras do Direito (BOBBIO,
2011, p. 96). A serenidade é uma característica que deve ser inerente a
todos os seres humanos. Afinal, a virtude está acima do próprio Estado,
da res-pública e das próprias leis.
Portanto, pode-se dizer que é a partir de uma universalidade geral
de uma lei que se estabelece o imperativo categórico descrito da seguinte
maneira: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal” (KANT, 2003, p. 51), a partir disso a
serenidade bobbiana pode ser consagrada como um imperativo
categórico: “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua
vontade, lei universal da natureza” (KANT, 2003, p. 52).

7.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho está organizado em duas partes, buscando entender o


pensamento de Kant em relação ao imperativo categórico, e o pensamento
de Bobbio, sobre a serenidade, tendo como fundamento a questão da
virtude, a universalidade da moral e da ética. Trata-se da questão da
serenidade, da mitezza, em Norberto Bobbio, um princípio universal da
moralidade como virtude, buscando defini-la como um princípio
categórico válido para todos os seres humanos, assim como o imperativo
categórico kantiano.
Por outro lado, procurou-se abordar o tema da Boa Vontade do
filósofo Kant, fazendo um paralelo com a serenidade de Bobbio, no
sentido de pensar sobre a importância que esta tem a priori,
fundamentando-a numa perspectiva a fim de atingir a universalidade de
uma virtude moral e ética que possam ser construídas como um
imperativo categórico.
88 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A serenidade, portanto, deve iluminar as mentes humanas diante


dos conflitos existenciais provocados cotidianamente e historicamente
pelos próprios humanos. A convergência do pensamento de Kant e
Bobbio é que a virtude é a máxima humana; sendo que para o primeiro
surge com a boa vontade, para o segundo surge com a serenidade. Existe um
ponto de convergência entre as duas teses, sendo que tanto a serenidade
bobbiana quanto o imperativo categórico kantiano têm caráter de
universalidade e virtude; sendo correto, portanto afirmar que a serenidade
se afigura como sendo um autêntico imperativo categórico kantiano.
Em Bobbio (1909-2004) nota-se uma exaltação em seus escritos as
“forças morais”, de que elas impedem as instituições de degenerar e
afirmando que “o fundamento de uma boa república, mais até do que as
boas leis é a virtude dos cidadãos”. A convergência do pensamento de
kant e bobbio é que a virtude é a máxima humana; sendo que para o
primeiro surge com a boa vontade, para o segundo surge com a serenidade.
Por fim, conclui-se que existe um ponto de convergência entre as duas
teses, sendo que tanto a serenidade bobbiana quanto o imperativo
categórico kantiano têm caráter de universalidade e virtude; sendo correto
afirmar que a serenidade se afigura como sendo um autêntico imperativo
categórico kantiano.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Elogio da Serenidade: e outros escritos morais. 2. ed.,


São Paulo: editora UNESP, 2011.

DIAS, José Fancisco de Assis. Introdução ao pensamento de N. Bobbio.


Sarandi: 2009.

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FONTANA. Vanessa Furtado & MORMUL. Adriele Mehanna. A


Liberdade da Vontade na Fundamentação Moral de Kant. Ciências Sociais
Aplicadas em Revista – UNIOESTE/MCR – V.16 – n. 31 – 2. Sem. 2016 –
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A “mitezza” bobbiana... 89

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e


civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3ª.
Edição. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1983.

JUNIOR. Julio Cesar Lazzari. Alguns aspectos da moral de Kant na obra


fundamentação da metafísica dos costumes. PROMETEUS - Ano 5 - Número 9
– Janeiro-Junho/2012 - ISSN: 1807-3042 - E-ISSN: 2176-5960.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2003.


VIII

A RELAÇÃO DE PARTIDOS: COMUNISTA E PROLETÁRIO

Emerson Diego Maier

RESUMO

Este artigo tem por objeto de estudo um tratado político de grande


influência mundial: o Manifesto do Partido Comunista, escrito pelos teóricos
fundadores do socialismo científico Karl Marx e Friedrich Engels. Tendo
como escopo especulativo uma análise da relação entre o partido
comunista e os demais partidos proletários. Desse modo, será proposto
uma investigação referente as metas traçadas e direcionadas por Karl Marx
e Friedrich Engels ao supracitado partido comunista em detrimento da
correlação entre a propriedade privada e o capital, de modo, que tal
problematização se concatene com a relação inicialmente proposta por
este artigo. Nesse sentido, tal analise e investigação se dará por meio de
uma da apreensão da teorização de específicos conceitos
supramencionados no Manifesto do Partido Comunista, visando o seu
esclarecimento e consequente compreensão.

PALAVRAS-CHAVE: Partidos; Comunista; Proletário.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como finalidade analisar a relação entre o


partido comunista e os demais partidos proletários, expondo nessa análise
suas características, diferenças e semelhanças, ousando também expor suas
finalidades e metas. Nesse sentido, observa-se que o partido comunista
não se mostra um partido “ontologicamente” separado, em oposição a
estes tais “partidos proletários” ou partidos da classe trabalhadora, os
quais são, em uma justa medida iguais, concatenados por suas concepções,
isto é, são os partidos que possuem os mesmos ideais, princípios e
“interesses”. Entretanto, os teóricos do socialismo cientifico concordam
que existem diferenças:
92 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois


pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem
prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da
nacionalidade; 2) Nas diferentes fases por que passa a luta entre
proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os
interesses do movimento em seu conjunto. (MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich, Manifesto Comunista, 1848, p, 29)

Nesse sentido, o partido comunista possui certas distinções com


relação aos partidos da classe trabalhadora, no entanto, são distinções
inclusivas e totalizantes, pois se caracteriza no interesse comum que
independe da nacionalidade, na medida em que o partido comunista
procura representar o todo e não a multiplicidade de partes. É notório,
portanto, que o partido comunista, é em termos teóricos o “todo” que se
mostra mais avançado, preparado, quando comparado em relação aos
partidos de classe trabalhadora.

8.1 METAS

É notário, que o partido comunista e os partidos da classe


trabalhadora possuem características e interesses em comum, mas
sobretudo são suas metas que se “unificam”, se identificam e se cruzam,
enunciando a mesma revolução, isto é, as metas traçadas e direcionadas
por Karl Marx e Friedrich Engels ao supracitado partido comunista, são
em certa medida congêneres. Nessa acepção, o partido comunista possui
metas e objetivos em conformação com os ideais dos partidos da classe
trabalhadora, os quais se destacam três: a formação unificada de uma classe
proletária, a derrubada da burguesia, conquista do poder político e
abolição da propriedade privada. No entanto, tais metas preveem uma
unificação total dos partidos da classe trabalhadora enquanto poder e
classe política, não somente enquanto movimento sindical.
Contudo, Marx e Engels buscavam um fundamento ou um alicerce
argumentativo para justificar tais metas, na qual encontram o referido
fundamento na própria luta de classes, isto é, as metas só existam enquanto
algo que emana de uma histórica luta de classes, as lutas de classes, são
portanto, o princípio fundamental que norteia toda a “teia teórica
marxista”, e que por vezes aparece como um “argumento ontológico”,
fundamental e explicativo dentro do supracitado Manifesto Comunista:
A relação de partidos... 93

As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum,


em ideias ou princípios inventados ou descobertos por tal ou qual
reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais
de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se
desenvolve sob os nossos olhos. A abolição das relações de propriedade
que têm existido até hoje não é uma característica peculiar e exclusiva do
comunismo. Todas as relações de propriedade têm passado por
modificações constantes em consequência das contínuas transformações
das condições históricas. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto
Comunista, 1848, p, 30)

Nesse sentido, a sua conclusão teórica possui como fundamentos


expressões condizentes as condições de uma histórica luta de classes.
Desse modo, é contundente afirmar que todas as relações de propriedade
foram formuladas diante de uma constante mudança e condição histórica.
Por exemplo, ao final da revolução francesa, foram abolidas as
propriedades feudais em favor da propriedade burguesa. Contrapondo a
mudança propiciada durante a revolução francesa, o comunismo não
propõe uma troca de propriedades, uma em favor da outra, ou a abolição
da propriedade em geral, o que o partido comunista propõe é a abolição
da propriedade burguesa.
Nessa acepção, Marx e Engels observam que a propriedade
burguesa é de fato um expressão completa e final de um sistema de
apropriação de produtos, que se fundamenta essencialmente pelo
antagonismo de classes, em outras palavras, na exploração de um homem
por outro. Desse modo, abolir a propriedade burguesa implica
necessariamente a abolição da condição humana de exploração. Em suma,
a abolição da propriedade privada se faz como resumo da teoria do partido
comunista.
Vale salientar, que o medo e a condenação continua de tal sentença
(abolição da propriedade burguesa) se dá diante do “pseudo-argumento”,
o qual intui que o partido comunista aboliria da maneira mais grotesca,
rudimentar e selvagem a propriedade privada em geral, onde pressupõe –
se que a mesma seja conquistada como resultado do trabalho do próprio
homem, na medida em que o trabalho é considerado por muitos como
base para liberdade e independência pessoal (Arbeit macht frei - o trabalho
liberta). Nesse sentido, a propriedade privada, conquistada de forma
árdua, digna e honrada, isto é, a propriedade conquistada pelo agricultor,
operário e trabalhadores assalariados em geral, não seria necessário aboli-
94 Ressonâncias filosóficas - Artigos

la, pois o desenvolvimento industrial já a destruiu e continuará a destrui-


la.
Entretanto, Marx e Engels se perguntam se o trabalho
assalariado resulta em alguma propriedade privado para o
trabalhador? Segundo eles, não, pois o mesmo, em certa medida cria
o capital e este, por sua vez, é utilizado como uma ferramenta de
exploração do trabalho assalariado e que não se pode aumentá-lo nas
mãos do trabalhador, exceto na condição de nova exploração do
trabalho assalariado:

O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é o mínimo de


salário, isto é, a soma dos meios de subsistência necessária para que o
operário viva como operário. Por conseguinte, o que o operário obtém
com o seu trabalho é o estritamente necessário para a mera conservação
e reprodução de sua vida. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto
Comunista, 1848, p, 32)

Nesse sentido, o trabalho assalariado é certamente o principal,


essencial e fundamental pré-requisito para manter o trabalhador na
existência simples e elementar de trabalhado, isto é, o trabalho assalariado
é a base de sustentação orgânica e sistemática que mantém de “pé” o
sistema de exploração capitalista. Portanto, o comunismo não priva o
homem do poder de se apropriar de produtos da sociedade (propriedade
privada) tudo o que faz é priva-lo do poder subjugar o trabalho de outrem
e das consequentes condições miseráveis desta apropriação, sob a qual
vive o trabalhador, que aliás, vive, meramente, para aumentar o capital, o
qual lhe permite viver somente o quanto o interessa a classe governante.
Entretanto, para que tal abolição da condição da exploração humana e
apropriação de trabalho possa ocorrer, Marx e Engels ressaltam a
importância da privação de liberdade e individualidade burguesa, no que
tange o livre mercado (compre a venda livre), e a condição de produção
burguesa. Pois, na medida em que o livre mercado desaparece, a condição
de explorado do trabalhador também desaparece, o que certamente
também ocorre com a abolição do capital privado, sendo esta a principal
ferramenta de exploração, pois não há como haver trabalho assalariado
quando não há mais capital privado (exceto quando usado como um
produto coletivo, movimentado somente – como último recurso – através
da ação unida de todos os membros da sociedade). Nesse sentido, faz-se
necessário observar que em uma sociedade burguesa o trabalho que visa
subsistência, de acordo com Marx e Engels, “não passa de uma maneira
A relação de partidos... 95

de aumentar o trabalho acumulado” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich,


1848, p, 31). Por outro lado, na sociedade comunista, formada e
fundamentada no movimento comunista unificado, o trabalho não
passaria de uma maneira de ampliar, enriquecer e promover a existência
do trabalhador enquanto trabalhador.

8.2 ABOLIÇÃO SÓCIO-FAMILIAR-CULTURAL

Dentre muitas outras “abolições” são três que possuem grande


destaque, a primeira chamada de abolição ideológica-cultural-libertaria
burguesa, que segundo Marx e Engels tal cultura é “[...] utilizada como
treinamento para se agir como maquina no processo de produção”
(MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, 1848, p, 32); a segunda, deveras
polêmica é chamada de abolição da família burguesa, na qual a sua
fundação se baseia puramente e essencialmente no capital e lucro privado,
na medida em que seu complemento se encontra na prostituição, embora
tal modelo familiar segundo Marx e Engels está fadado a ruir:

No capital, no ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe


para a burguesia, mas encontra seu complemento na supressão forçada
da família para o proletário e na prostituição pública. A família burguesa
desvanece-se naturalmente com o desvanecer de seu complemento, e
uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital. (MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto Comunista, 1848, p, 37)

A priori, o destaque dado a este “tópico” se torna um tanto quanto


obsoleto considerando toda a construção logica e conceitual do referido
Manifesto Comunista, no entanto, tal é a sagacidade de Marx e Engels ao
observar e denunciar a condição submissão da mulher e de sua exploração
por meio da prostituição, mostrando que ambas as condições são
consequências diretas da exploração do proletário pelo burguês, ao notar
que muitas mulheres tornavam-se prostitutas (tendo que interiorizar a
submissão) devido a sua condição social e natural, isto é, ser mulher
significava ganhar menos (condição social) e trabalhar mais; por fim, a
abolição da nacionalidade, a priori tal afirmação causa certo espanto e
perplexidade, no entanto, Marx e Engels ressaltam que “a classe
trabalhadora não possui uma nação” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich,
1848, p, 39) ou seja, não se pode tirar o que não se tem, tal explanação se
justifica perante o eventual e factual processo de desenvolvimento do
capital, o qual tende a acabar com as identidades nacionais e
96 Ressonâncias filosóficas - Artigos

consequentemente com seus “tesouros”, em outras palavras, aquilo que é


caracterizado como nacional é taxativamente extraído (globalizado) e
como consequência desaparece, devido ao desenvolvimento da burguesia,
no que tange o livre mercado mundial. Nesse sentido, o proletário e os
eventuais partidos da classe trabalhadora devem primeiro se unir como
classe e conquistar a supremacia política, constituindo-se como uma
“nação emancipada e unificada”. Desse modo, se exploração de um
indivíduo por outro termina, a exploração de uma nação sobre, também
termina.

8.3 EDUCAÇÃO EMANCIPADORA E PRODUÇÃO


INTELECTUAL

Diante da derrocada queda da família burguesa, a educação


passaria a ser tida como uma educação social não mais como uma
educação do lar. Nessa acepção, o partido comunista asseguraria e
supervisionaria a educação e a disponibilizaria de forma gratuita, em
escolas públicas, se constituindo de fato como a principal ferramenta de
transformação para se reformular papeis sociais vigentes, pois seria
retirado da educação a influência de uma classe governante e deixaria de
ser “[...] utilizada como treinamento para se agir como maquina no
processo de produção” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, 1848, p, 32).
Entretanto, Marx e Engels, observam que a produção intelectual é
de fato uma grande e potencial ferramenta de criação de uma espécie de
“consciência coletiva” ou “consciência-em-comum” que se fundamenta
em “verdades eternas”:

Sem dúvida, - dir-se-á - as ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas,


jurídicas, etc, modificaram-se no curso do desenvolvimento histórico,
mas a religião, a moral, a filosofia, a política, o direito mantiveram-se
sempre através dessas transformações. Além disso, há verdades eternas,
como a liberdade, a justiça, etc, que são comuns a todos os regimes
sociais. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto Comunista, 1848, p,
40)

Além disso, segundo Marx e Engels a produção intelectual e


da consequente “consciência-em-comum” depende necessariamente
da produção material, pois
A relação de partidos... 97

Que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se


transforma com a produção material? As ideias dominantes de uma
época sempre foram as ideias da classe dominante. Quando se fala de
ideias que revolucionam uma sociedade inteira, isto quer dizer que, no
seio da velha sociedade, se formaram os elementos de uma nova
sociedade e que a dissolução das velhas ideias marcha de par com a
dissolução das antigas condições de vida. (MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich, Manifesto Comunista, 1848, p, 40)

Valendo-se de tais premissa, é notório que a produção intelectual


muda de caráter, na medida em ocorre uma mudança de produção
material, Nesse acepção, é possível observar que as ideias
mojoritariamente dominantes de cada época e momento histórico sempre
foram ideias da classe dominante, ideias da classe que detinha seus modos
e meios de produção e que, portanto, controlava a produção material e
aqueles que participavam deste processo, tais premissas levam a crer que:
alterando o processo de produção material e alterando os papeis de quem
participa deste processo, haverá uma mudança de caráter na produção
material e consequentemente a produção intelectual se encarregará da
criação de uma nova “consciência-em-comum” aos moldes do partido
comunista unificado.
Nesse sentido, ideias revolucionarias já estavam contidas antes de
sua revolução, e pós revolução tornaram-se normais. Por exemplo o
mundo antigo, na qual as religiões antigas estavam por acabar e davam sus
últimos espasmos, foram superadas pelo cristianismo este, por sua vez,
deu espaço para ideias antropocêntricas e racionalistas de cunho burguês,
no final do século XVIII (fim do feudalismo). Todavia, qualquer que seja
a forma que a “consciência-em-comum” tenha tomado todas tiveram seu
início no antagonismo de classe e só podem ser apagadas com fim do
supracitado antagonismo de classe, segundo Marx e Engels:

Mas qualquer que tenha sido a forma desses antagonismos, a exploração


de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos
anteriores. Portanto, nada há de espantoso que a consciência social de
todos os séculos, apesar de toda sua variedade e diversidade, se tenha
movido sempre sob certas formas comuns, formas de consciência que
só se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos
antagonismos de classe. A revolução comunista é a ruptura mais radical
com as relações tradicionais de propriedade; nada de estranho, portanto,
que no curso de seu desenvolvimento, rompa, do modo mais radical,
98 Ressonâncias filosóficas - Artigos

com as ideias tradicionais. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto


Comunista, 1848, p, 41)

8.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do processo revolucionário de desenvolvimento do


comunismo, na qual as diferenças classistas já tiverem sido apagadas e toda
a produção ter sido concentrado nas mãos dos proletários unidos, o poder
público perderá o seu caráter político, o partido comunista unido passaria
a possuir o livre poder político. Não obstante, Marx e Engels sugerem
que o proletariado unido tome condição de classe dominante, tirando de
cena as antigas relações de produção e por consequência de tal ação
retiraria também a oposição e antagonismo de classe, de tal modo que
podemos concluir que o papel de classe dominante (agora ocupado pelos
proletários unidos) também seria abolida:

Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do


desenvolvimento e sendo concentrada toda a produção propriamente
dita nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu
caráter político. 0 poder político é o poder organizado de uma classe para
a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se
constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em
classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as
antigas relações de produção, destrói, justamente com essas relações de
produção, as condições dos antagonismos entre as classes, destrói as
classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.
(MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto Comunista, 1848, p, 43)

Portanto, no lugar da sociedade burguesa antiga, com suas classes


e antagonismos, haveria uma associação proletária, na qual o
desenvolvimento livre de cada um seria a condição para o
desenvolvimento livre de todos.
A relação de partidos... 99

REFERÊNCIAS

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Trad. Maria


Lucia Como. 11°. ed. Rio De Janeiro: Editora, Paz e Terra. 1998.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas & o manifesto comunista


de 1848. São Paulo: Editora, Moraes. 1987. p. 101-150.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a


negação do trabalho em Marx. São Paulo: Editora, Moraes. 2007.

ARON, Raymond. O marxismo de Marx. São Paulo: Editora Arx. 2005.

BOITO, JR. A difícil formação da classe operária. São Paulo: Editora, Xamã,
2003. p. 45-78.

ALTHUSSER, L. A favor de Marx. Rio De Janeiro: Editora, Zahar, 1979.


p. 6-32.
IX

A VIDA HUMANA COMO PRESSUPOSTO NECESSÁRIO


PARA TODOS OS DIREITOS HUMANOS

Ronaldo de Oliveira*
José Dias**

RESUMO

A consciência moral é responsável por tornar cada indivíduo humano


responsável por garantir a vida humana. Mas isso contrasta com a
frequente violência que assombra a humanidade nos dias de hoje e
também, como descreve a história, no passado. Como mecanismo
garantidor da vida, da liberdade e de outros direitos humanos, os
indivíduos, usando da racionalidade, criou a sociedade civil como
organização que permitisse a vivência coletiva em paz. Sendo a vida
humana um pressuposto necessário e universal surge a questão “não
matar” como imperativo categórico. A partir disso é razoável refletir sobre
o princípio da legítima defesa ponderando o uso de armas pelo indivíduo-
cidadão. A democracia enfatiza o valor do contrato social, da vontade
popular na legitimidade do poder político e das leis; do socialismo e
liberalismo extraem-se a transformação da sociedade através da
organização coletiva respeitando as liberdades individuais e sociais
consolidando os direitos humanos fundamentais dos indivíduos. Os

* PPGFil – Mestrado, Unioeste – Toledo-PR; e-mail: ronaldodeoliver@hotmail.com


**Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em
Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela
Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito
Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma,
Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da
UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura
em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.
E-mail: jfad_br@hotmail.com; Lattes: lattes.cnpq.br/9950007997056231
102 Ressonâncias filosóficas - Artigos

direitos humanos são valores defendidos por certos documentos ou


legislações nacionais e/ou internacionais como necessários para o
desenvolvimento da pessoa humana preservando a sua dignidade. Um dos
autores que se propôs refletir sobre os direitos humanos fundamentando-
os de maneira jurídica e filosófica foi o filósofo italiano Norberto Bobbio
(1909-2004). O valor primordial é a vida. Garantir a vida requer que “não
matar!” seja uma norma absoluta: um imperativo categórico.

PALAVRAS-CHAVE: Vida Humana; Direitos Humanos; Não Matar;


Democracia; Liberdade.

INTRODUÇÃO

Há uma constante na história da humanidade: a violência. Ao


longo da trajetória humana sempre foi possível constatar que atos e
comportamentos cruéis colocaram a vida humana numa situação de
completa vulnerabilidade. Diante dessa situação caótica que deixa o
indivíduo num permanente medo de ser agredido e morto surgiram a
religião, a moral e os sistemas jurídicos como meios de controlar o “animal
violento, passional e enganador” (DIAS, 2008, p. 124).
No centro das regras religiosas, morais e jurídicas está aquela que
Bobbio classifica como um imperativo categórico que é: Não matarás! O
fundamento desse imperativo categórico e, portanto, absoluto, é a vida,
pois “a vida é o bem primordial, condição para todos os demais valores”
(DIAS, 2008, p. 171). Ora, o não matarás, requer que os indivíduos, por
serem racionais, se organizem em torno de um poder supraindividual com
o intuito de garantir a supressão ou o controle da violência que ameaça a
vida humana e, consequentemente, estabeleçam a paz. A paz é resultado
da vivência de valores comuns que podem ser construídos segundo o
modelo político de sociedade desenvolvido. A Democracia é um modelo
político que permite, em sua estrutura conceitual, o desenvolvimento e a
proteção dos direitos humanos. Contudo, a paz e a democracia são
condições necessárias e suficientes para os direitos humanos; a vida
humana é a condição necessária para todos os direitos humanos
fundamentando-se na dignidade humana.
No meio da questão “não matarás” como imperativo categórico é
razoável refletir sobre o princípio da legítima defesa e, a partir desse
pressuposto, ponderar sobre o uso de armas pelo indivíduo-cidadão. Será
que em nome do princípio da legítima defesa os civis têm o direito – ou o
A vida humana... 103

dever – de usar armas como instrumento de defesa? Esclarecer


conceitualmente o princípio da legítima defesa ou o princípio “vim vi
repellere licet” ajuda a ordenar a reflexão em torno dos direitos humanos e
em defesa do direito fundamental: a vida.
O ser humano transcende a sua animalidade quando preserva em
si e nos outros a vida. Conserva-se a dignidade humana não apenas não
matando, mas também possibilitando os meios necessários e adequados
para que alguém possa viver. No entanto, aquele que transgride o
imperativo ético não matarás perde a própria dignidade humana, descendo
assim “abaixo do nível das feras” (DIAS, 2008, p. 167).
Enfim, objetiva-se discorrer sobre o princípio ético “não matarás”
e refletir sobre a legítima defesa1 como derroga ou não deste imperativo
categórico. Antevendo que no entendimento de Norberto Bobbio aquilo
que se chama “legítima defesa” não derroga o imperativo categórico por
excelência “Não matar!”, pois o princípio da legítima defesa “garante ao
agredido a faculdade de defender-se com força ‘proporcional” (DIAS,
2008, p. 178).
A relação dos direitos humanos com a democracia é muito
próxima. Um sistema político sem o reconhecimento dos direitos dos
cidadãos não pode ser denominado de democracia.

9.1 A DEMOCRACIA

A democracia é uma forma de governo que desde tempos remotos


faz parte da teoria política e, atualmente, adquiriu “uma dimensão que
ultrapassa o significado de ‘forma de governo’ para indicar um modo de
ser e de pensar” (ABBAGNANO, 2007, p. 277). De uma maneira geral, a
democracia é uma atitude política que se propõe pensar e, em muitos
casos, agir contra o absolutismo e seus correlatos.
A democracia tem sido considerada uma forma política que
permite aos humanos o desenvolvimento de suas aptidões, talentos e
potenciais visando sua realização mais ampla possível mediante a
discussão política e do poder.
Como forma política alternativa ao absolutismo, a democracia se
desenvolveu a partir do século XVIIII de maneira gradual e mediante
organização social, militar e política. Exemplos disso são a Guerra de
Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789)
que adota a democracia em sua estrutura jurídica nacional (OLIVEIRA,
1 Em latim: vim vi repellere licet (é lícito repelir a força com a força).
104 Ressonâncias filosóficas - Artigos

2007, p. 366); no século XX, aspirando a uma legislação norteadora


internacional, a Organização das Nações Unidas redigiu a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) que foi aprovada e subscrita pelos
Estados membros, incluindo o Brasil, enfatizando a democracia como
princípio fundamental garantidor dos direitos humanos.
As reflexões modernas e contemporâneas sobre a democracia se
deram sob as perspectivas do liberalismo e do socialismo tendo como os
principais pensadores Locke, Espinosa, Kant, Tocqueville e J. Stuart Mill.
A reflexão na perspectiva liberal da democracia enfatiza as liberdades
individuais em relação ao Estado; a reflexão na ótica socialista da
democracia evoca a igualdade entre os seres humanos sendo os principais
pensadores dessa vertente Rousseau e K. Marx (ABBAGNANO, 2007, p.
277).
O aspecto forte do sistema democrático é seu constitutivo
conceitual da isonomia e da isegoria. A isonomia é o princípio que
estabelece a igualdade de todos perante a lei; e a isegoria é princípio que
garante o direito de expressar os diversos pontos de vista dos cidadãos.
A democracia pode ter diversas matrizes como, por exemplo, a
liberal ou social.

9.1.1 Democracia Liberal

O liberalismo tornou-se muito conhecido a partir da Revolução


Francesa (1789). De uma maneira ampla o liberalismo é a “doutrina que
tomou para si a defesa e a realização da liberdade no campo político”
(ABBAGNANO, 2007, p. 696). Consequentemente o Estado, dentro
dessa concepção, é limitado quanto aos seus poderes e funções mediante
a lei.
A primeira fase do liberalismo é marcada pela busca e realização
da liberdade individual coincidindo a realização pessoal com o bem
coletivo, isto é, havia uma “coincidência entre interesse privado e público”
(ABBAGNANO, 2007, p. 696). A segunda fase do liberalismo acentua o
aspecto estatismo diante do individualismo da primeira fase. Um dos
autores proeminentes desse segundo momento é Rousseau
(ABBAGNANO, 2007, p. 696).
O liberalismo entendido como sendo a doutrina que tomou para
si a realização das liberdades individuais na política, na economia e em
outros setores da sociedade, recebe uma crítica contundente: é “a via das
liberdades sem justiça” (DIAS, 2008, p. 36). Sendo assim entende-se que
A vida humana... 105

o liberalismo e a democracia não são interdependentes, pois um Estado


liberal pode não ser democrático, mas um Estado Democrático existente
é liberal. Oliveira afirma que

em sua origem, o liberalismo não se confunde com a democracia. De


fato, nem todos os Estados originariamente liberais tornaram-se
democráticos. Entretanto, os Estados democráticos existentes foram
originariamente liberais (2007, p. 366).

O liberalismo democrático é uma via política em que há espaço


para a proteção e vivência dos direitos humanos fundamentais,
principalmente as liberdades individuais, e ao mesmo tempo há espaço
para a participação direta ou indiretamente dos cidadãos nas tomadas de
decisões importantes.

9.1.2 Democracia Social

O socialismo preconiza uma transformação da sociedade em bases


coletivistas. Opõe-se ao liberalismo principalmente ao da primeira fase que
enfatiza o individualismo. Mas Bobbio refletiu sobre essa oposição
conceitual e propôs uma síntese entre liberalismo e socialismo.
O socialismo defendido por Marx é uma etapa necessária para se
alcançar o comunismo no qual haverá uma verdadeira democracia
reconhecendo, de fato, a vontade e interesses do povo ou da maioria das
pessoas, o proletariado. Oliveira afirma que “a doutrina marxista entende
que a democracia como a melhor forma de governo, mas isso só é possível
sob o socialismo” (2007, p. 367). Mas o socialismo real produziu não só
uma ditadura do proletariado, mas até mesmo a ditadura sobre o
proletariado contradizendo a proposta de democracia no seio da teoria
socialista.
Desse modo, no sistema socialista a transformação social, coletiva,
sobrepõe-se às vontades individuais. Os interesses individuais são
condicionados aos valores da coletividade. Ora, sendo assim, nesse
sistema há justiça social, mas não há liberdades individuais (DIAS, 2008,
p. 36).
106 Ressonâncias filosóficas - Artigos

9.1.3 Democracia Socialista-Liberal

Apesar das características conceituais do liberalismo e do


socialismo, Bobbio definiu-se como socialista-liberal, pois conjugou
liberalismo e socialismo. Segundo a visão de Bobbio é possível “chegar a
uma integração dos direitos de liberdade com as exigências de justiça
social, dois princípios necessários de uma democracia completa, não
somente formal, mas também substancial” (DIAS, 2008, p. 55). Com a
democracia social unem-se a liberdades individuais com a necessidade de
justiça social como propôs Norberto Bobbio.
Pensar em uma democracia socialista-liberal destaca os aspectos
positivos de cada um dos conceitos, a saber, da democracia, do socialismo
e do liberalismo. Da democracia enfatiza o valor do contrato social, da
vontade popular na legitimidade do poder político e das leis; do socialismo
e liberalismo extraem-se a transformação da sociedade através da
organização coletiva respeitando as liberdades individuais e sociais,
consolidando os direitos humanos fundamentais dos indivíduos.

9.2 DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos são valores defendidos por certos


documentos ou legislações nacionais e/ou internacionais como
necessários para o desenvolvimento da pessoa humana preservando a sua
dignidade. Um dos autores que se propôs refletir sobre os direitos
humanos fundamentando-os de maneira jurídica e filosófica foi o filósofo
italiano Norberto Bobbio (1909-2004). O valor primordial é a vida.
Garantir a vida requer que o imperativo “não matarás!” seja norma
absoluta.
Para Norberto Bobbio (1909-2004) “Não matar” é um princípio
ético categórico. Esse pensador recorreu ao uso da razão para
fundamentar esse princípio e isso causou espanto porque nessa temática
era esperado que um pensador crente (religioso) e, não laico, pudesse
defender tal princípio como um preceito religioso. Numa entrevista
Bobbio foi provocado e ele respondeu mediante outra pergunta
justificando sua postura intelectual e ética frente à necessidade de defender
o princípio “Não matarás!”, quinto mandamento do decálogo judaico-
cristão, como princípio ético categórico:

Pergunta: Toda a sua longa atividade, professor Bobbio, os seus livros,


o seu ensinamento sob o testemunho de um espírito firmemente laico;
A vida humana... 107

imagina que terá surpresa no mundo laico por estas suas declarações?
Bobbio lhe respondeu com outra pergunta:
Eu queria perguntar qual surpresa pode existir no fato que um leigo
considere como válido em sentido absoluto, como um imperativo
categórico, o “Não matar!”; e me surpreendo que os leigos deixem aos
que creem o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar
(BOBBIO, in: DIAS, 2008, p. 19).

A conclusão mais imediata que se pode tirar desse princípio


categórico é que “Não matar!” é um dever absoluto. Nenhuma ameaça
direta, intencional ou provocada, à vida deve ser aceita. Pois, em se
tratando dos direitos humanos, a vida humana é o direito fundamental por
excelência como condição necessária para todos os demais valores (DIAS,
2008, p. 29). Havendo o dever de não matar deve-se intuir que há o direito
de viver. A vida é um valor essencial e necessário para que se possa
experienciar as potencialidades de cada ser humano. Privando o indivíduo
da vida, ceifa-lhe a condição primeira e necessária de expressar-se no
mundo e na convivência humana.

9.2.1 Gerações dos Direitos Humanos

Norberto Bobbio afirma que as conquistas dos direitos humanos


são históricas, ou seja, os direitos humanos nascem em certas
circunstâncias dependendo da luta de “novas liberdades contra velhos
poderes” e entende, ainda, que os direitos humanos nascem gradualmente,
“não todos de uma vez e nem de uma vez para sempre” (DIAS, 2008, p.
152).
Ao longo da tradição, pode-se perceber que os direitos humanos
são conquistas realizadas mediante o avanço da reflexão e do
desenvolvimento moral dos homens. À medida que as liberdades
individuais são cerceadas pelo poder político absolutista, acentua-se a
necessidade de defender as liberdades, limitando os poderes do Estado e
empoderando os indivíduos com a afirmação dos direitos humanos.
Entende-se que “aos pedidos de limites do poder do Estado
correspondem os direitos de liberdade ou a um não-fazer da parte do
Estado, que é chamada a primeira geração dos direitos” (DIAS, 2008, p. 153).
Dias acrescenta que o direito à vida pertence a essa primeira geração,
todavia em sentido negativo: Não matarás! Isso equivale a dizer “Deixai
viver!” (DIAS, 2008, p. 153).
108 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A segunda geração dos direitos humanos refere-se “às


interferências protetoras da parte do Estado, correspondem os direitos
sociais ou a um fazer positivo da parte do Estado” (DIAS, 2008, p. 153).
Nesse aspecto, o fazer por parte do Estado ganha sentido positivo o direito
à vida, pois, além de “deixar viver”, é transformado em direito a viver.
Sendo assim o Estado deve “promover a vida; deve dar a todos os
cidadãos as condições necessárias para viver” (DIAS, 2008, p. 153).
Os direitos da terceira geração são os direitos ligados “à
solidariedade, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz internacional,
o direito a um ambiente protegido, o direito à comunicação” (DIAS, 2008,
p. 157). Esses direitos surgiram a partir do momento em que os direitos à
vida e a viver e às liberdades tradicionais se tornaram ameaçados por
situações novas provocadas pelo “aumento do saber e das suas aplicações
sobre a Natureza e sobre o Homem” (DIAS, 2008, p. 157).
A quarta geração dos direitos surge frente à preocupação com o
homem atual, mas também em relação ao homem de amanhã, do futuro.
Dias (2008, p. 158) afirma que “à quarta geração dos direitos pertence o
novíssimo direito que pretende proteger o patrimônio genético do
Homem do amanhã”. Com o domínio técnico da engenharia genética “que
não se contenta somente em modificar a Natureza fora do Homem, mas
pretende modificar a estrutura genética mesma do Homem” (DIAS, 2008,
p. 158) surgiu a necessidade urgente de salvaguardar a proteção do direito
ao patrimônio genético do indivíduo humano.
Os direitos humanos foram sendo gradualmente conquistados
como se pôde notar pelas gerações dos direitos. A historicidade dos
direitos se eleva de uma pretensão à satisfação. Sobre isso Dias (2008, p.
159) destaca que “Bobbio observou que uma coisa é a pretensão de haver
um direito e outra coisa muito diferente é a sua satisfação. Ao mesmo
passo que aumentam as pretensões de direitos, a sua proteção fica
igualmente mais difícil”. A cada novidade no campo dos direitos humanos,
torna-se mais complexa a garantia e satisfação dos Direitos Humanos, pois
“os direitos sociais, da segunda geração, são mais difíceis de proteger do
que os direitos de liberdade, da primeira geração. O mesmo vale para a
terceira e quartas gerações dos direitos” (DIAS, 2008, p. 159). A
complexidade aumenta à medida que se pretenda extrapolar os domínios
nacionais em busca de garantir a satisfação dos Direitos Humanos numa
esfera internacional porque “a proteção internacional é mais difícil que a
proteção interna, no próprio Estado” (DIAS, 2008, p. 159).
A vida humana... 109

9.2.2 Fundamentos dos Direitos Humanos

O imperativo categórico (KANT, 2004) “Não matar!” é absoluto,


não tem derroga. Se houvesse exceção não seria imperativo categórico,
mas imperativo hipotético. Segundo Dias (2008, p. 165) “Bobbio afirmou
que o princípio ético ‘Não matar!’ é válido em sentido absoluto, como um
imperativo categórico, porque a vida humana é o valor primordial
enquanto condição para todos os valores”.
Bobbio, frente ao imperativo categórico, postula numa linguagem
jurídica a necessidade de uma norma primária e de uma norma secundária.
A norma primária estabelece o próprio imperativo, ordenando “Não
matar!”. A norma secundária estabelece as consequências à transgressão
do imperativo categórico “Não matarás!” determinando que “quem matou
ou deixou morrer deve ser punido com uma determinada pena” (DIAS,
2008, p. 166).
O ser humano como destinatário dos direitos humanos pode tê-
los violados. Quando o direito fundamental é violado, transgredido, a
norma secundária se dirige “à consciência mesma do sujeito ético, capaz
de consciência e autoconsciência” (DIAS, 2008, p. 167). Ao violar o
imperativo categórico “Não matar!” “a punição do transgressor é a perda
da dignidade humana: quem mata, desce abaixo do nível das feras” (DIAS,
2008, p. 167).
O direito fundamental por excelência é a vida. Todos os demais
direitos, sejam os individuais ou coletivos, só são passíveis de
concretização mediante a vida e o viver. No entanto, o que fundamenta
em última instância os direitos humanos é a Dignidade Humana. Dias
(2008, p. 231) destaca que “a ‘Dignidade Humana’ permanece imutável
sempre e em toda parte, absolutamente incondicionada: absoluta e
universal”. E acrescenta que “esta dignidade absoluta deve,
necessariamente, ter um fundamento igualmente absoluto: sua humanitas.
A humanidade de cada Homem é o ‘único’ valor humano absoluto”
(DIAS, 2008, p. 231). No entanto,

o nosso conhecimento dessa realidade humana absoluta é histórico e


relativo: é a essência do Homem conhecida na ‘sua’ Cultura. A
historicidade, portanto, relatividade pertence à humanitas-conhecida,
enquanto se revela ao longo da aventura humana (DIAS, 2008, p. 231).

O imperativo categórico “Não matarás!” impõe a todos os seres


humanos um dever sublime e perfeito de todos protegerem a vida de
110 Ressonâncias filosóficas - Artigos

todos, uns dos outros. O cumprimento tem um escopo maior que é


proteger o bem maior – a vida humana. Isso porque a vida humana é a
condição necessária para que todos os demais direitos possam ser
efetivados (DIAS, 2008, p. 365).

9.3 A LEGÍTIMA DEFESA

A história da humanidade é marcada pela violência, não obstante


no ordenamento jurídico desde tempos remotos haver o imperativo “não
matar”. Não matar os membros do mesmo grupo era um dever; contudo
matar um “estrangeiro” que ameaça hostilmente o grupo não era só um
direito, mas um dever (DIAS, 2008, p. 171).
Surge uma contradição com relação aos direitos humanos já que
todos têm direito à vida. Além de todos terem direito à vida (direitos da
primeira geração), têm também o direito a viver (direitos da segunda
geração). Diante disso é dever de todos os indivíduos e do Estado
reconhecer e garantir os direitos fundamentais. A contradição surge em se
constatar que “Não matar!” é um imperativo categórico e que em algumas
situações esse imperativo sofre “exceções”, como por exemplo, no
princípio da legítima defesa.
Em um Estado de Direito Democrático o indivíduo – ou a
sociedade – quando se sentir lesado, violentado e prejudicado por outrem
deve recorrer às instâncias instituídas por meio de processo através do qual
se debate os argumentos a favor e contra a queixa formalizada (DIAS,
2008, p. 176). Sendo assim, o indivíduo ou “a sociedade não tem o direito
de matar por legítima defesa, porque a legítima defesa nasce e se justifica
somente como resposta imediata e na impossibilidade de agir
diversamente” (DIAS, 2008, p. 176).
O entendimento de Bobbio, segundo Dias, em relação a alguma
exceção ao imperativo categórico “Não matar!” é que o princípio da
legítima defesa ou o “princípio vim vi repellere licet garante ao agredido a
faculdade de defender-se com força ‘proporcional’” (DIAS, 2008, p. 178).
Entende-se, então, que o princípio da legítima defesa não permite matar
propositalmente o agressor, pois “a morte do agressor no ato de legítima
defesa como entendeu Bobbio, em sintonia com a tradição moral, é
sempre acidental, ou seja, consequência da defesa” (DIAS, 2008, p. 178).
Portanto, a legítima defesa não defende ou obriga matar o
agressor, mas faculta defender a própria vida ou de outrem repelindo o
agressor com força proporcional. No caso em que, da ação defensiva,
A vida humana... 111

resultar a morte do agressor, esse desfecho será “acidental” e não


“intencional” (DIAS, 2008, p. 179). Sendo assim, ao imperativo categórico
“Não matar!” não há exceção ou derroga; o princípio da legítima defesa
não autoriza matar, mas apenas defender-se.

9.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em busca de uma vivência coletiva harmoniosa, os seres humanos


se arranjaram em organizações políticas e sociais que garantissem a
sobrevivência de diversos grupos de humanos. O Estado como instituição
política tornou-se ao longo da história uma invenção que se relacionou,
e/ou se relaciona, com os indivíduos reais de maneira diversa a depender
de como foi ou é concebido. Entretanto, o Estado é algo superior às forças
de cada indivíduo tomado isoladamente, pois possui o uso legítimo da
força física.
A relação do Estado com os direitos humanos é, muitas vezes,
tensa. Como um ente superior à força individual do cidadão, o Estado
pode garantir os direitos humanos fundamentais, mas pode também violá-
los de maneira irreversível. Nesse cenário é importante que se tenha uma
concepção de Estado que esteja atrelada ao reconhecimento, à proteção e
à efetivação dos direitos humanos. A democracia como forma política é
coerente com a defesa do Estado de direito. Nesse modelo o poder
político é distribuído de maneira a garantir que as liberdades sejam
asseguradas pelo Estado.
“Não matarás!” é um imperativo que se impõe aos indivíduos
humanos e também às instituições políticas. Em instituições democráticas
é dever garantir a vida e o viver dos cidadãos. Diante do que foi exposto
anteriormente, nem mesmo em nome da legítima defesa – vim vi repellere
licet – é lícito defender-se de um agressor que ameaça os direitos humanos,
principalmente o direito primordial que é a vida.
Uma questão intrigante que provoca debates acalorados é a
permissão ou não do uso de armas letais por civis. Os defensores do
armamento de civis alegam que, com o crescente índice de violência
urbana ou rural, o cidadão tem direito de se defender daqueles que
ameaçam com uma violência extrema que pode tirar-lhe a vida usando
armas letais.
O argumento, aqui sintetizado, apresenta ao menos duas questões
que merecem ser destacadas à luz do imperativo categórico “Não
matarás!”. A primeira questão diz respeito ao papel do Estado. Uma das
112 Ressonâncias filosóficas - Artigos

funções fundamentais do Estado democrático de direito é garantir que os


direitos humanos, fundamentalmente o direito à vida e a viver, sejam
assegurados. É de fundamental importância que o Estado assuma sua
função de reconhecer, assegurar e proteger os direitos humanos, mas sem
que para isso recorra aos instrumentos que violem o que se deveria
garantir.
A segunda questão refere-se ao cidadão ter direito ao princípio da
legítima defesa recorrendo à arma letal. Com o aumento da violência e da
criminalidade cada pessoa pode defender-se do agressor, já que o Estado
não garante a segurança da vida dos cidadãos. Esse tipo de argumento
confronta diretamente com o imperativo categórico “Não matarás!”, pois
em caso algum há derroga ou exceção desse princípio absoluto. Como foi
exposto acima, o princípio da legítima defesa – vim vi repellere licet – não
autoriza matar o agressor. O que fica evidente é que a legítima defesa é um
princípio que sustenta o uso lícito da força frente a agressão dos direitos
humanos de alguém, porém de maneira proporcional. O intuito da ação
defensiva não seria matar o agressor, mas defender-se ou defender um
inocente.
Recorrer ao princípio da legítima defesa para justificar e legitimar
a morte daqueles indivíduos que desrespeitam os direitos humanos é uma
transgressão humana que torna vulnerável a vida, direito primordial
enquanto condição para todos os direitos humanos.
Em suma, refletir sobre o Estado democrático de direito e sua
relação com os cidadãos pode estimular o crescimento da consciência
moral dos indivíduos e, consequentemente, estimular a vivência solidária
e respeitosa entre as pessoas. “Não matar!” é garantir a vida e deixar viver
tanto pelo Estado quanto pelos cidadãos.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2007.

BOBBIO, Norberto. O Conceito de Sociedade Civil. Tradução de C. N.


Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

_______. Qual Socialismo? Discussão de uma alternativa. São Paulo: Paz e


Terra, 1988.
A vida humana... 113

_______. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. São


Paulo: Paz e Terra, 1982.

DIAS, José Francisco de Assis. Não Matar: O princípio ético não matar
como imperativo categórico no Pensamento de Norberto Bobbio (1909-
2004). Sarandi: Humanitas Vivens, 2008.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo:


Martin Claret, 2004.

OLIVEIRA, Samuel Antonio Merbach. Norberto Bobbio: Teoria


Política e Direitos Humanos. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 19, n.
25, p. 361-372, jul./dez. 2007. Disponível em:
<www2.pucpr.br/reol/index.php/rf?dd99=pdf&dd1=1795>. Acesso
em: 16/10/2017.
X

CETICISMO ACADÊMICO E A DIALÉTICA NEGATIVA

Anderson Lucas dos Santos Pereira*

RESUMO

Este trabalho possui como intuito esboçar as características da escola


neoacadêmica antiga. Como é sabido, o ceticismo foi uma das vertentes
que predominou durante o período helênico, logo após a grande fama das
teorias dogmáticas clássica de Platão e Aristóteles. Com o desígnio de
refutar as teorias que se mostravam dogmáticas na época, Arcesilau e logo
após Carnéades, a partir do método dialético iniciado pelo jovem Sócrates,
refutavam diversos argumentos das teorias que se mostravam criteriosas,
fundamentalistas, categóricas de sua época. Elevando o método dialético
aos limites da negatividade, os neoacadêmicos proporcionaram uma visão
de mundo própria de um tempo de insegurança, no qual as teorias clássicas
haviam perdido seu ‘poder’, pois, não conseguiam explicar o fundamento
da verdade em si.

PALAVRAS-CHAVE: Ceticismo; Nova Academia; Dialética.

A questão de que podemos considerar Sócrates um cético é


clássica dentro da história do pensamento. Muitos filósofos posteriores
como Diógenes Laércio e Cícero consideram que a nova academia foi de
fato a primeira escola que podemos considerar legitimamente cética, pois,
segundo tais pensadores, Pirro nada mais teria sido que um homem
preocupado com sua existência dentro de um âmbito ético, com o intuito
de conduzir sua vida ao sumo bem (ataraxia). Diferentemente de Pirro, os
primeiros neoacadêmicos carregavam consigo toda a tradição da academia
platônica, Sócrates era uma grande referência para tais filósofos. O
método dialógico repercutido pelo jovem Sócrates, baseado nos elenchos,
teria sido rememorado por tais novos filósofos e o idealismo platônico
perdido seu encanto. O método dialético socrático havia sido elevado aos

* Unioeste Toledo; e-mail: lukas_andi@hotmail.com


116 Ressonâncias filosóficas - Artigos

limites da negatividade, baseando-se em uma única ‘verdade’, a de que na


realidade não podemos alcançar nenhuma verdade. Até mesmo os
resquícios da verdade epistemológica que Sócrates nos mostrava poderiam
ser postos em dúvida, apenas a questão em sua negatividade radical
sobrava da pura suspenção de Arcesilau, o primeiro neoacadêmico,
perante um mundo repleto de ilusões e enganos. Arcesilau nos mostrava
uma visão de mundo totalmente obscura, no qual, não poderíamos
conceber nenhuma clareza sobre o ser que os entes poderiam possuir. A
existência nesse sentido seria propriamente um abismo, um lugar sem
fundo, oco em seu cerne.
Logo após a fase “pitagorisanzante” iniciada por Platão na
academia, Arcesilau, herdeiro da mais vasta tradição platônica, não se
absteve em apenas repetir as palavras de seu mestre. Segundo relatos
biográficos, Arcesilau conheceu Pirro de Élis e com isso, provavelmente,
retirou muito proveito de tal figura tão emblemática. Segundo Sexto
Empírico, não há dúvidas que Arcesilau foi um grande cético sucessor do
método pirrônico, nos afirmando que tal pensador derivava da estirpe
cética pirrônica. Arcesálias nasceu em Pítane, na Eólia, por volta de 315 a.
C. Viajou a Atenas com o intuito de estudar retórica, mas, tomou gosto
pela filosofia tornando-se pupilo de Teofrasto. Também admirava as
epopéias homéricas, foi um poeta abrupto, recitando os cantos gregos
esporadicamente. Aprendera matemática com Autocólio, e depois em
Atenas com Hipônico. Possuia uma viva admiração por Platão, do qual
professou seu ensino sua morte por volta de 240 a.C.
Timón também o chamava de cético, afirmando que a nova
academia era a continuadora do pirronismo pratico, e que se estabelecia
em uma união entre uma escola que primeiramente partia de um sistema
ideal, voltada ao dogmatismo e o ceticismo que até então não possuía
nenhuma doutrina. Mas, contudo, o próprio Arcesilau negava e repudiava
o parentesco com o pirronismo, afirmando que seus ensinamentos eram
independentes e que segundo nos conta Cícero, a suposta criação da
epoche era atribuída a Arcesilau e não a Pirro. Mas, contudo, se formos
analisar a tradição platônica-socrática veremos que a raiz da suspenção do
juízo já se encontrava nos ensinamentos do primeiro Sócrates, nos
diálogos denominados aporéticos. Os principais diálogos aporéticos são:
da piedade (Eutífron), da temperança (Cármides), da beleza (Hipias
Maior). Os diálogos dizem-se aporéticos devido ao desfecho indefinido
que se constata no final de cada livro. Pelos argumentos que Sócrates
desenvolve durante os diálogos, a partir do método irônico e refutativo,
Ceticismo acadêmico... 117

ele chega à finalidade: mostrar ao locutor que ele nada sabe sobre a
Verdade. Podemos com isso constatar a gênese da suspensão sobre a
verdade desde os primeiros diálogos, que não possuíam ainda consigo a
formação de um sistema dogmático, que “definia” a questão da verdade
de uma maneira ideal e lógica, semelhante à suspensão cética.
Arcesilau nos dizia que nada pode ser apreendido pelo intelecto
nem pelos sentidos, pois, tais fontes de experiências não possuem nenhum
estatuto da verdade autoevidente, ou seja, uma verdade em si. A verdade
como autoevidência da ideia era uma suposição defendida principalmente
por Platão em seus diálogos, no qual, a verdade poderia ser concebida a
partir da reminiscência das ideias, ou seja, como um condicionamento para
o rememorar de uma ideia que por si mesma é fundante de si. A ideia
platônica parte da noção de permeabilidade, ela é atemporal não no
sentido de estar fora do mundo, mas sim por estar no transcendental, ou
seja, como condição de possibilidade para o fenômeno. Esta noção de
autoevidência platônica foi criticada por Arsesilau e Carnéades, pois eles
diziam que não há possibilidade de existir algo como uma ideia
autoevidente, clara em si mesma, possibilitante do mundo fenomênico,
pois, se fosse possível tal ideia, ela iria pôr-se à luz, apresentaria-se a nós e
não se esconderia. Como dito, para Arsesilau o mundo é visto como uma
eterna ilusão no qual não podemos conceber nada claramente, a
ascendência da ideia pela mente humana é algo impossível para ele,
contrapondo a noção de Platão de que o homem poderia assim como um
fósforo acender-se, intuir a ideia perfeita condicionante da sensibilidade
(doxa). Em uma leitura de Santo Agostinho sobre os neoacadêmicos,
constatamos que o sábio cético é aquele que de fato não assente nada
como certo, verídico e claro, pois, a figura do sábio apresenta-se como
aquele que nada erra, que não cai na vã ilusão dos sentidos e das paixões,
mas que de certa forma nega a possibilidade do conhecimento positivo
sobre algum fen. Tudo torna-se incerto e impreciso:

[...] resulta que o sábio não dá seu assentimento a coisa alguma, porque
ele necessariamente erra – e isto é impróprio ao sábio – ao assentir a
coisa incertas. E não somente afirmavam eles [os acadêmicos] que tudo
é incerto [...] que não se pode apreender a verdade, isto o deduziam de
uma definição do estoico Zenon, segundo a qual só se pode ter por
verdadeira aquela representação que é impressa na alma pela coisa ,es,a
de onde se origina [...] o verdadeiro é reconhecido pelos traços que o
falso não pode ter. Que tais traços não se encontram em nossas
118 Ressonâncias filosóficas - Artigos

impressões, empenharam-se em demonstrar em muita tenacidade os


acadêmicos (HP, 1, 235).

As noções epistemológicas sobre o verdadeiro e o falso já eram


colocadas em questão por Sócrates em seu método dialético, pois, o
‘trabalho’ do filósofo segundo Sócrates é análogo ao da parteira, parir a
verdade em si e para si, em seu fundamento e em sua ação prática. Sócrates
a partir de suas questões performativas conduzia o interlocutor pelo
caminho da verdade fundamental, desarticulando-se das opiniões alheias
que a existência nos oferece. Esse desarticular-se só é possível perante a
aceitação da ignorância que o sábio constata quando se volta ao
conhecimento, pois, enquanto o homem não souber de sua ignorância
perante o mundo, cairá sempre na vã ilusão do conhecimento e na
arrogância da adulação que os sofistas pregavam. Levando a noção
socrática aos extremos, Arcesilau negava qualquer forma de conhecimento
pela via oral, nunca mostrando o que ele próprio entendia por verdade,
porém, sempre instigando dialeticamente as outras pessoas para que
dissessem o que pensavam sobre. A forma dialética como conhecimento
e investigação foi de fato a que se consagrou como método skeptico dentro
do ceticismo acadêmico. Enquanto em Pirro a noção de investigação é
propriamente silenciosa e factual (aprendemos vivendo nossa existência),
em Arcesilau constatamos a forma dialética como investigação e expressão
das formas do conhecer.
Se no primeiro Sócrates podemos constatar inclinações perante a
investigação do conhecimento mais puro possível, em Arcesilau por mais
que haja toda a negação do conhecimento da verdade em si, podemos
notar a avidez da figura do filósofo, daquele que sempre está em busca da
verdade, investigando-a por caminhos nunca percorridos, sempre se
expandindo pelos vários formatos de interpretação do ente que podemos
presentar. Percebemos bem essa noção de expansão do conhecimento
tanto em Pirro como em Sócrates e nos primeiros neoacadêmicos. Tais
figuras geralmente nos mostram que a noção de verdade vai para além do
que uma simples definição conceitual, diferentemente do que pensam os
filósofos dogmáticos. Enquanto em Arcesilau presenciamos a experiência
dialética como forma de fugir da noção cristalizada que o conceito nos
oferece (como ideia ou noção fundamentada), nas escolas dogmáticas
como a de Zenão por exemplo, o sistema lógico mostra-se fundamentado
e edificado, desvencilhando-se da noção da busca da verdade. A figura do
dogmático mostra-se como daquele pensador que possui em suas mãos a
verdade, ou seja, a verdade já está disposta a tal pensador.
Ceticismo acadêmico... 119

Segundo pensadores como Cícero e Carlos Lévy, o ceticismo


acadêmico surgiu não apenas para repercutir os ensinamentos do jovem
Sócrates, mas sim propriamente para o embate com as escolas dogmáticas,
principalmente contra o estoicismo. Noções como a de apathea são
confrontadas por Arcesilau, pois, enquanto os filósofos estóicos diziam
que a moral e negação dos sentidos eram importantes para o
conhecimento da verdade, os céticos diziam que nem partindo desta base
propriamente racionalista podemos constatar a verdade por ela mesma em
sua autoevidência:

[...] a presença de Zenon determinou, a nosso ver, de uma dupla maneira


a filosofia de Arcesilau: (1) ela torna-se “uma reação” ao estoicismo,
capaz de explicar o reencontro com a dialética socrática; (2) a
importância do estoicismo é tanta que a epoché dos acadêmicos teria sido
elaborada a partir de premissas estóicas (BICCA apud Lévy 1990:297)

Vemos com isso que o ceticismo acadêmico não teve apenas


influência de Sócrates ou Pirro, mas também do próprio estoicismo que
mostrava-se como uma escola dogmática em sua época. O conceito epoché,
tendo origem estóica, supostamente teria influenciado Arcesilau para a
radicalização da maneira ‘fraca’ que os estoicos utilizavam tal conceito.
Enquanto em Zenão temos uma suspenção apenas dos sentimentos, das
emoções, das paixões, em Arcesilau temos a suspenção em sua
radicalização total, tanto dos sentimentos quanto da racionalidade. À epoché
peri panton é um tipo de suspenção que deve acontecer a qualquer
momento, em qualquer ocasião, para qualquer possibilidade que se
apresenta, pois a certeza é impossível. Constatamos que há dois motivos
para a suspenção radical de Arsecilau seja necessária. (1) O mundo mostra-
se rodeado por uma eterna incompreensão sobre os entes, (2) que o ato
de suspender-se seria o mais prudente perante a um mundo incerto. Nos
acadêmicos posteriores de Arcesilau, a noção de suspensão teria sido
deixada de lado, pois, a metafísica platônica havia sido rememorada e
retomada por tais últimos acadêmicos.
Alguns intérpretes como Cuissin e outros que interpretam
Arcesilau como um sucessor de Sócrates que honrou o método dialético,
dizem que o termo epoché foi criado pelo próprio cético como forma de
evidenciar e elevar aos limites o método de seu antecessor Sócrates,
dedicando-se a refutar todas as teorias dogmáticas (principalmente a dos
estóicos), colocando a figura do acadêmico como a de um mero sofista.
Assim como Sócrates já foi acusado de sofismas diante de seu método,
120 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Arcesilau por motivos análogos foi considerado apenas um homem que


possuía uma linguagem meramente convincente, persuasiva, indutiva,
assim como a dos sofistas quando dão conselhos. Nesse sentido, vemos o
grande abismo que separa a Arcesilau de Pirro: enquanto Pirro nos dizia
que a questão sobre a verdade epistemológica deveria ser suspendida, no
sentido de abstraída da razão, ou seja, não questionada, Arcesilau nega
totalmente que a verdade pode ser conhecida. À uma suspensão do
neoacadêmico não apenas é radicalizada em relação a dos estóicos, mas
também perante Pirro que preferia a equipolência, não a radicalidade.
Enquanto os acadêmicos usavam a dialética como um mero jogo de
palavras, Pirro apenas suspendia-se caindo em afasia. Vemos que a partir
desta interpretação de tal cético a noção de filósofo aos moldes socráticos
é totalmente esquecida, não passando de uma ironia completa todo o
método, pois, se sabe que iremos cair em uma suspensão de nossos juízos.

Os adeptos da nova Academia, embora afirmem que todas as coisas são


não apreensíveis, ainda diferem dos céticos, conforme parece provável,
no que diz respeito a esta afirmação mesma, de que todas as coisas não
são apreensíveis, pois eles afirmam isso positivamente, enquanto o cético
acha possível que algumas coisas sejam apreendidas. Mas eles diferem de
nós muito claramente em seu juízo sobre as coisas como boas ou más.
Pois os Acadêmicos não descrevem uma coisa como boa ou má da
mesma maneira que nós fazemos: pois eles o fazem com a convicção de
que é mais provável que o que eles chamam de bom seja realmente bom,
e não ao contrário, e ao mesmo tempo no caso do mal; ao passo que,
quando descrevemos uma coisa como voa ou má, não o alegamos como
uma opinião de que o que afirmamos é provável, mas simplesmente nos
conformamos vida não dogmaticamente, de modo a não sermos
impossibilitados de agir. (...) E, embora tanto os acadêmicos quanto os
céticos afirmem estar persuadidos de certas coisas, a diferença entre as
duas filosofias não é menos óbvia. Pois, ‘estar persuadido’ tem diferentes
significados: significa não resistir, mas simplesmente seguir sem nenhum
impulso ou inclinação forte, como se diz que o jovem acredita em seu
tutor: mas, algumas vezes, significa assentir uma coisa por escolha
deliberada e com uma espécie de simpatia devida a um modo de vida
extravagante (HP, 1, 231).

Mas, contudo, em um ponto os dois filósofos entram em acordo:


tanto Arcesilau quanto Pirro defendiam que deveríamos suspender o
nosso juízo, pois, tanto os argumentos contra, quanto os argumentos a
favor de uma teoria são equivalentes ente si. Talvez uma das grandes
Ceticismo acadêmico... 121

diferenças entre tais filósofos se baseia no fato de que Arcesilau justificou


tal teoria dialeticamente, utilizava com o mesmo intuito socrático de
“parir” a verdade de dentro do interlocutor e não de alcançar a total
mediania entre os contrários, visando à apatia:

[...] Em Sócrates e em Platão, existem seguramente traços aporéticos,


posições de dúvida, bruscas suspensões de juízo: mas não quase sempre
de maneira irônica e maieuticamente finalizadas ao encontro da verdade
ou, em todo caso, à preparação medida desse encontro. E em Sócrates a
dúvida é sempre meio e jamais fim. Certamente um acadêmico poderia
extrair dos diálogos platônicos um verdadeiro catálogo de expressões,
momentos e passagens dubitativos: mas esses em todo caso, não
poderiam assumir um significado cético, no sentido que aqui damos ao
termo, a não ser prescindido de toda a parte construtiva e positiva, que
não é pequena em Sócrates, e até mesmo prepoderante em Platão. [...].
(HP, 1, 237).

A questão da razoabilidade também se contrasta entre tais


filósofos: para Pirro o assentimento resolvia o problema da conduta social,
bastava-se consentir o devir e encerrar-se nele. Já Arcesilau propõe a
questão do critério razoável (análogo a prudência aristotélica), no qual a
sabedoria nas escolhas, a razoabilidade, as ações retas, proporcionam a
felicidade. Vemos que enquanto Pirro se encaminha na direção da
observação, do empirismo em seu sentido mais pleno, Arcesilau parte da
análise incisiva, inserindo-se em um movimento dialético, baseado no
método argumentativo socrático. Vemos no filósofo acadêmico a questão
da disputa argumentativa, muito próxima a linguagem persuasiva dos
sofistas, mas, diferencia-se dos sofistas no sentido de que tais retóricos
tomavam a argumentação como fim individualista, pretensioso, enquanto
Arcesilau visava um fim moral (questão da razão reta) e um fim anti-
epistemológico, no sentido de que para tal acadêmico era impossível
conhecer a Verdade racionalmente ou sensualisticamente.
Ele admitia a máxima do estóico Zenão: “o sábio, se é digno desse nome,
não tem opiniões, mas certezas. Mas a divergência entre Zenão e Arcesilau
constatava-se no momento em que o cético acadêmico admitia que não
existia nenhuma possibilidade de conhecimento da Verdade, pois não há
representação compreensiva, de natureza clara. Na medida que não temos
nada claro, devemos nos renunciar de toda a crença absoluta e cega.
“Definitivamente”, Arcesilau não é pirrônico:
122 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Se devermos dar fé também ao que dele se conta, dizem que, à primeira


vista mostrava-se um pirroniano, mas, na verdade, era um dogmático; e
porque punha à prova os companheiros por meio da aporética, para ver
se tinham boa disposição para aprender os dogmas postos pela natureza,
lançava mão da doutrinha de Platão. De onde também conta que Aristo
dizia dele: “Na frente Platão, atrás Pirro, no meio Diodoro, justamente
porque utilizava a dialética de Diodoro, mas era sem dúvida um
platônico (HP, I, 234).

Contudo, até Sexto Empírico nega sua afirmação anterior, pois,


constata um “verdadeiro” pirronismo em Arcesilau.

Arcesilau [...] parece-me compartilhar dos raciocínios pirronianos, a


ponto de serem idênticos o seu e o nosso objetivo. E, com efeito, ele
não se pronuncia sobre a existência nem sobre a não existência das
coisas, nem julga preferível, com relação à credibilidade ou a não
credibilidade, uma coisa á outra, mas em tudo suspende o seu juízo (HP,
I, 232).

Os vários teóricos e especialistas sobre ceticismo divergem na


categorização de tal acadêmico, pois, de um lado acusam-no de desleal,
insidioso, ou seja, cético por “aparência”, mas por “trás” ainda
permanecendo um dogmático rígido aos moldes na antiga academia. Por
outro lado, o consideram um cético fervoroso aos moldes pirrônicos, que
teorizou as dimensões céticas.
O ceticismo pirrônico, como demonstrei, parte no sentimento da
abdicação de qualquer manifestação como solução para o problema moral
da felicidade. Ao contrário, o ceticismo de Arcesilau esvazia-se na dialética,
no atrito das teorias contrárias, constatando a impossibilidade do
conhecimento cientifico da coisa. Podemos entender o ceticismo de tal
acadêmico como uma inversão dos dogmas afirmativos e confiantes que
as escolas que confiavam em seus sentidos ou na racionalidade. Arcesilau
nega cabalmente qualquer possibilidade de experienciar a verdade por ela
mesma. Nas palavras de Geovanni Reale
Mas afinal, o que Arcesilau realmente é? Como ter uma nítida
impressão sobre tal filósofo? Seria um pensador sério ou apenas um hábil
orador? Seria um cético ou um dogmático? Podemos tanto fazer dele um
dogmático sigiloso, baseado em uma fundamentação platônica, quanto um
cético “autentico” de estirpe pirrônica. Podemos dizer que tal dialética era
apenas um disfarce, sobreposto por cima de uma verdade irrefutável,
seguidora do cânone platônico. Cícero nos faz alusão a uma espécie de
Ceticismo acadêmico... 123

“dogmatismo misterioso” em tal acadêmico, mas não de um dogmatismo


platônico. Nos falava que a própria forma argumentativa que Arcesilau
utilizava partia do pressuposto de que não sabemos nada sobre a verdade,
negando a mesma:

O ceticismo de Arcesilau é de pouco fôlego e de vida limitada: Vive só


na medida em que destrói o adversário, e depois, morto o adversário, cai
com ele, exânime, sobre o campo deserto (REALE, 172, 2011).

Concluímos que após apresentação de tais elementos


constitutivos, tanto da teoria pirrônica quanto da nova academia, as
grandes divergências que há entre elas. Vemos que os acadêmicos, mesmo
partindo de uma intuição destrutiva, nunca renunciaram a escola
platônica? Serial possível haver no cerne da aniquilação algum
ensinamento esotérico? Ou podemos pensar que tais filósofos não
renunciaram de seu nome por motivos competitivos? Seja como for, se
realmente existiu alguma causa última, posterior a destruição, não possui
sua origem no pirronismo. Antes de buscar a guerra, Pirro buscava a paz.

REFERÊNCIAS

EMPÍRICO, Sexto. Hipotipóses Pirrônicas.


http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-
rio.br/index.php/oqnfp/article/view/130

BICCA, Luiz. Ceticismo Antigo e Dialética. Editora: PUC-Rio, 2016

BROCHARD, Victor. Os Céticos gregos. Editora: Odysseus, 2009

REALE, Geovanni. Estoicismo, Ceticismo e Ecletismo. Editora: Loyola, 2011


XI

CHARLES PARSONS E A FILOSOFIA DA ARITMÉTICA DE


KANT

Danilo Fernando Miner de Oliveira*

RESUMO

Parsons publica seu ensaio Kant's philosophy of Arithmetic (1992) em oposição


direta às teses da matemática elaboradas e defendidas pelo finlandês Jakko
Hintikka sobre a fundamentação da matemática de Kant. Nesse ensaio,
Parsons busca demonstrar que a interpretação formalista da matemática
de Kant não se sustenta diante de algumas passagens da Crítica da Razão
Pura. Se as teses da matemática dependem das formas puras do espaço e
do tempo, assim como o próprio Kant demonstrou na Estética e outras
passagens da Crítica, como poderia a matemática ser sintética e, mesmo
assim, sua natureza ser puramente lógica? Parsons está de acordo com
Kant de que os juízos sintéticos, além de possibilitarem a extensão do
saber, denunciam a existência dos objetos. Ora, como um objeto
matemático, construído através das formas puras do espaço e do tempo,
poderia fornecer um saber tautológico e analítico? Além da contestação
das teses de Hintikka, uma das preocupações centrais de Parsons está na
busca da compreensão do motivo que leva Kant a afirmar que a
construção simbólica (aritmética e álgebra) depende da sensibilidade.
Como a construção simbólica, que não instancia seu objeto, sustentada na
forma pura do tempo, pode ser, em última instância, sensível?

PALAVRAS-CHAVE: Construção Simbólica; Intuição; Espaço; Tempo

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: apoiosophia@gmail.com


126 Ressonâncias filosóficas - Artigos

11.1 CHARLES PARSONS E A FILOSOFIA DA ARITMÉTICA


DE KANT

Após as polêmicas considerações publicadas pelo finlandês


Hintikka, Charles Parsons publica o ensaio denominado Kant's philosophy of
Arithmetic (1992), anunciando sua oposição às teses de Hintikka sobre a
construção matemática de Kant. Além da contestação e contra-
argumentação de tais teses, Parsons busca saber, essencialmente, qual a
relação entre a aritmética e as intuições sensíveis. Entender a relação de
tais intuições sensíveis e aritmética não apenas permite compreender as
teses de Parsons, como também compreender melhor as teses do próprio
Kant sobre as formas da intuição sensível. É importante, para a finalidade
de nossa pesquisa, saber por qual motivo a construção que ocorre na
geometria é diferente da construção conceitual na aritmética. Por que Kant
sustentou que a aritmética depende das intuições sensíveis? Parsons sabe
que essa resposta está próxima do motivo de Kant ter considerado a
matemática sintética e não analítica, outro assunto sobre o qual se detêm
os comentadores.
Parsons traz algumas passagens para demonstrar que Kant
relaciona intimamente as características de imediaticidade e singularidade
junto ao conceito de intuição. Além disso, intuição aparece, em várias
passagens da Crítica, como uma espécie de representação (Vorstellung), isto
é, como um conteúdo mental que não se reduz aos conceitos, a qual,
sobretudo na Crítica, está relacionada aos conteúdos mentais conscientes
perceptivos.

O termo genérico é a representação em geral (repraesentatio). Subordinado


a este, situa-se a representação com consciência (perceptio). Uma
percepção que se refere simplesmente ao sujeito, como modificação do
seu estado, é sensação (sensatio); uma percepção objetiva é conhecimento
(cognitio). O conhecimento, por sua vez, é intuição ou conceito (intuitus
vel conceptus (A320/B376).

É possível se falar em graus de representações conscientes e essas


diferem entre si de acordo com suas referências. Apenas a percepção
consciente refere-se diretamente ao seu objeto e é singular: trata-se de uma
percepção consciente, mas não de um conhecimento. A modificação que
essa percepção desperta no sujeito é a sensação, isto é, uma percepção
sensível subjetiva concebida através das formas puras da percepção
externa e interna, mas que não constitui um saber determinado. Para que
Charles Parsons... 127

tal ação ocorra, exige-se o concurso dos conceitos puros do entendimento.


Em acordo com Kant, é da união entre o conceito e de sua intuição
correspondente que se pode falar em percepções objetivas, ou seja, em
determinação conceitual.
São dessas considerações que Parsons, em acordo com Kant,
mostra que nossa mente apenas pode ter intuições, ou representações, dos
objetos quando nós somos afetados por eles. Em oposição às teses de que
o espaço e o tempo possam ser objetos independentes do sujeito ou
noções adquiridas empiricamente, Kant se empenha, na Estética, para
mostrar que são noções despertadas nos sujeitos que as concebe. Assim, e
apenas desse modo, Kant pode afirmar os conhecimentos sintéticos a
priori da matemática. Parsons, concordando com Hintikka, adverte-nos da
presença de certa passividade da capacidade de receber representações,
uma vez que dependem dessa afecção dos objetos físicos. Além de essa
passividade denunciar a finitude de nosso humano conhecimento, ela
também revela que os objetos percebidos são assim estruturados como
objetos de nossa humana consciência, o que equivale a dizer que se
apresentam na unidade da representação resultante de uma síntese
espontânea realizada pelo entendimento de tudo aquilo pode ser dado em
nossa intuição.
Um aspecto bastante importante que Parsons apresenta sobre as
formas da intuição e que ajuda a compreender a razão de Kant relacionar
a aritmética com a sensibilidade está no fato de que as formas da intuição
fornecem conhecimentos necessários que não se extraem de simples
inferências lógicas.

As formas da intuição fornecem a base para certas verdades necessárias,


em particular àquelas da geometria, no sentido de que, se as formas de
intuição não fossem como elas são, as verdades em questão não se
sustentariam, e se não tivéssemos uma certa "percepção interna" sobre
nossas formas de intuição, nós não as conheceríamos1.

O fato de Kant assumir que há certos elementos que não são


expressos unicamente pela lógica o conduz à conclusão que de o espaço e
o tempo devem conter uma natureza diversa das proposições lógicas. Isso
permite Kant aceitar que a geometria não seja analítica, já que a forma pura

1 The forms of intuition provide the basis for certain necessary truths, in particular those
of geometry,in the sense that if the forms of intuition were not as they are the ttuths in
question would not hold, and if we did not have a certain insight into our forms of
intuition, we would not know them.
128 Ressonâncias filosóficas - Artigos

do espaço se apresenta de forma diversa e irredutível à determinação


conceitual, sem prejuízo de sua validade universal. Mais do que isso, para
Parsons, a existência de elementos em geometria, que não podem ser
demonstrados por mero raciocínio lógico, expressa a noção kantiana de
que as proposições geométricas são dependentes da intuição espacial,
sintéticas e denunciam a existência de objetos que se efetivam em sua
aparição através das e nas formas puras do espaço e tempo.
Além da negação da natureza puramente formal da matemática,
contrariando as teses de Hintikka, Parsons assume a tese kantiana de que
as proposições de existência são sempre sintéticas. Kant marca uma
decisiva separação entre ciência e filosofia, demonstrando porque a
matemática se aplica aos fenômenos naturais, porém não pode fornecer
nenhum elemento de objetividade para as ideias metafísicas. Juízos como
"Deus é onipotente" não apenas representam a forma lógica de que "S é
P", mas, para além disso, nos mostram que tal predicação denuncia a
possibilidade da existência. Se o predicado não é pensado por identidade
e a negação do juízo não gerar uma contradição, esse juízo é sintético.
Assim, requer a participação da intuição para que, embora seja um
conceito logicamente possível, se mantém vazio em conteúdo. É por essa
razão que as ideias metafísicas são pensadas sem contradição, mas não são
conhecidas; tal processo foi negado por Kant.
Mas podemos conhecer nossas próprias estruturas que
possibilitam toda experiência sensível? Não basta saber que as formas da
intuição são diversas, Parsons ainda assume que temos, de algum modo,
uma visão interna (insight into) que nos permite perceber nossa própria
estrutura de percepção, tanto interna quanto externa. Assim como há
afecções do sujeito sobre si, também há percepção dessas formas puras da
sensibilidade na medida em que elas são afetadas, seja externamente pela
forma do espaço, seja internamente através do tempo. Mais do que isso, a
aplicação dessas verdades não pode ser estendida para além das formas da
intuição, pois essas são válidas para os objetos estruturados em nossa
condição formal da percepção, não agregando qualquer propriedade nas
coisas-em-si.
Parsons ainda apresenta algumas dificuldades em relação à
aritmética, ao alegar que não é evidente e simples de compreender o
porquê de ela ser sintética, ainda que seja menos complicado justificar sua
constituição a priori. Se a geometria depende das formas puras da intuição
para a condição da ostentação de objetos espaciais, com a aritmética e a
álgebra tal ostensividade é dispensada, dependendo exclusivamente da
Charles Parsons... 129

condição formal interna, isto é, do tempo. Ora, se a álgebra trabalha com


grandezas em geral, o que justifica sua legítima aplicação exclusiva aos
objetos da experiência possível? É dessa dificuldade que surge a indagação
de Parsons: qual a relação entre a aritmética e a sensibilidade?
Uma possível explicação está no fato de a definição de Kant de
analiticidade ser mais restritiva do que as definições mais atuais, como a
de Frege, por exemplo. A acusação de Parsons é a de que Kant não
formula com precisão o seu conceito de analiticidade, dificultando as
considerações sobre tal conceito. Ainda limitado aos moldes aristotélicos,
pensar a relação entre sujeito e predicado, nas considerações de Kant,
sobre juízos analíticos requer a compreensão de que o predicado já está
contido no sujeito, pois é pensado por identidade como seu pertencente.
Para Parsons, tais definições expressam a visão lógica restritiva, própria de
seu aparato moderno, que está presente nos pensamentos de Kant,
limitados ao seu tempo.
O exemplo apresentado em A7/B11 nos ajuda a compreender
melhor a razão de “7 + 5 = 12” ser uma proposição aritmética sintética:
por um processo de contagem, parte-se do 7 ao 12 por sucessivas adições
de unidade por unidade. Para Parsons, cada unidade atua como uma
instância particular de um grupo restrito de objetos, que, porém, apenas
podem ser dados na intuição, como ocorre no recurso utilizado por Kant
ao recorrer aos dedos da mão na contagem. Contudo, ainda não fica claro
o motivo desse processo não poder ser demonstrado através de um
processo diverso e puramente lógico.
Isso nos conduz a outra dificuldade. Kant alega que a aritmética
não possui axiomas, apenas proposições sintéticas indemonstráveis e
imediatamente certas.2 Ao que parece, Kant associa tudo aquilo que não
pode ser demonstrado logicamente ao âmbito das proposições

2 É o que Kant diz claramente em A163/B204: "Porém, no que se refere à quantidade


(quantitas), ou seja, à resposta à pergunta acerca de quanto uma coisa é grande, não há, na
verdade, a esse respeito, axiomas propriamente ditos, embora muitas dessas proposições
sejam sintéticas e imediatamente certas (indemonstrabilia)." Essa é uma passagem citada
por Parsons para embasar sua defesa de que Kant nega que haja axiomas em aritmética
justamente porque há casos em que, dada a imediaticidade da consciência de que da soma
de quantidades iguais e da subtração dessas mesmas quantidades tem-se o mesmo
resultado. Porém, em uma explicação bastante rebuscada, Kant nos diz que as
proposições da aritmética, embora sintéticas, não são tão gerais quanto as proposições
geométricas, por isso, não são chamadas axiomas, mas fórmulas numéricas. Embora
7+5=12 não seja uma proposição analítica, sua formulação engendra uma única operação
de síntese do homogêneo e não pressupõe relações, como o espaço geométrico.
130 Ressonâncias filosóficas - Artigos

axiomáticas; ainda assim, não está clara a razão da aritmética depender da


sensibilidade. Um indicativo consistente apresentado por Parsons revela
que o apelo kantiano à intuição para a construção de conceitos parece
cumprir um papel não apenas de verificação das premissas lógicas, mas
também de condição de instanciação existencial, atuando como condição
de evidência.3 Ainda assim, o próprio Parsons alega que o texto de Kant
não apresenta explicações claras sobre essa considerável hipótese.
Em oposição declarada às teses da matemática de Hintikka,
Parsons alega que a teoria da matemática, sobretudo em relação à álgebra,
pode oferecer alguma sustentação às afirmações de Hintikka, contudo,
isso não é nada decisivo. Por essa razão, Parsons se empenha em mostrar
que há outras formas de compreender as alegações sobre as quais Hintikka
se apoia em sua interpretação logicista da matemática. Para tanto, precisa
mostrar algumas diferenças consideráveis entre a geometria e a aritmética,
determinando as características relevantes de cada uma delas. As
considerações de Kant sobre a geometria podem ser aceitas mais
facilmente, provavelmente, porque a construção geométrica é ostensiva:
constrói seu objeto na medida em que o sujeito determina a condição
formal do espaço, esse mesmo espaço onde percebemos sensivelmente os
objetos particulares, mas que possuem relações geométricas válidas
universalmente.
Pode-se, dessa maneira, representar o universal no particular,
sobre um papel, por exemplo, e derivar proposições sintéticas mediante a
síntese do homogêneo dessa condição formal do espaço. Ao ostentarmos
figuras no espaço, o caráter intuitivo e sintético da geometria, segundo
Parsons, fica ainda mais evidente. Algo diferente ocorre com a construção
aritmética, em que sua relação com a sensibilidade não parece ser tão
evidente assim:

O conteúdo da aritmética não sugere imediatamente um caráter especial


ou essa conexão com a sensibilidade. Claro que, em primeira instância,
fala-se de números, e operações, e relações puramente abstratas -

3 Para Kant, a determinação da existência é de natueza sintética. A noção de evidência


aparece nessa passagem da Doutrina do Método em que se afirma que "de conceitos a priori
(no conhecimento discursivo) nunca pode resultar certeza intuitiva, isto é, evidência, por
mais que o juízo possa ser apoditicamente certo. Só a matemática, portanto, contém
demonstrações, porque não deriva de conceitos o seu conhecimento, mas da construção
de conceitos, isto é, da intuição que pode ser dada a priori em correspondência aos
conceitos". (A 734 B 762).
Charles Parsons... 131

igualdade, adição, subtração, etc. Então a questão é - qual é o campo de


aplicação dos números? (PARSONS, 1992. §V. P58)

A indagação de Parsons é fundamental para entendermos a razão


de a aritmética, mesmo realizando operações com grandezas em geral, ainda
estar completamente formulada no âmbito da sensibilidade, de acordo
com Kant. Para o autor de Konigsberg, a matemática também é uma
construção fenomênica. A relação com a sensibilidade reside no fato de
construirmos um conceito somente na medida em que este pode ser
representado na intuição. Representar é apresentar a intuição que lhe
corresponde. Exibir algo é já pressupor o arranjo de um saber na estrutura
formal que permite toda exibição: representar na intuição, para os fins de
nosso conhecimento objetivo, somente pode ser sensível.
Uma das razões para Parsons estar disposto a concordar com
Kant, quanto à aplicação dos números e quanto ao caráter sintético das
matemáticas aparece nessa passagem da obra de Parsons: “pensar a
presença de proposições existenciais é uma das perspectivas em jogo nas
considerações de Kant sobre matemática, mas não é claramente
diferenciada de outras” (PARSONS, 1992. §VI. P61). É justamente no ato
dessa construção que os conceitos são desenvolvidos/preenchidos e a
existência dos objetos matemáticos é exibida (mostrada). É necessária a
aplicação aos objetos para que as proposições gerais não sejam vazias, e
no próprio ato da construção ocorre a edificação dos objetos: sua
determinação conceitual e denotação existencial4.
Conforme nosso aparato cognitivo, consideramos um objeto de
existência como algo que não pode ser predicado, pois nos diz mais
respeito à posição do entendimento do que em relação a um objeto-em-
si. É assim, de certo modo, que Parsons compreende o conceito de
intuição kantiana como uma espécie de evidência; um recurso não
redutível à análise, no entanto que fornece um conteúdo demonstrável na
construção conceitual. Dessa maneira, garante-se a objetividade de um
conceito, além de sua demonstração - parece-me mais como exibição -

4 Como o próprio Kant afirma na passagem citada por Parsons: "A primeira mantém-se
simplesmente em conceitos gerais, esta última nada pode fazer com o mero conceito,
mas apressa-se a recorrer à intuição, na qual considera in concreto o conceito, embora não
de modo empírico, mas simplesmente numa intuição que apresentou a priori, isto é,
construiu, e na qual tudo aquilo que resulta das condições gerais da construção deve ser
válido também de uma maneira geral para o objeto do conceito construído." Pois foi
construído conforme esse conceito e garantiu sua significação universal, ainda que
instanciado particularmente, no caso da geometria.
132 Ressonâncias filosóficas - Artigos

sintética de um conteúdo construído, conforme a esse conceito.


Estaremos diante da efetividade de um objeto quando o ato de sua
estruturação, nas formas puras do espaço e tempo, se concretizar.
Parsons busca entender de que modo a natureza da construção
matemática, sobretudo em aritmética, depende do tempo (sentido
interno), considerando que algo diverso da construção geométrica ocorre
na construção simbólica, já que essa forma de construção não instancia
seu objeto, como em geometria. Parece que Parsons alega, com bastante
clareza, a dificuldade de se falar da aritmética de Kant, uma vez que o
filósofo alemão nos dá mais explicações sobre a geometria, nas passagens
da Estética e na Doutrina, do que propriamente sobre a álgebra e aritmética.
Em relação à construção geométrica, fica mais evidente compreender a
razão do ato da síntese de seus objetos através da determinação da forma
espacial. No entanto, no caso da aritmética, ainda há obscuridade em
delimitar completamente seu âmbito de atuação, se levarmos em
consideração o fato de Kant negar que suas proposições contenham
axiomas, mesmo contendo postulados.
Kant não considerou a aritmética uma teoria especial do tempo,
por mais que tenha considerado a geometria a ciência especial do espaço;
o que é textualmente demonstrável é que ambas dependem da sucessão
temporal e ocorrem nelas para que os atos de síntese se efetivem.
Retomando o exemplo de Kant, 7+5=12, Parsons mostra que toda
operação exige sucessão, e somente em tal ato podemos exibir o número
12, seja através do recurso à mão, na intuição empírica, ou na imaginação
produtiva. Uma possível resposta oferecida à pergunta: "como a aritmética
depende da sensibilidade?" reside no fato de que as intuições empíricas
atuam "como se fossem" puras na medida em que representam uma
aplicação válida universalmente, isto é, representam uma estrutura abstrata
determinante. Como diz ele:

Tal percepção fornece à mente, antes, a mais completa realização


possível de um conceito abstrato. Uma importante questão sobre a
filosofia da aritmética de Kant é se realização comparável existe para
além dos limites da escala da percepção concreta (PARSONS, 1992, p.
65).

Portanto, o algebrista, ao proceder por construção simbólica,


alcança certos resultados por mera manipulação de símbolos, apenas
possível por uma representação intuitiva análoga aos seus conceitos. Os
símbolos são os objetos manipuláveis da intuição, próprios da construção
Charles Parsons... 133

simbólica.5 Parsons enfatiza que os critérios de clareza e evidência estão


intimamente ligados ao modelo de construção simbólica apresentado por
Kant que proporciona à álgebra e à aritmética uma certeza não encontrada
em metafísica, por exemplo. Pode-se notar diante dos argumentos
apresentados que Parsons, em uma via distante de Hintikka, mantém o
conceito de intuição de Kant próximo da sensibilidade, mesmo no caso da
álgebra. Afasta, desse modo, a tese formalista de Hintikka de sua
perspectiva de construção do saber matemático. Os esclarecimentos aqui
desenvolvidos, longe de qualquer consenso, demonstram a dificuldade de
compreensão que tais conceitos envolvem e oportunizam,
simultaneamente, a compreensão dos desdobramentos que o conceito de
intuição e construção adquirem na filosofia crítica de Kant.

REFERÊNCIAS

ALLISON, Henry E. El Idealismo transcendental de Kant: una interpretación


y defensa; prólogo y traducción de Dulce María Granja Castro. -
Barcelona: Anthropos; México: Universidad Autónoma Metropolitana -
Iztapalapa, 1992.

BONACCINI. Juan. O Argumento da Estética e o Problema da Aprioridade:


Ensaio de um comentário Preliminar in: Comentários à obra de Kant:
Crítica da Razão Pura. Org. Joel Thiago Klein - Florianópolis: NEFIPO,
2012.

CAYGILL, HOWARD. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral, revisão


técnica: Valério Rohden. Rio de janeiro: Editora Jorge Zahar, 2000.

5 Essa posição de Kant, a de que os símbolos são objetos da intuição presentes na


construção simbólica, não é novidade em seus textos, conforme Ernesto Giusti
demonstra em seu trabalho denominado A filosofia da matemática no Preisschrift de Kant: um
estudo sobre as interpretações de Parsons e Hintikka. "Essa afirmação apresenta um problema
Preisschrift, já que possui um aspecto formal (a correção da manipulação dos símbolos e
as relações necessárias entre eles), mas também um aspecto sensível, pois os símbolos
são, eles próprios, objetos de intuições sensíveis no vocabulário crítico...". Ainda que no
texto de 1764 os símbolos não possuam a mesma relação com a sensibilidade que Kant
evidência na Crítica.
134 Ressonâncias filosóficas - Artigos

GIUSTI, ERNESTO MARIA. A Filosofia da matemática no Preisschrift de Kant:


um estudo sobre as interpretações de Parsons e Hintikka. SP: EDUC;
FAPESP, 2004.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. trad. Manuela Pinto dos Santos
e Alexandre Fradique Morujão. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2008.

__________. Kritik der reinen Vernunft. Suttgart: Reclam, 2006.

__________. Uma investigação sobre a evidência dos princípios da


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XII

CONCEPÇÃO ONTOLÓGICA DO CORPO ENQUANTO


IMANENTE AO MUNDO: UMA BREVE ANÁLISE DAS
TEORIAS DE GABRIEL MARCEL E MERLEAU PONTY A
LUZ DO SPINOZISMO

Angeliana Patrícia de Souza*

RESUMO

A teoria de substância para Espinosa, na qual, tudo que existe, existe em


si e por si, nos possibilita compreender o homem enquanto imanente a
tudo que existe. Marcel e Merleau-Ponty propõem uma fenomenologia da
participação, onde o ser está ligado ao corpo e este é o que liga o ser ao
mundo, logo, todo conhecimento que temos de corpo é parcial, pois não
conhecemos de forma objetiva, conhecemos o mundo através de nossa
experiência, de nossa participação imanente a ele. Para essa perspectiva,
alegar que podemos conhecê-lo tecnicamente significaria dizer que somos
separados dele, o que, para os autores, seria inconcebível.

PALAVRAS-CHAVE: concepção ontológica do corpo; fenomenologia


da participação; corpo-objeto.

INTRODUÇÃO

Com base na teoria spinozana de substância, o presente trabalho


tem como objeto de estudo o corpo em sua concepção ontológica do
ponto de vista de dois grandes filósofos franceses: Gabriel Marcel e
Merleau-Ponty.
A filosofia espinosana rompe com o tradicional pensamento de
transcendência de Deus, da natureza e da razão. Spinoza considera que o
sistema de crenças e preconceitos conflituosos de sua época são gerados

*Aluna especial da disciplina: Metafísica do conhecimento II, do Mestrado em Filosofia


da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Toledo – PR; e-mail:
Angeliana2@gmail.lcom
136 Ressonâncias filosóficas - Artigos

pelo medo e pela esperança e fortemente alimentado pela religião.


Espinosa parte do conceito de substância (a qual ele também chama de
Deus), ou seja, de um ser que existe em si e por si mesmo e por isso é
causa de todas as coisas e estas são parte imanente dela, tudo que existe,
existe nela e por ela. (CHAUÍ, 2006)
Avançando na história da filosofia, surge uma corrente de
pensamento fenomenológica, reconhecida a partir de Edmund Husserl,
apresentando-se como contrária ao cientificismo da época. Como observa
Cremasco (2009, pag. 52), a fenomenologia seria “uma ciência dos
verdadeiros começos, que responderia às questões humanas, uma
verdadeira ciência ‘positiva’”, caracterizada como um “idealismo
transcendental no qual a consciência constitui o mundo” e a verdade só
pode ser encontrada na essência de todas as coisas.
Gabriel Marcel radicaliza a fenomenologia husserliana e o
idealismo crítico, instituindo uma “filosofia concreta” em que o existir é
uma experiência fundamental. O centro da filosofia marceliana não está
apenas na “verdade” fora dos sujeitos, de modo a ser puramente
apreensível. O filósofo vai além, descreve a metafísica como a “filosofia
da participação no plano ontológico”, ou seja, do ser enquanto parte
imanente do mundo físico.
Trata-se de uma união, recíproca e não justaposta, de filosofia e
dramaturgia em Marcel, “drama e pensamento se confundem”, aquele
prende e desloca o espectador, tirando-o de sua zona de conforto e o
introduzindo no espetáculo de forma a sentir, rir e chorar; possibilita a
compreensão da visão fenomenológica do autor. Na arte assim como na
vida, tomamos parte de uma realidade que “nos habita e transcende”, ou
seja, tanto está em nós quanto fora do acessível a nós (SILVA, 2015, p.
877).
Os pensamentos de Maurice Merleau-Ponty possuem muitos
pontos em comum com a obra de Marcel, esse autor demonstra grande
interesse em filosofar sobre o corpo. Contemporâneo a Jean-Paul Sartre,
a teoria merleau-pontyana interroga sobre os enigmas em torno da
percepção, tendo a inovação da fenomenologia de Husserl (MACHADO,
2010).
Concepção ontológica do corpo... 137

12. 1 DO MONISMO ESPINOSISTA AOS CONSTRUCTOS DA


CONCEPÇÃO ONTOLÓGICA DE CORPO.

O conceito inicial de substância, proposto por Aristóteles, reconhece duas


espécies de substâncias. O homem compõe a primeira substância, enquanto que as
substâncias segundas são universais e indicam a essência das primeiras. A partir de
uma nova concepção do conceito de substância, a teoria spinozana define
todas as coisas como imanentes de uma mesma substância, razão única de
todas as coisas. (FRAGOSO, 2001)
De acordo com Espinosa, corpo e alma não são substâncias
separadas, mas sim efeitos imanentes das atividades de dois atributos
substanciais de igual força e potência, estando ambos sob as mesmas leis
e sob os mesmos princípios que se exprimem diferenciadamente em cada
um deles. O corpo humano é um modo finito do atributo Extensão,
formado por várias estruturas complexas que geram uma unidade de
conjunto e equilíbrio. De modo dinâmico o equilíbrio interno é obtido
através das mudanças internas continuas entre os órgãos e também por
relações externas continuas com outros corpos, formando um sistema de
ações e reações. A essa capacidade de afetar outros corpos e por eles ser
afetado o autor dá o nome de afecção (CHAUÍ, 1995).
A alma é ideia dessas afecções corporais, não como ideia de uma
máquina corporal que ela observa de fora, mas, de forma imanente, é
consciência dos movimentos, das mudanças, das ações e reações de seu
corpo na relação com outros corpos e das mudanças internas ocasionadas
pelas relações externas. A ideia é descrita pelo autor como o ato de pensar
mediante afirmações ou negações que podem surgir de ideias adequadas
ou imaginativas (CHAUÍ, 1995).
Apesar de algumas divergências teóricas entre Espinosa, Marcel e
Merleau-Ponty, entre elas a crítica ao saber absoluto, a posição de Merleau-
Ponty se aproxima da teoria spinozana no que tange à experiência do
corpo imanente ao mundo. Por sua vez, para Marcel, enquanto meu, meu
corpo não é objeto que pode ser descrito por um observador, não é
possível se apropriar da definição de corpo porque não o observamos,
somos parte dele - não possuo meu corpo, sou meu corpo. Nesse sentido,
há a união de todos os corpos como matéria única. Partindo dessa leitura,
se não podemos nos apropriar do tema corpo, significa que ninguém pode
e sendo assim, todos somos corpo, todos somos mente, não há substância
diferente, não somos diferentes do outro, por isso ele também não pode
nos conhecer, não existe outro ser abstrato. Com essa afirmação, juntam-
138 Ressonâncias filosóficas - Artigos

se todos os indivíduos em um só, e o pensamento é parte integrante dele,


tal qual a teoria proposta por Espinosa.
Não me aprofundarei na conceituação do corpo-objeto, da
percepção e experiência do mundo, pois esses conceitos serão melhores
apresentados em títulos próprios, de acordo com os ensinamentos
propostos pelos autores. Neste momento, cabe-me apenas entrelaçar as
teorias.
Para Merleau-Ponty (1999, p. 474), a experiência do outro só é
possível na encarnação, fora dela somos um só:

[...] ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele
encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias
intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as
partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de
outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único
fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento
o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo.

Ambas as teorias dos filósofos franceses têm como intuito findar


o dualismo cartesiano, pois este projeta a experiência, como pensamento,
em algo transcendental e, portanto, separada do corpo. Na teoria
spinozista, apesar da junção de mente e corpo como partes imanentes da
substância, há a separação desses dois conceitos em atributos
diferenciados da substância.
Para Spinoza, corpo e alma são um só e sua união decorre de
ambos serem partes determinadas de uma mesma substância. Ao corpo
cabe a iniciativa do conhecimento pelo ato de imaginar, que decorre das
relações entre as causas internas e externas (afecções). Já à alma cabe o
conhecimento por meio do pensamento, mas esta também é influenciada
pelas ações do corpo que geram nela ideias afetivas ou sentimentos, sendo
que o interesse de ambos é a existência e tudo quanto contribui para
mantê-la. Essa potência natural de auto conservação que o homem tem, a
qual Espinosa dá o nome de conatus, se manifesta no corpo pelo apetite e
na alma pelo desejo (CHAUI, 1995).
A partir dessa separação de atributos, a teoria spinozana coloca
que o conhecimento pode surgir de ideias adequadas ou imaginativas,
sendo que as primeiras derivam da razão, não apenas do conhecimento
proposto pelo corpo, já que a este cabem apenas ideias percebidas do
mundo, imaginativas. Para Marcel, essa separação que institui um saber
absoluto para fora do corpo não pode ocorrer:
Concepção ontológica do corpo... 139

As essências são recolocadas, agora, na existência, não havendo mais


pensamento absolutamente puro, isto é, uma reflexão sem corpo e sem
carne. Nesse contexto, longe de ser uma máquina hidráulica causal ou
um simples dado psicológico, o corpo se revela como um ser de
fenômeno, um ser percipiente com as coisas (SILVA, 2010, p. 97).

Aos olhos de Marcel e Merleau-Ponty, o conceito de mundo é


interpretado para além de todo objetivismo. Merleau-Ponty (1999, p. 6)
escreve: “o mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de
constituição”. Logo, mesmo que me usasse apenas de ideias adequadas,
como propõe Espinosa, não poderia me apossar do verdadeiro
conhecimento do mundo. Ainda de acordo com Merleau-Ponty (1999, p.
6): “a verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou, antes, não
existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se
conhece”. Ora, é essa concepção da percepção como experiência que
apreendemos através da encarnação.

12.2 O CORPO ENQUANTO SER: A CRÍTICA MARCELIANA


AO CONHECIMENTO OBJETIVO DA ENCARNAÇÃO.

Desconstruindo o paradigma de corpo como objeto, Gabriel


Marcel trata da encarnação como da ordem do ser e não do ter. Desse
modo, não podemos nos apropriar de sua definição, pois somos
intrínsecos ao corpo e conhecer tecnicamente algo só é possível se este for
desprendido de nós mesmos.
Na esfera do ter, a existência é apenas objetiva. O ter é algo
exterior ao ser, algo que posso mensurar, analisar, modificar, pois me situo
à parte dele. O ter evidencia a si mesmo e anula o ser, torna-se instrumento
para assim subir ao plano do ser. (AZEVEDO, 2010). Marcel avalia que,
o corpo, na esfera do ter, é aquele estudado pelos biólogos, ou seja, trata-
se do corpo como um objeto exterior, “morto” e, portanto, observável. O
corpo vivo, que me faz existir no mundo enquanto ser, não pode ser
estudado por mim e nem por mais ninguém porque ele é a identidade que
nos insere no mundo. Essa é a razão pela qual ele não deve ser visto como
algo abstrato, mas sim como algo concreto, que me toca intimamente e
me afeta.
Marcel fala que o conhecimento objetivo do corpo parte de uma
relação triádica que constitui o pensamento abstrato e cientifico. Nesta
relação, o sujeito e o objeto não se comunicam e, devido a esta lacuna, é
que se busca uma resposta. Essa sistematização problemática parte de:
140 Ressonâncias filosóficas - Artigos

“quem pergunta, a quem se pergunta e o que se pergunta”, pois, “o objeto


é um terceiro com relação ao discurso que faço com X sobre ele”. Por
isso, a relação é triádica: o sujeito precisa compreender a relação do ser
com o objeto (corpo). Para entender essa relação deve-se ter em mente
que “o objeto tem a característica de ser aquilo de que falo com um
interlocutor real ou ideal” porque o que se apresenta como objeto pode
ser analisado e compreendido. A relação subjetiva entre um sujeito e um
objeto pode gerar uma prova, um dado empírico, uma definição. A relação
proposta pela teoria marceliana é intersubjetiva, é a relação do ser com o
mundo, vivida através da existência e por isso não preciso prová-la, mas
sim, testemunhá-la (ZILLES, 1998, p. 46).
O corpo não pode ser dado como instrumento entre o cogito e a
realidade material, como postula a filosofia cartesiana. Estar encarnado
significa fazer parte do corpo, de modo que, pensá-lo como um
mecanismo de relação entre o pensar e as coisas externas significa
desconsiderar o caráter pessoal do corpo, assumindo uma posição de
observador, que por estar desencarnado consegue definir o que lhe é
externo. Não estamos apartados do nosso corpo, ao contrário, ele me
representa enquanto ser no mundo, me faz existir, pois a existência está
relacionada à encarnação. Não se pode existir sem se fazer conhecer e
reconhecer-se como parte do mundo (ZILES, 1998).
A relação ser-objeto, a qual gera uma compreensão objetiva, é a
que se apresenta como um problema. Marcel mostra muito bem que o
conceito de problema está intrinsecamente ligado ao de objeto, pois um
problema infere sempre algo que se coloca em meu caminho, como um
obstáculo e somente o que nos é exterior pode ter tais características. Sob
esse prisma, rigorosamente falando, somente a partir do corpo objeto
podemos falar em problema.
Assim coloca Marcel (1935b, p. 169-170):

Um problema é algo com que me deparo, que eu encontro inteiramente


diante de mim, mas que eu posso, por isso mesmo, cercar e reduzir -
enquanto que um mistério é algo em que eu mesmo estou engajado e
que, consequentemente, só é pensável senão como uma esfera onde a
distinção do em mim e o ante mim perde sua significação e seu valor
inicial [...].Toda confusão entre o mistério e o incognoscível deve ser
cuidadosamente evitada: o incognoscível não é, com efeito, senão um
limite do problemático que não pode ser senão atualizado sem
contradição. O reconhecimento do mistério é, ao contrário, um ato
essencialmente positivo do espírito [...]. Tudo parece se passar aqui,
Concepção ontológica do corpo... 141

como se eu me encontrasse beneficiado de uma intuição que eu possuo


sem saber imediatamente.

A partir dessa concepção, é preciso afastar a tradicional


compreensão de mistério como algo incognoscível. Este se refere ao
“limite do problemático”, ou seja, algo que não posso conhecer porque
não tenho capacidade suficiente para isso. Por outro lado, reconhecer o
ser como mistério é saber que ele se manifesta através de nossa experiência
vivida. Nas elucidativas palavras de Silva (2015, p. 131), “O incognoscível
é uma margem do conhecimento, ou melhor, a condição de todo
pensamento e é somente, desse ponto de vista, que ele é ‘inverificável’”.
Desse modo, estando nosso pensamento limitado pela
impossibilidade de se definir o ser é que se vive o mistério da encarnação,
pois, esta é vista por Marcel como algo “meta-problemático”, que vai além
do problema associado à ideia de objeto. Novamente me utilizo das
palavras de Silva (2010, p. 100): “A encarnação é zona de confluência, de
tráfico entre a razão e a experiência, território, portanto, do ‘meta-
problemático’”.
A existência não é como objeto, não pode ser reduzida a conceitos
abstratos, não há determinação que defina finalisticamente o Eu. Por esse
motivo, não é possível identificar o conhecimento humano com o
conhecimento objeto para, então, definir o corpo. O conhecimento
humano é dado por meio da experiência permitida da existência. A
reflexão do corpo como objeto é um conhecimento impessoal; informa
uma realidade distanciada de nós, na qual se pode medir e elencar
propriedades para definir o corpo, tal como se faz com os objetos em si
(ZILES, 1998).
Rompendo com esse objetivismo, Marcel apresenta a teoria de
compreensão do corpo como do âmbito do ser. O ser encarnado
experimenta o mundo; o corpo é fonte de experiência e esta é impossível
de ser racionalizada. Nessa concepção, o autor apresenta esse estado de
indivisibilidade entre o pensamento e a realidade corpórea. O
conhecimento do corpo se projeta para além de teorias cientificas ou
psicológicas, estas fazem verdadeira abstração da relação que as liga ao
objeto de estudo. Dessa maneira, “meu corpo não é algo que eu tenho, eu
sou meu corpo”, assim, não posso conhecer profundamente meu corpo
(MARCEL, 1959, p. 250).
Não se pode pensar na encarnação como a finalização da
existência do ser. O corpo como matéria não é instância última do ser,
somos mais do que nosso próprio corpo, o fato de estarmos encarnados
142 Ressonâncias filosóficas - Artigos

vai além de nós mesmo, é uma transcendência vivenciada pelo corpo de


forma finita. A existência humana tem fundamento ontológico, logo, a
relação com o corpo é uma constante reflexão a respeito do ser (SILVA,
2010).
Para Marcel, a reflexão metafísica deve girar em torno da não
transparência do ser, “sou um ser não transparente para mim mesmo” e
por esse motivo devemos encarar o conhecimento do corpo como um
mistério, que me toca e provoca inquietude (MARCEL, 1935a, p. 281).

12.3 O CORPO COMO EXPERIÊNCIA: BREVE INTRODUÇÃO


SOBRE A PERCEPÇÃO EM MERLEAU-PONTY

Da redução da noção de corpo como objeto, Merleau-Ponty


analisa a percepção do mundo pela experiência do corpo. Em nosso
contato com o mundo (encarnação), é que surgem as coisas percebidas.
Ora, elas não estão lá antes de nós, ao contrário, nós estamos antes delas
e construímos as percepções ao longo de nossa vivência.
A fé perceptiva, ou seja, a crença de que nossos sentidos nos
proporcionam ver as coisas tal como elas realmente são, torna obscura a
nossa visão de mundo. Ficamos acostumados a não nos esforçarmos para
além da representação que o ato de ver nos traz, pois acreditamos
piamente na nossa “máquina de ver”, ou seja, o corpo. É certo que o
mundo é o que podemos ver, no entanto, precisamos nos apossar de nossa
visão e desconstruir o conceito de percepção até então concebido.
Merleau-Ponty (2003, p. 18) ainda destaca:

O que nos importa é precisamente saber o sentido de ser do mundo; a


esse propósito nada devemos pressupor, nem a ideia ingênua do ser em
si, nem a ideia correlata de um ser de representação, de um ser para a
consciência, de um ser para o homem: todas essas são noções que
devemos repensar a respeito de nossa experiência do mundo, ao mesmo
tempo que pensamos o ser do mundo. Cabe-nos reformular os
argumentos céticos fora de todo preconceito ontológico, justamente
para sabermos o que é o ser-mundo, o ser-coisa, o ser imaginário e o ser
consciente.

Como, porém, conceber a percepção de forma diferente?


A teoria da Gestalt ofereceu uma nova maneira de compreensão da
percepção. Para ela, a percepção é uma interpretação “provisória e
incompleta”, longe de ser o conhecimento total do objeto, pois se dá
Concepção ontológica do corpo... 143

através de campos e não do todo em si. Essa teoria permite um diálogo


em que é possível formar uma concepção fenomenológica existencial da
percepção, situando o processo de compreensão da essência, estudada
pela fenomenologia, na experiência da existência (NOBREGA, 2008).
O padrão cartesiano de entendimento da percepção como uma
representação subjetiva, coloca o corpo como algo oposto, porém
contínuo da alma. Nessa perspectiva, o corpo seria como um atributo da
alma e cada pessoa poderia perceber verdadeiramente o mundo por meio
desse atributo. Esse conceito prévio (preconceito) nos faz pressupor a
ideia objetiva de corpo, sem pensá-la com base em nossa experiência do
mundo (FERNANDES, 2010).
Para Merleau-Ponty (1999), trata-se do corpo próprio; não aquele
objetivo do qual estou diante, mas aquele que eu sou, este “interpreta a si
mesmo” por ser imanente ao mundo. A interpretação mediante uma
percepção em que eu sou abstraído de meu corpo seria como se meu
corpo já tivesse um sentido instituído nele e meu olhar seria a maneira de
conhecê-lo verdadeiramente. Dessa forma, o tema “corpo” não teria
nenhum mistério e poderia ser resolvido tecnicamente como qualquer
problema objetivo, mas essa não é a realidade.
Nossas experiências são um “conjunto de significações vividas”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 212) e a percepção de um objeto é a razão
da soma dessas experiências que tivemos ou poderíamos ter. Logo, o
sentido das coisas é dado por nós, não é intrínseco a coisa.
Na concepção do autor, em uma percepção onde se separa o ser
do mundo é que surge o engano de conhecer as coisas tal como realmente
são:

Na percepção normal, com maior razão, o sentido do percebido me


aparece como instituído nele e não como constituído por mim, e o olhar
como uma espécie de máquina de conhecer, que apreende as coisas por
onde elas devem ser apreendidas para se tornarem espetáculo, ou que as
recorta segundo suas articulações naturais (MERLEAU-PONTY, 1999,
p. 355).

O mundo só tem sentido através da corporeidade, não há uma


essência desencarnada a qual está acima de nós. A percepção, vista do
ponto fenomenológico, apreende os sentidos por meio do corpo. O que
entra em jogo é uma expressão criadora, pois o sentido é dado por ela
(MERLEAU-PONTY, 2003).
144 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Ainda de acordo com Merleau-Ponty (1999), todo o conhecimento


que o homem tem do mundo, desde culturais até científicos, foram dados
a partir de sua experiência do mundo. Sem ela, os símbolos da ciência não
significariam nada, logo, o universo cientifico também é construído
mediante nossas vivências.

12.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, fica evidente a aproximação das teorias


marcelianas e merleau-pontyanas com a espinosana. A desobjetivação do
corpo e a encarnação enquanto experiência do mundo colocam os seres
humanos, a natureza e tudo o que conhecemos no mesmo plano, como
partes imanentes. Por esse motivo, não podemos nos apropriar da verdade
sobre o mundo, uma vez que nossa percepção se dá enquanto seres
existentes e a verdade absoluta é intrínseca a nós, mas não podemos
conhecê-la, só nos “aproximar” dela, pois dela não temos a visão objetiva.
A meu ver, a crítica ao saber absoluto não tem fundamento na
teoria de Espinosa, vez que este não propõe que o atributo pensamento
seja superior ao atributo extensão. Em função disso, o pensamento não
teria a posse da verdade por ser superior e separado do corpo, mas sim,
por sermos parte da substância criadora, não uma parte separada, mas
imanente. Desse modo, pode-se dizer que a verdade está em nós, antes
disso, que nós somos a verdade absoluta.
As “ideias adequadas” provenientes da razão, não estão acessíveis
a nós, pois, enquanto seres do mundo só podemos perceber as coisas
através da nossa experiência do corpo, e por meio dessa experiência
encontramos a verdade para nós, mas não a verdade absoluta, a verdade
objetiva. A estas, Espinosa dá o nome de “ideias imaginativas”.
Para finalizar, considero que a teoria existencialista compartilhada
por Marcel e Merleau-Ponty e exposta por Sartre (1945/2012) de que “a
existência precede a essência” também se justifica em Espinosa, pois este
considera a substância como existente em si e por si. Logo, é a existência
de todas as coisas, causa primeira da qual a essência de tudo é
predecessora.
Concepção ontológica do corpo... 145

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XIV

DIGNIDADE HUMANA ENTRE A LIBERDADE E


IGUALDADE: RETORNO A KANT E ROUSSEAU

Marilda Pereira dos Santos*

RESUMO

O presente texto propõe uma análise da ideia de dignidade humana


segundo a concepção do filósofo Immanuel Kant. No decorrer dessa
análise, duas questões vêm tratadas, quais sejam, o conceito de liberdade e
o conceito de igualdade. Os dois conceitos estão pautados nos filósofos
Rousseau e Kant. Então proposta do presente estudo é expor as ideias
desses pensadores e, ao final, discutir por que não é possível pensar a
dignidade separada da liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade; Igualdade; Kant; Liberdade;


Rousseau.

INTRODUÇÃO

O problema moral sempre foi algo que chamou muito a atenção


do filósofo Immanuel Kant, cujas concepções filosóficas ocorriam sob a
influência de alguns moralistas, em especial de Jean-Jacques Rousseau,
autor que despertou em Kant pensar a questão de ser homem e de ser
sábio. O fundamento racional em que se pretendia, de início, basear a
moral era considerado um fundamento fraco, o que autorizou Kant a
questionar esses fundamentos.
Na sua obra Crítica da Razão Pura, Kant percebeu a fraqueza de
seus argumentos, ou seja, do fundamento racional da moral, pois “[...] nela
foi possível perceber que a moralidade não se pode fazer depender da
moralidade das provas dialéticas da liberdade do homem, assim como a
imortalidade da alma e da existência de Deus” (PASCAL, 2011, p. 115).

* Mestranda em filosofia; PPGFIL- Unioeste; e-mail:


marildapereiradossantos@gmail.com
148 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Na mesma Crítica, Kant reconhece o método a ser aplicado para


fundamentar seu argumento, diferentemente do método utilizado nessa
mesma obra, o filósofo parte do processo analítico para o sintético. Desse
modo, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant parte do
juízo da consciência comum para o princípio da racionalidade. Ao passo
que para ele a ideia de liberdade não é inconciliável com o determinismo,
logo, a liberdade em sentido cosmológico, definida por Kant é:

O começar de um estado por si mesmo, cuja causalidade, portanto, não


está sob uma outra causa que, segundo a lei da natureza, a determinasse
temporalmente. A liberdade é, neste sentido, uma ideia transcendental
pura que, em primeiro lugar, não contém nada emprestado à experiência,
e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira
determinada em experiência alguma, pois é uma lei universal da própria
possibilidade de toda experiência que, em tudo o que acontece, uma
causa – portanto também a causalidade da causa que ocorreu ou surgiu ela
própria – deve ter por seu turno uma causa; razão pela qual o inteiro
campo da experiência, até onde se quer que se estenda, transforma-se
em um conjunto completo da mera natureza. Como, no entanto, não se
pode obter desse modo uma totalidade absoluta das condições na relação
causal, a razão produz então a ideia de uma espontaneidade que pode
começar a agir por si mesma sem que uma outra causa tenha de lhe ser
anteposta para determiná-la à ação segundo a lei da conexão causal
(KANT, 2015, p. 429).

Kant supõe uma liberdade transcendental compatível com a


causalidade fenomênica, pois segundo Pascal, “[...] o homem se distingue
em um caráter empírico, pelo qual ele se encontra preso ao mundo dos
fenômenos, e um caráter inteligível pelo qual escapa esse mundo” (2011,
p. 117). Assim, portanto, o fundamento da doutrina moral de Kant vai se
dar com base na noção de dever, noção que se prende a esse caráter
inteligível do sujeito, logo, prende-se à sua liberdade.
É nessa perspectiva que nos dedicamos ao presente trabalho,
visando oferecer ao leitor uma breve introdução ao pensamento de
Rousseau, em específico à questão da liberdade, e ao pensamento de Kant,
aqui invocando a questão da dignidade e da liberdade. Quisemos dar uma
explicação, por exemplo, sobre por que a dignidade e a liberdade estão
associadas, razão por que não podemos trabalhá-las desvinculadas uma da
outra.
Dignidade humana... 149

14.1 ROUSSEAU: CONCEITO DE LIBERDADE E CONCEITO


DE IGUALDADE

14.1.1 Conceito de liberdade segundo Rousseau

Em Rousseau é possível identificar uma concepção de homem em


estado de natureza, homem no qual vive, isoladamente, uma faculdade que
o distingue dos outros animais. Trata-se da liberdade, marca da sua
constituição metafísica. Constata que:

Vejo, em cada animal, apenas uma máquina engenhosa, à qual a natureza


conferiu sentidos para que estabelecesse a si própria e se garantisse, até
certo ponto, contra tudo o que tende a desconstruí-la. Percebo
precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de
que a natureza faz tudo sozinha nas operações do animal, enquanto o
homem concorre para as suas, na qualidade de agente livre
(ROUSSEAU, 2015, p. 67).

Para Rousseau, essa liberdade, sem a qual o homem perderia sua


“qualidade de homem”, possui características diferentes ao sair do estado
de natureza e entrar no estado civil. O filósofo alerta para o fato de que,
no estado de natureza, ela se define como liberdade natural, própria do
homem no seu isolamento, marca da sua independência absoluta e de sua
não submissão à vontade de outro homem. Enquanto isso,
diferentemente, no estado civil, ela se definirá como liberdade
convencional, civil ou moral, pois agora não faz mais sentido a vida
isolada, mas a condição de sobrevivência se define necessariamente pela
vida em comunidade.
Nesse aspecto, será necessário “eliminar” a liberdade natural e dar
corpo à liberdade civil. Entenda-se, porém, que, embora isso ocorra, o
estado de natureza não pode servir de modelo para o estado civil, nem
uma liberdade vale pela outra; a propósito, o indivíduo não pode pautar-
se indistintamente por uma ou por outra liberdade.
Vejamos como isso se dá em Rousseau. Para ele, tomamos a
liberdade de um estado para a de outro quando tomamos o homem, com
sua liberdade natural, como um ser totalmente independente dos demais,
ou seja, quando nos referimos a um outro ser, o coletivo. Ocorre, por
exemplo, quando tomamos o homem como uma unidade composta e
dotada de uma unidade semelhante à do homem natural, portanto, a
liberdade natural marca a autonomia do homem no estado de natureza, a
150 Ressonâncias filosóficas - Artigos

liberdade civil assinala a independência do corpo moral e político que é o


Estado, sua liberdade agora é a liberdade do corpo coletivo do qual faz
parte.
Mesmo que haja distinção de liberdade do estado de natureza para
o estado civil, não poderíamos deixar de observar, assim como Rousseau,
que o sentimento do homem foi o de sua existência, logo, seu primeiro
cuidado é o de sua conservação, consequentemente, preservar sua
liberdade.
Rousseau foi um dos filósofos que inspirou o documento francês
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Para esse pensador o ser
humano se define e se concretiza essencialmente pela liberdade. É ela que
diferencia a natureza humana, tornando-se específica, singular. Eis, pois,
para Rousseau um dos princípios que orienta a ação moral e política dos
homens:

Renunciar à liberdade é renunciar à condição de homem, aos direitos da


humanidade, e, inclusive, aos seus deveres. Não há reparação possível
para alguém que renuncia a tudo. Uma tal renúncia é incompatível com
a natureza do homem, e tirar toda a liberdade de sua vontade é tirar toda
moralidade de suas ações (ROUSSEAU, 2015, p. 28-29).

Em razão disso, é de interesse dos homens firmar um pacto que


vise sua segurança e seus bens ameaçados, firmando um contrato para que
sejam novamente livres, embora, esse contrato não lhe traga muitas
vantagens, sendo relativo e provisório; a liberdade, nesse sentido, deixa de
ser plena, pois o homem perde a liberdade natural e tudo quanto ele seria
capaz de lhe proporcionar, visto que renuncia às suas vontades particulares
em favor do interesse comum, pautando sua vida a partir das relações de
obrigação que unem a todos.
Em uma análise mais cuidadosa doa obra intitulada Contrato Social,
nessa análise se observou que nessa proposta não há um contrato de
indivíduos. Ao contrário, o que há é, simplesmente, um pacto firmado de
cada um consigo mesmo transformando cada indivíduo em cidadão. Após
o pacto a liberdade plena, deixa de existir, o que significa não mais fazer o
que se quer, mas também não fazer o que não se quer. Essa liberdade à
qual Rousseau se refere é apresentada no livro Emílio ou Da Educação. Aqui
essa liberdade é o fundamento filosófico para as práticas que inspiram a
apreensão dos direitos humanos. Rousseau defende essa tese quando diz
que:
Dignidade humana... 151

O único indivíduo que faz o que quer é aquele que não tem necessidade,
para fazê-lo, de pôr os braços de outro na ponta dos seus; do que se
depreende que o maior de todos os bens não é a autoridade e sim a
liberdade. O homem realmente livre só quer o que pode e faz o que lhe
apraz. Eis a minha máxima fundamental (ROUSSEAU, 2015, p. 67).

Nesse ponto, o filósofo analisa situações cotidianas da vida da


criança, em especial da vida do período escolar: “[...] porque a liberdade
que dou a meu aluno o indeniza amplamente dos ligeiros incômodos a que
o exponho” (ROUSSEAU, 2015, p. 70).
Em suas obras, observou-se que Rousseau fala da liberdade como
uma forma para que os homens sejam livres tanto no estado de natureza,
bem como no estado civil, ao passo que as pessoas serão livres na
sociedade quando estiverem sob o jugo de leis que, realmente, reflitam a
vontade geral, ou seja, agir de acordo com o interesse da coletividade.

14.1.2 Conceito de igualdade segundo Rousseau

Rousseau, ao estar em consonância com os intelectuais europeus


seus contemporâneos, não poderia ter sido diferente dos outros
pensadores liberais. Então o filósofo também concebe um estado de
natureza imaginário, estado no qual os seres humanos teriam vivido em
perfeita liberdade e igualdade. Na obra Emílio ele afirma:

No estado de natureza há uma igualdade de fato indestrutível e real,


porque não é possível que neste estado seja tão grande a mera diferença
de homem a homem, que constitua dependente um de outro. No estado
social há uma igualdade de direito, vã, fantástica, pelos mesmos meios
destinada a mantê-la (ROUSSEAU, 1995, p. 172).

Em Rousseau constatamos que, comparando a realidade em


estado de natureza com a realidade das leis que o homem em sociedade
produz para reger-se, em ambas as naturezas se reconhece que o ser
humano deverá por si mesmo submeter-se às normas estabelecidas pela
sociedade, ao mesmo tempo em que não perca sua identidade como ser
natural.
Então, para Rousseau, a igualdade é a primeira lei de todas as
sociedades, tanto para os homens, bem como para as coisas. A igualdade,
portanto, é um elemento central na filosofia de Rousseau, considerada um
elemento essencial no desenvolvimento do indivíduo. Melhor dizendo,
152 Ressonâncias filosóficas - Artigos

igualdade significa que todos têm igualmente o direito de desenvolver suas


potencialidades de modo que se submetam aos interesses gerais. Afirma
que:

Se quisermos saber em que consiste precisamente o maior bem de todos,


que deve ser a finalidade de cada sistema de legislação, veremos que ele
se reduz a estes dois objetos principais, a liberdade e a igualdade. A
liberdade porque toda dependência particular equivale a retirar força do
corpo do Estado; a igualdade porque a liberdade não pode subsistir sem
ela (ROUSSEAU, 2011, p. 67).

Diante de todo exposto, Rousseau ensina que a liberdade civil,


com relação à igualdade, não pode ser entendida como os graus de poder
e de riqueza sejam absolutamente os mesmos. Para ele, quanto ao que se
refere ao poder, esteja abaixo de toda violência, sendo exercida em virtude
da ordem e das leis; e, quanto ao que se refere à riqueza, que nenhum
cidadão seja bastante opulento para poder comprar um outro e nenhum
bastante pobre para ser forçado a vender-se. Essa igualdade é uma
tentativa de conciliar tais conflitos por meio de leis, evitando ruptura entre
os homens.
Se fizermos uma breve relação da concepção de homem
apresentada por Rousseau nas obras Discurso, Contrato Social e Emílio,
constataremos que a liberdade e a igualdade são características essenciais
que seguem todo seu discurso.
Em Rousseau, a ideia de natureza humana fundamenta a moral,
pois o autor constrói um modelo de homem que é a priori suscetível de ser
aplicado a toda a humanidade. Trata-se do modelo que prevê a existência
de um homem natural vivendo necessariamente no homem social e
histórico, o segundo pautado para valorar moralmente as ações dos
homens.
Se, para nosso entendimento, no Discurso Rousseau expõe a
desigualdade, a obra Emílio expõe a igualdade, sendo que essa igualdade é
uma tentativa de corrigir a espécie humana. No final da primeira parte do
Discurso, Rousseau alerta para o fato de que é a razão que gera o amor-
próprio e é a reflexão que a fortalece. É a razão reflexiva que faz o homem
voltar-se sobre si mesmo.
Para Rousseau, a consciência pertence à ordem do sentimento; ao
passo que os atos da consciência são sentimentos; o caráter sensível da
consciência, portanto, está ligado ao caráter natural, que se origina num
princípio inato de justiça e de virtude, impresso pela própria natureza na
Dignidade humana... 153

alma do homem; assim, a consciência é anterior à razão, sendo ela um guia


seguro contra extravios da razão. A segunda pode equivocar-se ao passo
que a primeira, não. A consciência nunca se equivoca, por isso é
encarregada de conduzir a razão: “[...] tirai a voz da consciência e a razão
se cala ao mesmo instante”.
Até aqui se expõe o desenvolvimento do pensamento de Rousseau
como uma proposta metodológica, para que possamos entender o
conceito de liberdade e o de igualdade do homem no estado de natural e
no estado civil. A intenção é mostrar o pensamento rousseauniano,
pensamento do qual constrói um modelo a seguir para haver uma
sociedade justa de liberdade e de igualdade onde deve prevalecer o modelo
de natureza manifestado no homem original. Suas ideias são importantes,
pois que vão influenciar pensadores como Immanuel Kant.

14.2 KANT: O CONCEITO DE LIBERDADE

Kant é aquele que tenta fundamentar a questão da “harmonia entre


os homens”, questão que é a base fundamental da ética moderna e
envolve, em termos gerais, o desenvolvimento do humanismo, que diz
respeito ao surgimento da noção de igualdade. Segundo Ferry, “[...] a partir
do momento em que o cosmo se fragmenta e o mundo fechado se torna
um universo infinito e neutro, onde todos os lugares são equivalentes,
então a igualdade passa a ser possível” (2012, p. 78).
Com efeito, a visão moral do mundo que Kant inaugura e tematiza
funda-se sobre uma definição do ser humano como ser de liberdade. Para
Kant, é no homem, em sua razão e, sobretudo, naquela liberdade que
funda sua dignidade, que é preciso enraizar os princípios do respeito pelo
outro. O sentimento de respeito é, pois, o efeito positivo da lei moral
considerada como princípio determinante da nossa vontade. Assim, o
princípio não é mais o medo ou a esperança suscitados por uma divindade.
Diferentemente, portanto, é a autonomia da vontade que deve conduzir a
heteronomia e não o contrário dela.
Desse modo, a dignidade humana está inicialmente ligada à
liberdade do homem, ideia fundamental para fundar a moral e também o
respeito para com os outros sem intervenção divina.
Aqui Kant se afasta de Rousseau, mostrando que o sentimento de
respeito é anterior à lei moral, pois é a lei moral que determina o
sentimento moral, e não o sentimento à lei. É preciso obedecer à lei, e essa
obediência é apenas facilitada pelo sentimento de respeito que a lei nos
154 Ressonâncias filosóficas - Artigos

impõe. Esse sentimento coíbe a influência adversa das inclinações, eis


porque uma vontade divina, onde a sensibilidade não se opõe à obediência
à lei, carece dessa experiência do respeito.
Só avançamos mais se entendermos como Kant elucidou seu
pensamento, analisando por que para o filósofo a liberdade do homem lhe
confere uma dignidade tão absoluta que passa a ser necessário tratar o
outro como fim em si mesmo e não como meio ou como coisa. Afinal de
contas, diz Ferry: “[...] por que atribuir à espécie humana tanta dignidade
e reclamar para ela tanto respeito, se nada de realmente específico a
distingue das outras?” (FERRY, 2011, p. 86).
Kant expõe de modo sistemático as duas consequências morais
mais conhecidas e mais marcantes da nova definição da liberdade: a ideia
de ação desinteressada e a ideia de universalidade.
É na primeira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes que
é dado o primeiro passo. Kant trata da passagem do conhecimento racional comum
da moralidade ao conhecimento filosófico. O autor analisa o princípio supremo
da moralidade. Logo no início da seção constata que: “Neste mundo e, até
também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como
bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade1” (KANT,
2011, p. 21).
Para Kant há um sujeito portador de qualidade e há também uma
potencialização das suas ações, sendo que seu valor depende do uso que
ele faz delas. De modo geral, o pensador alemão não está estabelecendo
nenhuma ligação entre boa vontade e meio, não está querendo nos induzir,
tomando das nossas faculdades os princípios práticos. A boa vontade é
apenas um elemento central da filosofia kantiana. A vontade é, de certo
modo, aquele elemento que gira e fundamenta os conceitos da ética. Para
ele:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão
para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo
querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser
avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio
possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se
quiser, da soma de todas as inclinações (KANT, 2011, p. 23).

A afirmação encontra embasamento para justificar o fundamento


da boa vontade, e esse embasamento é, para Kant, a capacidade de o ser

1 Puro princípio condicionado, não podendo ele ser mal (KANT, 2011, p. 21).
Dignidade humana... 155

racional agir, não somente segundo leis, como ocorre na natureza, mas
segundo representação de leis, isto é, segundo princípios. A boa vontade,
conforme afirma o filósofo, não é boa por aquilo que promove ou realiza,
pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente
pelo querer, ou seja, em si mesma. Aqui, a razão teórica aparece como
reguladora do conhecimento (intelecto) e, ao mesmo tempo, como
constituidora de um conhecimento, isso na medida em que tem a
pretensão de fornecer uma matéria para o conhecimento que provém da
sensibilidade e que, por isso, é algo transcendente. Por ser simplesmente
reguladora, a razão tenta buscar o transcendente (do em si) e descobre o
seu verdadeiro caminho, realizando a plenitude dos seus anseios.
Em sentido mais específico, a boa vontade não tem como tarefa
dizer se fez uma boa ação. Cabe a ela dizer, que é condicionada ao querer
(nosso querer, não no sentido adjetivo, mas, no sentido condicionado
levando aos meios, funcionando como um axioma – lógica formal).
Afinal de contas, qual é o conteúdo dessa boa vontade que é boa
em si mesma? A resposta nos parece ser bem simples. Segundo Kant, para
pensar realmente a moral é necessário abrir espaço à ideia de liberdade, ou
seja, a noção de escolha. Para isso, o autor mostra que cada ser humano
aparece como um fim, e não apenas como um meio. O homem é aquele
ser que possui uma dignidade igual a todos os outros e, em razão disso, ele
não pode instrumentalizar ou tratar o outro como uma coisa, uma
realidade que depende da boa vontade de cada um.
Desse modo, ao desconsiderar o egoísmo dos homens, diz Kant:
“[...] precisamos combatê-lo por nossa vontade livre se quisermos levar o
interesse geral do bem comum”. Por isso Kant identifica que, sem a
hipótese da liberdade, essa ideia de ação desinteressada, ou seja, essa ideia
de moralidade desapareceria. Essa maneira de pensar surge a partir de
Rousseau, constando a universalidade como ideal de bem comum e de
superação dos simples interesses. A universalidade não exclui os simples
interesses, mas leva em conta os interesses alheios (da humanidade inteira).
Em Kant, ser livre não é a faculdade natural de escolher, não é o
livre arbítrio. O sujeito tem liberdade quando age obedecendo às leis
morais, como sujeito autônomo que impõe a si mesmo, racionalmente, leis
que dependem só dele.
Ao longo desta exposição analisamos inicialmente o pensamento
rousseaniano, em que o conceito de liberdade e o conceito igualdade
foram utilizados como apoio para avançarmos na questão da dignidade e
da liberdade kantiana. A intenção é mostrar o pensamento kantiano como
156 Ressonâncias filosóficas - Artigos

um processo contínuo e corrente, pois o método desenvolvido por Kant


parte da identificação de um conteúdo básico, qual seja, o ser humano
como ser de liberdade. É a partir desse conceito que Kant constrói
fundamentos para o seu pensamento filosófico.
Nesse sentido, o extraordinário poder da ética kantiana pode ser
creditado ao seu conceito da liberdade, da virtude da ação desinteressada
e da preocupação com o interesse geral. E essa é a linha definidora das
morais modernas.

REFERÊNCIAS

FERRY, Luc. Uma leitura das três “Críticas”. Tradução de Karina Jannini.
3. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo


Quintela. Introdução de Pedro Galvão. Lisboa: Edições 70, 2011.

_________. Crítica da razão pura. Trad. Fernando Costa Mattos. 4. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2015.

PASCAL, Georges. Compreender Kant, Introdução e tradução de


Raimundo Vier. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens. Tradução, introdução e notas de SAES. São
Paulo: EDIPRO, 2015.

_________. Emílio ou Da Educação. Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

_________. O contrato social. Apresentação de João Carlos Brum Torres.


Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
XV

DO PROBLEMA MENTE-CORPO AO PROBLEMA DO "EU"


COMO IDENTIDADE

Josiel dos Santos Camargo*

RESUMO

A partir do problema mente-corpo presente na filosofia, a área da filosofia


da mente surge para tentar responder algumas perguntas como, por
exemplo: existe de fato uma consciência? Existem duas substâncias
distintas: um material e outra imaterial? Mente e cérebro são a mesma
coisa? Existe uma identidade pessoal em cada um? A partir destes
questionamentos, várias correntes surgirão na filosofia da mente, por
exemplo: o materialismo, o dualismo, o determinismo e o funcionalismo.
Isto posto, este artigo tem por objetivo explanar sobre algumas ideias
presentes nessa discussão, que são o reflexo de uma recente pesquisa
iniciada nessa linha de pensamento, como forma de colher ideias sobre os
temas em questão. Por tema, temos o problema da consciência do "eu"
que a princípio se inicia com a busca pela distinção da mente-corpo, tema
já recorrente na filosofia, passando pela filosofia da mente que se debruça
na questão do problema mente-cérebro, já apontando uma terceira
distinção, sendo elas: mente, corpo e cérebro. Por fim, através das ciências
avançadas como a neurociência, a filosofia da mente busca chegar a
problemas mais restritos acerca da consciência, do funcionalismo e
determinismo, que por pergunta final se faz da seguinte forma: há alguma
consciência do "eu" ou algo que caracteriza nossa identidade pessoal? O
artigo presente não tem por objetivo a pretensão de responder tais
questões; apenas como método de pesquisa, pretende-se percorrer tais
caminhos, que parecem, ainda, não muito explorados pela filosofia
contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Problema mente-corpo; Filosofia da Mente;


Neurociência; Consciência; Identidade.

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: josiel.camargo@outlook.com


158 Ressonâncias filosóficas - Artigos

15.1 MENTE, CORPO E CÉREBRO

Há, ainda, um certo misticismo no que concerne o problema


mente-corpo presente na filosofia. Ou melhor, o problema entre o
dualismo e o materialismo. De um lado, o dualismo não aceita os
fenômenos “ainda não explicados” como sendo do âmbito material, mas
acredita na existência da alma ou substância imaterial que se distingue de
toda substância material presente no mundo. Os materialistas, por sua vez,
acreditam que só exista o mundo físico - o único que conhecemos - mas
não explicam e nem consideram os fenômenos ainda “obscurecidos”
como sendo da natureza material. Temos, pois, de um lado os dualistas
que reivindicam os fenômenos não-explicados à uma segunda substância
imaterial e os materialistas ou monistas, que mesmo acreditando numa só
substância presente em todo o universo físico, algo estritamente material,
confrontados com estes mesmos fenômenos “não-explicáveis”, fogem das
explicações ou mesmo ignoram.
Muitos cientistas levam tais questões a sério, para eles alguns
problemas ainda serão solucionados, principalmente com o avanço
neurocientífico que será tratado neste artigo. Mas de que fenômenos
estamos falando, afinal? Veremos adiante. O problema mente-corpo na
filosofia não é novo, partindo de Descartes vemos claramente tal
distinção, ele afirmava haver duas substâncias no universo e que deveriam
necessariamente serem diferentes. Uma ideia, um pensamento, sempre
seriam indivisíveis, a matéria, pelo contrário, sempre seria divisível, por
menor que fosse. Desse modo, não seria possível reduzir uma à outra,
tornando-as irreconciliáveis. Leibniz foi mais versátil1, acreditava na
existência de uma espécie de harmonia preestabelecida no universo, não
concebendo, desse modo, uma separação entre mente e corpo, ele
compreendia o mundo como uma unidade. Kant, por sua vez, é mais
incisivo; na sua Crítica da Razão Pura, afirmou que nunca poderíamos
chegar a um conhecimento sobre a natureza de tal substância imaterial,
pois extrapolaria nossos limites cognitivos. Esses problemas tornaram-se
discussão central no âmbito da filosofia da mente:

1Leibniz afirmou que o acontece no mundo "supra-sensível" encontra seu


correspondente no mundo físico, nesse paralelismo descrito por ele através da mônada -
ideia de substância imaterial responsável por tal processo de fundamentação do universo
físico - que se corresponde com o mundo físico através dos fenômenos, ele afirmou que
o mundo material e imaterial, poderiam, desse modo, coexistir como se tivessem sido
criados juntos pelo criador de tudo no início do universo.
Do problema mente-corpo... 159

De um lado, existem as teorias materialistas da mente, teorias que


afirmam que o que chamamos de processos e estados mentais são
meramente processos e estados sofisticados de um complexo sistema
físico: o cérebro. De outro, existem as teorias dualistas da mente, que
afirmam que os processos e estados mentais não são apenas processos e
estados de um sistema exclusivamente físico, mas constituem uma
espécie distinta de fenômeno, de natureza essencialmente não física
(CHURCHLAND, 2004, p. 12).

Com a ampliação do problema mente-corpo para a esfera


psicológica das ações cerebrais, problemas mais "contundentes" surgiram,
nesses casos retornamos para os fenômenos não explicáveis. O que
acontece quando alguém fala sobre a telepatia, premonição ou
clarividência? Um materialista faria piadas jocosas sobre a inexistência de
tais fenômenos ou te chamaria de maluco, a princípio. O dualista seria
mais astuto, nesse caso, corroboraria sua tese do suprassensível,
reivindicando esse fenômeno com sendo algo da alma ou espírito. Mas
onde está o problema disso? Como explicar quando lembramos de
experiências passadas das quais nunca poderíamos ter vivido e também
quando temos premonições de experiências futuras? Alguns
neurocientistas já publicaram a respeito do déjà-vu (já visto) e as teses são
tão distintas que o problema de fato se torna jocoso. Talvez, poderíamos
associar tais fenômenos com alguns semelhantes presentes do campo de
estudo da física. Na mecânica quântica, coisas estranhas se mostram
quanto mais adentro as pesquisas avançam, exemplo claro disso o "salto
quântico", que consiste na mudança de órbita do elétron em torno do
átomo de maneira não linear, visto de modo semelhante a uma espécie de
teletransporte. Próximo a isso, temos também o fenômeno do
entrelaçamento quântico, que seria o fenômeno que ocorre entre duas
partículas que se formaram juntas, onde, ao serem separadas, a ação sobre
uma afeta diretamente a outra; desse modo, criando uma ligação quase que
fantasmagórica. Aliás, foi exatamente assim que Einstein a descreveu, em
frase atribuída a ele, teria dito que "Deus não joga dados", pois se não há
aparentemente uma ligação que implicasse uma à outra, como isso
ocorreria, então? Talvez seja o fato de que nossa sensibilidade não capta
outras dimensões existentes? Se uma partícula tem a capacidade de se
relacionar com outra independente da distância ou mesmo a capacidade
de se teletransportar, por que não cogitar a possibilidade dela transferir
informações ou mesmo memórias para o sujeito? Se essa capacidade fosse
ampliada explicaria também o problema da onda partícula, amplamente
160 Ressonâncias filosóficas - Artigos

discutido no âmbito da mecânica quântica, que ao ser observada age de


outra maneira, pois presume-se que seja apenas um problema de medição
e desconsideramos totalmente a possibilidade de que essas partículas
tenham alguma capacidade cognitiva, alguma consciência ou mesmo
predisposição ainda não conhecida. A telepatia sofre do mesmo mal,
segundo exemplo de Churchland, também caberia explicação:

[...] de acordo com a teoria eletromagnética, tais movimentos das cargas


elétricas devem produzir ondas eletromagnéticas que se irradiam na
velocidade da luz e em todas as direções, ondas que conterão
informações sobre a atividade elétrica que as produziu. Tais ondas
podem, subsequentemente, ter efeitos sobre a atividade elétrica de
outros cérebros, isto é, sobre seu pensamento. Pode-se chamar essa
teoria de "teoria do transmissor/receptor de rádio" da telepatia
(CHURCHLAND, 2004, p. 20).

Nesse caso, tal transmissão não fere nenhum princípio físico,


inclusive recentemente uma teoria de Einstein parece ter sido confirmada:
"as ondas gravitacionais", onde uma ação, como a explosão de uma
supernova, ocasionada a uma longa distância e tempo pode ser medida por
nós por ter sido transferida através de uma onda via espaço-tempo, assim
como Einstein já havia deixado claro na Teoria da Relatividade: habitamos
uma espécie de tecido espaço-temporal, por que não poderíamos crer ser
possível transmitir informações à longa distância, precisaríamos de um fio
condutor melhor? Essas relações podem parecer confusas e mal
fundamentadas, mas como explicar a mãe que sente um mal-estar quando
um filho morre ou se acidenta, ou mesmo um irmão gêmeo que sente o
mesmo ao seu par sofrer algum mal? As explicações podem não ser boas,
mas tais fenômenos deveriam no mínimo ser considerados.

15.2 OS PROGRESSOS NEUROCIENTÍFICOS

Retornemos à pergunta: mente e corpo ou mente e cérebro são a


mesma coisa ou são coisas distintas? Quais os progressos
neurofisiológicos nesse caso? A neurofisiologia2, também estudada na
filosofia da mente, há muito já havia descoberto que o neurônio tem a
capacidade de transmitir energia elétrica, assim como em qualquer

2 Neurofisiologia é distinguida da neurociência nesse caso pois, dentro do campo de


estudo da neurociência, consiste no estudo específico das funções do sistema nervoso.
Necessitando ser distinguida, também, da neuroanatomia e neuropsicologia.
Do problema mente-corpo... 161

transmissão ocorrida num computador ou televisor, descrevendo, desse


modo, numa visão materialista-funcionalista, que as relações entre mente
e corpo poderiam ser reduzidas ao mero funcionamento cerebral, feita a
partir dos diversos conjuntos de sistemas presentes nas ações cerebrais,
divididas pela neurociência em áreas e sistemas independentes. Mas de lá
para cá quais os avanços significativos na questão mente-corpo, além da
participação fundamental do cérebro na relação entre o mental e o físico?
Os neurocientistas, materialistas, em geral, sustentam que estados mentais
e estados cerebrais são a mesma coisa:

Para muitos neurocientistas, a consciência nada mais é do que a


capacidade integradora de informação que existe no cérebro. Ou seja,
não existe qualquer tipo de problema de consciência suplementar além
da percepção, do pensamento, da imaginação e da memória
(TEIXEIRA, 2017, p. 77).

Para a maioria destes pesquisadores a autoconsciência é ilusória,


deste modo reduzido aos estados cerebrais. Mas a dúvida persiste,
poderiam os neurocientistas, mesmo com os equipamentos mais
modernos saberem o que você está pensando? Sabe-se que é possível
mapear as diversas áreas do cérebro e identificar quais áreas são usadas
para cada ação nossa. Se durmo, por exemplo, sabe-se que estou
sonhando, mas com o quê, afinal? Os neurocientistas, em geral, sustentam
que tais respostas ainda serão solucionadas, é apenas uma questão de
tempo, já que as pesquisas estão avançando continuamente. Já se fala
inclusive em transplante cerebral, avanço este que responderia inúmeras
questões, como, por exemplo, se no transplante de um cérebro a
consciência seria a mesma? Ela estaria totalmente presente no cérebro?
Mas mesmo que isso fosse possível, onde estaria contida exatamente a
consciência de si? Seria, talvez, possível mapeá-la num futuro próximo?
As descobertas podem ser promissoras, mas essa consciência do "eu"
parece que ninguém acessa, parece estar para além de qualquer
identificação, dada a dificuldade de delimitar onde ela encontra-se.
Mas se não podemos acessar o mundo mental como havia alertado
Kant, por onde pesquisamos? É possível ser materialista? Nosso
pensamento parece um emaranhado de conjuntos que somente fazem
sentido na sua totalidade, assim como o funcionamento de um televisor
ou computador, onde cada parte exerce uma função de certo modo
autônoma, comandado por um sistema central, no nosso caso o cérebro,
e assim como esse sistema, quando afetado, implica no funcionamento
162 Ressonâncias filosóficas - Artigos

dos demais. Nosso cérebro num acidente, por exemplo, se atingido, afeta
diretamente nossa coordenação motora, memória e até mesmo a
consciência, que só existe a partir da ação cerebral. Desse modo,
totalmente dependente, remetendo ao problema anterior, como distinguir
mente e cérebro, seríamos materialistas e a consciência algo que ainda será
descoberto? Ou apenas a representação do conjunto de um sistema que
ainda não mapeamos por completo? Parece que algumas respostas
dependerão dos próximos avanços neurocientíficos.

15.3 O PROBLEMA DO "EU" NA CONSCIÊNCIA

Na busca por alguma explicação acerca da consciência e do


pensamento na filosofia da mente, o funcionalismo surgiu acreditando que
o que concebemos por pensamento ou por consciência não é mais do que
as funções que estes sistemas, no nosso sistema neural ou cerebral, podem
desempenhar, com isso lançando a seguinte pergunta: É possível um
elemento artificial pré-programado exercer as mesmas atividades que os
humanos? O que é diferente nesses casos? Na filosofia moderna isso já era
debatido com a ideia dos autômatos, mas foi com Alan Turing que a
questão tomou forma: pode uma máquina pensar? Quais os limites da
computação e da inteligência artificial? Com essa pretensão em mente,
Turing indagou com seu Jogo da Imitação que se entendemos que o
pensamento humano é a sua funcionalidade, então um ser artificial que
desenvolvesse as mesmas funções também pensaria. Nesse caso, a única
inovação do funcionalismo é a possibilidade de abandonar o sentido de
alma ou dualismo, atribuindo as mesmas capacidades humanas às
máquinas. No caso dos autômatos lhes faltaria a alma, segundo Descartes.
Mas o problema está para além do dualismo cartesiano, pois o ser humano
ou mesmo os demais animais, ou seres biológicos em geral, são dotados
de uma espécie de circuito "aberto à mudanças", dessa maneira, evoluímos
não se limitando aos estados atuais. Como essa evolução ocorre?
Independe, pode ser pelas relações culturais, sociais, climáticas etc.. o
diferencial nesse caso são as "possíveis" mudanças. Os elementos
artificiais - as máquinas - são um composto de elementos "fechados em si
mesmo" - limitados, mas limitados à quê? A realizar as mesmas tarefas que
os seres biológicos? Não, são limitados pelo simples fato de serem pré-
programados a exercerem tais tarefas. Se comprarmos um “Pen Drive”
com certa memória, ela tende a se expandir com o passar do tempo? Se
deixássemos um computador parado, por algum motivo, e o
Do problema mente-corpo... 163

reencontrássemos daqui a mil anos, suas funções terão mudado? Não,


certamente serão as mesmas! É disso que estamos falando. A vantagem do
ser humano, além da nossa supercapacidade de acumular informações, é a
capacidade de mudança, e isso impede qualquer previsibilidade;
supercapacidade diz respeito ao limite ainda não encontrado para reter
informações, pois qualquer que seja a máquina em questão, pode ser o
melhor computador disponível no mercado, é composto de uma memória
limitada, no nosso caso essa barreira ainda não foi encontrada. O teste de
Turing parece subjetivo, realizar a mesma tarefa não é pensar como, é
apenas imitação, daí o nome. Imitar não é ser, talvez um clone fiel com a
mesma sequência genética o seja, mas ainda não responderia sobre a
consciência. Afinal, seria a mesma?
Há quem diga que a consciência que cremos ter não passa de uma
ilusão, e o "eu" que buscamos, em realidade não existe de fato. Não
poderia ser um problema linguístico? Quando afirmo o “eu” ou o “meu”,
quero dizer o quê? Que tenho uma consciência independente desse corpo
e deste cérebro para afirmar minha identidade? Ou simplesmente, numa
perspectiva funcionalista, para dizer o seguinte: esse conjunto de bilhões
de neurônios que recebe essa informação e a processa, compreende o que
foi dito ou reivindica em nome do conjunto tal indagação. A consciência
de si não seria apenas uma representação assim como ocorre numa tela de
TV? Que depende de diversos elementos para funcionar, para ao final
como resultado ter uma imagem, a qual vemos? Não seria semelhante o
processo em nossa mente? Somos a "voz" do todo que age por trás dos
incontáveis processos que ocorrem antes de efetuarmos alguma ação?
Parece que antes mesmo de agirmos, o cérebro envia o comando de modo
anterior à nossa assimilação, parece que com isso somos apenas uma
representação do comando anterior a nós, dos processos neurais, mas seria
apenas isso? Benjamin Libet atribuiu essa reflexão, ou algo parecido com
ela, ao determinismo. Nos anos 80, através de experimentos, questionou
a existência do livre-arbítrio, segundo Teixeira:

Libet descobriu que mudanças no cérebro ocorrem antes da intenção de


executar uma determinada ação. O relato da intenção de executar a ação
é posterior à mudança detectável no cérebro, que ocorre 350
milissegundos antes. Ou seja, o cérebro é ativado antes da intenção
consciente de agir. Tudo se passa como se a intenção fosse apenas um
evento mental sem nenhum poder causal que, por ocorrer quase
imediatamente à mudança no cérebro, produz a falsa impressão de que
estaríamos agindo livremente (TEIXEIRA, 2017, p. 57).
164 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Desse modo seríamos determinados? Quando quero levantar um


braço, ele se levanta, quantas vezes eu quiser, não há nenhum evento
contingente envolvido. Como dito anteriormente, somos seres com
grande capacidade de memória, mas nesse ponto uma crítica da
inteligência artificial é que os computadores são muito mais rápidos que a
gente: máquinas jogam xadrez, executam tarefas em geral numa velocidade
inconcebível por nós, o que nos leva a crer que independente de nossa
memória ser muito mais ampla somos ao mesmo tempo muito mais lentos
para processar tais informações, e isso poderia responder ao
determinismo. Quando pensamos em agir, a informação já chegou no
cérebro com uma velocidade tão grande que ela é processada e o comando
do movimento enviado tão rapidamente que o movimento em nosso
corpo, dado como comando feito pelo cérebro como resposta à nossa
intenção de agir, demora mais para ser assimilada por nós do que para o
cérebro que enviou e o membro que já que se moveu. Pode parecer
estranho, mas se nos atermos às tecnologias atuais encontramos
correspondentes: o uso o celular é um deles; quando falamos com alguém
pelo telefone temos a falsa impressão de que a transmissão é simultânea,
pois a velocidade com que a transmissão da onda de rádio3é feita não é
assimilada pelos nossos sentidos, pois nesse caso se iguala a velocidade da
luz, quase 300.000 k/s, e esse pode ser o problema das ações ocorridas no
cérebro, não temos controle algum sobre o que ocorre, parece que
participamos e temos algum livre-arbítrio para agir, mas que o cérebro e
suas funções neurológicas são anteriores a nós. O cérebro age sem a
participação da consciência, o contrário não ocorre. Exemplos disso são
fáceis de localizar, podemos incluir nesses casos o sonâmbulo que
perambula sem se recordar de onde esteve, ou o fato de que não
conseguimos suicidar-se por asfixia voluntária devido a ação do bulbo4, ou
ainda os demais reflexos chamados de instintivos, que mesmo você não
pensando em proceder com tal ação, seu corpo o faz para te defender, ou
seja, manter o bom funcionamento do corpo. Como seu cérebro sabe
disso sem você pensar? A consciência do eu nada parece ter de
independência. Pois, se quem determina uma ação não é o cérebro por
conta própria, nem o "eu" consciente; quem determina, então? O
inconsciente? Quantos "eus" habitam minha mente? Seria impossível
determinar o eu pensante, ou afinal somos determinados?

3 <https://www.if.ufrgs.br/cref/?area=questions&id=223>
4 Orgão ligado à medula espinhal. Responsável pelo controle das funções vitais, como a
respiração, por exemplo. <http://www.uff.br/WebQuest/pdf/resp.htm>
Do problema mente-corpo... 165

15.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão parece ficar mais confusa quanto mais adentro


pesquisamos, mas a pergunta persiste: o que me confere identidade? Seria
possível deduzir tal resposta? Se por identidade, assim como nos termos
filosóficos de substância, entendemos que deve ser algo independente de
qualquer agregado, onde estaria nosso "eu"? Em partes isoladas de nosso
corpo certamente não estaria, pois se perco um braço ou uma perna
continuo sendo eu do mesmo jeito, na consciência também parece não
estar, pois se me acidento e perco todas as memórias e a consciência de
mim mesmo, como em alguns casos em que pacientes não recordam nem
o nome nem quem são, parece também não estar, pois deste modo ao
perder a memória perderia minha identidade, estaria talvez no cérebro que
como software carregaria todas as sequências lógicas a serem executadas
no corpo e na mente, mas se num mesmo acidente o cérebro também é
afetado diretamente, onde estaria meu eu? Estaria em algo tão subjetivo
como uma impressão digital, uma arcada dentária, ou mesmo na sequência
genética que carrego em meu corpo? Perguntas ainda difíceis de
responder.

REFERÊNCIAS

CHURCHLAND, Paul M. Matéria e consciência: uma introdução


contemporânea à filosofia da mente. Tradução de Maria Clara Cescato.
São Paulo: Editora UNESP, 2004.

TEIXEIRA, João de Fernandes. O que é filosofia da mente. São Paulo:


Editora Brasiliense, col. Primeiros Passos, n. 294, 1994.

TEIXEIRA, João de Fernandes. Kant no século XXI: a “Crítica da Razão


Pura”, a filosofia da mente e a ciência cognitiva. Porto Alegre: Editora
Fi, 2017.
XVI

DOS PRÉ-SOCRÁTICOS A ARISTÓTELES: O NASCIMENTO


DA ATITUDE CRÍTICA E O SEU FIM

Douglas Borges Candido*

RESUMO

O presente artigo busca analisar a renúncia popperiana à concepção


essencialista do conhecimento por meio da crítica apresentada ao filósofo
Aristóteles. Em seu livro O mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-
socrático, Popper confessa sua dívida para com a filosofia pré-socrática
assumindo que o racionalismo crítico não é uma tese originária sua, mas
que foi suscitada pela atitude crítica desses primeiros filósofos. Tal tese,
defende Popper, nasceu do esforço realizado pelos pré-socráticos em
propor uma explicação do mundo por ele mesmo, sem recorrer a
explicações ligadas à religião. A originalidade de Popper está em resgatar
essa postura esquecida nos meios científicos, aperfeiçoá-la e inseri-la no
centro da atividade científica por meio de suas reflexões epistemológicas.
É também nesse mesmo livro que o filósofo realiza uma crítica mordaz ao
modelo de conhecimento proposto por Aristóteles. A concepção de
conhecimento demonstrável é, para Aristóteles, o modo para se atingir o
conhecimento da essência das coisas. Segundo Popper, tal concepção de
conhecimento, juntamente com a noção de indução, teria findado com a
atitude crítica originada pelos pré-socráticos e, desta forma, promovido
uma involução na ciência ocidental. Foi preciso a revolução física do início
do século XX e a epistemologia popperiana para que a ciência pudesse
superar o ranço essencialista do saber.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência; Pré-socráticos; Atitude crítica;


Aristóteles; Conhecimento demonstrável; Essencialismo.

* Pontifícia Universidade Católica do Paraná; e-mail: douglasborgescandido@gmail.com


168 Ressonâncias filosóficas - Artigos

16.1 UMA INTRODUÇÃO À INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA


PRÉ-SOCRÁTICA NO PENSAMENTO DE KARL POPPER1

A epistemologia contemporânea, em parte fruto da crise das


ciências empíricas dos anos iniciais do século XX, reestruturou o modo
como a ciência conduzia sua atividade. O paradigma científico moderno
não era mais suficiente aos questionamentos que surgiam a partir dos
novos estratos descobertos, principalmente pela física, a respeito da
natureza. Por essa razão, o abandono dos pressupostos modernos foram
se dando gradualmente. Instala-se, então, uma crise científica e
metodológica para as ciências. Na busca de responder ao problema
metodológico, algumas propostas, como a do Círculo de Viena, entre
outras, surgiram. Buscando uma solução ao problema metodológico das
ciências, a concepção científica do mundo propagou alguns ideais do
velho paradigma. O que justifica essa afirmação é o método
verificacionista defendido como critério de demarcação dos enunciados
científicos. Em suma, tal método defende que se um enunciado não pode
ser verificado empiricamente, então não é científico. O recurso à
experiência se torna, desta forma, a fonte para distinguir o conhecimento
científico do pseudocientífico. Assim, a experiência, como foi considerada
pelo empirismo moderno, acaba assumindo lugar central na teoria
metodológica proposta pelo Círculo de Viena.
Assumindo uma postura crítica em relação ao Círculo de Viena,
Karl Popper apresentou uma nova perspectiva no modo de compreender
a ciência resgatando, da filosofia pré-socrática, a noção de atitude crítica.
Desta forma, Popper reformulou, a partir de sua teoria do racionalismo
crítico, a maneira como se constrói conhecimento científico nas ciências
empíricas. Em A Lógica da Pesquisa Científica, Popper estabelece seu critério
de demarcação que destaca como característica peculiar das teorias
científicas serem conjecturas e, por essa razão, falseáveis. À época, sua
proposta metodológica catalisou, da crise das ciências no século XX, um
aspecto crucial para a atividade científica: a noção de que os resultados ou
conclusões que a ciência alcança, ou pode alcançar, são falíveis. Ainda que
parecendo simplória, a conotação da ciência feita por Popper foi
arrebatadora, sendo não só responsável pela crítica ao positivismo lógico,
mas de trazer para o bojo da ciência a característica/atitude não

1 Essa temática foi desenvolvida em maiores detalhes na dissertação do mesmo autor


intitulada Karl Popper: uma postura não essencialista da ciência, defendida no
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, no primeiro semestre de 2017.
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 169

essencialista do conhecimento. Ainda em A Lógica da Pesquisa Científica


(2007, p. 39) Popper deixa claro que “as pessoas que consideram ser o
propósito da Ciência a obtenção de enunciados absolutamente certos,
irrevogavelmente verdadeiros, rejeitarão, sem dúvida, as propostas que
apresentarei”. Da ótica do racionalismo crítico, o essencialismo crê no
poder da racionalidade humana atingir a essência das coisas. Conhecendo-
se a essência, alcança-se a verdade absoluta sobre a coisa ou fenômeno.
Traduzindo para a ciência: crê-se que é possível chegar a explicações
últimas.
Como já citamos, influenciado pela filosofia grega, Popper toma
do pensamento filosófico-científico oriundo dos pré-socráticos a noção
de atitude crítica para com o conhecimento. Firmando-se nas
personalidades de Tales de Mileto, Xenófanes de Cólofon e também
Sócrates, Popper resgata a concepção de humildade e honestidade
intelectual, noções basilares para a atividade científica. Esses conceitos, diz
Popper, devem permear a atividade dos cientistas e leva-los,
principalmente, a assumir a consciência de que suas teorias podem estar
erradas e a maneira mais indicada para averiguar se o que afirmam, está
correto ou não, é discutir os resultados de maneira crítica, testando as
teorias da maneira mais determinada possível.
No presente trabalho o objetivo será analisar, a partir das obras O
mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático e Conjecturas e
Refutações, como a atitude crítica surgiu com os primeiros filósofos pré-
socráticos e de como ela foi soterrada com o surgimento da concepção
aristotélica de conhecimento demonstrável, que originará uma postura
essencialista do conhecimento.
Como fruto da atividade humana, o conhecimento, quer seja
científico ou não, não pode isentar-se dos erros e equívocos. Da alquimia
ao ramo da química mais desenvolvida, o erro é um aspecto presente em
ambas. Nenhuma (pseudo)ciência escapa à esse importante detalhe. Como
fruto da atividade intelectual humana, a ciência, como afirma Peluso (1995,
p. 47), “traz consigo as deformações nela colocadas pelo cientista”.
Deformações estas que não são criadas conscientemente pelos cientistas,
mas que se originam da visão limitada do homem sobre o mundo e o que
dele se busca compreender.
No plano de fundo dessas questões, subjaz a noção de verdade das
teorias científicas. No caso do essencialismo, a verdade de uma teoria é
uma verdade absoluta, ou seja, não há nada para além dela. Contrário a
essa posição, Popper entende a verdade como um conceito norteador da
170 Ressonâncias filosóficas - Artigos

pesquisa científica. No que tange a interpretação que Popper dá sobre a


verdade, afirma Barros (1995, p. 12):

Falamos de verdade. Como aceder a esta, entretanto, se todas as nossas


teorias são meramente aproximativas, valendo enquanto não são
refutadas? É que a verdade é, como diria Kant, uma ideia reguladora, que
dirige todo o nosso esforço de conhecimento, é o ideal de uma busca
inacabada. As teorias, efetivamente, nos entregam apenas o verossímil:
elas são o que de melhor temos para conhecer o mundo que se nos
depara.

Retornando ao problema do essencialismo, o fundamento da


crítica popperiana a essa tese é a ideia de que na ciência a tarefa nunca está
acabada. Apesar de as teorias serem o melhor que a ciência pode oferecer,
elas sucumbem com o próprio desenvolvimento científico.
Foram, então, os pré-socráticos os primeiros a reconhecerem o
caráter frágil das teorias que formulavam. Historicamente, foram os
preceptores do que se tornaria o racionalismo crítico, tese que defende
a crítica racional como único meio possível para dissipar os erros e,
possivelmente, aproximar-se mais da verdade através das conjecturas.
Foram eles os primeiros a fazerem suas teorias passarem pelo crivo da
crítica e da discussão a respeito da verdade de suas explicações. Mesmo
que buscassem compreender a ordem, isto é, a racionalidade do cosmos
que existe por detrás do mundo fenomênico, não assumiu posturas
dogmáticas ou essencialistas sobre suas conjecturas. Pelo contrário,
segundo Popper, eles viviam em uma sociedade aberta onde o espírito
crítico era livre e incentivado.
A história da ciência nos mostra que a preocupação em
compreender as leis dos fenômenos naturais ou a racionalidade do cosmos
não é uma novidade dos gregos. Povos da China, da Mesopotâmia e do
Egito possuíam calendários e mapas bastante desenvolvidos antes dos
povos ocidentais começarem a se perguntar sobre a origem das coisas2.
Porém, na história do pensamento ocidental, os gregos foram
considerados os primeiros cientistas3. Tales de Mileto foi considerado o

2 ConferirPRICE, Derek De Solla. A Ciência desde a Babilônia. Tradução de Leônidas


Hegenberg e Octanny S. da Motta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Universidade
de São Paulo, 1976.
3 Em sua obra História da Química: dos primórdios a Lavoisier, Juergen Heinrich Maar

apresenta os pré-socráticos como os primeiros químicos do Ocidente, ou seja, os


Dos pré-socráticos a Aristóteles... 171

primeiro a inaugurar as especulações de cunho filosófico-científico,


apresentando uma nova perspectiva sobre a maneira de se tentar
compreender a natureza a partir dela mesma. A transição da cosmogonia
para a cosmologia efetuada por esse pré-socrático foi consagrada na
história como o milagre grego. A razão passava a ser o instrumento de
compreensão dos fenômenos naturais e também de crítica dessas
tentativas de compreensão. Referindo-se ao impacto do pensamento de
Tales à ciência ocidental, Brennan afirma (1998, p. 13):

Em primeiro lugar, Tales não recorreu ao animismo; isto é, não dizia que
chove porque o deus da chuva está zangado ou que os mares são
profundos porque os deuses assim determinaram. Em segundo lugar, fez
a audaciosa afirmação de que o cosmo era algo que a mente humana
podia compreender. Seu feito mais espetacular, e que provou sua tese,
foi a previsão de um eclipse para 585 a.C. – ele realmente ocorreu. Tales
pôs o mundo intelectual na senda da reflexão sobre o modo como as
coisas funcionavam, uma senda que continua sendo trilhada em nossos
dias.

A senda aberta por Tales inseriu na ciência ocidental um elemento


chave: a curiosidade como uma atitude valiosa para o desenvolvimento de
resultados interessantes. A audácia desse pré-socrático em afirmar que o
Universo poderia ser compreendido pela mente humana foi um dos
aspectos que a ciência ocidental absorveu e que se tornaria um ideal
exacerbado, na modernidade. Entretanto, a ciência moderna distorceu, em
partes, a afirmação de Tales. O que esse destacou foi a possibilidade de
o Homem compreender as leis do universo. O que os modernos
interpretaram foi que a razão, ou a experiência, seria a fonte para o
conhecimento inquestionável da natureza e de suas leis físicas. Uma
breve comparação entre esse pré-socrático e o físico moderno Galileu
pode nos auxiliar a entender essa questão. Enquanto que para Tales as
teorias eram hipóteses, conjecturas, para Galileu elas constituíam as
verdadeiras essências dos fenômenos4.
Feitas as considerações iniciais a respeito do tema que será
abordado, passaremos à análise, guiada a partir dessas reflexões, do
período que antecedeu à filosofia pré-socrático para podermos entender
como esses primeiros filósofos revolucionam com o modo de estudar a

primeiros a fazerem especulações sobre a matéria. O primeiro químico e o primeiro


cientista, na lista de Maar, foi Tales de Mileto (Cf. pp. 25-26).
4 Cf. Popper 2006.
172 Ressonâncias filosóficas - Artigos

natureza a partir da noção de atitude crítica e de conjectura. Estudaremos,


então, brevemente o período homérico e qual a concepção de
conhecimento desse período. De que tipo eram as explicações desse
momento? Essencialistas? Como reagiram os pré-socráticos ao modelo de
conhecimento apresentado pelo período homérico? Como averiguaremos,
eles inaugurarão uma ruptura, mas que, segundo Popper, será abafada pelo
modelo de ciência aristotélica. Passemos, então, ao estudo dessas
situações.

16.2 A GÊNESE DA ATITUDE CRÍTICA: A FILOSOFIA PRÉ-


SOCRÁTICA

A primeira tentativa de explicação dos fenômenos naturais


emergiu da mitologia a partir da necessidade humana em atribuir sentido
aos acontecimentos. Como defende Cordero (2011, p. 18), essa é uma
característica geral de todas as culturas e de quando elas atingem um nível
de desenvolvimento cultural maior. Assim afirma: “é um fato inegável,
contudo, que em todas as culturas, uma vez alcançado certo patamar de
civilização, uma série de relatos ou de lendas, agrupados sob a rubrica de
“tradição mítica”, tentaram oferecer respostas a questões fundamentais”.
A tradição mítica que cada civilização desenvolve é rica em informações.
Ela pode demonstrar desde sua cosmologia até o modo como organizam
a sociedade com seus sistemas religiosos, calendário, datas comemorativas,
ciclos naturais, entre outros.
Da perspectiva mitológica, a origem da physis e o seu
comportamento estão entrelaçados com o comportamento e a vontade de
entidades metafísicas, sejam elas os deuses ou as forças naturais. O
pensamento compreendido entre os séculos VIII e VII a.C., também
conhecido como período arcaico, é marcado pela crença e ausência de
pensamento crítico. Excluíam-se perguntas do tipo ‘Como pode ser
comprovado que os deuses realmente existem?’, ‘Como pode-se garantir
que eles estão nos protegendo e protegendo nossas cidades?’. Tais
questionamentos não são tipicamente epistemológicos, mas servem para
refletir o espírito de uma época que foi incapaz de se libertar de suas
próprias narrativas.
A narrativa mitológica, por ocupar um lugar central nesse
momento, não era invocada em resposta de questões banais, mas para
muitas das indagações que continuam em aberto em pleno século XXI.
Que indagações seriam essas? Segundo Cordero (2011, p. 20):
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 173

Os mitos são forjados para responder a perguntas implícitas, não


formuladas, mas que se deduzem das respostas, tais como “qual é a origem
de tudo: universo, deuses, homens?”, “por que há uma ordem no
universo?”, “o que ocorre depois da morte?”, etc.
No período compreendido entre os séculos VIII e VII a.C., o
pensamento científico ocidental ainda era inexistente pelo domínio que as
narrativas mitológicas exerciam tanto no campo científico, como no
religioso, como nas demais áreas. O pensamento da época não se opunha
a interpretação que os mitos apresentavam. Mesmo sabendo que a maioria
dos mitos constituíam uma herança pautada na tradição oral, e que por
essa razão poderiam sofrer mudanças no decorrer do tempo, a veracidade
dos mitos dificilmente era posta em dúvida. Ele havia sido a primeira
forma de interpretação do universo criada pelo homem. A ciência na
civilização ocidental só encontrou espaço quando alguns indivíduos
tiveram a coragem e a audácia de assumir posições céticas sobre tais
narrativas e, justamente com isso, uma sociedade mais ‘esclarecida’ passou
a aceitar os mitos como parte da religião e da cultura, mas não mais como
uma explicação do funcionamento da natureza. Corroborando essa ideia,
afirma Gleiser (1997, p. 39): “à medida que um número maior de
fenômenos naturais passou a ser compreendido cientificamente, a religião
lenta e forçosamente passou a se preocupar mais com o mundo espiritual
do que com o mundo natural”.
A partir dessas considerações sobre o período arcaico, percebe-se
que a primeira interpretação a respeito da natureza se pautou a partir de
uma visão de mundo metafísica, determinista e essencialista. Metafísica
porque os deuses eram os arquétipos e legisladores dos eventos naturais;
determinista porque o universo comportava-se conforme a vontade deles;
e essencialista, pois o mito, narrativa de eventos onde os deuses estavam
envolvidos, era a única explicação para o comportamento da natureza.
O diferencial da cultura grega em relação as demais culturas que
também possuíam mitos como explicação da realidade, foi a presença de
um ceticismo incipiente e a crítica que emergiu como instrumento de
análise. Como defende Cordero (2011, p. 22), “a civilização grega não
seguiu o mesmo caminho das outras culturas com as quais coabitou”,
mostrando que os gregos abandonaram gradativamente a explicação
mitológica dos fenômenos enquanto as demais civilizações continuaram
com essa forma de abordagem da realidade. Talvez, conjectura Losee
(1979), essa mudança de eixo do pensamento mitológico para o filosófico-
científico tenha sido o motivo para que em poucos séculos o Ocidente
174 Ressonâncias filosóficas - Artigos

tenha se colocado à frente, no que tange ao conhecimento, de outras


sociedades. Atestando indiretamente essa posição, o especialista em
mitologia Mircea Eliade (2002, p. 130) afirma:

A cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante


análise, da qual ele saiu radicalmente “desmitificado”. A ascensão do
racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da
mitologia “clássica”, tal qual é expressa nas obras de Homero e Hesíodo.

Concordando com Cordero (2011), Eliade (2002) afirma que aos


poucos a explicação mítica sobre a physis foi sendo abandonada por alguns
pensadores e a formulação de uma explicação de cunho racional, que não
apelava mais a estruturas míticas, foi assumindo seu lugar para dar conta
dos fenômenos naturais. Aí teve início a Filosofia5 e, como característica
peculiar, a razão e a crítica passaram a constituir o instrumental para a
compreensão do mundo. A cosmologia pré-socrática surgiu do exame
crítico dos mitos e da insatisfação às explicações dadas aos problemas e às
conclusões relativas ao comportamento da natureza. Xenófanes foi um
dos primeiros pré-socráticos a demonstrar seu ceticismo em relação as
narrativas míticas. Conforme Eliade (2002, p. 8): “Xenófanes (circa 565-
470 a.C.) foi o primeiro a criticar e rejeitar as expressões “mitológicas” da
divindade utilizadas por Homero e Hesíodo”. O exame que esse pré-
socrático realiza demonstra o uso da crítica como um instrumento potente
de desenvolvimento do pensamento e, consequentemente, do saber.
Influenciados ou não por Xenófanes, a maioria dos pré-socráticos
foi abandonando a cosmogonia homérica e, paulatinamente, apresentando
novas questões e novas interpretações sobre a physis. Para além das teorias
inovadoras que os primeiros pré-socráticos propunham, eles legaram à
ciência uma atitude essencial: a atitude crítica. Instituíram o binômio
razão e crítica como instrumentos para se chegar a um conhecimento mais
profundo sobre a natureza e seu comportamento. Apesar das questões e
teorias formuladas por esses primeiros filósofos/cientistas serem

5 Não havia a distinção entre filósofos e cientistas no período pré-socrático. Por essa
razão, as teorias filosóficas também foram as primeiras interpretações científicas da
natureza. No caso dos pré-socráticos, Juergen Heinrich Maar, renomado historiador da
Química, apresenta-os como os primeiros químicos do Ocidente (Cf. Cap. 2. História
da Química. Primeira parte: dos primórdios a Lavoisier (2.ed.). Florianópolis: Conceito
Editorial, 2008).
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 175

rudimentares, eles provocaram uma inovação no modo de interpelar a


natureza6.
Os primeiros questionamentos feitos pelos pré-socráticos,
segundo Collingwood (1976, p. 51), foram sobre “qual a substância
originária, a substância imutável subjacente a todas as mudanças do
mundo natural de que temos conhecimento?”. Para Tarnas (2001, p. 34),
o princípio que guiava o pensamento pré-socrático era a concepção de que
o Cosmo conservava uma “unidade e ordem racional subjacentes no fluxo
e na diversidade do mundo, assumindo a tarefa de descobrir um princípio
fundamental simples, ou arché, regendo a Natureza e, ao mesmo tempo,
compondo sua substância básica”. A busca em compreender essa
racionalidade acabou tornando-se o objetivo e o ideal da ciência pré-
socrática. Tomando como pressuposto que a substância fundamental não
somente existia, mas compunha o universo, os pré-socráticos formularam
suas teorias enaltecendo algum elemento natural como se fosse, então,
esse elemento primordial. É identificável na cosmologia pré-socrática um
princípio de destaque na ciência ocidental, a noção de simplicidade das
teorias. Neles encontramos o ‘princípio de economia’ que, a partir dos
quatro elementos naturais (terra, água, ar, fogo), levava à construção de
suas teorias. Nas palavras de Laszlo (1999, p. 18): “a origem do mundo era
deduzida a partir do menor número de elementos ou princípios básicos,
tais como a água, a terra, o fogo e o ar, ou ainda alguma combinação entre
eles”.
Alguns filósofos consideram os pré-socráticos indutivistas, pois
conforme Tarnas (Cf. 2001, p. 34), “o fato das teorias pré-socráticas
referirem-se a elementos naturais, leva à conclusão de que todas eram
derivadas da observação”. Divergindo dessa concepção, Popper afirma, a
respeito das teorias pré-socráticas, que a experiência ocupa um lugar
secundário na formulação de suas teorias, pois estas teriam surgido do
intelecto, ou seja, teriam sido afirmações impostas pelos pré-socráticos à
natureza. Segundo Popper (2014, p. 3-4), a maior parte das conjecturas
dos pré-socráticos:

Nada tem a ver com a observação. Tomemos, por exemplo, algumas das
teorias acerca da forma e da posição da Terra. Dizia Tales, ao que consta
(A15), “que a Terra é sustentada pela água sobre a qual se move como

6 As teorias dos pré-socráticos também podem ser chamadas de prototeorias, pois já não
são mais interpretações de cunho mitológico e ainda não são teorias genuinamente
científicas. Elas estariam no estágio intermediário.
176 Ressonâncias filosóficas - Artigos

um barco. Se dissermos haver um terremoto, a Terra está sendo sacudida


pelo movimento da água”.

Para Popper, não se deve tomar a teoria de Tales como indutiva


por possuir analogias com a experiência. O grau explicativo de sua
conjectura só pode ser alcançado pelo método hipotético-dedutivo, o que
justifica a utilização de analogias ou derivações de exemplos particulares
de sua teoria.
Outro pré-socrático que buscou explicar alguns fenômenos
naturais foi Anaximandro. Sua teoria afirmava que “a Terra não se apoia
em nada, mas mantém-se imóvel em virtude da sua equidistância em
relação a todas as outras coisas” (ANAXIMANDRO apud POPPER,
2006, p. 192). A pergunta que rebate as afirmações de serem esses pré-
socráticos empiristas é: como Tales e Anaximandro teriam condições de
formular, somente pela observação, suas teorias? Segundo Popper (2006),
o que provavelmente teria acontecido no caso de Tales, foi que a teoria
surgiu em solução a um problema prático. Estudos geológicos apontam, e
corroboram a tese de Popper, que a região em que Tales viveu, Mileto, na
Ásia Menor, era constantemente surpreendida por terremotos. Partindo,
então, de um problema prático - os terremotos - Tales deparou-se com
um problema teórico - o de como explicá-los. Supostamente, esse
problema foi o que o incitou a propor uma conjectura. A mesma
explicação se aplica a Anaximandro, que sem recursos tecnológicos para
verificar o que afirmava sobre a Terra, tornava-se impossível a este pré-
socrático formular sua teoria somente a partir da experiência, isto é,
utilizando do método indutivo. A mesma indagação se faz Popper (2006,
p. 192) quando pergunta: “como chegou Anaximandro a esta admirável
teoria?”, seguido da resposta: “Não, certamente, pela observação, mas
pelo raciocínio”.
O método utilizado por esses dois pré-socráticos, Tales e
Anaximandro, não pode ser confundido com o método indutivo por
apresentar comparações empíricas. O alcance dos sentidos não permitiria
teorias ousadas como as formuladas por eles. Essas foram teorias
formuladas a partir do método hipotético-dedutivo e, por essa razão, de
cunho racional. As palavras de Popper (2006, p. 191) elucidam a questão
em nosso favor: “a nossa ciência ocidental não começou por nenhuma
coleção de observações de laranjas, mas sim por audaciosas teorias acerca
do mundo”.
Em apologia aos pré-socráticos e ao mesmo tempo tecendo uma
crítica ao método indutivo, o qual defende que todo conhecimento
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 177

verdadeiro é o que se origina da pura observação, Popper (1975, p. 236-


237), em uma conferência proferida em homenagem a Herbert Spencer,
decidiu realizar uma experiência com seus interlocutores para demonstrar-
lhes o equívoco que esse método representa. Segue o relato da experiência:

Minha experiência consiste em pedir-vos para observar, aqui e agora.


Espero que todos sejais cooperadores e observadores! Contudo, receio
que pelo menos alguns dentre vós, em vez de observar, sentirão forte
impulso para indagar: Que quer que eu observe?
Se esta for vossa resposta, então minha experiência foi bem sucedida.
Pois o que estou tentando ilustrar é que, a fim de observar, devemos ter
em mente uma indagação definida que possamos ser capazes de decidir
por meio da observação.

A experiência que Popper realizou nos ensina que ciência se faz a


partir do método hipotético-dedutivo. Tal método consiste na formulação
de hipóteses de caráter universal para delas deduzir enunciados que
possam ser testados. Esse é o oposto do método indutivo que, a partir das
observações recolhidas, formula enunciados particulares e destes conclui
hipóteses de caráter universal. Historicamente, na concepção de Popper,
o método hipotético-dedutivo teria sido inaugurado pelos pré-socráticos
e por algumas de suas teorias. Dessa forma, pais de tal método e também
da atitude crítica, os pré-socráticos inauguram o pensamento científico
ocidental7. É provável que Anaximandro, discípulo de Tales, ao analisar a
teoria de seu mestre sobre a posição da Terra, tenha lhe desferido a crítica
do regresso ao infinito que está proporciona. Para Popper, Tales teria
instigado Anaximandro a propor uma teoria de maior poder explicativo
sobre a posição da Terra e, se fosse capaz, de apresentar os limites da teoria
de seu mestre. Questionando-se a respeito do desenvolvimento das teorias
pré-socráticas, pergunta Popper (2006, p. 205): “qual era o segredo dos
antigos?”, ao que responde imediatamente: “Sugiro que era uma tradição
– a tradição da discussão crítica”. Sem dúvidas, se perguntarmos quando
e quem iniciou essa tradição, para Popper (2006, p. 207): “se procurarmos
os primeiros sinais desta nova atitude crítica, desta nova liberdade de
pensamento, seremos conduzidos de volta à crítica de Tales por

7 Segundo Gleiser, graças ao enfoque racional feito da natureza, os pré-socráticos


construíram uma visão de mundo alternativa a dos mitos. Nas palavras de Gleiser (1997,
p. 39), “o desenvolvimento gradual de um enfoque racional, usado por cientistas para
confrontar os mistérios da Natureza, criou uma nova visão de mundo, oferecendo uma
alternativa ao que antes era domínio exclusivo da religião”.
178 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Anaximandro”. Foi diante desse cenário de liberdade de pensamento que


a atitude crítica surgiu e se desenvolveu.
Foi do pensamento pré-socrático então que Karl Popper absorveu
a ideia da atitude crítica. Será a invenção e o uso dessa atitude para com
suas conjecturas que possibilitará caracterizar os pré-socráticos, com
exceção dos pitagóricos8, como não essencialistas. Em sua obra O mundo
de Parmênides, Popper (2014, p. 19) frisa novamente que o segredo para o
desenvolvimento das teorias dos pré-socráticos foi “a tradição da discussão
crítica”. Outro elemento que Burnet (2006, p. 36) destacou como
importante no pensamento pré-socrático foi “a curiosidade”, que muito
provavelmente é um elemento crucial para a formulação de especulações
ousadas.
A concepção pré-socrática a respeito do cosmos, apesar de se
apresentar como não essencialista, projetava na natureza uma visão
determinista em relação as leis naturais. Para Burnet (2006, p. 28), “o
principal interesse de todos (os pré-socráticos) era a busca do que havia
de permanente no fluxo das coisas”. Porém, o modo como abordavam as
teorias é que os diferenciará de Aristóteles, por exemplo. Para os pré-
socráticos, a teoria poderia se mostrar errada a partir da discussão crítica.
Se porventura ela se mostrasse equivocada, deveria ser abandonada na
busca de encontrar outra melhor e mais fidedigna com os fatos.
A busca pela substância originária, imutável e que estaria
subjacente à todas as coisas, demonstra um interesse em conhecer a
verdadeira estrutura por detrás da realidade fenomênica, mutável e
imperfeita. Assim como em Popper a noção de verdade na ciência é
estabelecida enquanto um conceito norteador da pesquisa científica, para
os pré-socráticos a noção de ordem deve servir mais como uma ideia
reguladora para suas teorias do que algo a que alguma teoria pode alcançar
ou tenha alcançado. Assim sendo, a natureza se apresentava a esses
primeiros filósofos como um sistema que possuía leis intrínsecas, as quais
determinariam todos os acontecimentos naturais. Descobri-las seria captar
a racionalidade desse sistema, o cosmos. No entanto, mesmo as mais
convincentes teorias jamais abrangeriam essa totalidade e deveriam, sob
nenhuma hipótese, escapar à crítica. Destacando as mudanças realizadas
pelos pré-socráticos na pesquisa científica, afirma o físico Erwin
Schrödinger (1999, p. 58):

8Cf. POPPER, 2014. Popper faz uma observação em relação aos pitagóricos e a doutrina
que cultuam. Nesse livro, Popper cita inclusive um relato sobre um possível discípulo de
Pitágoras que teria revelado alguns secretos da seita pitagórica e foi morto por isso.
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 179

A ideia grandiosa que estes homens transmitiram foi que o mundo à sua
volta era algo que podia ser compreendido, [...]; que o mundo não servia de
local de recreio aos deuses, fantasmas e espíritos que agiam sob o
impulso do momento e mais ou menos arbitrariamente, movidos por
paixões, por ira, por amor e por desejo de vingança, dando livre curso
aos seus ódios e podendo ser apaziguados por ofertas devotas. Estes
homens libertaram-se da superstição e não pactuaram com nada disso.
Encararam o mundo como um mecanismo bastante complicado, que
agia de acordo com leis inatas e eternas, e que eles tinham curiosidade
de descobrir.

Contrários a concepção essencialista do conhecimento, os pré-


socráticos demonstraram que o mundo, repetindo as palavras de
Schrödinger, era algo que podia ser compreendido. Na afirmação de
Schrödinger a respeito da contribuição pré-socrática derivamos duas
possibilidades: a) de que podemos conhecer mais profundamente a
natureza por meio das conjecturas científicas; mas b) podemos também
estar aumentando nossa zona de erros sobre a natureza. Desta forma, não
podemos taxar os pré-socráticos como essencialistas justamente porque
foram os pais da atitude crítica. Foi a partir das leituras que fez desses
primeiros filósofos que Popper (2014, p. 22) chegou à conclusão de que
“nossas tentativas de ver e encontrar a verdade não são finais, mas abertas
a melhoramentos; de que o nosso conhecimento, a nossa doutrina, é
conjectural; de que consiste em suposições, em hipóteses, mais do que em
verdades finais e certas”. Conclui-se, então, que o pensamento do filósofo
austríaco está eivado da filosofia pré-socrática e das convicções que
alimentavam quanto às teorias.
Com o surgimento das novas interpretações de cunho racional a
respeito da natureza e dos fenômenos, o mundo grego depositou grande
confiança na razão.
Nosso próximo ponto de análise demonstrará, a partir da
perspectiva popperiana, que a ciência aristotélica além de apresentar uma
postura essencialista do conhecimento, acabou soterrando a atitude crítica
desenvolvida pelos pré-socráticos. A pergunta é: como Aristóteles
desviou-se do caminho iniciado pelos pré-socráticos, o caminho da atitude
crítica para com o conhecimento? É isso que tentaremos explorar agora.
180 Ressonâncias filosóficas - Artigos

16.3 O FIM DA ATITUDE CRÍTICA: A NOÇÃO DE


CONHECIMENTO DEMONSTRÁVEL DE ARISTÓTELES

Essa parte do trabalho propõe demonstrar a transição do


racionalismo crítico pré-socrático à postura de cunho essencialista do
conhecimento, presente em Aristóteles. Como foi possível uma mudança
com tamanho impacto para o pensamento científico? Como Aristóteles
desviou-se da atitude crítica pré-socrática? O que fez com que ele
valorizasse a indução como procedimento confiável para chegar ao
conhecimento verdadeiro? Como sua concepção geral de conhecimento
demonstrável ajuda construir essa imagem de uma postura essencialista?
É a partir das interpretações realizadas por Karl Popper (2006; 2014) que
se buscará refletir sobre essas perguntas.
Aos poucos, as teorias que foram sendo propostas pelos pré-
socráticos foram perdendo as características das hipóteses de Tales e
Anaximandro: a ousadia e o uso do método hipotético-dedutivo9.
Passaram a constituir-se em um rudimentar empirismo naturalista.
Segundo Popper (2014) aí iniciou a involução no pensamento científico
ocidental que será levada adiante por Aristóteles.
Na introdução de O Mundo de Parmênides, Popper (2014,
XXIII) inicia dizendo:

Com a única exceção, talvez, de Protágoras, que parece argumentar


contra ela, todos os pensadores sérios anteriores a Aristóteles fizeram
uma clara distinção entre o conhecimento, conhecimento real, verdade certa
(saphes, aletheia; mais tarde: episteme), que é divina e só acessível aos deuses,
e a opinião (doxa), que os mortais podem possuir.

Ao que nos interessa, Aristóteles foi o filósofo que rompeu


definitivamente com a distinção entre ‘conhecimento certo’ e doxa.
Continuando, Popper (2014, XXIV) afirma categoricamente:

A ruptura decisiva veio com Aristóteles. Estranhamente, embora


Aristóteles seja um teísta – elaborou até uma espécie de teologia – ele
rompe definitivamente com a tradição de distinguir entre o
conhecimento divino e a conjectura humana. Ele crê saber: que ele mesmo

9 Popper (2014) fala da exceção que foi a teoria dos atomistas, Leucipo e Demócrito. Para
ele, essa teoria, pelo período em que se encontrava, destacava-se pelas mesmas
características das teorias dos primeiros pré-socráticos, a ousadia em oferecer uma nova
teoria como explicação para a natureza e o uso do método hipotético-dedutivo.
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 181

tem a episteme, o conhecimento científico demonstrável. Esta é a principal


razão pela qual não gosto de Aristóteles: o que para Platão é uma hipótese
científica, torna-se, em Aristóteles, episteme, conhecimento demonstrável.
E para a maioria dos epistemólogos do Ocidente, assim continuou sendo
desde então.

Além dessa ruptura entre ‘conhecimento certo’ e doxa, Aristóteles


restabeleceu valor ao conhecimento sensível, aos dados empíricos.
Segundo Koyré (1991, p. 37), “para o aristotelismo, o domínio do sensível
é o domínio próprio do conhecimento humano. Não havendo sensação,
não há ciência” e, nas próprias palavras de Aristóteles: “sem ter a sensação,
absolutamente nada se poderia apreender nem compreender”
(ARISTÓTELES, 2012, III, 8, 423ª7-8). Aristóteles desenvolve, desta
forma, uma fundamentação sensualista à ciência, ou seja, do
conhecimento a partir dos sentidos e, por essa razão, que lida com o
conhecimento das coisas materiais, isto é, segundo Berti (2012, p. 101),
com “aquilo que comumente é chamado “natureza” (physis)”.
A postura essencialista instaurada pelo pensamento aristotélico,
que contribuiu para afastar da pesquisa científica a ideia de falibilidade do
conhecimento, foram as noções formuladas pelo estagirita de
conhecimento demonstrável e intuição essencialista. Segundo Pereira
(2001, p. 335), “a ciência é sempre conhecimento de essências, eis a lição última do
filósofo (Aristóteles)”. Segundo Popper (2014, p. 294), Aristóteles
apresentou:

O método da apreensão intuitiva da essência, ou seja, o método da explicação


essencialista. Aqui, “intuição” (nous, intuição intelectual) implica
compreensão infalível: ela garante a verdade. Aquilo que vemos ou
apreendemos intuitivamente é (nesse sentido de “intuição”) a própria
essência. A explicação essencialista nos permite responder à pergunta “o
que é” e (segundo Aristóteles) enunciar a resposta numa definição da
essência, uma fórmula da essência.

A noção de ‘nous’ aristotélica, conforme explica Popper, é


compreendida como intuição que leva ao conhecimento do que a coisa é.
E perguntas do tipo “o que é?” exigem definições e definições exprimem
a essência daquilo que está sendo perguntado.
Estabelecendo o pressuposto de um universo finito, fechado e de
que todas as coisas que o constituem possuem uma teleologia, Aristóteles
ainda defendeu uma concepção de ciência que buscasse as causas
primeiras dos acontecimentos como meio para se atingir a essência do
182 Ressonâncias filosóficas - Artigos

fenômeno. Partindo do sensível - a causa final -, para o inteligível - a causa


primeira. Tomando como modelo o mundo supralunar: dos planetas e das
estrelas, Aristóteles concluiu que o conhecimento científico é o
conhecimento das coisas que não mudam. Conforme afirma:

É preciso, com efeito, perseguir a verdade, partindo das cosias que estão
sempre no mesmo estado e não efetuam nenhuma mudança. Tais são as
coisas celestes: estas, de fato, não aparecem, ora com tais caracteres, uma
outra vez, com caracteres diferentes, mas sempre idênticas e sem
participar de nenhuma mudança (ARISTÓTELES, 2006, XI, 6, 1063ª10-
15).

Segundo Pereira (2001, p. 36-37), “nos próprios Analíticos ou em


outras obras do filósofo, vêm sempre confirmar-nos aquela identificação
do verdadeiro conhecimento científico com a apreensão da determinação
causal”. A busca pela causa primeira e a crença em poder encontrá-la
expressa a posição essencialista da ciência aristotélica.
Segundo o historiador da ciência John Losee (1979, p. 25), o
legado de Aristóteles às ciências empíricas foi determinantemente
essencialista, pois:

Aristóteles legou a seus sucessores a crença de que sendo os primeiros


princípios das ciências, espelhos das relações naturais que não poderiam
deixar de ser o que são, estes princípios não podem ser falsos. Na
verdade, ele não pôde autenticar esta crença. Apesar disto, a posição de
Aristóteles de que as leis científicas afirmam verdades necessárias teve
longa influência na história da ciência.

Assim como Losee, Popper também admite essa influência, no


entanto, a vê como negativa para a história do pensamento científico
ocidental. Os cientistas, segundo Peluso (1995, p. 46), baseando-se em
Aristóteles, “partem da afirmação de que a investigação científica tem de
penetrar a essência das coisas para poder explicá-las”, e a partir disso,
constroem posturas deterministas sobre a natureza e seu comportamento
e, posteriormente, teorias essencialistas sobre o conhecimento alcançado
sobre ela. Constituindo uma crítica à influência aristotélica para a ciência
ocidental, afirma Popper (1980, p. 25):

Os essencialistas metodológicos inclinam-se a formular perguntas


científicas em termos como: “que é matéria?” ou “que é força?” ou,
ainda, “que é justiça?”, e acreditam que uma resposta penetrante a essas
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 183

perguntas, que revele o significado real ou essencial desses termos e, por


conseguinte, a natureza real ou verdadeira das essências apresentadas por
eles, é, pelo menos, um indispensável requisito prévio da investigação
cientifica, se não sua principal tarefa.

As melhores teorias que a ciência pode formular sobre a natureza


não passam de conjecturas, conservam a característica de serem uma boa
explicação para o momento, portanto, temporárias, mas não definitivas.
Na ciência, então, não se poderia falar em teorias definitivas, explicações
últimas ou verdades eternas.
Ao ideal de conhecimento demonstrável presente em Aristóteles,
Popper (2007, p. 308) o critica em sua obra A Lógica da Pesquisa Científica,
quando afirma que:

O velho ideal científico da episteme – do conhecimento absolutamente


certo, demonstrável – mostrou não passar de um “ídolo”. A exigência
de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico
permaneça provisório para sempre. Pode ele, é claro, ser corroborado, mas
toda corroboração é feita com referência a outros enunciados, por sua
vez provisórios.

Que existam leis que subjazem a natureza, Popper está em


concordância, mas que a ciência possa ter a certeza de tê-las alcançado, é
insustentável. Essa é a razão da crítica de Popper a Aristóteles. Crítica
dirigida não só a esse filósofo, mas aos demais pensadores que um dia
acreditaram ou acreditam no poder da ciência de chegar a explicações
finais seja lá sobre o que se esteja tratando.

16.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Popper (2014, XXIV) empenha-se em demonstrar que


“Aristóteles rompe com a razoável tradição que reza que sabemos muito
pouco. Acha que sabemos muito; e tenta oferecer uma teoria da episteme,
do conhecimento demonstrável”. Para rebater essa concepção
essencialista do conhecimento, tomamos do pensamento de Popper a
comparação que ele faz da ciência a um jogo. Como em todo jogo existem
regras, também na ciência são pressupostas algumas regras que devem ser
relembradas e, principalmente, respeitadas. Segundo Popper (2007, p. 56),
as duas regras de suma importância para que o jogo da ciência possa
acontecer são:
184 Ressonâncias filosóficas - Artigos

(1) O jogo da Ciência é, em princípio, interminável. Quem decida, um


dia, que os enunciados científicos não mais exigem prova, e podem ser
vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo.
(2) Uma vez proposta e submetida a prova a hipótese e tendo ela
comprovado suas qualidades, não se pode permitir seu afastamento sem
uma “boa razão”. Uma “boa razão” será, por exemplo, sua substituição
por outra hipótese, que resista melhor às provas, ou o falseamento de
uma consequência da primeira hipótese.

A primeira regra apresenta a intenção de Popper em demonstrar a


natureza da ciência, ou seja, sua falibilidade, pois sua atividade é, segundo
as palavras do filósofo, “interminável”. Popper julga a atividade científica
como um caminho sem fim; ao passo que as pesquisas avançam as
possibilidades também se estendem.
Quanto à segunda regra do jogo, sobre a substituição de uma teoria
por outra, o que Popper quer demonstrar com sua afirmação “sem uma
boa razão”, é que a substituição de uma teoria por outra é marcada pelo
aspecto qualitativo em relação aos testes e ao seu conteúdo empírico, ou
seja, a teoria X só pode ser substituída pela teoria Y, se e somente se, a
teoria Y possuir maior conteúdo empírico. O que significa que ela precisa
ser mais ousada; conter os potenciais falseadores da teoria X, mas não os
seus enunciados falseados; e conter alguns potenciais falseadores à mais
em relação a sua concorrente.
Afinal, se nossas conjecturas não estivessem eivadas de erros e se
supuséssemos explicações finais como o objetivo da ciência, a cada teoria
confirmada estaríamos fechando possibilidades de novas descobertas,
novos conhecimentos e findando, desta forma, com a própria noção de
progresso científico. Se, como pensavam os essencialistas, as teorias
pudessem acessar a essência das coisas, se não pudéssemos mais duvidar
das nossas conclusões após confirmadas, seria o fim da ciência. A crítica
racional, conforme defende Popper, é o único instrumento de
desenvolvimento da ciência e se ela for substituída por posturas
essencialistas, eis o fim dessa atividade.
A título de finalização de nossa reflexão, apresentamos, como,
segundo Popper (2014, XVIII), Aristóteles findou com a aventura do
racionalismo crítico pré-socrático. Diz ele:

Com a teoria de Aristóteles de que a ciência, episteme, é (demonstrável e


portanto) conhecimento certo, pode-se dizer que a grande aventura do
racionalismo crítico grego chegou ao fim. Aristóteles matou a ciência
crítica (...). A filosofia da natureza, a teoria da natureza, as grandes
Dos pré-socráticos a Aristóteles... 185

tentativas originais em cosmologia sucumbiram depois de Aristóteles,


em razão, sobretudo, da influência de sua epistemologia, que exigia provas
(inclusive a prova indutiva).

REFERÊNCIAS

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ideias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução de Beatriz Sidou.
4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
XVII

ELECTRA E A MÁ-FÉ SARTREANA: BRINCANDO DE SER

Tiago Soares dos Santos*

RESUMO

Este trabalho compreende o conceito e má-fé sartreano, relacionando-o


com a personagem Electra do teatro As moscas. A má-fé inverte a
conceituação do ser humano, pois busca definir o humano a partir da sua
transcendência. Nega-se a fluidez constitutiva da consciência e assume a
perspectiva de ser a coisa ao qual se transcendeu. Sartre exemplifica-a com
o garçom. Na má-fé, a consciência irrefletida se torna algo que não é e não
seja o que é. Sua máxima é não ser mentira, mas a negação do que é o
humano de verdade. Nega a liberdade da consciência de poder ser. A obra
As moscas apresenta a personagem Electra, filha de Clitemnestra e
Agamenon. Clitemnestra é cúmplice do assassinato de Agamenon com
Egisto, seu amante e futuro herdeiro do trono. O desejo de Electra é se
vingar da morte do pai e se livrar escravidão. Projeta suas expectativas no
irmão Orestes. Enquanto o irmão não reaparece, Electra enfrenta o rei
publicamente no dia dos mortos. O medo impera porque permitimos.
Orestes reaparece e se apresenta como seu irmão. É instigado à vingança
sobre seus algozes. Orestes atende-a. Seu porvir está aberto. Electra se vê
acuada pelo seu passado. Olha para traz. Não se concebe mais como ser
livre. Determina-se como assassina. É enfática: ‘Livre? Eu não me sinto
livre. Podes conseguir que tudo isto não tenha acontecido?’. Esta é a má-
fé. A permissão de que esse passado condicione o ser de Electra como
assassina também do presente nega sua possibilidade de ser.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade, Má-fé, Temporalidade, Desejo.

*Instituto Federal do Paraná – Umuarama; Universidade Estadual do Oeste do Paraná –


Toledo; e-mail: tiago.soares@ifpr.edu.br
190 Ressonâncias filosóficas - Artigos

17.1 A MÁ-FÉ

Uma das partes constitutivas do humano, de acordo com Sartre, é


a má-fé. Esta consiste na capacidade que o humano tem de agir
negativamente em relação a si mesmo. Essa possibilidade de negação é
estrutural do humano e a má-fé passa a ser a conduta de autonegação de
si. Essa conduta humana é possível somente no âmbito pré-reflexivo da
consciência, pois visa camuflar a angústia ou a consciência do nada e da
liberdade aparentando um grau de normalidade e conexão da existência
humana. Na má-fé, a consciência se vale da ironia para consigo porque
afirma para negar e nega para afirmar.
No comportamento analisado, a consciência manifesta
irrefletidamente afirma ser algo, ao nível de ser do Em-si, como este celular
é um celular e nega ser o que é, ou seja, constante abertura e possibilidade.
No que tange à conduta da má-fé, a perspectiva negativa da realidade
humana está salvaguardada, visto ser a má-fé em sua origem, a negação da
negação. Apesar dos aparentes jogos de palavras é exatamente esse o
processo da má-fé: se a consciência em sua estrutura primeira e
possibilidade de negação e de constituição, a má-fé aparece como negando
todas essas possibilidades e solidificando à consciência apenas uma.
Confunde-se, normalmente, a conduta da má-fé com a mentira.
Analisemos a posição sartreana a respeito. Sass (2011, p. 56-59) afirma
que a mentira é uma negação da transcendência, ou seja, de algo a ser
intencionado ou que está fora da consciência. O mentiroso é cínico, pois
nega a coisa intencionada, entretanto, conserva a fluidez da consciência.
Não tenta o mentiroso preencher o vazio com sua mentira, fazendo da
consciência algo opaco e pronto. O cinismo do mentiroso é tamanho que
nega a transcendência ao qual a consciência fez aparecer. É uma atitude
negativa que recai sobre o externo, pois na conduta mentirosa a estrutura
intencional da consciência é mantida. O mentiroso, entretanto, precisa
estar a par da verdade, pois mentir é uma ação intencional de ocultar a
verdade. Quando se ignora ou desconhece as nuances do objeto
intencionado a conduta esboçada pela consciência não é a da mentira e
sim do equívoco.
Assim, mentir é um ato que exige estruturação própria da
intencionalidade da consciência. O cinismo do mentiroso que afirma uma
verdade que a conhece efetivamente, porém, nega-a em suas palavras
mesmo estando convencido do contrário. Com essa conduta o mentiroso
nega, por meio de palavras, a verdade da transcendência e nega novamente
Electra e a má-fé sartreana... 191

a si a não veracidade de suas palavras e sua não correspondência do signo


com o objeto. Nesse sentido, o mentiroso comete uma dupla negação: a
primeira recai sobre o transcendente visto que o fato enunciado não existe;
a segunda não põe em cheque a estrutura da consciência presente, pois a
consciência mentirosa não carece de fundamento ontológico próprio. Seu
fundamento é a mentira sobre a coisa transcendida. Para mentir é
necessário um projeto de mentir. Constitui-se etapas desse projeto a inteira
compreensão da verdade ao qual se quer ocultar. Pleno domínio daquilo
que irá ocupar o lócus da transcendência, ou melhor, o que e como irá
ocupar a verdade, qual modo de mentira ocultará a verdade. E, ainda, outra
consciência ao qual a mentira será dirigida. Assim, no ato de mentir faz-se
necessário conhecer a verdade sonegada. Dominar o falso discurso que
ocupará essa verdade camuflada. Alguém a quem direcionar o discurso que
camufla a verdade.
A má-fé é um projeto humano semelhante ao da mentira porque
busca mascarar uma verdade desagradável e apresentar um erro agradável
com aspectos de veracidade. De antemão, parece ser tal qual a mentira,
pois há claramente a intenção de ocultar algo. O que difere o projeto da
mentira do projeto da má-fé é a não existência da dualidade enganador-
enganado bem como da transcendência, visto que visa esconder a verdade
de mim mesmo e não de outro. Desse modo, não há uma transcendência
da consciência em direção à coisa Em-si. No projeto de má-fé há uma
unidade de consciência. Em tal unidade o que se vislumbra é um
congelamento dos possíveis, pois a crê que todos os possíveis estão
consolidados e estáveis. Assim, a conduta da má-fé é um processo de
autonegação. Autonegação de que?
No que tange à má-fé nada há de externo à consciência. Todo o
seu projeto não consiste mais um vir a ser, mas um ser consolidado, sem
possíveis, sem liberdade. Na má-fé, apenas um dos possíveis é elencado e
posto em um status de imutabilidade. Essa conduta da consciência
permite, ainda que temporariamente, que supere a angústia ou não a
tematize. Vive-se a má-fé irrefletidamente, pois “eu sou aquele a quem
devo enganar, tentando mascarar de mim a verdade” (SASS, 2011, p. 48).
Essa vivência da má-fé impede que ela venha de fora do humano e lhe
atinja, pondo-o em uma condição de passividade. Não se sofre de má-fé,
pois é uma conduta humana, projetada e em relação consigo mesmo. De
modo que, basta tematizar o projeto humano de má-fé para que ele se
desfaça. Sartre afirma que “devo saber muito precisamente essa verdade,
para poder ocultá-la de mim com o maior cuidado; e isso se dá não em
192 Ressonâncias filosóficas - Artigos

dois momentos diferentes da temporalidade podendo restabelecer um


semblante de dualidade – mas na estrutura unitária de um só projeto”
(SARTRE, 1943, p. 83-84).
A fuga da angústia manifesta pela má-fé não a inviabiliza, pois
como já se falou anteriormente, viver na má-fé é, originariamente, elencar
um possível e petrificá-lo em relação aos demais, estaciona em apenas uma
de suas possibilidades na tentativa de superação da angústia. Essa conduta
faz transparecer de modo instantâneo e imediato a consciência a si mesma,
só que de modo pré-reflexivo, ou seja, anterior a toda e qualquer reflexão.
É somente na consciência pré-reflexiva que pode existir um projeto da
consciência (o projeto de má-fé) que consiste em sua própria negação de
ser. Porém, a consciência em qualquer um de seus modos de manifestação
é transparência, fluidez e intencionalidade. Mesmo que o projeto da
consciência seja o de ser algo pronto, suas possibilidades de negação desse
prévio projeto estarão sempre presentes e imediatas a si. Viver na má-fé
consiste na insistente necessidade de renovar o projeto de fuga da angústia.
Esse projeto pode fracassar e o humano enfrentar a angústia ou outro
projeto pode ser iniciado a qualquer momento.
Por isso que a fuga da angústia está condenada ao fracasso. Ignorá-
la também é uma forma de manifestá-la, visto que a conduta de ignorar
também se constitui um possível. Não tematizá-la a fará ficar à espreita
esperando o momento decisório para que venha aparecer. Nesse sentido,
o humano é sua angústia, mesmo que sua conduta seja a constante fuga
dela (BARATA, 2000, p. 117). Viver na má-fé consiste em assumir um quê
de ambiguidade na consciência, isto porque é próprio do projeto de má-fé
a afirmação positivada da consciência como coisa transcendente, ou seja,
busca equivaler o Para-si ao Em-si.
Viver a angústia sem a perspectiva de camuflá-la por meio da má-
fé é um projeto da sinceridade humana? Vejamos. Na sinceridade é
necessário que o homem tenha em si o princípio de identidade, ou seja, é
aquilo que é e não pode ser outra coisa. Ser sincero e assumir como
constitutivo da realidade humana o princípio de identidade de ser o que é
e não ser o que não é fere diretamente a compreensão sartreana do
humano. Para Sartre a consciência não é o que é e é o que não é. A partir
dessa concepção, inviabiliza-se qualquer possibilidade de sinceridade na
constituição humana, pois ela (a sinceridade) não permite as possibilidades
vindouras, visto que impele o humano ao compromisso assumido
sinceramente com aquilo que decidiu ser e não lhe permite alterações de
sua escolha passada. Eis, assim, o princípio da sinceridade. De acordo com
Electra e a má-fé sartreana... 193

Sass “a má-fé procura evitar que a consciência seja consciência de


liberdade e, dessa forma, tenta fugir do que jamais pode fugir, isto é, tenta
escapar de sua condição” (SASS, 2011, p. 59). Desse modo, o ideal de
sinceridade é irrealizável por conta da exigência de seu princípio de
identidade. Tal princípio é desejado constantemente pela consciência,
porém, sua realização não lhe determina nem o fideliza àquilo ao qual se
intencionou dantes. A sinceridade é o mais puro e completo fenômeno de
má-fé, vivido e reconhecido da consciência no passado.
Mas, é um projeto fracassado, pois se a má-fé é uma conduta e,
portanto, projeto realizado dentre outras possibilidades não nos liberta da
consciência de angústia instantânea ao qual está acometido o humano.
Para o humano ser tal como Sartre o conceitua, é necessário que
se faça perpetuamente. Esse é o dever maior do humano: fazer-se
livremente e, ao fazer-se, fazer também a existência do mundo. Se a
sinceridade ou a má-fé forem possíveis, precisaríamos abandonar aqui a
concepção sartreana de humano. Há que se ressaltar, porém, que no
âmbito do irrefletido elas (sinceridade e má-fé) se manifestam. Porém, por
meio da descrição fenomenológica descobre o nada como seu substituto
e fundamento da angústia vivida no âmbito refletido da existência.

17.2 A CONDUTA DA MÁ-FÉ

A má-fé nos é ilustrada com três personagens na obra de 1943, o


Ser e o Nada, quais sejam: o encontro romântico da mulher, o garçom e o
homossexual. Vejamos a má-fé em cada um deles. Iniciemos pelo
encontro amoroso.
O fato se passa em um encontro romântico entre um homem e
uma mulher. As intenções do homem são claras no desejo que destina
sobre a mulher. A mulher, entretanto, engana-se sobre o desejo do outro
sobre si. Nada decide. Mantém-se presa em um presente no desejo de ser
desejada. Está em seu poder ceder ou não aos desejos do homem, pois
também ela pode estar desejosa dele. Coloca-se, porém, em uma atitude
de passividade. Não assume sua condição presente de muitas
possibilidades em relação à sua intenção e de seu possível futuro amante
e, para tanto, distancia-se do próprio corpo como se não fosse o fosse.
Nessa situação a mulher se limita no presente assumindo a
condição de coisa desejada e não de uma consciência desejosa. Por que
sua conduta não assume sua real condição de também desejar o homem a
galanteia? Assumir e viver deliberadamente tal desejo, despindo-se dos
194 Ressonâncias filosóficas - Artigos

encantos e dos valores que cabem ao homem proporcionar no


enamoramento, provocar-lhe-ia o sentimento de humilhação e horror.
Assim, os sinais que manifestam seu desejo pelo homem que a acompanha
são sinais tidos como desinteressados, sem manifestação intencional da
consciência. Assume a condição de coisa. Sua mão está abandonada entre
às mãos de seu parceiro. Porém, nada assentiu, nada desejou. Há apenas
uma mão ou um pedaço de corpo entre as mãos daquele que assume seu
desejo pela companheira.
Essa mulher age de má-fé porque se permite desfrutar do desejo
não na sua condição humana desejosa, mas em uma perspectiva que nega
sua condição ativa na relação. Em sua auto percepção vê seu corpo e
consciência se desgarrarem. Assim, do alto vê seu corpo inerte e passivo
como coisa desestabilizadora e intencional dos desejos do outro sobre
aquele objeto, seu corpo. Aqui, a mulher age de má-fé porque nega ser seu
corpo, colocando-o em uma condição de ser coisa, uma transcendência a
ser intencionada pela consciência de outrem. Nesse sentido que o engano
a mim mesmo é a má-fé. A mentira necessita da dualidade enganado-
enganador e a má-fé prevê um estado único de consciência que,
internamente, apresenta “a ambiguidade necessária à má-fé vem da
circunstância de se afirmar aqui que eu sou minha transcendência segundo
o modo de ser da coisa” (BARATA, 2000, p. 265). Com a má-fé ferimos
nosso dever maior que é de dever ser, pois ela nos solidifica não nos
permitindo mais ser, pois já teríamos realizado por completo a tarefa de
ser.
Outra conduta célebre que ilustra a má-fé é a do garçom. Segundo
Sartre, o garçom parece brincar. Não é o que realmente é. Desempenha
um papel, faz um teatro com movimentos, falas e atenções dirigidas aos
seus clientes excessivamente afáveis. Se tal afabilidade não fosse
desempenhada pelo garçom, não seria um garçom por muito tempo.
Existe uma expectativa no cumprimento do papel que o personagem deve
representar ao seu público. Do mesmo modo ocorre com o comerciante,
com o alfaiate, com o vendedor entre tantos outros. Essa brincadeira que
impinge o humano de ser o aprisiona em uma máscara que camufla sua
real estruturação. Daí a questão essencial ‘o que é você?’ dirigida a um
garçom ou qualquer outro humano a resposta não será verdadeira, mas
fundada em suas máscaras que escondem seu real ser que implicar em
poder e dever ser. Sua função de garçom é a representação fáctica do papel
que precisa desempenhar na situação em que se encontra. O garçom,
porém, é mais que só garçom.
Electra e a má-fé sartreana... 195

De modo mais imediato e, paralelamente ao ser garçom, o


personagem é uma representação para os outros e para mim. Isso implica
que só posso ser garçom na medida de representação. Se o modo de ser é
uma representação significa, necessariamente, que não é; existindo uma
separação entre o que se é e aquilo que representa e brinca de ser em dada
situação. Essa brincadeira de ser algo é o objetivo último da consciência
de preencher o vazio existente entre ela e o ser. Se a consciência tivesse
plenas condições de ser apenas garçom sua intencionalidade maior teria
sido concretizada, pois seria Para-si-Em-si ou uma consciência plena e
realizada. Mas, o que se é escapa de ser apenas garçom. O humano é aberto
demais para se fechar em única possibilidade. É brincar com o trocadilho
de ser-no-mundo com meu-ser-no-meio-do-mundo.
Definir o humano como apenas uma de suas possibilidades ou a
partir de um papel representado em determinada situação é desconsiderar
o que ele realmente é. Define-se que “a minha essência não é mais do que
a apreensão sintética das condutas que fui” (BARATA, 2000, p. 269). De
modo que o ser do humano ou sua essência só estarão prontos a serem
respondidos quando nossas condutas não tiverem mais presente nem
futuro, ou seja, quando formos plenamente presos no tempo passado, sem
a menor possibilidade de se fazer diferente ou na atuação de outros papeis.
É da estrutura da consciência essa impossibilidade de coincidir consigo
mesma. Pode ela sempre se fazer distintamente no presente e naquilo que
intenciona de futuro.
A última conduta de má-fé ilustrada por Sartre é a do homossexual.
De antemão essa rotulação ou princípio de identidade que se atribui ao
humano com desejo sexual pelo outro do mesmo sexo não pode, em
hipótese alguma, ser comparada ao ser Em-si. O homossexual não é
homossexual como esse celular é celular. A negação da homossexualidade
não implica em uma negação daquilo que é, mas na plena possibilidade de
ser fazer diferente no futuro. Não se pode negar o caráter singular e
irredutível da realidade humana de se fazer. Poder constituir-se implica na
verdadeira compreensão daquilo que é o humano, necessitando renascer
continuamente evadindo-se de seu passado e lançando-se no futuro. Desta
feita, a realidade humana escapa de toda e qualquer definição a partir de
suas condutas. Não se é garçom ou homossexual ou coisa desejada como
no caso da mulher, tal como objetos transcendentes e isolados. Já o
homossexual quando nega sua identidade pederasta tem a devida
compreensão?
196 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Sartre afirma que o homossexual age de má-fé porque nega sua


condição desejosa e se afirma como coisa. Sua negação não consiste em
uma negação estrutural e originária. Não se auto designa como um
homossexual do mesmo modo em que não se denomina mesa.
Por fim, o objetivo da sinceridade e dá má-fé não são tão díspares
assim. A sinceridade se refere ao passado. Naquilo que já está consolidado
e constitui o homem como coisa Em-si. Já a má-fé também solidifica o
homem impedindo-o de suas possibilidades, mas sua ação é de
congelamento das possibilidades futuras. Assim, sinceridade e má-fé agem
com o mesmo caráter de findar o movimento da consciência, uma em
direção passado e a outra em direção ao futuro.

17.3 A MÁ-FÉ DE ELECTRA

O teatro As moscas narra a tragédia do assassinato de Agamenon


por Clitemnestra e Egisto seu amante que, posteriormente ao crime,
herdam o trono. Electra, filha de Agamenon e Clitemnestra, é feita escrava
no reino e Orestes criado em outras terras. O início da obra é marcado
pela ênfase no remorso, na culpa e no medo de todos por seus atos
passados. Toda a cidade, a partir da figura de Egisto, volta-se no presente
em direção ao passado. Todas as pessoas da cidade precisam reconhecer e
se redimir publicamente pelos feitos passados no chamado dia dos mortos.
As moscas são a metáfora do remorso e da culpa pelos feitos
passados. De acordo com a obra, as moscas se fixaram na cidade após a
morte de Agamenon que provoca o arrependimento constante de Egisto.
O algoz do antigo rei era um personagem de “debochado que já nessa
época tinha propensão para a melancolia” (SARTRE, 1962, p. 20). Com
essas características, após o assassínio de Agamenon, abateu-se sobre
Egisto a interminável culpa, o medo e o remorso do ato cometido. O
medo vinha exclusivamente da figura de Orestes que, a qualquer
momento, poderia reclamar o trono que lhe era de direito e se vingar da
morte de seu pai.
A educação moral das pessoas prendia-as, cada vez mais, na culpa
e no medo. Desde pequenino já era formado para tal conduta e postura.
De modo que os referidos sentimentos surgiriam sem causa real, mas por
ensinamentos. Em diálogo com Júpiter, uma personagem expressa
incitação ao desejo do perdão dos céus, por meio do arrependimento, com
os dizeres:
Electra e a má-fé sartreana... 197

Ah! Mas eu estou arrependida, meu senhor! Ah! Se vós soubésseis como
estou arrependida! E também minha filha está arrependida, o meu genro
sacrifica uma vaca todos os anos e ao meu neto que vai para os sete anos,
já o educamos no arrependimento: é manso como um cordeiro, muito
loiro e já penetrado pelo sentimento do seu pecado original (SARTRE,
1962, p. 25).

Nesse sentido, Sartre reforça a ideia de que no presente as pessoas


se decidem a rememorar o passado. Recordar é próprio dos homens não
livres. Somente os homens superiores, capazes de se impelirem por si
mesmos por certos caminhos e não por outros rompem com a recordação
e o medo que o passado impinja-lhes. Já vimos que Orestes é a figuração
desse humano superior que assume sua condição de liberdade. No uso de
sua liberdade parece recuar da predestinação de matar Egisto e
Clitemnestra. Não reclama o poder usurpado. Nada tem a ver com o povo
para que deles façam súditos. Não vive a vida do povo, não sente o
sentimento do povo, não tem as mesmas recordações, pois não tiveram o
mesmo passado. Por que Orestes cumpriria a profecia ao modelo de
Édipo? Orestes é livre. Édipo condicionado pelo seu passado.
Electra, a irmã de Orestes feita escrava por Egisto e sua mãe
Clitemnestra, aparenta, ainda que inicialmente, ser livre. Deposita,
contudo, todas as suas esperanças de cisão com a situação postam no
irmão que, quiçá, algum dia apareça com o sentimento de justiça e
vingança. Não conta ela com a possibilidade de o irmão não agir de acordo
com as suas esperanças. Alimentada pela esperança no irmão, enfrenta o
padrasto assassino, troça dos mortos. Não rompe com a situação, olha
para o passado e vive das lembranças do mesmo modo que os demais
súditos. O que muda de Electra para os demais habitantes é a relação
estabelecida com o passado. Fundamentada no passado, espera Orestes
que, segundo ela, “virá com sua espada enorme” (SARTRE, 1962, p. 38).
Após a celebração dos mortos em que se cultua o medo e o
remorso. O rei Egisto se vale do medo dos mortos para controlar a ação
dos seus súditos alienando-os de sua real condição humana que é a
liberdade. Os súditos não podem saber que os mortos não existem. Para
estes, os mortos não só existem, como fazem parte da constituição do seu
dia a dia. Electra tenta, em vão, alertar o povo de que os mortos não
existem e que o império do medo construído sobre os ossos de seres que
não mais estão ali e, portanto, não existem. Após o término da cerimônia
amedrontadora, cada pessoa deve regressar as casas, hospedando naquele
198 Ressonâncias filosóficas - Artigos

dia um morto, devendo, enquanto anfitrião, pô-lo à mesa e providenciar-


lhe o pouso.
Após essa trágica comédia do dia dos mortos, ocorre a revelação
entre Orestes e Electra sobre seu vínculo fraternal. A irmã conta ao
primogênito o modo como é tratada e o quão ela depositara suas
esperanças de rompimento com a situação posta. Orestes está frente a um
ato decisório: ficar em Argos ou regressar a Corinto? Orestes rompe com
Zeus e define seu caminho, faz-se livre afirmando que “sei que há outro
caminho... o meu caminho” (SARTRE, 1962, p. 102). O caminho
escolhido de Orestes foi de ficar ao lado da irmã para pôr fim ao seu
sofrimento e, concomitantemente, libertar o povo do medo dos mortos
para que possam viver a sua liberdade.
Os irmãos planejam a vingança arquitetando o assassinato de
Egisto e Clitemnestra. Divaga Electra enquanto o irmão se põe a caminho
da execução: “Fui eu que assim o quis! E quero-o, é preciso que o queira
ainda (Olha Egisto). Este Está morto. É então isto que eu queria. Não o
imaginava assim [...]. Desejei e desejo ainda este momento” (SARTRE,
1962, p. 131). Plano executado com sucesso. Escondem-se para não serem
pegos. Orestes regozija-se pela sua liberdade. Faz-se do presente ao futuro.
Não permite que o passado lhe condicione ou o direcione para onde quer
que seja.
Electra, contudo, opõe-se das intenções de Orestes. O irmão se
lança do presente ao futuro. A irmã se lança do presente ao passado. Vive
a culpa e o remorso de ter executado, ainda que como cúmplice do irmão,
a mãe e o padrasto assassínios. Entende-se como igual aos defuntos novos.
Eram assassínios de seu pai. O remorso e o medo os corroíam. Fez-se
igual. Sente-se presa e ruminante de seu passado. Ao discordar da
auspiciosa liberdade que Orestes clama, rebate:

Livre? Eu não me sinto livre. Podes conseguir que tudo isso não tenha
acontecido? Sucedeu qualquer coisa que já não temos a liberdade de
desfazer. Podes impedir que sejamos para sempre os assassínios da nossa
mãe? (SARTRE, 1962, p. 134).

Assim, Electra é a encarnação da culpa e do medo. Sente remorso


por ter participado da construção do assassinato da mãe. Vive a má-fé.
Não tem consciência de si enquanto liberdade que se projeta no presente
para ser no futuro. Está presa a um de seus possíveis passados. Culpa-se
pela ação que desempenhou. Arrepende-se. Não se julga livre por não
poder alterar o fato ocorrido.
Electra e a má-fé sartreana... 199

Orestes, por sua vez, é o modelo de liberdade. Assume o que faz


com responsabilidade. Afirma: “pratiquei o meu acto, Electra, e esse ato
era bom. Levá-lo-ei aos ombros; [...]. E quanto mais difícil for de levar,
mais contente ficarei, pois é ele minha liberdade. (...). Mas hoje já não há
senão um, que é o meu caminho” (SARTRE, 1962, p. 135).
Electra não vive a angústia existencial. Vivencia seus medos. Está
presa ao seu passado. Uma coisa transcendente a condiciona. Não age livre
e deliberadamente na construção e execução do assassinato da mãe e do
padrasto. Age por vingança, por culpa, pela honra. Já Orestes não se vê
preso a nada disso e, mesmo assim, decido por matar a mãe e o padrasto.
Vê sua atitude como livre, assume a responsabilidade do feito e as moscas
não o atingem. Seus ouvidos estão tapados. Não se culpa. Orestes é a
personificação clara daquilo que Sartre conceitua como liberdade e sua
conduta assume a completa responsabilidade do ato.

REFERÊNCIAS

BARATA, André. Metáforas da consciência: da ontologia especular de Jean-Paul


Sartre a uma metafísica da ressonância. Porto: Campo das Letras, 2000.

SARTRE, Jean-Paul..As moscas. Trad. Nuno Valadas. Lisboa: Editorial


Presença, 1962.

_____. L’Être et leNéant: Essai d’ontologiephénoménologique. Paris: Éditions


Gallimard, 1943.

_____. A náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

SASS, Simeão Donizeti. O problema da totalidade na ontologia de Jean-Paul


Sartre. Uberlândia: EDUFU, 2011.
XVIII

FABULAÇÕES EM TORNO DA FILOSOFIA DE RANCIÈRE E


SUA RELAÇÃO COM O PENSAMENTO ANARQUISTA

Roberto Corrêa Scienza*

RESUMO:

Pretende-se construir uma fabulação a partir da relação entre a filosofia de


Jacques Rancière e o pensamento anarquista. Para tanto, serão promovidas
discussões e inferências sobre os conceitos rancierianos de polícia e
política, de título anárquico, sobre o demos, a ideia de um “governo”
anárquico e a ideia de sorteio. Desvela-se, a partir das discussões, a
necessidade de alçar um devir político, um processo de ruptura com a
ordem policial, que faça com que todo o demos seja ouvido. Afirma-se o
título anárquico e o fundamento da ingovernabilidade para a constituição
de um governo verdadeiramente político.

PALAVRAS-CHAVE: Jacques Rancière; Fabulação; Anarquismo.

INTRODUÇÃO

A filosofia polêmica do francês Jacques Rancière possui uma


estreita relação com o pensamento anarquista. A tarefa deste ensaio é
justamente pensar essa relação, mas também para além da mesma.
Questiona-se: onde a perspectiva política de Rancière pode nos levar? Até
onde sua concepção política pode estender o olhar com a ajuda de uma
luneta anarquista?
Trata-se de uma operação fabulatória. Para Deleuze (2013, p. 219),
“a utopia não é um bom conceito: há antes uma “fabulação” comum ao
povo e à arte”. A fabulação é, segundo Bergson (1935), uma faculdade
visionária. Ela falsifica a memória, criando novos modos de existência,
novos processos de subjetivação. Aponta para um novo futuro, a criação
de um novo mundo. Dá-se aqui uma conotação política ao conceito de

*Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), graduado em


Comunicação Social pela UNICENTRO; UNIOESTE; e-mail: robcorreasc@gmail.com
202 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Bergson, pois se objetiva desenhar uma fábula anarquista a partir dos


conceitos de Rancière em confluência com o pensamento anarquista, além
de conceitos pontuais de outros filósofos que podem ser interessantes para
a fabulação proposta.
A partir das discussões, desvela-se a necessidade de alçar um devir
político, um processo de ruptura com a ordem policial que intui fazer com
que todo o demos se torne audível e visível. Afirma-se o título anárquico, o
título dos que não têm título nenhum nem para governar nem para ser
governados, para a constituição de um governo verdadeiramente político
(RANCIÈRE, 2014). Por fim, fundamenta-se a ideia de um “governo”
anárquico em sua pura contingência, em sua própria ingovernabilidade
(RANCIÈRE, 2014; MAY, 2012).

18.1 DEMOS

Antes de adentrarmos a discussão proposta, é necessário distinguir


os conceitos de polícia e política para Rancière, essenciais para a
construção da presente fabulação. A concepção rancieriana de Polícia é
muito distinta do senso comum. Para o autor, a Polícia é a organização
dos poderes, dos papéis sociais. “O recorte do mundo sensível”
(RANCIÈRE, 1996a, p. 372). Ela é a ordem. A maneira que o comando
se exerce. A lei que decide a visibilidade dos corpos e a audibilidade das
vozes. Que faz com que uma palavra seja entendida como discurso ou
ruído. Ela é a distribuição sensível de corpos em um espaço discursivo.
Define os modos de fazer, de ser, de dizer. Deseja nomes exatos, que
refletem uma ideia de identidade, que marquem o lugar que as pessoas
devem ocupar e o trabalho que devem desempenhar.
A política, por sua vez, vem a perturbar a ordem policial. Ela põe
em questão essa organização, rompendo a configuração sensível imposta
pela polícia. Ela desloca os corpos do espaço anteriormente designado.
Onde aparentemente só havia ruído, por meio da política, há fala. A
política desfaz as divisões sensíveis da ordem policial. Ela diz nomes
impróprios, fazendo dos sujeitos mais do que aquilo que é designado a
eles (RANCIÈRE, 1996a; 1996b). Segundo Rancière, (1996a, p. 371), “a
política não advém naturalmente nas sociedades humanas. Advém como
um desvio extraordinário, um acaso ou uma violência em relação ao curso
ordinário das coisas, ao jogo normal da dominação” (RANCIÈRE, 1996a,
p. 371). A política é uma prática rara, uma exceção, uma linha de fuga.
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 203

Como propõe Rancière (2014, p.60), “a política começa onde se


mexe com o nascimento, onde a força dos bem-nascidos - que se valia de
um deus fundador de tribo - é declarada por aquilo que é: a força dos
proprietários”. Para o autor, esse deslocamento da lógica da filiação foi o
que provocou a reforma de Clístenes, que instituiu a democracia ateniense.
Segundo Gonçalves (2006, p.18), as reformas operadas por Clístenes
“fixaram o novo quadro no qual se desenvolveu a vida política da Atenas
Clássica. Mais do que uma transformação, deve-se mesmo falar de uma
instauração do político, do advento do plano político, no sentido próprio,
na existência social dos gregos”. Clístenes pretendia romper com o sistema
dos bem-nascidos, assim, todo cidadão residente em Atenas faria parte de
um demos:

Clístenes recompôs as tribos de Atenas, agrupando de maneira artificial,


por um procedimento não natural, demos - isto é, divisões territoriais -
geograficamente separados. Com isso, ele destruiu o poder indistinto dos
aristocratas-proprietários-herdeiros do deus do lugar. É exatamente essa
dissociação que a palavra democracia significa (RANCIÈRE, 2014, p.
60-61).

A reforma de Clístenes, que alterou a constituição ateniense,


promoveu a criação de outros espaços, espaços estes não naturais. Assim,
fundou uma heterotopia. Foucault, em conferência proferida ao Cercle
d’Études Architecturales em 14 março de 1967, trabalhou o referido conceito.
Segundo Foucault (1984), uma heterotopia funciona como um espaço
invertido, que opera em condições não hegemônicas. Heterotopia é a
aglutinação de hetero = outro + topia = espaço. Logo, um espaço do outro.
Para o autor, o pensamento ocidental afastou esses espaços em busca do
universal e do mesmo:

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as


civilizações, espaços reais - espaços que existem e que são formados na
própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios,
espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa
dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente,
representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de
todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição
geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente
diferentes de quaisquer outros sítios, que eles reflectem e discutem,
chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias (FOUCAULT,
1984, p. 4).
204 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Segundo Rancière (2014), Milner, em seu livro ‘Les Penchant


Criminels de L’Europe Démocratique’1, aponta que “o crítico das “tendências
criminosas” da democracia tem razão em um ponto: a democracia significa
uma ruptura na ordem da filiação” (RANCIÈRE, 2014, p. 61). Esta
ruptura, no entanto, é importante para a constituição de um governo
político, pois ao invés de operar como uma “ilimitação” moderna que visa
destruir a heterotopia necessária à política, acaba, na verdade, por realiza-
la, uma vez que limita o poder das autoridades que regem a sociedade. A
democracia seria o que constitui, portanto, a prática política.
Ademais, ela “não é um tipo de constituição nem uma forma de
sociedade. O poder do povo não é o da população reunida, de sua maioria
ou das classes laboriosas. É simplesmente o poder próprio daqueles que
não têm mais título para governar que para ser governados” (RANCIÈRE,
2014, p.63). O escândalo democrático é desvelar a ausência de título como
o único título possível para um governo político. “O governo das
sociedades só pode repousar, em última instância, em sua própria
contingência” (RANCIÈRE, 2014, p. 63). Em sua própria
ingovernabilidade.
Para Rancière (1996a, p. 372), o demos encarna a parte dos que não
têm parte. Se o povo se identifica com o todo da comunidade política é
porque a política implica a inclusão dos não contados, destituindo a lógica
policial:

O demos é, de fato, um ser muito singular, um ser duplo. Demos designa


uma parte da comunidade, os pobres, isto é, as pessoas sem importância,
mas também, ao mesmo tempo, a comunidade em seu conjunto, a cidade
política em sua totalidade. Sob essa palavra, portanto, uma parte da
comunidade se identifica ao todo da comunidade. Define-se assim um
cômputo da comunidade enquanto desigual a si mesma, enquanto
diferente da soma das partes que a constituem. A comunidade política
não existe em virtude da reunião dos indivíduos e dos grupos. Existe a
partir da identificação primeira de seu todo a um nada. O todo da
comunidade política enquanto tal é o cômputo enquanto todo dos que
não são nada (RANCIÈRE, 1996a, p. 370).

1 Este livro pretende oferecer uma explicação sobre a crescente hostilidade europeia
contra o estado de Israel. Para Milner (apud Mazel, 2007), alguns países europeus hoje
veem o estado judeu como um obstáculo para a Europa expandir sua influência pelo
mediterrâneo e o mundo árabe.
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 205

Entretanto, conforme Rancière (1996b, p. 24), “é também


mediante a existência dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que é
tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade política”, ou seja,
dividida por um litígio fundamental, que afeta a contagem de suas partes.
Para o autor, o povo não é uma classe simples como as outras, mas a classe
do dano. O povo causa dano à comunidade. Institui a comunidade do
justo e do injusto. “É assim que, para grande escândalo das pessoas de
bem, o demos, esse amontoado das pessoas de nada, torna-se o povo, a
comunidade política dos atenienses livres, a que fala” (RANCIÈRE,
1996b, p. 24-25).
A democracia é um escândalo para os cidadãos de bem, que não
querem admitir que sua posição na sociedade, enquanto superior, se curve
diante da ausência de qualquer superioridade. Aí repousa o ódio à
democracia (RANCIÈRE, 2014). Segundo Rancière (1996a), a própria
palavra demos designava os pobres em Atenas. Mas não os pobres em uma
categoria apenas econômica, mas pobres enquanto posição no mundo,
uma categoria simbólica, a dos reles, dos que não têm título nenhum para
governar. Ademais, originalmente, a palavra democracia era um insulto.
Ela foi inventada não pelos democratas, mas por seus adversários, e queria
dizer algo grotesco e absurdo. O ódio à democracia, portanto, a
acompanha desde o nome.

18.2 O TÍTULO DE TODOS OS OUTROS

Segundo Rancière (2014), a democracia revela um título


suplementar. O título dos que não têm título nenhum, nem para governar
nem para ser governados. Para o autor,

a história conheceu dois grandes títulos para governar os homens: um


que se deve à filiação humana ou divina, ou seja, a superioridade no
nascimento; e outro que se deve à organização das atividades produtoras
e reprodutoras da sociedade, ou seja, o poder da riqueza. As sociedades
são habitualmente governadas por uma combinação dessas duas
potências, às quais força e ciência, em proporções diversas, dão reforço
(RANCIÈRE, 2014, p. 62).

Logo, que tipo de governo é possível a partir dos que possuem


títulos? Que são supostamente “qualificados” para governar?
Gerontrocracias? Plutocracias? Tecnocracias? Epistemocracias? Há a
possibilidade de um governo realmente político a partir dos referidos
206 Ressonâncias filosóficas - Artigos

títulos? Segundo Rancière (2014), não. Para o autor, “a condição para que
um governo seja político é que seja fundamentado na ausência de título
para governar” (RANCIÈRE, 2014, p. 60). Esta é, para Rancière (2014),
uma das razões pela qual Platão não exclui o sorteio de sua lista de títulos.
O título fundamentado na ausência de título provoca uma dúvida sobre a
legitimidade dos outros títulos, traz à tona o fundamento da igualdade
sobre o qual a política constitui-se. Este é o princípio de um governo não
mais atado às diferenças naturais e sociais. Portanto, o princípio de um
governo político.
O autor destaca a necessidade desse título fundamentado na
ausência de título para governar. Trata-se de um título suplementar.
Comum a todos, mesmo àqueles que nada possuem. Este é o título que
possui o demos. O título anárquico:

É preciso algo mais, um título suplementar, um título comum aos que


possuem todos esses títulos, mas também aos que os possuem e aos que
não os possuem. Ora, o único título que resta é o título anárquico, o
título próprio dos que não têm nem título para governar nem para ser
governados (RANCIÈRE, 2014, p. 63).

O título anárquico, para Rancière (2014), é o único título possível


para a constituição de um governo político. Ele é o título dos que não têm
título. Dos outros, dos reles, dos abjetos, dos estigmatizados, dos
estereotipados, dos terceiros. Daqueles que estão à margem do modelo.
Acrescenta-se: é o título daqueles que afirmam a também chamada
anarquia coroada, ou seja, a diferença. O título anárquico é o título que
provoca a insurgência da diferença. Uma vez que a diferença dispara
devires e estes devires, sempre devires-outros, são interiorizados em todo
tipo de alteridade, o título anárquico apresenta-se, portanto, como o título
de todos os outros.
Questiona-se: quais os limites do título anárquico? Que tipo de
ética ele pode proporcionar? Como usar o título anárquico para
potencializar a diferença e a alteridade? Como fazer com que a política
faça ressurgir discursando todos os outros que antes aparentemente
faziam apenas ruídos? A fabulação proposta tentará responder estes
questionamentos, mas antes é necessário estreitar a relação entre a filosofia
de Rancière e o pensamento anarquista.
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 207

18.3 RANCIÈRE E O ANARQUISMO

Rancière (2013), em entrevista a Duanne Rousselle, na


Universidade de Trent, argumenta sobre a relação de seu trabalho e o
pensamento anarquista. Para o autor, a política acontece com um tipo de
anarquismo diferente do pensado pelos anarquistas tradicionais. Ela
acontece precisamente quando a anarquia aparece. Quando uma
comunidade não se baseia em qualquer qualidade para que alguém
governe. Quando é baseada exatamente na ausência de um título para
governar. Para Rancière (2013, tradução nossa),

a anarquia significa a ausência de um arkhé. [...] Um arkhé é ao mesmo


tempo o começo e um princípio, sabe. Então, o que é arkhé? São aqueles
que estão no começo e também aqueles que têm capacidade, a
capacidade para liderar. Para liderar a comunidade. E eu penso que a
política acontece com a ruptura anárquica. [...] Trata-se de uma afirmação
e uma prática de poder, que é o poder de realmente qualquer um,
significando precisamente o poder daqueles que não têm razão para
governar2.

Em conferência na Tallinn University, na Estônia, o teórico


anarquista Todd May, trabalhou a relação entre o movimento anarquista e
o pensamento de Rancière a partir da seguinte citação do livro Ódio à
Democracia: “Democracia quer dizer, em primeiro lugar, o seguinte: um
“governo” anárquico, fundamentado em nada mais do que na ausência de
qualquer título para governar” (RANCIÈRE, 2014, p. 57). Segundo May
(2012), há uma dupla dificuldade quando Rancière se refere a um
“governo” anárquico. A primeira é a de que o Anarquismo é conhecido
por ser oposto a qualquer tipo de governo. Então talvez possa haver uma
contradição na frase. E em segundo, no entanto e oposto a isso, o termo
governo está exposto entre aspas, o que indica algo que supõe uma ideia
diferente da tradicional acerca do que se entende por governo.
Seguindo a trilha de Rancière, May destaca a seguinte citação: “a
democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da
sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo

2 What anarchy means is the absence of an arkhé. [...] And arkhé is in the same time beginning and a
principle, you know. So, arkhé is what? those who are at the beginning and also those who have the
capacity, the capacity to lead. To lead the community. And I think politics happen with anarchic
disruption. [...] It's an affirmation and a practice of power, that is the power of anybody at all, meaning
precisely the power of those who have no reason to govern (RANCIÈRE, 2013).
208 Ressonâncias filosóficas - Artigos

governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado”


(RANCIÈRE, 2014, p. 66). Aliás, ela não tem outro fundamento além da
pura contingência. Um governo democrático deve, portanto, refletir a
ingovernabilidade fundada na ideia de que de fato todos são dignos para
governar.
May (2012) defende que um “governo” anárquico, como propõe
Rancière, seria um governo em outro sentido, fundamentado nessa
ingovernabilidade, algo muito diferente dos governos hoje instituídos. Mas
qual seria uma forma de governo que refletiria essa ideia? Que tipo de
governo seria o daqueles que resistem à ordenação policial? Para May
(2012), seria, de fato, uma forma de governo, na qual uns até poderiam ser
intitulados para governar e outros a serem governados em certos aspectos.
No entanto, não seria uma forma de governo que pressupõe que os que
governariam possuem algum tipo de “qualidade” que os outros não têm.
O autor acredita este ser o porquê do termo “governo” estar entre aspas.

18.4 COMO CRIAR UM “GOVERNO” ANÁRQUICO?

Mas como criar um governo realmente político? Realmente


democrático? Como constituir um “governo” anárquico? Defende-se alçar
um devir político. Se a política acontece com a ruptura anárquica,
promovamos uma constante ruptura com a organização policial, fazendo
com que todo o demos seja ouvido. Com que todos os outros se tornem
visíveis e audíveis. Entende-se o devir como “algo que não tem estado
final, não projeta uma identidade... Devir como um estado de variação”
(NIETZSCHE, 2008, p. 358). Não há atualização a um estado de coisas.
O processo é de desterritorialização. O ponto “inicial” de um devir é
sempre diferente de seu “final”. Na verdade, o devir não tem começo ou
final, largada ou chegada, origem ou destino. Um devir tem apenas o meio.
O meio não é uma média, mas a velocidade absoluta do movimento
(DELEUZE; GUATTARI, 1980). “O devir nunca supõe um modelo
majoritário, nem mesmo um alternativo, pois não visa uma forma
definitiva, nem mesmo qualquer conclusão. Ele escapa à identidade. É a
afirmação do Ser em sua multiplicidade. O devir é produto da diferença.
A diferença dispara devires” (SCIENZA, 2017, p. 34).
Para Rancière (1996a), não há governo político possível se
fundamentado na tirania da identidade. Acrescenta-se: no totalitarismo do
Eu; no dogmatismo moral. É necessário fazer ouvir os sujeitos políticos.
Esses sujeitos em ato, constituídos pelo litígio. Esses mundos polêmicos
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 209

que questionam a configuração do sensível, que desfazem a ordem policial,


pois é com eles que a política começa (RANCIÈRE, 1996a). Segundo
Rancière (1996a, p. 377), “a política começa com o cômputo litigioso dos
não-contados, isso implica que os sujeitos políticos em geral só existem
por sua distinção em relação a qualquer grupo social. [...] O que os
constitui é o próprio litígio”.
O sujeito político é aquele que provoca o dissenso. Segundo
Rancière (1996a), a política tem como fundamento uma pressuposição que
lhe é inteiramente heterogênea. “Essa pressuposição é a igualdade de
qualquer ser falante com qualquer outro ser falante” (RANCIÈRE, 1996a,
p. 372). Para o autor, todo ser humano é igualmente capaz de falar. No
entanto, “essa igualdade, como vimos, não se inscreve diretamente na
ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais
originário do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação
singular do que é visível, dizível, contável” (RANCIÈRE, 1996a, p. 372).
Para Rancière (1996a, p.374), o dissenso não é “um conflito de pontos de
vista nem mesmo um conflito pelo reconhecimento, mas um conflito
sobre a constituição mesma do mundo comum”. O dissenso tem como
objeto o recorte do sensível. A distribuição dos corpos, o que é visto e
ouvido. Segundo o autor, “aquele que recusamos contar como pertencente
à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante.
Ouvimos apenas ruído no que ele diz” (RANCIÈRE, 1996a, p. 373).
O consenso, por sua vez, pressupõe uma objetivação total dos
dados presentes e da distribuição de papéis, visando fazer com que o
sujeito político seja dissipado na ordem policial. Quem determina o
consenso são os especialistas, os experts, aqueles que encarnam a “verdade”
sobre o que é ser ético e viver bem em comunidade. São os economistas,
cientistas políticos, sociólogos, filósofos, jornalistas, etc. A vontade do
demos não passa de ruído para os consensualistas. O consenso não quer
sujeitos políticos, divisores. Aliás, não quer qualquer ruptura na ordem
policial. O consenso suprime a política e seus sujeitos. “Em seu lugar, quer
partes reais do corpo social, corpos e grupamentos de corpos claramente
enumeráveis, claramente constituídos em sua identidade (RANCIÈRE,
1996a, p.381). Rancière (1996a) afirma que o tratamento gestionário
operado pelo consenso, assim, faz reaparecer o conflito sob uma forma
ainda mais alarmante, impossibilitando a coexistência com o outro e
alimentando o ódio à referida alteridade. O sujeito político, este outro
imoral que ameaça a identidade, caso não seja possível sua dissipação na
ordenação do sensível, “deverá” ser eliminado.
210 Ressonâncias filosóficas - Artigos

18.4 IGUALDADE

É possível ver com clareza a grande resistência à ideia de um


“governo” anárquico se pensarmos a partir da tradição platônica, a de que
todos têm seus respectivos lugares. De que há aqueles que são capazes de
governar e outros que não, pois apenas “dando a cada parte o que lhe
convém, deixamos apresentável o conjunto” (PLATÃO, 2000, p. 186).
Segundo May (2012), a ideia da democracia ser, justamente, essa inversão
de valores, de qualquer um poder governar, mesmo aqueles que não
possuem qualquer título para tal, é o que as elites odeiam sobre a
democracia.
Portanto, a igualdade deve ser ponto chave para a construção de
um governo político. Para May (2012), o impulso igualitário anarquista
parece ser um dos motivos pelos quais há tanto ódio à democracia. Este
ódio é também um ódio do autogoverno, um ódio ao governo daqueles
que o único título para governar consiste na ausência de título para
governar. Um autogoverno, neste sentido, não significa não existir
governo, mas atuar ao lado dos outros na criação de um governo comum,
fundado na pressuposição da igualdade. Ademais, é a ênfase nessa forma
de ação emergente da pressuposição igualitária, que amarra o pensamento
de Rancière à tradição anarquista:

Além disso, pode-se ver como o pressuposto da igualdade nos permite


conceber o anarquismo de forma positiva, sem cair na armadilha de falar
pelos outros. Se a crítica da dominação é um lado da moeda anarquista,
o pressuposto da igualdade é o outro. É porque a igualdade é
pressuposta, que a dominação torna-se intolerável. O uso do poder sobre
o outro é prejudicial na medida em que viola a capacidade igual dessa
pessoa de determinar sua vida. Isto, parece-me, ser o nervo vital de todo
pensamento e prática anarquista3 (MAY, 2007, p. 25, tradução nossa).

De acordo com Rancière, mesmo um governo gerontrocrático,


plutocrático, tecnocrático ou ainda epistemocrático, deve repousar sobre

3 Moreover, it can be seen how the presupposition of equality allows us to conceive of anarchism in a
positive way, without falling into the trap of speaking for others. If the critique of domination is one side
of the anarchist coin, the presupposition of equality is the other. It is because equality is presupposed, that
domination becomes intolerable. The use of power over another is deleterious in that it violates that person’s
equal ability to determine his or her life. This, it seems to me, is the vital nerve of all anarchist thinking
and practice (MAY, 2007, p.25).
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 211

o título anárquico pois todo governo funda-se sobre a igualdade entre


seres falantes, uma vez que qualquer um pode compreender a língua de
qualquer outro, por mais poderoso que ele seja. Assim, qualquer governo
deve se tornar um poder político (no nosso vocabulário, uma potência).
“E um poder político significa, em última instância, o poder dos que não
têm razão natural para governar sobre os que não têm razão natural para
ser governados. Em última análise, o poder dos melhores só pode se
legitimar pelo poder dos iguais” (RANCIÈRE, 2014, p. 64).
Na constituição de um governo verdadeiramente político, essa
igualdade irredutível deve pressupor uma também igual liberdade para
todos. Segundo Fabbri (2007), a liberdade é o fundamento da ética social,
pois é condição necessária para a responsabilidade. A liberdade deve,
portanto, ser um dos grandes pilares deste processo. Quando os
anarquistas falam de liberdade, não se trata de uma “liberdade” como a
apresentada pela retórica neoliberal, uma “liberdade” de poucos. A ética
anarquista toma como imprescindível a liberdade de todos. E quando diz
de todos, não diz apenas daqueles que fazem parte do modelo, mas
sobretudo daqueles que estão nas margens. A liberdade dos outros,
conforme a célebre frase de Bakunin (1975, p. 21): “a liberdade dos outros
aumenta a minha até ao infinito”. O teórico e revolucionário russo
destacava a importância da liberdade do outro. Afirmava que só poderia
ser verdadeiramente livre quando todos aqueles que o cercam, homens e
mulheres, fossem igualmente livres. Quanto mais vasta e profunda fosse a
liberdade destes, mais vasta e profunda seria a sua:

Importa-me muito o que os outros homens são, porque por muito


independente que me julgue ou que pareça pela minha posição social,
mesmo que eu fosse Papa, Czar, Imperador ou até primeiro ministro,
não deixaria de ser o produto dos últimos entre eles; se eles são
ignorantes, miseráveis, escravos, a minha existência é determinada pela
sua ignorância, pela sua miséria e escravidão. Eu, um homem esclarecido
e inteligente, por exemplo - se for o caso - sou tolo pelas suas tolices; se
bravo, sou escravo da sua escravatura; se rico, tremo com a sua miséria;
se privilegiado, empalideço diante da sua justiça. Mesmo que eu queira
ser livre, não posso, porque à minha volta ainda nenhum homem quer
ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em
instrumentos de opressão (BAKUNIN, 1975, p. 21).

Porém, segundo Bakunin (1907), não há liberdade possível sem a


deposição das organizações políticas ou de poder, pois todas organizações
políticas se destinam à negação da liberdade. Elas não glorificam a
212 Ressonâncias filosóficas - Artigos

liberdade de todos poderem usufruir de seus potenciais, pois isto tende a


comprometer a expressão de seu poder. De acordo com Colson (2012), a
Anarquia ordena a extinção de instituições opressivas e coercitivas, como
o Capital, o Estado e a Religião, que se aproveitam dos outros. Que
drenam suas potencialidades e até os eliminam quando conveniente. Para
Rancière (1996b), se existe política é porque houve uma ruptura
(anárquica) com a ordem natural dos reis pastores, dos senhores de guerra
ou das pessoas de posse. Esta ruptura na ordem natural, na ordem policial,
revela a igualdade irredutível que fundamenta toda ordem social. Portanto,
só pode haver um governo verdadeiramente político se há a ruptura dessas
instituições opressivas e coercitivas. Só a partir dessa ruptura, poderemos
instituir um “governo” anárquico.

18.5 FAÇA-SE A VONTADE DO DEUS DO ACASO

Um procedimento defendido por Rancière (2014) é o sorteio.


Segundo o autor, o sorteio é um procedimento justo e democrático, pois
este favorece a participação do acaso. Conforme o autor: “não existe
governo justo sem participação do acaso” (RANCIÈRE, 2014, p. 59). É
necessário embaralhar as cartas; lançar os dados. Ou seja, é necessário
fazer do acaso uma afirmação para a constituição de um bom governo.
Rancière (2014) destaca: se a ideia de um sorteio não parece séria é porque
já esquecemos o que democracia quer dizer e que tipo de governo o sorteio
pretendia evitar. O procedimento do sorteio era uma medida contra um
governo muito pior que o dos incompetentes. O governo dos homens
capazes de tomar o poder pela intriga. Segundo o autor, entregar o poder
aos que desejam exercê-lo não era uma ideia natural para Platão, muito
menos para os constituintes franceses e norte-americanos. Nós, no
entanto, já nos acostumamos com esse absurdo.
Platão, mesmo ironizando o procedimento do sorteio, ainda assim
mantém na lista o título que não é título. Rancière (2014) afirma que há
duas razões para isso. Uma delas já foi dita. Que o título fundamentado na
ausência de título provoca uma dúvida sobre a legitimidade dos outros
títulos, pois revela o fundamento igualitário sobre o qual a política baseia-
se. A outra é de que o sorteio está de acordo com o princípio do poder
dos sábios em um ponto essencial: “o bom governo é o governo daqueles
que não desejam governar. Se há uma categoria que deve ser excluída da
lista dos que são aptos a governar, é a dos que intrigam para obter o poder”
(RANCIÈRE, 2014, p. 59). Para o autor, não há pior governo que o
Fabulações em torno da filosofia de Rancière... 213

governo dos que almejam o poder. Não há espaço para justiça em um


governo que foi desejado. A vontade de poder corrompe, portanto, a
fundamentação de qualquer governo.
Rancière não faz qualquer distinção entre potência e poder, mas
há certas inferências interessantes se pensados esses termos. Conforme
Deleuze (O abecedário, 1996), enquanto o poder impede a potência do
outro, a potência é causa de si. O poder, portanto, despotencializa o outro.
Possui a finalidade de domina-lo. De colocar-se acima dele. Apropriar-se
dele. De utilizá-lo para seu bel-prazer. É o que querem aqueles que
intrigam para obter o poder. Os que desejam governar. De acordo com
Deleuze (O abecedário, 1996), impedir alguém de fazer o que pode é o que
constitui a maldade. Para o autor, o poder é o mais baixo grau da potência.
Não há potência ruim, apenas poderes maus. Aliás, talvez todo poder seja
mau. A teórica anarquista Luce Fabbri compartilha dessa linha de
pensamento. “Esta forma mórbida ou bestial da vontade de poder consiste
no desejo individual de dominar os demais, no prazer, muitas vezes sádico,
de dobrar a vontade alheia, de pôr o pé sobre as cabeças alheias
inclinadas4” (FABBRI, 2000, p. 51, tradução nossa).
Segundo Deleuze (O abecedário, 1996), todo poder é triste, uma vez
que este sempre obstrui a efetuação de uma potência. A potência,
entretanto, afirma-se em si mesma; por si mesma; para si mesma. Trata-se
de uma força ativa, afirmativa (O abecedário, 1996). Uma força de vida. Um
poder criador. A potência possibilita a criação de novos mundos e novos
modos de existência. Assim, afirma a vida, a diferença. A potência,
portanto, compõe os corpos. O poder os decompõe. Seguindo o rastro
rancieriano, o sorteio afirmaria a potência. Enquanto o poder é constituído
por aqueles que intrigam para obtê-lo, a potência abomina qualquer tipo
de dominação, pois deseja apenas afirmar-se. Portanto, não se deve aspirar
ao poder, mas afirmar a potência para a constituição de um bom governo.
Destarte, afirma-se o título anárquico, uma vez que se objetiva a
insurgência de todos os outros. Eis o devir político. Pretende-se glorificar
a diferença para além de bem e do mal, em respeito à ética. É como o
conceito derridiano de jogo, um dos conceitos da desconstrução. O jogo
deve também afirmar o aparente absurdo, o acaso, o caos. Assim, não será
refém da identidade. Da intenção moral (DERRIDA, 1991). Rancière
(2014, p. 81) reforça esta ideia: “o processo democrático deve

4 “Esta forma morbosa o bestial de la voluntad de poder consiste en el deseo individual de dominar a los
demás en el placer, muchas veces sádico, de doblegar la voluntad ajena, de poner el pie sobre las cabezas
ajenas inclinadas” (FABBRI, 2000, p.51).
214 Ressonâncias filosóficas - Artigos

constantemente trazer de volta ao jogo o universal em uma forma


polêmica. O processo democrático é o processo desse perpétuo pôr em
jogo”. Esse eterno jogo que possibilita a criação de novos mundos e
modos de existência. A anarquia, em sua fabulação, é um constante jogo.
Ademais, ela é um constante sorteio, mas já não se pode ver quem propôs-
se a sortear muito menos visa-se um resultado. Há somente o meio. Como
um devir. Um processo. A obra ‘El Camino’, de Luce Fabbri, é um bom
exemplo de como é possível pensar a ética anarquista como um processo.
Fabbri (2000) sustenta que o caminho até a anarquia é o que existe de
concreto e é de importância fundamental que o caminho seja coerente
com a fabulação vislumbrada.
No processo que visa a fabulação anarquista, há uma ruptura com
as verdades absolutas, os dogmas e leis da institucionalização moral. Há
uma transvaloração dos valores que visa uma ética pós-moral. Uma ética
da vontade de potência. Ética, esta, fundada na vida, mas que supera a
própria vida, pois quer sempre o plus de potência (NIETZSCHE, 2003).
A vontade de potência afirma a diferença, e não a identidade (a construção
moral), pois toma a vida como critério de julgamento. “Como pode uma
vontade de potência ir contra a existência, se isso seria ir contra ela mesma?
Como podem as forças negar o que difere ao invés de afirmar a diferença,
se é essa a sua definição?” (AZEREDO, 2000, p. 72). Há, portanto,
diferença; anarquia coroada. Não há mais a vontade de poder, aqueles que
intrigam, mas vontade de potência. Se há qualquer polícia em um
“governo” anárquico, o processo revelará sua constante redução, pois a
vontade de modelos, a ideia normativa que outros sistemas de governo
incorporam, cessa de existir. A polícia, portanto, assume a frequência antes
atribuída à política, tornando-se cada vez mais rara conforme o andamento
do processo. A política, por sua vez, afirmar-se-á como uma espécie de
fundamento governamental – o da ingovernabilidade.

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XIX

FENOMENOLOGIA ENQUANTO ATITUDE E ESCRITA


FILOSÓFICA

Katyana Martins Weyh*

RESUMO

O presente trabalho tem como temática a questão do conhecimento no


âmbito da fenomenologia, tal como proposto pelo filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976). Em nosso trabalho, desejamos discorrer a partir
do seguinte problema: Como se dá o conhecimento na fenomenologia de
Heidegger? Ora, a fim de tratar tal problema, recorreremos, especialmente,
à obra Ser e tempo (1927). Em vista disso, temos o objetivo primordial de
investigar a crítica do filósofo ao modo de conhecer da tradição filosófica
e das ciências naturais, além de acompanhar o seu movimento de
desconstrução da história da ontologia. Para que possamos, entretanto,
investigar esse pensamento, precisamos, primeiramente, compreender
qual é o projeto principal de Ser e tempo, a saber: uma ontologia
fundamental de caráter hermenêutico, para, a partir disso, reconstituir o
“método” heideggeriano como uma “atitude fenomenológica”.
Pretendemos, portanto, examinar em que medida a fenomenologia se
mostra como atitude e escrita filosófica.

PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Fenomenologia; Conhecimento;


Hermenêutica; Escrita.

Martin Heidegger (1889-1976) foi um filósofo alemão que se


preocupou em resgatar uma questão fundamental da filosofia, a questão
do sentido do ser. Sua filosofia radicalizou o pensamento contemporâneo
justamente por trazer à tona esta questão que permaneceu velada por
séculos. Tal questão, segundo ele, deixou de ser pensada e discutida desde
a filosofia grega até o ápice do pensamento moderno.
A retomada da questão do ser por meio de seu sentido foi o
objetivo principal e o ponto de partida para uma ontologia fundamental,
* Unioeste/Campus Toledo; e-mail: katian.na@hotmail.com
218 Ressonâncias filosóficas - Artigos

desenvolvida na obra de 1927, intitulada Ser e tempo. Heidegger percebeu a


urgência e a importância em recolocar essa questão, uma vez que a tradição
filosófica se reportava ao ser como mais um ente. Este era um equívoco,
pensava o filósofo, pois não havia mais uma reflexão a respeito do que era
entendido pela expressão “ser”. Assim, a metafísica clássica ocupou-se de
pensar apenas o ente em sua constituição ontológica (HEIDEGGER,
2012) de forma que, ao refletir sobre isso, Heidegger se ocupou de uma
retomara da questão do sentido do ser, que passou a ser o pano de fundo
e o fio condutor de sua fenomenologia ontológico-existencial.
A questão da metafísica dizia respeito à essência natural do ente,
caracterizada como substância, quididade, categoria, etc., e, desse modo, o
ser dos entes passou a ter a mesma definição ôntica. A grande sacada de
Heidegger foi mostrar, em contraposição à metafísica tradicional, que o
ser não pode ser definido, pois é o conceito “mais universal”, “indefinível”
e “evidente por si mesmo”. Devido a isso, é considerada equívoca a
tentativa de dizer o ser a partir de definições, pois:

[...] é justamente nas alegações de que o ser é o conceito mais universal,


indefinível e evidente por si mesmo, usadas para desqualificar qualquer
retomada do tema, que Heidegger encontrará indícios de que a ontologia
tradicional deixou impensado o que havia de mais fundamental no ser
[...]. Isso porque, toda vez que a filosofia (= tradição metafísica) foi ao
ser, já sempre o interpretou equivocamente como também um ente (=
uma coisa que é) [...] mas que, ainda assim, traria determinações ônticas
(KAHLMEYER-MERTENS, 2015, p. 42-43).

Desse modo, podemos compreender que o ser consolidou-se


como um conceito teórico, com atributos derivados do ente, que fizeram
com que o seu sentido fosse distorcido e mesmo encoberto. A partir da
fenomenologia de Heidegger, entendemos a radicalidade de um novo
pensar, na medida em que o filósofo procura mostrar que o ser não pode
ser definido, como também não pode ser determinado, a não ser que o
seja feito pelo seu sentido mais próprio. Para que isso seja possível,
Heidegger apresenta logo no primeiro capítulo de Ser e tempo: “[...] a
necessidade de uma repetição explícita da questão do ser” e afirma que
“[...] não somente falta resposta à questão do ser, mas que a própria
questão é obscura e sem direção. Repetir a questão do ser significa, pois,
elaborar primeiro, de maneira suficiente, a colocação da questão”
(HEIDEGGER, 2008, p. 30).
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 219

Heidegger reformula a questão de modo a ela não mais soar em


termos tradicionalmente metafísicos e, diferente da metafísica clássica, não
pergunta mais o que “é” o ser, uma vez que já se sabe que ele não pode
ser definido nem determinado, ou seja, não se questiona mais qual o
conceito de ser. Sendo a definição de ser possível apenas por intermédio
de seu sentido, Heidegger passa a pensar a partir da reinserção da pergunta
pelo sentido do ser dos entes.
Na recolocação da pergunta pelo sentido, Heidegger parte da ideia
de que todo questionamento é uma procura. Isso se dá uma vez que a
questão do sentido do ser passa a ser uma procura ou uma busca do
sentido de suas possibilidades. A mudança da questão não é meramente
uma questão conceitual ou terminológica, mas, antes de tudo, uma
mudança no modo de pensar e compreender o ser, que se afasta por
completo das definições e determinações. Assim, para que a questão do
sentido do ser possa ser recolocada no seio da filosofia, Heidegger
apresenta a “tríplice estrutura formal da questão” (HEIDEGGER, 2002,
p. 30) por meio do perguntado, interrogado e questionado:

Toda questão se desdobra, formalmente, em três pólos: de um lado, há


aquilo que questionamos, o questionado (das Gefragte), o que
perguntamos a seu respeito, o perguntado (das Erfragte), e aquilo que
interrogamos para obter, a respeito do questionado, o perguntado: o
interrogado (das Befragte) (DUBOIS, 2004, p. 15).

Assim, compreendemos o questionado (o próprio ser) que deve


ser interrogado a partir da já referida pergunta fundamental (sentido do
ser). Esse interrogado, no entanto, conta sempre com uma pré-
compreensão (compreensão prévia) de ser e a este interrogado, único ente
capaz de compreender ser e questionar seu sentido, Heidegger denomina
ser-aí (Dasein).
Após explicitar a questão do sentido do ser, Heidegger passa a
caracterizar a diferença entre ser e ente, denominada por ele de “diferença
ontológica”. Essa noção, de início, aponta para uma distinção entre ser e
ente, mas não apenas isso. A diferença ontológica busca explicitar que
aquilo que conhecemos como ente é relativo ao domínio ôntico (são os
entes, as coisas, animais, objetos, utensílios, etc.) enquanto que aquilo que
podemos compreender é relacionado ao âmbito ontológico, ou seja, ao
sentido do ser.
O ente a quem a pergunta sobre o sentido é feita é denominado
por Heidegger como o interrogado. A interrogação fundamental só pode
220 Ressonâncias filosóficas - Artigos

ser feita a um ente ôntico-ontológico, que se difere dos entes


simplesmente dados do domínio ôntico. Este ente ôntico-ontológico,
portanto, se difere dos demais por já sempre partir de uma compreensão
prévia de ser e poder compreender a si mesmo como diferença ontológica.
A esse ente específico e privilegiado, Heidegger chama ser-aí
(Dasein), como o “ente que cada um de nós somos e que, entre outras,
possui em seu ser a possibilidade de questionar” (HEIDEGGER, 2002,
p. 33). A diferença ontológica, portanto, se revela no próprio ser-aí, uma
vez que ele mesmo se mostra nessa diferença. Ao ser-aí é possível
questionar o sentido de ser e se compreender enquanto diferença
ontológica, na medida em que ele se mostra como o “espaço” de
significado desde o qual algo como ser e ente podem aparecer como
distintos.
O caráter singular de existência do ser-aí só é possível a ele na
medida em que é o único ente capaz de se compreender enquanto
condição de possibilidades e ausência de determinação. É isto que Dubois
(2004) tem em vista quando responde à seguinte questão: Qual o modo de
ser específico do ser-aí? “A existência [...] A palavra Existenz não significa
existentia enquanto realidade. A princípio, trata-se claramente de um
vocábulo ontológico, a existência é o modo de ser do ser-aí. E apenas dele.
Só o ser-aí existe. O rochedo, ou a colher, ou Deus não existem” (p. 17).
Ou seja, não devemos interpretar o ser-aí como fez a tradição
metafísica, mas podemos afirmar que ele se mostra como um poder-ser
possível, que se realiza por meio da existência no mundo, como afirma
Figal (2016, p. 60) “o “ser-aí” é uma palavra para designar o nosso poder
ser”. Assim, no pensamento heideggeriano, a “essência” do ser-aí não deve
ser compreendida como substância ou categoria, mas sim como totalidade
de sua existência, em que ser-aí se mostra como ente sempre a partir das
possibilidades que assume, e esse é o sentido de sua constituição
ontológico-existencial.
Após reinserir na discussão filosófica a questão do sentido do ser,
Heidegger apresentou a ideia que tinha por objetivo designar a totalidade
do seu projeto filosófico, a saber: uma ontologia fundamental. Ao
perceber que a ontologia clássica equivocou-se ao interpretar o ser como
um ente, Heidegger ocupou-se de uma desconstrução da história da
ontologia. Foi necessário apontar novos caminhos à metafísica
contemporânea para que acompanhasse seu pensamento partindo da
questão fundamental do sentido do ser.
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 221

A ontologia fundamental, no entanto, não tinha apenas o intuito


de desconstruir o legado metafísico estabelecido até então, mas, além
disso, tinha o objetivo de trazer à tona as raízes de uma ontologia que fosse
capaz de fundamentar todas as demais (ontologias regionais). Essa
“desconstrução”, também compreendida como “destruição”, não tinha o
objetivo de abandonar todo o legado histórico herdado da tradição
metafísica, mas, muito mais do que isso, desconstruir para Heidegger

[...] significa, de fato, reconstruir, visto que se trata de reencontrar um


solo de origem, uma base fenomenal com conceitos usados, dado que se
trata “ao des-construir representações tornadas usuais e vazias... de
recuperar as experiências do ser que estão na origem da metafísica”. O
essencial da des-construção – sem a qual ela se reduziria a tornar a
atravessar as sedimentações dos sentidos – consiste na reconquista duma
experiência originária e simples do ser, quer dizer, numa descoberta
fenomenológica, pela qual é possível ver de novo uma estrutura
elementar esquecida (HAAR, 1990, p. 120-121).

Nesse caso, não devemos compreender a destruição da história da


ontologia como um esquecimento, um afastamento, ou mesmo uma
recusa. O próprio Heidegger afirma na Introdução à Filosofia que “seria um
grande equívoco pensar que sempre poderíamos conformar a filosofia a
partir de uma recusa completa da tradição histórica” (HEIDEGGER,
2008b, p. 5). Por mais que Heidegger considere o pensamento metafísico
como insuficiente para uma ontologia fundamental, ele serve de base para
um novo modo de pensar ontológico-existencial que busca um
desvelamento da questão anteriormente caída em esquecimento.
A destruição da história da ontologia se mostra como uma parte
fundamental do projeto da ontologia fundamental, no entanto, existem
outros dois subprojetos de grande importância para este pensamento, são
eles: a hermenêutica da facticidade e a analítica existencial. A hermenêutica
da facticidade começou a ser esboçada já em 1923, no livro Ontologia:
hermenêutica da facticidade, como um constituinte ontológico-existencial do
ser-aí e embora não seja tratada com direta profundidade em Ser e tempo,
sua ideia principal sempre se faz presente. Heidegger apresenta a
hermenêutica da facticidade como a tarefa de “[...] tornar acessível o ser-
aí próprio em cada ocasião em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo.
[...] Na hermenêutica, configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de
via a compreender-se e de ser essa compreensão” (HEIDEGGER, 2012,
p. 21).
222 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A hermenêutica da facticidade apresenta o movimento já


mencionado da tríplice estruturação da questão do ser (questionado,
perguntado e interrogado), em que o ser-aí (interrogado) é compreendido
e compreende-se sempre em uma direção prévia, a facticidade. A
hermenêutica, pretende, pois, indicar o modo de acessar a facticidade, a
qual é compreendida como [...] a designação para o caráter ontológico de
“nosso” ser-aí “próprio” (HEIDEGGER, 2012, p. 13).
A hermenêutica da facticidade está relacionada à condição de
poder-ser do ser aí e se mostra em um movimento circular em que não é
possível compreender a totalidade da existência do ser-aí sem
compreender suas “partes”, ou seja, seus constituintes ontológicos. É
necessário que se compreenda a totalidade da existência do ser-aí no
mundo, abarcando suas estruturas fundamentais (ser-no-mundo, ser-com,
ser-em, etc.), seus existenciais (facticidade, existencialidade, cuidado, etc.)1
e toda sua abertura em um horizonte de possibilidades próprio ao ser-aí.
Desse modo, compreendemos a facticidade como o “caráter fatual
do fato do ser-aí em que, como tal, cada ser-aí sempre é” (HEIDEGGER,
2002, p. 94). Enquanto que seu caráter hermenêutico é compreendido
como a interpretação e questionamento que o ser-aí faz de si mesmo como
um ente que existe e que compreende tanto sua existência quanto o seu
próprio movimento de compreensão.
Esse círculo hermenêutico é compreendido como um círculo de
compreensão baseado na tríplice estruturação do questionado, perguntado e
interrogado em que estamos desde sempre já em uma compreensão prévia do
fenômeno que se mostra. Essa circularidade ontológica é característica do modo

1 Não apenas para compreender a existência do ser-aí, mas também para compreender o
plano geral do tratado Ser e tempo, é necessário que se compreenda um conceito ligado ao
outro. Há aqui uma dificuldade específica da leitura e compreensão da estrutura de Ser e
tempo. Um conceito está intimamente ligado e relacionado ao outro. Não há como falar
de ser-aí sem falar de existência, possibilidades, facticidade, analítica existencial, e assim
por diante. Embora alguns conceitos centrais de Ser e tempo não tenham sido trabalhados
no presente artigo, não quer dizer que não sejam parte do projeto da ontologia
fundamental, pois não há como pinçar um conceito e tratar somente dele, sem
permanecer no contexto geral do pensamento de Ser e tempo. Nesse sentido,
compreendemos uma forte ligação entre o pensamento hermenêutico fenomenológico
de Heidegger e o seu modo de escrita, que nos parece condizer muito com a hermenêutica
enquanto movimento circular. Não se trata, portanto, de um pensamento de causa e
efeito ou que parta de um início para um fim, mas sim de um pensamento envolto no
círculo hermenêutico. E isso do mesmo modo como a forma de escrita que não se pauta
mais em dualismos, mas em um círculo em que todos os constituintes são extremamente
relevantes, pois se complementam e correlacionam.
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 223

de ser do ser-aí, que compreende o fenômeno no momento de sua mostração,


sem determiná-lo como ekstático.
Esse momento de mostração também é um movimento que permite que
a relação do ser-aí com o ser não seja imóvel, determinada como uma relação de
sujeito-objeto, nem de causalidade, mas uma relação circular de possibilidades e
de acontecimento. Assim, podemos perceber que não se trata do ente
fundamentar o ser, o que, porém, também não se trata do ser fundamentar o
ente. Na circularidade da ontologia hermenêutica há apenas um movimento de
copertinência e, por isso mesmo, o ser-aí é compreendido como um ente ôntico-
ontológico (HEIDEGGER, 2002, p. 40).
A partir dessa caracterização da hermenêutica da facticidade e da
desconstrução da história da ontologia, podemos situar a ontologia
hermenêutica como fundamental, pois se mostra na base (fundamento) de
todo pensamento ontológico heideggeriano. A ontologia fundamental tem
o objetivo de reinserir e resgatar a originariedade da questão ontológica
através do sentido do ser. Em função disso, para que seja possível
compreender o modo como a ontologia fundamental compreende o papel
do ser-aí nesse contexto, Heidegger apresenta o terceiro subprojeto de sua
ontologia, intitulado de analítica existencial.
A analítica existencial é responsável por analisar o ente que somos,
o ser-aí. No entanto, Heidegger apresenta mais uma vez a novidade de seu
pensamento na medida em que essa análise se mostra completamente
diferenciada da análise tal como compreendida pela metafísica (e também
pelas ciências). A análise no sentido heideggeriano tem uma conotação
diferenciada. Heidegger explica nos Seminários de Zollikon que Kant usou o
termo “analítica”2 em sua Crítica da Razão Pura e que, a partir daí, ele retirou
o termo para integrar à sua analítica existencial.
Embora faça esse reconhecimento a Kant, Heidegger utiliza a
expressão não mais do modo kantiano, mas a partir de uma compreensão
que é própria à fenomenologia. Em se tratando de analítica existencial,
Heidegger propõe a análise do ser-aí não mais como uma decomposição
do objeto do conhecimento, mesmo porque o ser-aí não é objeto, como
não é sujeito, alma, ou qualquer outra coisa que arrole consigo
determinações teóricoas, subjetivistas ou objetivistas. Heidegger propõe a
analítica do ser-aí como um modo de compreender o ser-aí em sua
abertura a fim de

2Assim como o termo ser-aí (Dasein) já havia sido utilizado por Kant e por Hegel, mas
com outro significado.
224 Ressonâncias filosóficas - Artigos

[...] evidenciar a unidade original da função da capacidade de


compreensão [...] a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de
condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um
decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura.
Esse é o fator essencial no meu conceito “analítica do Dasein”
(HEIDEGGER, 2009, p. 154).

O ser-aí não pode ser compreendido a partir da mera onticidade,


como também não deve ser interpretado como homem, pois não carrega
consigo pressupostos tradicionais como o de animal racional, alma,
espírito, consciência, etc. O ser-aí pode ser descrito, quando muito, como
espaço de abertura, horizonte de possibilidades, poder-ser.
Devido a isso, entendemos que ser-aí não é apenas uma mudança
linguística adotada por Heidegger para se referir ao homem, à razão ou ao
sujeito, bem como analítica existencial não é um termo para substituir a
ideia de análise, como tradicionalmente reconhecida. A analítica é uma
“análise fenomenológica do Dasein – e não do homem, tal como este é
geralmente considerado, como sujeito de conhecimento e, ao mesmo
tempo, objeto de disciplinas científicas” (GIACOIA JR, 2013, p. 65). Na
analítica existencial o ser-aí é compreendido a partir da sua condição de
poder-ser e

As características que se podem extrair deste ente não são, portanto,


“propriedades” simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que
possui esta ou aquela “configuração”. As características constitutivas do
ser-aí são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda
modalidade de ser deste ente é primordialmente ser (HEIDEGGER,
2008, p. 77-78).

Diante das palavras do autor, entendemos que o ser-aí não deve


ser interpretado como um ente simplesmente dado, mas compreendido
como uma existência sempre aberta. A partir de tais reflexões, Heidegger
percebeu que o desenvolvimento das ciências naturais crescia cada vez
mais em torno de um empirismo positivista que se dedicava a determinar
e definir os entes em domínios estritamente particulares. Analisar o ente
desse modo, na compreensão de Heidegger, gera um equívoco em que
aquele que analisa é capaz de observar apenas uma região do ente,
deixando de compreender o fenômeno em sua inteireza.
Este equívoco, segundo Heidegger, é muito comum nas ciências
naturais, pois estas se mostram indiferentes à questão ontológica
fundamental, importando-se apenas com uma parte mensurável do
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 225

fenômeno a ser analisado. O equívoco, nesse caso, diz respeito à perda da


capacidade de responder o problema da existência e, devido a isso,

[...] nenhuma ciência particular – empírica ou formal – pode dar uma


resposta para a pergunta pelo ser dos entes com os quais se ocupa porque
toda normalidade científica assume como dado um determinado
domínio de entidades que constitui seu objeto de investigação. As
ciências ocupam-se dos entes que correspondem a seus conceitos – e
mais nada. Elas diferem do senso comum ou de um mero saber do
provável porque suas teorias são formadas por juízos com pretensão de
universalidade e de necessidade objetiva (GIACOIA JR, 2013, p. 55).

Desse modo, as ciências naturais se ocupam dos fenômenos,


inclusive do fenômeno humano (ser-aí), sem se perguntar pelo estatuto do
ser destes entes que são observados, analisados, testados e explicados.
Enquanto Heidegger se preocupa em elaborar uma analítica existencial
como uma forma de compreender o ser do ente que somos, as ciências
naturais se ocupam do fenômeno humano, explicando e determinando sua
existência a partir de regiões, ou seja, a partir de partes que determinada
seção da ciência se ocupa em analisar.
Heidegger, na medida em que percebe tamanho equívoco, critica
radicalmente as ciências empíricas por determinarem o ser-aí como
sujeito3, objeto, alma, razão e qualquer outra definição pautada em
pressupostos perspectivistas. No parágrafo 10 de Ser e tempo, Heidegger
aponta uma delimitação da analítica existencial frente às ciências naturais,
especialmente a antropologia, a psicologia e a biologia. Essa delimitação
tem o objetivo de apontar as limitações dessas ciências na medida em que
pensam, interpretam e analisam o ser-aí como coisa. Nas palavras de
Heidegger:

Para que se possa perguntar o que deve ser entendido positivamente ao se


falar de um ser não coisificado do sujeito, da alma, da consciência, do
espírito, da pessoa, é preciso já se ter verificado a proveniência
ontológica da coisificação. Todos estes termos designam regiões de
fenômenos, determinadas e passíveis de “formação plena”, embora o seu
uso ocorra sempre junto a uma curiosa indiferença frente à necessidade
de se questionar o ser dos entes assim denominados. Não é, portanto,
por capricho terminológico que evitamos o uso desses termos bem

3Ser-aí não é “sujeito”. Não há mais pergunta pela subjetividade (HEIDEGGER, 2009,
p. 230).
226 Ressonâncias filosóficas - Artigos

como das expressões “vida” e “homem” para designar o ente que nós
mesmos somos (HEIDEGGER, 2008, p. 82).

Por isso, como já aludimos, o ser-aí não é mera criação


terminológica para substituir o que significa homem, vida ou psiquê.
Heidegger está preocupado em mostrar que ser-aí se difere de
homem/vida/psiquê e que, em se tratando de ontologia fundamental e,
portanto, de fenomenologia, ser-aí não pode ser compreendido como
ente, como o faz a ciência.
As ciências pensam o fenômeno sempre a partir de uma
perspectiva muito específica e de maneira objetiva, de modo que
interpretam apenas partes fragmentadas. Por interpretarem apenas regiões
dos fenômenos, tais ciências são consideradas ontologias regionais, e,
dentre elas, estão a antropologia, a psicologia e a biologia.
A antropologia, por exemplo, pensa o homem em suas dimensões
físicas e pragmáticas, considerando, no primeiro caso, seus aspectos
morfológicos, fisiológicos; depois os aspectos de sua cultura e sociedade.
No entanto, a antropologia também esqueceu o ser dos entes, na medida
em que deixou de questioná-lo passando a concebê-lo “[...] como
‘evidência’, no sentido de ser simplesmente dado junto às demais coisas
criadas” (HEIDEGGER, 2008, p. 86).
A ciência da biologia, por outro lado, se ocupa em analisar os seres
vivos e a vida, levando em consideração, especialmente, o processo de
seleção e adaptação natural, pois para a biologia interessa aquilo que “[...]
se limita a exprimir as particularidades acidentais de um certo tipo de
organismo” (TAMINIAUX, 1995, p. 24).
Já a psicologia trata de um sujeito psíquico, analisando seus
comportamentos ou funções mentais, sua consciência, seu inconsciente
etc., partindo, na maioria das vezes, do modelo dicotômico “sujeito-
objeto”. Essa clássica dicotomia acredita na ideia de que “[...] corpo e
mente tende, a princípio, a ser concebidos como duas instâncias
independentes e acessíveis de forma empírica e passível de mensuração,
podendo ser descritas nas suas determinações causais” (FEIJOO, 2011, p.
28).
Diante disso, para o pensamento de Heidegger, a antropologia e a
biologia analisam o homem a partir de sua perspectiva e de seu ponto de
vista, sem se questionar sobre o que há de mais originário, ou o que está
na base do pensamento ontológico.
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 227

[...] A mesma coisa vale para a “psicologia” cujas tendências


antropológicas não se podem mais desconsiderar hoje em dia. A falta de
fundamentos ontológicos, entretanto, não pode ser compensada
inscrevendo-se a antropologia e a psicologia numa biologia geral. Na
ordem de uma possível apreensão e interpretação, a biologia como
“ciência da vida” se funda, embora não exclusivamente, na ontologia do
ser-aí. A vida é um modo próprio de ser, mas que, em sua essência, só
se torna acessível no ser-aí (HEIDEGGER, 2008, p. 86).

Aqui, Heidegger nos mostra, mais uma vez, que as ciências


naturais, a exemplo da antropologia, da psicologia e da biologia, são
consideradas ontologias regionais, pois só analisam o fenômeno humano
em partes. Já a ontologia do ser-aí, denominada como ontologia
fundamental, possibilita pensar e compreender o ser-aí a partir da analítica
existencial, que não decompõe o ser-aí em fragmentos analisando suas
regiões isoladas, mas que o compreende sempre a partir de sua existência.
Desse modo, é possível compreender que, na fenomenologia existencial
de Heidegger, o ser-aí, em sua essência, não possui qualquer determinação
positiva, mas apenas um “traço característico” que é o da existência. Com
isso, enquanto existente no mundo, o ser-aí é um ente de possibilidades.
É devido a esse posicionamento do autor que não é suficiente
inverter o processo da objetivação para a subjetivação, pois o ser-aí não se
resume à ideia de sujeito, nem de objeto. Por isso, Heidegger critica o
neokantismo por inverter a “objetivação” (conhecimento da
objetualidade) para a “subjetivação” (a qual deve apresentar psicológica e
filosoficamente o processo). “Nisso, a objetualidade apenas é transferida
do objeto para o sujeito, o conhecer enquanto conhecer permanece,
porém, o mesmo fenômeno não esclarecido” (HEIDEGGER, 2010, p.
15).
Percebemos, assim, que a filosofia (especialmente a metafísica), ao
tratar da experiência paradigmática do humano, converteu-a na figura de
um sujeito já tratando-o segundo o modelo empírico próprio às ciências,
o que resulta em abordagens como as da biologia, antropologia e
psicologia. Ao fazer tal avaliação, ressalte-se, Heidegger não pretende
desqualificar tais ontologias regionais, pois elas têm seu mérito e realizam
o seu trabalho científico, mesmo sem pensarem filosoficamente e sem
terem como base a ontologia fundamental. Porém, o filósofo acredita que
as ciências particulares têm seus limites de interpretação, por
compreenderem o ser-aí sem levar em conta seu modo de ser mais
próprio. Como podemos ver no comentário que se segue:
228 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Indicando-se na psicologia, antropologia e biologia a falta de uma


resposta precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista
ontológico, para a questão do modo de ser deste ente que nós mesmos
somos, não se pretende emitir um julgamento sobre o trabalho positivo
destas ciências. Por outro lado, deve-se ter sempre em mente que estes
fundamentos ontológicos não podem ser obtidos posteriormente a partir
de hipóteses sobre um material empírico. Pois, quando o material
empírico está sendo simplesmente coletado, os fundamentos já estão
sempre “presentes”. O fato de as pesquisas positivas não verem os
fundamentos e considerá-los evidentes não constitui uma prova de que
eles não se achem à base e que não sejam problemáticos, num sentido
mais radical do que poderá ser uma tese das ciências positivas
(HEIDEGGER, 2008, p. 87).

Em vista disso, o que é de todo equivocado é a filosofia continuar


pensando o ser-aí aos moldes das ontologias regionais e das ciências
positivas, uma vez que o ser-aí deve ser compreendido filosoficamente a
partir da ontologia fundamental. A fenomenologia existencial de
Heidegger propõe uma delimitação da analítica existencial frente à
antropologia, a psicologia e a biologia, porque:

Conceitos como “psíquico”, “conjunto de atos”, “consciência


transcendental”; problemas como o relacionado ao “conjunto corpo e
alma” – todos eles não representam mais nada para nós hoje. Eu
experimento a mim mesmo na experiência fática da vida ou como
conjunto de vivência, ou como conglomerado de atos, não como
qualquer coisa de eu-objeto em sentido determinado [...]. Querer voltar
para trás a partir de teorias psíquicas já concebidas, para o fático, é um
empreendimento falho, porque todas essas teorias não são motivadas
filosoficamente (HEIDEGGER, 2010, p. 17-18).

Tendo compreendido o equívoco que cometeram as ciências


naturais, é necessário compreender o fenômeno de outro modo, a menos
que se queira manter no domínio ôntico e continuar a analisar o fenômeno
de modo insuficiente. Em se tratando de filosofia e, sobretudo, de
fenomenologia, há que se ter um olhar crítico frente à posição das ciências
para não repetir o equívoco e incorrer no erro. É de se permitir que as
ciências hajam de tal forma; no entanto, não podemos deixar que uma
descrição que se pretenda fundamentalmente ontológica comece por
examinar o fenômeno a partir de uma perspectiva isolada. O fenômeno,
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 229

antes de tudo, não deve ser analisado, mas deve ser compreendido em sua
totalidade.
O filósofo trata do modo de ser do homem, não como anthropos,
como psiké ou como bios, como o fazem as ciências empíricas, mas
compreende esse modo de ser como ser-aí. É, portanto, a partir de uma
analítica existencial, que nos mostra a diferença ontológica entre ser e ente,
que podemos compreender o ser-aí como condição de possibilidades e
não como determinações sociais, psicológicas ou mesmo, fisiológicas.
Sendo assim, para o pensamento fenomenológico heideggeriano,
se há uma determinação possível ao ser-aí, ela pode ser única e
exclusivamente condição de poder-ser no mundo. Ora, esse é um
pensamento completamente diferente daquele já cristalizado da tradição
filosófica. Há, portanto, a necessidade de tecer uma crítica à metafísica,
pois a fenomenologia-existencial de Heidegger não permite uma
compreensão pautada em pressupostos causais, deterministas e
subjetivistas, tampouco uma análise (Analyse) que decompõe o ente em
partes para investigações de cunho científico.
O ser-aí é um ente de possibilidades que existe no mundo, um ente
privilegiado que compreende sua existência e pergunta pelo seu sentido,
diferente dos demais entes que estão simplesmente dados. Devido a isso,
o ser-aí não pode ter determinações e não pode ser compreendido como
mera entidade, uma vez que traz consigo a marca do poder-ser possível.
Assim, é possível compreender por meio de uma analítica existencial, que
Heidegger reformula a ontologia e que esta não se pauta mais em
pressupostos tradicionais e positivos, mas apenas na condição de poder-
ser do ser-aí.
Em razão disso, Heidegger não só criticou o equívoco das ciências
naturais, mas também apontou para a necessidade de pensar em uma nova
forma de “olhar” para o fenômeno. Essa nova forma carece de um modo
de investigação diferente das ciências, que seja capaz de compreender o
fenômeno tal como ele se mostra, em sua totalidade. Esse, portanto, é o
papel da fenomenologia em contraposição às ciências e à metafísica.
Heidegger preocupou-se com uma nova forma de compreender o
ser dos entes e a partir da analítica existencial pôde afastar-se das
hipostasias que a metafísica tradicional carregava consigo. No entanto,
além de chamar a atenção para a diferença ontológica e o sentido do ser
dos entes, o pensador alemão propôs um novo “método”: uma ontologia
que fundamentasse todas as demais, pois todo projeto para uma “nova
230 Ressonâncias filosóficas - Artigos

ontologia” deveria começar repensando o seu “modo de investigação” e a


forma de conhecer os fenômenos.
Houve então a necessidade de pensar diversamente da concepção
das ciências naturais, em que o método era compreendido como um
procedimento lógico-causal ou técnico-científico. Em contrapartida a esse
modelo, Heidegger apropriou-se do projeto filosófico de seu mestre
Edmund Husserl (1859-1938), pois acreditava ser o único modo de
investigação possível para sua ontologia fundamental. O “método” de
Husserl, do qual Heidegger se apropriou, é denominado fenomenologia. Em
Ser e tempo, no parágrafo 7, Heidegger descreve a fenomenologia como o
“método” fenomenológico da investigação e afirma que

Fenomenologia diz [...]: άποφαίνεσθαι τά φαινόμενα – deixar e fazer ver


por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si
mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de
fenomenologia. Com isso, porém, não se faz outra coisa do que exprimir
a máxima formulada anteriormente – “para as coisas elas mesmas!”
(HEIDEGGER, 2008, p. 65).

“Para as coisas elas mesmas”! Esta é uma sentença utilizada


inicialmente por Husserl, a fim de esboçar o plano programático da
filosofia que se orienta pelo fenômeno que se mostra em e por si mesmo
enquanto se revela. A fenomenologia, portanto, se mostra como um
“método” diferenciado, como uma atitude fenomenológica4 que suspende
todas as características ou representações que se possa atribuir ao
fenômeno. A diferença da fenomenologia para os outros métodos é:

[...] uma questão de diferença na atitude. Não é o que é investigado mas


como é investigado que distingue a ciência fenomenológica das ciências
positivas. Qual é, então a atitude fenomenológica? Ela envolve uma
mudança que nos permite suspender os julgamentos implícitos que
sempre fazemos antecipadamente acerca de como as coisas devem ser e
como elas devem se mostrar, de maneira que possamos vê-las tal como
elas efetivamente aparecem (GREAVES, 2012, p. 21-22).

4 Entendemos que a palavra método está carregada de sentido, conforme a metafísica e


a ciência propuseram. Optamos por nos referir ao “método” fenomenológico como
atitude fenomenológica, com a intenção de evitar equívocos. Devido a isso, quando nos
reportarmos ao “método” fenomenológico, o usaremos entre aspas.
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 231

Esse “método” difere dos demais, pois não traz consigo um sujeito
e um objeto em que há a necessidade de um artifício técnico-científico, ou
mesmo de um método analítico, para que um explique o outro. A
fenomenologia se distancia das ciências naturais e se apresenta como uma
ciência dos fenômenos. É a partir dessa “ciência dos fenômenos” que nós
(fenômenos humanos – ser-aí) podemos compreender os entes
(fenômenos) tais como se mostram. Isso significa dizer que por meio da
atitude fenomenológica, devemos ver os entes tais como se revelam.
A fenomenologia, portanto, pretende “deixar e fazer ver o
fenômeno” (HEIDEGGER 2002) sem contar com uma pressuposição
sobre sua aparência, transfigurada ou obscurecida por uma espécie de
representação, seja ela de origem racional ou empírica. As pré-
determinações oriundas das ciências naturais devem ser deixadas de lado,
pois, do contrário, o esforço fenomenológico de ver o ente a partir dele
mesmo se esvai e continuamos a repetir o erro de analisar o ente desde
uma compreensão derivada.
A atitude fenomenológica, no entanto, não é simplesmente um
deixar-se tocar pelo fenômeno, mas, além disso, é um exercício e um
esforço por afastar toda e qualquer determinação e definição que
comprometa o deixar-se mostrar do fenômeno. Devido a isso, “tanto para
Husserl quanto para Heidegger, a fenomenologia está preocupada com a
caracterização dos modos básicos nos quais encontramos as coisas, uma
investigação que é, ao mesmo tempo, uma investigação de como as coisas
tornam-se manifestas para nós” (GREAVES, 2012, p. 24).
Desse modo, compreendemos que tanto Husserl quanto
Heidegger se distanciam dos diferentes métodos utilizados para conhecer
os fenômenos, especialmente aqueles cujo objetivo é explicar (Erklären) e
analisar (Analyse) as suas propriedades. O método explicativo, muito
utilizado anteriormente pelas ciências e pela metafísica clássica, consistia
basicamente em “identificar relações constantes entre fenômenos ou
séries de eventos, cuja regra geral tem a forma lógica da ligação entre causa
e efeito” (GIACOIA JR, 2013, p. 31).
Heidegger entende esse método como específico das ontologias
regionais (ônticas), o que significa que embora ele não sirva para uma
analítica existencial, não é de todo equivocado para as ciências naturais.
Devemos ressaltar que o objetivo de Heidegger não é destruir as ciências
e seus respectivos métodos, mas sim, mostrar que a filosofia, enquanto se
propõe a investigar o sentido do ser dos entes, deve preocupar-se com
232 Ressonâncias filosóficas - Artigos

questões mais primordiais e que, inclusive, permitem as ciências ônticas a


exercerem o seu papel.
O “erro” ou a ingenuidade das ciências, então, foi apontado por
Heidegger para mostrar o traço fundamental que distingue ciências
naturais de ciências humanas, e seus métodos: explicativo e compreensivo
(fenomenológico), respectivamente. Heidegger deixa de lado as deduções,
as definições, as posições evidentes e, principalmente, as explicações, para
assumir uma postura que leva em consideração a compreensão (Verstehen)
dos fenômenos. As ciências humanas, alicerçadas pelo método
fenomenológico, não se pautam em explicações nem em definições, pois,
como afirma Greaves:

A fenomenologia coloca para si mesma a tarefa de tentar resistir a


preconceitos profundamente arraigados acerca de como o mundo e as
coisas nele realmente são e tenta levar-nos a ver mais cuidadosamente
como eles aparecem [...]. Uma caracterização preliminar de como as
coisas parecem será inevitavelmente dirigida e informada por
preconceitos e expectativas. Uma caracterização adequada de como as
coisas aparecem requer que não nos contentemos em deixar as coisas
aparecerem à luz dessas expectativas. Como Edmund Husserl, mentor
de Heidegger, o coloca: “O que é preciso não é a insistência de que se
veja com os próprios olhos; mas sim, sob a pressão dos preconceitos,
não se abandone o que se viu” (GREAVES, 2012, p. 20).

Entendemos que a filosofia deve assumir uma atitude própria à


fenomenologia, de modo que se comprometa única e exclusivamente com
a compreensão e descrição do fenômeno. Somente assim é que aquele que
se propõe a investigar o fenômeno poderá alcançar uma compreensão
rigorosa. Porém, quando falamos em rigor devemos lembrar que este rigor
é aquele que parte também da questão mais primordial da ontologia
fundamental, a questão do sentido do ser e que somente através do olhar
fenomenológico – suspenso e distante das estruturas hispostasiantes – é
que é possível compreender a questão.
Diante disso, podemos compreender a ligação entre
fenomenologia e ontologia, pois para Heidegger “[...] a ontologia só é possível
como fenomenologia” (HEIDEGGER, 2008, p. 66) e a fenomenologia, por
sua vez, é o modo de investigar a constituição ontológica dos fenômenos
e o modo como eles nos aparecem. Portanto, a fenomenologia é o modo
de investigar mais simples e, ao mesmo tempo, mais complexo que
podemos conhecer, pois não conta com nenhuma técnica sendo
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 233

aparentemente muito fácil compreender os fenômenos tal como eles se


mostram em si mesmos. No entanto, a atitude fenomenológica requer um
exercício de “desapego” de todas as teorias objetivantes que fizeram parte
tanto das ciências, como da metafísica há mais de dois mil anos.
Assim, entendemos a atitude fenomenológica como uma saída da
teoria do conhecimento clássica para a fenomenologia que também
pretende conhecer os fenômenos, mas de um modo muito próprio e
peculiar. A fenomenologia compreende o fenômeno tal como ele se
mostra, em seu movimento circular5. Aqui voltamos ao ponto em que há
uma ligação muito estreita entre os conceitos abordados em Ser e tempo.
Como já enunciado, os conceitos se correlacionam formando uma trama
comum. Em se tratando de fenomenologia é importante mostrar qual sua
relação com a hermenêutica e o modo de escrita de Heidegger em Ser e
tempo.
Embora seja um tratado de filosofia, a escrita de Heidegger é, sem
dúvidas, muito concatenada e cuidadosa, apesar de ser de um grau de
dificuldade muito elevado. No entanto, o autor preocupa-se com seu
leitor, na medida em que deixa claro no texto o momento em que está se
referindo aos termos da tradição (na maioria das vezes em latim, grego, ou
grifado em itálico), para diferenciar da sua nova terminologia. Além disso,
compreendemos a escrita de Heidegger intimamente ligada ao seu
pensamento, uma vez que não somente a fenomenologia existe a partir de
uma nova visão, mas a sua escrita também.
Podemos dizer que o círculo hermenêutico não acompanha
somente a ontologia fundamental, mas também a forma de escrita de Ser e
tempo, pois Heidegger não mais escreve através da lógica causal como
estamos (muitas vezes) acostumados a pensar, mas utiliza novos termos
ou dá novos sentidos aos termos tradicionais, para rever as posições das
epistemologias anteriores ao seu pensamento.
O “método” fenomenológico, portanto, se mostra como essa
possibilidade de conhecer os fenômenos e a linguagem utilizada por
Heidegger evidencia que o pensamento e linguagem devem estar
relacionados. Isso nos faz pensar que a proposta de uma ontologia
fundamental é inovadora no modo de pensar e na forma de escrita em Ser
e tempo. A proposta de uma retomada da questão do sentido do ser, da
analítica existencial, bem como da atitude fenomenológica não poderia ser
compreendida enquanto ontologia fundamental se não fosse a nós

5 Descrito anteriormente quando se tratava da hermenêutica.


234 Ressonâncias filosóficas - Artigos

transmitida de um modo completamente novo por meio, também, de uma


nova escrita.
Assim, escrever a partir de uma circularidade (em que não há um
antes e um depois, uma causa e um efeito, um sujeito e objeto), não é
somente uma mudança de vocabulário, mas, antes de tudo, uma mudança
de fundamento, de pensamento. Por isso, Emmanuel Carneiro Leão
afirma na apresentação de Ser e tempo:

A linguagem é a passagem obrigatória de todos os caminhos do


pensamento. [...] Ser e tempo não pode deixar de revolucionar as
referências com as línguas. Nenhuma revolução é possível sem um
linguagem revolucionária. [...] As peculiaridades e estranhezas da
linguagem de Ser e tempo não provém de idiossincrasias do autor. São
exigências e imposições da própria viagem da questão, pelas vias das
línguas. A maneira pela qual Ser e tempo lida com o discurso das diversas
línguas da tradição resulta do esforço para corresponder às exigências
revolucionárias de um pensamento que se propõe pensar o ser em seu
sentido (HEIDEGGER, 2002, p. 21).

E Ser e tempo é uma obra que causa estranheza a muitos,


principalmente por essa questão linguística, em que a terminologia parece
estranha em comparação a muitos clássicos de filosofia. Até outros
filósofos, como Gadamer, comentam que ao ler Heidegger tudo era novo
“no entanto, antes de qualquer outra coisa era nova a linguagem”
(GADAMER, 2009, p. 43), se tratando de uma nova experiência.
Percebemos, por fim, que Heidegger estava liberto e queria
também libertar seus leitores tanto do pensamento quanto da linguagem
metafísica. Para que isso fosse possível, ele esforçou-se em mostrar que há
a necessidade de exigirmos de nós mesmos uma transposição do
pensamento (bem como da fala e da escrita) metafísico para um
pensamento fenomenológico que compreenda as possibilidades enquanto
possibilidade.

REFERÊNCIAS

DASTUR, Françoise; CABESTAN, Philippe. Daseinsanálise: fenomenologia e


psicanálise. Trad. Alexander de Carvalho. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015.

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Trad. Bernardo


Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Fenomenologia enquanto atitude e escrita filosófica... 235

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo. A existência para além do sujeito: a crise
da subjetividade moderna e suas repercussões para a possibilidade de
uma clínica psicológica com fundamentos fenomenológico-existenciais.
Rio de Janeiro: Edições IFEN: Via Verita, 2011.

FIGAL, Günter. Fenomenologia da liberdade. Trad. Marco Antonio


Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

FIGAL, Günter. Introdução a Martin Heidegger. Trad. Marco Antonio


Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016.

GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Trad. Marco


Antônio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo


pensar. São Paulo: Três estrelas, 2013.

GREAVES, Tom. Heidegger. Trad. Edgar da Rocha Marques. Porto


Alegre: Penso, 2012.

HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Trad. Ana Cristina Alves.


Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcanti


Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

_____. Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

_____. Seminários de Zollikon. Trad. G. Arnhold; M. F. A. Prado.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

_____. Fenomenologia da vida religiosa. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança


Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010.

_____. Ontologia – Hermenêutica da facticidade. Trad. Renato Kirchner.


Petrópolis: Vozes, 2012.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto. S. 10 Lições sobre Heidegger.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
236 Ressonâncias filosóficas - Artigos

NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.

TAMINIAUX, Jacques. Leituras da ontologia fundamental. Trad. João Carlos


Paz. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
XX

FILOSOFIA NA WEB E EXERCÍCIO DO PENSAMENTO NA


MODERNIDADE LÍQUIDA

Maria Fatima Menegazzo Nicodem*


Lucas Eduardo Menegazzo Nicodem**

RESUMO

O presente trabalho volta-se a refletir sobre os percursos da filosofia


contemporânea, o exercício do pensamento na sala de aula e os vínculos
destes estudos com os de Bauman, a respeito dos tempos líquidos e da
modernidade líquida. Tem como um dos seus objetos as redes sociais que
veiculam informação, conhecimentos e saberes. A utilização da Internet,
permeada por essas redes que lhe servem de veículo comunicativo pelas
quais os relacionamentos aparentemente tão próximos se constituem em
ilusão afetiva. Questiona-se como a Filosofia circula na Web em
contraponto ao exercício do pensamento do ser humano que manuseia a
rede como sua ferramenta reflexiva. Como pensam os que pensam com
as redes sociais? Como pensam os que exercitam a construção das ideias
na modernidade líquida. O respaldo teórico para este trabalho é
encontrado em Bauman (1999) que teoriza sobre essa modernidade.
Teoricamente nos respaldamos também nos filósofos contemporâneos e
buscamos fechar o circuito das reflexões, deixando, porém, em aberto os
fios dessa tessitura que se propõe teia de construção da
contemporaneidade líquida na busca do “eterno retorno” ao sólido.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia contemporânea, Redes Sociais,


Modernidade Líquida.

* Universidade Tecnológica Federal do Paraná; e-mail: fatima@utfpr.edu.br


** Universidade Paulista; e-mail: fatimanicodem@hotmail.com
238 Ressonâncias filosóficas - Artigos

INTRODUÇÃO

No início era a praça. E na praça se fazia a comunicação das ideias.


O conhecimento circulava pelos ouvidos e de boca em boca. A instituição
era a palavra e a palavra se transformava em saberes. Depois, num salto
no tempo, aliada à necessidade do transporte rodoviário, marítimo ou
aeroviário, veio a carta, a missiva, a correspondência. E a palavra era dada
a conhecer pelas letras e ideias que o tempo se encarregava, rapidamente,
de tornar obsoletas, porque, não raro chegavam ao destino já como
“notícia velha”. E depois o telégrafo, e depois a imprensa, e depois o
telefone, os meios de comunicação de massa – rádio, TV, jornais
impressos, revistas – enfim, a internet e, com ela, a informação em tempo
real, os saberes e os conhecimentos e todo o tipo de postagem nas redes
sociais. Chegamos: e a filosofia, como tem se construído no emaranhado
tumultuado das redes sociais? No que crer e no que não crer? Postas estas
reflexões iniciais, a análise se realiza por meio daquilo que Bauman (1999)
concebe como “tempos líquidos”, “modernidade líquida”, “vida líquida”,
em contraponto à solidez que os termos “tempo” e “vida” significaram no
passado.
Que tipo de diálogo filosófico se interpõe na grande teia das redes
sociais? Esta é a primeira pergunta que se faz neste trabalho? E a segunda
questão que se apresenta é: “Como a Filosofia tem transitado nessas
redes”?
A metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa aqui
apresentada foi “análise de conteúdo”, segundo os estudos de Bardin:

[...] aprofunda-se na questão do método e técnicas, respectivamente: a


organização da análise; a codificação de resultados; as categorizações; as
inferências; e, por fim, a informatização da análise das comunicações.
Para uma aplicabilidade coerente do método, de acordo com os
pressupostos de uma interpretação das mensagens e dos enunciados, a
Análise de Conteúdo deve ter como ponto de partida uma organização.
[...] Conforme Bardin: 1. A pré- análise; 2. A exploração do material; e,
por fim, 3. O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação
(FARAGO; FOFONCA, 2009, p. 121).

Isto posto, passamos a discorrer sobre cada uma delas, com fulcro
na análise filosófico-sociológica e midiática, educação e culturas (no plural
mesmo).
Filosofia na web... 239

20.1 FUNDAMENTANDO FILOSOFIA NA MODERNIDADE


LÍQUIDA

A filosofia está inserida na história da cultura. E a cultura é um


terreno no qual a batalha jamais cessa. Em Bauman (2012) a imagem da
cultura como uma oficina em que o padrão estável de sociedade é
consertado e mantido harmonizava-se com a percepção de todas as coisas
culturais – valores, normas comportamentais, artefatos – estruturadas
num “sistema”:

A sociedade e a cultura, assim como a linguagem, mantêm sua distinção


– sua “identidade” -, mas ela nunca é a “mesma” por muito tempo, ela
permanece pela mudança. Além disso, na cultura não existe “agora”, ao
menos no sentido postulado pelo preceito da sincronia, de um ponto no
tempo separado de seu passado e autossustentado quando se ignoram
suas aberturas para o futuro (BAUMAN, 2012, p. 36).

Sob esta perspectiva, a filosofia se constrói e vai se constituindo


atrelada a uma cultura, às culturas, ao conjunto das vivências humanas. A
“identidade” se constitui no interior do contexto filosófico. Não se reflete
a identidade quando o pertencimento vem naturalmente, quando é algo
pelo qual não se precisa lutar, ganhar, reivindicar e defender; quando se
pertence seguindo somente os movimentos que aparentam ser óbvios
simplesmente pela ausência de competidores. Essa pertença, segundo
Bauman (2012), torna redundante qualquer preocupação com a identidade
num mundo localmente confinado. A filosofia se enreda nessas marcas da
modernidade, cuja tônica é a ampliação do volume e do alcance da
mobilidade. Por conseguinte, de forma inevitável, o enfraquecimento da
influência da localidade e das redes locais de interação.
Sob este aspecto, o que fica evidente é que a filosofia ganha cada
vez mais espaços críticos, de discussão, de militância, de diálogo, de
acréscimo de saberes e de conhecimentos, utilizando-se como meio de
condução de ideias, as redes sociais.
Em Bauman (2012) temos que mais ou menos por uma mesma
razão, a modernidade é também uma era e totalidades supralocais, de
“comunidades imaginadas” orientadas ou aspiradas, de construção
humana e de identidades culturais “compostas”, postuladas ou
construídas. A filosofia se interpõe no âmbito dessas comunidades
imaginadas.
240 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A identidade pessoal confere significado ao “eu”. A identidade


social garante esse significado e, além disso, permite que se fale de um
“nós” em que o “eu”, precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em
segurança e até se livrar de suas ansiedades.
Esta postura de Bauman (2012) pode ser colocada em contraponto
com as reflexões de Thomas More que, segundo Pereira (2012) enfatizava
as instituições perfeitamente ordenadas e respondendo aos anseios sociais
de toda a população. A posse comum de toda a terra não deixa subsistir a
propriedade privada. E ainda apontava para a educação, para a filosofia e
apara as arestas:

A educação, nessa ilha imaginária, está ao alcance de todos,


independente de sexo e a tolerância religiosa é total. Há um detalhe
interessante a ressaltar: o ateísmo não é aceito. [...] Thomas More
constrói em Utopia uma sociedade ideal, perfeita, inspirando-se
seguramente nos conceitos clássicos antigos de sociedades
perfeitas, apregoadas especialmente por Platão e Aristóteles
(PEREIRA, 2012, p. 52).

Andando a par e passo com as ideias dos pensadores gregos, More


privilegia, em Utopia, a tolerância e a disciplina a serviço da liberdade,
construindo, desta forma, o retrato de um mundo imaginário, próximo do
ideal.
Em retorno à modernidade líquida de Bauman (2007), refletimos
com o mesmo as pressões voltadas à perfuração e à quebra de fronteiras,
comumente chamadas de “globalização”, local onde se urdem os novos
filósofos e a nova filosofia. Todas as sociedades agora total e
verdadeiramente abertas, seja material, seja intelectualmente, se fazem
claras e trazem à tona por que toda injúria, privação relativa ou indolência
planejada em qualquer lugar é coroada pelo insulto da injustiça: o
sentimento de que o mal foi feito, um mal que exige ser reparado, mas
que, em primeiro lugar, obriga as vítimas a vingarem seus infortúnios:

O “grau de abertura’ da sociedade aberta ganhou um novo brilho, jamais


imaginado por Karl Popper, que cunhou o termo. Tal como antes, o
termo se refere a uma sociedade que admite francamente sua própria
incompletude, e, portanto, é ansiosa em atender suas próprias
possibilidades ainda não-intituladas, muito menos exploradas
(BAUMAN, 2007, p. 13).
Filosofia na web... 241

Trazendo a filosofia para dentro desta sociedade aberta, reflete-se


a experiência aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz,
vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não
controla nem entende totalmente. Num planeta negativamente
globalizado, a segurança não pode ser obtida, muito menos assegurada.
Aliando o pensamento de Bauman (2007 e 2012), especialmente
no que tange à segurança – mas a uma segurança não se restringe aos
aspectos físicos, mas aquela que se alarga para o plano emocional,
intelectual, psíquico, entre outras instâncias – pode-se fazer uma relação
imediata com o “Mito da Caverna”, de Platão.
Dado que este é uma metáfora que o pensador grego elaborou,
procurando explanar a condição de ignorância humana, tentando
desvendar as alternativas para que o homem (inclui-se a mulher) atingisse
o nível do real, com fulcro em uma razão que sobrepuja os sentidos, dá a
impressão que, tendo superado o “Mito da Caverna”, o homem deseja
ardentemente voltar à caverna, olhando para a ignorância como uma
proteção das violências sob todos os aspectos. Poder-se-ia dizer, como se
fosse um retorno ao útero materno, uma retomada da posição fetal. Tudo
em busca de segurança.
Em Bauman (2007), o terreno sobre o qual se presume que nossas
perspectivas de vida se assentem é reconhecidamente instável – tal como
são os nossos empregos e as empresas que os oferecem, nossos parceiros
e nossas redes de amizade, a posição que desfrutamos na sociedade mais
ampla e a autoestima e a autoconfiança que o acompanham.

O “progresso”, que já foi a manifestação mais extrema do otimismo


radical e uma promessa de felicidade universalmente compartilhada e
permanente, se afastou totalmente em direção ao polo oposto, distópico
e fatalista da antecipação: ele agora representa a emaça de uma mudança
inexorável e inescapável que, em vez de augurar a paz e o sossego,
pressagia somente a crise e a tensão e impede que haja um momento de
descanso (BAUMAN, 2007, p. 28).

Aponta o autor que, incapazes de reduzir o ritmo estonteante da


mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos
concentramos nas coisas que podemos, acreditamos em poder ou somos
assegurados de que podemos influenciar.
Desta forma, tentamos calcular e reduzir o risco de que nós,
pessoalmente, ou aqueles que n os são mais próximos e queridos no
242 Ressonâncias filosóficas - Artigos

momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o


mundo opaco e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós.

20.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO FILOSÓFICO DAS REDES


SOCIAIS: REFLEXÕES À LUZ DA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA E DA MODERNIDADE LÍQUIDA

Tendo utilizado a metodologia de análise de conteúdo, de material


visual baixado de três páginas da rede social Facebook dedicadas ao campo
da Filosofia, faz-se uma tentativa de reflexão, análise e entrelaçamento
com a base teórica, ora em uso.

20.2.1 Página: “Sobre Filosofia”

Figura 1: PÁGINA DO FACEBOOK “SOBRE FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em https://www.facebook.com/sobrefilosofia/, acesso em 01 set


2017, 07h51m

Inicia-se a análise de conteúdo pelas possibilidades de


interpretação imagética do perfil e da capa (Figura 1). No perfil, muito
claramente, as iniciais remetem somente ao nome da página. Na capa, a
imagem do “cachimbo” do quadro do pintor francês Renèe Magritte – que
na verdade, na obra artística, não é um cachimbo. Aqui já se inicia a
reflexão filosofal. O quadro é identificado originalmente pelo nome “A
traição das imagens”, é de cunho surrealista, como são todas as obras de
Magritte. A obra, colocada entre os ícones do surrealismo e da arte
moderna, pintado em 1929 é parte de uma série acompanhada da inscrição
Ceci n´est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) e foi profundamente
influenciado pela psicanálise, fundada por Freud à época e significou uma
reação ferrenha contra o racionalismo. Muito embora a pintura pareça
Filosofia na web... 243

simples, é significativamente paradoxal, já que remeteria a um anúncio


publicitário, setor em que o artista teria atuado.

Figura 2: POSTAGEM 1 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “SOBRE


FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em
.https://www.facebook.com/colectivo.filosofia/photos/a.359237200930441.
1073741826.359237104263784/683966081790883/?type=3&theater. Acesso em 25 set
2017, 17h10m

Sobre a Figura 2 que a primeira postagem analisada, retirada da


página “Sobre Filosofia”, tem-se uma crítica à grande máquina quebrada
que é o mundo. Incoerente e desproporcional, o mundo simbolizado na
imagem combina com a reflexão de Bauman (2007), no qual se lê que a
distinção mais seminal dos avatares atuais dos medos que eram, sob outros
aspectos, familiares em todas as variedades da existência humana
anteriormente vivenciadas, talvez seja a separação entre as ações inspiradas
pelo medo e os tremores existenciais geradores do medo que as inspirou.
Em outras palavras, Bauman (2007) traduz o deslocamento do medo das
fendas e fissuras da condição humana em que o “destino” é chocado e
incubado para áreas da existência amplamente desconectadas da
verdadeira fonte de ansiedade. Analise-se, sob este foco, a Figura 2.
244 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Figura 3: POSTAGEM 2 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “SOBRE


FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/colectivo.filosofia/photos/a.359237200930441.107
3741826.359237104263784/683964868457671/?type=3&theater Acesso em 25 set
2017, 16h28m

A Figura 3 nos apresenta uma crítica sobre as questões ambientais


em contraponto com aspectos contundentemente consumistas e suas
consequências para o habitat humano. Observa-se, também pontuando
por Bauman (2007), que é uma área progressivamente despida de sua
proteção institucionalizada, sancionada e sustentada pelo Estado. Tem
sido exposta aos caprichos do mercado. Como prova disso, assevera o
autor ora utilizado para a discussão, esse panorama planetário
transformou-se em um playground de forças globais que se encontram além
do alcance do controle político e da capacidade de os afetados reagirem
adequadamente a elas; então, que dirá de resistirem efetivamente a seus
golpes. As políticas de seguro contra infortúnios individuais sustentados
pelas comunidades, que no curso do século passado vieram a ser
coletivamente conhecidas sob o nome de Estado – do “bem estar” social,
estão sendo agora total ou parcialmente reduzidas e cortadas abaixo do
limiar em que seu nível é capaz de validar e sustentar o sentimento de
segurança, e portanto, também a autoconfiança dos atores. Além disso,
aponta Bauman (2007), o que permanece das instituições existentes dando
corpo à promessa original não oferece mais esperança, muito menos
confiança de que sobreviverá a outras iminentes rodadas de redução.
Filosofia na web... 245

Figura 4: POSTAGEM 3 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “SOBRE


FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/colectivo.filosofia/photos/a.359237200930441.1073
741826.359237104263784/678528499001308/?type=3&theater, acesso em 24 set 2017,
15h14m

A Figura 4 apresenta flagrante a violência contemporânea, os


desabafos humanos. Em Bauman (2007), dada a natureza do terrorismo
contemporâneo, a própria noção de “guerra contra o terror” é,
dissonantemente, uma contradição em adjecto. As armas modernas,
concebidas e desenvolvidas numa era de invasão e conquista territorial,
são singularmente inadequadas para localizar, atacar e destruir alvos
extraterritoriais, endemicamente evasivos e eminentemente móveis
pelotões minúsculos ou somente pessoas sozinhas se expondo no mundo
“sem bagagem”, em desabafo e coragem, de peito aberto. Diferentemente
de seus inimigos declarados, os terroristas não precisam sentir-se
constrangidos pelos recursos limitados de que dispõem. Ao
desenvolverem seus planejamentos estratégicos e seus planos táticos,
podem incluir entre seus trunfos, as reações esperadas e quase certas do
“inimigo”, que nesse caso, é o ser humano, ou massas humanas indefesas.
246 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Figura 5: POSTAGEM 4 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “SOBRE


FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/colectivo.filosofia/photos/a.359237200930441.10737
41826.359237104263784/678505209003637/?type=3&theater, acesso em 23 set 2017,
09h58m

A Figura 5 também faz olhar com desencanto para o mundo


presente: ou que pensamos com menos frequência, e raramente ouvimos,
é que os demônios que surgiram de “lugares remotos” – do âmbito da
ganância humana e da opressão do homem sobre o homem – podem ser
apenas espécimes particularmente extremos, radicais e atrevidos, violentos
e inconsequentes de uma família mais ampla de “animais” que assombram
aqui mesmo os sótãos e porões dos lares do ser humano cotidiano e
comum. Bauman (2007) aponta que num mundo em que poucas pessoas
continuam a acreditar que mudar a vida dos outros tenha alguma
relevância para a sua, num mundo em que, em outras palavras, cada
indivíduo é abandonado à própria sorte, a maioria das pessoas funciona
como ferramenta para a promoção de um grupo minoritário de terceiros.
Filosofia na web... 247

Figura 6: POSTAGEM 5 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “SOBRE


FILOSOFIA”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/colectivo.filosofia/photos/a.359237200930441.1073
741826.359237104263784/675892039264954/?type=3&theater, acesso em 23 set 2017,
09h31m

A Figura 6 nos remete a pensar que em plena era dos discursos


inclusivos, a própria escola, em si, é excludente por natureza. Por efeito,
aponta Bauman (2007) um processo que forma, mas não para aquilo que
deveria formar, numa duplicidade ambígua e paradoxal, faz a obstrução
dos antigos escoadouros externos para remoção do lixo humano e não
fornece outros, tanto os “antigos modernos”, quanto os recém-chegados
à modernidade viram cada vez mais contra si, o gume afiado das práticas
excludentes. Ele mesmo, Bauman (2007) afirma que nada mais seria de
esperar, pois a “diferença” encontrada/produzida no curso da expansão
global do modo de vida moderno – que foi tratada por vários séculos
como um irritante incômodo, embora temporário e curável, e
administrada de modo mais ou menos eficaz com a ajuda de estratégias
diversas.
248 Ressonâncias filosóficas - Artigos

23.3.2 Página: “Café Filosófico”

Figura 7: PÁGINA DO FACEBOOK “CAFÉ FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em https://www.facebook.com/groups/57658941587826


https://www.facebook.com/ coffeephilosophical/7/, acesso em 09 out 2017, 13h53m

A análise de conteúdo da página de “Café Filosófico” começa


pelas imagens do perfil e da capa. No perfil, a imagem remete a algumas
interpretações: um mouse, objeto tecnológico ligado à comunicação
informática e, por conseguinte, à informação advinda pelas redes, está
apoiado sobre o jornal, veículo de comunicação tradicional e canônico que
tem sido substituído pelas versões on line. Não nos esqueçamos da mão
que conduz o mouse. Sem a mão, extensão do braço, e conduzida pelo
cérebro, o mouse não vai a lugar nenhum. Quem o conduz tem sede do
novo, do imediato, da informação, do conhecimento e da vida. E é tanto
esse afã da novidade sobre a vida humana e suas contingências, que o café,
“momento sagrado”, fica relegado e esquecido em segundo plano (na
imagem em primeiro), a tal ponto de ser derrubado e espalhado sobre a
bancada de trabalho. Oferece belas reflexões, inclusive filosóficas. A
imagem de capa apresenta seis corujas. Entende-se as mesmas como as
múltiplas formas de reflexão e de entendimento do mesmo. Todas elas
apresentam uma configuração imagética e os dizeres abaixo de cada uma
traduz a diferente preferência de cada uma: a primeira coruja “decaf” –
deseja seu café descafeinado, com o termo originado do latim; a segunda
“half-caf” – deseja meio café, com o termo originado do inglês; a terceira
coruja deseja um café regular, em português, sinônimo de “normal”; a
quarta coruja deseja seu “irish-cofee”, termo que significa café irlandês,
expressão originada do inglês; a quinta coruja se identifica como
“express”, afirmando que deseja um café expresso, rápido, com o termo
Filosofia na web... 249

originado do inglês; e a última coruja, identifica-se por “double-express”,


que significa café expresso em dobro, rápido e dobrado, com a expressão
também originada do inglês. Assim como as correntes filosóficas e os
protagonistas que a refletem, a imagem de capa representa essa diversidade
de pensamento e o foco em diferentes discussões.

Figura 8: POSTAGEM 1 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “CAFÉ


FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/coffeephilosophical/photos/pb.419276194761424.-
2207520000.1507568422./1588844747804557/?type=3&theater, acesso em 05 set
2017, 17h11m

A Figura 8 expõe, a partir de Roger Scruton, a frase dele que reflete


sobre a arte no contexto contemporâneo. Influenciado por Immanuel
Kant e Platão, esse filósofo inglês, cujo objeto de estudo é a estética, expõe
com propriedade sua crítica nessa frase.
Os autores da página, uma vez tendo-a publicado, fazem deles as
palavras de Scruton. Em sua obra “A alma do mundo”, Scruton, a
propósito de estética em filosofia, investiga a base da humanidade. Afirma
que uma caixa craniana maior seria uma parcela da explicação.
Contudo, prossegue, apontando que se admitirmos que só o
evolucionismo detém a chave de nossa “humanidade” – talvez melhor
seria, de nossa “animalidade”, então é preciso questionar igualmente qual
250 Ressonâncias filosóficas - Artigos

é a vantagem evolutiva que nós, reles macacos, obtemos do belo, da


verdade e do bem?
Segundo Coutinho (2017), Scruton não nega que a explicação dos
nossos processos neuronais ou orgânicos são uma parte importante da
história. Mas estes não chegam a constituir toda a história da humanidade.
Ainda segundo Coutinho (2017), no “dualismo cognitivo” com que
navegamos pela experiência humana, é preciso entender o homem. E
entender significa olhar para ele não somente como um animal humano,
mas como uma pessoa humana, dotada de consciência e autoconsciência.

Figura 9: POSTAGEM 2 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “CAFÉ


FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/coffeephilosophical/photos/pb.419276194761424.-
2207520000.1507568422./1586501498038882/?type=3&theater, acesso em 05 set
2017, 16h57m
Filosofia na web... 251

A frase presente na Figura 9 é de Guilherme Fiuza, jornalista e


escritor brasileiro e no “Café Filosófico” discute disfarce do politicamente
correto em sua relação com o intelectualmente estúpido. Há que se dizer
que o filão da análise é conservador e combativo às linhas esquerdistas em
toda a sua essência. É mesmo possível relacionar aqui a Ortega Y Gasset
(2016) para quem, se tomarmos um objeto qualquer dentre os que
encontramos no mundo, e prestarmos bastante atenção no que possuímos
ao tê-lo diante de nós, logo nos daremos conta de que é só um fragmento
e que, por sê-lo, nos força a pensar em outra realidade que o completa.

Figura 10: POSTAGEM 3 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “CAFÉ


FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/coffeephilosophical/photos/pb.419276194761424.-
2207520000.1507568422./1586501308038901/?type=3&theater, acesso em 04 set
2017, 13h45m

A Figura 10, uma frase de Montaigne, se alinha plenamente à


filosofia que ele cultivava em pleno século XVI, especialmente na obra
“Ensaios”. O filósofo defendia que tanto atitudes, quanto pensamentos
humanos são subordinados ao tempo que se encarrega de metamorfoseá-
los. Segundo Cabral (2017), esta consideração vem de seu pensamento
que, via de regra e de crítica, é apresentado em três etapas evolutivas, quais
sejam: uma primeira fase, denominada estoicismo. Nesta fase Montaigne,
252 Ressonâncias filosóficas - Artigos

influenciado por La boétie, tinha a pretensão de chegar à verdade absoluta


e total. No entanto, a experiência estóica, mal-sucedida o fez declinar de
qualquer desejo de alcançar essa tal verdade absoluta. Numa segunda fase,
na França segmentada entre catolicismo e protestantismo, violência e
guerras, o filósofo foi cooptado pelos filósofos do ceticismo. Por fim, na
terceira fase, viu realmente serenar o burburinho da própria alma. A frase
estampada na postagem da Figura 10 pertence a essa fase.

Figura 11: POSTAGEM 4 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “CAFÉ


FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/coffeephilosophical/photos/pb.419276194761424.-
2207520000.1507568422./1582233115132387/?type=3&theater, acesso em 04 set
2017, 13h32m

A Figura 11, representa uma postagem de alguém, que certamente


conheceu a obra de Nietzsche em uma época que seu conteúdo filosófico
chocava as pessoas. Com a tese do “Eterno Retorno”, proclama a
alternância nas vivências numa eterna repetição: criação e destruição,
alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, tudo se esvai,
tudo retorna. A loucura pressuposta na postagem, quiçá, esteja em que
para Nietzsche, a temporalidade não está presente no eterno retorno. A
realidade, em si, para o pensador, não tem uma finalidade, nem objetivo a
cumprir, e por isso os antagônicos se alternam no decorrer da vida. Talvez
a loucura esteja num devir que não ocorre da mesma forma para todos as
relações antagônicas, provocando variações de sentidos vivenciados, faces
Filosofia na web... 253

diversas da realidade. Aponta Nietzsche que alegria e/ou tristeza sentidas


não tem a mesma proporcionalidade no futuro. Talvez a loucura apontada
na postagem esteja na identificação de Nietzsche como um filósofo além
do seu tempo.

Figura 12: POSTAGEM 5 DA PAGÍNA DO FACEBOOK “CAFÉ


FILOSÓFICO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/coffeephilosophical/photos/pb.419276194761424.-
2207520000.1507568422./1580501838638848/?type=3&theater, acesso em 01 set
2017, 07h30m

Para analisar a profunda subjetividade do fragmento de poema


postado, conforme retrato da Figura 12, tomamos Rodrigues (2011) para
quem a enunciação encena os dramas, as comédias e as tragédias
perpetrados pelo homem. É um sistema que oferece aos usuários uma
gama de possibilidades performáticas infinitas. Isto e visível no pequeno
poema postado, com efeitos de sentido bastante presentes nas polêmicas
artísticas contemporâneas.

Esteja na infância ou na idade adulta, o homem vivencia uma sucessão


de situações que o habilitam a apreender e compreender os fenômenos,
os elementos e os acontecimentos que o circundam. São experiências
que delineiam suas ações enquanto agente construtor e modificador de
um universo, geograficamente diluído na subjetividade do eu e inteligível
254 Ressonâncias filosóficas - Artigos

pela intervenção do outro, onde promove, transforma e mantém o


processo de coexistência. (RODRIGUES, 2011, p.02)

Em Ortega Y Gasset (2016), a subjetividade tem cores. Assim, as


cores que vemos, que tão ágil e galantemente sempre se nos apresentam
diante dos olhos, não são o que à primeira vista parecem ser, quero dizer,
não são cores. Toda cor precisa se estender, mais ou menos e, assim, não
há cor sem extensão.
Assim, um poema, em seu teor subjetivo, como a cor, é só uma
parte de um todo, que se define como extensão colorida ou cor extensa.
A extensão, para assim ser considerada, supõe que algo que se estenda que
sustente a extensão da cor, um substrato ou suporte.
Um poema, desta forma, é como o mundo – no sentido da palavra,
sendo só o conjunto das coisas que podemos ir vendo uma após outra. E
se uma palavra é só um fragmento, e o mundo não mais que sua coleção
ou montante, quer dizer que o mundo inteiro pode ser chamado de “nosso
mundo”.

20.2.3 Página: “Filosofando”

Figura 13: PÁGINA DO FACEBOOK “FILOSOFANDO”

Fonte: Disponível em https://www.facebook.com/Filosofando-485846074767122/,


acesso em 02 set 2017, 09h40m

Por fim, passa-se à análise de conteúdo da terceira página da rede


social, cujo conteúdo foi escolhido para reflexões à guisa da filosofia
contemporânea. A imagem do perfil, uma coruja, nos parece, simboliza a
introspecção, a sabedoria e a intelectualidade filosófica. Já, a composição
imagética da capa, dá conta de um fragmento visual urbano à direita, a
imagem sobreposta de um tigre sobre a cidade, uma pequena coruja
estilizada, bem como um cérebro também estilizado e semi-destampado,
cujo pensamento salta em dizeres em um balão que sugere “abra a sua
Filosofia na web... 255

mente”. Pensa-se que é uma boa miscelânea que representa os “monstros”


contemporâneos que perambulam pela mente urbana, os desafios
filosóficos diversos que esta contemporaneidade impõe à humanidade
desta época que pressupõe indagações.

Figura 14: POSTAGEM 1 DA PAGÍNA DO FACEBOOK


“FILOSOFANDO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/485846074767122/photos/a.486712341347162.12510
2.485846074767122/1387091954642525/?type=3&theater. Acesso em 08 Out 2017,
18h22m

A Figura 14 aponta para dois fatos que contundiram a história do


século 20, bem como na terceira partícula da imagem, a representação das
propostas contemporâneas que desejam a legalização do aborto. Sobre
estes aspectos, podemos pensar com Bauman (1999) que aquilo que é
facilmente legível ou transparente para alguns pode ser obscuro e opaco
para outros. Onde alguns não encontram a menor dificuldade, outros
podem se sentir desorientados e perdidos:

Enquanto as medidas antropomórficas, tendo como pontos de


referência práticas locais variadas e mutuamente descoordenadas,
serviram às comunidades humanas de escudo para se protegerem da
curiosidade e intenções hostis dos intrusos e, acima de tudo, das
256 Ressonâncias filosóficas - Artigos

imposições de intrusos com poderes superiores (BAUMAN, 1999, p.


47).

De episódio em episódio, o “ser” humano, sempre foi questionado


sobre sua identidade humana em séculos diferentes: no século XIX negro
não era humano; no século XX, judeus foram considerados não humanos;
na atualidade a discussão, a despeito de todas as evidências científicas,
aponta para o feto como “algo” não humano.
Em Bauman (1999) encontramos a reflexão que na “nova
desordem mundial” dos dias de hoje não pode ser explicada meramente
pela circunstância que constitui a razão mais óbvia e imediata da sensação
de pasmo e perplexidade: a saber, a confusão de “dia seguinte”, o colapso
de valores humanos, cada qual em seu tempo.

Figura 15: POSTAGEM 2 DA PAGÍNA DO FACEBOOK


“FILOSOFANDO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/485846074767122/photos/a.486712341347162.125
102.485846074767122/1241413719210350/?type=3&theater, acesso em 08 out
17h14m
Filosofia na web... 257

Na postagem 2, figura 15, um espaço de 50 anos interpõe uma


radical inversão valorativa no interior da escola. Ora, que reflexões fazer
sobre este quadro contemporâneo? Bauman (2012) aponta que a oposição
das ideias culturais, contrapõe-se, como um absurdo transformado numa
arma de classe: ancoram-se agora na realidade da sociedade em discussão.
Mesmo que, em outras palavras, as ressalvas apresentadas possam ser
totalmente rejeitadas, continuaria de pé a questão de saber se isso negaria
todos os exemplos do conceito hierárquico de cultura. A avaliação do
papel desempenhado pelo conceito hierárquico numa sociedade
conflituosa depende do arcabouço estrutural de referência que
selecionemos.
Na análise, pode-se depreender que uma cultura genuína é
perfeitamente concebível, segundo Bauman (2012), em qualquer tipo ou
estágio de civilização, no modelo de qualquer espírito em seu tempo. É
apenas inerentemente harmoniosa, equilibrada, autossatisfatória. É uma
cultura em que nada é insignificante do ponto de vista filosófico.
258 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Figura 16: POSTAGEM 3 DA PAGÍNA DO FACEBOOK


“FILOSOFANDO”

Fonte: Disponível em
https://www.facebook.com/485846074767122/photos/a.486712341347162.125
102.485846074767122/1236695113015544/?type=3&theater, acesso em 08 out
20h16m

Por fim, passamos à análise de nossa última escolha: a imagem


denota a metáfora da semente, que só se reproduz quando se espalha. De
uma nova forma, mais uma metáfora do mundo. Em Ortega Y Gasset
(2016), a análise pode ser feita na senda em que o mundo neste sentido, é
somente um conjunto das coisas que podemos ir vendo uma após a outra.
As que agora não vemos servem de fundo às que vemos, mas logo serão
aquelas que teremos à frente, imediatas, patentes, dadas. E se cada uma é
só fragmento, e o mundo é não mais que sua coleção ou montante, Ortega
Y Gasset (2016) quer dizer que o mundo inteiro, o conjunto do que nos é
dado e que, por nos ser dado, podemos chamar de “nosso mundo”, e que
Filosofia na web... 259

também pode ser um fragmento enorme, colossal, mas fragmento e nada


mais. Assim, pelas folhas ao vento, metaforicamente ilustradas na
postagem, o mundo também não se explica a si mesmo; pelo contrário,
quando nos colocamos teoricamente diante dele, só nos é dado um novo
problema. Então, não se basta em si mesmo, não sustenta seu próprio ser,
grita o que lhe falta, proclama seu “não-ser” e nos obriga a filosofar, buscar
para o mundo sua integridade, completa-lo em universo e construir um
todo onde ela possa se alojar e descansar.

20.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise que fizemos da filosofia em imagens nas redes sociais,


especialmente em páginas voltadas a discutir, postar e refletir filosofia de
algum tempo e de alguma forma, nos remete a uma “analogia orgânica”
(dizeres de Bauman, 2012). Essa analogia é persistente a ponto de se tornar
endêmica nos conceitos filosóficos e sociológicos do sistema social no
qual estamos inseridos. Originada nos tempos modernos, por obra de
Durkheim e Pareto, há na teoria dos sistemas sociais uma tendência estável
a identificar a questão da sobrevivência do sistema com a defesa de uma
rede de relacionamentos rígida e inflexível. A análise passa também pela
aceitação das fronteiras institucionalizadas que um domínio envolve,
embora de forma inadvertida, a adoção de valores funcionais operativos
em sua institucionalização.
Em Bauman (2012), isso implica na apropriação do arcabouço de
referência analítica relevante. Para identificar a verdadeira universalidade,
é preciso transcender fronteiras que – implantadas no plano superficial,
fenomenal – deixam o observador cego à infraestrutura compartilhada por
todos os campos institucionalizados.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. Carlos


Alberto Medeiros, Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad.


Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros,


Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
260 Ressonâncias filosóficas - Artigos

CABRAL, João Francisco Pereira. As ideias de Michel de Montaigne. In.


Brasil Escola. Disponível em
<http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/as-ideias-michel-
montaigne.htm>. Acesso em 11 de outubro de 2017, 14h28m.

COUTINHO, João Pereira. Coluna sobre Roger Scruton e “a alma do mundo”.


Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1916711-em-ensaio-
filosofo-roger-scruton-investiga-base-da-humanidade.shtml Acesso em
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FARAGO, Cátia Cilene; FOFONCA, Eduardo. A análise de conteúdo na


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ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Trad. Felipe Denardi,


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PEREIRA, Marcos A. Thomas More: estadista e filósofo da utopia. Col.


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RODRIGUES, Hermano de França. A Filosofia e a subjetividade


humana: as vicissitudes da enunciação. In: Revista Graphos. PPGL UFPB.
V.13, n.2 João Pessoa, PB: 2011.
XXI

FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES: A


MORAL E A AÇÃO HUMANA PENSADAS POR KANT

Maria Lucivane de Oliveira Morais*

RESUMO

As considerações apresentadas a seguir baseiam-se na obra


Fundamentação da Metafísica dos Costumes, escrita por Immanuel Kant
em 1785. Tem como objetivo geral compreender alguns desdobramentos
da moral proposta, e as especificidades do modo como os imperativos
categórico e hipotético se incidem sobre a ação humana. O filósofo afirma
que o homem, enquanto ser racional, deve dirigir essa faculdade para sua
ação, limitando seus impulsos, desejos e paixões. Precisa vivenciar um
valor incapaz de negar a existência do dever, ou seja, um imperativo
categórico que possui uma fórmula básica: “Age apenas segundo uma máxima
tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” - dessa,
derivam outros imperativos que orientam a ação que, por sua vez, devem
concordar com a autonomia da vontade; qualquer ação divergente é
proibida, uma vez que, não respeita a legislação universal e suas máximas.
O homem, ao mesmo tempo em que é legislador universal, também está
submetido, a essa mesma legislação. Para melhor compreender esse
contexto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, de cunho qualitativo, na
obra de Kant, em outros livros e artigos disponibilizados on line, em sites
como o Google acadêmico e o Scielo cujos autores discutiam sobre a
temática proposta.

PALAVRAS-CHAVE: Kant. Moral; Imperativo categórico; Imperativo


hipotético; Boa vontade.

* Licenciada em Geografia e Filosofia. Mestranda em Filosofia Moderna e


Contemporânea, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Professora vinculada à Secretaria Estadual de Educação (SEED) desde 2009.
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); e-mail:
marialucivane@bol.com.br
262 Ressonâncias filosóficas - Artigos

21.1 BREVES APONTAMENTOS DA OBRA

Para Kant os princípios morais derivam da razão prática, por isso,


podemos explicar as características da moral, que deve assumir para si, o
caráter de universalidade, ou seja, ser constituída por um conjunto de
regras que abranjam a totalidade dos cidadãos. Todos devem agir
moralmente, sem oscilar em suas escolhas ou encontrar alternativas para
justificar as ações que se diferenciam dos princípios morais em vigência.
Se cada um agir da maneira como pensa ser mais adequada, não será
possível constituir uma comunidade humana, tampouco, pensar na
coletividade e na universalidade das ações empreendidas cotidianamente
(LAW, 2011).
Como a razão é universal, os princípios morais valem para todos
os seres racionais, justificando suas ações, sendo aceitos e validados por
meio da razão prática. Dessa forma, moralidade e racionalidade são
categóricas e não mudam conforme nossos desejos. Segundo o próprio
Kant (2003, p. 182):

Somente a razão, enquanto determina por si mesma a vontade (que não


está a serviço das inclinações), é verdadeira faculdade superior de desejar,
à qual está subordinada aquela que pode ser patologicamente
determinada; ela é diferente desta última real e mesmo especificamente,
de sorte que mesmo a menor mistura com impulsos desta compromete
sua força e superioridade, do mesmo modo que o menor elemento
empírico, entrando como condição numa demonstração matemática,
diminui e destrói seu valor e sua força. A razão, numa lei prática,
determina a vontade imediata, não por intermédio de um sentimento de
prazer ou desprazer que venha a ser interpor entre as duas, nem se quer
por intermédio do prazer ligado a esta lei: e é só porque ela pode ser
prática como razão pura que lhe é possível ser legislativa.

A construção da lei moral é possível apenas porque nascemos com


a capacidade de distinguir o que é certo e o que é errado, portanto, existe
em todo ser humano uma lei universal e inata que orienta sua ação. O que
está em jogo não é apenas a ação de acordo com os costumes e a tradição,
mas capacidade de “agir seguindo um princípio que me é dado pela minha
própria razão, determinando minha vontade, como um ato de liberdade”
(GALLO, 2013, p.148). As ações são, portanto, permeadas pela
autonomia da vontade, devendo concordar com a legislação universal e
suas máximas que constituem um padrão para os juízos.
Fundamentação da metafísica dos costumes... 263

Para que uma lei possa valer moralmente, isto é, como fundamento
de uma obrigação, ela precisa se mostrar como uma necessidade absoluta,
válida para todos os homens que partilham de leis propriamente morais,
por conseguinte:

[...] o princípio da obrigação não se deve buscar aqui na natureza do


homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem se situa, mas
sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura, e que qualquer
outro preceito baseado em princípios da simples experiência, e mesmo
um preceito em certa medida universal, se ele se apoiar em princípios
empíricos, num mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá
chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral
(KANT, 2003, p. 15).

As leis morais, com seus princípios e conhecimento prático, se


diferenciam de tudo o que é empírico; uma vez que, na qualidade de ser
racional, o homem cria legislações que lhes são a priori, necessárias para
tornar eficaz e concreto seu comportamento, mesmo requerendo uma
faculdade para julgar permitindo sua aplicação e acolhida na vontade do
homem e em suas inclinações.
Cotidianamente, fazemos escolhas pautadas em máximas, ou seja,
nos princípios pessoais que corporificam nossas razões para fazer algo.
Para que todos hajam moralmente é necessário que as ações estejam
fundamentadas em máximas moralmente permissíveis, ou seja, é preciso
refletir sobre o que poderia ocorrer se universalizássemos o que desejamos
fazer, considerando sempre as pessoas como fins e não como meios.
A forma como devemos agir é descoberta quando testamos as
máximas por meio do imperativo categórico que introduz ordem em
nossas inclinações e motivações, dizendo se uma determinada ação é boa
e representa uma regra prática; mostra a “relação de uma lei objetiva da
razão com uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é
necessariamente determinada por tal lei (uma obrigação) (KANT, 2003,
p.42).
O imperativo categórico considerado a base da moralidade
kantiana é: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal” (KANT, 2003, p. 51). Desse imperativo derivam
todos os demais imperativos do dever que não constituem um conceito
vazio, mas indicam o que pensamos e como devemos agir: “Age como se a
máxima da tua ação se devesse tornar pela tua vontade em lei universal da natureza”
264 Ressonâncias filosóficas - Artigos

– fórmula da vontade absolutamente boa1 (KANT, 2003, p.52). “Age de


tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”2 (KANT,
2003, p.59). A palavra humanidade, imediatamente nos remete a
capacidade racional que possuímos para escolher determinados fins e
persegui-los, fazendo escolhas livres e racionais capazes de respeitar a
dignidade de cada um e a legislação universal vigente.
A existência humana, como já afirmado, é marcada pela
racionalidade e, como um fim em si mesma, sua vontade deve servir como
uma lei prática universal, pois como enfatiza o filósofo:

[...] a universalidade da lei, segundo a qual certos efeitos se produzem,


constitui aquilo a que se chama propriamente natureza no sentido mais
lato da palavra (quanto à forma), quer dizer a realidade das coisas,
enquanto é determinada por leis universais [...] (KANT, 2009, p. 59).

As principais marcas do imperativo consistem no fato de ser formal e


universal, impondo o caráter de necessidade à ação, pois “se se separa de uma lei
toda a matéria, isto é, todo objeto da vontade, dela não resta senão a simples
forma de uma legislação universal” (KANT, 2003, p. 87). O imperativo
categórico é um imperativo formal que indica que, apenas aquele que age por
puro dever, age moralmente. Para tanto, é necessário que o sujeito “não esteja
submetido a uma lei estranha, mas que seja legisladora de si mesma” (LEITE,
2015, p. 57).
É importante destacar que apenas “um ser racional possui a capacidade
de agir segundo a representação das leis, isto é, por princípios, ou só ele possui
uma vontade” (KANT, 2003, p.43). Diante de uma lei universal, compete-lhe
aprender a educar sua vontade para alcançar a boa vontade, ou seja, a vontade
guiada unicamente pela razão que, por sua vez, se sobrepõe aos instintos e
introduz o homem no mundo da liberdade moral.
Segundo o próprio Kant (2003, p. 108):

[...] a razão nos foi proporcionada como razão prática, isto é, como algo
que deve ter influência sobre a vontade, então a verdadeira destinação
da mesma tem de ser a de produzir uma vontade boa, não certamente

1 Segundo a definição de Kant (2003, p.67): “É absolutamente a boa vontade que não
pode ser má, e, portanto, quando sua máxima, ao ser transformada em lei universal, não
pode nunca se contradizer”. Nesse sentido, verificamos que a vontade nunca pode entrar
em contradição consigo mesma, portanto, esse imperativo é categórico.
2 Os outros imperativos citados por Kant, por hora, não serão tratados.
Fundamentação da metafísica dos costumes... 265

enquanto meio em vista de outra coisa, mas, sim, em si mesma – para o


que a razão era absolutamente necessária.

O destino da razão é, portanto, o de produzir uma vontade boa.


Na medida em que a razão produz boa vontade3, permite a razão alcançar
seu destino. Ao passo em que razão exerce influência sobre a vontade, o
imperativo categórico ordena nossas ações, impedindo que sejam
buscadas experiências sensíveis ou o delineamento de ações pautadas
unicamente em interesses individuais. O que se tem em vista é a produção
de uma lei universalmente válida, fundada em uma ação moralmente boa,
uma vontade capaz de representar a todos.
O imperativo categórico é, portanto, a gênese e o ponto de
chegada da boa vontade (RISSI, 2014). Permite validar ou não nossa ação,
ao questionarmos se poderia ser realizada por qualquer pessoa e, portanto,
se tornar uma lei universal. Representa um princípio objetivo que deve ser
seguido de forma obrigatória, orientado pela razão, independente da
vontade ou da situação em xeque. Para isso, também é importante que o
indivíduo possua uma imaginação moral sendo capaz de imaginar-se
recebendo as decisões de outras pessoas (ROBSON; GARRAT, 2013).
Os imperativos representam a relação de uma lei objetiva da razão
que não se sujeita a vontade pessoal, tampouco, é determinada pela
necessidade. Portanto, não existem exceções no sistema kantiano, os seres
racionais devem ser morais, fazendo, cotidianamente, escolhas éticas, sem
deixar que os medos, as paixões, desejos ou quaisquer outras inclinações
se sobressaiam à razão. O imperativo categórico deve servir como
orientação na escolha dos conteúdos morais, permitindo a execução de
ações que possam ser universalizadas sem qualquer prejuízo à humanidade
(ROBINSON; GARRATT, 2013)
Enquanto constitutivo da moralidade, o imperativo categórico não
se relaciona com a ação e seus resultados, mas com a forma e o princípio
da qual é derivada. Possibilita pensar a ética de forma racional sem que
para isso precise buscar orientações na metafísica, na religião, em
princípios que podem ou não ser seguidos de acordo com as
consequências que podem resultar.

3Para Kant (2003, p.22): “A boa vontade não é pelo que promove ou realiza, pela aptidão
para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si
mesma. E considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais elevado do
que tudo o que por meio dela puder ser alcançado em proveito de qualquer inclinação
ou, se quiser, da soma de todas as inclinações”.
266 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A ética kantiana mostra que a autonomia da razão humana supõe


a liberdade e o dever. Embora o imperativo imponha o dever, sua
exigência não é externa, tampouco irrefletida, mas assumida livremente
pela pessoa que é fruto da história e do mundo no qual está inserida.
Quando esse indivíduo obedece à norma moral existente, cumpre aquilo
que a razão, no uso da liberdade, o determinou por ser considerado
correto, pensado e legitimado por seres racionais.
O homem encontra-se sujeito as leis da liberdade e as leis da
necessidade. A primeira indica aquelas que regulam a vida e conduta
humana sendo marcada pela liberdade; por outro lado, as leis da
necessidade evidenciam a natureza ou eventos naturais que marcam a
necessidade. As leis da necessidade descrevem enquanto as da liberdade
prescrevem, tornando-se preceitos que orientam a liberdade humana.
Estes preceitos se dividem de duas formas: os categóricos e os hipotéticos,
descritos por Kant (2003, p. 45) da seguinte maneira:

Ora, todos os imperativos comandam de forma hipotética ou


categoricamente. Os imperativos hipotéticos representam a necessidade
prática de uma ação possível, considerada como meio de chegar a alguma
outra coisa que se quer (ou, pelo menos, que é possível que se queira).
O imperativo categórico seria o que representaria uma ação como
necessária por si mesma, e sem relação a uma outra finalidade, como
necessária objetivamente. [...] Há um imperativo que, sem pôr em
principio e como condição qualquer outro objetivo a atingir por certa
conduta, comanda imediatamente essa conduta. Este imperativo é
categórico. Concerne não a matéria da ação, nem ao que deve resultar
dela, mas a forma e ao princípio do qual ela própria resulta; e o que há
nela de essencialmente bom consiste na intenção, quaisquer que sejam
as consequências. Este imperativo pode ser chamado de imperativo da
moralidade.

Os imperativos categóricos podem ser percebidos nas ações


consideradas boas por si mesmas, estando em conformidade com a razão
e guiada por um princípio necessário, por exemplo, não furtar; por outro
lado, imperativos hipotéticos são aqueles cuja boa ação tem em vista certo
fim, sendo um meio para alguma coisa, por exemplo, não se deve furtar
para não ser preso.
Todos os imperativos se expressam pelo verbo dever, e
representam uma vontade que, por sua “constituição subjetiva, não é
necessariamente determinada por tal lei (uma obrigação)”. A vontade
perfeitamente boa estaria, portanto, “igualmente sob leis objetivas (do
Fundamentação da metafísica dos costumes... 267

bem), mas se poderia representar como obrigada a ações conforme a lei,


pois que pela sua constituição subjetiva só pode ser determinada pela
representação do bem” (KANT, 2003, p.44).
A ação humana deve ser guiada, portanto, por uma lei universal,
cuja autonomia é manifestada por sua razão pura prática que lhe possibilita
identificar condições a priori de sua vontade. Para isso, testa o imperativo:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal” (KANT, 2003, p.51).
A razão permite ao homem delinear o princípio que orientará sua
vontade, com vistas ao alcance de um bem atingível e dourador,
estabelecendo o bem em si. Por isso, as ações morais também devem ser
orientadas pelo princípio de boa vontade, cuja conduta funda-se a partir
de um princípio racional, afinal ela nunca é má ou se contradiz, por isso,
constitui uma lei universal.
Vale destacar que os atos regulados pelas inclinações que lhe
atribuem felicidade imediata, mesmo agindo conforme o dever, não são
atos morais. Percebemos, portanto, que a moral kantiana é rígida, não
permite erros, não há exceção nas condutas adotadas, é orientada por uma
lei universal, pelo dever, moral e finalmente a realização do ato moral pelos
sujeitos racionais cuja ação deve ser orientada pelos imperativos
categóricos.

20.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vistas do que se tem discutido e de minha primeira


aproximação com a obra de Kant que não tem como objetivo aprofundar
as reflexões sobre a temática proposta nesse momento percebe-se que a
moralidade proposta pelo filósofo apresenta um valor em si mesma,
expressa um dever puro, originado na razão, de forma a priori, afinal,
apenas um ser racional tem a capacidade de agir de acordo com a
representação das leis, ou seja, por princípios constitutivos de uma lei
universal.
Essa lei representa um dever categórico e não hipotético. Desse
modo, ela não é compreendida como uma obrigação proveniente de uma
exigência externa, mas um dever de origem interna que atua como uma
verdadeira legislação para nossas ações que devem ser expressas em
imperativos categóricos e nunca em imperativos hipotéticos.
268 Ressonâncias filosóficas - Artigos

REFERÊNCIAS

GALLO, Silvio. Filosofia: experiência do pensamento. São Paulo:


Scipicione, 2013.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução,


introdução e notas por Guido de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial:
Barcarola, 2003.

LAW, Stephen. Filosofia. Trad. Danilo Marcondes. 3 ª Ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2011.

LEITE, Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant. São Paulo: Saraiva, 2015.

RISSI, João Paulo. Os imperativos kantianos: sobre a finalidade categórica e


a hipotética. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em
filosofia da UFSCar, 2014

ROBINSON, Dave; GARRATT, Cris. Entendo Ética. Trad. Kelly Koide.


São Paulo: Leya, 2013.
XXII

HANNAH ARENDT:
uma crítica á noção de progresso a partir de sobre a violência

Mário Sérgio Vaz*

RESUMO

Trata-se de apresentar a crítica de Hannah Arendt (1906-1975) à noção de


progresso a partir de seu livro Sobre a violência (1969). Esta discussão
origina-se da participação de Arendt no caloroso debate acerca da
legitimidade da violência, tema este que suscitou uma série de debates
entre intelectuais de renome no Theater for Ideas de Nova Iorque.
Originalmente, a posição de Hannah Arendt veio à luz em forma de artigo
com o título “Reflections on Violence” (1969). Noutra ocasião, aparece
integrando o livro intitulado Crises da República (1972), que além deste, traz
consigo outros ensaios diretamente ligados ao tema da violência e aos
acontecimentos políticos das décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos.
Decorrente disso, será abordada a posição de Arendt frente ao problema
da relação entre o conceito de progresso e a ciência. A saber, Arendt indica
na segunda parte de seu livro Sobre a violência, que a ideia de progresso
passou a ser vista dentro do movimento da Nova Esquerda [New Left]
como um refúgio confortável com relação à realidade, dado que poderia
fornecer respostas à pergunta: o que faremos agora? E a resposta seria
apostar na ação violenta como o elemento necessário para modificar o
curso político. Arendt observa ainda que o conceito de progresso, dentro
de qualquer teoria da história de vertente teleológica, está em flagrante
contradição com o século XX, dados os eventos totalmente inauditos que
nele se passaram. Não obstante, trata-se de pensar, de acordo com a autora
alemã, o progresso nos termos de uma “fé cega”, que encontrou aceitação
universal devido aos avanços das ciências naturais e a crença subjacente
de que estas seriam ciências “universais”, responsáveis pela tarefa hercúlea
de explorar ilimitadamente o espaço e de “elevar a estatura humana.” Por
fim, será possível concluir que estes dois vieses são rechaçados por Arendt,

* Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná-UNICENTRO; e-mail:


mariovaz74@gmail.com
270 Ressonâncias filosóficas - Artigos

pois o progresso não é mais válido como parâmetro para se medir e avaliar
a ação humana.

PALAVRAS-CHAVE: Hannah Arendt; Progresso; Ciência; Violência.

Pretende-se apresentar uma breve reflexão sobre alguns aspectos


fundamentais da posição de Hannah Arendt frente à noção de progresso.
Para tanto, assume-se aqui como referencial teórico o primeiro capítulo de
Sobre a violência, onde a autora alemã expõe seu diagnóstico crítico com
relação a este tema. Inicialmente, Arendt realiza uma breve recapitulação
do sentido que o conceito de progresso [progress] assumiu dentro de nossa
história recente, trazendo que para os homens do século XVII, este termo
significava acúmulo de conhecimento e, mais tarde, no século XVIII,
passou a ser entendido como uma educação da humanidade, cujo fim
coincidiria com a maioridade de todos os homens. Porém, de acordo com
Hannah Arendt, este conceito tornou-se um dos artigos mais sérios e
complexos de nosso tempo. Isso porque, a partir do século XIX, a noção
de progresso encontrou sua raison d’être justamente na esteira do
surpreendente desenvolvimento das ciências naturais, que para Arendt,
desde o seu nascimento têm sido exemplares na tarefa de romper com os
limites e finitude de nossa morada ─ a Terra. Consequentemente, ao
explorar o universo infinito e dissolver a fronteira entre aquilo que era
dado pela natureza e aquilo que era dado pela cultura ─ o mundo ─ as
ciências naturais desencadearam processos que naturalmente não
ocorreriam aqui, mas apenas no Sol.1 Destarte, o progresso científico
carrega consigo preocupações e consequências de ordem política, tanto no
que se refere aos seus feitos, quanto aos seus efeitos.
Sendo assim, de acordo com Hannah Arendt, o progresso
tecnológico e científico, uma vez que não coincidem devidamente com o
progresso da humanidade “não mais serve como o padrão por meio do
qual avaliamos os processos de mudança desastrosamente rápidos que
desencadeamos”.2 Segundo a autora, isso é perceptivelmente sentido na
medida em que marchar para o futuro ─ algo que de todo não nos é
possível evitar ─ exprime o processo de contínua transposição de barreiras
naturais que, em seu lastro, carrega a possibilidade cada vez mais real de
disseminar o fim da humanidade por meio de uma guerra nuclear.

1 A respeito desta discussão ver seu ensaio “A Conquista do Espaço” presente no livro
Entre o Passado e o Futuro.
2 Idem, ibidem, p. 29.
Hannah Arendt... 271

Trata-se aqui de perceber como a ciência e a política, no que diz


respeito à relação com o mundo, adotam caminhos opostos. De acordo
com a reflexão de Arendt em seu ensaio A Conquista do Espaço, isso se deve
ao fato de que: “A glória da ciência moderna foi ter sido ela capaz de
emancipar-se completamente de todas as semelhantes preocupações
antropocêntricas.”3 Com efeito, ciência e política não mais falam a mesma
linguagem. Problema este devido não apenas à amoralidade científica ou à
difundida ignorância pública dos cientistas, mas pelo fato de o método
científico por si mesmo encabeçar perigosos precedentes para a vida
pública. Enquanto que a política diz respeito ao estar junto no mundo e
demanda uma responsabilidade de cada cidadão para com este espaço da
aparência, por outro lado, para Arendt, as ciências naturais ─
exemplarmente a física nuclear ─ que através das explosões atômicas
inauguraram o mundo moderno, desembaraçadamente não compartilham
deste mesmo amor mundi.
Para Arendt, a crença no ideal de progresso ilimitado é tanto
irracional quanto impraticável, na medida em que ocorre um descompasso
entre o atual estágio de desenvolvimento das ciências naturais e as
chamadas ciências das humanidades. Noutros termos, ocorre um
problema ao se projetar para as ciências do espírito ─ e esta
impossibilidade também se aplica ao campo da política ─ a mesma atitude
científica e o mesmo desejo de objetividade presente nas ciências naturais.
A razão disso, para Arendt, é que o padrão de cientificidade repousa em
uma “extinção de qualquer aspecto antropomórfico do mundo” em favor
dos constantes experimentos que são realizados a partir de modelos e
padrões previamente estabelecidos.
Especificamente para o âmbito da política, a ciência, ao arrogar
para si o papel de reguladora dos assuntos humanos, ambiciona prever de
maneira confiável os resultados das ações humanas. Neste ímpeto, reduz,
toda ação ─ e com ela sua espontaneidade e imprevisibilidade ─ em
projeções de condutas e comportamentos.
A esta prerrogativa da ciência, Arendt aponta que:

Calculam as consequências de certas suposições hipoteticamente


assumidas, sem contudo, serem capazes de testar suas hipóteses contra
as ocorrências reais. A falha lógica nestas construções hipotéticas dos
eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que primeiro aparece como

3Cf. ARENDT, H. “A Conquista do Espaço,” p.327 In: Entre o Passado e o Futuro. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
272 Ressonâncias filosóficas - Artigos

uma hipótese – [...] torna-se imediatamente , em geral, após uns poucos


parágrafos, um “fato” (ARENDT, 2001, p. 14).

Vê-se que para Arendt, não há como projetar ou criar simulações do


resultado das ações humanas porque elas são par excellence imprevisíveis. Toda
ação é distinta, e por ser dotada de um caráter de novidade, nunca pode ter seu
fim plenamente previsto. Nestes termos, Arendt critica a suposta necessidade das
ciências do espírito e sociais de imitarem o modus operandi das ciências naturais
calcadas no paradigma de que só é possível conhecer e acessar o “mundo real”
por meio de experimentos.
O entrelaçamento entre a confiança num progresso ilimitado e a ciência
faz com que toda a pluralidade humana se reduza ao estatuto de simples
“subcategoria” diante do éthos científico, dado a maneira impessoal de lidar com
o planeta Terra destas ciências que partem do princípio de que o sensível ─ a
aparência ─ pode ser reduzido à linguagem matemática, em gráficos e planilhas
que não precisam ser expressos em termos da linguagem ordinária nem
dependem do consenso para serem assumidas. Para a autora, esta instanciação
resultou na divisa entre uma certa verdade tipicamente científica (matemática) ─
não consensual e indubitável que só diz respeito ao cientista isolado do mundo
─ e o nosso senso comum [common sense].
Desta forma, pode-se dizer com o professor Rodrigo Ribeiro Alves Neto
no seu artigo “Tecnologia, política e modernidade” que:

A racionalidade científica moderna rompeu com a experiência ordinária


e concreta do mundo humano, desvencilhando-se do plano da
percepção e da linguagem e, consequentemente, do senso comum e
mundo ordinário dos sentidos. A ciência constrói o algoritmo e fala
através dos algoritmos ou de uma combinatória matemática (ALVES
NETO, CAD. DE FILOSOFIA ALEMÃ, Nº 28, p. 153).

Ou seja, na perspectiva do fazer científico, nada do que possamos


observar através de nossos sentidos ─ enquanto indivíduos pertencentes
do mundo ─ forneceria algo de relevante. Os olhos do cientista
permanecem totalmente desvinculados de nossas preocupações terrenas
de uma maneira análoga ao filósofo que contemplou o sol divino e não foi
capaz de transmitir aos seus companheiros, numa linguagem
compartilhada, o sentido e o conteúdo de sua visão. Ora, na tentativa de
transferir esta lógica para os assuntos humanos, é tentador querer tratar
dos assuntos políticos por meio de fórmulas, hipóteses de trabalho e
acreditar que é possível alcançar um pleno entendimento a respeito desses
“eventos hipotéticos”, i.e, das ações humanas e do seu fluxo, daquilo que virá
depois. Segundo Arendt (2001, p. 15) ocorre uma falha lógica nessa
Hannah Arendt... 273

construção hipotética acerca dos eventos futuros pois aquilo que primeiro
aparece como hipótese dentro de uma fórmula, torna-se em geral, após
algumas linhas, em um “fato.” Isso não é “científico” finaliza Arendt, mas
“pseudocientífico”, pois toda e qualquer ação humana: “para o melhor ou
para o pior, todo acidente, destroem necessariamente todo o modelo em
cuja estrutura move-se a previsão, e no qual ela encontra a sua evidência.”4
Para os adeptos desta perigosa superstição,5 o progresso só faria
sentido se detivéssemos pleno controle acerca das ações humanas, i.e se
elas fossem manipuláveis como eventos físicos. Mas este não é o caso
segundo Hannah Arendt, que concebe a história como sendo composta
de eventos singulares, acontecimentos únicos que se constituem em
rupturas. Não há para a autora, um grande livro da história único e
dialeticamente inteligível, mas sim, um grande livro sobre as múltiplas e
diversas histórias das ações humanas. Bem verdade, a ciência torna-se,
pois, como acusavam sobriamente os movimentos estudantis e as
rebeliões dentro do contexto norte americano, um reduto para as
tecnologias de guerra e para produção de simples objetos de consumo, e
somente em um mundo onde ninguém mais agisse e nada de importante
acontecesse poderia realizar o sonho dos futorologistas.
É nesse sentido preciso que Arendt afirma: “Não preciso
acrescentar que todas as nossas experiências neste século, que sempre nos
confrontou com o totalmente inesperado, estão flagrantes contradição
com estas noções e doutrinas [...].6 De acordo com Arendt, qualquer
concepção ideal de progresso foi simplesmente dissolvida devido a
ascensão do totalitarismo nazista e soviético. E num sentido ainda mais
específico, mesmo a rebelião estudantil inspirada quase em sua totalidade
em questões morais é um exemplo destes eventos inesperados. De acordo
com Arendt (2009, p. 16), querer ordenar a ordem dos assuntos humanos
e os eventos inesperados e imprevistos a partir de padrões filosóficos e
científicos é condená-los à irrelevância, pois tais teorias operam em cima
de teorias que retiram suas evidências de hipóteses aparentemente
consistentes, mas que, impossibilitam a compreensão e o discernimento
devido daquilo que se passa.

4 Cf. ARENDT, H. SV., p. 16


5 Nas palavras de Arendt: “ O progresso, por certo, é um dos artigos mais sérios e
complexos encontrados no mercado de superstições de nosso tempo” (Cf. ARENDT,
2001, p. 29)
6 ARENDT, H. SV., p. 28.
274 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Para a autora, se por um lado a Nova Esquerda logrou êxito ao


perceber este descompasso, por outro lado, buscou refúgio em uma
inconsistente visão de história tida aos moldes de um processo
cronológico contínuo ─ onde a violência em forma de guerra e revolução
poderia ser a única interrupção possível na continuidade temporal, a única
maneira de tomar as rédeas da marcha para o futuro. Assim, pode-se dizer
que o progresso ainda faria sentido enquanto tido somente enquanto um
retiro especulativo onde ainda é possível acreditar em um movimento
dialético dos acontecimentos. Contudo, afirma Arendt: “Se isto fosse
verdadeiro, se apenas a prática da violência fosse capaz de interromper
processos automáticos na esfera dos assuntos humanos, os apologistas da
violência teriam ganho um ponto importante”7.
E como fora discutido, este não é o caso para a autora, que depois
de analisar os acontecimentos do século XX, observou que a ideia
hegeliana de que o espírito absoluto e as ideias tenham vontade própria e
conduzem a história para uma direção predetermina não faz mais sentido.
São antes as ações humanas, suas palavras e decisões que constituem e põe
em movimento a esfera da política, que desviam ou bloqueiam seus
eventos, somente por meio das ações (estas que não podem ter um fim
predeterminado) que se interrompem os processos históricos, apenas por
meio da promessa que se orienta o futuro e apenas por meio do perdão
que acessamos o passado.

REFERÊNCIAS

ALVES NETO, R. R. “Tecnologia, política e modernidade”. In: Cadernos


de Ética e Filosofia Política, Nº 28.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência: tradução de André Duarte. – Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2001.

_______. Entre o Passado e o Futuro. [Tradução Mauro W. Barbosa]. São


Paulo: Perspectiva, 2007.

_______. Crises da república. 2ª. ed. Trad. José Volkmann. São Paulo:
Perspectiva, 2004.

7 Idem, p.30.
Hannah Arendt... 275

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e


a disputa por uma fronteira. – 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2014

DUARTE, André. “Poder e violência no pensamento de Hannah


Arendt. In: Sobre a violência. 1994, pp. 81-94.
XXIII

INTENCIONALIDADE COMO PRINCÍPIO DE


DEMARCAÇÃO DOS FENÔMENOS PSÍQUICOS

Gleisson Roberto Schmidt*

RESUMO

A intencionalidade é uma noção original introduzida por Franz Brentano


(1838-1917) na filosofia contemporânea. Sua formulação clássica –
embora ambígua –presente em Psicologia de um ponto de vista empírico (1874)
assevera que cada ato mental contém seu objeto em seu interior - ainda
que haja diferentes maneiras pelas quais o ato possa ser direcionado a seu
objeto imanente. Esta primeira teoria brentaniana da intencionalidade
(anterior à virada reísta do filósofo em 1905) supunha que, além da
“Wirklichkeit” dos atos de consciência haveria também a “Realität” das
coisas, a cujos indivíduos os atos mentais poderiam ou não se dirigir; em
ambos os casos, permanecia real o fato da direcionalidade da consciência
a um objeto, independentemente de sua existência material ou não. Para
justificar tal distinção, Brentano argumenta que estamos imediatamente
certos da realidade de uma percepção interna, ao passo que nosso
conhecimento de realidades externas é, enquanto percepção de qualidades
sensíveis, obtida por meio de mecanismos secundários. Sublinhando assim
a diferença entre fenômenos psíquicos e fenômenos físicos, a concepção
brentaniana da intencionalidade apresenta-se como um princípio de
demarcação dos primeiros. No presente trabalho analisaremos esta tese,
apresentada por Uriah Kriegel em seu artigo “Brentano's Classification of
Mental Phenomena” (Routledge Handbook of Franz Brentano and the Brentano
School. London and New York, Routledge, 2017, 97-102), descrevendo
também traços essenciais da psicologia empírica do filósofo alemão - quais
sejam, além da própria intencionalidade: a distinção entre “psicologia
genética” e “psicologia descritiva” e entre percepção interna (innerem

* Universidade Tecnológica Federal do Paraná; e-mail: gleisson.schmidt@gmail.com;


lattes: http://lattes.cnpq.br/6236729379367822
278 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Wahrnemung) e percepção externa; a definição de fenômeno psíquico


(psychische Phänomen) e a sua taxonomia fundamental.

PALAVRAS-CHAVE: intencionalidade; Brentano, Franz; psicologia


empírica; fenômeno psíquico.

Franz Clemens Honoratus Hermann Brentano (1838-1917)


representa um dos momentos-chave na passagem da modernidade para a
contemporaneidade filosófica. Depois de se familiarizar com o
Escolasticismo durante o ensino colegial, na Universidade, em Berlim,
estudou Aristóteles com Trendelenburg e leu Comte e os empiristas
britânicos – dentre os quais John Stuart-Mill tornou-se uma influência
importante. Concluiu seu doutorado em 1862 com a tese intitulada Sobre
os múltiplos sentidos do Ser em Aristóteles. Ordenado padre em 1864,
prosseguiu sua carreira na Universidade de Würzburg, apresentando seu
Habilitationsschrift em 1866 sobre A Psicologia de Aristóteles. Tornou-se
professor em 1873, mas logo declinou do cargo e da carreira ministerial
em virtude de discordâncias com a doutrina católica (em especial quanto
à infalibilidade papal, promulgada em 1870).
Depois de sua habilitação à docência, começou a trabalhar em
torno dos fundamentos da psicologia. Dessa pesquisa resultaram
Psicologia desde um ponto de vista empírico (1874), um segundo
volume, A Classificação dos Fenômenos Mentais (1911), e uma
coleção de fragmentos editados postumamente por Oscar Kraus,
intitulada Consciência Sensória e Noética, publicada em 1928.
Muitos de seus alunos tornaram-se importantes filósofos,
psicólogos e professores, o que disseminou o brentanismo por todo o
Império Austro-Húngaro: Edmund Husserl, Alexius Meinong (que se
tornou professor em Graz), Christian von Ehrenfelds, Anton Marty (estes
últimos foram professores em Praga), Carl Stumpf, Kasimir Twardowski
(que lecionou em Tvov) e o próprio Freud. Tomas Masaryk, também seu
aluno, fundou e foi o primeiro presidente da República da
Tchecoslováquia (1918-1935), onde criou condições para o estudo da
filosofia de Brentano. Esses fatores respondem pela importância que ela
assumiu na Europa Central no movimento que ficou conhecido em
filosofia como Tradição Austríaca.
Intencionalidade como princípio... 279

21.1 PSICOLOGIA EMPÍRICA

Brentano sempre se descreveu como um professor que ensinava


seus alunos a pensar criticamente e de maneira científica, sem sustentar os
preconceitos ou dar respeito indevido a escolas ou tradições filosóficas
(HUEMER, 2010, p. 3). Um de seus princípios mais importantes era que
a filosofia é nula sem o recurso ao método das ciências naturais – princípio
que se reflete em sua abordagem empírica da psicologia. Para ele, não
haveria outro método científico válido senão o método positivista.
Contudo, o uso que ele faz do termo “empírico” distingue-se muito do
atual: Brentano enfatizava que todo nosso conhecimento deveria ser
baseado em experiência direta, não nos moldes de uma teoria descrita em
terceira pessoa, mas numa forma de introspeccionismo: fazer psicologia
de um ponto de vista empírico significa, para ele, descrever o que se experiencia
diretamente na percepção interna, numa teoria descrita em primeira pessoa.
Brentano distinguiu entre psicologia genética e psicologia empírica ou
descritiva1. A primeira estuda os fenômenos psicológicos desde um ponto
de vista em terceira pessoa, valendo-se de instrumentos empíricos. A
segunda – às vezes chamada fenomenologia (BRENTANO, 2002, p. 137s) –
pretende descrever a consciência de um ponto-de-vista em primeira
pessoa; almeja listar “completamente os componentes básicos com os
quais tudo o que é percebido internamente pelos humanos é composto, e
(...) (enumerar) os meios nos quais esses componentes podem ser
conectados” (BRENTANO, 1982/2002, p. 4). Sua distinção entre
psicologia empírica e genética influenciou Husserl no desenvolvimento do
método fenomenológico, especialmente em suas fases iniciais –
desenvolvimento que Brentano não aprovou, já que envolvia a intuição de
essências abstratas, cuja existência ele negou.
Seu principal objetivo foi assentar as bases para uma psicologia
científica, definida por ele como “a ciência dos fenômenos psíquicos”2
(BRENTANO, 1874, p. 25). Ao contrário do que afirma Heaton (1981, p.
163) trata-se de uma psicologia empírica e não de uma “ciência da alma”
dotada de compromissos metafísicos3. O estatuto ontológico de objetos
1 Distinção tematizada em seu Psicologia Descritiva (1982).
2 “Wissenschaft von der psychische Phäenomenen”.
3 Definindo a psicologia brentaniana como “a ciência da alma”, Heaton afirma que

Brentano via na alma uma substância que tem sensações – imagens perceptuais e
fantasias, atos de memória, de expectativa ou medo, desejo ou aversão; por substância,
uma entidade na qual outras coisas subsistem mas que, ela mesma, não subsiste em nada,
“o sujeito último”. Nada mais distante do ideal de psicologia empírica do filósofo.
280 Ressonâncias filosóficas - Artigos

extra-mentais não é, no pensamento de Brentano, tema de uma psicologia


científica, e sim as relações entre fenômenos. Daí Brentano adotar como
objeto de sua psicologia os fenômenos psíquicos.
Para evitar a edificação de uma psicologia sobre o pressuposto de
uma substância, Brentano retoma a distinção aristotélica entre ato e potência
e desenvolve uma filosofia do psíquico. Recorrendo a Aristóteles, ele
recupera uma definição de alma que a caracteriza como um ato que se
dirige a um objeto existente apenas de modo intencional. A realidade se
traduz por ato, em oposição à potência que os correlatos têm de serem ou
não atuais; daí o ato ser Wirklichkeit, realidade. Só os fenômenos psíquicos
são reais, uma vez que os atos são reais. Os correlatos intencionais
possuem outra natureza ontológica, não importando se eles existem em si
para além dos fenômenos.

23.2 O FENÔMENO PSÍQUICO, OBJETO DA PSICOLOGIA


EMPÍRICA

Ele propõe seis critérios para distinguir fenômenos mentais e


fenômenos físicos, dentre os quais destacamos três:
(i) fenômenos psíquicos são o objeto exclusivo da percepção interna (innere
Wahrnehmung). Fenômenos psíquicos, argumenta Brentano, “são somente
percebidos na consciência interna (innerem Bewustsein), enquanto que no
caso dos fenômenos físicos apenas a percepção externa é possível”
(BRENTANO, 1874, p. 118; BRENTANO, 2009, p. 70). Segundo ele, a
percepção interna provê uma evidência inequívoca do que é verdadeiro4
devido à sua imediatez e maior evidência em relação à experiência externa,
sensorial, sendo aquela a única forma de percepção em sentido estrito.
Porém, a percepção interna não deve ser confundida com observação interna;
isto é, ela não deve ser concebida como um ato transparente a acompanhar
outro ato mental em direção ao qual este se dirige; antes, ela é entrelaçada
com a observação interna, isto é: além de ser primeiramente dirigido a um
objeto, cada ato é incidentalmente dirigido a si mesmo como objeto
secundário - a consciência do sujeito de estar envolvido em um processo
cognitivo. Como na evidência do cogito cartesiano, posso questionar a
verdade ou falsidade de um objeto de pensamento, embora não possa
duvidar do fato de estar pensando. Por isso não existiriam atos mentais
inconscientes, apenas atos mentais de diferentes graus de intensidade;

4 Huemer (2010, p. 5) observa que a palavra alemã para percepção, Wahrnehmung, significa
literalmente “tomar por verdade(iro)”.
Intencionalidade como princípio... 281

além disso, o grau de intensidade com o qual o objeto é representado é


igual ao grau de intensidade com o qual o objeto secundário – ou seja, o
próprio ato – é representado.
(ii) fenômenos psíquicos sempre aparecem como uma unidade. Ao contrário
dos fenômenos físicos, somente podemos perceber um fenômeno
psíquico em um ponto específico no tempo. Quando parecemos ter mais
de um ato mental por vez (ao ouvir uma música sorvendo um vinho e
observando uma bela paisagem pela janela, por exemplo), o que acontece
é que todos esses fenômenos mentais se fundem em um só, tornando-se
divisíveis de um coletivo: ainda que um dos divisíveis encerre no curso do
tempo, o coletivo continua a existir.
(iii) fenômenos psíquicos são sempre intencionalmente dirigidos a um objeto. A
intencionalidade é uma noção original introduzida por Brentano na filosofia
contemporânea. Sua formulação clássica – embora ambígua – está
presente em Psicologia de um ponto de vista empírico:

Todo fenômeno psíquico (psychische Phänomen) é caracterizado pelo que


os Escolásticos da Idade Média chamaram a inexistência intencional (ou
mental [mentale]5) de um objeto, e o que nós deveríamos chamar – ainda

5 Chama a atenção a opção de tradução adotada pelos tradutores da edição Routledge da


Psychologie, Antos C. Rancurello, D.B. Terrell e Linda L.McAlister (Psychology from an
Empirical Standpoint. London/New York: Routledge, 2009), que traduziram ambos
os adjetivos alemães psychische e mentale por mental (“mental”). Assim, naquela versão, lê-
se: “Todo fenômeno mental (psychische) é caracterizado pelo que os Escolásticos da Idade
Média chamaram a inexistência intencional (ou mental [mental] [...]) de um objeto (...)”
(BRENTANO, 2009, p. 68, grifo nosso). Chama a atenção porque a língua inglesa dispõe
– como o alemão - de outros adjetivos para qualificar os fenômenos aos quais Brentano
se referia e que, a nosso ver, aproximam-se melhor da etimologia do original alemão:
trata-se dos adjetivos psychic ou sua forma derivada, psychichal. Tal opção parece-nos ser
justificada pela intenção de evitar qualquer interpretação psicologista da intencionalidade
e sublinhar a efetividade dos atos psíquicos – isto é, sua efetividade consciente. Afastada a
interpretação psicologista (que reduz leis lógicas e semânticas à subjetividade psíquica
individual), o uso do adjetivo português psíquico para delimitar a espécie de fenômenos
sobre os quais Brentano se debruça está franqueada, e foi a opção adotada neste trabalho.
Além disso, Benito Müller, tradutor da Deskriptive Psychologie, contorna as complicações
acima e traduz psychische por psychich ou psychichal, como em “psychichal acts”
(BRENTANO, 2002, pp. 89s). Importa notar, aqui, que Freud (cuja tradução das obras
para o inglês sofreu padronizações linguísticas pragmáticas, objetivando mais facilitar a
difusão da psicanálise que preservar a complexidade conceitual original) espelha Brentano
ao descrever o campo de atuação do método psicanalítico como o domínio da “realidade
psíquica” (psychische Realität), mas extrapola o domínio mental consciente ao incluir em
sua fundamentação a dimensão pulsional (orgânica, biológica) inconsciente como
substrato do qual a percepção consciente não é mais que uma diferenciação.
282 Ressonâncias filosóficas - Artigos

que não totalmente inequivocamente – referencia a um conteúdo (die


Beziehung auf einen Inhalt), direção a um objeto (Kichtung auf ein Object) (o
que não deve ser entendido aqui como significando uma coisa [eine
Realität]), ou objetividade imanente (immanente Gegenständlichkeit).

Brentano estaria defendendo alguma forma de imanentismo,


segundo a qual o objeto intencional estaria “na mente”? À luz de outros
textos do mesmo período, alguns estudiosos argumentam em favor de
uma distinção entre correlato intencional e objeto e que a existência deste
último não depende de sermos direcionados a ele. Alunos de Brentano
que se dispuseram a redigir abordagens mais sistemáticas da
intencionalidade (como Twardowski6, Meinong7 e Husserl8) geralmente
criticaram-na por sua equivocidade quanto ao estatuto ontológico do objeto
intencional: se o objeto intencional é parte do ato – argumentaram eles -,
nos vemos diante de uma duplicação do objeto. Em outras palavras: à
parte o objeto físico, real, que é percebido, lembrado, pensado, temos um
objeto mental, intencional, ao qual o ato é dirigido. Consequentemente,
duas pessoas nunca poderão intencionar o mesmo objeto; afinal,
paralelamente à real cidade de Paris, tenho um objeto mental que é parte
de meu ato de pensar. Inversamente, afirmar que o objeto intencional seja
idêntico ao objeto real introduziria o problema da possibilidade dos
fenômenos mentais que intencionam objetos não-existentes – como uma
montanha de ouro ou um quadrado redondo: como Paris, esses atos são
intencionalmente dirigidos a um objeto, com a diferença que este objeto
não existe.
A abordagem brentaniana, contudo, parece não resolver tais
impasses ao nível da Psychologie vom empirischen Standpunkte. Tais serão
resolvidos a partir de 1889 – época da preparação dos textos reunidos na

6 Twardowski distinguiu entre conteúdo e objeto do ato: o primeiro, afirma, é imanente ao


ato; o segundo, não.
7 A teoria dos objetos de Meinong é uma reação às dificuldades ontológicas da teoria

brentaniana: em vez de adotar a ideia de um conteúdo imanente, Meinong argumenta que


a relação intencional é sempre uma relação entre o ato mental e um objeto, ainda que este
objeto não exista. Mesmo quando o objeto intencional não existe, há ainda um objeto
externo ao ato mental ao qual somos direcionados. De acordo com Meinong, mesmo
objetos não-existentes são em algum sentido reais: uma vez que somos intencionalmente
dirigidos a ele, eles devem subsistir (bestehen) de alguma maneira. Porém, nem todos objetos
subsistentes existem; alguns deles, inclusive, não podem existir por serem logicamente
impossíveis – tal como quadrados redondos.
8 Ao aplicar o método da redução fenomenológica, Husserl remete ao problema do

direcionamento intencional introduzindo a noção de noema.


Intencionalidade como princípio... 283

Psicologia Descritiva. Por outro lado, a problemática em torno do estatuto


ontológico dos objetos intencionais denuncia certo desvio daquilo que o
filósofo efetivamente propõe com a tese da intencionalidade:

A esse respeito, Cataldo-Maria e Winograd esclarecem:


Dos escolásticos medievais, de longe o mais mencionado por Brentano
em sua Psicologia (1874) é São Tomás de Aquino. Segundo Beuchot9
(1998), a intentio (sic) tomista origina-se da tradução do termo árabe
mana (sic) e toda a intencionalidade escolástica ergueu-se sobre a filosofia
de Aristóteles e em dívida para com os comentaristas árabes. Mana (sic)
pode ser compreendido como aquilo através do que se conhece algo ou,
ainda, imagem, conceito, species intellecta (sic), a espécie assimilada
através da qual se conhece intelectualmente algo. Pensava-se que a
mente, de alguma maneira (psíquica ou intencionalmente),
transformava-se naquilo que conhecia, ou que o conteria em sua
representação: ‘a mente se torna intencionalmente a mesa que conhece’
(Beuchot, 1998, p. 167), exemplifica o filósofo. Compreendia-se o ente
enquanto possuidor de dois aspectos principais: essência e existência. O
ente fora da mente teria sua essência e uma existência física ou
manifestada a partir de sua existência física. Na mente, a essência manter-
se-ia a mesma, sendo que sua existência passaria a ser psíquica ou
intencional. Vale lembrar, aqui, que a conservação da essência na
representação cognitiva resguardava o realismo do conhecimento. Eis
que a intencionalidade – nas suas raízes escolásticas – pode ser
compreendida como ‘uma tendência da mente em transformar-se de
alguma maneira naquilo que conhece e deseja’ (Beuchot, 1998 p. 167)
(CATALDO-MARIA, WINOGRAD, 2013, p. 38).

Para os escolásticos, o termo “inexistência intencional” é locativo e


não negativo, isto é, visa caracterizar uma modalidade específica de
existência – existência em algo ou dirigida a algo (id., p. 39). Na filosofia
tomista, a intentio (aquilo através do que se conhece algo, espécie através
da qual se conhece algo intelectualmente) possibilitava a conservação da
essência na representação intelectual, muito embora sua existência já não
fosse mais física, mas anímica – num típico realismo moderado. A
conservação da essência na representação mental resguardava, assim, o
realismo do conhecimento. É tanto aplicação do espírito a um objeto de
conhecimento quanto o próprio conteúdo do pensamento ao qual o
espírito se aplica; como afirma Uriah Kriegel, a intencionalidade torna-se,

9BEUCHOT, M. “Aristóteles y la escolástica en Freud a través de Brentano”. Espíritu,


47(118), 1998, 161-168.
284 Ressonâncias filosóficas - Artigos

com Brentano, princípio de demarcação dos fenômenos psíquicos (KRIEGEL,


2017, p. 100). Huemer (2010, p. 6) lembra que, apesar da ambiguidade da
definição registrada na Psychologie, o propósito de Brentano era elaborar um
critério último de distinção entre fenômenos mentais e físicos, e não desenvolver
uma abordagem sistemática da intencionalidade. Assim, é psíquico aquele
fenômeno caracterizado pela in-existência intencional de seu objeto ou, o que
é o mesmo, aquele ato mental que possui seu correlato ou cujo objeto é
existente de modo intencional. Por isso lemos, na Psicologia: “nada
distingue os fenômenos mentais dos fenômenos físicos mais que o fato de
algo ser imanente neles como objeto” (BRENTANO, 2009, p. 152).
Na Psicologia, a definição de fenômeno psíquico destaca a
propriedade exclusiva deste diante dos fenômenos físicos: estes últimos
possuem a localização espacial como propriedade, enquanto os
fenômenos psíquicos possuem a propriedade da inexistência de seu objeto
e são apreendidos imediatamente na percepção interna. Os exemplos de
fenômenos físicos aos quais Brentano recorre são os das ciências exatas
(matemática, física, química, fisiologia), como a cor e o som. Para ele, a
percepção interna dos objetos referenciados pelo complemento direto de
verbos tais como ver, ouvir, cheirar etc. é, enquanto ato mental, um
fenômeno psíquico. E não há fenômeno psíquico que não seja uma relação
entre um ato e um conteúdo do ato. Isso é a intencionalidade: a relação
própria do ato que representa um objeto que inexiste intencionalmente em
si.
Assim, Brentano apresenta o fenômeno psíquico como um ato
mental definido por um verbo (ver, ouvir, cheirar, etc.) caracterizado por
possuir o correlato, objeto existente de modo intencional, “o que não deve ser
entendido (...) como significando uma coisa” (“eine Realität”); em outras
palavras, um objeto inexistente. Com isso o filósofo redefine o conceito de
representação (Vorstellung)10: esta é um ato que se refere a um correlato inexistente,

10 A edição inglesa adotada traduz Vorstellung por presentation e, mais raramente, idea ou
thought; vorgestellt, por sua vez, é vertido por presented como uma das variações de to think
of – do verbo alemão vorstellen (Linda McAlister, apud BRENTANO, 2009, p. xxi). No
histórico das traduções de Brentano já foram utilizadas outras alternativas para verter
Vorstellung, tais como representation e contemplation (KRIEGEL, 2014, p. 9). A opção da
edição Routledge acentua o modo representacional próprio do fenômeno da Vorstellung: ele
é um fenômeno psíquico caracterizado pela in-existência “neutra”, diríamos, de seu
correlato intencional, presente à mente como fundamento ou classe mais básica dos
estados de julgamento ou interesse. Cientes de que outras traduções são possíveis no
vernáculo – como, por exemplo, a opção por “presentação” que aparece na obra de
Richard Sokolowski, Introdução à Fenomenologia (Rio de Janeiro: Loyola, 2010) – e
Intencionalidade como princípio... 285

um fenômeno psíquico fundamental caracterizado pela inexistência


intencional do objeto. Em meio à tradição filosófica moderna, que tendia
(com Descartes, Kant e o empirismo) a enfatizar o conteúdo das
representações, Brentano dá destaque ao seu caráter efetivo, atual;
Vorstellung, para ele, refere-se não ao “que é representado, mas antes [ao]
ato de representar” (BRENTANO, 2009, p. 60). E tanto o ato de
representar quanto o objeto representado independem da existência real
das coisas (Realitäten) às quais se referem: fiel à tradição aristotélica,
Brentano descreve a Vorstellung não como uma reprodução do objeto
externo, mas como um todo formado pela relação que as Vorstellungen
mantêm entre si.
O objeto intencional ao qual somos direcionados é, então, uma
“divisiva”, uma parte não-independente do fenômeno psíquico. É por isso
que Brentano anexa à definição da intencionalidade os modos
representacionais nos quais a mente é dirigida a seus objetos: afinal, “é fácil
entender que as diferenças fundamentais na maneira em que algo existe
[nos fenômenos psíquicos] como um objeto constituem as principais
diferenças de classe entre os fenômenos mentais” (id., ibid.).
Brentano rejeitou as soluções apresentadas ao problema do
estatuto ontológico do objeto intencional por desconsiderar seus
pressupostos ontológicos. Em textos tardios – observa Huemer (2010, pp.
7-8) ele sugere que a intencionalidade seja uma forma excepcional de relação:
um ato psíquico não mantém uma relação ordinária com um objeto, mas
uma quase-relação (Relativliches); afinal, para uma relação existir, ambos os
elementos relacionados devem existir, o que não acontece na relação
intencional. Um fenômeno mental, por sua vez, pode manter uma quase-
relação com objetos existentes (como a cidade de Paris), bem como com
objetos não-existentes (como uma montanha de ouro). Além disso, sua
virada - a partir de 1905 - a uma espécie de reismo não significou, em
hipótese alguma, a solução para o problema; afinal, ainda que se admita
que somente objetos concretos existam, permanece o fato de que eles
apenas são representados a nós enquanto correlatos de um ato intencional, e,
portanto, somente adquirem sentido na efetividade de um fenômeno
psíquico.

de que os sentidos da palavra alemã variam em Brentano e Freud, optamos por traduzir
Vorstellung, aqui, por representação.
286 Ressonâncias filosóficas - Artigos

23.3 A CLASSIFICAÇÃO FUNDAMENTAL DOS FENÔMENOS


PSÍQUICOS

Como vimos, o princípio de demarcação brentaniano dos


fenômenos psíquicos consiste na característica peculiar segundo a qual
estes possuem intencionalmente seus correlatos objetivos. Não há
fenômeno psíquico que não seja uma relação entre um ato e um conteúdo.
Brentano sustenta essa máxima ao afirmar, na Psychologie, que “(t)odo
fenômeno psíquico contém em si algo como seu objeto”; não obstante,
nem todos os fenômenos psíquicos possuem seu objeto “do mesmo
modo” (in gleicher Weise) (BRENTANO, 1874, p. 133). As diferentes
maneiras pelas quais a mente intenciona algo como um objeto constituem
as diferentes classes de fenômenos psíquicos. Cada uma delas representa
um ato mental que se refere a seu objeto de uma maneira diferente, e a
ênfase reside sempre sobre a noção de atividade – tal como no caso da
representação, que não se refere ao “que é presentado, mas antes [ao] ato
de representar” (BRENTANO, 2009, p. 60).
Na representação (Vorstellung) há algo representado (vorgestellt), no
juízo (Urtheile) há algo admitido ou rechaçado, no amor (Liebe) amado, no
ódio (Hasse) odiado, no desejo (Begehren) desejado etc. (BRENTANO,
1874, p. 115).
Brentano introduz sua taxonomia dos fenômenos psíquicos numa
lógica que vai do gênero para a espécie a fim de capturar as relações
homogêneas e heterogêneas dos próprios fenômenos (KRIEGEL, 2017,
p. 97) em virtude dos modos intencionais próprios a cada ato mental. As
três classes fundamentais de fenômenos psíquicos são, assim:
(i) representações (Vorstellungen): é o tipo mais básico; todo ato
psíquico ou é uma representação ou está fundado numa representação.
Sua formulação mais genérica na Psychologie afirma: “Falamos de uma
representação (presentation) sempre que algo aparece para nós”
(BRENTANO, 2009, p. 153). Neutra, é ela que fundamenta o julgamento
e o interesse, pois todo ato judicativo ou estado de interesse é também
uma representação, enquanto que o contrário nem sempre é o caso.
Representações podem diferir em vários modos, tais como modos
temporais; acontecem a cada vez em que somos dirigidos a um objeto,
quer estejamos imaginando, vendo, lembrando, esperando etc.
(ii) julgamentos (Urtheile): trata-se de todo estado mental que se refere
a seu objeto como verdadeiro ou falso, certo ou errado. Em outras
palavras, é uma representação mais um modo qualitativo de aceitação ou
Intencionalidade como princípio... 287

negação. “Por ‘julgamento’ nós queremos dizer, em acordo com o uso


filosófico comum, aceitação (como verdadeiro) ou rejeição (como falso)”
(BRENTANO, 2009, p. 153).
(iii) interesse (Interesse) ou emoções (Gemütsbewegungen): fenômenos
psíquicos que compreendem emoções, sentimentos, afetos, desejos, dor,
prazer e atos da vontade. Dada a variedade de fenômenos incluídos sob
essa classe, Brentano oscila quanto à sua denominação e inclui entre eles
também os “fenômenos de amor (Liebe) e ódio (Hasse)”. O que os unifica
é que, diferentemente dos juízos (que valoram algo como verdadeiro ou
falso), essa classe de fenômenos caracteriza-se por se referirem a seus
conteúdos representacionais (os objetos da relação) como bons ou ruins
(BRENTANO, 2009, p. 154).
Assim, na Psychologie, adotando a intencionalidade como princípio
de demarcação dos fenômenos psíquicos, Brentano classifica os diferentes
fenômenos mentais segundo seus modos intencionais, isto é, ele deriva o
princípio de classificação dos fenômenos do seu princípio de demarcação:
a representação (Livro II, VI e VII) caracteriza-se pelo que podemos
denominar modo fenomenal neutro; o julgamento (Livro II, VII), pelo modo
da representatividade como verdadeiro ou falso; a emoção ou interesse (Livro II,
VIII), pelo modo da representatividade como bom ou ruim. Assim, à classificação
fundamental regida pela relação do gênero (o psíquico ou o mental como
tal) para com suas espécies (os diferentes modos intencionais) Brentano
acrescenta uma classificação não-fundamental com suas espécies relativas
de atos (ou modos) representacionais, já que toda relação ao objeto
intencional pressupõe uma representação11 (Brentano, apud KRIEGEL,
2017, p. 102): no julgamento, a classificação não-fundamental inclui atos
(modos representacionais) de aceitação (Anerkennung) e rejeição
(Verwerfung); no interesse, amor (Liebe) e ódio (Hasse); na representação ela-
mesma, por sua vez, não se aplicam especificações adicionais. Com isso o
filósofo subsume sua teoria representacional à tese da intencionalidade, e
esta à recuperação da noção aristotélica de ato. Em outros textos – como
Consciência Sensória e Noética - Brentano vai além, acrescentando à
classificação não-fundamental dos fenômenos de julgamento e interesse
espécies classificadas segundo o conteúdo representado em cada caso12.

11 BRENTANO, F. Sensory and Noetic Consciousness. London: Routledge and


Kegan Paul, 1981, p. 42.
12 Veja-se, para tanto, KRIEGEL, 2017, p. 102s.
288 Ressonâncias filosóficas - Artigos

23.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tese da intencionalidade de Brentano sublinha a diferença entre


fenômenos psíquicos e fenômenos físicos e serve de princípio de
demarcação dos primeiros. Ela reza que cada ato mental contém seu
objeto em seu interior, ainda que haja diferentes maneiras pelas quais o ato
possa ser direcionado a seu objeto imanente. O filósofo argumenta que
estamos imediatamente certos da realidade de uma percepção interna, ao
passo que nosso conhecimento de realidades externas é, enquanto
percepção de qualidades sensíveis, obtida por meio de mecanismos
secundários.
Representações mentais não são apenas reproduções de objetos
externos; pelo contrário, a representação é a única coisa dotada de
realidade, pois se refere exclusivamente ao ato de representar. Ou seja, não
há realidade em conteúdos de consciência, mas apenas na atividade desta.
A representação é o ato pelo qual o objeto se faz intencionalmente
presente na mente, independentemente da existência extra-mental da coisa
à qual a representação se refere. Seu sentido advém não da coisa
representada, mas da relação estabelecida entre as representações
(GARCIA-ROZA, 2008, p. 57). Isso se torna particularmente notório a
partir da crítica de Meinong. A primeira teoria brentaniana da
intencionalidade (anterior à virada reísta de 1905) supunha que, além da
Wirklichkeit dos atos de consciência haveria também a Realität das coisas,
a cujos indivíduos os atos mentais poderiam ou não se dirigir; em ambos
os casos, permanecia real o fato da direcionalidade da consciência a um
objeto, independentemente de sua existência material ou não. As críticas
dirigidas ao problema do estatuto ontológico do objeto intencional
fizeram Brentano rever esse pressuposto a ponto de admitir que, ainda que
os individuais concretos sejam os únicos dotados de existência, a evidência
da percepção interna não nos permite, no que diz respeito ao
conhecimento, ir além dos fenômenos conforme apreendidos em atos de
consciência. Daí que o sentido do fenômeno ou ato psíquico não advém
de seu potencial veritativo (correspondencial, portanto), mas das relações
estabelecidas entre as representações; nas palavras de Garcia-Roza (id. p.
58-59), “há significação mesmo quando a representação não tem como
referente um objeto real, existente em si e por si, como é o caso, por
exemplo, do centauro ou do cavalo alado”.
Como unidades básicas do funcionamento mental, nada pode
despertar interesse ou ser julgado (as duas outras classes fundamentais de
Intencionalidade como princípio... 289

fenômenos psíquicos descritas na Psychologie) se não foi primeiramente


representado à mente; ou seja, cada ato mental contém o mesmo objeto
que a representação à qual está conectado (BRENTANO, 2009, p. 156).
Não existe diferença no objeto, independente do ato mental (amar, odiar,
afirmar ou negar) que a ele se dirige. Enquanto a natureza do ato mental
pode diferir, o objeto intencional permanece o mesmo.
Assim, Brentano parece ter sido o primeiro autor a libertar o
psiquismo da dependência de uma explicação físicalista. O psíquico, para
ele, é um todo que se forma entre partes sem que seja necessário apontar
a causa ou o que o determina; trata-se de fenômenos cujo sentido não
resulta necessariamente da articulação entre a representação mental e a
coisa representada, mas da articulação entre as próprias representações. É
um todo misterioso, “associação original” cujas partes interdependentes
não são o efeito serial de causas externas a si nem podem ser reduzidas a
processos fisiológicos.

REFERÊNCIAS

BRENTANO, F. Descriptive Psychology (1982). London/New York:


Routledge, 2002.

_____. Psychologie vom empirischen Standpunkte. Leipzig: Dunker &


Humboldt, 1874.

_____. Psychology from an empirical Standpoint. London/New York:


Routledge, 2009.

CATALDO-MARIA, T. M. de; WINOGRAD, M. “Freud e Brentano:


mais que um flerte filosófico”. In Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 44, n. 1,
jan./mar. 2013, pp. 34-44.

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à Metapsicologia Freudiana. Vol. 1 Sobre


as Afasias (1891) – O Projeto de 1895. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

HEATON, J. M. “Brentano and Freud”. In: SMITH, B. (ed.). Structure


and Gestalt. Philosophy and Literature in Austria-Hungary and her Successor
States. Amsterdam: John Benjamins B. V., 1981, pp. 161-194.
290 Ressonâncias filosóficas - Artigos

HUEMER, Wolfgang. “Franz Brentano” (2010). In: Stanford Encyclopedia


of Philosophy, disponível em
http://www.plato.stanford.edu/entries/brentano. Acesso 11 Jun. 2012.

KRIEGEL, U. “Brentano’s Classification of Mental Phenomena”. In


KRIEGEL, U. Routledge Handbook of Franz Brentano and the Brentano School.
London and New York, Routledge, 2017, p. 97-103.
XXIV

KANT E A REVALORIZAÇÃO DA ESTÉTICA

Tamara Havana dos Reis Pasqualatto

RESUMO

A frequente acusação que sofre a filosofia kantiana de desprezar a


sensibilidade em favor dos conceitos puros do entendimento não se
sustenta quando confrontada com os textos. O presente trabalho discute
a revalorização da estética em Kant, naquilo que ela representa um avanço
em comparação com a noção de estética e sensibilidade preconizada pelo
racionalismo wolffiano. O objetivo deste escrito é explicitar o modo como
Kant recupera a noção transcendental da sensibilidade entendendo-a
como imprescindível tanto para a fundação do conhecimento teórico
quanto do juízo estético.

PALAVRAS-CHAVE: Kant; Estética; Sensibilidade; Revalorização

INTRODUÇÃO

A primeira vez que a ideia da Estética apareceu como uma


disciplina ou discurso unitário sobre as belas artes e a sensibilidade artística
foi em 1750 com a obra intitulada Estética (Aesthetica), do filósofo alemão
Alexander Baumgarten. Este foi seguidor da escola racionalista de Leibniz
e Christian Wolff, para a qual o conhecimento racional era unicamente o
conhecimento lógico, perpassados pelos critérios de clareza e distinção,
estabelecidos inicialmente por Descartes1. Embora jamais tenha
abandonado a perspectiva racionalista, Baumgarten buscou um espaço
para a sensibilidade, através dos instrumentos desta escola, concedendo a
ela uma maior importância e estabelecendo um tipo de saber sobre o
sensível.

1 Na terceira meditação Descartes (2004, p. 71) afirma que: “[...] já posso estabelecer
como regra geral que: é verdadeiro tudo o que percebo muito clara e muito
distintamente”.
292 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Baumgarten entendia a estética enquanto “teoria das artes liberais,


gnoseologia inferior, como arte de pensar de modo belo, como arte do
análogon da razão” e, por fim, a definia como “ciência do conhecimento
sensitivo” (BAUMGARTEN, 1993, p.95). A disciplina estética, tal como
pensada por este filósofo, deixava transparecer em sua formulação uma
constante tensão entre o racional e o sensível, não havendo uma clara
distinção eles. Na seção IV que trata da doutrina estética, Baumgarten
(1993, p. 114) afirma: “à doutrina estética pertente: 1) TODO O BELO
SABER, isto é, o saber a respeito dos objetos que devam ser pensados
belamente, uma vez que este saber exibe um conhecimento mais adequado
que aquele proporcionado pela cultura não erudita”.
A respeito daquilo que pertence à doutrina estética, Baumgarten
(1993, p.116) entente que é de posse desta “a teoria sobre a forma do belo
conhecimento, sobre a maneira e o meio de estabelece-la por métodos
legítimos”. Ora, a mescla que Baumgarten produz entre Teoria do
Conhecimento e Arte resultou em expressões estranhas, como “o belo
saber”, “belo conhecimento”, ou algo que deve “ser pensado belamente”.
Assim, embora Baumgarten tenha sido o primeiro a tratar da estética como
disciplina, seu aparato teórico racionalista o impediu de conceder a ela sua
real importância.
O primeiro a perceber a necessária passagem formal (segundo leis
universais a priori) entre o sensível como objeto de conhecimento (Teoria
do Conhecimento) e o sensível como assunto artístico foi Kant. De acordo
com Santos (1994, p. 16-17), “[...] foi precisamente essa dependência
relativamente aos pressupostos intelectualistas do sistema wolffiano (e
leibniziano) o que impediu Kant de aderir sem reservas ao notável esforço
de revalorização e autonomização da sensibilidade que se exprime na
citada obra de Baumgarten”.
Se a revalorização da sensibilidade iniciou-se com Baumgarten,
Kant é quem a estabeleceu em definitivo, graças ao princípio de separação
a que chegou na sua Dissertação de 1770 sobre os princípios da forma do
mundo sensível, a saber, as intuições puras (espaço e tempo), e o
reconhecimento de que só existe ciência quando supostas essas duas
condições subjetivas de toda a percepção humana. A incorporação dos
elementos fornecidos pela Sensibilidade no programa da investigação
filosófica conduziu à perspectiva crítico-transcendental da filosofia, que
demonstra que o conhecimento ou ciência é um composto de matéria e
forma (intuição e conceito). A exposição das formas puras da Sensibilidade
estabelecerá que os sentidos também devem intuir a priori, demonstrando
Kant e a revalorização da estética... 293

assim que a Sensibilidade é um elemento indispensável ao conhecimento


a priori, e que segundo Santos (1994), não havia sido enfatizado antes de
Kant.
Assim, apesar da frequente acusação de que sofre a filosofia
kantiana de desprezar a sensibilidade em favor dos pretensos conceitos
puros do entendimento, “[...] tal acusação dificilmente resiste à prova dos
textos” (SANTOS, 1994, p.11) pois Kant é um dos pensadores modernos
que mais pôs em evidência o papel desempenhado pela sensibilidade no
conhecimento.
Kant (2014, p.163) em nota afirma:

O idealismo propriamente dito sempre tem um propósito visionário e


não pode ter nenhum outro, mas meu idealismo existe apenas para
conceber a possibilidade de nossa cognição a priori dos objetos da
experiência, um problema que até agora não foi resolvido, ou sequer
alguma vez levantado. Com isso, colapsa todo idealismo visionário, que
(como já se pode perceber em Platão) sempre inferia de nossas cognições
a priori (mesmo as da geometria) outra intuição (a saber, a intelectual) que
não a sensorial, porque não ocorrera a ninguém que os sentidos também
pudessem intuir a priori.

Kant não pôde admitir a Estética de Baumgarten porque para ele


nela se “[...] tentou submeter a princípios racionais o julgamento crítico do
belo [permitindo que fossem elevadas] as suas regras à dignidade de uma
ciência. Mas esse esforço foi vão” diz Kant (1989, p. 62; B 35), pois no seu
entendimento, apenas sua doutrina da sensibilidade poderia fazer jus a essa
denominação de “estética” porque ela é verdadeiramente uma ciência: “[...]
ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (Idem). A posição
de inferioridade lógica e gnosiológica do conceito de Sensibilidade,
adotada por Baumgarten (continuada da tradição leibniziano-wolffiana),
parece ter impedido um verdadeiro ou autêntico reconhecimento do seu
valor. Segundo Santos (1994, p. 19),

[...] ao considerar, na linha de Lebniz e Wolff, a sensibilidade como uma


forma de conhecimento confuso, Baumgarten não estava em condições
de reconhecer o seu caráter verdadeiramente positivo no conhecimento
humano em geral; e, por outro lado, ao apresentar a experiência estética
como uma forma de conhecimento inferior, ele não podia realmente
aceder à compreensão da verdadeira natureza da experiência da beleza e
do gosto, enquanto vivências meramente subjetivas, ou seja, enquanto
sentimento, como tais irredutíveis a toda ciência ou doutrina.
294 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Concernente às tarefas do conhecimento objetivo da natureza,


Kant apresenta a necessidade de vincular à Sensibilidade o Entendimento.
Ele admite:

[...] há dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de


uma raiz comum, mas para nós desconhecida, que são a sensibilidade e
o entendimento; pela primeira são-nos dados os objetos, mas pela
segunda são esses objetos pensados. Na medida em que a sensibilidade
deverá conter representações a priori, que constituem as condições
mediante as quais os objetos nos são dados, pertence à filosofia
transcendental. A teoria transcendental da sensibilidade deve formar a
primeira parte da ciência dos elementos, porquanto as condições, pelas
quais unicamente nos são dados os objetos do conhecimento humano,
precedem as condições segundo as quais esses mesmos objetos são
pensados (KANT, 1989, p. 56; B 30).

O desenvolvimento do conceito de “estética” em Kant culmina


em dois sentidos para o termo. No contexto da Filosofia Transcendental,
o substantivo “Estética” designa, como já foi dito, a “[...] ciência de todos
os princípios da sensibilidade a priori” (KANT, 1989, p. 62; B 35) – sendo
esses princípios as formas puras da intuição, a saber, espaço e tempo. Tal
resolução presente na Crítica da razão pura confirma a imprescindível
função da sensibilidade no conhecimento, já reconhecida na Dissertação
de 17702, e é reforçada na medida em que considera doravante a
sensibilidade e o entendimento como as duas partes do conhecimento
humano. A função de cada uma delas é separada e distinguida, mostrando
o modo mais adequado por meio do qual se encontram atuando juntas,
sem concebê-las, no entanto, como indiscriminadamente misturadas.
Afirma Kant (1989, p. 61; B 33):
Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um
conhecimento se possa referir a objetos, é pela intuição que se relaciona
imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, todo
o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que
o objeto nos for dado; o que, por sua vez, só é possível [pelo menos para

2Na Dissertação de 70, afirmara Kant (2005, p.235): “Sensibilidade é a receptividade de


um sujeito, pela qual é possível que o estado representativo dele seja afetado de certo
modo pela presença de algum objeto. Inteligência (racionalidade) é a faculdade de um
sujeito, pela qual ele tem o poder de representar o que, em virtude de sua qualidade, não
pode cair-lhe nos sentidos. O objeto da sensibilidade é sensível; o que, porém, nada
contém senão o que é cognoscível pela inteligência é inteligível”.
Kant e a revalorização da estética... 295

nós homens,] se o objeto afetar o espírito de certa maneira. A capacidade


de receber representações (receptividade), graças à maneira como somos
afetados pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Por intermédio, pois,
da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas
é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os
conceitos. Contudo, o pensamento tem sempre que referir-se, finalmente,
a intuições, quer diretamente, quer por rodeios, [mediante certos
caracteres] e, por conseguinte, no que respeita a nós, por via da
sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.
Se o conhecimento (ciência) é o resultado da união entre matéria
(intuição) e forma (conceito), o procedimento sintético desenvolvido no
interior da Crítica da razão pura (capítulo da dedução transcendental das
categorias) se mostra como o momento de justificação do vínculo
originário entre ambas as partes (troncos) do conhecimento humano. Pois,
afirma Kant (Ibidem, p.89; B75): “[...] sem a sensibilidade, nenhum objeto
nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos
sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas”. Fica
assinalado que deve corresponder aos conceitos algo na realidade e que
por isso é necessário, a fim de tornar sensível um conceito, acrescentar-
lhe um objeto na intuição, bem como também é necessário para tornar
compreensíveis as intuições, submetê-las a conceitos. Portanto, as
faculdades do Entendimento e da Sensibilidade devem trabalhar unidas
para a obtenção do conhecimento.
No contexto da Crítica da faculdade do juízo, por sua vez, a
“sensibilidade” e o “estético” designam aquilo que é meramente subjetivo
em nossas representações. Trata-se daquele elemento “subjetivo”, em
virtude do qual “estético" aponta àquilo que numa dada representação se
refere meramente ao sujeito e por isso não entra, de modo algum, na
determinação do objeto com vistas ao conhecimento. Nesse sentido é que,
ao se referir ao juízo reflexionante estético, Kant qualifica a representação
da imaginação transcendental, dizendo:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo


entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade
da imaginação [...] ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer.
O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por
conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo
fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo (KANT,
1995, p. 47-48).
296 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Deste modo, neste último caso, o estético designa propriamente o


“sentimento” que acompanha o juízo de gosto.
Kant define a faculdade do juízo em geral como “[...] a faculdade
de pensar o particular como contido no universal” (1995, p. 23; XXVI).
Porém, quando este universal está ausente e apenas o particular for dado,
a faculdade do juízo terá que encontrar o universal ao qual subsumir aquele
particular. Ela precisará por isso de um princípio próprio para procurar
leis – razão pela qual a faculdade de juízo exclusivamente na sua função
reflexiva é legisladora a priori; tal é o princípio da conformidade a fins da
natureza, cuja origem é tão somente a faculdade de juízo reflexiva, pois ela
o retira totalmente de si mesma3, pois, caso assim não fosse, ela não seria
reflexiva, porém, determinante; também não poderia prescrevê-lo à
natureza, porque a reflexão sobre as leis da natureza orienta-se em função
de tal princípio.
A ideia do princípio de conformidade a fins da natureza é que assim como
as leis universais têm o seu fundamento no nosso entendimento, que as
prescreve à natureza, as leis empíricas particulares têm de ser consideradas
segundo uma unidade, “[...] como se igualmente um entendimento as
tivesse dado em favor da nossa faculdade de conhecimento, para tornar
possível um sistema de experiência segundo leis particulares da natureza”
(KANT, 1995, p. 24; XXVII). Através deste princípio, a faculdade de
julgar reflexiva confere uma lei a si mesma, que torna possível refletir sobre
os produtos da natureza no que diz respeito à conexão dos fenômenos,
nunca acrescentando a eles algo como uma relação evidente da natureza a
fins.
Como é preciso conceber uma concordância entre a natureza (na
sua multiplicidade de leis particulares) e a nossa necessidade de encontrar
para a ela a universalidade dos princípios que, embora contingente, é

3Sobre essa questão Rego (2005, p. 225) complementa que: “[...] o princípio da finalidade
da natureza que não é um entendimento superior, mas a hipótese de um entendimento
superior em relação ao qual a natureza é final, é um princípio ‘heautonomo’ da faculdade
do juízo. Isso significa: um princípio que a faculdade do juízo tira de si mesma – heautou –
e confere a si mesma – heauto. Tirar de si memsa, conferir a si mesma, utilizar, admitir,
servir-se, de, pressupor; o ‘como se’ da finalidade diz que a natureza na multiplicidade de
suas formas pode ou bem ser conforme a um entendimento ou bem não o ser; mas diz,
sobretudo, que nós teremos que nos comportar em relação a ela apostando nessa
conformidade se, e somente se, estivermos comprometidos com a tarefa de conhece-la
exaustivamente. O princípio hipotético, heautonomo e subjetivo da finalidade da
natureza é, assim, um pressuposto de cognoscibilidade”.
Kant e a revalorização da estética... 297

imprescindível para nossas necessidades intelectuais, a faculdade do juízo


reflexiva executa esta tarefa através do seu princípio próprio. Desse modo
é possível afirmar que a natureza especifica suas leis universais segundo o
princípio de conformidade a fins para a nossa faculdade de conhecimento,
ou seja, para a adequação ao nosso entendimento humano na sua
necessária atividade de encontrar o universal para o particular4. Assim,
afirma Kant (1995, p. 29-30; XXXVII)

[...] a faculdade do juízo possui um princípio a priori para a possibilidade


da natureza, mas só do ponto de vista de uma consideração subjetiva de
si própria, pela qual ela prescreve uma lei, não à natureza, mas sim a si
própria para a reflexão sobre aquela.

A este princípio da conformidade a fins está ligado o sentimento


de prazer e desprazer, que é o elemento subjetivo numa representação,
que não pode, de modo algum, ser parte do conhecimento5 e sendo um
elemento subjetivo, ou seja, que constitui sua relação diretamente com o

4 A faculdade de juízo reflexiva surge aqui como a reflexão autônoma que apresenta a
colocação da natureza (Entendimento) e da liberdade (Razão) em uma relação harmônica,
realizada a partir de um trabalho complementar que visa fornecer uma lei lá onde as leis
do entendimento (categorias) não alcançam: as tantas formas múltiplas que existem na
natureza também devem poder ser pensadas, ainda que isso não possa ocorrer de modo
objetivo. Essa lei meramente reflexiva diz respeito só à possibilidade de uma natureza em
geral, e não à natureza determinada, tarefa que cabe às as leis dadas a priori pelo
entendimento. Para esse último caso a faculdade de juízo obtém de outro lugar o seu
princípio, a saber, a faculdade de juízo não pode dá-lo para si mesma, já que as categorias
obtidas pelo Entendimento se justificam como as condições universais da experiência do
conhecimento objetivo.
5 Afirma Kant (1995, p.32-33; XLII-XLIII): “Aquilo que na representação de um objeto

é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com
o objeto, é a natureza estética dessa representação; mas aquilo que nela pode servir ou é
utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é sua validade lógica. No
conhecimento de um objeto dos sentidos aparecem ambas as relações. Na representação
sensível das coisas fora de mim a qualidade do espaço, no qual nós as intuímos, é aquilo
que é simplesmente subjetivo na minha representação das mesmas (pelo que permanece
incerto o que eles possam ser como objetos em si), razão pela qual o objeto é também
pensado simplesmente como fenômeno; todavia, e independentemente da sua qualidade
subjetiva, o espaço é uma parte do conhecimento das coisas como fenômenos. A sensação
(neste caso, a externa) exprime precisamente o que é simplesmente subjetivo das nossas
representações das coisas fora de nós, mas no fundo o material <das Materielle> (real) das
mesmas (pelo que algo existente é dado), assim como o espaço, exprime a simples forma
a priori da possibilidade da sua intuição; e não obstante a sensação é também utilizada
para o conhecimento dos objetos fora de nós”.
298 Ressonâncias filosóficas - Artigos

sujeito e não com objeto, é ao mesmo tempo a natureza estética dessa


representação. Quando à representação de um objeto está ligado o
sentimento do prazer, então este objeto pode ser designado conforme a
fins. Uma vez que o sentimento do prazer está ligado à simples apreensão
da forma de um objeto da intuição e nele a representação não se liga ao
objeto, mas sim ao sujeito, então o prazer exprime a adequação desse
objeto às faculdades de conhecimento que estão em jogo na faculdade do
juízo reflexiva (Imaginação e Entendimento) e por isso exprime
simplesmente uma finalidade formal e subjetiva do objeto. Assim tem-se
um juízo reflexivo estético, que não se funda em nenhum conceito do
objeto e nem fornece um. Continua Kant (1995, p. 34; XLIV):
Na verdade aquela apreensão das formas na faculdade de
imaginação nunca pode suceder, sem que a faculdade de juízo reflexiva,
também sem intenção, pelo menos a possa comparar com a sua faculdade
de relacionar intuições com conceitos. Ora, se nesta comparação a
faculdade da imaginação (como faculdade das intuições a priori) é sem
intenção posta de acordo com o entendimento (como faculdade dos
conceitos) mediante uma dada representação e desse modo se desperta um
sentimento de prazer, nesse caso o objeto tem de então ser considerado
com conforme a fins para a faculdade de juízo reflexiva.
Assim, em diferentes contextos, cabe à Sensibilidade ou ser o
fundamento de uma ciência que desempenha uma função decisiva ao
conhecimento a priori de objetos ou ser tomada desde o ponto de vista de
uma “crítica” enquanto uma faculdade pura, que desempenha um papel
preponderante no domínio meramente reflexivo da faculdade de juízo

24.1 DOUTRINA DA SENSIBILIDADE NA CRÍTICA DA


RAZÃO PURA

De acordo com o exposto na Estética transcendental, a


Sensibilidade é nossa “[...] capacidade de receber representações, graças à
maneira como somos afetados pelos objetos” (KANT,1989, p. 61; B33).
É por meio dela que os objetos externos nos são dados e nisso é ressaltada
a importância de nossos sentidos do ver, ouvir, cheirar, tocar e saborear.
Por ser exclusivamente receptiva, ela é a única que pode nos fornecer
intuições. As intuições, que se relacionam com os objetos por meio da
Kant e a revalorização da estética... 299

sensação6 chamam-se intuições empíricas. Ao se separar da intuição


empírica tudo o que pertence à sensação, chega-se então à “[...] intuição
pura e simples, [como a] forma dos fenômenos, que é a única que a
sensibilidade a priori pode fornecer” (Ibidem, p. 63, B 36).
A investigação da Estética transcendental demonstrou que há
apenas duas formas puras da intuição – espaço e tempo – e que elas são
os princípios do conhecimento a priori. Cada uma dessas intuições puras
foi tratada em seção própria, sendo explicada desde dois tipos de
exposição: uma exposição transcendental e uma metafísica, seguida pelas
consequências extraídas dessa argumentação7. A exposição metafísica
demonstrará que tanto o espaço quanto o tempo não são conceitos, mas
antes intuições puras. Todavia essa conclusão por si só ainda não prova
que elas são também a forma pura da nossa intuição. Essa é a tarefa da
exposição transcendental: mostrar que além de intuições puras, o espaço
e o tempo são formas puras da nossa Sensibilidade. Outro fato a
acrescentar é que Kant também identifica espaço e tempo como sendo o
“sentido externo” e o “sentido interno”, respectivamente8.
A exposição metafísica do espaço se dá por meio de quatro
argumentos9 os quais procuram demonstrar que aquele não é um conceito
empírico, nem um conceito discursivo ou universal de relações. Esses
argumentos visam concluir que, nas palavras de Kant (1989, p. 62; B 40),
“[...] a representação originária do espaço é intuição a priori e não
conceito”. A exposição transcendental do espaço possui um único
6 Segundo Kant (1989, p.61; B 34), sensação é a matéria do fenômeno ou “[...] o efeito
de um objeto sobre a capacidade representativa, na medida em que por ele somos
afetados”.
7 Kant (1989, p.64; B38) caracteriza por exposição “[...] a apresentação clara (embora não

pormenorizada) do que pertence a um conceito”. Nesse sentido uma exposição é


“metafísica” quando “contém o que representa o conceito enquanto dado a priori”
(ibidem) e chama-se “transcendental” quando contém a “explicação de um conceito
considerado como um princípio, a partir do qual se pode entender a possibilidade de
outros conhecimentos sintéticos a priori” (Idem, p.66; B40).
8 Afirma (KANT, 1989, p. 64; B 37): “Por intermédio do sentido externo (de uma

propriedade do nosso espírito) temos a representação de objetos como exteriores a nós


e situados todos no espaço. É neste que a sua configuração, grandeza e relação recíproca
são determinadas ou determináveis. O sentido interno, mediante o qual o espírito se intui
a si mesmo ou intui também o seu estado interno, não nos dá, em verdade, nenhuma
intuição da própria alma como um objeto; é todavia uma forma determinada, a única
mediante a qual é possível a intuição do seu estado interno, de tal modo que tudo o que
pertence às determinações internas é representado segundo relações de tempo. O tempo
não pode ser intuído exteriormente, nem o espaço como se fora algo de interior”.
9 Para os argumentos, cf: KANT, 1989, p.63-66; B37-B40.
300 Ressonâncias filosóficas - Artigos

argumento, a que se pode chamar “argumento da geometria”. Ao defender


que a intuição pura do espaço é a base epistêmica da geometria, Kant se
pergunta em que medida é possível existir no espírito uma intuição
externa, situada imediatamente antes dos próprios objetos e que ainda
permita determinar a priori o conceito destes. E responde:
É evidente que só na medida em que se situa simplesmente no
sujeito, como forma do sentido externo em geral, ou seja, enquanto
propriedade formal do sujeito de ser afetado por objetos e, assim, obter
uma representação imediata dos objetos, ou seja, uma intuição (Ibidem, p.
62; B 41).
Assim, a exposição metafísica e transcendental do espaço afirma
sua aprioridade e formalidade. Algumas consequências importantes são
extraídas dessas conclusões: passa a ser impossível admitir qualquer objeto
como sendo uma coisa em si (Dinge an Sich) (ou seja, admitir que tal
objeto seria espacial), pois, se o espaço é uma intuição a priori e também
a forma subjetiva do sentido externo, ele não pode representar qualquer
propriedade de coisas tomadas em si mesmas, já que o espaço não é uma
determinação intrínseca ao objeto, mas antes ao sujeito. Nesse sentido,
toda tentativa de suprimir o sujeito acarreta a abstração das condições
subjetivas necessárias para receber os objetos, sendo nisso abstraída a
própria noção de espaço.
Para Kant (Ibidem, p. 62; B 42), o espaço é a “[...] forma de todos
os fenômenos do sentido externo, isto é, a condição subjetiva da
sensibilidade”, e que possui, realidade empírica e idealidade
transcendental10: sua realidade empírica refere-se a toda experiência
exterior possível, isto é, a validade objetiva do espaço em relação a tudo o
que nos possa ser apresentado exteriormente como objeto; a idealidade
transcendental do espaço, por sua vez, diz respeito ao fato de que o espaço
nada é se abandonarmos a condição de possibilidade de toda a experiência
e o considerarmos com algo que sirva de fundamento das coisas em si.
A neutralização do propósito de conhecimento da coisa em si
(Dinge an Sich) é, portanto, extraída da exposição metafísica e
transcendental do espaço. Ora, se só podemos conhecer os objetos que
nos são dados na sensibilidade, cuja forma (sentido externo) é o espaço,
nada do que possa nos afetar será algo como uma coisa em si, já que esta

10 Para uma exposição detida sobre a importância deste critério estético (realidade
empírica e idealidade transcendental) enquanto elemento de passagem da Estética
transcendental, na Crítica da razão pura, à faculdade de juízo reflexionante estética, na
Crítica da faculdade do juízo, cf: UTTEICH, L. C. 2016, pp. 41-48.
Kant e a revalorização da estética... 301

não é espacial. Dito de outro modo: nada do que é intuído no espaço é ou


pode ser uma coisa em si, pois o espaço, enquanto forma subjetiva como
condição pela qual somos afetados, mostra-se também como sendo a
condição de que apareçam à nossa sensibilidade apenas objetos como
fenômenos. Sendo assim, não podemos conhecer nenhum objeto em si
mesmo, pois o que chamamos de objetos externos são apenas, nas
palavras de Kant (1989, p. 70; B 45), “[...] simples representações da nossa
sensibilidade, cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlato, isto é,
coisa em si, não é nem pode ser conhecida por seu intermédio”.
De modo similar, a exposição metafísica do tempo é dividida por
Kant em cinco argumentos11 que pretendem demonstrar, igualmente, que
o tempo não é um conceito empírico nem discursivo ou universal, mas
sim uma intuição a priori. Se o (3º) argumento da exposição metafísica
enfatiza a necessidade a priori que possibilita os princípios apodíticos das
relações do tempo ou axiomas do tempo em geral, agora na exposição
transcendental do tempo isso é mostrado como sendo o verdadeiramente
transcendental, pois, ele argumenta que esses princípios não podem ser
extraídos da experiência, “[...] porque esta não lhes concederia nem
rigorosa universalidade nem certeza apodítica [antes, eles valem como
regras,] as únicas que em geral possibilitam as experiências e, como tal, nos
instruem antes de tais experiências” (Ibidem, p. 71; B 47)12.
Como consequências dessa argumentação13 temos que, do mesmo
modo, a coisa em si tem de ser considerada como algo atemporal (assim

11 Para os argumentos na íntegra cf: KANT, 1989, p. 70- 72; B46-B49.


12 Nesse 3º argumento Kant acrescenta só que o conceito de mudança e com ele o
conceito de movimento é possível mediante a representação do tempo. Afirma: “[...] se
esta representação não fosse intuição (interna) a priori, nenhum conceito, fosse ele qual
fosse, permitiria tornar inteligível a possibilidade de uma mudança” (KANT, 1989, p.72;
B 48). Assim, a intuição pura do tempo seria, então, condição da representação da
mudança como alteração e do movimento local como mudança de lugar, logo, a condição
para a percepção do movimento em geral. Aqui, Kant apoia sua argumentação a respeito
do caráter intuitivo a priori do tempo na mecânica, assemelhando-se ao que ele
estabeleceu com a geometria, e afirma que “[...] o nosso conceito do tempo explica a
possibilidade de tantos conhecimentos sintéticos a priori quantos o da teoria geral do
movimento” (Idem, p. 72; B 49), já que a intuição do tempo permitiria conceber um
conceito não-contraditório de mudança e de movimento.
13 Bonaccini reitera que “[...] Kant quer dizer que se o tempo está na base do conceito de

movimento como sua condição, então os conhecimentos a priori expostos na mecânica


só poderiam ser explicados com base em sua intuição a priori do tempo, já que o conceito
de mudança contém elementos empíricos; e, portanto, não se pode derivar nenhum
conhecimento a priori a partir do mesmo, mas sim a partir da intuição temporal. As
302 Ressonâncias filosóficas - Artigos

como é não-espacial), pois o tempo também não é “[...] algo que exista em
si ou que seja inerente às coisas como uma determinação objetiva [...] [mas
é apenas] a condição subjetiva indispensável para que tenham lugar em
nós todas as intuições” (KANT, 1989, p. 72, B; 49). O tempo, enquanto a
condição formal a priori de todos os fenômenos em geral, é unicamente a
forma do sentido interno, ou seja, da intuição de nós mesmos e do nosso
interior. Essas consequências culminam na tese do primado da forma pura
do tempo sobre a do espaço.
O espaço, enquanto forma pura de toda a intuição externa, limita-
se simplesmente a fenômenos externos. Porém, ao tempo pertencem, ao
contrário, todas as representações, quer tenham por objetos coisas
exteriores ou não. Assim, afirma Kant (Ibidem, p. 73; B 50):
Como todas as representações, quer tenham ou não por objeto
coisas exteriores, pertencem, em si mesmas, enquanto determinações do
espírito, ao estado interno, que, por sua vez, se subsume na condição
formal da intuição interna e, por conseguinte, no tempo, o tempo constitui
a condição a priori de todos os fenômenos em geral.
E, assim como espaço, o tempo possui idealidade transcendental
e realidade empírica. Quando Kant (Ibidem, p.74; B 51) diz que “[...] o
tempo é, pois, simplesmente, uma condição subjetiva da nossa (humana)
intuição (porque é sempre sensível isto é, na medida em que somos
afetados pelos objetos) e não é nada em si, fora do sujeito”, isso quer dizer
que o tempo tem realidade objetiva em relação aos fenômenos, enquanto
estes são admitidos como objeto de nossos sentidos. Porém, se
abstrairmos de nosso sujeito (ou de nossa sensibilidade) e falarmos em
coisas em geral, então o tempo perde completamente seu caráter objetivo
(referência a objetos possíveis de serem dados no espaço e no tempo, por
meio de nossa sensibilidade, como fenômenos). Nesse sentido, essas
afirmações dizem respeito à realidade empírica do tempo, que é, diz Kant
(Ibidem, p. 74; B 52) “[...] sua validade objetiva em relação a todos os
objetos que possam apresentar-se aos nossos sentidos”, e à sua idealidade
transcendental:
Como nossa intuição é sempre sensível, nunca na experiência nos
pode ser dado um objeto que não se encontre submetido à condição do
tempo. Contrariamente, impugnamos qualquer pretensão do tempo a uma
realidade absoluta, como se esse tempo, sem atender à forma da nossa
intuição sensível, pertencesse pura e simplesmente às coisas, como sua

conclusões, como no caso da intuição espacial, vão reforçar esse caráter intuitivo e formal
que faz do tempo uma condição da percepção” (BONACCINI, 2012, p.106).
Kant e a revalorização da estética... 303

condição ou propriedade. Tais propriedades que pertencem às coisas em


si, nunca nos podem ser dadas através dos sentidos. Nisto consiste, pois,
a idealidade transcendental do tempo, segundo a qual o tempo nada é se
abstrairmos das condições subjetivas da intuição sensível e não pode ser
atribuído aos objetos em si (Idem).
Assim, o espaço e o tempo são duas fontes necessárias do
conhecimento, das quais é possível extrair a priori diversos conhecimentos
sintéticos14. Tomadas em conjunto, são formas puras de toda a intuição
sensível que possibilitam proposições sintéticas a priori. E, por serem
simples condições da sensibilidade, essas fontes de conhecimento a priori
também possuem limites determinados: só tem relação aos objetos
enquanto fenômenos, jamais enquanto às coisas em si mesmas. Assevera
Kant (1989, p. 77; B 56): “[...] só os fenômenos constituem o campo da
sua validade; saindo desse campo já não se pode fazer uso objetivo dessas
fontes”.
O apriorismo e o idealismo das noções de espaço e tempo
reforçam o sentido inequívoco no qual devem ser tomadas as
representações puras espaço-temporais: como princípios a priori da
faculdade da sensibilidade. Kant vincula à fundação desses princípios uma
abordagem teórica que deve aferir a necessária refutação dos exagerados
pressupostos racionalistas, e também manter-se precavido contra outras
asserções dogmáticas e infundadas.

24.2 A CRÍTICA DA FACULDADE DO JUÍZO E O RESGATE DA


SENSIBILIDADE

Na Crítica da faculdade do juízo (1790), Kant apresenta uma


novidade em relação à faculdade de julgar em geral. Nesse contexto, ele
atribui à ela uma dupla caracterização ausente até então: além da dimensão
determinante, também uma reflexionante. Esta é uma nova nuance da
faculdade de julgar transcendental que está para além da apresentada na
Crítica da razão pura. Também interessa observar que nesse novo domínio
(o meramente reflexivo) a faculdade de juízo (Urteilskraft) ocupa um lugar
de destaque entre as demais faculdades – a faculdade da razão teórica, o
entendimento (Verstand), e a faculdade da razão prática (praktische
Vernunft) – como uma faculdade que é mediadora entre essas duas.

14Conhecimentos sintéticos são aqueles cujo predicado ampliam o que se sabe sobre o
sujeito. Cf: KANT, 1989, p.43; B10-11.
304 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Nesse sentido, a terceira Crítica kantiana visa a justificar a


tematização de uma faculdade cuja função é a de arrematar, concluir a
forma de todo o conhecimento, ou seja, ela tem um objetivo sistemático
e, portanto, não se reduz a um tratado sobre o belo15. Kant deixa evidente
esse seu propósito ao intitular o terceiro parágrafo da introdução da
referida obra de “[...] da crítica da faculdade do juízo como meio de ligação
das duas partes da Filosofia num todo” (KANT, 1995, p. 20; XX), ou seja,
da ligação entre Entendimento (conhecimento teórico) e Razão
(conhecimento prático) num todo sistemático. Pode-se por isso dizer que
esse é um dos temas centrais da investigação kantiana na terceira Crítica16.
Para Kant, a filosofia é corretamente dividida em duas partes
completamente diferentes: a parte teórica, como filosofia da natureza e a
parte prática, como filosofia da moral. Porém, entre ambos os domínios –
natureza e liberdade – há ou permanece um “abismo instransponível” que
não permite a passagem de um ao outro. Esta divisão fundamenta-se pelo
fato de existir apenas duas espécies de conceitos que faz com que a
legislação mediante conceitos da natureza seja feita pelo entendimento,
sendo, portanto, teórica enquanto que a legislação mediante o conceito de
liberdade é realizada pela razão, sendo, pois, prática. O domínio da
natureza e o domínio da liberdade possuem, em rigor, duas legislações
diferentes, mas que atuam sobre um e mesmo território da experiência –
a saber, a natureza – sem que seja permitido um domínio interferir no
outro. Mas, visto que o “[…] o conceito de liberdade deve tornar efetivo
no mundo dos sentidos o fim colocado pelas suas leis”, como afirma Kant
(Idem), eles não podem simplesmente coexistir lado a lado de modo
desvinculado. Visando superar esse abismo Kant antevê como necessário
estabelecer uma faculdade que seja o elo intermediário, e faz isso através
da faculdade do juízo na sua função reflexionante. Diz Kant (1995, p. 21;
XXI-XXII):

15 Figueiredo (1999, p.161) comenta a esse respeito que: “[...] embora se possa dizer que
[a Crítica da faculdade do juízo] contenha um [tratado do belo], quero dizer, na parte dedicada
à ‘Analítica do Belo’, Kant sem dúvida, produz aí um verdadeiro tratado do belo, a CFJ
a isso não se reduz”.
16 Segundo Ricardo Terra (1995, p.23), na introdução ao pequeno volume no qual publica

conjuntamente as duas conhecidas “Introduções" à Crítica da faculdade do juízo, três


hipóteses que justificam a necessidade de tal obra podem ser levantadas: 1) a descoberta
da finalidade (em carta a Reinhold, Kant escreve: “Trabalho agora na Crítica do gosto,
por ocasião da qual foi descoberta uma nova espécie de princípio a priori, diferente dos
precedentes”); 2) a emergência de novos temas como o gosto ou o organismo; e 3) a já
comentada tentativa de encontrar uma passagem da razão especulativa para a prática.
Kant e a revalorização da estética... 305

[...] na família das faculdades de conhecimento superiores existe ainda


um termo médio entre o entendimento e a razão. Este é a faculdade do
juízo, da qual se tem razões para supor, segundo a analogia, que também
[ela] poderia precisamente conter em si a priori, se bem que não uma
legislação própria, todavia um princípio próprio para procurar leis; em
todo caso um princípio simplesmente subjetivo, o qual, mesmo que não
lhe convenha um campo de objetos como seu domínio, pode todavia
possuir um território próprio e uma certa característica deste, para o que
precisamente só este princípio poderia ser válido.

Tendo sido já tematizada na primeira Crítica a faculdade de juízo


na sua nuance determinante, Kant agora tem de esclarecer a operação
mediadora reflexionante. Ele então define a faculdade do juízo em geral
como “[...] a faculdade de pensar o particular como contido no universal”
(Ibidem, p. 23; XXVI). Porém, quando este universal está ausente e apenas
o particular for dado, a faculdade do juízo terá que encontrar o universal
ao qual subsumir aquele particular. Ela precisará por isso de um princípio
próprio para procurar leis – razão pela qual a faculdade de juízo
exclusivamente na sua função reflexiva é legisladora a priori; tal é o
princípio da conformidade a fins da natureza, cuja origem é tão somente
a faculdade de juízo reflexiva, pois ela o retira totalmente de si mesma17,
pois, caso assim não fosse, ela não seria reflexiva, porém, determinante;
também não poderia prescrevê-lo à natureza, porque a reflexão sobre as
leis da natureza orienta-se em função de tal princípio.
A ideia do princípio de conformidade a fins da natureza – que serve
somente à faculdade do juízo para refletir e não para determinar – é que
assim como as leis universais têm o seu fundamento no nosso
entendimento, que as prescreve à natureza, as leis empíricas particulares
têm de ser consideradas segundo uma unidade, “[...] como se igualmente

17Sobre essa questão Rego (2005, p.225) complementa que: “[...] o princípio da finalidade
da natureza que não é um entendimento superior mas a hipótese de um entendimento
superior em relação ao qual a natureza é final, é um princípio ‘heautonomo’ da faculdade
do juízo. Isso significa: um princípio que a faculdade do juízo tira de si mesma – heautou –
e confere a si mesma – heauto. Tirar de si memsa, conferir a si mesma, utilizar, admitir,
servir-se, de, pressupor; o ‘como se’ da finalidade diz que a natureza na multiplicidade de
suas formas pode ou bem ser conforme a um entendimento ou bem não o ser; mas diz,
sobretudo, que nós teremos que nos comportar em relação a ela apostando nessa
conformidade se, e somente se, estivermos comprometidos com a tarefa de conhece-la
exaustivamente. O princípio hipotético, heautonomo e subjetivo da finalidade da
natureza é, assim, um pressuposto de cognoscibilidade”.
306 Ressonâncias filosóficas - Artigos

um entendimento as tivesse dado em favor da nossa faculdade de


conhecimento, para tornar possível um sistema de experiência segundo
leis particulares da natureza” (KANT, 1995, p. 24; XXVII). Através deste
princípio, a faculdade de julgar reflexiva confere uma lei apenas a si mesma
e não à natureza, tornando possível refletir sobre os produtos da natureza
no que diz respeito à conexão dos fenômenos nunca acrescentando a eles
algo como uma relação evidente da natureza a fins. Pelo fato da faculdade
reflexionante ser da família das faculdades superiores de conhecimento,
seu princípio próprio precisa ser, do mesmo modo, a priori e
transcendental. Sobre ele Kant (Ibidem, p.28; XXXIV) afirma que:

Não é nem um conceito de natureza, nem de liberdade, porque não


acrescenta nada ao objeto (da natureza), mas representa somente a única
forma segundo a qual nós temos que proceder à reflexão sobre os
objetos da natureza com o objetivo de uma experiência exaustivamente
interconectada; por conseguinte, é um princípio subjetivo (máxima) da
faculdade do juízo.

Como é preciso conceber uma concordância entre a natureza (na


sua multiplicidade de leis particulares) e a nossa necessidade de encontrar
para a ela a universalidade dos princípios que, embora contingente, é
imprescindível para nossas necessidades intelectuais, a faculdade do juízo
reflexiva executa esta tarefa através do seu princípio próprio. Desse modo
é possível afirmar que a natureza especifica suas leis universais segundo o
princípio de conformidade a fins para a nossa faculdade de conhecimento,
ou seja, para a adequação ao nosso entendimento humano na sua
necessária atividade de encontrar o universal para o particular18. Assim,
afirma Kant (1995, p. 29-30; XXXVII)

18A faculdade de juízo reflexiva surge aqui como a reflexão autônoma que apresenta a
colocação da natureza (Entendimento) e da liberdade (Razão) em uma relação harmônica,
realizada a partir de um trabalho complementar que visa fornecer uma lei lá onde as leis
do entendimento (categorias) não alcançam: as tantas formas múltiplas que existem na
natureza também devem poder ser pensadas, ainda que isso não possa ocorrer de modo
objetivo. Essa lei meramente reflexiva diz respeito só à possibilidade de uma natureza em
geral, e não à natureza determinada, tarefa que cabe às as leis dadas a priori pelo
entendimento. Para esse último caso a faculdade de juízo obtém de outro lugar o seu
princípio, a saber, a faculdade de juízo não pode dá-lo para si mesma, já que as categorias
obtidas pelo Entendimento se justificam como as condições universais da experiência do
conhecimento objetivo.
Kant e a revalorização da estética... 307

[...] a faculdade do juízo possui um princípio a priori para a possibilidade


da natureza, mas só do ponto de vista de uma consideração subjetiva de
si própria, pela qual ela prescreve uma lei, não à natureza, mas sim a si
própria para a reflexão sobre aquela.

A este princípio da conformidade a fins está ligado o sentimento


de prazer e desprazer através da realização de uma intenção. Assim, por
exemplo: a produção das leis universais do entendimento (que são ao
mesmo tempo leis da natureza) não pressupõe qualquer intenção das
nossas faculdades de conhecimento, por isso não encontrarmos em nós o
mínimo efeito sobre o sentimento do prazer que resulte do encontro das
percepções com as leis, segundo as categorias, porque nesse caso o
entendimento procede sem intenção e necessariamente em função de sua
natureza. Por outro lado, encontramos um grande prazer quando
descobrimos a possibilidade de ligar duas ou várias leis da natureza
empírica sob um princípio que as unifique. O sentimento de prazer advém
da ocasião da concordância intencional, porém contingente de leis
heterogêneas da natureza com a nossa faculdade de conhecimento através
do princípio próprio da faculdade de juízo reflexionante, ou seja, através
da conformidade a fins.
Este sentimento de prazer é o elemento subjetivo numa
representação, que não pode, de modo algum, ser parte do conhecimento19
e sendo um elemento subjetivo, ou seja, que constitui sua relação
diretamente com o sujeito e não com objeto, é ao mesmo tempo a natureza
estética dessa representação. Ainda que o sentimento de prazer possa ser

19Afirma Kant (1995, p.32-33; XLII-XLIII): “Aquilo que na representação de um objeto


é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com
o objeto, é a natureza estética dessa representação; mas aquilo que nela pode servir ou é
utilizado para a determinação do objeto (para o conhecimento) é sua validade lógica. No
conhecimento de um objeto dos sentidos aparecem ambas as relações. Na representação
sensível das coisas fora de mim a qualidade do espaço, no qual nós as intuímos, é aquilo
que é simplesmente subjetivo na minha representação das mesmas (pelo que permanece
incerto o que eles possam ser como objetos em si), razão pela qual o objeto é também
pensado simplesmente como fenômeno; todavia, e independentemente da sua qualidade
subjetiva, o espaço é uma parte do conhecimento das coisas como fenômenos. A sensação
(neste caso, a externa) exprime precisamente o que é simplesmente subjetivo das nossas
representações das coisas fora de nós, mas no fundo o material <das Materielle> (real) das
mesmas (pelo que algo existente é dado), assim como o espaço, exprime a simples forma
a priori da possibilidade da sua intuição; e não obstante a sensação é também utilizada
para o conhecimento dos objetos fora de nós”.
308 Ressonâncias filosóficas - Artigos

efeito de um conhecimento qualquer, através dele eu nada posso conhecer


do objeto. Por isso, afirma Kant (1995, p.33; XLIII),

[...] a conformidade a fins, que precede o conhecimento de um objeto,


até mesmo sem pretender utilizar a sua representação para um
conhecimento e não obstante estando imediatamente ligada àquela, é o
elemento subjetivo da mesma, não podendo ser uma parte do
conhecimento. Por isso o objeto só pode ser designado conforme a fins,
porque a sua representação está imediatamente ligada ao sentimento do
prazer; e esta representação é ela própria uma representação estética da
conformidade a fins.

Quando à representação de um objeto está ligado o sentimento do


prazer, então este objeto pode ser designado conforme a fins, ou seja, pelo
princípio próprio da faculdade de juízo na sua função reflexiva. Uma vez
que o sentimento do prazer está ligado à simples apreensão da forma de
um objeto da intuição e nele a representação não se liga ao objeto, mas
sim ao sujeito, então o prazer exprime a adequação desse objeto às
faculdades de conhecimento que estão em jogo na faculdade do juízo
reflexiva (Imaginação e Entendimento) e por isso exprime simplesmente
uma finalidade formal e subjetiva do objeto. Assim tem-se um juízo
reflexivo estético, que não se funda em nenhum conceito do objeto e nem
fornece um. Continua Kant (1995, p. 34; XLIV):

Na verdade aquela apreensão das formas na faculdade de imaginação


nunca pode suceder, sem que a faculdade de juízo reflexiva, também sem
intenção, pelo menos a possa comparar com a sua faculdade de
relacionar intuições com conceitos. Ora, se nesta comparação a
faculdade da imaginação (como faculdade das intuições a priori) é sem
intenção posta de acordo com o entendimento (como faculdade dos
conceitos) mediante uma dada representação e desse modo se desperta
um sentimento de prazer, nesse caso o objeto tem de então ser
considerado com conforme a fins para a faculdade de juízo reflexiva.

Na Crítica da faculdade do juízo, quando distingue a atividade


reflexionante estética da teleológica, Kant estabelece a primazia da
primeira em relação à segunda. A dupla dimensão do Juízo reflexionante
é apresentada, assim, em relação à dupla representação do seu princípio
próprio:
Kant e a revalorização da estética... 309

Num objeto dado numa experiência a conformidade a fins pode ser


representada, quer a partir de um princípio simplesmente subjetivo,
como concordância da sua forma com as faculdades de conhecimento
na apreensão (apprehensio) do mesmo, antes de qualquer conceito, para
unir a intuição com conceitos a favor de um conhecimento em geral,
quer a partir de um princípio objetivo, enquanto concordância da sua
forma com a possibilidade da própria coisa, segundo um conceito deste
que antecede e contém o fundamento desta forma (KANT, 1995, p. 36;
XLVIII).

Ou seja, quando um objeto é dado, podemos representar a


conformidade a fins a partir de um princípio subjetivo, assentando-a no
prazer imediato na forma deste objeto, ou seja, na simples reflexão sobre
ela, relacionando-a com as faculdades de conhecimento do sujeito na
apreensão do mesmo. Tal é a característica de um juízo estético. Porém,
se quando um objeto é dado, representamos a conformidade a fins a partir
de um princípio objetivo, concordando a forma do objeto recebido com a
possibilidade da própria coisa, ou seja, relacionando esta forma com um
conhecimento determinado sob um conceito dado, então aí não se trata
de um sentimento de prazer nas coisas, mas de um entendimento no
ajuizamento delas. Isso caracteriza um juízo teleológico. Acrescenta Kant
(1995, p. 37; L):

[...] nosso conceito de uma conformidade a fins subjetiva da natureza,


nas suas formas segundo leis empíricas, [ainda que] não seja [...] um
conceito de objeto, mas [antes] um princípio [...] para arranjarmos
conceitos nesta multiplicidade desmedida (para nos podermos orientar
nela), nós atribuímos todavia à natureza como que uma consideração das
nossas faculdades de conhecimento segundo a analogia de um fim; e
assim nos é possível considerar a beleza da natureza como apresentação
do conceito de finalidade formal (simplesmente subjetiva) e os fins da
natureza como apresentação do conceito da finalidade real (objetiva).
Uma delas nós ajuizamos mediante o gosto (esteticamente, mediante o
sentimento de prazer) e a outra mediante o entendimento e a razão
(logicamente, segundo conceitos).

A representação de um “fim” tomada como mera forma de um


objeto é um fim formal, e remete à faculdade de juízo reflexiva meramente
estética; por sua vez, a representação de um “fim” tomada como “matéria”
do objeto será um fim material, e remete à faculdade de julgar reflexiva
teleológica. Assim, pode-se entender pela faculdade do juízo estético
310 Ressonâncias filosóficas - Artigos

[...] a faculdade de ajuizar a conformidade a fins formal (subjetiva)


mediante o sentimento de prazer ou desprazer [e por faculdade do juízo
teleológico] a faculdade de ajuizar a finalidade real (objetiva) da natureza
mediante o entendimento e a razão (KANT, 1995, p. 37; L).

Esse é o motivo de a Crítica da faculdade do juízo ser dividida em estética e


teleológica. Porém, a parte da crítica que contém a faculdade do juízo
estética é a parte mais essencial, porque, embora o princípio de finalidade
funcione em ambas as dimensões reflexionantes, é na estética que ele atua
com máxima liberdade visto não haver nela parâmetro ou regra alguma à
qual se referir, ao passo que a teleológica se orienta de acordo com
conceitos prévios.

REFERÊNCIAS

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FIGUEIREDO, Virgínia de Araújo. “Duas ou três coisas que sei sobre a


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Kant e a revalorização da estética... 311

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UTTEICH, L. C. “Para una nueva percepción: amplitud sistemática de la


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Maio, 2016, pp. 41-48, 2016.
XXV

LUDWIG FEUERBACH E O PROBLEMA DO FETICHISMO

Péricles Ariza*

RESUMO

O presente trabalho busca resgatar e analisar a teoria ou crítica materialista


da religião de Ludwig Feuerbach. Conhecido por seu ateísmo humanista,
Feuerbach abalou a história da filosofia e da religião ao denunciar em sua
obra A Essência do Cristianismo que o homem não seria a imagem e
semelhança de deus, mas sim o contrário, defendendo a tese de que a
religião, assim como a própria teologia, não passa de uma antropologia.
Entretanto, em Prelações Sobre a Essência da Religião, obra posterior ao
clássico Essência do Cristianismo, Feuerbach apresenta sua autocrítica e
busca complementar e completar sua tese de que a religião e a teologia são,
na verdade, antropologia e fisiologia. É a partir de uma análise
antropológica (do homem) e fisiológica (da natureza) é que Feuerbach
percorrerá o mundo nebuloso da religião e da metafísica até chegar a sua
teoria sobre o fetichismo ou adoração religiosa.

PALAVRAS CHAVES: Religião; Fetichismo; Natureza; Homem.

Ludwig Feuerbach, filósofo alemão do século XIX, não foi apenas


um simples filósofo que teria influenciado pensadores importantes como
Marx e Engels, com suas ideias materialistas, ateístas e humanistas, mas
foi o primeiro filósofo a apresentar um profundo e dedicado estudo sobre
a essência da religião e, portanto do homem, a partir de uma filosofia
materialista (ou filosofia da natureza), se contrapondo as explicações
teológicas e metafísicas. Feuerbach foi, também, o primeiro a desenvolver
o conceito e a teoria sobre o fetichismo, do qual Marx posteriormente se
apropriaria e aplicaria em suas análises e teses sobre a mercadoria, o
capital, a economia política e o estado moderno. Feuerbach, como bem

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; e-mail:


periclesariza@gmail.com
314 Ressonâncias filosóficas - Artigos

descreveram Marx e Engels em A Ideologia Alemã, foi responsável por uma


revolução na história da filosofia, foi ele quem pela primeira vez fez com
que a filosofia descesse "do céu para a terra". Em suas Prelações Sobre a
Essência da Religião, defende Feuerbach:

[...] o homem não deve atribuir sua origem ao céu mas à terra, não a
Deus mas à natureza, que o homem deve iniciar sua vida e seu
pensamento com a natureza, que a natureza não é o efeito de um ser
diverso dela mesma mas sim, como dizem os filósofos, é a causa dela
mesma, que ela não é uma criação, fabricada ou tirada do nada mas sim
autônoma, compreensível por si mesma, só derivável de si mesma, [...]
(FEUERBACH, 1989. p. 148)

As Preleções Sobre a Essência da Religião, compreendem a um trabalho


posterior a uma das obras mais conhecidas e comentadas de Feuerbach.
A Essência do Cristianismo. Nela encontramos uma continuidade e
desenvolvimento da filosofia e da obra de Feuerbach, assim como a
autocrítica do filósofo em relação a sua própria obra anterior A Essência do
Cristianismo em que o mesmo aponta sua falha ter limitado a religião a uma
simples antropologia, como se a religião fosse fruto apenas da pura
subjetividade e fantasia humana alienada, deixando de lado a natureza e a
fisiologia e, com isso, dando ocasião aos mais tolos mal-entendidos1.
Assim sendo, em Preleções sobre a Essência da Religião, Feuerbach compara as
diferenças antropológicas e fisiológicas entre o cristianismo e as chamadas
religiões pagãs. Porém, busca acima de tudo encontrar a semelhança entre
as mesmas, tanto cristã como das demais religiões pagãs, chegando à
conclusão que o fetichismo, que se resume de maneira simples na adoração
e mistificação religiosa, onde os seres endeusados não humanos adquirem
caraterísticas humanas. Ou seja, na religião ou fetichismo os objetos tanto da
natureza como produzidos pela mão humana ou por sua fantasia e
pensamento, ganham formas humanas e ânimo humano, vida humana,
personificam-se, adquirindo vontade própria, razão própria e consciência
própria. Neste sentido, o que Feuerbach pretende com suas Preleções Sobre
a Essência da Religião é reforçar sua tese, já apresentada em A Essência do
Cristianismo, de que não foi Deus quem criou o homem conforme sua
imagem e semelhança, mas foi o homem quem criou Deus a sua imagem
e semelhança. “Todo Deus é uma entidade da imaginação, uma imagem,

1 É possível que Feuerbach, ao fazer sua autocrítica acerca de A Essência do Cristianismo


esteja buscando dirigi-la a Marx e Engels, os quais eram seus principais críticos e leitores.
Mas, isto é apenas uma hipótese.
Ludwig Feuerbach... 315

e na verdade uma imagem do homem, mas uma imagem que o homem


coloca fora de si e concebe como um ser independente"2 defendeu
Feuerbach. Porém, agora, em A Essência da Religião, Feuerbach procura
preencher a lacuna deixada em a Essência do Cristianismo, destacando a
importância e influência da Natureza sobre o homem para que este
pudesse chegar a sua criação e ideia de Deus.
Em A Essência do Cristianismo, o herege filósofo alemão apresenta
Deus a partir de suas características morais, chegando à conclusão de que,
enquanto ser moral, Deus nada mais é que a essência espiritual do homem
divinizada e objetivada e que a teologia, por fim, não passaria de uma
antropologia. Em sua a Essência da Religião, entretanto, Feuerbach retoma
esta tese e ainda acrescenta: a teologia é uma antropologia e, também, uma
fisiologia. “Minha doutrina ou ponto de vista - escreve Feuerbach em suas
prelações - se resume então em duas palavras: natureza e homem"3. Ou
seja, Feuerbach defende a tese de que nem a natureza, nem o homem
possui um criador, consciente de sua criação, mas que a natureza é a mãe
cega e não consciente do homem e sua consciência ou inteligência só é
possível ou concebível através do homem. Ainda sobre esta questão e sua
filosofia da natureza e do homem, destaca Feuerbach:

O ser que para mim pressupõe o homem, o ser que é causa ou


fundamento do homem, a quem ele deve seu aparecimento e existência,
não é para mim Deus - uma palavra mística indefinida e ambígua - mas
a natureza - uma coisa e uma palavra clara, sensível, indubitável. Mas o
ser no qual a natureza se torna pessoal, consciente e inteligente é para
mim o homem (FEUERBACH, 1989, p. 27).

Como podemos notar, em suas Prelações Sobre a Essência da Religião,


Feuerbach combate a tese teológica da existência de uma “consciência” e
"inteligência" não humana e não natural, no qual teria não apenas o
controle sobre o homem e a natureza, mas seria, também, a causa e origem
dos mesmos. Combate também a ideia de que um "espírito absoluto" ou
o “espírito” seja causa da matéria ou dos entes materiais, tampouco, neste
sentido, gênese ou causa do homem e da natureza.
De mais a mais, Feuerbach irá desenvolver a tese de que o
sentimento de dependência e admiração do homem em relação à natureza,

2 FEUERBACH, Ludwig. Preleções Sobre a Essência da Religião. Vigésima Preleção.


Campinas, SP: Papirus, 1989.
3 Idem. p.27
316 Ressonâncias filosóficas - Artigos

assim como o medo e a natureza egoísta do homem4, seus desejos e


necessidades, entre eles o desejo pela vida e pela felicidade, juntamente
com sua imaginação e sua fantasia, fazem parte do que Feuerbach
considera ser a essência e causa originária da adoração religiosa do homem
por Deus, ou seja, pela natureza e por si mesmo. Assim descreve
Feuerbach sobre este fenômeno o qual o filósofo classifica e define como
fetichismo:

Todo o objeto não só pode, mas também é realmente adorado pelo


homem como Deus ou, o que dá na mesma, de maneira religiosa. Este
estágio é o chamado fetichismo, quando o homem transforma em seus
deuses, sem qualquer crítica ou distinção, todos os objetos e coisas
possíveis, sejam eles artificiais ou naturais, produtos da natureza ou do
homem (FEUERBACH Ludwig, 1989. p. 151).

Feuerbach procura mostrar que o fetichismo e, portanto, a adoração


ou idolatria religiosa, se dá através da relação sensível do homem com
objetos ou imagens da natureza, com objetos e imagens externas ao
homem, naturais ou artificiais, produzidas pela mão humana e que de
alguma maneira passam a governar e a submeter os próprios homens,
exercendo um poder despótico e absoluto sobre os mesmos, limitando
suas ações, sua liberdade e sua razão. As imagens ou objetos da natureza,
naturais ou artificiais, relacionam-se ou acabam por interferir de alguma
maneira com o sentimento de medo, de necessidade, do desejo de
felicidade, assim como outros desejos e, também, da infinita e ilimitada
imaginação ou fantasia do homem, ou seja, com a mente e psique humana.
Não é à toa que Rubens Alvez irá considerar Feuerbach o precursor da
psicanálise5.
Ao destacar, ainda que de maneira tímida e rápida, que todos os
objetos, produtos da natureza ou do homem, transformam-se em seus
deuses, Feuerbach entregaria a Marx uma das mais importantes
contribuições teóricas para a crítica filosófica e para a elaboração de uma

4 É preciso destacar que quando Feurbach se refere a natureza egoísta do homem, refere-
se ao instinto de auto-preservação da vida e, portanto, não se refere ao egoísmo no
sentido vulgar.
5 Rubens Alves assim descreve em sua apresentação da obra Prelações sobre a essência da

religião de Feuerbach, da editora Papirus, 1989: "O fogo do pensamento de Feuerbach,


precursor da psicanálise, está na sua afirmação de que todo o nosso pensamento sobre
Deus é pensamento sobre nós mesmos. A religião é o espelho dos homens." (ALVES,
Rubens. 1989, p.8)
Ludwig Feuerbach... 317

nova e verdadeira “filosofia do futuro”. Mas, o problema do fetichismo


apresentado por Feuerbach em suas preleções, assim como por Marx em
o Capital, com sua análise sobre o fetichismo da mercadoria e do dinheiro,
faz com que novos problemas apareçam e, ainda, demanda explicações e
esclarecimentos. Como por exemplo: De que modo seria possível, então,
um processo de "desfetichização" humana? Por onde começar? Quais os
meios possíveis para tal empreitada? Esta foi outra crítica de Marx e
Engels dirigida à Feuerbach e inspirada na própria filosofia da práxis de
Feuerbach, pois: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diversas maneiras, o que importa agora é transformá-lo!”6.
O problema do fetichismo apresentado por Feuerbach em sua
Essência da Religião contribuiu para que Marx pudesse compreender o
fenômeno e o caráter fetichista da mercadoria, do dinheiro e da economia
política moderna, assim como o capitalismo enquanto não apenas um
modo de produção e regime político-econômico mas, também, enquanto
uma religião. Aliás, uma religião que se tornou, no curso da história, mais
poderosa que o próprio cristianismo ou qualquer outra religião, reinando
de maneira soberana e absoluta sobre a humanidade e a sociedade.

REFERÊNCIAS

Primárias

FEUERBACH, Ludwing. Preleções sobre a essência da Religião. Campinas,


SP: Papirus, 1989.

_______. Essência do cristianismo. Campinas, SP: Papirus, 1988.

_______. Princípios da Filosofia do Futuro. LusoSofia: press. Covilhã, 2008.

_______. Teses provisórias para a reforma da filosofia. LusoSofia: press.


Covilhã, 2008.

6 Teses sobre Feuerbach – Karl Marx (1845).


318 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Secundárias

CHAGAS, Eduardo Ferreira. Homem e Natureza em Ludwig Feuerbach. Série


Filosofia 8. Eduardo Chagas, Deyve Redyson e Marcio Gimenes de
Paula [organizadores]. – Fortaleza: Edições UFC, 2009.

CHAGAS, Eduardo Ferreira. Natureza e Liberdade em Feuerbach e Marx. –


Campinas, SP: Editora Phi, 2016.

HAHN, Paulo. Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig


Feuerbach. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis,


RJ : Vozes : Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco,
2008.

_______. Filosofia da História. Brasília: Editora Universidade de Brasília,


2008.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Materia, Forma e Poder de um Estado


Eclesiástico e Civil. Editora Nova Cultural: - São Paulo, 2004.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de


produção do capital; - São Paulo: Boitempo, 2013.

_______. O Capital: crítica da economia política: Livro II: o processo de


circulação do capital; - São Paulo: Boitempo, 2014.

_______. A Ideologia Alemã. Editora: Civilização Brasileira. Rio de


Janeiro. 2007.

_______. Teses sobre Feuerbach. Editora: Civilização Brasileira. Rio de


Janeiro. 2007.

_______. A sagrada família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

_______. A questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

_______. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo Editorial,


2013.
Ludwig Feuerbach... 319

REDYSON Deyve. Ludwig Feuerbach: filosofia, religião e natureza. Deyve


Redyson, Eduardo F. Chagas (organizadores) – São Leopoldo, RS:
Nova Harmonia, 2011.

SCHUTZ, Rosalvo. Religião e Capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach


e Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

_______. Feuerbach e Marx: duas críticas a partir de um mesmo horizonte.


Ágora Filosófica, Ano 1, No1, jan-jun/2001.

SERRÃO, Adriana Veríssimo. A humanidade da Razão: Ludwig Feuerbach e


o projeto de uma Antropologia Integral. Braga: Fundação Galouste
Gulbenkian, 1999.
XXVI

MESTRE ECKHART E A CONCEPÇÃO DE DEUS

Diogo Massochin*

RESUMO

Ao contrário do que se costumou convencionar, a Idade Média foi um


fecundo período à Filosofia. Embora quase sempre enclausurada aos
mosteiros sob a égide da Igreja Católica, muitos pensadores conseguiram
desenvolver seus trabalhos, especialmente num campo metafísico,
buscando, muitas vezes, a comprovação da existência de Deus. Um desses
pensadores foi Mestre Eckhart. Para ele, há “alguma coisa na alma”, que
ele nominará este “algo” de centelha. Essa “centelha da alma” é o que
possibilita o homem apreender Deus, unindo-se a ele – com a alma voltada
ao exterior, o homem trabalha o seu corpo no espaço, e quando o homem
volta a alma para o seu interior, ele atinge “o fundo incriado no qual Deus
penetra e habita em sentido próprio”. Para tanto, o intelecto deve retornar
para a sua essência; mas ao fazer esse retorno, encontra-se Deus através
de um contraponto: não se vê Deus senão pela cegueira; não se conhece
Deus senão pelo não-conhecimento. A “centelha da alma” é essa
contraposição dialética, perfeitamente conforme as ideias da mística.

PALAVRAS-CHAVE: Mestre Eckhart; Centelha da alma; Deus.

Eckhart de Hochheim nasceu em 1260, na Turíngia, Alemanha.


Frade dominicano, foi discípulo de Alberto Magno e também aluno de
João Duns Scotus, formando-se em teologia em Paris em 1293. Após a
formação, retornou para a Alemanha, ocupando vários cargos da ordem
dominicana, como os de vigário da Turíngia e superior em Erfurt, em
1294. Foi nomeado duas vezes professor em Paris, em 1302 e 1311,
comparando-se assim a Tomás de Aquino, que fora até então o único
professor nomeado duas vezes para tão honroso posto. É durante a sua
passagem por Paris como professor que Eckhart recebeu a alcunha de

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; e-mail:


tapiocadesalsicha@yahoo.com.br
322 Ressonâncias filosóficas - Artigos

“mestre” (meister, magister), ficando assim conhecido até os dias atuais.


Após a passagem pela França, voltou para a Alemanha, com passagens por
Estrasburgo e Colônia. Foi nessa época que Mestre Eckhart pronunciou
grande parte dos seus sermões, a maioria feito em visitas a conventos de
monjas ou ao povo simples; boa parte deles em alto-alemão médio, idioma
no qual também redigiu algumas de suas obras. Por desavenças com o
arcebispo de Colônia por causa de suas doutrinas, foi julgado pela
inquisição, falecendo de causas naturais, entretanto, antes de sua
condenação pelo papa João XXII, em Avignon, em 1327.
Em sua vida, Mestre Eckhart foi influenciado pela escolástica,
embora tenha caminhado profundamente pelos caminhos místicos da
doutrina cristã. Essa “dualidade” característica de seu pensamento
contribuiu para que ele tivesse dois públicos em suas pregações: o povo
simples, de um lado, e os teólogos, de outro. Mestre Eckhart foi professor
de teologia em grandes instituições e por outro lado nunca esqueceu de
levar a palavra de Deus aos mais humildes. Vale ressaltar que o fazia em
língua vernácula: o alto-alemão médio, contribuindo assim para a difusão
do idioma e sua afirmação, uma vez que uma parte de suas obras também
fora escrito em alto-alemão médio1.
Entretanto, embora comumente caracterizado como um mero
místico, Mestre Eckhart foi muito mais do que isso. Deve-se compreender
que a mística faz parte de sua doutrina – mas ela não anula as suas bases
intelectuais. E o fato de Mestre Eckhart ter transitado ora pela academia,
ora entre o povo simples, não o caracteriza como um ser ambíguo,
contraditório; apenas corrobora a tese de que ele utilizava todo o seu
conhecimento teórico não apenas em prol de si mesmo – a sua grandeza
intelectual, por exemplo –, mas em vista das pessoas simples, que muitas
vezes sequer tinham acesso à palavra de Deus. Ao mesclar a mística com
a teologia, Mestre Eckhart muitas vezes não foi compreendido como
deveria, sendo alvo de preconceitos ou mesmo de intolerância – e também
alvo da própria inquisição2.

1Para a biografia de Mestre Eckhart cf. DE BONI, L. A. Filosofia medieval: textos.


Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 295 e MESTRE ECKHART. O livro da divina
consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 24-6.
2 Para uma melhor compreensão do papel intelectual de Mestre Eckhart, cf.

GUERIZOLI, R. Mestre Eckhart: misticismo ou "aristotelismo ético"?. Cadernos de


Filosofia Alemã, v. 11, p. 57-81, 2008.
Mestre Eckhart e a concepção de Deus... 323

Assim, para adentrarmos no pensamento de Mestre Eckhart


precisamos compreender o que é a mística cristã: desse modo, faremos a
seguir uma breve introdução sobre ela.
Mística é um adjetivo proveniente da palavra mistério, do grego
mystikós. Esse mistério possui uma dimensão cósmica, ordenando tudo
para culminar na trindade – Cristo, Espírito Santo e Pai. Nesse
entendimento, as realidades profanas e sagradas tornam-se mistérios na
medida em que demonstram o plano superior (plano divino ou o próprio
mistério da crença) em que estão inseridas. Sendo isso a mística, o místico
é a pessoa que consegue perceber essas relações no cotidiano humano,
esse fio condutor divino que tudo ordena.
Toda mística possui uma questão fundamental: a unidade do
mundo com Deus. Essa questão nos transporta à uma outra: a dualidade
das relações (Deus-criação; eu-mundo; etc.). Esses dois temas não são
desconexos, pelo contrário: para os místicos, a unidade é a unidade da
multiplicidade. Desse modo, a questão que se propõe é: como chegar à
unidade do múltiplo com o uno? Há duas vertentes: I) a mística do
desnudamento do mundo, onde o espírito penetra de tal maneira no Uno
que “se unifica (fica uno) com Ele”; II) a mística da inserção do mundo,
onde, ao se buscar Deus, o próprio mundo se sacramentaliza como lugar
de sua presença. Com essas duas possibilidades, de imergir em Deus e de
imergir no mundo, vem a questão “como viver Deus no mundo e o
mundo em Deus? ”, advindo desse teorema a dialética como mediadora
da expressão da “unidade na diversidade e da diversidade na unidade”.
Toda mística vive da experiência imediata da unidade, buscando
sempre um conhecimento sem qualquer mediação. Sem essa mediação,
empenha-se em alcançar a unidade de tudo com o Uno, e “só se sente um
com o Uno quem tem acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno
não são absolutamente, de forma total e simples duas realidades”. Essa
seria a unidade dialética da mística. Assim, o místico intenciona a unidade
do todo; entretanto, essa unidade não é uma parte, mas o próprio todo,
em sua experiência mística. Por exemplo: o místico não nega o mundo
(pois isso é impossível), mas também não o percebe de dentro do próprio
mundo; para o místico, essa percepção dá-se a partir de Deus e para Deus.
Assim, a unidade (mundo) está no todo (Deus)3.
Toda essa mística, juntamente com as bases teológicas,
fundamentava o pensamento do Mestre turíngio. Devemos lembrar,
outrossim, o contexto de vida de Mestre Eckhart: o período do final do
3 Para parágrafos síntese sobre a mística, cf. MESTRE ECKHART, Ibid., p. 14-22.
324 Ressonâncias filosóficas - Artigos

século XIII e início do século XIV é conhecido como o outono da Idade


Média4, dados os acontecimentos do período: o grande cisma do ocidente,
com o papado mudando para Avignon; terremotos que assolaram a
Europa; a peste negra, dizimando populações inteiras; entre outros. Nesse
cenário de completa desolação sustenta-se como teoria o nominalismo;
teoria esta que afirma que as palavras são apenas palavras – flatus vocis.
Além disso, a incipiente mudança que o mercantilismo trazia começava a
transformar o modo de vida das pessoas, fazendo com que o antigo
mundo feudal aos poucos fosse se degenerando. É nesse conturbado
contexto que Mestre Eckhart desenvolve com maestria e desembaraço
suas teorias, míticas e teólogas.
Mestre Eckhart trata de “alguma coisa na alma”, que ele nominará
este “algo” de centelha. Essa “centelha da alma” é o que possibilita o
homem apreender Deus, unindo-se a ele – com a alma voltada ao exterior,
o homem trabalha o seu corpo no espaço, o quando o homem volta a alma
para o seu interior, ele atinge “o fundo incriado no qual Deus penetra e
habita em sentido próprio”5. Para tanto, o intelecto deve retornar para a
sua essência; mas ao fazer esse retorno, encontra-se Deus através de um
contraponto: não se vê Deus senão pela cegueira; não se conhece Deus
senão pelo não-conhecimento. A “centelha da alma” é essa contraposição
dialética, perfeitamente conforme as ideias da mística. Um outro exemplo
é a questão do nascimento, também tratada por Mestre Eckhart: o Natal
seria um “nascimento eterno”, não um simples acontecimento parado no
tempo. Para o Mestre, o nascimento do Filho só importaria no momento
em que esse nascimento acontece em mim, e esse nascimento, engendrado
por Deus, acontece no interior de nossa alma: “no momento de entrada
do Pai no fundo da alma, o homem é receptivo; ele escuta e nada tem a
falar; ele recebe e não age”6.
Mas quem seria esse Deus para Mestre Eckhart? Ele fundamenta
a sua existência não no ser, mas no Verbo – Deus e o ser devem ser
idênticos; se são idênticos, nada há se Deus não é. Assim, “Deus deve
existir porque a existência pertence a sua essência”7. E toda a existência,
que fora criada por Deus no início dos tempos, permanece sempre nova,
4 Cf. a obra homônima do historiador holandês, Johan Huizinga.
5 SANTOS, B. S. O Gottesgeburtszyklus de Meister Eckhart: a mística fundamental do
“nascimento de Deus na alma” (sermões 101 a 104). Mirabilia, v. 14, jan-jun 2012 p.
128.
6 SANTOS, ibid., p. 132.
7 BOEHER, P., GILSON, E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau

de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 525.


Mestre Eckhart e a concepção de Deus... 325

porque ela sempre está no começo – sempre nasce e sempre vem a ser, e
assim sempre será. Assim, se sempre será, estabelece-se uma dependência
do ser criado com o criador. Há, assim, um ponto de contato entre ambos8.
Mestre Eckhart ainda caracteriza Deus como o próprio intelecto e
assim o fundamento de seu próprio ser. Mas Deus não é ser, porque se o
fosse, na visão de Mestre Eckhart, ele seria confundido com a própria
criação. Não havendo o ser em Deus, Eckhart declara haver uma total
dependência da criação para com o criador. Há uma completa distinção,
entre as criaturas finitas e o ser criador9.
Há ainda a questão da Trindade no pensamento de Mestre Eckhart
– vamos a um breve comentário sobre o tema. Como se passaria do Uno
para o múltiplo? Para o Mestre, todos os filhos são gerados na geração do
Filho de Deus, Jesus: “no processo de geração do Filho, sua imagem
absoluta, o Pai gera igualmente todos os demais seres”10. Ao sermos
gerados juntamente com o Filho de Deus, Jesus, eternamente não
constituímos em realidades diferentes. Somos eternos ao voltarmo-nos
para Deus; podemos, também, voltarmo-nos para o mundo – logo, temos
duas faces possíveis. Na Trindade – ou Unitrindade, como nomeia Mestre
Eckhart –, tudo é Deus, apesar da distinção de pessoas: Pai e Filho são
eternos, ligados pelo Espírito Santo: o múltiplo continua no Uno11.
Destarte, conclui-se que o pensamento de Mestre Eckhart centra-
se na ideia do nascimento de Deus na alma. Dar-se-ia assim o despertar da
fé no fiel: devendo ser inteligível a este. E, ao nascer Deus na alma, prova-
se que Deus nos ama – mas este amor, por parte dos homens, deve ser
desinteressado; uma vez que os que amam desinteressadamente
comungam santamente com o próprio Deus12. Vale relembrar aqui o que
foi dito acima: o amor desinteressado gera o amor mais puro! Essa dialética
é o sentido da fé cristã que podemos atribuir a Mestre Eckhart: Deus, em
sua perfeição total, não precisa nos provar nada; ao agirmos cegamente,
veremos Deus de forma melhor; ao amar desinteressadamente,
receberemos todo o seu amor; ao contemplarmos a sua grandeza em
silêncio, pronunciaremos as mais altas odes em seu louvor – em resumo:
a alma, a “centelha da alma”, e como imergi-la no amor de Deus é o ponto
8 Idem., p. 526.
9 RASCHIETTI, M. Meister Eckhart e o Paradisus anime intelligentis. Mirabilia, v. 12,
jan-jun 2011, p. 83-8.
10 MESTRE ECKHART, ibid., p. 34.
11 MESTRE ECKHART, ibid., p. 33-5.
12 FISCHER, N. Fé e razão: sua relação em Agostinho, Mestre Eckhart e Emanuel Kant.

Síntese – revista de filosofia, v. 40, n. 128, 2013, p. 360-7.


326 Ressonâncias filosóficas - Artigos

central do pensamento de Mestre Eckhart. Cabe orientar o espirito para a


interioridade, fazendo com que se alcance a graça divina de modo mais
sublime.
Por fim, Mestre Eckhart nos diz que devemos buscar Deus em
todos os afazeres do mundo; fazendo uma busca que deixe Deus ser Deus.
Por isso a importância da “centelha da alma”: Deus é Deus em tudo, mas
nós só conseguimos apreendê-lo de fato em nosso mais recôndito interior.
Em um exemplo, Mestre Eckhart nos diz que devemos ser como o fogo
do fogão: o fogo é sempre o mesmo; são os alimentos que cozinham, ou
a água que ferve, porque eles exigem diferentes graus de calor13. Busca-se
Deus assim: não se transformando envaidecidamente para facilmente
tentar recebe-lo, isso é desnecessário – Deus está em tudo: nós é que
devermos ser quem de fato somos. Nas palavras do Mestre: deve-se viver
de maneira desprendida e livre.

REFERÊNCIAS

BOEHER, P., GILSON, E. História da filosofia cristã: desde as origens até


Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1982.

DE BONI, L. A. Filosofia medieval: textos. Porto Alegre: EDIPUCRS,


2000.

FISCHER, N. Fé e razão: sua relação em Agostinho, Mestre Eckhart e


Emanuel Kant. Síntese – revista de filosofia, v. 40, n. 128, p. 349-382, 2013.

GUERIZOLI, R. Mestre Eckhart: misticismo ou "aristotelismo ético"?.


Cadernos de Filosofia Alemã, v. 11, p. 57-81, 2008.

MESTRE ECKHART. O livro da divina consolação e outros textos seletos.


Petrópolis: Vozes, 1991.

RASCHIETTI, M. Milenarista ao avesso, místico “em termos”: o caso


de Meister Eckhart. Griot, v. 6, p. 41-62, 2012.

RASCHIETTI, M. Meister Eckhart e o Paradisus anime intelligentis.


Mirabilia, v. 12, p. 74-90, jan-jun 2011.

13 MESTRE ECKHART, ibid., p. 37-43.


Mestre Eckhart e a concepção de Deus... 327

SANTOS, B. S. O Gottesgeburtszyklus de Meister Eckhart: a mística


fundamental do “nascimento de Deus na alma” (sermões 101 a 104).
Mirabilia, v. 14, p. 124-133, jan-jun 2012.
XXVII

NOTA SOBRE OS CONCEITOS ESCOLÁSTICO E CÓSMICO


DE FILOSOFIA EM KANT

Vanessa Brun Bicalho*

RESUMO

Não é novidade que a doutrina de Kant, especialmente na Crítica da Razão


Pura, procura estabelecer um fundamento a priori da faculdade da razão
pura especulativa (Vernunft) para justificar, com isso, um sistema completo
da filosofia. Contudo, seu pensamento não esteve completamente
afastado da vida, do mundo e do homem. Ao afirmar, na Lógica, que o
filósofo é um legislador, significa que sua filosofia visa, sobretudo, o
mundo empírico e não tende aos céus e à divindade. Kant foi um homem
do seu tempo e, em vista disso, não deixou de pensar e tematizar, em
paralelo com a visão sistemática, um panorama do universo em seu
conjunto pela possibilidade da sabedoria do mundo como totalidade. Esse
é o pensamento escolástico e cósmico da filosofia em Kant, tema deste
trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Razão Pura; Sistema transcendental;


Escolástico; Cósmico.

27.1 A IDEIA DA FILOSOFIA: UMA FUNÇÃO


ARQUITETÔNICA

A simetria da filosofia de Kant está assentada na complexa ideia


de arquitetônica, esse pensamento foi milimetricamente elaborado, com a
finalidade de mapear a faculdade da razão e, assim, delimitar seu espaço,
determinar suas condições, estabelecer suas possibilidades, suas regras de
auto-constituição, seus direitos e limites. Um tal mapa da razão, pensado
sob o aparato arquitetônico representa o “conjunto de todo o
conhecimento da razão pura e especulativa” a partir da ideia de um
“edifício da razão” (CRP, B735).
* UNIOESTE; e-mail: vanessabicalho@gmail.com
330 Ressonâncias filosóficas - Artigos

O objetivo de Kant é preciso, porém, rigoroso: elaborar uma


ciência da razão a partir da organização de um conjunto de todos os
conhecimentos possíveis a ela. Sob esta tarefa, têm-se o pensamento de
sistema, que contém em si, a totalidade dos conhecimentos diversos da
razão, articulados e organizados numa ideia de unidade. Essa ideia de
unidade converte, segundo os fins essenciais da razão (Vernunft), todo o
agregado de conhecimentos em ciência, e é a isso que Kant denomina de
arquitetônica. Cada sistema (teórico, prático) está “em si articulado
segundo uma ideia (de fim/de totalidade), mas além disso encontram-se
todos harmoniosamente unidos entre si, como membros de um mesmo
todo, num sistema de conhecimento humano e permitem uma
arquitetônica de todo o saber humano” (CRP, B863). Essa cientificidade
da razão sob o pensamento da filosofia exige uma equivalência entre o
pensamento de sistema e a ideia de arquitetônica, Pires (2014, p.59) afirma
que a sistematicidade é, em Kant, a marca da racionalidade, enquanto que
a arquitetônica expressa a sistematicidade a partir dos fins essenciais à essa
racionalidade.

27.2 O CARÁTER ESCOLÁSTICO E CÓSMICO DE FILOSOFIA

Kant denomina de filosofia o sistema de todo o conhecimento da


razão, ele é, portanto, a ideia de uma ciência possível, mas que se mostra
inviável in concreto1. Este ideal de um sistema completo de conhecimento o
qual pretende a razão é pensado segundo uma concepção escolástica
(Schulbegriff) de filosofia, embora dirá Kant haver um outro conceito, mais

1 “Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender a


matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quando ao que respeita à
razão, apenas se pode, no máximo aprender a filosofar. O sistema de todo o conhecimento
filosófico é então a filosofia. Deve-se toma-la objetivamente, se entendermos por isso o
arquétipo de apreciação de todas as tentativas de filosofar, apreciação essa que deve servir
para julgar toda a filosofia subjetiva, cujo edifício muitas vezes é tão diverso e tão mutável.
Desta maneira, a filosofia é uma simples ideia de uma ciência possível, que em parte
alguma é dada in concreto, mas de que procuramos aproximar-nos por diferentes caminhos,
até que se tenha descoberto o único atalho que aí conduz, obstruído pela sensibilidade, e
se consiga, tanto quanto ao homem é permitido, tornar a cópia, até agora falhada,
semelhante ao modelo. Até então não se pode aprender nenhuma filosofia; pois onde
está ela? Quem a possui? Por que caracteres se pode conhecer? Pode-se apenas aprender
a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão na aplicação dos seus princípios gerais em
certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem
de procurar esses próprios princípios nas suas fontes e confirma-los ou rejeitá-los. ”
(CRP, B866).
Nota sobre os conceitos escolástico e cósmico... 331

conveniente ao seu propósito, denominado de filosofia mundana


(Weltbegriff)2, ou como refere-se Kant, na Crítica da Razão Pura (1781/7),
conceito cósmico (conceptus cosmicus) (CRP, B866) de filosofia.
O conceito escolástico manifesta uma filosofia enquanto sistema,
tem como fim a unidade da ciência e é articulado segundo a perfeição
lógica do conhecimento. Mas é segundo o conceito cósmico que podemos
pensar a unidade da filosofia como a ciência da “relação de todo o
conhecimento aos fins essências da razão humana (Teleologia rationis
humanae)” (CRP, B867). Contudo, estes fins essenciais da razão não
representam a unidade sistemática perfeita da razão e, por isso, não são,
ainda, o fim último (Endzweck). Este ocupa-se com “o destino total do
homem e a filosofia desse destino chama-se moral” (CRP, B868), ao
alcançar esse fim, o filósofo será o legislador da razão humana. Essa
destinação do homem à moral é elevada, na Crítica da Razão Prática (1790),
ao conceito de liberdade quando transformado no primado da razão da
prática e fim último da toda a razão (Vernunft).
Assim, o ideal de filosofia em Kant não deve ser pensado como
sistema, isto é, como a escolástica o fez, mas deve ser admitido
arquitetonicamente e, em consequência, considerado “em conformidade
como o conceito cósmico de filosofia. Com a primazia da moral [como
fim último] poderíamos falar em uma ‘arquitetônica da liberdade’”
(TERRA, 2012, p.750).
Para compreender o pensamento de uma arquitetônica da
liberdade é preciso retomar à ideia de fins essenciais da razão, os quais são
possíveis, unicamente, mediante um conhecimento racional por simples
conceitos e, por isso, são aquilo que chamamos de metafísica, isto é, todo
o conhecimento filosófico derivado da razão pura3.

2 Kant refere-se ao conceito de mundo, na Crítica da Razão Pura, como a “soma total de
todas as aparências” (CRP, B535).
3 Kant denomina de metafísica “toda a filosofia pura, compreendendo a crítica, para

abranger tanto a investigação de tudo o que alguma vez pode ser conhecido a priori, como
também a exposição de que constitui um sistema de conhecimentos filosóficos puros
dessa espécie, mas que se distingue de todo o uso empírico como também do uso
matemático da razão” (CRP, B869).
332 Ressonâncias filosóficas - Artigos

27.3 OS DOIS OBJETOS DA FILOSOFIA

Segundo Kant, a filosofia tem dois objetos: Natureza e Liberdade.


A legislação da razão humana compreende em si a lei natural e a lei moral,
a primeira dirige-se a tudo que é, e a segunda refere-se a tudo que deve ser. E,
assim, como a filosofia têm somente dois objetos só pode haver, portanto,
uma metafísica da natureza e uma metafísica da liberdade. A primeira deve
estar voltada a princípios da razão teórica (Verstand) e relaciona-se com
tudo aquilo que diz respeito ao conhecimento de todas as coisas enquanto
fenômenos. A segunda determina a partir de princípios práticos da razão
(Vernunft) a lei moral, é a ideia de liberdade como a única derivada
inteiramente por princípios e se reporta a tudo aquilo que diz respeito a
ao pensamento do incondicionado e da coisa em si.
Estas duas Metafísicas da razão não devem, jamais, se misturar, é
necessário que cada uma seja preservada no seu domínio e origem sem
nunca querer determinar, segundo os seus princípios, os princípios do
domínio oposto. É, portanto, imprescindível “isolar os [seus]
conhecimentos que, pela sua espécie e origem, são distintos de outros
conhecimentos e impedi-los cuidadosamente de se misturar e confundir
com outros” (CRP, B870) estes diferentes conhecimentos encontram-se
ordinariamente ligados segundo a ideia íntegra de totalidade.
A exigência de uma dupla metafísica tem como função principal
ilhar a razão nos seus diferentes usos e atributos, mas pensá-los como
partes distintas de uma mesma razão, arquitetonicamente pensada
segundo um fim. A metafísica deve servir, além da mera especulação, para
prevenir a razão de erros e nunca para ampliar o conhecimento. Essa
função negativa “não prejudica em nada seu valor, antes lhe dá mais
dignidade e consideração [...] e impede os seus trabalhos ousados e
fecundos de se desviarem do fim principal, a felicidade universal” (CRP,
B879), a saber, o sumo bem.
Esse propósito último da razão diz respeito a três ideias: a
liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus. Estes
se mantêm sempre transcendentes para a razão especulativa, “são esforços
completamente ociosos e além disso extraordinariamente difíceis da nossa
razão” (CRP, B828). São conceitos que, embora sejam completamente
impossíveis de serem tematizados, desde a dimensão da razão teórica do
conhecimento, mostram-se, contudo, completamente significativas desde
que demonstradas pelo único domínio capaz de suportar seu peso, isto é,
o domínio da razão prática e da moralidade. Se “prático é tudo aquilo que
Nota sobre os conceitos escolástico e cósmico... 333

é possível pela liberdade” (CRP, B828) e a liberdade “constitui a pedra


angular de todo o edifício do sistema da razão pura” (CRPr, A4) então,
será sob este domínio que a razão poderá atingir seu fim último.

27.4 AS QUATRO QUESTÕES PRIMORDIAIS SEGUNDO OS


CONCEITOS ESCOLÁSTICO E CÓSMICO DE FILOSOFIA

Todo interesse da faculdade pura da razão converge, segundo


Kant, a três questões basilar da filosofia, estas interrogações permitem
unificar os interesses da razão pura no alcance dos fins supremos. São,
pois, as célebres questões: “Que posso (Kann) saber?”; “Que devo (Soel)
fazer?”; e “Que me é permitido (Darf) esperar?”4 (CRP, B833).
A primeira questão é teórica, diz respeito à esfera da ciência e da
natureza fenomênica; a segunda questão é prática, refere-se ao domínio da
moralidade e do incondicionado; e a terceira trata-se de uma díade, é ao
mesmo tempo teórica e prática, isto é, está conectada com a esperança e
interesse da razão pela dignidade à felicidade.
Para explicar a conexão ente teórico e prático, no que se refere à
terceira questão da razão, Kant desenvolverá a noção de um ideal do sumo
bem (Summum bonum) que conecta Deus e Imortalidade da Alma a partir
do interesse da razão pela ideia de fim e totalidade5.

4 É importante ressaltar que as três questões são tematizadas, exclusivamente, por Kant,
nos seguintes textos: A questão “Que posso saber?” aparece na Crítica da Razão Pura (1781),
Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza (1786) e Crítica da Faculdade do Juízo
(1790). Textos os quais aborda a possibilidade de conhecimento dos organismos e que,
de maneira breve, implica uma finalidade (THOUARD, 2004, p.105). Já a questão sobre
“Que devo fazer?” é desenvolvida na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica
da Razão Prática (1788), Metafísica dos Costumes – Doutrina do Direito e da Virtude
(1796/1797), e a Paz Perpétua (1795) (THOUARD, 2004, p.106). Enquanto que a terceira
questão “Que me é permitido esperar?” é trabalhada na Crítica da Razão Prática (1788), Crítica
da Faculdade do Juízo (1790), Religião nos Limites da Simples Razão (1793), e O Fim de Todas as
Coisas (1794). Nos quais se apresenta a relação do sujeito e, ao mesmo tempo, as
expectativas que ele pode nutrir (THOUARD, 2004, p.106).
5 O sumo bem como o fim total de toda a razão só é possível pela ligação sintética e a

priori entre Virtude e Felicidade. A ligação entre Virtude e Felicidade na efetivação do


sumo bem, não pode ser analítica, a virtude não deve, jamais e de modo algum, derivar
da felicidade empiricamente condicionada. Esta relação da virtude com a felicidade, diz
respeito, estritamente, à felicidade enquanto aquela “dignidade de ser feliz”, a única
possível pela lei moral. Neste contexto, afirma Kant, “a felicidade e a moralidade são dois
elementos do soberano bem específica e totalmente diferentes e que, por conseguinte, a
sua conexão não pode ser conhecida analiticamente (...) mas é uma síntese dos conceitos
(...). É a priori (moralmente) necessário produzir o soberano bem pela liberdade da
334 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Estas três questões estão, necessariamente, vinculadas ao


conteúdo da Dialética Transcendental, da Crítica da Razão Pura, na medida
em que estão relacionados com a teologia racional (conceito de Deus),
responsabilizada pela questão “Que posso saber?”; a cosmologia (conceito
de Liberdade) que resolve a questão “Que devo fazer?”; e a psicologia
racional (conceito de Alma) que responde a questão “Que me é permitido
esperar?”. Contudo, Kant parece dar um novo direcionamento à estas
questões quando afirma, na Carta à Stäudlin (1793), haver uma quarta, e
não menos importante, questão sobre o fim último do interesse da razão,
na filosofia:

O plano que fiz há muito tempo para o trabalho que quero empreender
no campo da filosofia pura se direcionava à solução dos três problemas:
1) o que posso (kann) saber? (Metafísica) 2) o que devo (soll) fazer?
(Moral) 3) o que me é permitido (darf) esperar? (Religião); questões às
quais deve seguir por último a quarta: o que é o homem? (Antropologia)”
(Briefwechsel, AA11:429).

A quarta questão “O que é o homem?”6 aborda o solo


antropológico, não trata-se de uma questão crítica, como se vê nas três
primeiras, mas representa uma questão de ordem pragmática, remete-se
aquilo que faz homem um ser livre, isto é, não compete, por meio desta
quarta questão, saber o que a natureza fez do homem, mas sim, sobre que
o homem faz, deve e pode fazer de si mesmo.
Contudo, é na Lógica (1800) que Kant parece admitir a vantagem
da quarta questão em relação às três primeiras: “à primeira questão
responde à Metafísica; à segunda, a Moral; à terceira, a Religião; e à quarta,
a Antropologia. Mas no fundo, poderíamos atribuir todas essas à
Antropologia, porque as três primeiras remetem-se à última” (Lógica,
AK25).
Essas questões cruciais do interesse da razão, segundo Kant, têm
ainda maior importância quando vinculadas aos conceitos escolástico e
cósmico de filosofia. O que parece é que podemos relacionar as questões

vontade; e a condição da possibilidade do bem supremo deve, pois, fundar-se em


princípios a priori do conhecimento” (CRPr, A203). Virtude e Felicidade são, portanto,
dois conceitos completamente opostos que precisam ser somadas, de modo a priori e
sinteticamente, para a promoção do sumo bem.
6 A questão “o que é o homem?” é ocupada, por Kant, nos textos: Antropologia de um Ponto

de Vista Pragmático (1798), e Crítica da Faculdade de Juízo – sentimento estético (1790). Obras
que resumem o sujeito e sua relação com o mundo (THOUARD, 2004, p.106).
Nota sobre os conceitos escolástico e cósmico... 335

“que posso saber?”, “que devo fazer?” e “que me é permitido esperar?” à


noção escolástica, já que se manifestam como questões inerentes ao fim
da razão e seu interesse pela ideia de sistema. Enquanto que a questão “o
que é o homem?” atrela-se ao conceito mundano, na medida em que se
relaciona com o fim último e o destino total do homem.
É na Lógica que, mais uma vez, Kant declara seu prestígio pela
noção mundana, quando a caracteriza como a “ciência da máxima
suprema do uso de nossa razão”, isto é, uma “ciência da relação de todo
conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana,
ao qual, enquanto fim supremo, todos os outros fins estão subordinados”
(Lógica, AK24).
Essa compreensão da questão “o que é o homem?” e sua relação
com a noção mundana na filosofia expressa o real e verdadeiro fim último
para o qual visa todo o interesse da razão. Interpretação esta que nos
permite repensar as bases do idealismo transcendental kantiano à medida
que parece colocar o desfecho da filosofia sob um solo antropológico e
não somente crítico.

REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Lógica. Tradução: Guido de Almeida. Rio de Janeiro:


Tempo brasileira, 1992.

_____. Briefwechsel. In: Kants gesammelte Schriften, hrsg. von der Deuschen
Akademie der Wissenschaften, Bde. X-XIII. Berlin und Leipzig: de
Gruyter. 1928. Tradução de Arnulf Zweig. New York: Cambridge
University Press, 1999.

_____. Crítica da Razão Prática. Tradução: Artur Morão. 9ª Edição.


Lisboa: Edições Setenta, 2008.

_____. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e


Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2010.

PIRES, Marcio. O método da razão pura em Kant: o filosofar como


exercício arquitetônico. In: Studia Kantiana. n.17, dez.2014. p.51-73.

TERRA, Ricardo. A arquitetônica da razão pura. In: Comentários às obras


de Kant. (Org.) KLEIN, Joel Thiago. Florianópolis: NEFIPO, 2012.
336 Ressonâncias filosóficas - Artigos

THOUARD, Denis. Kant. Trad.: Tessa Moura Lacerda. São Paulo:


Estação Liberdade, 2004.
XXVIII

O BOM SELVAGEM E O CIDADÃO CIVILIZADO


CORROMPIDO:
noções de uma teoria de J-J. Rousseau

Whesley Fagliari dos Santos*


José Dias**

RESUMO

Jean-Jacques Rousseau, filósofo nascido em Genebra, no ano de 1712,


dedicou-se a defender a sua teoria do bom selvagem e do mal
proporcionado pela sociedade civilizada. Para isso, ele pensou uma origem
hipotética tanto de uma humanidade primitiva quanto para uma sociedade
que, segundo sua compreensão, é corrompida. Elaborou, dessa maneira, o
conceito de estado de natureza e o de estado civil: dois ambientes onde o
homem se desenvolve ora como selvagem, como primitivo, como animal,
ora como cidadão, instruído, civilizado. O presente trabalho tem por
objetivo apresentar uma noção acerca da divisão hipotética que Jean-
Jacques Rousseau faz entre o homem da natureza e o cidadão na
sociedade, pontualmente na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. Além disso, analisar e questionar os aspectos
mais importantes dos momentos e movimentos de desenvolvimento
apresentados pelo referido Autor.

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE),


Campus Toledo, Área de Concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na
Linha de Pesquisa “Ética e Filosofia Política”, e-mail: whesleyfagliari@gmail.com.
** Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em

Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela


Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito
Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma,
Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da
UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura
em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.
E-mail: jfad_br@hotmail.com; Lattes: lattes.cnpq.br/9950007997056231
338 Ressonâncias filosóficas - Artigos

PALAVRAS-CHAVE: Estado de Natureza; Bom Selvagem; Estado


Civil; Desigualdade.

INTRODUÇÃO

Jean-Jacques Rousseau, filósofo nascido em Genebra, no ano de


1712, dedicou-se a defender a sua teoria do bom selvagem e do mal
proporcionado pela sociedade civilizada. Para isso, ele pensou uma origem
hipotética tanto de uma humanidade primitiva quanto para uma sociedade
que, segundo sua compreensão, é corrompida. Elaborou, dessa maneira, o
conceito de estado de natureza e o de estado civil: dois ambientes onde o
homem se desenvolve ora como selvagem, como primitivo, como animal,
ora como cidadão, instruído, civilizado.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma noção acerca
da divisão hipotética que Jean-Jacques Rousseau faz entre o homem da
natureza e o cidadão na sociedade, pontualmente na obra Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755)1. Além disso,
analisar e questionar os aspectos mais importantes dos momentos e
movimentos de desenvolvimento apresentados pelo referido Autor.
Dessa maneira, será construído um panorama básico para
compreender as condições existentes em cada um dos cenários propostos
pelo filósofo genebrino – a saber, a natureza e a sociedade civil – onde e
como ocorre a transição de uma condição à outra. Quais as principais
características de cada um dos referidos cenários e recorrer ao
distanciamento efetivo e permanente entre o homem natural e o cidadão
pensado, investigado e descrito por Rousseau. Ainda que muitas
características do primeiro estejam presentes no segundo, não é o mesmo
sujeito.
O homem civilizado fora corrompido pela sociedade em que vive
e a qual ele próprio integra. Um indivíduo que carrega em si, agora vivendo
e convivendo em sociedade, características intrínsecas ao seu estado
natural. Na sociedade, o cidadão passa a ser uma fração do todo. Uma vez
inserido na sociedade ou estado civil aquele sujeito se depara com a
desigualdade presente nesse meio.
Qual é a origem da desigualdade social de acordo com o
pensamento rousseauniano? Por que o homem, ao se inserir no estado
civil se corrompe, se antes, no estado de natureza, não era assim? E, ainda,

1A partir desse ponto, a referida obra de Rousseau será chamada nesse estudo apenas
como segundo discurso.
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 339

será que o bom selvagem já não traz em si um embrião de corrupção que,


no estado civil, somente vai eclodir e se desenvolver? Mas a questão mais
importante e que conduzirá a possíveis respostas das perguntas anteriores:
se a característica do homem selvagem é a bondade, de que maneira a
sociedade o corrompe?

28.1 O ESTADO DE NATUREZA E O BOM SELVAGEM

Já no prefácio da obra aqui estudada, há uma questão introduzida


por Rousseau que é inquietante e determinante para o entendimento de
toda a pesquisa que direcionou a elaboração e escrita do seu texto e que
conduziu a reflexão do genebrino: “[...] como conhecer a fonte da
desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles
mesmos?” (ROUSSEAU, 2005, p. 43)
Na primeira parte, do segundo discurso, há um evidente empenho de
Rousseau em construir uma cadência de argumentação que procura
demonstrar como o homem se situava na natureza, as características desse
ambiente e de que maneira se efetivava a existência e permanência
humanas. Desde aspectos físicos até comportamentais, o filósofo instaura
uma especulação bastante consistente acerca da vida, das necessidades e
das atitudes dos homens em estado primitivo de vivência na natureza:

[...] tal como deve ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos
forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto,
organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais. Vejo-o
fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho,
encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto
e, assim, satisfazendo a todas as suas necessidades (ROUSSEAU, 2005,
p. 58).

Importante salientar neste momento que, desde o início de sua


construção teórica acerca do homem como um ser integrante da natureza
em sua condição primitiva, Rousseau parece já perceber uma determinada
vantagem humana em relação aos outros animais. Essa vantagem vai ser
aprimorada e desenvolvida ao longo de muito tempo de evolução, mas já
está presente na natureza e já garante ao homem – além do instinto
comum aos outros animais – a sobrevivência, tanto se defendendo dos
perigos que o próprio ambiente oferece quanto garantindo alimentação e
abrigo.
340 Ressonâncias filosóficas - Artigos

É preciso tomar um grande cuidado para não se equivocar e


considerar que o que o filósofo genebrino está defendendo é uma
referência ao pensamento elaborado, depurado, desenvolvido. Pelo
contrário, o que ele afirma – de maneira perturbadora – e isso não é negar
a capacidade racional com a qual o homem é equipado, é o seguinte: “Se
ela (natureza) nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o
estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que
medita é um animal depravado” (ROUSSEAU, 2005, p. 61).
Rousseau leva a comparação entre humanos e as outras espécies
de animais a um ponto impossível de ser ignorado: os instintos que guiarão
as ações dos animais permanentemente. Em contraponto, está presente,
no homem, a liberdade – característica peculiar que define, explica e
responsabiliza as atitudes humanas e que o genebrino aqui estudado
considera como o primeiro de todos os bens:

Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza


conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até
certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as
mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer
sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa
as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro,
por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da
regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o
homem, em seu prejuízo, frequentemente se afasta dela (ROUSSEAU,
2005, p. 64).

Mas a liberdade – ainda que extremamente importante e


determinante nas ações humanas mesmo no estado de natureza – é
associada, segundo o entendimento de Rousseau, a outra característica
particular da humanidade e que não pode ser desprezada justamente por
seu teor definitivo e sua importância. A faculdade de aperfeiçoamento, a
perfectibilidade:

[...] discussão sobre diferença entre o homem e o animal, haveria uma


outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual
não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade
que, com o auxilio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas
as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo
(ROUSSEAU, 2005, p. 64-65).
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 341

Quando o assunto é alimentação e a maneira como o homem


selvagem é constituído fisicamente para o consumo de alimento, Rousseau
apresenta na Nota2 (e), uma descrição fisiológica, recorrendo à anatomia de
muitos animais, comparada com a do próprio homem, para estabelecer as
condições que a natureza proporcionou para a sobrevivência humana:

Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies


vorazes baseiam-se uma na forma dos dentes e a outra da conformação
dos intestinos. Os animais que só vivem de vegetais têm todos os dentes
chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes, ao
contrário, os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa.
Quanto aos intestinos, os frugívoros possuem-nos de certa espécie,
como o cólon, que não se encontra entre os vorazes. Parece, pois, que o
homem, tendo os dentes e os intestinos como os dos animais frugívoros,
deveria ser incluído nessa classe; não somente as observações anatômicas
confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade depõem
ainda mais favoravelmente. “Dicearco”, diz São Jerônimo, “conta, nos
seus livros de antigüidades gregas, que, sob o reino de Saturno, no qual
a terra ainda era fértil por si mesma, nenhum homem comia carne e
todos viviam dos frutos e dos legumes que cresciam naturalmente.” (Liv.
II, adv. Jovinian.) Essa opinião pode ainda basear-se nos relatos de
inúmeros viajantes modernos; François Correau afirma, entre outros,
que a maioria dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis
transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e outros lugares,
morreram por terem comido carne. Pode-se ver, por aí, que deixo de
lado muitas vantagens que poderia salientar. Porquanto, sendo a presa
quase que o único motivo de luta entre os animais carniceiros e vivendo
os frugívoros entre si numa paz contínua, se a espécie humana fosse
deste último gênero, sem dúvida houvera muito maior facilidade para
subsistir no estado de natureza e muito menos necessidade e ocasiões
para dele sair (ROUSSEAU, 2005, p. 123).

Dentre muitas outras necessidades naturais que o homem tinha,


uma delas era a existência, a permanência da espécie. Procriava sem a
menor ligação com a fêmea com quem acasalou. Nem, tampouco, com o
filho gerado dessa conjunção carnal efêmera. Segundo Rousseau (2005, p.
88), um “animal ligado apenas às sensações puras”. E só por elas limitado.

2 As “notas” são explicações complementares que Rousseau entendeu compor melhor o


texto se apresentadas ao final, como anexo. Textos tão interessantes e esclarecedores
quanto o próprio discurso.
342 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Somente depois, os perigos naturais como, por exemplo: os predadores,


que forçaram o homem a utilizar de seu corpo para sobreviver – agilidade
para subir em árvores, a utilização de galhos e pedras como armas etc.
Há uma desigualdade natural, Rousseau não a nega, muito
diferente da desigualdade social3. O filósofo de Genebra admite dois tipos
de desigualdade entre os homens: a natural (ou física) e a política (ou
moral). A desigualdade natural é estabelecida pela natureza e se refere, por
exemplo, à diferença de idade, de saúde, das forças do corpo etc.
Elencando e explicando as principais características do estado de natureza,
defende claramente que no ambiente natural o homem é bom porque todo
o seu entorno proporciona isso. Não há motivos e nem circunstâncias no
estado natural que promovam uma maldade ou uma atmosfera propícia
ao mal ou à corrupção. Tanto as características do homem natural, o bom
selvagem, quanto o ambiente em que este vive promovem uma vida
amena, equilibrada e saudável:

De acordo com a interpretação comum do seu pensamento nesta


matéria, Rousseau está sustentando que os homens nascem, se não
exatamente virtuosos (pois isso envolve o conhecimento do bem e a
vontade consciente de o praticar), pelo menos predispostos à VIRTUDE
– benignos, afetuosos e ternos em seus sentimentos e disposições inatos,
naturalmente inclinados para tratar com magnanimidade e carinho todos
aqueles com quem se relacionam. Agressividade, malícia, rancor,
despeito e inveja são estranhos ao coração humano imaculado que sai
das mãos do seu Criador (DENT, 1996, p. 48).

Na segunda parte do seu segundo discurso, o filósofo de Genebra


traça uma linha conceitual da derrocada humana. Não é um caminho
cronológico, pois Rousseau não apresenta data ou, sequer, épocas
históricas; é uma trilha de transição, ou seja, de como teria sido o
desenvolvimento humano partindo do estado de natureza em direção à
sociedade organizada e civilizada. Muitos séculos adiante das situações
relatadas até aqui, o homem, já tem instrumentos mais elaborados. Mas o
genebrino não especifica quantos séculos demoraram exatamente para
esse desenvolvimento acontecer.
A desigualdade entre os homens na natureza é menor e diferente
do que a desigualdade instituída na sociedade civil:

3Neste momento não serão aprofundados os apontamentos sobre a desigualdade social


porque esta será abordada com mais cuidado e demora no tópico seguinte.
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 343

[...] compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para homem


ser menor no estado de natureza do que no estado de sociedade e quanto
aumenta a desigualdade natural na espécie humana por causa da
desigualdade de instituição (ROUSSEAU, 2005, p. 82).

A condução do segundo discurso, a partir do ponto seguinte, orienta


o leitor a pensar as diversas ocasiões que levaram o homem a elaborar
mecanismos para promover uma gradual transição entre natureza e
sociedade – sem que tivesse pensado sobre isso ou, como queira,
premeditado alguma dessas condições:

Depois de ter provado ser a desigualdade apenas perceptível no estado


de natureza, e ser nele quase nula sua influência, resta-me ainda mostrar
sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do
espírito humano. Depois de ter mostrado que a perfectibilidade, as virtudes
sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera
potencialmente jamais poderão desenvolver-se por si próprias, pois para
isso necessitam do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas, que
nunca poderiam surgir e sem as quais ele teria permanecido eternamente
em sua condição primitiva, resta-me considerar e aproximar os vários
acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana, deteriorando a espécie,
tornar mau um ser ao transformá-lo em ser social e, partindo de tão
longe, trazer enfim o homem e o mundo ao ponto em que o conhecemos
(ROUSSEAU, 2005, p. 83-84).

28.2 O ESTADO CIVIL E O CIDADÃO CORROMPIDO

Faz-se necessário, para iniciar este ponto, elucidar, responder a


seguinte pergunta: Mas, afinal, qual o início da desigualdade, de acordo com o
pensamento de Rousseau? Pontualmente, especificamente, com a instituição
da propriedade privada, com a instalação do limite que ele considera uma
espécie de a primeira cerca sem oposição de ninguém:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo


cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras,
assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele
que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus
semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a
ninguém” (ROUSSEAU, 2005, p. 87).
344 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Percebeu o homem, por causa das práticas e observações ditas


anteriormente, que era um animal superior aos demais de outras espécies.
Por comparação consigo mesmo entendeu que os outros seres humanos
eram semelhantes a ele. A partir daí houve uma regra de conduta
estabelecida mais pelo instinto de sobrevivência do que pela razão. Os
homens começaram a fazer associações livres, mas sem nenhum
compromisso entre si. Exemplo: capturar uma caça para alimentarem-se
mutuamente.
Algumas gritarias e gesticulações eram a linguagem utilizada. Não
havia necessidade de linguagem elaborada. O próprio Rousseau admite ser
difícil definir como a linguagem fora desenvolvida. Em seguida, a
população humana aumentou e vieram as “invenções”: a rede e o anzol
para pescar, arcos e flechas para caçar e, a utilização do fogo para cozinhar
a carne que, até então, era comida crua. Isso tudo provocou a construção
de relações:

Essa adequação reiterada dos vários seres a si mesmos e de uns a outros


levou, naturalmente, o espírito do homem a perceber certas relações.
Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte,
rápido, lento, medroso, ousado e outras ideias semelhantes, comparadas
ao azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-
lhe uma certa espécie de reflexão, ou melhor, uma prudência maquinal,
que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança
(ROUSSEAU, 2005, p. 87).

Cabanas foram construídas. O genebrino chama a construção de


um abrigo artificial – que mais tarde será denominada de casa – de “[...]
uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção
das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade da qual nasceram
talvez brigas e combates” (ROUSSEAU, 2005, p. 90). Dela resulta a
configuração daquela união que outrora será chamada “família”. Os
indivíduos mais fortes construíram suas casas. Os mais fracos os imitaram.
Seria a casa então, uma espécie de primeira propriedade.
Convivendo na mesma casa, o que se seguiu foi a definição de uma
estrutura familiar e o estabelecimento dos laços afetivos provenientes da
convivência. Em outras palavras, os sentimentos humanos surgiram
somente a partir da propriedade privada estabelecida. Os sentimentos são
resultantes da convivência já em propriedade privada. Rousseau determina
que fora a partir dessa instituição que se domestica as relações e se definem
as funções de cada gênero dentro do núcleo familiar. Esse fato teve como
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 345

consequências a efetivação da instituição familiar – que é uma célula social


no interior da sociedade – e a diferença de gêneros determinada: homens
e mulheres passaram a ter funções e tarefas diferentes dentro da família.
Sendo assim, “[...] as mulheres tornaram-se mais sedentárias e
acostumaram-se a tomar conta da cabana e dos filhos, enquanto os
homens iam procurar a subsistência comum” (ROUSSEAU, 2005, p. 91).
Esses processos todos de domesticação do homem o
enfraqueceram. De acordo com o filósofo de Genebra,

Os dois sexos começaram, assim, por uma via um pouco mais suave, a
perder alguma coisa de sua ferocidade e de seu vigor. Mas, se cada um
em separado tornou-se menos capaz de combater as bestas selvagens,
em compensação foi mais fácil reunirem-se para resistirem em comum
(ROUSSEAU, 2005, p. 91).

A sociedade teria surgido, iniciado, segundo o filósofo de Genebra,


em ilhas, pois essas favoreceram a aglomeração e a convivência de grupos
menores que, por conta dessa convivência, tiveram que desenvolver
idiomas. Na tentativa, mais tarde, de navegação, esses homens
disseminaram a palavra. A linguagem se desenvolveu a partir de tentativas
de navegação e, consequentemente, do contato com outras pessoas, de
outros lugares que, cada qual a seu tempo, desenvolvia sua própria
estrutura linguística, o idioma.
A convivência doméstica, a formação de “abrigos”, de cabanas, de
casas próximas umas das outras permitiu ao homem a comparação entre
si. Sentimentos ruins surgiram, se estabeleceram e cresceram. Esse foi o
primeiro passo em direção à desigualdade efetiva. Surgem, em seguida,
vinganças e punições entre os homens:

Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado,


passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou
dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais
eloqüente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo
tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras
preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro,
a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos
germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência
(ROUSSEAU, 2005, p. 92).

Há, assim, uma questão de moralidade na convivência social.


Rousseau estabelece nesse ponto a distinção entre os tipos de selvagens:
346 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Primeiro, os primitivos, selvagens bons que conservaram as qualidades do


estado de natureza. Segundo os bárbaros, selvagens que se corromperam
pelos vícios sociais e não conservaram as qualidades do estado de natureza.
Enquanto os homens, mesmo em uma configuração social, mas
ainda rudimentar e parcialmente primitiva, havia – ou mantinham – certo
isolamento existia o “viver bem”. Ao estabelecerem relação de necessidade
entre si acabam por instalar, dessa maneira, a desigualdade, a propriedade
e o trabalho.
Segundo Rousseau, “o ferro e o trigo civilizaram os homens e
perderam o gênero humano” (ROUSSEAU, 2005, p. 94). Isso ocorreu
através da metalurgia (ferro) e da agricultura (trigo). A metalurgia surgiu
da observação das atividades vulcânicas e da extração do minério a partir
daí. Já a agricultura se desenvolve a partir do plantio de poucos legumes
ao redor da cabana, com instrumentos rudimentares, e se expande.
Enquanto cada vez mais homens trabalhavam, menos indivíduos
produziam os alimentos. Dessa maneira, passam então a efetuarem a troca
de ferro por produtos comestíveis. Com o cultivo dos alimentos, o plantio
das terras, se fortalece a noção de propriedade. Posse contínua equivale à
propriedade.
Consequentemente, com o desenvolvimento da propriedade se
estabelece um esboço inicial de justiça. A propriedade deve surgir do
trabalho, da mão-de-obra. Quem cultiva a terra e produz o alimento tem
propriedade sobre o seu produto. Mas, por outro lado, daí surge a falta de
igualdade entre os diversos trabalhadores, o que eles produzem e o que
eles recebem por seus trabalhos:

Mas a proporção, que nada mantinha, logo se rompeu; os mais fortes


realizavam mais trabalho, o mais habilidoso tirava mais partido do seu,
o mais engenhoso encontrava meios para abreviar a faina, o lavrador
sentia mais necessidade de ferro ou o ferreiro mais necessidade de trigo
e, trabalhando igualmente, um ganhava muito enquanto outro tinha
dificuldade de viver (ROUSSEAU, 2005, p. 96).

Em sociedade, vivendo sob o efeito – e o domínio – de paixões e


sentimentos inexistentes no estado de natureza, o homem precisa parecer
diferente do que, de fato, é. Há necessidades que antes não existiam. Passa,
então, a ser escravo e senhor de seus semelhantes. Uns enganam os outros
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 347

por desejarem4 – ainda que secretamente – o que o outro tem.


Ambicionam. Para obterem o que desejam, o que querem, prejudicam-se.
Eis o primeiro efeito da propriedade e da desigualdade entre os homens:

Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na


realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente
diferentes. Dessa distinção resultaram o fausto majestoso, a astúcia
enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo. Por outro lado,
o homem, de livre e independente que antes era, devido a uma multidão
de novas necessidades passou a estar sujeito, por assim dizer, a toda a
natureza e, sobretudo, a seus semelhantes, dos quais num certo sentido
se torna escravo, mesmo quando se torna senhor: rico, tem necessidade
de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a mediocridade não
coloca em situação de viver sem eles (ROUSSEAU, 2005, p. 97).

A desigualdade política, então é estabelecida por uma convenção,


um acordo, um contrato e consentido pelos homens – privilégios de uns
em detrimento e prejuízo de outros, uns mais ricos poderosos e
homenageados do que outros e, ainda, uma relação de submissão de alguns
homens a outros:

A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra;


o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre
seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou às
portas da ruína por não trabalhar senão para a sua vergonha, abusando
das faculdades que o dignificam (ROUSSEAU, 2005, p. 98).

Rousseau percebe, a partir dessa situação impensada


prematuramente e permanente em que o homem construíra, saindo do
estado de natureza e estabelecendo a sociedade civil, a necessidade de
organizar e reger a realidade que se apresenta.
Embora o filósofo genebrino aponte caminhos e já introduza
algumas possíveis soluções para o convívio social na obra aqui investigada,

4 O desejo é extremamente importante no segundo discurso para entender as


transformações do homem proveniente da natureza, agora vivente na sociedade, porque
é o desejo que gera muitos outros sentimentos que contribuirão para a corrupção na
sociedade civil. “A posse não era meramente uma questão de ficar mais bem equipado
para satisfazer a necessidade natural; converteu-se na expressão de poder, superioridade
e distinção pela qual os homens poderiam impor com maior eficácia aquela deferência
que tinham passado a exigir.” (DENT, 1996, p. 108)
348 Ressonâncias filosóficas - Artigos

o presente estudo não abordará tais reflexões rousseauneanas uma vez


alcançado o objetivo inicial que era apresentar noções acerca da teoria do
bom selvagem e do cidadão civilizado corrompido no segundo discurso.
É na obra O Contrato Social (1762) que Jean-Jacques vai aprofundar
a sua teoria política e apresentar suas reflexões acerca da legitimação e
convivência na sociedade civil, defendendo o conceito extremamente
importante para entender a sua obra que é o da vontade geral.

2.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não foi por acaso que a Academia de Dijon, na França, premiou


o texto de Rousseau como o melhor do ano de 1754. Embora o caminho
que este filósofo percorra para conduzir o seu leitor a uma espécie de
genealogia da corrupção humana seja hipotético, não é, de maneira
alguma, distante ou fora da realidade. Ao contrário disso, há uma intrigante
força em seus argumentos. Há uma provocação tão bem estruturada que
o genebrino apresenta seus conceitos implodindo certezas não
fundamentadas.
Se por um lado, o homem no estado de natureza, é dotado de uma
bondade natural, sendo assim, um bom selvagem é esse mesmo homem
que, uma vez civilizado, passa a ser o cidadão corrompido. No estado
natural, de acordo com o filósofo de Genebra, é possível encontrar
características determinantes no homem como, por exemplo, o amor de si
mesmo, ou seja, a vontade, o instinto de conservação de si, o auto-cuidado.
E a piedade, a compaixão, o zelo, o cuidado com o outro.
Na sociedade o cidadão passa a ser uma fração do todo. Uma vez
inserido no estado civil aquele sujeito se depara com a desigualdade
presente nesse meio. Essa desigualdade deve ser combatida. Antes disso,
prevenida. A sociedade que estimula uma corrupção moral inexistente no
estado natural, que permite uma desigualdade expressamente diferente
daquela gerada na natureza por um aspecto de força física. A desigualdade
presente na sociedade é moral e política.
Tanto ao analisar um cenário quanto o outro é possível perceber
que o homem é um animal de potencialidades. Seja por sua racionalidade,
seja por sua perfectibilidade, a humanidade é incompleta – porque sempre
tem coisas novas a aprender e aspectos a desenvolver. E, mais cedo ou
mais tarde, busca por esse desenvolvimento. No estado de natureza o
homem aprendeu a se proteger utilizando instrumentos que ele mesmo
inventou, construindo cabanas ou até mesmo elaborando táticas de caça.
O bom selvagem e o cidadão civilizado... 349

Já no estado civil desenvolveu outras táticas como a acumulação de renda,


a linguagem e até mesmo o estudo, a ciência.
Embora muitos estudiosos do pensamento de Rousseau aleguem
que ele promoveu uma espécie de terceirização da corrupção humana ao
afirmar que na sociedade civil são os outros indivíduos que corrompem o
sujeito, é profundamente tentador pensar pelo viés oposto: também
parece possível extrair do pensamento do filósofo genebrino a
possibilidade de pensar a corrupção como característica de cada sujeito
que estava no estado de natureza e que só não desenvolvera essa maldade
porque não se encontrara em situações que estimulassem – ou que
exigissem – tal característica.
O que parece é que Rousseau pretendia dizer muito mais do que
ele próprio escrevera. Obviamente que pensar os dois cenários hipotéticos
para investigar a gênese da desigualdade foi extremamente profícuo,
genial. Ao descrever cada aspecto humano em cada um dos estados que
ele pensou, provoca a reflexão de cada leitor como uma espécie de
espelho, de auto-reflexo, auto-análise – uma vez que o leitor se coloque na
situação, tendo aquelas mesmas características e passando por cada
episódio dos que Rousseau narra ao longo de seu segundo discurso, tanto
no estado de natureza, quanto no estado civil.
É possível que haja no bom selvagem já uma espécie de gene do
cidadão corrompido esperando, de alguma maneira, para eclodir quando
necessário. Mas é possível afirmar que é preciso lembrar a humanidade
civilizada e corrompida por seus desejos atropelados que, em alguma parte
do ser de cada indivíduo, também exista ainda aquele bom selvagem
ancestral, com seus instintos e características mais genuínas esperando
para ser invocado novamente para, de alguma forma, melhorar um
mundo, um ambiente já tão contaminado e destruído – moralmente,
politicamente – por seus próprios habitantes corruptíveis e corrompidos.
Há muito mais dito do que escrito nos textos rousseauneanos.

REFERÊNCIAS

DENT, N.J.H. Dicionário Rousseau. Trad. Álvaro Cabral. Rio de


Janeiro: Zahar, 1996.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os


fundamentos da desigualdade entre os homens. Volume II. Coleção
Os Pensadores. Trad. De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova
Cultural, 2005.
350 Ressonâncias filosóficas - Artigos

___________ Do Contrato Social. Volume I. Coleção Os Pensadores.


Trad. De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
XXIX

O CORPO NA FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE


MERLEAU-PONTY

Josieli Aparecida Opalchuka*

RESUMO

Merleau-Ponty através de seus escritos permite uma nova concepção


sobre o corpo, e em consequência, do pensamento e do mundo. Em sua
obra Fenomenologia da Percepção, o autor discute com Descartes, rompendo
com a dualidade corpo/pensamento. A partir da fenomenologia, se
propõe uma volta ao mundo, ou às coisas fáticas, já que este é pré-existente
e o homem é lançado e ancorado nele através da corporeidade e também
da subjetividade. O corpo (Leib) é, neste contexto, sujeito da percepção,
desta forma, a percepção não é atributo do pensamento, mas sim do
corpo, e se dá através da relação homem-mundo. Com esta nova
concepção, para compreender a totalidade do homem enquanto ser-no-
mundo, há a necessidade de elucidar sua relação com este, juntamente com
o espaço, tempo e linguagem, posto que neste momento, não há uma
hierarquia do pensamento em relação ao corpo.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo; Pensamento; Fenomenologia;

A questão da corporeidade durante muito tempo foi, em certa


medida, negligenciada pela tradição filósofica, desde que se assumiu, em
Descartes, a dualidade pensamento (consciência) e corpo. Em Descartes,
o homem é um Res Cogitans (coisa pensante) e isso o define
essencialmente, já o corpo é a matéria na qual a coisa pensante está situada.
Ou seja, o homem habita, ou tem seu corpo. A discussão sobre o corpo
volta à tona com a fenomenologia, tempos após a esse princípio
cartesiano, tentando compreender ontologicamente este fenômeno.
Grandes pensadores como Sartre, Gabriel Marcel, Merleau-Ponty e Freud
se debruçaram sobre este tema, superando o dualismo através da
percepção de que somos o corpo integralmente, e, por conseguinte,
* Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: josi.aop@gmail.com
352 Ressonâncias filosóficas - Artigos

consciência de ser corpo. Nos reteremos mais especificamente sobre a


concepção de Merleau-Ponty a respeito do tema supracitado.
Para contextualizar melhor esta discussão, partiremos da premissa
de Descartes que afirma “eu sou, logo existo”. As implicações dessa
afirmação dizem respeito à permanência do “eu” fora da dinâmica do
existir, porque o eu cartesiano é substancial. O “eu” não emerge do corpo,
pois, sua existência não depende deste para existir. O autor propõe, em
sua filosofia, três tipos de substância: o pensamento, a extensão e a divina.
Com isso, dá origem a famosa dualidade entre corpo e mente, porque
pensa essas noções como substanciais, existentes por si mesmas (como
aquilo que subjaz o existir). “O que sou eu então? Sou uma coisa que
pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe
, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que
sente” (DESCARTES, 2009, p. 163). Percebemos aqui, que para o autor,
existe algo anterior à existência, na medida em que, primeiro há o eu penso,
depois o existo. O pensamento, para Descartes é uma manifestação do
espírito, que já é anterior à dinâmica do existir. É o pensamento que ganha
diversas formas, as quais são atribuídas por ele próprio. O pensamento
seria então uma “coisa que pensa” e só conseguimos o diferenciar pelo
uso da razão. Nas palavras de Descartes:

Noto que o pensamento é um atributo que me pertence: só ele não pode


ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isso é certo, mas por quanto
tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois talvez poderia
ocorrer que, se eu cessasse de pensar, cessaria ao mesmo tempo de ser
ou de existir (DESCARTES, 2009, p. 162).

Quando o filósofo afirma que o pensamento não pode ser


separado do eu, significa dizer que não há existência sem o atributo do
pensamento.
Há, portanto, uma supremacia do pensamento em relação ao
corpo, esse se caracteriza por ser apenas extensão, algo ao qual a mente
está situada, ou seja, é posterior ao acontecimento do pensamento.
Descartes ainda trata do corpo enquanto corpo-objeto, concepção essa
oriunda da ideia mecanicista, já que o corpo obedece às leis naturais, de
maneira autônoma, sem que, para isso, haja uma intervenção da alma.
Como o corpo não pensa, cabe à razão equilibrar as paixões deste. Desta
forma, embora diferentes, corpo e alma são comunicáveis e esta ligação é
atribuída à res divina, à saber, Deus.
O corpo na fenomenologia... 353

Em sua obra Fenomenologia da Percepção, Ponty critica essa visão


mecanicista, e promulga a célebre premissa “Sou meu corpo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 208). Posto isso, o autor avalia que há uma
superação do dualismo mente/corpo posto por Descartes. O homem
agora é eu-corporal e coisa-pensante, concomitantemente. O corpo que
falamos aqui é o Leib, comumente traduzido como corpo-próprio, aquele
que está ancorado no mundo, o sujeito da percepção, que é o antônimo
de corpo enquanto Korper, o corpo-objeto da tradição.
Essa nova compreensão de corpo nos permite vislumbrar um
novo modo da lida do homem com o mundo, além de obviamente, uma
nova compreensão do próprio homem. Combatendo o humanismo
clássico que, na visão crítica do autor, reduz o real e o mundo à dicotomia
sujeito/objeto, Merleau-Ponty intenciona um novo sentido de humanismo
“[...] a junção entre o fato e o sentido, entre meu corpo e eu, eu e o
próximo [...] é a recusa metódica das explicações, por que estas destroem
a mistura de que somos feitos, e nos tornam incompreensíveis à nós
mesmos” (1991, apud SILVA, 2009, p. 23). Percebemos aqui que, ao
tratar da corporeidade, Merleau-Ponty retoma o impulso dado por
Husserl, ou seja, o retorno do homem ao mundo, ou às coisas fáticas, em
contraposição ao “pensamento de sobrevoo”1.
Ainda se aproximando de Husserl, Merleau-Ponty, o mundo é pré-
existente e somos apenas lançados, ou ancorados, nele pelo corpo:

Com efeito, o mundo natural se apresenta como existente em si para


além de sua existência para mim, o ato de transcendência pelo qual o
sujeito se abre a ele arrebata-se a si mesmo e nós nos encontramos em
presença de uma natureza que não precisa ser percebida para existir.
Portanto, se queremos pôr em evidência a gênese do ser para nós, para
terminar é preciso considerar o setor de nossa experiência que
visivelmente só tem sentido e realidade para nós, quer dizer, nosso meio
afetivo. Procuremos ver como um objeto ou um ser põe-se a existir para
nós pelo desejo ou pelo amor, e através disso compreenderemos melhor
como objetos e seres podem em geral existir (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 212).

Com base nesta colocação, podemos presumir que o homem é em


relação ao mundo, tendo em vista sua facticidade. Para compreender a

1 “Caricatura a figura do filósofo ou do cientista que eleva sua atividade a um poder


absoluto de comtemplação, pairando sobre o mundo sem, contudo, habitá-lo” (SILVA,
2009, p. 23).
354 Ressonâncias filosóficas - Artigos

totalidade do homem, enquanto ser-no-mundo, temos que compreender


sua relação com este, juntamente com o espaço, tempo e linguagem, sua
experiência. Com base nesta relação, conseguimos vislumbrar o homem
(corpo) enquanto sujeito, visto que é o agente operante de toda ação. Além
disso, o autor afirma que “tenho consciência do mundo por meio de meu
corpo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 122), assim a consciência está
intrinsecamente ligada à corporeidade, pois só aparece enquanto ato
reflexivo a partir do que é percebido por ele [o corpo]. Desta forma, retira-
se o caráter do eu-interior da consciência, que foi reproduzido, ao longo
da tradição, para colocá-la intrínseca ao mundo, delimitada por sua
facticidade. Essa nova perspectiva irá desembocar no conceito de
subjevidade.
Para tanto, partiremos do conceito de corpo-próprio (Leib), que

Retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a


nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso
corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 278).

Percebemos que, para o autor, a percepção não é atributo do


pensamento, mas sim do corpo, através da relação homem-mundo.
Podemos, portanto, inferir que o conhecimento sensível é anterior ao
conhecimento racional/reflexivo, e também o possibilita, porque oferece
esses dados sensíveis à razão. O corpo-próprio que possibilita a percepção
é a própria raíz da subjetividade, pois é o que coloca o homem em-situação
com o mundo, apontando para essa relação pré-consciente e pré-objetiva
entre ambos.
Ainda, sobre o corpo, observa Merleau-Ponty,

O que o impede de ser alguma vez objeto, de estar alguma vez


“completamente constituído”, é o fato de ele ser aquilo por que existem
objetos. Ele não é nem tangível nem visível na medida em que é aquilo
que vê e aquilo que toca. Portanto, o corpo não é qualquer um dos
objetos exteriores, que apenas apresentaria esta particularidade de estar
sempre aqui. [...] Assim, a permanência do corpo próprio, se a psicologia
clássica a tivesse analisado, podia conduzi-la ao corpo não mais como
objeto do mundo, mas como meio de nossa comunicação com ele, ao
mundo não mais como soma de objetos determinados, mas como
horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar, ele também,
antes de todo pensamento determinante (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
136-137).
O corpo na fenomenologia... 355

Percebemos aqui que o corpo é no mundo, no espaço, e é a partir


disso que que podemos obter todo conhecimento acerca das coisas, ou
seja, partindo de um corpo que embora, não seja pensamento, percebe o
mundo à sua volta, por isso, não é extensão e nem uma coisa entre as
outras.
O corpo, para Merleau-Ponty, é de extrema significância,
desdobrando-se e realizando-se no mundo por meio de sua espacialidade,
motricidade, expressão, sexualiadade, visão. A motricidade está associada
diretamente à percepção, enquanto movimento do corpo em direção ao
mundo, nos situando e posicionando em relação oas objetos e nesse
lançamento nos é possibilitdo vislumbrar diferentes ângulos de um mesmo
objeto, revelando que nosso conhecimento sempre será em perspectivas,
ou seja, sempre incompleto, tendo em vista que não podemos abarcar o
objeto em sua totalidade. A partir desse jogo que a consiciência realiza, ao
lançar-se no mundo através da corporeidade, advém o conceito de corpo-
vivido, que se remete sempre ao movimento e à espacialidade do corpo.

Da mesma maneira, o sujeito posto diante de sua tesoura, sua agulha e


suas tarefas familiares não precisa procurar suas mãos ou seus dedos
porque eles não são objetos a se encontrar no espaço objetivo, ossos,
músculos, nervos, mas potências já mobilizadas pela percepção da
tesoura ou da agulha, o termo central dos "fios intencionais" que o ligam
aos objetos dados. Não é nunca nosso corpo objetivo que movemos,
mas nosso corpo fenomenal, e isso sem misté- rio, porque já era nosso
corpo, enquanto potência de tais e tais regiões do mundo, que se
levantava em direção aos objetos a pegar e que os percebia (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 153-154).

Desta forma, a motricidade é um modo de sair de si para


relacionar-se com outras coisas, possibilitando a alteridade. A consciência
na forma de intencionalidade é justamente esse ser para a coisa, através do
corpo. Constatamos aqui, que o sujeito está totalmente imerso na vida
relacionando-se com o todo a sua volta mediante seu corpo. Sendo assim,
a subjetividade reencontra sua inerência histórica, reencontra os
fenômenos “a camada de experiência viva através da qual primeiramente
o outro e as coisas nos são dados, o sistema ‘Eu-Outro-as coisas’ no estado
nascente, despertar a percepção” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 90).
Além disso, é pela subjetividade que conseguimos reconhecer aquilo que
o indivíduo tem de próprio, de característico, seja seu aspecto fisíco, suas
vivências particulares, enfim, ao modo singular de ser de cada sujeito.
356 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Neste ponto, percebemos que a motricidade do corpo é


desempenhada como expressão, a saber, uma gestualidade expressiva, a
própria experiência de uma presença corporal. Essa relação entre
motricidade e carnalidade é o “nó entre a essência e a existência que em
geral encontramos na percepção” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 204).
Segundo Merleau-Ponty, o corpo é sempre expressão da
existência. É em função disso que o filósofo dedica o capítulo VI, de sua
Fenomenogia da percpeção para descrever o fenômeno da fala e do ato ato
expressivo e qual é sua importância para a definitiva ultrapassagem da
dicotomia entre sujeito e objeto, partindo de uma nova significação
originária, discutindo aqui, diretamente com a tradição filosófica pois,

Isso ocorre por que no seio dessa tradição a linguagem é mascarada por
meio de “relações intramundanas e ônticas”, de modo que a experiência
própria da fala não merecera uma dignidade ontológica em relação à
ordem do pensamento, exercendo diante desse, tão somente a função de
mero acessório. Dessa forma, é recusada à linguagem uma significação
filósofica, fazendo dela um problema unicamente técnico (SILVA, 2009,
p. 94).

É necessário apontar, desde já, que, para o autor, a linguagem não


é posterior ao pensamento, mas é justamente o pensamento em ligação
com o corpo, ou seja, a linguagem está conectada na relação corpo-mundo.
A linguagem abarca os gestos, a fala, o próprio movimento do homem no
mundo.
A fala, neste aspecto, não caracteriza uma ação, já que não
manifesta possibilidades interiores do sujeito, mas, em seu sentido geral, a
fala é um ser de razão. O sentido das palavras nos é dado por um estado
de consciência que parte do corpo. Para o fenomenólogo,

A linguagem tem um interior, mas esse interior não é um pensamento


fechado sobre si e consciente de si. O que então exprime a linguagem,
se ela não exprime pensamentos? Ela apresenta, ou antes ela é tomada
de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo "mundo"
não é aqui uma maneira de falar: ele significa que a vida "mental" ou
cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o
sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 262).

Criticando tanto os intelecutalistas, que colocavam o sentido da


linguagem apenas no sujeito, colocando a linguagem como propriamente
O corpo na fenomenologia... 357

subjetiva, quanto os empiristas, que objetifivam a linguagem e tornavam o


sujeito desnecessário, Merleau-Ponty mostra aqui que há um sentido da
palavra. O que os intelectualistas e o empiristas nos mostram é que a
palavra não tem uma significação, pois, para ambos, ela é uma forma de
anunciação e representação do sentido do pensamento, e por ser apenas a
representação deste pensamento, não é, ela mesma, dotada de sentido.
Para compreender fatidicamente o problema da linguagem é
necessário, portanto, que nos afastemos das concepções clássicas destas
correntes, para aí então atribuirmos à significação expressiva e a
autonomia da palavra.
Para o autor, apreendemos, em primeira instância, o sentido da
palavra assim como apreende-se o sentido do gesto, por exemplo, quando
estamos irados, não precisamos o dizer, dado que nossas ações o
denunciam, porque são a própria ira. Isso, porém, não abarca toda
linguagem, visto que seria um reducionismo a um dado sensível imediato,
uma reação que é generalizada, mas encontramos aqui um
vislumbramento da linguagem como fênomeno autêntico. Ademais, como
o próprio autor aponta, não há como servir-se apenas disso, pois, no caso
das emoções, como a supracitada, são experimentadas de maneiras
distintas, ficando à mercê da cultura, da religião e de outras determinações
facticas.
A linguagem pressupõe sempre um interlocutor ou espectador, já
que é este quem compreende o sentido do gesto, porquanto este sentido
não é dado, mas sim compreendido. Destarte, o ato da comunicação é
contigente, existindo dentro de uma circunstância, portanto,

Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o


mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se
representem pelos mesmos signos. O que importa é a maneira pela qual
eles fazem uso de seu corpo, é a enformação simultânea de seu corpo e
de seu mundo na emoção. O equipamento psicofisiológico deixa abertas
múltiplas possibilidades e aqui não há mais, como no domínio dos
instintos, uma natureza humana dada de uma vez por todas. O uso que
um homem fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo
enquanto ser simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no
amor não é mais natural ou menos convencional do que chamar uma
mesa de mesa (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 256-257).

Desta forma, o sentido de uma expressão só é legitimado através


do outro, do interlocutor, assim a comunicação se realiza quando eu tenho
358 Ressonâncias filosóficas - Artigos

a compreensão do meu interlocutor e vice-versa, denunciando aqui a


intersubjetividade, da qual já comentamos.

Tem-se, então, que o corpo visado enquanto fenômeno e não enquanto


coisa é portador de uma capacidade singular de apreender o sentido de
outra conduta, seja o sentido do gesto ou da fala do outro; e a palavra
também é um gesto e uma forma de conduta. Merleau-Ponty diz que eu
só consigo compreender a intencionalidade do outro – e sua atitude para
comigo – porque através do meu corpo posso torná-la minha. Assim,
encontramos em seu pensamento um lugar especial para o corpo, a ele é
atribuído uma potência expressiva que lhe é imanente: o corpo é
intencionalidade que se exprime, e que secreta a própria significação.
Melhor dizendo, a análise do corpo põe à mostra o vínculo entre
expressão e exprimido, cuja indissociabilidade está presente em todas as
linguagens, constituindo mesmo a natureza do fenômeno expressivo
(FURLAN; BOCCHI, 2003, p. 449).

Desta forma, constitui linguagem expressiva àquela na qual o


sujeito falante adquire o sentido que quer exprimir, sendo o pensamento
se manisfestando, ou seja, ele existe-com, não anteriormente nem
posteriormente. Com isso, Merleau-Ponty afasta toda dualidade entre
pensamento e linguagem, mostrando como elas estão essencialmente
intrínsecas.
A propósito da memória e da “imagem verbal”, o autor afirma que

Essas observações permitem-nos restituir ao ato.de falar a sua verdadeira


fisionomia. Em primeiro lugar, a fala não é o "signo" do pensamento, se
entendemos por isso um fenômeno que anuncia um outro, como a
fumaça anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam essa relação
exterior se um e outro fossem tematicamente dados; na realidade, eles
estão envolvidos um no outro, o sentido está enraizado na fala, e a fala
é a existência exterior do sentido. Não poderemos mais admitir, como
comumente se faz, que a fala seja um simples meio de fixação
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 247)

O autor coloca, ainda, que é necessário que exista uma experiência


interna central que torne o que foi lido, escrito, pronunciado ou ouvido
num fato de linguagem. Isso possibilitaria que a linguagem cessasse de
designar as coisas para se tornar a própria presença no mundo sensível.
Utilizando-se do exemplo da arte, o fenomenológo, aponta que
quando o ato da expressão é bem-sucedida, o ato traz consigo toda a
significação que requer. Ora, isso ocorre na sonata, quando os signos
O corpo na fenomenologia... 359

desaparecem durante a execução, ou quando um ator se torna o


personagem, desaparecendo aos olhos do público, ou no caso da literatura,
onde a escrita carrega o leitor para a experiência descrita, tornando-se ali
os signos apenas o transporte para tanto. Assim,

A palavra, a que profiro e ou a que ouço é pregnante de uma significação


que é legível na própria estrutura do gesto linguístico, a ponto de uma
hesitação, uma alteração da voz, a escolha de certa sintaxe bastarem para
modificá-la, sem jamais estarem contidas nela, pois toda expressão me
aparece sempre como vestígio, todas as ideias me são dadas em
transparência, e todo esforço para pegar na mão o pensamento que
habita a palavra não deixa entre os dedos senão um pouco da matéria
verbal (1991, apud NÓBREGA, 2014, p. 10).

Reitera-se aqui que não existe um significado anterior à expressão,


ou um pensamento anterior, como se para falar o sujeito falante tivesse
que antes buscar um significado fechado em si, para adequar à situação e
só assim proferir seu comunicado. Sob esse aspecto, o exprimido não
existe antes da expressão de maneira alguma. Podemos evidenciar melhor
essa expressão por intermédio da obra de arte, na qual não há o que foi
pintado antes que haja, de fato, a pintura. Deste modo, a significação só
pode ser dada no momento do ato de expressão.
A experiência de falar é colocada como aberta, aparecendo como
necessidade de exteriorizar-se, manifestar-se,

A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para


estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes,
a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma
manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une
ao mundo e aos nossos semelhantes. [...] as linguagens, quer dizer, os
sistemas constituídos de vocabulário e de sintaxe, os “meios de
expressão” que existem empiricamente são o depósito e a sedimentação
de atos de fala, nos quais o sentido não-formulado não apenas encontra
o meio de traduzir-se no exterior, mas ainda adquire a existência para si
mesmo, e é verdadeiramente criado como sentido (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 266).

Neste ponto podemos distinguir a fala falante e a fala falada. A fala


falante, corresponde ao ato criativo da linguagem, estabelecendo novos
significados, é o caminho da intenção até à pronunciação. Já a fala falada é
a comunicação usual, é aquela linguagem perpassada pelas gerações, com
360 Ressonâncias filosóficas - Artigos

significações já pré-atribuídas, disponíveis em seu meio simbólico e que


foram disponibilizadas em um primeiro momento da existência de cada
palavra pela fala falante. Desta perspectiva, podemos denominar a fala
falante como linguagem autêntica. Aqui podemos inferir que a linguagem
falante é significante e que a linguagem falada é a significada.
Tendo esta distinção em vista, o autor concebe que

A linguagem nos ultrapassa, não apenas porque o uso da fala sempre


supõe um grande número de pensamentos que não são atuais e que cada
palavra resume, mas ainda por uma outra razão, mais profunda: a saber,
porque esses pensamentos, em sua atualidade, jamais foram “puros”
pensamentos, porque neles já havia excesso do significado sobre o
significante, e o mesmo esforço do pensamento pensado para igualar o
pensamento pensante, a mesma junção provisória entre um e outro que
faz todo o mistério da expressão. Aquilo que chamam de idéia está
necessariamente ligado a um ato de expressão e lhe deve sua aparência
de autonomia (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 266).

O que nos dá essa falsa impressão, de que existe um pensamento


que já era existente para si, anterior à expressão, são os pensamentos já
constituídos e expressos, porém, embora não seja falado, proferido, e seja
propriamente silêncio, isso não passa de um pensamento interno,
resultados de atos de expressão anteriores.
Merleau-Ponty caracteriza vários atos de expressão e, com isso,
adentra também ao campo estético:

Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos,


quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso,
cujo sentido só é acessível por contato direto, e que irradiam sua
significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse
sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de
significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209).

Assim, o autor afirma que retomando o contato entre o corpo e o


mundo, ou seja, superando a dicotomia mente/corpo, também o homem
reencontrará a si mesmo pois “se percebemos com o nosso corpo, o corpo
é um eu natural e como que o sujeito da percepção” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 278).
Para compreender ainda melhor sobre o que falamos até então,
faz-se necessário clarificar-nos sobre o conceito de percepção utilizado
O corpo na fenomenologia... 361

pelo autor. A percepção em primeira instância é uma junção entre corpo-


próprio e mundo, que ao mesmo tempo em que propicia o conhecimento
sobre um objeto, também, de correlato, propicia o conhecimento sobre o
próprio corpo, sendo o próprio sujeito da percepção.
Ainda falando sobre a percepção, o autor situa o corpo como
ponto do conhecimento originário, proporcionando um saber sensível que
antecede o conhecimento reflexivo, possibilitando-o. É na percepção que
se encontram o que percebe e o que é percebido, o que toca e é tocado,
desta forma “a consciência do corpo invade o corpo, a alma se espalha em
todas as suas partes” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 114). Assim, a
percepção nos fornece visadas sobre um objeto, na medida em que o vejo
sobre um ângulo, uma perspectiva, tornando o outro ângulo, portanto,
invísivel. Cada sentido e significação é dado através dessa visada atual.
Assim, o corpo é tocado e tocante, visível e vidente,
concomitantemente. Deste modo,

Se é preciso que os objetos me mostrem sempre somente uma de suas


faces, é porque eu mesmo estou em um certo lugar de onde as vejo e que
não posso ver. Se todavia creio em seus lados escondidos como também
em um mundo que os envolve a todos e que coexiste com eles, é
enquanto meu corpo, sempre presente para mim e entretanto envolvido
no meio deles por tantas relações objetivas, os mantém em coexistência
com ele e faz bater em todos a pulsação de sua duração. [...] as duas mãos
nunca são ao mesmo tempo tocadas e tocantes uma em relação à outra.
Quando pressiono minhas mãos uma contra a outra, não se trata então
de duas sensações que eu sentiria em conjunto, como se percebem dois
objetos justapostos, mas de uma organização ambígua em que as duas
mãos podem alternar-se na função de “tocante” e de “tocada”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 136-137).

É dessa forma que o homem opera no mundo, conhecendo e


movimentando-se através de seu corpo. Como exposto acima, Merleau-
Ponty consegue defender sua tese de que o homem é seu corpo,
sustentando a referida premissa ao colocar a consciência como corpórea,
e é justamente a percepção que propicia esta abertura para o mundo,
projetando o ser para fora de si, por meio da intencionalidade.
362 Ressonâncias filosóficas - Artigos

REFERÊNCIAS

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de César Augusto


Battisti. Curitiba: SEED – PR, 2009.

FURLAN, R.; BOCCHI, J. C. O corpo como expressão e linguagem em


Merleau-Ponty. Estud. psicol. (Natal). 2003, vol.8, n.3, pp.445-450.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2003000300011. Data de acesso:
20/10/2017.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de


Carlos Alberto Ribeiro Moura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006

NOBREGA, T. P. A ontologia do ser selvagem em Merleau-Ponty e a


paixão segundo Clarice Lispector: encontros entre Filosofia e Literatura.
Revista Estudos Filosóficos, São João del-Rei-MG, nº 13/2014. Disponível
em: http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos. Data de acesso:
20/10/2017.

SILVA, C. A. F. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-


Ponty. São Leopoldo (RS): Nova Harmonia, 2009.
XXX

O IMATERIALISMO NA FILOSOFIA DE GEORGE


BERKELEY

Guilherme Alves de Souza*

RESUMO:

Apesar de Berkeley ser um empirista, como Locke, ele nega a existência


matéria, já que para ele não é possível que algo exista que não sejam as
ideias do ser. É neste aspecto do pensamento de Berkeley que esta
pesquisa ficou delimitada: no empirismo imaterialista. Locke, enquanto
filósofo influenciado por Descartes, também põe em dúvida muitos dos
conhecimentos, que em Berkeley, o que o ser percebe não pode ser posto
em dúvida, pois toda ideia é uma realidade e não é possível que o indivíduo
perceba algo que não existe.

PALAVRAS-CHAVE: Berkeley; Ideias; Imaterialismo; Conhecimento.

INTRODUÇÃO

George Berkeley foi um filósofo irlandês que nasceu em 1685 na


cidade de Kilkenny. Foi criado pelos seus pais em uma fazenda até ser
enviado para estudar em um internato em Dublin. Após receber o título
de bacharel em Artes começou a ler o empirista Locke, grande expoente
do cartesianismo. Mas ele, como bispo cristão da Igreja Anglicana, achou
que havia pouco espaço para Deus nos estudos de Locke e busca em seus
estudos fazer isto.

* Faculdade Palotina – FAPAS; e-mail: gui_de_s@hotmail.com


364 Ressonâncias filosóficas - Artigos

30.1 MATERIAIS E MÉTODOS

Para a elaboração deste resumo foi utilizada como norteadora a


obra de George Berkeley o Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano
e como complemento o comentador Paul Strathern com a obra Berkeley em
90 minutos.
Não abordaremos aspectos da vida e outras obras de Berkeley
além da citada, pois não é o foco da pesquisa. Trataremos então, do Ser
para o autor, que se resume na famosa frase de que ‘Ser é ser percebido’
que o leva a negação da existência da matéria e um pouco do pensamento
de Aristóteles sobre o Ser que ele mais diverge.

30.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como a maioria dos filósofos, Berkeley também aborda as


questões sobre como o ser pode conhecer. Ele é considerado um
imaterialista, isto porque nega a existência da matéria, sendo esta existente
apenas enquanto ideias do ser e estas é que seriam a realidade, segundo
seu pensamento, como nos diz:

É evidente a qualquer um que faça um levantamento dos objetos do


conhecimento humano que estes são ou ideias realmente impressas nos
sentidos ou então ideias como as percebidas quando prestamos atenção
nas paixões e operações da mente, ou, finalmente, ideias formadas com
a ajuda da memória e da imaginação, seja combinando, dividindo, seja
simplesmente representando as ideias originalmente percebidas das
maneiras mencionadas (BERKELEY, 2010, p. 57).

Ao analisarmos o que está na mente, verificaríamos que de muitas


formas podemos perceber e formar as ideias. Mesmo o que percebemos
pelos sentidos são ideias que neles estão impressas e percebemos a
realidade conforme elas, que se associam ou se dividem com as demais
ideias já presentes no ser, que vão formando o conhecimento que este
possui ou adquirirá.
Para ele, “a causa das ideias é uma substância ativa incorpórea, ou
espírito” (BERKELEY, 2010, p. 74). Elas não são meras representações
da realidade, mas são a própria realidade, já que não seria possível uma
ideia que não existisse e tampouco que estivesse fora da mente, assim
como muitos outros afirmam. Ao contrário da dúvida cética, Berkeley
afirma a certeza da existência de uma mente, já que não seriam possível
O imaterialismo... 365

percepções sem uma mente que as perceba e que formule as ideias, da


mesma forma que não é posto em dúvida a existência do ser pensante.

Que nem nossos pensamentos, nem as paixões, nem as ideias formadas


pela imaginação existem fora da mente [without the mind] é o que todos
admitirão. E não parece menos evidente que as várias sensações ou ideias
impressas sobre os sentidos, por mais misturadas ou combinadas umas
com as outras (isto é, quaisquer que sejam os objetos que componham),
não podem existir de outro modo senão em uma mente que as perceba.
E penso que um conhecimento intuitivo disso pode ser obtido por
qualquer um que preste atenção no que é significado pelo termo existir
quando aplicado a coisas sensíveis (BERKELEY, 2010, p. 58-59).

Pode soar um pouco estranho, mas para ele todo ser que existe é
um ser percebido e não é possível que exista um que não seja percebido
por alguém. Diante dessa afirmação surgem muitos questionamentos, por
exemplo: uma árvore que caia no meio de uma floresta e não tenha
nenhum ser com sensações para que possa ver ou ouvir a árvore caindo
quer dizer que ela não existe? Aqui Berkeley inclui a existência de Deus e
outras formas espirituais eternas que não são visíveis aos olhos. Para
responder isso, Berkeley diz que algum ser perceberia, mesmo que este
não fosse um ser sensível. Este ser pode ser Deus ou alguma outra forma
de espírito eterno (como anjos, por exemplo). Esta é a principal afirmação
de sua filosofia e foi o que o deixou conhecido, principalmente entre os
nobres de seu país.
Mesmo os materialistas afirmas que as sensações não estão nos
próprios sentidos, mas no indivíduo que percebe, assim também Berkeley,
no entanto “se temos algum conhecimento de coisas exteriores, deve ser
por meio da razão, inferindo sua existência a partir do que é imediatamente
percebido pelos sentidos (BERKELEY, 2010, p. 69). O que confere a
existência, como dito, é o indivíduo por meio de sua razão fundamentada
na percepção dos sentidos.
Posso ter controle sobre meus pensamentos formulando uns a
partir de outros como queira, no entanto, as ideias não surgem da vontade.
“Seja qual for o poder que eu possa ter sobre os meus pensamentos, noto
que as ideias efetivamente percebidas pelos sentidos não têm igual
dependência de minha vontade” (BERKELEY, 2010, p. 76). Por exemplo,
os sentidos se utilizam dos órgãos sensoriais para perceber e o perceber
não depende do meu querer. Quando abro meus olhos, ver não é algo que
passa pela minha vontade. Após abri-los eu necessariamente tenho que
366 Ressonâncias filosóficas - Artigos

ver, em outras palavras, tenho que perceber e passo a formular as ideias


da realidade:

Há algumas verdades tão familiares e óbvias à mente que um homem


precisa apenas abrir os olhos para vê-las. Considero que uma delas é esta:
que toda abóbada celeste e tudo quanto a Terra contém – numa palavra,
todos os corpos que compõem a poderosa estrutura do mundo – não
possuem nenhuma existência fora de uma mente [without a mind]; que seu
ser é ser percebido ou conhecido. E que, consequentemente, na medida
em que eles não são de fato percebidos por mim, ou não existem na
minha mente ou na de qualquer outro espírito criado, não devem ter
absolutamente existência alguma, ou, ao contrário, existem na mente de
algum espírito eterno, sendo completamente ininteligível e implicando
todo o absurdo da abstração atribuir a uma parte isolada deles uma
existência independente de um espírito (BERKELEY, 2010, p. 60-61).

Neste ponto, Berkeley difere dos filósofos Antigos, como


Aristóteles que afirma que o Ser é e não depende da percepção de ninguém
para que possa existir. Além disso, o Ser existe fora da mente e pode ser
tanto de natureza sensível quanto suprassensível, e isto é uma das
dificuldades que Berkeley encontrou para aceitação entre muito dos
filósofos de sua época e também atualmente.
Outra dúvida que poderia surgir é em relação aos universais e
conceitos totalmente abstratos, como por exemplo, o número:

O número é tão evidentemente relativo e dependente do entendimento


humano que é estranho pensar como alguém poderia lhe atribuir uma
existência independente fora da mente. [...] E em cada caso é claro que a
unidade se refere a alguma combinação particular de ideias
arbitrariamente reunidas pela mente (BERKELEY, 2010, p. 65).

Esses conceitos não encontram muitas dificuldades ou obstáculos


com Berkeley, dado que a realidade está na mente (através das ideias do
indivíduo), os universais e o número também existem na mente e não é
possível que existam fora dela, eles não podem ser percebidos pelos
sentidos e é claro que não possuem matéria (que em Berkeley nem existe
mesmo): eles são resultado de uma conexão ou junção de ideias que os
elaborou e existem, portanto, na mente do indivíduo.
O imaterialismo... 367

30.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O empirismo imaterialista de Berkeley o levou a afirmação de que


ser é ser percebido. Para isso, a negação da existência da matéria foi, para
ele, necessária, pois a realidade não pode existir se não através das ideias,
que são imateriais, formuladas a partir dos sentidos pelas percepções que
o indivíduo faz. Portanto, não seria possível existir uma coisa que não
fosse percebido por algo, sendo este sensível ou não. Mesmo que o
homem não perceba através de suas sensações, Deus (que também é
imaterial) perceberia pela sua mente divina e isto confere, portanto, a
existência deste ser.

REFERÊNCIAS

BERKLEY, George. Obras filosóficas: tratado sobre os princípios do


entendimento humano. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: UNESP, 2010.

STRATHERN, Paul. Berkeley em 90 minutos. Trad. Cassio Boechat. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
XXXI

O PAPEL DA ANGÚSTIA EM HEIDEGGER

Camila Pacheco Gomes*

RESUMO

O presente trabalho tem como proposito o desenrolar-se sobre o papel da


angústia a partir de uma interpretação fenomenológica hermenêutica de
Martin Heidegger. Essa discussão contém como fio condutor o conceito
de existência e o sentido do ser no mundo, haja visto que são temas
discutidos na obra de Ser e Tempo (1989), na qual Heidegger caracteriza
a existência humana como Ser-aí (Dasein) apontando como um ente, cuja
essência consiste em existir. Através dessa interpretação, o ente, refere se
ao ser-com-outros e à ocupação com o mundo de acordo com suas
possibilidades de ser. O ente é o ser imperfeito, aberto e inacabado, foi
lançado ao mundo sem o seu consentimento ou querer. Sua existência
marcada pela temporalidade e pela história, além é claro pelas marcas da
adversidade de sofrimento, doenças e morte. Dessa forma, a existência do
ser aí não é plena e feliz, podendo superar ou não as dificuldades que a
existência lhe impõe. Assim, ousamos adiantar que a vida do ser-aí é
marcada pela “angústia”.

PALAVRAS-CHAVE: Ser aí, Angústia, Martin Heidegger.

INTRODUÇÃO

A obra Ser e Tempo do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-


1976) é considerada um dos marcos importantes para a filosofia
contemporânea, pois, propõem uma reflexão sobre a existência do ente
por meio de uma interrogação sobre o sentido do ser. Através dela,
Heidegger irá abordar questões de angústia e do sentido do ser, por meio
de uma nova compreensão da abordagem metafisica, onde o nosso autor
expõem que o ente, abandonado por Deus, busca esclarecer sobre a
pergunta: O que é o ser? Parte desse questionamento vem de uma crítica
* UNIOESTE- PR; e-mail: camilapacheco_gomes@hotmail.com
370 Ressonâncias filosóficas - Artigos

à orientação metafísica do pensamento ocidental, onde é discutido o


próprio modo de ser e de habitar, caminhando para a compreensão do
sentido da existência do ser-aí. Assim o ser aí, como ser limitado por
situações que compreendem o seu mundo é conduzido a pensar sobre sua
existência e a lançar se ao seu encontro, sendo chamado a projetar se
diante os desafios, vendo se limitado no tempo, como ser mortal, marcado
pela angústia.
Segundo Heidegger (2008), é angústia que possibilita o encontro
do ente ao ser. A angústia é a inquietação do ente frente as questões do
ser, esse sentimento desvela o abismo do nada, possibilitando o ente a
escutar no profundo de si a sua verdade:

Enquanto possibilidade de ser da pre-sença, a angústia, junto com a


própria pre-sença que nela se abre, oferece o solo fenomenal para a
apreensão explicita da totalidade originária da pre-sença. Esse ser
desentranha se como cura (HEIDEGGER,1988, p. 245).

Portanto Heidegger (2008) define a angústia como sendo a


condição “humana”, a qual tem valor ontológico. Nosso autor, não
considera a angústia como escolha do ente que quer evoluir enquanto ser
e sim como fato inevitável da vida “humana”. Dessa forma, propõem uma
análise existencial por meio de sua ontologia fundamental, pois a
compreensão do ser, faz desse o único ente capaz de apreender o ser e sua
própria existência. Tal compreensão justifica a análise da busca do ser-aí
por uma nova via de acesso para questão do ser, tendo como fundamento
uma olhar original entre o ser-aí e ser. Pelo modo como foi colocada a
questão do ser, entendemos um certo obscurecimento, pois a questão
discutida pelo olhar da ontologia tradicional refere se sobre “o que é o
ser”, tornando se uma busca por uma definição desse “é”, deixando de
realizar uma compreensão prévia do ser.
Segundo Heidegger (2008) ao pensar sobre o modo de questionar
o ser, as interpretações prévias sobre o ser, propõem uma originalidade na
maneira de situar a questão ou “repetir a questão do ser significa, pois,
elaborar primeiro de maneira suficiente, a colocação da questão”
(HEIDEGGER, 1995, p. 3).
Destarte, Heidegger (2008), propõe outro modo de interrogar, ou
seja, de questionar o ser em seu sentido, tendo em vista como primordial
à compreensão das coisas no seu cotidiano. Para o autor, a questão do ser
aparece em duas proporções, primeiro a ôntica que refere se ao horizonte
O papel da angústia... 371

de manifestação do ente, e a segunda a ontológica, referente ao horizonte


das possibilidades de ser de um ente.
Com o olhar da fenomenologia hermenêutica, destacamos que não
é possível compreender o ser-aí da mesma forma como compreende
outros seres vivos e objetos. Existem duas condições fundamentais
diferentes entre os entes (todas as coisas e seres vivos/objetos) e o Dasein,
termo cunhado por Heidegger (2008) para indicar o caráter distinto da
existência humana. O Dasein tem por condição fundamental saber ser
finito, saber que sua vida um dia vai terminar, compreendendo assim que
é um ser mortal. A fenomenologia hermenêutica contribui a respeito do
saber ser finito, no qual diferencia o Dasein dos outros entes e marca um
modo peculiar do ser, uma vez que é o único ser que tem de conviver com
o seu-ser-para-a-morte. Através dessa condição ontológica origina-se no
Dasein o sentimento de angústia.
Segundo Feijoo (2011), a autora discorre que a angústia que nasce
do ser-aí, deriva da ameaça do não-ser, ou seja, a morte que vivenciamos
por meio do confronto da necessidade de realizar as nossas possibilidades
e o risco de não poder realizá-las.
A angústia, portanto, não é o medo da morte, mas é a percepção
mais profunda de nossa finitude. Somos o único ser na face da terra capaz
de reconhecer que existimos para morrer. É essa percepção aniquiladora
que nos orienta para o cuidado, para a preocupação com nossa existência
(WERLE, 2003, p.104-105).
Ainda em Werle (2003), nada de externo afeta ou motiva a
angústia, pois a mesma trata-se de uma desarmonia, um descompasso
onde o horizonte da cotidianidade "fecha-se" para que, num movimento
sem deslocação, o ser-aí seja "remetido" a individualidade, ao nada
constitutivo, onde acontece o essencial "ultrapassar" o ente. A
possibilidade e a liberdade passam a sediar o Dasein, aprofundando a
angústia e, concomitantemente, o contato com os recantos mais
recônditos da individualidade.
Segundo Dubois (2004), relata que a descoberta de uma
compreensão de ser-no-mundo de Heidegger ocasionou uma revolução
fenomenológica na Filosofia. Dizer que o ser humano só é no mundo
significa que não se reduz a um mero objeto dentre outros. Ser-no-mundo,
significa que, em certo sentido, o mundo só existe para o ser humano.
“Um mundo no qual os outros estão sempre já anunciados”, portanto, um
mundo comum. Ou seja, tanto não existe um sujeito sem mundo, quanto
não existe o eu sem o outro. Há uma relação fundamental do ser humano
372 Ressonâncias filosóficas - Artigos

com os outros, de tal forma que mesmo só o ser do Dasein é ser-com-


outros.
Dessa forma, Casanova expõem sua ideia de sentido de existência:

O Dasein não possui originalmente nenhuma determinação própria, mas


todas as determinações de seu ser são alcançadas apenas de maneira
existencial a partir dos comportamentos que ele leva a termo em relação
aos entes intramundanos, aos outros seres-aí e a si mesmo
(CASANOVA, 2009, p. 122).

Os significados não estão nas coisas, mas sim os sentidos de ser


dos entes e da maneira como se desvelam por meio da compreensão. A
compreensão torna-se uma trama de significações que vão sendo tecidas
pelo ser-aí e assim fica evidente que o sentido de mundo só se manifesta
ao ser-aí, via a compreensão, possibilitando esse a realizar o seu poder-ser
dentro das possibilidades fáticas:

Em verdade, a compreensão projeta o campo existencial do Ser-aí,


abrindo-o para um em-virtude-de e para a significância fática. Jogado em
um mundo, o Ser-aí encontra a partir de sua própria dinâmica
compreensiva, aquilo em virtude de que ele pode realizar o poder ser que
é, ao mesmo tempo em que recebe dos campos de uso com os quais está
familiarizado as orientações significativas necessárias para que possa
desempenhar a sua competência existencial (CASANOVA, 2009 p.125-
126).

Para tal, Kahlmeyer-Mertens (2015) explica que toda compreensão


tende a ser compreendida de alguma maneira, maneiras essas que são
antecipadas pelas estruturas que sempre parte (posição prévia, visão prévia
e conceptualidade prévia).
Pelo fato do ser-aí ser uma abertura de compreensão e disposição
é que nos mostra Heidegger (2001), “o ser-aí não é uma simples coisa, no
meio de outras coisas, nem uma interioridade fechada dentro de si
mesmo”. Dessa forma o Ser não existe isoladamente sem o mundo que
habita que, por sua vez, também não existe separado do Dasein. Assim,
“não existe anterioridade entre esses dois movimentos: homem e mundo”
(HEIDEGGER, 1995, p.96).
A partir desse ponto, torna-se importante compreendemos a
expressão fenomenológica “Ser-no-mundo” que aponta para um
fenômeno de unidade. Nessa linha de pensamento, pontua Sá (2013, p. 1):
O papel da angústia... 373

A expressão “ser no mundo” nomeia a unidade estrutural ontológica do


Dasein. A análise desta estrutura nos remete aos três momentos
constitutivos da totalidade deste fenômeno: a ideia de mundanidade do
mundo, o modo de ser-com e ser- próprio que se revelam de início como
a impessoalidade cotidiana e o Ser-em como tal, cuja estrutura se
desdobra em compreensão e disposição.

Para tal, essa discussão caminha para a relação ao modo como o


ser-aí cuida de sua existência, de seu ser-no-mundo com os outros.
Casanova (2009) explora a ideia que existe modos de ser chamados de
impropriedade (inautenticidade) e propriedade (autenticidade). Esses
modos de ser são possibilidades constitutivas de todo o homem, dessa
forma seria um equívoco eliminar da existência do Ser um modo de ser
mais impróprio.
Segundo Heidegger (2002) há um contemplar acerca da
interpretação do modo de ser cotidiano inautêntico do Ser-aí, guiada a
partir do contexto impessoal e do fenômeno da decadência. Quanto ao
impessoal, não se trata de uma propriedade essencial do existente humano
ou um gênero qualquer do ser aí, isto é, o impessoal não deve ser
concebido como uma espécie de sujeito universal ou como algo
subsistente. O impessoal é um modo de ser no qual o si-mesmo do
existente se dispersa, pois este ente encontra-se empenhado no mundo das
ocupações cotidianas e por ele é absorvido.
De acordo com Sá (2013) a interpretação do ser-aí, bem como dos
outros demais entes intramundanos e de suas possibilidades é
disponibilizada e normatizada primeiramente pelo impessoal em sua
publicidade, que regulariza as operações interpretativas e compreensivas
na cotidianidade.
Heidegger (1969) pontua que a partir da pergunta pelo modo de
ser do ser-aí na cotidianidade mediana, abre-se caminho para uma análise
da estrutura existencial ser-no-mundo, a qual articula a existência e os
modos próprio e impróprio de Ser. A estrutura ser-no-mundo, embora
segundo Heidegger deva ser considerada em sua totalidade, deve ser
compreendida em cada momento que compõe sua estrutura. Os
momentos estruturais que compõe ser-no-mundo são três: o mundo, o
ente e ser-aí.
Ainda em Heidegger (1973) o ser-aí se angustia pelo simples fato
de estar no mundo, sua existência enquanto tal torna se angustiante, não
encontrando sossego em nenhum ente e por vez não conseguindo definir
sua angústia. O ser tem em comum com o nada o fato de não se esgotar
374 Ressonâncias filosóficas - Artigos

em nenhum ente determinado e não poder ser nunca definido, pois ambos
determinam o todo de nossa existência:

“Estamos suspenso” na angustia... a angústia nos suspende porque ela


põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós
próprios, os homens que somos, refugiarmo-nos no seio dos entes. É
por isso que, em última análise não sou ‘eu’ ou não és ‘tu’ que se sente
estranho mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro
ser-ai no estremecimento deste estar suspenso onde não há em que
apoiar-se (HEIDEGGER, 1973 p. 237).

Para tal, a vida autêntica surge quando somos capazes de dar


sentido a nossa vida, preenchendo o nada que nós próprios somos. O
mesmo destaca que a vida não tem um sentido, sendo essa denominada
em um eterno vazio. O sentido para a vida será dado por nossas escolhas:

A angústia é, dentre todos os sentimentos e modos da existência


humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua
totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão
na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o
homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa
dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em
sua dimensão mais profunda (HEIDEGGER APUD CHAUÍ, 1996, p.
9).

Segundo Heidegger (2002) o “homem” é passageiro, é lançado em


um mundo e está sempre entregue a responsabilidade de si mesmo. O ser-
aí, tem que cuidar de si mesmo, ou seja, é de sua responsabilidade cuidar
de sua existência. Assim, o termo “ser-aí” traz, característica que só pode
ser pensado com o comportar-se deste “ente” na sua existencialidade,
como pontua (FIGAL, 2005, p. 68).
O “homem” angustia-se, porém não consegue definir as causas.
Tal angústia não surge a todo momento, “a angústia, entretanto, é um
fenômeno que raramente ocorre, porque o homem cotidiano foge
constantemente de si mesmo, e do significado próprio de ser ele-mesmo,
de sua angústia” (LUIJPEN, 1973 p. 384).
Assim angústia e o nada tomam o todo do ser-aí, pois o simples
fato de existir o ser-no-mundo, podemos dizer que é a origem da angústia
que nos toma por inteiro:
O papel da angústia... 375

[...] na angústia, se está “estranho”. Com isso se exprime, antes de


qualquer coisa, a indeterminação característica em que se encontra a
presença na angústia: o nada e o ‘em lugar algum’. Mas, estranheza
significa igualmente ‘não sentir-se em casa (HEIDEGGER, 1986, p.
252).

O ser-aí, torna-se estranho na angústia, uma estranheza que o


conduz a não se sentir em seu mundo. Entretanto podemos revelar que o
lado positivo do fenômeno da angústia tem o propósito de coloca a
existência diante de si mesma, “na presença, a angústia revela o ser para o
poder ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e
escolher a si mesmo” (HEIDEGGER, 1986, p. 252).
A temporalidade é revelada na mortalidade inevitável, uma
condição existencial impossível de evitar. Haverá um momento em que
cada Dasein chegará ao fim de sua jornada existencial, quer isto lhe agrade
ou não, “com a morte, a pré-sença completou o seu curso”
(HEIDEGGER, 1986 p. 25). Isto, no entanto, remete à questão: como o
Dasein poderia estar em posição de conceber a totalidade? Justamente pela
capacidade de antecipar o futuro.
A Temporalidade revela se perante a mortalidade, condição dada
ao ser-aí, que é imbuído de uma constante incompletude. Portanto, não é
apenas o presente, mas também é este estender-se temporalmente que tem
um fim com a morte, “em sentido genuíno, não fazemos a experiência da
morte dos outros, no máximo, estamos apenas ‘junto’” (HEIDEGGER,
1997, p. 19).
Para Heidegger (2008) é na angustia que o ente compreende quem
ele é, percorrendo em uma busca de sentido para sua existência,
desvelando em sua plenitude. Experimentamos a angústia quando nos
sentimos fartos das coisas, tudo se torna igual, tudo perde sentido. A
angústia “emudece”, pois não há nada em que nos apoiar, nos restando
apenas o vazio que sentimos. Através da fenomenologia hermenêutica de
Heidegger, torna-se possível descrever sobre o sentido do ser-aí em caráter
de angústia, e o seu papel sobre o sentindo do seu existir, explicado através
de sua existência uma “vida onde angustia tem o seu papel em não deixar
sentido algum”.
376 Ressonâncias filosóficas - Artigos

REFERÊNCIAS

CASANOVA, Marcos Antônio. Compreender Heidegger. Rio de janeiro:


Editora Vozes,2009.

CHAUÍ, Marilene. Heidegger, vida e obra. In: Prefácio. Os Pensadores.


São Paulo: Nova Cultural, 1996.

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Tradução:


Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A existência para além do sujeito: a
crise da subjetividade moderna e suas repercussões para a possibilidade
de uma clínica psicológicas com fundamentos fenomenológicos-
existenciais. 1 ed. Rio de janeiro: Edições IFEN: Via Verita, 2011.

FIGAL, Gunter. Martin Heidegger: Fenomenologia da liberdade. Tradução:


Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Tradução: Ana Cristina


Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

HEIDEGGER, Martin. A essência da verdade. In: Marcas do Caminho.


Tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes,
2008a, 495p.

_____. A essência do fundamento. In: Marcas do Caminho. Tradução de


Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008b, 495
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_____. Introdução à metafísica. 2. ed. Rio de Janeiro-RJ: Tempo Brasileiro,


1969.

_____. Que é Metafísica. Tradução de Ernildo Estein. Abril cultural. São


Paulo: 1973.

_____. Seminário de Zollikon. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes; 2001.

_____. Sein und Zeit. Tübingen: M. Niemeyer, 1986. Disponível


em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000060&pid
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O papel da angústia... 377

_____. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989. v.2.

_____. Ser e Tempo (parte I). Tradução de Márcia Sá Cavalcante


Schuback. Coleção Pensamento Humano. Petrópolis: Vozes,1988, p.328.

_____. Ser e Tempo. Vol. 2. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 5º Ed.


Petrópolis RJ: Vozes, 1997.

_____. Ser e Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes, 1995.

_____. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback,


Petrópolis: Vozes, 2002.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva. 10 Lições sobre Heidegger.


Petrópolis: Vozes, 2015.

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à Fenomenologia


existencial. Trad. Carlos Lopes de Matos. São Paulo, EPU, Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1973.

SÁ, Roberto Novaes de. A Analítica Heideggeriana da Existência em “Ser e


Tempo”.
Disponível:<http://www.ifen.com.br/jornada/robertoanalitica_heidegg
eriana.pdf;Acesso em 29 de abril de 2017.

WERLE, Marco Aurélio. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Revista


Transformação vol.26 no.1 Marília 2003. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010131732003000100004&
script=sci_arttext&gt>Acesso em 01.05.2017.
XXXII

O PAPEL DA SUBJETIVIDADE NO PRINCÍPIO


EMANCIPATÓRIO DE RANCIÈRE

Daniel Du

RESUMO:

O presente artigo busca fazer uma pesquisa bibliográfica entre alguns


artigos acadêmicos de estudantes brasileiros sobre o método
emancipatório do filósofo francês Jacques-Ranciére e também abordando
diretamente a obra O Mestre Ignorante do mesmo, buscando alinhar a
forma como a filosofia do autor se aborda nos diferentes autores dos
diferentes artigos para, por fim, extrair do estudo qual a relevância que o
filósofo entrega para a subjetividade do indivíduo no uso do método
emancipatório. O Mestre Ignorante é uma obra que visa, com argumentos
lógico-filosóficos, mostrar de forma estética (por ser conta de uma das
áreas de conhecimento do autor francês) o fato de que as inteligências em
si são de fato iguais, ainda que suas manifestações se mostrem de formas
diferentes. Jacques Rancière é um filósofo francês, nascido em 10 de junho
de 1940, professor emérito na Universidade de Paris e um dos principais
filósofos de nosso tempo, como afirma o site da European Graduate
School. Os trabalhos de Rancière se dividem nos campos da política,
estética e educação, sendo este último campo o menos explanado de suas
obras, embora se relacione com o seu pensamento de modo geral através
de sua única obra voltada totalmente para o campo da educação, chamada
O Mestre Ignorante. Para Rancière, qualquer debate que seja perde o seu
sentido se não se afirma a igualdade das inteligências. Isto é, para um
debate digno, as pessoas que o debatem tem que se considerar iguais diante
da questão em que se é discutida, senão estabelece-se uma ideia falha de
hierarquia, quando em uma hipotética ocasião, um dos lados, senão os
dois, acreditam-se superior um ao outro, impedindo o verdadeiro debate.
O presente artigo busca fazer uma investigação que levanta não um
questionamento, mas sim um levantamento da importância que se dá à
manifestação da subjetividade na intelectualidade do indivíduo que,
segundo o autor, se mostram através da satisfação das vontades do sujeito
que conquista o conhecimento que lhe é próprio e livre a ser conhecido,
com a presença ou ausência do mestre perante o aluno; isto é, do
380 Ressonâncias filosóficas - Artigos

conhecimento conquistado, livre das mãos que controlam o que deve ser
ignorado e o que deve ser conhecido, numa amplitude mais aberta do
pensamento do autor.

PALAVRAS-CHAVE: Jacques-Racière; método emancipatório;


subjetividade.

Jacques Rancière é um filósofo francês, nascido em 10 de junho


de 1940, professor emérito na Universidade de Paris e um dos principais
filósofos de nosso tempo, como afirma o site da European Graduate
School. Os trabalhos de Rancière se dividem nos campos da política,
estética e educação, sendo este último campo o menos explanado de suas
obras, embora se relacione com o seu pensamento de modo geral através
de sua única obra voltada totalmente para o campo da educação, chamada
O Mestre Ignorante.
Para Rancière, qualquer debate que seja perde o seu sentido se não
se afirma a igualdade das inteligências. Isto é, para um debate digno, as
pessoas que o debatem tem que se considerar iguais diante da questão em
que se é discutida, senão estabelece-se uma ideia falha de hierarquia,
quando em uma hipotética ocasião, um dos lados, senão os dois,
acreditam-se superior um ao outro, impedindo o verdadeiro debate.
Estes pensamentos começaram a surgir para Rancière diante de
sua investigação intensa sobre os relatos de operários que antecedem o
século XIX, como mostra o artigo sobre o filósofo no site da European
Graduate School:

According to Rancière, debates amongst the various theoretical positions on education,


equality, ideology, and state apparatuses miss the point entirely unless they begin from
the premise and practice of an equality of intelligence. This pivotal point is at the center
of all of Rancière’s work. T/his "investigation of the origin, continuation, and
occasional subversion of the hiercharchical division of head and hand has been
launched on two fronts. The first might be called the archival level, the documenting,
chronicling, essentially recounting, of the experiences and voices of early-nineteenth
century workers"; and this "narrative work has run parallel to ... the second, more
polemical and discursive front: Rancière's critique of the claims of bourgeois observers
and intellectuals ... to know, and thus 'speak for' or explicate, the privileged other of
political modernity, the worker" (Ross, xviii/f).

Me parece aqui que Rancière centraliza a ilusão das inteligências


desiguais como problema chave na desigualdade social a partir do ponto
O papel da subjetividade... 381

em que se centraliza a divisão entre “cabeça” e “mãos” na sociedade; isto


é, a parte burguesa da sociedade reivindica a voz, fazendo-se com que os
indivíduos que não tomaram parte nessa reivindicação creiam-se carentes
da explicação daqueles que tomaram parte, isto é, que se fazem supostos
detentores do conhecimento. O francês enxerga o papel da política como
meio formador de uma sociedade de iguais, sociedade essa que por sua vez
busca uma hierarquia para manter seu funcionamento.
A proximidade das datas indica uma influência direta dos eventos
de maio de 1968 na obra de Rancière; eventos esses que são testemunha
de que a consequência da opressão é a revolução – e aqui tira-se um
momento de reflexão subjetiva sobre o conceito e etimologia da palavra –
. Pois dentro os diversos fatores que levaram à sequência de greves perante
o governo da época, o que o culminou foi a falha tentativa do governo
gaullista de tentar suprimir os ideais revolucionários com mais ações
policiais no Quartier Latin. Os protestos rapidamente tomaram força
nacional, abrangindo os colégios e universidades e inspirando obras como
o já conhecido filme de 2003, The Dreamers, que abordam a revolução
(onde no filme ela entende-se como revolução do social apoiada pelo
indivíduo, que se revoluciona também em sua subjetividade diante de seu
tempo, como mostra no filme, através das artes, da sexualidade e,
consequentemente, dos prazeres) ou mesmo o próprio O Mestre
Ignorante. Como a maioria dos insurretos eram adeptos de ideias
comunistas e/ou anárquicas, muitos tomaram o então momento como
uma chance de “espanar” os valores da velha guarda, trazendo para o
século 20 a introdução do pensamento milenar quando se diz respeito à
subjetividade, constância de mudança ou mesmo sobre os prazeres
individuais e, em Rancière, na educação.
A problemática de Rancière no contexto educacional bate de
frente com os valores até então impostos desde os primórdios do colégio,
onde a sociedade submete o indivíduo a partir de e em seus princípios
educacionais à função de ser útil ao próximo; coisa que para Rancière é
uma descoberta espontânea do indivíduo no caminho do aprendizado.
O Mestre Ignorante aborda a história de um personagem icônico
para o filósofo, isto é, aborda a história de Joseph Jacotot: um professor
de francês do século XIX exilado na Holanda, efetivamente licenciando,
apesar de ser total desconhecido do idioma da região e também o fato de
essa ignorância ser recíproca de seus alunos para com sua língua natal. Na
narrativa introdutória, Rancière conta que a saída de Jacotot fora permitir
382 Ressonâncias filosóficas - Artigos

aos seus alunos o contato com o idioma francês através de um dicionário


bilíngue; e os resultados não poderiam ser mais surpreendentes.
Diante da mostra trazida por Jacotot, Rancière desenvolve a obra
buscando a afirmativa da igualdade das inteligências, fundamentando-a no
ensino que é possível a partir da ignorância do mestre, além de descartar
todo um método embrutecedor presente nos mais mínimos detalhes da
educação, como a etimologia da palavra aluno, que remete a ideia do
indivíduo que entra em contato com a busca pelo conhecimento à ideia de
“desprovido de luz”, enquanto o mestre/professor, seria aquele que o
ilumina (apesar de não muito) caso o primeiro siga seus métodos e ordens,
talvez assim podendo o “aluno” sair da sala de aula um pouco mais
iluminado.
O problema é que o caminho do conhecimento não carece de dois,
mas apenas de um. Nos próprios exemplos do livro vimos que quando se
trata de “nascer sabendo”, nascemos “buscando saber”, diante da nossa
necessidade de realizarmos o nosso ser, coisa que só é possível diante da
mediação comunicativa, ou seja, diante da nossa necessidade de nos
inserirmos no mundo das pessoas falantes, nas palavras de Rancière. Da
mesma forma afirma Isis Correia em seu artigo de 2013 sobre a proposta
da emancipação de Jacques Rancière com seus exemplos voltados para a
historicidade do cidadão, enquanto aqui eu a abordo na historicidade do
indivíduo:

Há vários momentos na história em que os indivíduos se deparam com


situações de necessidade, isso é comum no processo de aprendizagem, a
necessidade surge como uma geradora de vontade. Em casos extremos
como, por exemplo, em períodos de guerras, é natural se ver jornaleiros,
padeiros, carpinteiros e donas de casa (pessoas que não entendem nada
sobre a arte da guerra) pegar armas, bombas e facas para simplesmente
ajudar no combate. Não porque eram capacitados para tal função, mas
sim porque se viram na obrigação de aprender, e servir em prol de seu
povo.

Até aqui a necessidade molda o indivíduo que busca satisfazê-la


cada vez com mais experiência e propriedade sobre os seus atos, e a
efetivação conclusiva se faz diante da evidência da primeira necessidade,
isto é, a da fala.
A busca pelo conhecimento aqui partiu do próprio indivíduo,
diante da vontade que se fez presente diante da necessidade; vontade essa
que está submetida à inteligência, na função de movê-la, e a inteligência,
O papel da subjetividade... 383

por sua vez, carrega consigo o raciocínio capaz de satisfazê-la. A falsa


necessidade da explicação é tautológica: “tudo está em tudo”, isto é, tudo
que foi feito por um homem, necessariamente é entendível por outro.
Rancière afirma que o ato de dizer “não posso” ou “não consigo” é uma
mentira que se conta a si mesmo diante da ausência da necessidade, que é
motivadora da vontade, que por sua vez motiva a inteligência; ou, pode-
se dizer também, que para o filósofo francês, este é um falso discurso
propagado e aceito pelo método embrutecedor ou, como queira chamar,
pelo mestre explicador, que na política de Rancière, é a burguesia.
A visão do autor é de uma sociedade embrutecedora onde o
cidadão que acredita carecer de um mestre explicador, apenas nisso
acredita por ter sido feito acreditar, isto é, a organização estatal ainda mais
no âmbito da educação precisa não só ser seguida como ser amada; ou
seja, os próprios mestres explicadores se fazem valer de toda a
redundância do sistema, explicando e inserindo na mente da população a
necessidade do método explicativo, isto é, do embrutecimento, que retira
toda a prioridade da vontade do indivíduo que realiza-se em seu ser através
da satisfação de suas vontades. Por conta disso, a instrução é um
instrumento que tem como prioridade, antes de qualquer coisa, beneficiar
o Estado, talvez não privando, mas tendenciosamente levando o indivíduo
a esquecer sua subjetividade, isto é, suas vontades. O caminho do
conhecimento que ele iria percorrer sozinho na busca pela realização de
seu ser agora é semi-apagado pela necessidade efetiva da existência, do
mantimento, tendo sua fonte no método embrutecedor, no prevalecer da
voz burguesa por sobre a voz operária; voz burguesa essa que, nos dias de
hoje, também acredita se fazer necessária do mestre explicador.
Ora, a emancipação aqui não fala sobre uma institucionalização
educacional; seria demasiado contraditório permitir ao indivíduo a busca
pelo conhecimento através da realização de suas vontades obrigando-o a
busca-las através de um contrato social, de qualquer forma, o indivíduo
como prioridade diante do conhecimento foi, aqui, novamente burlada. A
emancipação fala sobre a premissa básica da igualdade das inteligências
como meio para um fim, e não o fim de um meio; tendo essa premissa
como instrumento molda-se indivíduos aptos e abertos à busca pelo
conhecimento, conhecendo-se uns aos outros como universos diante de
seus subjetivos e campos de conhecimento. Como fala o próprio Rancière,
não é sobre construir uma sociedade de gênios, mas permitir aos cidadãos
conhecerem-se a si como gênios na potência de seu ser, se realizando
naquilo que os satisfaça.
384 Ressonâncias filosóficas - Artigos

O ensino universal não é nem pode ser um método social. Ele não pode
ser difundido nas instituições da sociedade, nem por iniciativa delas. Não
que os emancipados não sejam respeitosos da ordem social; eles sabem
que, de toda maneira, ela é menos nociva do que a desordem. Mas é tudo
o que lhe concedem, e decerto nenhuma instituição poder-se-ia
contentar com tão pouco. Não é suficiente que a desigualdade se faça
respeitar: ela quer ser objeto de crença e de amor. Ela quer ser explicada.
Toda instituição é uma explicação em ato da sociedade, uma encenação
da desigualdade. Seu princípio é e será sempre antiético ao do método
fundado sobre a opinião da igualdade e da recusa das explicações. O
ensino universal pode ser dirigido a indivíduos, jamais a sociedades (p.
146).

E aqui tomo as palavras de Cíntia Borges de Almeida, Mestre em


Educação pela UERJ:

Formar um povo tido como ordeiro ou civilizado, ao invés do discurso


emancipatório do Iluminismo – que vê na educação uma forma
privilegiada de saída da menoridade – é um procedimento disciplinar
claramente afeito aos objetivos de governo, tal como apresentamos aqui.
Regular condutas, promover estilos de vida e impedir outros, forjar uma
subjetividade cidadã, ordeira, civilizada tipifica a obrigatoriedade do
ensino como uma estratégia de poder como tantas outras.

Ora, o papel da educação para o mestre ignorante de Rancière não


vai dizer sobre não ensinar, ou ensinar errado, mas tanto de um verificador
do caminho que se toma para com o conhecimento, como também aquele
que instiga essa busca no aluno. Trata-se de aprender algo, e continuar
buscando, não de dizer o que deve ser aprendido ou como aprendê-lo; o
mestre ignorante não irá ignorar o que se ensina necessariamente, mas
necessariamente ignorará a desigualdade (das inteligências). Nas palavras
do autor:

É preciso ser sábio para julgar os resultados do trabalho, para verificar a


ciência do aluno. O ignorante, por sua vez, fará menos e mais, ao mesmo
tempo. Ele não verificará o que o aluno descobriu, verificará se ele
buscou. Ele julgará se estava atento. Ora, basta ser homem para julgar
do fato do trabalho (O mestre ignorante p. 42)

O mestre ignorante não fará do aluno seu dependente, pois por


ser ignorante no que verifica, será ele dependente do aprendizado do
aluno, atencioso na verificação do aprendizado e ciente da
O papel da subjetividade... 385

interdependência entre mestre e estudante, não na falha tentativa moderna


em que o professor é aquele que depende do “aluno” para tirar seu
sustento.
Não é um desmerecimento do aluno para com o professor, mas
uma preocupação individual movedora de um sistema social, não um
sistema social movedor de vontades subjetivas. A problemática de
Rancière se faz presente na alienação que, me parece, para Rancière
aparenta ser uma alienação de indivíduos movidas pelo Estado que busca
manter-se.
A revolução emancipatória de Rancière se faz presente quando
aquele que busca o conhecimento toma ciência de que essa busca é
espontânea e (dentre as possibilidades, pode ser) individual;
consequentemente, a emancipação é subjetiva. Não se trata de adotar um
método educacional eficiente ou o quer que seja, mas sim sobre voltar seus
olhos para si e reconhecer-se como ser inteligente que conhece o mundo
a todo o tempo; trata-se de uma espontaneidade de pensamento e de
constância de ação. Um indivíduo não impõe a outro a emancipação, o
outro conhece-se a si próprio como emancipado mediante suas próprias
motivações. Caminho esse que possivelmente será percorrido
naturalmente na história da humanidade, visto a historicidade dialética da
mesma basear sempre seu futuro na negação de seu passado. Ainda do
artigo de Isabela Gaglianone:

[…] a explicação não é outra coisa que a invenção da incapacidade do


outro. Explica-se, pois se tem criado com antecedência um incapaz que
precisa da explicação. A invenção da incapacidade do outro é o que
permite o nascimento da figura do explicador.

Faz-se presente no pensamento de Rancière também o


pensamento de vários pensamentos filosóficos da pós-modernidade que
anseiam angustiados o retorno em segurança da subjetividade dos
indivíduos para o pensamento social. A emancipação individual tende
consequentemente na empatia e evolução constante dos indivíduos
enquanto seres, para que possam por fim ser felizes em comunidade. O
caminho que a subjetividade deve percorrer parar poder libertar-se de suas
correntes é a própria dialética da negação. Até que se alcance esta visão de
mundo o indivíduo deve permitir-se para enfim romper com seus
preceitos e fazer valer-se mais ainda seu consciente subjetivo, ainda que
não se esqueça da objetividade social.
386 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Logo, a subjetividade tem em si como meio e fim no método


emancipatório; cabe ao indivíduo perceber-se detentor da busca pelo saber
como espécie efetivamente inteligente, e a partir daí fazer valer-se de seus
valores subjetivos e austeros, estes últimos que por conseguinte são
consequência da premissa que afirma a igualdade das inteligências, quase
como uma maiêutica socrática – com a única exceção de que Rancière põe
sobre Sócrates a imagem de mestre embrutecedor por este já ser aquele
que detém o conhecimento como se vê em seus diálogos. A saída
emancipatória do entorpecimento da alienação deve ser pelo lado oposto
ao que se faz o método explicador, isto é, se os problemas vem do controle
do Estado por sobre o indivíduo que impõe a vontade do governo –
estabelece-se aqui um alerta para a diferença das definições do que é
governo e o que é social – por sobre a vontade essencial, a vontade daquele
que a sente, provando no mais simples raciocínio lógico que a tentativa na
educação estatal de moldar uma subjetividade cidadã já é falha por si só;
cabe antes de tudo ao indivíduo conhecer-se a si e suas vontades, e
reconhecendo a si e seus semelhantes como efetivamente seus
semelhantes, ou seja, como inteligências iguais.
Para concluir, na afirmativa de Isabela Ganglianone:

[...] a escola burguesa, inserida na sociedade capitalista, não realiza outra


prática educativa senão reproduzir as relações sociais desiguais e injustas
através do ato de ensinar como também de sua estrutura burocrática e
institucional.

Entende-se aqui por escola burguesa, de acordo com a


problemática do ensino para Rancière, toda instituição educacional que
molde o indivíduo na seletividade do que ele conhece e do que ele ignora,
construindo um sujeito para sua efetivação prática em sociedade, que lhe
dá o conhecimento necessário apenas para a satisfação do poder de
consumir e obrigação do dever de trabalhar; sujeito esse que ignora as
necessidades que não se fazem iminentes, e que por muitas vezes se perde
de sua subjetividade, isto é, de si mesmo, servindo de mão para as cabeças,
incapaz de revidar porque já se esqueceu da própria vida, falho na crença
da efetividade do mestre explicador que busca não só ser acreditado como
também ser amado e buscado, embora não tão necessariamente em boa
parte das vezes. Me parece claro que (para Rancière) essa problemática não
diverge das instituições de ensino dos dias atuais: o enfrentamento se dá
na emancipação, e seu exército é o exercício da subjetivo – e aqui uma
O papel da subjetividade... 387

última ressalva para a etimologia da palavra: do latim ‘subjectivus’, que


significa ‘relativo ao sujeito’.

REFERÊNCIAS

CVJETICANIN, Srdjan. Jacques Rancière – The European Graduate School.


Disponível em:<http:/www. http://egs.edu/faculty/jacques-rancière>.
Acesso em: 24 jul. 2017.

Wikipédia. Maio de 1968 – Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em:<


https://pt.wikipedia.org/wiki/Maio_de_1968>. Acesso em: 24 jul. 2017.

BORGES DE ALMEIDA, Cíntia. Educação Pública – A obrigatoriedade do


aprender: uma política do estado contra os ideais emancipatórios de Rancière.
Disponível
em:<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0353.
html>. Acesso em: 24 jul. 2017.

DA COSTA CORREIA, Ísis Bruna. Emancipação intelectual: Uma proposta


de Jacques Rancière. Disponível em:
<https://revistalilliput.wordpress.com/2013/09/07/emancipacao-
intelectual-como-principio-de-igualdade-uma-proposta-de-jacques-
ranciere/>. Acesso em: 24 jul. 2017.

GAGLIONONE, Isabela. Educação emancipatória – O Benedito. Disponível


em:< https://obenedito.com.br/educacao-emancipatoria/>. Acesso em:
24 jul. 2017.

RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante – cinco lições sobre a emancipação


intelectual. Tradução de Lillian do Vale. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2002.
XXXIII

O PAUPERISMO DA FILOSOFIA:
a questão da objetividade nas ciências sociais e a
crítica ao racionalismo crítico de Karl Popper

Mario Cesar de Mello Pinheiro*

RESUMO

As teorias sobre epistemologia e metodologia do conhecimento científico,


desde sempre, discutem os problemas relativos à objetividade, à
neutralidade e aos métodos de investigação nas ciências sociais. Para
Michael Löwy [1938-?], as teorias que procuram responder estas questões
vinculam-se, de alguma forma, a uma das três grandes correntes do
pensamento contemporâneo: o positivismo, o historicismo e o marxismo.
Este trabalho pretende, portanto, expor e contrastar as explicações dadas
por estas teorias aos dilemas referentes ao modelo de conhecimento e às
perspectivas metodológicas nas ciências sociais, bem como analisar e
situar as contribuições de Karl Popper [1902-1994] sobre as indagações
acima mencionadas.

PALAVRAS-CHAVE: ciências sociais; epistemologia; metodologia;


objetividade; neutralidade; ideologia; positivismo; neopositivismo;
historicismo; marxismo; classes sociais.

33.1 CONCEITOS BÁSICOS

Löwy sintetiza este debate na busca de respostas para as seguintes


indagações:

Quais são as condições para tornar possíveis a objetividade e a


neutralidade nas ciências sociais? O modelo científico-natural de
objetividade é operacional para as ciências históricas? É concebível uma
ciência da sociedade livre de julgamentos de valor e de pressupostos
político-sociais? É possível eliminar as ideologias do processo de

* E-mail: mcdmp@uol.com.br
390 Ressonâncias filosóficas - Artigos

conhecimento científico-social? Não é a ciência social necessariamente


“engajada”, isto é, ligada ao ponto de vista de uma classe ou grupo social?
E, neste caso, seria possível conciliar esse caráter partidário com o
conhecimento objetivo da verdade? (LÖWY, 1991, p. 9).

Desse modo, antes de analisar-se como são respondidas pelas


diversas teorias as questões levantadas, torna-se conveniente esclarecer os
conceitos de objetividade, neutralidade e ideologia utilizados na
abordagem dos problemas.
a) OBJETIVIDADE - Do ponto de vista epistemológico, toma-
se como conceito inicial de objetividade a tentativa de buscar um
conhecimento científico da realidade que se afaste da sensibilidade
(sensações imediatas propiciadas pelos sentidos) e da subjetividade
(ideologias), com base em observações controladas, verificações, medidas
e experimentos, cuja validade seja garantida pela possibilidade de
reproduzi-los e testá-los (JAPIASSU, MARCONDES, 1990, p.183). Esta
definição, como se observará adiante, situa-se nos marcos do positivismo.
Lucien Goldmann [1913-1970], admitindo a influência
ineliminável das ideologias na atividade humana, inclusive na pesquisa
científica, o que, segundo ele, não invalida a busca do conhecimento
objetivo e verdadeiro, uma vez que, dependendo do ponto de vista
adotado, as diversas teorias podem ser mais ou menos verdadeiras, propõe
ao cientista, entretanto, alguns conselhos metodológicos que podem
auxiliar na sua investigação:
1) o investigador deve ter consciência de que as ideologias,
inclusive a sua própria, interferem no processo de investigação;
2) o investigador não deve evitar de questionar quaisquer teorias
ou pontos de vista e, se necessário, entrar conflito com os preconceitos
mais arraigados, com as autoridades mais estabelecidas e com as verdades
aparentemente mais evidentes, sem temer qualquer ortodoxia ou qualquer
heresia;
3) o investigador deve propor-se, de forma contínua e permanente,
a fazer autocrítica de seus próprios pensamentos e resultados
(GOLDMANN, 1980, p. 49).
Vale, então, que o cientista adote, como imperativo moral e
pressuposto metodológico, a máxima de duvidar sempre...
De antemão, pode-se afirmar que os problemas da objetividade
nas ciências sociais residem na especificidade de que seu objeto não pode
ser reproduzido experimentalmente e de que a ação do sujeito
O pauperismo da filosofia... 391

cognoscente (o homem) compreende, também, o objeto do


conhecimento.
b) NEUTRALIDADE - Em relação à epistemologia, a
neutralidade remete à pretensa imparcialidade das ciências. O
conhecimento científico-social seria neutro por ser fatual e meramente
descritivo, sem emitir juízos de valor (opiniões).
Todavia, uma vez que o conhecimento científico está situado num
contexto histórico-social, sendo influenciado por interesses, valores e
preconceitos dos próprios indivíduos e grupos que produzem esse
conhecimento, a ciência (e, principalmente, as ciências sociais) não poderia
estar imune aos elementos ideológicos, não poderia, assim, ser neutra
(JAPIASSU, MARCONDES, 1990, p. 179).
c) IDEOLOGIA - Enquanto que, de maneira geral, a polêmica
sobre a objetividade e a neutralidade do conhecimento científico refere-se
não a definição destes conceitos, mas a sua efetividade, o conceito de
ideologia possui significados diversos.
A origem do termo deve-se a Destutt de Tracy [1754-1836],
filósofo francês cujo tratado, Elementos de ideologia, publicado em
1801, designa-a como o estudo das ideias, situando a ideologia como uma
parte da zoologia. Trata-se, pois, de uma perspectiva científico-naturalista
e empirista, de matriz positivista.
A partir de Karl Marx [1818-1883], o termo passa a conter, pelo
menos, duas interpretações. Uma, negativa, exposta por Karl Marx e
Friedrich Engels [1820-1895] n’A ideologia alemã (em 1846) e adotada
por Louis Althusser [1918-1990], que define a ideologia como falsa
consciência, ou seja: como um conjunto de ideias especulativas e ilusórias
sobre a realidade que correspondem aos interesses particularistas de uma
classe social (MARX, ENGELS, 1980, p. 25).1 Outra, positiva e mais
ampla, preferida por Vladimir Lênin [1870-1924] e Antônio Gramsci
[1891-1937] e expressa por Marx no prefácio à Contribuição à crítica da
economia política (em 1859) e no Dezoito Brumário (em 1852), que a
define como um conjunto de ideias, princípios e valores que refletem uma

1 Mesmo n’A ideologia alemã, a dubiedade que origina as duas concepções de ideologia
manifesta-se. Em passagem cortada do manuscrito, Marx afirma: “As representações aceitas
por estes indivíduos são idéias quer sobre suas relações com a natureza, quer sobre as relações que
estabelecem entre si ou quer sobre sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, tais
representações constituem a expressão consciente – real ou imaginária – das suas
relações e da sua atividade reais, da sua produção, do seu comércio, do seu
(organização) comportamento político e social” [grifo nosso, p. 25).
392 Ressonâncias filosóficas - Artigos

determinada visão social de mundo (enquanto expressão de uma classe


social), que orienta as ações humanas (LÖWY, 1991, p. 96).2
Em ambas as concepções, embora sua divergência de fundo,
constatam-se dois aspectos coincidentes: as ideologias seriam um reflexo
da base material da sociedade (da infraestrutura econômica ou das relações
sociais de produção) e constituiriam formas de expressão particulares das
classes sociais (MARX, ENGELS, 1980, p.301).3
É a segunda conceituação, porém despida de seu conteúdo
economicista, que interpreta as ideologias como visões de mundo,
condicionadas pela base material e pelas relações sociais, que
orientam a práxis dos sujeitos, a que será utilizada neste trabalho,
independentemente do fato de uma determinada ideologia ser mais crítica
ou apologética em relação à ordem estabelecida.

33.2 POSITIVISMO

Conforme Löwy, o positivismo constitui um sistema teórico


coerente e operacional, surgido em fins do século XVIII e início do século
XIX, que se baseia, de modo geral, nas seguintes premissas:
1) a sociedade, tal como a natureza, é regida por leis naturais que
independem da vontade e da ação humanas;
2) a sociedade pode, portanto, ser estudada pelos mesmos
métodos utilizados pelas ciências da natureza;
3) o conhecimento científico pode e deve limitar-se à observação
e à explicação causal dos fenômenos, de maneira objetiva e neutra, livre
das ideologias (LÖWY, 1991, p.17).

2 O autor adota a concepção de ideologia como falsa consciência (forma de pensamento


orientada para a reprodução da ordem estabelecida), opondo-a ao conceito de utopia
(conjunto de representações que se orientam na direção da ruptura da ordem
estabelecida), alegando manter a dimensão crítica original do termo ideologia em Marx
(p. 10 e 11). Ora, esta interpretação acaba por negar qualquer validade/veracidade,
mesmo que parcial, de um conhecimento influenciado por uma visão de mundo
conservadora, o que contradiz a metáfora do observatório por ele adotada, na qual os
mirantes (pontos de vista) mais baixos “permitem também ver uma parte da paisagem”, ainda
que limitada e insuficiente (p. 203).
3 Prefácio à Contribuição à crítica da economia política . p. 301 (Obras Escolhidas, v.

1). Em diversas passagens de outros escritos, Marx usa, às vezes, a expressão “relações
sociais”, o que permitiria uma abordagem menos economicista.
O pauperismo da filosofia... 393

Seguindo a tradição marxista, Löwy define o positivismo como:


[...] uma utopia crítico-revolucionária da burguesia antiabsolutista [que
se tornou], no decorrer do século XIX até nossos dias, uma ideologia
conservadora identificada com a ordem (industrial burguesa)
estabelecida (LÖWY, 1991, p. 18).

Mais adiante, serão abordadas as relações entre conhecimento e


ideologia e entre ideologia e classe social.
Por ora, interessa-nos observar que o positivismo, em que pese ser
influenciado pelas ideologias de sua época, procura negar o
condicionamento histórico-social do conhecimento, tendo por princípio
uma possível neutralidade das ciências sociais.
Influenciado pela filosofia iluminista, em especial pelas ideias de
leis naturais e de uma ciência da sociedade análoga ao modelo das ciências
da natureza, o positivismo possuiu, na origem, um caráter progressista de
questionamento à ordem feudal-absolutista e à ideologia clerical.
A tentativa de construir uma ciência neutra, imune aos interesses
e paixões tal como a física e a matemática, constitui a base do pensamento
positivista. Assim, Condorcet [1743-1794] defende a ideia de que as
ciências sociais seriam uma espécie de “matemática social”, baseadas no
cálculo das probabilidades. Saint-Simon [1760-1825], por sua vez, afirma
que as ciências sociais devem adotar os métodos das ciências naturais,
caracterizando-se como uma “fisiologia social” (LÖWY, 1991, p. 19).
Enquanto que, em Condorcet e Saint-Simon, o cientificismo
positivista constituía uma abordagem crítica ao obscurantismo clerical
dominante na época, os positivistas seguintes, já no momento de
afirmação da sociedade capitalista, passaram a utilizar as analogias da
sociedade com os objetos das ciências naturais com um significado de
conservação da ordem capitalista estabelecida. Trata-se, na conceituação
de Löwy, da passagem do positivismo da utopia para a ideologia...
Para Löwy, é justamente quando o positivismo perde muito de seu
valor científico, devido ao seu caráter apologético do capitalismo, que ele
se estabelece como um sistema filosófico, conceitual e axiológico, a partir
da obra de Augusto Comte [1798-1857], considerado (e não Condorcet) o
fundador da teoria. Comte propõe o rompimento com os “preconceitos
revolucionários” de seus antecessores, que os impediam, segundo ele, de
descobrir as “leis sociológicas” e anuncia a criação da “física social”
(sociologia), ciência que tem por objeto o estudo dos fenômenos sociais
considerados similares aos fenômenos astronômicos, físicos, químicos e
394 Ressonâncias filosóficas - Artigos

fisiológicos, isto é, sujeitos a leis naturais invariáveis (LÖWY, 1991, p. 22


e 23).
Se Comte criou o termo sociologia, é Émile Durkheim [1858-
1917] quem vai estabelecer as bases da sociologia como uma disciplina
científica. Para ele, os fenômenos sociais são fatos naturais submetidos a
leis naturais, sendo que a sociedade seria análoga a um ser vivo, um sistema
de órgãos diferentes no qual cada um tem uma função específica. Trata-se
do paradigma organicista, a sociologia como “biologia social”, que daria
origem, mais tarde, as teorias funcionalistas e a teoria geral dos sistemas
(cujo modelo analógico é a cibernética). O cientista, na visão positivista de
Durkheim, deve estudar o comportamento social como um biólogo estuda
uma colmeia. Para tanto, deve despir-se de quaisquer influências, o que,
no fundo, equivale a uma postura subjetiva de tentar ser isento, ou seja: a
intenção de não ter nenhuma intenção... Ora, isto representa uma
impossibilidade real e uma impossibilidade lógica (contradição de termos).
Pelo exposto, observa-se que o núcleo central do positivismo
corresponde à uma visão anistórica e objetivista da sociedade, em que esta
é submetida a leis naturais tais como as das ciências positivas. Em
decorrência deste pressuposto, o positivismo entende que os métodos de
investigação das ciências sociais devem ser similares aos das ciências
naturais.
Maria Cecília Minayo assim sintetiza as teses positivistas:
1) a realidade constitui aquilo que nossos sentidos percebem
(empirismo);
2) as ciências sociais e naturais possuem um mesmo fundamento
lógico e metodológico;
3) há uma distinção entre fato e valor, sendo que a ciência ocupa-
se dos fatos e deve livrar-se dos valores (MINAYO, 1997, p. 34).

33.3 HISTORICISMO

Löwy caracteriza o historicismo, corrente que surgiu, também, no


final do século XVIII e início do século XIX na Alemanha, como uma
reação conservadora à filosofia iluminista, cuja base social seriam as classes
e os setores hostis à sociedade capitalista (nobreza, clero etc.). Em que
pese seu caráter originário conservador, Löwy reconhece nesta corrente o
mérito de possibilitar uma visão mais realista do capitalismo, contribuindo
para a compreensão da historicidade dos fatos sociais e das contradições
existentes na sociedade.
O pauperismo da filosofia... 395

Segundo Löwy, as premissas básicas do historicismo são as


seguintes:
1) todo o fenômeno social, seja ele cultural ou político, é histórico
e somente pode ser compreendido através de e em sua historicidade;
2) os fatos naturais são diferentes dos fatos sociais e,
consequentemente, são também diferentes as ciências e os métodos de
investigação que os estudam;
3) a historicidade inclui não somente os fatos sociais, objeto das
ciências sociais, mas igualmente o sujeito que os estuda, seus métodos e
seus pontos de vista (LÖWY, 1991, p. 63 e 64).
O historicismo conservador alemão julgava as instituições
prussianas legítimas porque constituíam manifestações da própria
realidade histórica. Entretanto, para este historicismo conservador, os
valores não seriam produzidos pelo sujeito cognoscente, mas pelo próprio
processo histórico, que seria carregado de valores. Trata-se, portanto, de
uma naturalização da história. Assim, enquanto o positivismo servia ao
status quo por considerar a realidade como consequência da “ordem natural
das coisas”, o historicismo conservador também servia ao establishment por
considerar a realidade como um “produto natural da história”. A
diferença, todavia, estava no fato de que a teoria historicista continha um
germe subversivo: se as instituições (e os fenômenos sociais) são um
produto da história, o processo de mudança constante da história deveria
provocar a mudança das instituições...
Esta relatividade dos fenômenos sociais daria origem ao
historicismo relativista, do qual Wilhem Dilthey [1833-1911] foi o
principal teórico. Conforme Löwy, o relativismo histórico de Dilthey
diferencia as “ciências do espírito” das ciências da natureza, com base em
três características:
a) a identidade entre sujeito e objeto nas ciências sociais;
b) a unidade inseparável dos julgamentos de fato e de valor;
c) os fatos sociais são vivenciados pelo sujeito e precisam ser
compreendidos, enquanto que os fenômenos físicos são exteriores ao
sujeito e podem ser explicados de fora (LÖWY, 1991, p. 69).
Max Weber [1864-1920], influenciado pelo historicismo
neokantiano de Dilthey, defende que a atribuição de importância a
determinados fatos históricos deve-se à sua relação com as escalas de
valores da sociedade. De acordo com Weber, em posição parecida com a
do historicismo, os valores não estariam vinculados às classes sociais
(como entende o marxismo), mas à cultura e à religião das sociedades.
396 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Assim, os fatos históricos importariam por sua significação. Todavia, em


que pese admitir a influência dos valores e pontos de vista na abordagem
histórica, Weber acaba resvalando para o positivismo, ao propor a
separação entre os julgamentos de fato de valor e ao defender a
possibilidade de uma neutralidade axiológica na elaboração científica.
Conforme Goldmann, Weber reconhece a intervenção dos juízos de valor
na escolha e na construção do objeto de estudo das ciências sociais, mas,
a partir daí, entende ser possível estudá-lo de maneira objetiva, sem utilizar
preconceitos ideológicos (GOLDMANN, 1980, p. 34).
O grande mérito do historicismo foi o de estabelecer a diferença
entre os fatos e comportamentos humanos (objetos das ciências do
espírito) dos fenômenos físicos e naturais (objetos das ciências da
natureza). Trata-se, portanto, não só de tentar compreender as ações
humanas e suas intenções, mas, também, de analisar as condições em estas
ações ocorreram e os seus resultados (nem sempre coincidentes com os
fins perseguidos pelos grupos sociais).
O problema do relativismo de Dilthey é que não consegue
responder as seguintes questões: primeira, como o conhecimento da
sociedade pode ser historicamente limitado e, ao mesmo tempo, objetivo
e verdadeiro? Segunda, sendo cada visão de mundo historicamente
condicionada, portanto limitada, relativa e unilateral, qual a mais objetiva
e verdadeira?
As soluções para este dilema, com base na perspectiva relativista,
acabaram resvalando para o ecletismo, como na obra de Georg Simmel
[1858-1918], ou oscilando entre o ecletismo e o positivismo, como na
sociologia histórica de Karl Mannheim [1893-1947].
Após transitar por uma visão idealista, Mannheim adota o
historicismo relativista, combinando-o com certas abordagens marxistas.
Sua principal ideia refere-se à “dependência situacional” do conhecimento
histórico, defendendo que o sujeito observador dos fatos sociais é sempre
influenciado por uma determinada posição filosófico-histórica oriunda de
certas camadas sociais e de sua dinâmica. Considerando as diferentes
representações da história como não contraditórias, pois corresponderiam
a distintas visões de um mesmo objeto, ele propõe uma solução eclética: a
“síntese” das diferentes posições (LÖWY, 1991, p. 77).
Para Mannheim, as diversas perspectivas sociais (ideologias totais,
como define) representam não só ilusões, mas, também, conhecimentos
verdadeiros sobre a realidade. Aproximando-se do marxismo, reconhece
neste uma visão mais abrangente do real, cuja posição mais elevada
O pauperismo da filosofia... 397

permitiria um “alargamento do campo de visibilidade”. Para tanto,


Mannheim usa a metáfora do observatório (LÖWY, 1991, p. 80).
Todavia, ao considerar, corretamente, que todo o conhecimento,
inclusive o marxismo, é condicionado e limitado historicamente,
Mannheim resvala para o ecletismo, propondo a “síntese” dos pontos de
vista parciais, como forma de tentar resolver o dilema da busca da verdade
objetiva nas ciências sociais. Ora, a posição intermediária entre o ponto
mais baixo e o mais elevado do observatório por certo não corresponderia a
uma melhor visão dos fatos sociais. Além disso, os sujeitos capazes de
realizarem esta síntese, para ele, seriam os intelectuais (que considera não
vinculados às classes sociais e à produção material). Caberia, portanto, a
intelligentsia optar entre a adesão a uma das classes ou a tomada de
consciência de sua predestinação social (LÖWY, 1991, p. 84).
Sem explicar suficientemente a defesa de uma possível
neutralidade dos intelectuais, Mannheim, mais tarde, vai relativizar de vez
seu próprio historicismo relativista, questionando a separação estabelecida
entre as ciências da natureza e as ciências sociais e propondo um
conhecimento objetivo a partir do autocontrole do cientista social, em
clara capitulação aos postulados positivistas (LÖWY, 1991, p. 87).

33.4 MARXISMO

De acordo com Löwy, o marxismo foi a primeira corrente a


colocar o problema do condicionamento histórico e social do
pensamento.
Conforme já foi exposto, existem, pelo menos, duas concepções
de ideologia no pensamento marxista. Em A ideologia alemã, aparece a
definição de ideologia como falsa consciência, como formas especulativas,
idealistas e metafísicas da consciência social. Tem-se, aqui, um conceito
negativo de ideologia e uma oposição entre esta e o conhecimento
científico. Este marxismo positivista, que se intitula a ciência do
proletariado, torna-se uma tautologia: renega sua historicidade ao mesmo
tempo em que, contraditoriamente, critica a historicidade das outras
teorias e ideologias, combate o particularismo de classe das outras
concepções, mas a partir de uma visão também particularista que, no
entanto, pretende-se universal.
Ao refutar esta concepção de ideologia como falsa consciência em
Marilena Chauí (exposta no seu livro O que é ideologia), cujas
398 Ressonâncias filosóficas - Artigos

formulações assemelham-se às de Althusser, Adelmo Genro Filho [1951-


1988] argumenta:

Estamos aqui diante de algo muito semelhante ao velho argumento


teológico da ‘causa primeira’: se tudo deve ter uma causa, o universo
necessariamente implica numa causa anterior a ele, que só pode ter sido
Deus. Diante do que um lógico e ateu como Bertrand Russel contestava:
se a premissa de que tudo deve ter uma causa é realmente universal, isso
deve necessariamente incluir Deus. Marilena Chauí raciocina assim: se
todo o real é histórico, é necessário que algo deixe de ser histórico para
apanhar o real em sua dimensão de historicidade. No entanto, a
consciência da historicidade é ainda uma consciência histórica. (...)
Assim, o marxismo não tem uma dimensão supra-histórica.” (GENRO
FILHO, 1986, p. 95).

Por outro lado, no prefácio à Contribuição à crítica da


economia política e no Dezoito Brumário, constata-se uma outra
definição, mais fértil, de ideologia como visão social de mundo, como
expressão do ponto de vista de uma classe social determinada, como o
conjunto de ideias orientadoras das práticas sociais. Nesta definição, não
há, em princípio, um antagonismo entre ciência e ideologia (MARX, 1978,
p. 45).4
Não obstante as diferenças entre as duas definições, pode-se
apontar, ao menos, uma identidade: ambas vinculam as ideologias ou
visões de mundo às classes sociais.
A grosso modo, pode-se adiantar que a escolha por uma destas
definições é decorrente da adoção, também, de uma das concepções
filosóficas possíveis que podem ser extraídas da obra de Marx:

Hoje é preciso distinguir no marxismo duas grandes correntes


dogmáticas. São duas linhas divergentes que saem de um mesmo ponto
(Marx) para formar um ângulo. Se percorrermos essas linhas no
sentido oposto teremos outro ângulo, anterior a Marx, representando

4 “Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais, maneiras de pensar e concepções
de vida distintas e peculiarmente constituídas. A classe inteira as cria e as forma sobre a base de suas
condições materiais e das relações sociais correspondentes.”. Observa-se aqui uma concepção
materialista porém não economicista das ideologias, embora as vincule às classes sociais.
Ao invés de compreender o pensamento como um produto das relações econômicas ou
das relações sociais de produção, Marx o situa sobre as formas de propriedade e
condições sociais, sobre as condições materiais e relações sociais (sem limitá-las, neste
texto, à produção).
O pauperismo da filosofia... 399

cada uma delas, respectivamente, o idealismo e o materialismo ingênuo.”


(GENRO FILHO, 1980, p. 85).

Assim, temos, por um lado, uma tendência


naturalista/determinista na obra de Marx que deu origem, para
exemplificar, ao stalinismo e às teorias de Althusser, cujo caráter
cientificista (“leis naturais” da economia etc.) leva a uma visão parecida
com o positivismo, entendendo a ideologia como falsa consciência e
opondo-a ao conhecimento científico; por outro lado, encontra-se uma
tendência idealista/historicista, caracterizada no pensamento de György
Lukács [1885-1971] e de Antônio Gramsci [1891-1937], para ficarmos nos
exemplos mais conhecidos, que interpreta o marxismo como uma filosofia
da práxis, onde a história aparece como produto da automediação da
atividade humana e a ideologia é concebida como uma visão de mundo
que orienta esta atividade (inclusive a científica). Estas últimas constituem
as contribuições mais fecundas ao marxismo e ao próprio conhecimento
humano.
Dessa forma, descartando a existência de “leis naturais” ou
econômicas que determinem o destino dos homens e da sociedade
(postulados do positivismo e do marxismo determinista), resta ver como
o marxismo historicista abordou os dilemas referentes à objetividade e à
relatividade das ciências sociais.
Com base no Dezoito Brumário, Löwy sintetiza a formulação
adotada pelo marxismo historicista:
a) as classes, conforme sua posição social, criam e formam as suas
ideologias;
b) a visão social de mundo das classes sociais corresponde não só
aos seus interesses materiais (econômicos), mas também à sua situação
social (conceito que Löwy entende mais amplo e que permite superar a
concepção reducionista do determinismo econômico);
c) os intelectuais são relativamente autônomos com relação às
classes sociais; o que os faz representante de uma classe é a ideologia que
produzem (e reproduzem, poder-se-ia acrescentar);
d) a ideologia não é uma ou outra ideia isolada, mas uma certa
forma de pensar o mundo, uma certa perspectiva intelectual de
compreender e atuar na realidade;
e) a ideologia não é, necessariamente, uma mentira ou ilusão
(LÖWY, 1991, p. 97).
Goldmann, provavelmente tendo por base a metáfora do
observatório de Mannheim, argumenta que o fato do conhecimento social
400 Ressonâncias filosóficas - Artigos

estar vinculado a uma visão particular de classe não o conduz ao


relativismo, posto que as “consciências possíveis” das diferentes classes
sociais não se situam no mesmo plano: algumas permitem uma maior
compreensão da realidade do que outras (GOLDMANN, 1980, p. 42 e
43).

33.5 NEOPOSITIVISMO DE POPPER

Karl Popper [1902-1994], em A obra aberta e seus inimigos, posiciona-


se, assim como Max Weber [1864-1920], contrário inicialmente à tradição
positivista de Comte e Durkheim, no que diz respeito ao princípio da
neutralidade nas ciências sociais. Para ele, a ciência não é um simples
conjunto de fatos, sendo inevitável o ponto de vista do sujeito
cognoscente. Mais, chega a afirmar, nesta obra, que é, inclusive, indesejável
o controle da manifestação subjetiva do cientista, pois isso acarretaria
transformar a teoria científica em um conjunto de informações desconexas
em vez de uma descrição mais objetiva da realidade.
Entretanto, ao repelir as concepções sociológicas de inspiração
marxista que vinculam os pressupostos cognitivos aos grupos e classes
sociais, bem como ao desprezar os condicionamentos históricos e sócio-
culturais propostos por Weber, o pensamento de Popper acaba devotando
fé na “unidade racional dos homens” e atolando-se no pântano dos
fundamentos epistemológicos do positivismo.
Inicialmente, ele próprio critica o positivismo ao polemizar com
Mannheim e refutar a sua proposta derradeira do autocontrole do cientista
individual. Para Popper, a objetividade científica não pode ser o resultado
da “boa vontade” individual do cientista, pois não existe forma do
indivíduo desembaraçar-se de seus preconceitos. Logicamente, pergunta
como o cientista poderia reconhecer-se livre, de fato, dos preconceitos?
(LÖWY, 1991, p. 48 e 49)
Popper entende que a objetividade científica ao nível individual é
impossível, tanto nas ciências sociais quanto nas ciências da natureza:

É inteiramente falso crer que as ciências da natureza são mais objetivas


que as ciências sociais. O cientista natural é tão tendencioso como todos
os outros homens e é infelizmente... em geral extremamente unilateral e
tendencioso no preconceito em favor de suas próprias ideias (POPPER
apud LÖWY, 1991, p. 59).5

5 Karl POPPER. A lógica das ciências sociais. Apud Michael LÖWY. Op cit. p. 59.
O pauperismo da filosofia... 401

Assim, se para o positivismo a objetividade absoluta era possível


em ambos os tipos de ciência a partir da postura metodológica do cientista
individual, para Popper ela não ocorre em nenhum. Não obstante seu
argumento ser invertido, uma consequência lógica das duas premissas
pode ser evidenciada: ao recusar a distinção entre as ciências sociais e as
ciências da natureza em relação ao problema da objetividade, um dos
postulados essenciais do positivismo, Popper caba estabelecendo uma
identidade entre elas, tal como o positivismo.
O equívoco de Popper consiste em situar o papel das ideologias
no plano estritamente individual. Daí que sua solução para o problema da
objetividade encontra-se no “aspecto social do método científico”. Desse
modo, a ideologia teria um caráter individual, enquanto que a ciência seria
um produto social.
A objetividade científica, entendida como a intersubjetividade do
método científico, seria o resultado de dois fatores:
1) a liberdade de crítica;
2) a existência de uma linguagem científica comum.
Estes fatores constituem, para ele, o “caráter público do método
científico”, cuja garantia é dada pelas diversas instituições científicas
(laboratórios, publicações etc.), que configurariam a “objetividade
institucional”, capaz de corrigir e eliminar as parcialidades individuais e de
classe.
Löwy questiona esta argumentação neopositivista de Popper,
enfatizando que ele próprio admite que seu “modelo institucional” tem
por base as ciências naturais. Aqui se observa, portanto, a segunda
identidade com o positivismo: a busca de um mesmo método científico
para as ciências da natureza e sociais.
Além disso, aponta duas questões ignoradas por Popper:
a) as instituições científicas não estão imunes às pressões sociais
(em especial das forças econômicas que as controlam e financiam);
b) em que pesem a existência de instituições científicas e a busca
de uma linguagem comum, nem sempre ocorre o consenso entre os
cientistas (por exemplo, cita polêmicas como a “teoria do valor” – poder-
se-ia citar a própria problemática da objetividade...).
Para Löwy, o consenso, com limitações, é possível nas ciências
naturais, onde as ideologias e os pontos de vista de classe não
402 Ressonâncias filosóficas - Artigos

desempenham um papel tão importante como nas ciências da sociedade


(LÖWY, 1991, p. 50, 51 e 52).
Posição idêntica é defendida por Goldmann, para quem a busca
do conhecimento mais adequado é uma prática quase universal nas
ciências da natureza atualmente (nem sempre foi assim, lembra ele, citando
a polêmica sobre o geocentrismo nos séculos XVI e XVII). Por outro lado,
algumas pesquisas científicas ainda hoje geram controvérsias que
envolvem interesses, como é o caso da biotecnologia com a produção de
alimentos transgênicos. Já nas ciências sociais, devido à implícita ou
explícita existência de juízos de valor, esta tendência à unanimidade ou
consenso não ocorre (GOLDMANN, 1980, p. 31 e 32).

33.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora uma série de conceitos marxistas precisem ser revistos ou


aprofundados (consciência de classe, ideologia como visão de classe social
etc.), o marxismo (em especial aquele das Teses sobre Feuerbach e do
Dezoito Brumário e de alguns autores mais contemporâneos) ainda
constitui o principal referencial teórico para a abordagem dos fenômenos
sociais, da relação entre sujeito e objeto no processo de conhecimento,
dos métodos de investigação das ciências, da questão da objetividade
científica etc. Parafraseando-se Sartre, poder-se-ia afirmar que, se o
marxismo não é a filosofia insuperável de nosso tempo, ele é, ainda, uma
referência incontornável.
Este trabalho adota, portanto, de uma maneira crítica, as
contribuições marxistas, em especial as do marxismo historicista, para a
análise das ideologias, da especificidade entre ciências naturais e sociais e
da busca do conhecimento objetivo e verdadeiro em ciência.
No que se refere às classes sociais, por exemplo, Aldo Fornazieri
questiona a relação entre ser e consciência em Marx, não obstante o faça
a partir de uma postura marxista:

[...] o fundamento decisivo da história é a consciência e não o ser social


empírico. Que as classes são forças sociais empíricas que atuam na
história não há dúvida. O problema todo consiste em como atuam e com
que objetivos atuam. O como atuar e o como e para quê se deve atuar é
uma questão de consciência, só pode ser decidida em termos de sujeitos
históricos e não em termos da existência empírica e de atuação imediata
e espontânea (FORNAZIERI, 1988, p. 55).
O pauperismo da filosofia... 403

Vimos que, para Löwy e para o marxismo historicista:


a) as classes sociais produzem suas ideologias;
b) os intelectuais são relativamente autônomos em relação às
classes;
c) os intelectuais produzem, também, ideologias (LÖWY, 1991,
p.97).
Ora, observa-se, aqui, uma ambiguidade: tanto as classes como os
indivíduos são produtores de ideologias. Este problema já estava explícito
na obra de Vladimir Lênin [1870-1924], em que a doutrina socialista (ou a
ideologia revolucionária do proletariado):

nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos


representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os
fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels,
pertenciam eles próprios, por sua situação social, aos intelectuais
burgueses” (LÊNIN, 1979. p. 24 e 25).

Esta definição tem consequências epistemológicas que contrariam


o marxismo ortodoxo. Primeiro, admite uma certa autonomia dos
indivíduos em relação à sua classe social, em relação ao lugar que ocupam
nas relações sociais de produção. Segundo, admite, também, uma certa
autonomia da superestrutura (instituições políticas, ideologias etc.) em
relação à infraestrutura (base econômica) da sociedade, reconhecendo que
a superestrutura não somente age sobre a base material, mas, também, age
sobre ela mesma. Terceiro, admite que os indivíduos são produtores de
ideologias, independentemente de sua classe social, ainda que inseridos
numa dada realidade (base material).
Com base nesta interpretação de Lênin, Fornazieri conlui que:

a classe operária não é o sujeito portador e fundador da consciência


socialista. A consciência socialista é uma forma de consciência histórica;
surge e se desenvolve teoricamente a partir de um determinado
momento histórico e com base em uma concepção (ou teoria) geral da
história imbricada com teorias filosóficas, econômicas, científicas, etc.
(...) A teoria socialista, como consciência histórica universal, é fruto da
elaboração de intelectuais independentemente a que classe pertençam.”
(FORNAZIERI, 1988, p. 37).

É claro que esta produção, pelos indivíduos e grupos sociais, é


condicionada pela realidade em que vivem, pois como lembra Marx no
Dezoito Brumário:
404 Ressonâncias filosóficas - Artigos

os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com
que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A
tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos” (MARX, 1978, p. 17).

Assim, o conjunto de concepções políticas, jurídicas, éticas e


filosóficas que constituem as ideologias são produzidos pelos indivíduos
e grupos sociais com base nas relações que estabelecem entre si na
sociedade, relações que são mais amplas que aquelas limitadas ao nível
econômico, embora estas também influenciem na elaboração das ideias e
dos valores. As ideologias, então, quanto mais conseguem dar alguma
explicação sobre a realidade circundante e orientar as ações humanas,
inclusive a atividade científica, mais tendem a universalizar-se e a adquirir
uma força material.
É esta conceituação das ideologias, inspirada no marxismo, porém
despida de seu viés economicista, interpretada como visões de mundo,
condicionadas pela base material e pelas relações sociais, que orientam a
práxis dos sujeitos e que constituem uma mediação entre sua consciência
e sua prática, a que se considera a mais adequada para explicar a relação
que se estabelece entre o sujeito e o objeto do conhecimento.
Em que pese Löwy e Goldmann atribuam os pontos de vista
exclusivamente às classes sociais, a metáfora de Mannheim por eles
adotada parece constituir o melhor modelo de explicação para as questões
abordadas neste trabalho. Por esse motivo, vale a pena a transcrição:
A metáfora topológica (que se encontra em Rosa Luxemburgo e em
certas passagens de Mannheim) nos parece a mais apta para dar conta do
alcance da Standortgebundenheit e seus limites. Mais um ‘mirante’ ou
‘observatório’ (isto é, um ponto de vista de classe) é elevado, mais ele
permite ampliar o horizonte e perceber a paisagem em toda a sua
extensão; as cadeias de montanhas, os vales, os rios não conhecidos dos
observatórios inferiores não se tornam visíveis senão do cume.
Evidentemente, nos limites determinados por seu horizonte de
visibilidade, os mirantes mais baixos permitem também ver uma parte
da paisagem. (...) Existe, enfim, uma parte da paisagem que é vista de
todas as alturas: é a ‘zona de consenso’ entre os diversos pontos de vista,
geralmente limitada ao nível mais imediato. (...) Esta metáfora nos parece
particularmente operatória, porque ela permite também ‘mostrar’ (de
forma imaginária) que: a) não existe visão de paisagem que não esteja
O pauperismo da filosofia... 405

situada em um observatório determinado; b) a síntese ou a média exata


entre os níveis superiores e inferiores não representa em nada um ponto
de vista privilegiado; c) os limites estruturais do horizonte não dependem
da boa ou má vontade do observador, mas da altura e da posição em que
ele se encontra; d) o observador pode passar de um mirante a outro; e)
o observador situado no nível superior pode dar conta tanto dos limites
como das visões verdadeiras dos níveis inferiores; f) o mirante não
oferece senão a possibilidade objetiva de uma visão determinada da
paisagem.” (LÖWY, 1991, p. 203 e 204).

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p.
408 Ressonâncias filosóficas - Artigos
XXXIV

O SENTIDO HISTÓRICO NA FILOSOFIA DO JOVEM


NIETZSCHE

Abraão Lincoln Ferreira Costa*

RESUMO

A Segunda Consideração Intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da História


para a Vida concentra-se na seguinte questão: afinal, qual seria o propósito
da história para a vida? Tendo por base essa pergunta, Nietzsche assume
a tarefa de denunciar em seu tempo o trabalho de historiadores e
professores de filosofia, segundo ele presos as “falsas aplicações”, ou seja,
incapazes de promover de maneira apropriada a articulação entre os
grandes feitos do passado com as aspirações do presente. Por isso, a
história como tratada pelo homem moderno restringe-se aos limites da
superficialidade, tratando de antigos valores que somente inspiram
respeito e saudosismo acerca de um passado sem nenhuma condição de
orientar novas ações que sirvam de referência para o futuro. Desse modo,
o presente trabalho propõe-se a aprofundar tais questões mostrando como
superação a essa problemática a efetiva intervenção filosófica sobre o
sentido histórico, capaz de postular novos sentidos, recriando conceitos
capazes de interagir com as necessidades do tempo atual.

PALAVRAS CHAVE: Nietzsche, História, Sentido, Vida.

Dentre os vários temas estudados, Nietzsche esteve preocupado


em tratar da seguinte questão: qual seria o valor e o sentido histórico para
a vida? A partir desse questionamento, notamos ao longo da sua trajetória
filosófica diferentes considerações que as percebemos como resultado de
um movimento contínuo de seu próprio pensamento. Supomos que a
preocupação do filósofo decorre de um tempo em que a tarefa da história
foi a de apenas reforçar o sentido metafísico, prendendo o homem ao
passado, obrigando-o a venerar os valores antigos que ainda insistiam em

*Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Centro Universitário Planalto do Distrito


Federal (UNIPLAN); e-mail: abraaofilosofia@gmail.com
410 Ressonâncias filosóficas - Artigos

preservar-se na tradição. Vemos, portanto, uma história incapaz de


denunciar os perigos do mundo moderno. Perigos que sorrateiramente
escondiam-se no aparente progresso das conquistas do Estado, gerando a
satisfação e o conformismo, responsáveis por acentuar a decadência dos
novos tempos.
Para darmos sustento a essa comunicação, nos basearemos em
algumas das considerações nietzschianas contidas em Fatum e História e na
Segunda Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História
para a vida. Com base nesse estudo, notamos que no início da obra
Nietzsche propõe refletirmos sobre a dificuldade de desenvolvermos um
pensamento para além dos preceitos fortemente estabelecidos pela
tradição. Para ele, ainda que nos propuséssemos a pensar numa doutrina
cristã ou na história da Igreja de modo isento e distante de qualquer juízo
de valor, mesmo assim cairíamos na incômoda sensação por tentarmos
avaliar de forma implacável aquilo que tem a ver com os nossos hábitos e
impressões, e de costume fortemente enraizados em nosso espírito. O
trabalho verdadeiramente crítico e reflexivo depende de uma vida inteira
e, para tanto, será preciso apoiar-nos na ciência com o intuito de evitarmos
as “especulações estéreis” que não nos levaria a lugar algum. Pensarmos
nas ciências naturais como substituição dos valores metafísicos vigentes
tornar-se-ia o modo eficiente de romper com a tradição filosófica cujo
“céu é o objetivo de todos os grandes esforços”. (Nietzsche, p.60)
Para Nietzsche, não há como deixar de perceber os resultados de
uma história e da manutenção de valores do além-mundo na vida do
homem. Existe uma lamentável e permanente confusão de ideias entre os
homens; enormes transformações necessitam ainda acontecer para que as
pessoas venham compreender que a religião cristã está simplesmente presa
a conjecturas sobre a existência de Deus, a imortalidade da alma, a
infalibilidade das escrituras e tantos outros dogmas. Entretanto, o filósofo
adverte que o esforço em superar esses valores depende ainda da
capacidade de estabelecermos novos sentidos capazes então de substituí-
los, afinal:

[...] destruir é fácil; edificar, ao contrário, é isto que é difícil. Inclusive


destruir parece mais fácil do que é; estamos de tal maneira determinados
pelas impressões da nossa infância, pelas influências dos nossos pais, por
nossa educação, e num grau tão profundo do nosso ser interior, que estes
preconceitos, profundamente arraigados, não podem ser facilmente
removidos por argumentos racionais ou pela simples vontade.
(Nietzsche, p. 60)
O sentido histórico na filosofia... 411

A disposição para o enfrentamento dos valores vigentes origina-se


da oposição aos hábitos pelo anseio de algo superior, rompendo, desse
modo com tudo aquilo que encontra fixado - como o enfrentamento de
dois milênios de tradição, sem dúvida provoca uma experiência dolorosa,
devido aos acontecimentos tristes que haverão de surgir nos corações dos
homens ousados. Essa dor, segundo Nietzsche, provém das dúvidas
causadas sobre o nosso ser diante do doloroso processo de
desenraizamento da nossa própria história cultural. Ao propormos a
desconstrução de uma visão teleológica que nos fornecia explicações
trancendentes acerca de nossas origens, estaríamos dando um significativo
passo em direção à maturidade do espírito. Afinal, sabemos muito pouco
de nossa própria história, por isso não bastariam as explicações impostas
por uma tradição, indisposta aos questionamentos e às especulações
comuns daqueles que não se encontram sujeitos ao adestramento. Não há
como precisar um começo, quer seja pela manifestação arbitrária de um
deus, ou se teríamos vindo de uma pedra, uma planta ou de um animal.
Contudo, nos resta a certeza de um fluxo constante da vida, o devir
mostrando-nos a transitoriedade dos fatos e o quanto nós e toda a
natureza estamos infalivelmente sujeitos a essas transformações.
Como afirma o filósofo, “tudo se move em círculos gigantescos,
que giram uns em torno dos outros” (p.61), estando o homem inserido
num círculo menor. Nessa explicação, os círculos mais próximos dos
homens referem-se à origem dos povos, das sociedades e de toda a história
da humanidade. Logo, achar o centro comum de todas essas variações, ou
seja, do primeiro círculo, o de tamanho menor comparado aos outros, é o
propósito da ciência natural. Nesse sentido, não é demais supormos que
durante essa fase Nietzsche buscou o apoio da ciência como modo de
superar as explicações de base metafísica acerca das origens do homem e
do mundo. Tratar-se-ia de uma história de caráter puramente científico,
cuja consistência de suas descobertas pudesse contribuir para o sentido e
fundamento da existência humana.
A suposta isenção da ciência traria a segurança necessária para
analisarmos o passado, verificando fatos capazes de oferecer sentido ao
tempo presente. Para isso, era também preciso o apoio da filosofia, de
modo a aliar-se à ciência com a tarefa de permitir a sustentabilidade das
grandes descobertas, articulando-se com as necessidades da época – seria,
dessa forma, propor-se à busca de um sentido histórico para entender o
passado como algo partícipe das possíveis conquistas do presente.
Contudo, é fundamental entendermos a tarefa do exercício filosófico
412 Ressonâncias filosóficas - Artigos

aliado às ciências a fim de não confundirmos tal procedimento com a


tarefa do historiador. Não é demais vermos como exemplo dessa
capacidade de articulação entre a filosofia e as ciências pensadores que
oportunamente souberam através desse procedimento tratar de questões
emergentes, sempre de acordo com os interesses de suas diferentes
épocas. Quer sejam filósofos ligados à teoria do conhecimento ou às
doutrinas políticas, todos tiveram o uso das ciências para ajudá-los a
entender com maior clareza as transformações sociais correspondentes a
cada período.
A exemplo, vemos a relação entre a Física de Isaac Newton e a
crítica da razão efetuada por Immanuel Kant, as teorias contratualistas
com a matemática, bem como os avanços científicos em proveito do
Iluminismo. Diante disso, depreendemos que durante a História da
Filosofia sempre houve o elo entre o pensamento filosófico e as ciências,
o que de certo modo trazia a legitimidade e o sentido da realidade à qual
pertenceram. Nas palavras de Vânia Dutra: “daí a Filosofia, mediante os
discursos dos filósofos, apropriar-se da ciência, da técnica, da arte, da
política, do conhecimento etc.” (Nietzsche, filosofia e educação, p.68) para
apropriar-se então daquilo que está em indagação, conferindo-lhe sentido
e valor.
A filosofia é imprescindível na construção do sentido histórico,
pois com ela é possível a criação do novo no instante em que aliada a
história consegue extrair do passado aquilo que sirva de orientação para o
presente. Sendo assim, podemos dizer que uma das tarefas da filosofia
seria a de impetrar sentidos, introduzindo novos valores, criando novos
conceitos por meio da capacidade que possui de envolver-se com o mundo
no qual se encontra inserida. O modo passa a ser, no significado de
interpretar uma valoração, exprimir um significado por meio da inserção
de uma consciência filosófica que, ao dizer o mundo, o faz ser. Com isso,
reconhecemos o sentido e o valor como próprios da atividade filosófica,
muitas vezes desprezado quando utilizados pelo uso de uma história
incapaz de articular-se com o presente. Isso leva os filósofos a uma prisão
histórica, presos então a um passado sem a menor condição de entender
as inestimáveis contribuições que dariam ao tempo atual. Desse modo,
acabam por mais vezes a fazerem o papel de professores de história da
filosofia do que a serem verdadeiros pensadores.
Um exemplo do impeditivo para a articulação entre o passado e o
presente tem a ver com a promoção do enciclopedismo ou, reportando-
nos às palavras de Paulo Freire, numa “educação bancária”. Os métodos
O sentido histórico na filosofia... 413

de ensino largamente difundidos pela tendência pedagógica tradicional


visam à erudição por meio da repetição e da memorização. Costuma ser a
base do ensino independente de suas diferentes etapas, algo que leva a uma
gradual paralisação, inviabilizando a inovação e a produção de novas
ideias. Nietzsche entende como um culto desenfreado ao passado e, por
conseguinte, inibidor das chances de criação do futuro, tendo em conta as
contínuas reproduções vindas dos filósofos, das obras do passado, sem a
consideração dos temas atuais ou da interpretação do passado por meio
da recusa da concepção do presente.
Na segunda consideração extemporânea, Nietzsche apresenta a
História da Filosofia como chance de conciliar o culto ao passado com o
presente a partir do surgimento de um modo de ver a história. Na obra,
vemos a crítica do filósofo ao historiografismo oitocentista no qual o tipo
de interpretação realizada por essa corrente levaria à paralisação. Nesse
sentido, a filosofia nietzschiana acredita que a ação desmedida do sentido
histórico tende a retirar as perspectivas do futuro. Isso significa dar fim às
ilusões quando instauradas através de um julgamento histórico que
condena à morte ao ocultar o que é vivo.
Como solução, Nietzsche, na utilidade e desvantagem da história para a
vida, propõe a relação do histórico enquanto aquilo que esteja a serviço da
vida com o a-histórico, ou seja, a História em sua real força, como
promovedora da vida. Pretendendo isso, a História não pode se constituir
livremente como uma ciência, pois acabaria por deixar o seu poder a-
histórico em busca de um histórico que a conduziria à depauperação.
Logo, é preciso entendermos que o a-histórico possui o poder de elevar a
vida em vez de enfraquecê-la. Por conta disso, notamos a relação direta
existente entre “refletir a História” como ciência pura e sua consequente
ligação ao sentido de “conclusão de vida e parecer final da humanidade”.

A história (Geschichte), concebida como ciência pura e soberana, seria


para a humanidade uma espécie de conclusão e balanço da existência. A
cultura histórica só é salutar e portadora do futuro na esteira de uma
nova e poderosa corrente de vida, como elemento, por exemplo, de uma
cultura nascente, quer dizer, unicamente quando ela é dominada e
dirigida por uma força superior e não exerça ela mesma esta função
diretora. (SE/Co. Ext. II, 1)

Por fim, acrescentamos que na crítica nietzschiana, a ausência de


um devido sentido histórico tem como destino a crença hegeliana no que
concerne ao conteúdo histórico como algo predominantemente da razão
414 Ressonâncias filosóficas - Artigos

no qual, até mesmo existe uma vontade suprema e divina como


dominante, de tal forma que a própria providência controlaria o mundo e
asseguraria a racionalidade da História. O espírito universal se processa na
História alcançando autoconsciência de si na consciência do homem como
espírito absoluto.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, Vânia Dutra de. Das vantagens e desvantagens da História


da Filosofia para o ensino da filosofia. In: Nietzsche: Filosofia e Educação.
AZEREDO, Vânia Dutra de (Org.). Ijuí – RS/Unijuí, 2008, p. 67-82.

NIETZSCHE. Fatum e História. Trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho.


Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.

NIETZSCHE. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes


da História para a vida. Trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
XXXV

O “SER” DE DEUS É OU NÃO É:


na concepção de Feuerbach e Agostinho

Raphael da Silva Sodré*

RESUMO

Muito se tem discutido acerca da religião na contemporaneidade,


Feuerbach filósofo alemão coetâneo em seu livro “A essência do
cristianismo”, desenvolve argumentos sobre a verdadeira natureza de
Deus. Na visão desse autor a religião é a divisão do homem consigo
mesmo. Deus, para o presente autor, é apenas fruto de uma projeção
psicológica humana; Em contrapartida de Feuerbach, encontra-se
Agostinho, filósofo, santo, bispo e doutor da Igreja, que desenvolveu seu
pensamento na Idade medieval, sua obra “O livre arbítrio” é fundamental
no presente trabalho. Agostinho foi aquele que ultrapassou as correntes
filosóficas de Platão e Plotino em relação à existência de um ser uno e
transcendental. Por mais que tivesse sua crença, se absteve de
pressupostos dogmáticos para também de forma racional comprovar que
Deus verdadeiramente existe. Vai apoiar-se nas experiências próprias para
fundamentar a subsistência de Deus, pois, acredita que por meio da
criatura é possível que o homem chegue ao conhecimento do criador. A
obra “livre arbítrio” no livro dois em síntese busca demonstrar a real prova
da existência de Deus; a revelação de Deus como o sumo bem; Tendo
visto os principais pontos expostos por ambos os autores, este artigo
buscou ter uma melhor compreensão da natureza de Deus; o ponto de
encontro d’Ele com o ser humano e a perfeição do sumo bem que é
desejado pelos seres inferiores. O homem, portanto, na tentativa de
explorar a concupiscência infundida em seu coração procura encontrar e
conhecer a verdade, porém, para isso é necessário análise, tempo e estudo.

PALAVRAS CHAVES: Essência; Deus; Razão; Homem; Agostinho;


Feuerbach;

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: raphaelllsodre@gmail.com


416 Ressonâncias filosóficas - Artigos

O presente artigo buscará debater as concepções sobre o a


existência ou não de Deus, por meio de uma análise apurada dos escritos
dos autores Santo Agostinho e Feuerbach. Inicia-se com apresentação de
ambos e tem como sequência as obras que relatam o tema acima citado.
Por fim, irá fazer uma ponte de interligação entre ambos para melhor
visualização dos respectivos leitores.
Aurelius Augustinus, mais conhecido como Agostinho de Hipona
ou Santo Agostinho, nasceu aos dias 13 do mês de novembro do ano da
graça de Jesus Cristo 354 em Tagaste, província romana da Numídia.
Agostinho teve a oportunidade de estudar uma educação liberal que
poderia abrir portas para o magistério ou a magistratura. Entretanto, não
era considerado um bom aluno. Tornou-se professor de Gramática,
estudou filosofia em meado do ano de 384, mudou-se para Roma, obteve
a Cátedra Imperial de Retórica e Artes Liberais, posteriormente ficou
vacante em Milão até o marco de sua história: o momento de sua
conversão que se deu no ano de 386, em Milão. O ápice de sua vida se dá
após a conversão, pelo fato de ser a época em que começou a redigir sua
principal obra “Confissões” (2004) que fez com que fosse conhecido
mundialmente. Agostinho, inspirado pelo seu amado o qual havia
entregado sua vida e por Platão, foi reconhecido como um dos principais
filósofos da idade medieval, mesmo que sua filosofia seja sempre
direcionada para os fins de fundamentar a teologia. Ordenado presbítero
da Igreja de Roma no ano de 391e em 395 aclamado e sagrado bispo,
também foi considerado um dos maiores Teólogos de todos os tempos.
Após sua morte em Hipona no dia 28 de agosto de 430, foi aclamado
popularmente santo e somente em 1298 foi reconhecido pelo sumo
pontífice, o papa Bonifácio VIII, como Doutor da Igreja.
Ludwig Andreas Feuerbach, Alemão, nascido em 28 de julho de
1804 é um dos grandes filósofos da contemporaneidade, suas principais
características de escritas que o fizeram mundialmente conhecido estão
relacionadas à sua teologia humanista, seu ateísmo humano e suas
reflexões acerca do legado transmitido a Karl Marx. Feuerbach decidiu
estudar ciências naturais, entretanto, antes estudou teologia a qual
abandonou sem concluir para tornar-se discípulo de Hegel, estudando sua
filosofia.
O filósofo recebeu uma grande herança intelectual de Hegel para
compor seus escritos, principalmente naquilo que se relaciona ao
materialismo, ao pensamento antropológico e idealismos em geral, que
certamente colaborou para formulação de sua opinião sobre a religião que
O “ser” de Deus é ou não é... 417

está em desacordo com os aspectos doutrinais da então religião


predominante, o catolicismo. Pode-se destacar entre as diversas obras o
livro “A essência do cristianismo”(1988) Os aspectos externos que foram
fundamentais em sua composição são algumas questões como: o fato da
Alemanha encontrar-se no início de uma mudança de pensamento
político, onde foram difundidos a importância do espírito nacionalista e
liberal; o país passava por uma crise econômica junto a contaminação em
alto número de cólera na população; e ressalta-se o materialismo pelas suas
oposições diretas ao cristianismo.
Em síntese, Feuerbach apresenta a essência não somente do
cristianismo e da religião, mas, também de Deus. Na concepção do autor,
a religião seria como que um fruto de uma confissão de suas aspirações e
projetos, que é gerado pelo indivíduo, com base em uma intensa reflexão
de si na sociedade e consigo mesmo e depois traduzida em uma linguagem
religiosa.
Feuerbach em seu livro a “Essência do Cristianismo” apresenta a
religião como a divisão do homem consigo mesmo, porém na religião o
homem procura a sua própria essência, ou seja, aquilo que lhe falta. O
homem é apresentado como o contrário de Deus; o homem um ser
imperfeito e limitado e Deus um ser perfeito e ilimitado.
O fato do homem e Deus possuírem características distintas, não
quer dizer, que a essência de ambos também seja distinta, pelo contrário,
só há divisão, porque são uma só. Apenas as qualidades dessas essências
que são diferentes e vale ser ressaltado que o objeto da religião é a busca
da essência divina.
Esta essência é a inteligência, a razão ou o entendimento. Como
dito anteriormente, essas características estão presentes tanto no homem,
como em Deus, entretanto no homem de forma distorcida e imperfeita, e
já em Deus de uma forma plena. A razão não sabe nada dos sofrimentos
e do coração, não tem anseios, paixões ou necessidades e por isso não
possui máculas e fraquezas como o coração. Deus faz uso dessa razão com
frieza e implacabilidade, usa a essência da razão; Deus como juiz e pai
condena a morte o próprio filho; o ser humano de uma forma distinta ao
agir com racionalidade reflete utilizando o sentimentalismo em situação
similar e consequentemente teria o julgamento adulterado.
Deus é um ser sem forma, abstrato e negativo, que não é nada a
não ser objeto do pensamento. O homem por sua vez não é capaz de
pensar em outro espírito que não seja Deus, outro espírito para ele seria
418 Ressonâncias filosóficas - Artigos

como um fantasma, exceto a inteligência que pode iluminar e gerar


conhecimento.
Deus é a razão que se pronuncia e é o ser supremo; Para a
imaginação a razão é uma revelação de Deus, porém para a razão Deus é
a revelação da razão. Deus é apresentado também como o ideal mais
perfeito, o qual a humanidade tenta se assimilar, objetivando essa
perfeição, porém impossível e quando percebido desencadeia um
sentimento de vazio, de impotência, infelicidade e insatisfação que não se
inquieta até atingir o grau máximo de uma faculdade. Somente quando se
pensa em Deus é que se pensa o ser mais perfeito a mais pura razão.
A razão é o ente originário, entretanto o homem projeta Deus
como a arché. Ela encontra em si a essência, o fundamento e a finalidade
do mundo, somente por meio dela existe sentido. Unicamente aquele que
age com intenção, finalidade e razão é um ser verdadeiro e fundamentado
em sim mesmo. Ela se estabelece como alfa e ômega dos seres e também
do tempo.
A razão é critério de toda realidade, ela não depende de Deus,
porém Deus depende dela para existir. Mesmo com toda sua onipotência
acima do seu poder está a razão, porque ela pode afirmar ou negar o
próprio Deus. O humano procura em Deus sua própria razão, devido Ele
ser o conceito mais elevado de razão. Deus não pode ter características
imperfeitas ou sentimentais, porque iria contradizer a razão.
Ao pensar em Deus deve-se projetar a si mesmo, porém sem
limitações. A medida do teu Deus é a medida de tua razão, se o vê como
ilimitado, ilimitada é sua razão e se pensa em Deus como um ser limitado,
limitada é a sua razão.
Essa concepção de Feuerbach, posteriormente irá servir de base
para teoria de Sigismund Schlomo Freud, médico neurologista
considerado pai da psicanálise. Freud desenvolveu a teoria mais conhecida
como projeção freudiana:

O termo projeção tem sua origem vinculada aos estudos da


neurofisiologia, considerando-a uma operação pela qual um evento é
deslocado do meio externo e localizado no meio interno,
correspondendo as respostas do organismo às sensações e percepções
neurológicas que lhe forem provocadas. A captação de estímulos
sensoriais provenientes do ambiente é conectada as áreas adequadas do
Sistema Nervoso Central e conjuntamente com as experiências
anteriores, transformam-se em respostas comportamentais (Fonseca,
2008, p. 2).
O “ser” de Deus é ou não é... 419

A projeção para psicologia é uma resposta gerada pelo mecanismo


de defesa do sistema nervoso, que permite que atitudes pessoais dos
indivíduos sejam atribuídas a terceiros. Essa pode ser uma resposta
positiva ou negativa. Sendo uma atitude involuntária, a pessoa que é
afetada por essa doença psiquiátrica não é consciente de suas atitudes, logo
projeta suas emoções, atitudes, paixões, problemas, realizações, e ideais
sem que perceba esse movimento.
Feuerbach vai dizer que somente há uma cisão entre o homem e
Deus, pelo fato de possuírem a mesma essência, possuindo-a o sujeito por
meio da razão, incitado pela necessidade psicológica, projeta a existência
de um ser perfeito e melhor para se espelhar, da mesma forma que os
programas estimulam crianças a se projetarem em super heróis fictícios.
Logo, Deus não passaria de uma ilusão, sua essência seria somente essa: a
insuficiência humana.
Portanto, Feuerbach em sua obra “a essência do cristianismo”
inicia com a explicação acerca do que é a religião, descreve as
características do homem e de Deus, fala da interligação de ambos que está
na essência. Na necessidade de que o homem tem de buscar a perfeição
que é Deus. Mostra o que é a razão, a sua essência e sua importância. Por
meio de comparações mostra a atuação de Deus e da razão que muitas
vezes se interligam e mostram que um está para o outro. E consegue
comprovar que Deus é a entidade da razão.
Nesta mesma linha de pensamento, vejamos as argumentações
agostinianas, para que melhor possam ser refletidas as argumentações de
Feuerbach: “Todo ser dotado de inteligência é melhor do que o objeto de
sua intelecção, o que é falso. Com efeito, o homem compreende o que seja
a sabedoria e, não é superior à sabedoria” (Agostinho, 1995, p. 90).
Será que com esta afirmação Agostinho sugere que a razão
transcende ao homem? Será então que o homem não projeta o ser
superior? Este ente que a priori seria apenas um pensamento, que passa a
ser um ente lógico, poderá chegar a ser um ente real? Para encontrar a
existência de Deus Agostinho parte das primeiras intuições do espírito: o
existir, o viver, o entender. Ele pensa eu existo? Eu vivo? Sim eu existo e
vivo como ser que se questiona, então sim se eu entendo que existo. É
quase como a afirmação de Decartes: “penso, logo existo”.
Refletindo acerca dessas intuições, Agostinho irá se questionar
sobre qual é a mais importante das três, concluirá que certamente é o
entender, pois ele é capaz de confirmar a existência dos demais. O
420 Ressonâncias filosóficas - Artigos

entender também segundo o autor abre os caminhos ao conhecimento que


é advindo pelos conhecimentos externos, sentidos comuns e pela razão.
Para que se possa aderir ao conhecimento externo, ele mostra a
necessidade dos 5 sentidos: audição, visão, olfato, tato e paladar.
Compreende que cada sentido tem objetivos próprios, sobre quais
informam e que alguns deles percebem objetos de modo comum,
entretanto coloca em cheque como é possível esse discernimento? Por
meio de uma reflexão vai dizer que somente por meio de um sentido
interior é possível ter esse discernimento, e que sentido interior seria esse?
Para ele é a racionalidade.
Logo, a racionalidade é o sentido superior aos demais, é a única
faculdade que permite por ela própria compreender a existência de todos
os sentidos e principalmente de si própria.
Pode-se observar que nesse pensamento Agostinho se assimila a
Feuerbach que afirma que a razão é apresentada como ser vital, sem ela
não há consciência e somente ela estabelece a diferença, a distinção do ser
e não ser. A razão sendo o sentido, a finalidade que faz com que o ser seja
o ser, e sem ela o ser acaba sendo o não ser. Somente a razão é o ser mais
indispensável, ela é a necessidade mais profunda e mais essencial.
Entretanto, Agostinho não para por aqui sua investigação
filosófica como faz Ludwig, ele irá apresentar o princípio da subordinação
e reflete se o sentido exterior é inferior ao interior? Chega à opinião que
sim, o sentido interno age como guia e juiz em relação ao externo. O
cachorro existe e vive, mas não entende. Por isso o homem que possui a
intuição do entender é superior. Logo, é lógico que a racionalidade, o
entendimento é superior ao simples fato de existir.
Mas, a pergunta que fica é “de onde vem esse conhecimento?” Vai
dizer o bispo de Hipona que o conhecimento nos é assimilado e
apresentado por meio da razão que transcende o homem; e a razão julga
os sentidos internos; E quem informa tudo isso é a própria razão. Chega-
se em um denominador comum que a razão é superior ao homem. “Pois
bem! O que dirias se pudéssemos encontrar alguma realidade, cuja
existência não só se conhecesse, mas também fosse superior à nossa
razão?” (Agostinho, 1995, p.89-91)
Com suas inspirações platônicas vai dizer Agostinho (1995 p.91-
92): Somente pode ser superior aquilo que é imutável e eterno. O ser
humano é mutável e mortal, a razão por vezes na busca da verdade pode
ser falha e mutável, porque cada humano possui a sua, mas existe algo que
pode ser imutável e imortal? Sim, a verdade.
O “ser” de Deus é ou não é... 421

Agostinho vai mostrar que os sentidos para um indivíduo às vezes


são percebidos de uma forma, mas, para outro a forma é distinta do
primeiro. O ar que um homem respira é o mesmo que outro respira,
porém, o primeiro pode respirar mais quantidade do que o segundo ou
vice-versa. Utiliza o exemplo: A babá pode comer parte da papa antes da
criança, é a mesma comida que a criança vai comer, entretanto a sua
sensação é única em vista daquilo, como o da criança também é única.
Mas, o que é comum a mim e a você é a verdade, por exemplo, a verdade
dos números é óbvia para mim e para você que um mais um é dois e para
qualquer pessoa que tenha contato com ele e mesmo que a alguém tiver
uma opinião divergente ele estaria errado.
Da mesma forma, cada um consegue ver o sol, mas, indiferente da
experiência com ele é impossível negar a sua existência. Da mesma forma
é a verdade, mesmo que uns a vejam distorcida ou por partes, ela
continuará sendo verdade.
A verdade é a arché da filosofia agostiniana, é nessa busca
incansável que tudo se desenvolve, desde a conversão até de fato chegar à
conclusão da necessidade do sumo bem.
Em síntese, agora ele chega à conclusão, óbvia, a verdade é algo
que transcende o homem, mas, quem seria essa verdade se não o próprio
Deus? Deus preenche todos os requisitos, Ele é o ser que vive, existe,
entende é imutável e imperecível. Onde encontrar?

Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no
coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a
mudança, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te
esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirigi-te à
fonte da própria luz da razão (AGOSTINHO, 2002, p. 72).

Desta forma, Agostinho concorda que Deus está dentro de nós,


mas não como aquele que não sai do intelecto, mas aquele que é
fundamento de toda a existência. Da mesma forma ele vai afirmar que a
verdade é superior, e Deus é sim um ente. Um ente que existe. Ou como
diria Tomaz de Aquino ele é o ato puro.
Não se pode ignorar a utilização da razão para conhecimento de
Deus, pois como diria o filósofo e teólogo João Paulo II:

A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas


quais o espírito humano se eleva a contemplação da verdade. Foi Deus
quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e,
422 Ressonâncias filosóficas - Artigos

em última análise, de o conhecer a ele, para que, conhecendo-o e


amando-o, possa chegar também a verdade plena sobre si próprio (João
Paulo II,1998, p. 5).

Portanto, a partir dessa interpretação desenvolvida neste artigo


pode-se entender que a razão é necessária para conhecimento e para o
entendimento de Deus, mas não é pré-requisito para o Ser de Deus,
indiferente se o humano pensa ou não na sua existência, ele é real.

REFERÊNCIAS

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Teologia. São Paulo, ano 10 n.45. mar. 2014. Disponível em:
<http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wpcontent/uploads
/downloads/2014/05/NOTA_DOIS.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

ALVES, Wodson. A crítica Feuerbachiana da religião: um contributo à


compreensão do conceito de alienação religiosa. Revista Eletrônica Espaço
Teológico. São Paulo, maio. 2010. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/download/3466
/2290> Acesso em: 10 out. 2017.

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. 1. ed. São Paulo:


Papirus, 1988.

AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 1. ed. São Paulo: Paulus, 1995.

_______. A verdadeira religião: O cuidado devido aos mortos. 1. ed. São


Paulo: Paulus, 2002.

_______. A doutrina cristã: Manual de exegese e formação cristã. 1. ed.


São Paulo: Paulus, 2002.

_______. Confissões. 1. ed. São Paulo: Nova Cultura, 2004.

WOJTYLA, Karol. Fides et ratio: Carta encíclica do sumo pontífice João


Paulo II. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2010.
O “ser” de Deus é ou não é... 423

FONSECA, Ana Lucia. Desvendando o Mecanismo da Projeção. Psicologia em


foco. Bahia, n. 1. Jul./dez. 2008. Disponível em:
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=we
b&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjZ7LvyrPDXAhXEEZAK
HafmBv0QFggoMAA&url=http%3A%2F%2Flinux.alfamaweb.com.br
%2Fsgw%2Fdownloads%2F161_063102_10.pdf&usg=AOvVaw0Kwf8
LDfZ3oKY-IIp3pSXn>. Acesso em: 04 dez. 2017.
XXXVI

OS BENEFÍCIOS DA GUARDA COMPARTILHADA EM SEUS


ASPECTOS LEGAIS, PSICOLÓGICOS E FILOSÓFICOS

Luciana Bovo Andretto*


Euda Marcia Dias Paiva**
José Dias***

RESUMO

O presente artigo busca relacionar os aspectos jurídicos da guarda


compartilhada com os aspectos psicológicos e filosóficos da questão. Por
meio de revisão bibliográfica, pretende-se apurar, através do tratamento
conferido pelas recentes Leis nº 11.698/08 e 13.058/14, as vantagens e
benefícios da guarda compartilhada tanto para os pais, pela possibilidade
de exercício pleno dos cuidados parentais, como para o bem-estar do
menor que pôde, a partir de então, valer-se dos cuidados e afeto de seus

* UNICESUMAR; e-mail: luciana.andretto@gmail.com


** Possui graduação em Pedagogia - UDF Centro Universitário (1999), especialização em
Psicopedagogia pela Universidade Candido Mendes (2003), bacharelado em Direito pela
UNIEURO (2008); sendo advogada da seccional de Brasília/DF, com registro na
OAB/DF sob o n. de 29229. Possui ainda habilitação em Português pela FGF (2013). É
professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal desde 1995. Tem experiência
na área de Educação Especial, Tecnologia Educacional. No campo jurídico atua em várias
frentes, com especial experiência em direito familiar, cível, trabalhista e previdenciário. É
mestranda no curso de Gestão do Conhecimento: linha educação; da Unicesumar, tendo
ingressado em 2017.
*** Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em

Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela


Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito
Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma,
Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da
UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura
em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.
E-mail: jfad_br@hotmail.com; Lattes: lattes.cnpq.br/9950007997056231
426 Ressonâncias filosóficas - Artigos

genitores, mesmo que em lares diferentes. Apesar dos esforços para


atender a todos os envolvidos no processo de separação de um casal com
filhos e garantir igualdade de direitos, observou-se que os avanços legais
obtidos até a chegada a lei 13.058/14, apenas demonstraram a omissão
legislativa quanto aos direitos dos pais. Ao promulgar o direito à guarda
compartilhada em 2008, o legislador garantiu apenas uma possibilidade de
direito. O pai com menores condições financeiras era injustiçado, pois não
reunia requisitos suficientes para ser o detentor da guarda. Esses requisitos
que eram “necessidade do filho” e “disponibilidade de tempo do pai” eram
interpretados como “melhor condição financeira”, resultando, na maioria
dos casos, em guarda unilateral. A guarda compartilhada somente era
concedida por consenso. Em 2014, diante das injustiças identificadas por
estas lacunas, o legislador finalmente inseriu na lei os argumentos que
faltavam para que ambos os pais tivessem seus direitos resguardados,
demonstrando, conforme ensina Tomás de Aquino que uma lei nova não
difere da antiga, pois assim como a antiga esta busca a perfeição. A
relevância deste estudo encontra-se mediante as grandes mudanças
sofridas na sociedade em meados do século XX que, em decorrência do
aumento do número de matrimônios desfeitos e das modificações das
estruturas familiares, surgiu com elas, a necessidade de adequar-se o direito
de família aos novos anseios sociais. Diante da subjetividade do tema, em
que os aspectos psicológicos da nova forma familiar que se constitui, são
tão relevantes quanto os aspectos legais, é imprescindível sua análise sob
a ótica filosófica para que haja assim, uma reflexão crítica sobre o assunto.
Valendo-se dos pensamentos dos filósofos da antiguidade Platão e
Aristóteles e dos medievais Santo Agostinho e Tomás de Aquino, objetiva-
se afinar os entendimentos histórico, evolutivo, filosófico, social,
psicológico e humanístico da Lei da Guarda Compartilhada Brasileira com
os ideais de justiça, ordem, bem-estar, direitos naturais e humanos
propostos por estes filósofos, cujo seus conceitos notoriamente permeiam
até a contemporaneidade, acompanhando o avanço da sociedade familiar.

INTRODUÇÃO

Com o desenvolvimento do mundo moderno frente aos aspectos


sociais, econômicos e outros, a família desenvolve-se em seu aspecto
formal a promover novas tendências de conceito de família.
Os benefícios da guarda compartilhada... 427

A separação dos casais que um dia tiveram em comum a educação


dos filhos leva a um problema que sempre foi resolvido de maneira pré-
determinada: a guarda dos filhos.
A tarefa de assegurar a cada criança a oportunidade de se
desenvolver como membro de uma família, que embora modificada
continua sendo um lugar de acolhimento e proteção, passa de um objeto
de acordo para um conflito sem fim se os interesses do pátrio poder não
observam estritamente o bem-estar do menor.
A modernidade no pensamento jurídico atingiu também o
pensamento familiar, que começa a aceitar a guarda compartilhada como
um instituto plausível e promissor no nosso ordenamento jurídico.
A guarda compartilhada surge como novo modelo de poder
familiar no caso de fragmentação da família, o qual tem como objetivo
manter os vínculos entre os pais e seus filhos. Dessa forma,
compartilharão na educação e decisões sobre a vida dos filhos. GRISARD
(2002, p. 148) afirma que “O desquite dissolve a sociedade conjugal,
porém, não a parental, entre pais e filhos, cujos laços de afeto, direitos e
deveres recíprocos subsistem, apenas modificados”.
No presente estudo, abordaremos o surgimento da guarda
compartilhada em direito comparado e sua utilização nos dias atuais. Além
da realidade quanto à atribuição da guarda no sistema jurídico brasileiro e,
também, quanto à possibilidade da aplicação do novo modelo da guarda,
o compartilhado, bem como seus aspectos positivos, inclusive sobre a
perspectiva da psicológica e filosófica.

36.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo Grisard Filho, grande estudioso e jurista a respeito do


tema, membro do Instituto Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de
Família; a guarda compartilhada é um dos meios de exercício da autoridade
parental, que os pais desejam continuar exercendo em comum quando
fragmentada a família. De outro modo, é um chamamento dos pais que
vivem separados para exercerem conjuntamente a autoridade parental,
como faziam na constância da união conjugal. (2005, p.126)
Para o Desembargador Sérgio Gischkow, guarda compartilhada é

[...] situação em que fiquem como detentores da guarda jurídica sobre


um menor pessoas residentes em locais separados. O caso mais comum
será o relacionado a casais que, uma vez separados, ficariam ambos com
428 Ressonâncias filosóficas - Artigos

a custódia dos filhos, ao contrário do sistema consagrado em nosso


ordenamento jurídico (PEREIRA, Revista da Ajuris, n. 36).

Na mesma linha de raciocínio, Vicente Barreto, define o instituto


como sendo “a possibilidade dos filhos de pais separados serem assistidos
por ambos os pais.” (BARRETO, 1997, p.135)
Esses três conceitos expostos acima, seguem a tendência que a
guarda compartilhada tem a finalidade de que ambos os pais dividam a
responsabilidade e as principais decisões relativas aos filhos, ou seja,
defendem a guarda compartilhada jurídica.
Inicialmente, em meados do século XX, surgiu a necessidade de
adequar-se o direito de família aos novos anseios sociais, divido as grandes
mudanças sofridas na sociedade. Essa realidade apareceu não só a partir
do desejo de ambos os pais compartilharem a criação e a educação dos
filhos, mas também de manterem adequada comunicação com os pais
depois de separados.
Na Inglaterra, na década de 60, ocorreu a primeira decisão sobre a
guarda compartilhada (joint custody). Esse precedente repercutiu na França
e no Canadá, fazendo com que também o direito americano absorvesse o
instituto.
Em Portugal, o direito proibia expressamente outros tipos de
guarda que não fosse a guarda única. A Lei 84/95, de 31 de agosto, que
alterou o Código Civil português no que diz respeito ao exercício em
comum do poder paternal, decidindo questões relativas à vida do filho em
condições idênticas às que vigoravam para tal efeito na constância do
matrimônio.
Já no Brasil, o instituto começou a aparecer com alguns juízes que
amparados pelos princípios do melhor interesse da criança e da igualdade
de direitos e deveres entre homens e mulheres, passaram a propor acordos
de guarda compartilhada para os casais que queriam se separar.
A Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente,
demonstra em seu texto dispositivo que fundamenta de maneira concisa a
concessão da guarda compartilhada. Art. 27 “aos pais incumbe o dever de
sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no
interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações
judiciais.”
Observa-se claramente no art. 227 da Constituição Federal os
princípios da guarda compartilhada quando em seu texto destaca o dever
da família em cuidar dos filhos, em manter a convivência e protegê-los de
qualquer negligência:
Os benefícios da guarda compartilhada... 429

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Embora houvesse nas entrelinhas da Constituição Federal a


obrigatoriedade da guarda compartilhada, bem como a tentativa de se
manter o melhor interesse da criança, não existia legalmente esse instituto.
Os artigos 1583 e 1584 do Código Civil, dispunha sobre a proteção da
pessoa e dos filhos e dizia que a guarda deveria ser entregue ao pai que
reunisse melhores condições de cuidar do filho, restando ao outro apenas
o direito de visitas.

Art. 1.583. No caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal


pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto
consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda
dos filhos.
Art. 1.584. Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja
entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a
quem revelar melhores condições para exercê-la.
Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permanecer sob a
guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele
compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em
conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de acordo
com o disposto na lei específica.

Diante da observação das realidades e necessidades dos casais que


se separavam, o legislador brasileiro inseriu na lei nova roupagem,
introduzindo o termo “guarda compartilhada”, então a Lei 2008 a Lei nº
11.698, que alterou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil, para que
passassem a vigorar da seguinte forma:

Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.


[...]
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I - requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles,
em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união
estável ou em medida cautelar;
430 Ressonâncias filosóficas - Artigos

II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho,


ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com
o pai e com a mãe.
[...]

Partindo do pressuposto de preceitos judiciais a guarda


compartilhada já era, de certa forma, legal, contudo faltava imposição,
obrigatoriedade, pois ainda imperavam os direitos aos que reuniam
melhores condições. O compartilhamento da guarda era uma opção e não
uma regra. Então a Lei 13.058/2014, trouxe a obrigatoriedade de se
declarar essa guarda diante das separações dos casais com filhos menores,
tornando simples a solução dos litígios em torno desse tema e onde antes
dizia que “compete aos pais”, agora temos “compete a AMBOS os pais”,
delimitando a interpretação para direito dos dois.

Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o


pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art.
1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao
exterior;
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua
residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o
outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o
poder familiar;
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis)
anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que
forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios
de sua idade e condição.” (Lei 13.058/2014)

Ressalta-se que com essa nova lei o direito a guarda unilateral foi
mantido, mas passou a ser uma exceção, devendo ser decretado somente
em casos confirmado de maus tratos, abandono ou quando um dos pais
abrem mão da guarda do filho em prol do outro.

36.2 ASPECTOS PSICOLÓGICOS


Os benefícios da guarda compartilhada... 431

Pesquisas vêm demonstrando que o desenvolvimento psicológico


e emocional das crianças que se utilizam da Guarda Compartilhada é de
grau mais elevado. (Fonte: Children Right Council USA)
Utilizar-se da guarda compartilhada é um grande avanço no
convívio com os filhos, principalmente para o exercício de ambos os pais
da autoridade parental. Para os filhos, a convivência com ambos os pais
os torna com referências familiares completas, pois na maioria dos casos
são perfeitamente capazes de distinguir a situação conjugal dos pais da
relação com os mesmos, conforme entendem Brito e Gonsalves (2013).
Com esse tipo de guarda os pais participam ativamente e têm
influência na vida do filho, favorecendo inclusive a estabilidade emocional
de todos os envolvidos. Nesse sentido, diversos autores (Poussin e Lamy,
2005; Théry, 1998) concordam que a guarda compartilhada representa um
ponto muito importante na convivência familiar, pois facilita o
estabelecimento dos laços afetivos, favorecendo a equidade de deveres e
direitos dos genitores.
Waldyr Grisard Filho, posiciona-se no sentido de que a guarda
compartilhada possibilita manter inalterada a vida cotidiana dos “filhos do
divórcio”, dando continuidade ao relacionamento próximo e amoroso com os dois
genitores, não exigindo assim que os filhos tenham que optar por apenas um dos
pais.
Busca-se no modelo de guarda compartilhada a continuidade das relações
entre pais e filhos e a preservação do interesse do menor a partir da cooperação dos
pais, ajudando, inclusive a devolver a auto-estima parental do genitor que outrora
não possuía a guarda. Sobre esse aspecto Grisard Filho salienta o seguinte

A guarda compartilhada eleva os padrões éticos dos pais, quando reconhecem


que, para o filho, o ex-cônjuge tem a mesma importância que eles, evitando que a
criança tenha que decidir com qual dos genitores gostaria de ficar. (2002, p. 171)

Para o psicólogo Lino Macedo em entrevista a revista ISTO É

A criança é extremamente flexível. Assimila com rapidez e eficiência as


diferenças entre a casa do pai e a da mãe. Mesmo quando as regras não
são exatamente as mesmas, ela sabe o que pode e o que não pode, ... Até
os dez anos, a criança tem necessidade da expressão física dos
acontecimentos. Ela tem dificuldade de elaborar internamente que o pai
se separou da mãe, mas não dela, que, apesar de não morar na mesma
cada, ainda a ama. Então, ter um lugar seu na casa e do dia-a-dia do pai
concretiza esse amor. (2002)
432 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Portanto, nesse mesmo sentido, o psicólogo Evandro Silva,


reforça que dois lares são melhor que um e as crianças tem condições
internas para se adaptarem a duas casas, realizando uma adaptação rápida
que não dá lugar a nenhum dano psíquico.

A guarda compartilhada diminui o tempo de ausência dos pais. Pensar


que a guarda deva ficar somente com um dos cônjuges, para que a
criança não perca o referencial do lar, é um equívoco. O referencial a não
ser perdido é o dos pais. A criança filha de pais separados vai adaptar-se
à nova vida, criará o vínculo com duas casas. Permitir à criança o
convívio com ambos os pais deixa-a segura, sem espaço para o medo do
abandono. O grau de intimidade da criança com os pais garantir-lhe-á
segurança e permitirá que ela tenha experiências para além da extensão
do lar. Crianças nestas condições adaptar-se-ão bem a situações novas, e
poderão lidar com frustrações e limites (SILVA, 2017).

36.3 ASPECTOS FILOSÓFICOS

Diante da subjetividade do tema, em que os aspectos psicológicos


da nova forma familiar que se constitui com a separação do casal, são tão
relevantes quanto os aspectos legais, é imprescindível sua análise sob a
ótica filosófica para que haja assim uma reflexão crítica deste assunto tão
em voga nos dias atuais.
A importância de uma reflexão crítica e filosófica dá-se pela ideia
e sentimentos de justiça que nos remete quando pensamos em guarda
compartilhada ou do exercício comum do poder paternal.
O precursor da ideia de justiça mundial no ocidente é o filósofo
Grego Platão (427 a.C. - 347 a.C.), seguido por Aristóteles (384 a.C. - 322
a.C.) que pensavam na antiguidade o direito como um meio para a
adequação das relações políticas e sociais. O filósofo medieval, Tomás de
Aquino (1225 d.C – 1274 d.C), em sua obra Suma Teológica também
coloca a Lei como uma forma de ordem para o bem comum. Cada qual
ao seu modo, incumbiam à justiça a promoção do bem-estar social,
conceitos estes que permeiam até a contemporaneidade.
Quando se depara com a expressão “obrigatoriedade”, trazida pela
lei de 2014, inevitavelmente, levado pelo senso comum, lembra-se de
“punição”. Pois bem, no artigo 92 da Suma Teológica, trata dos efeitos da
lei, Tomás diz que “começando alguém a acostumar-se a evitar o mal e a
fazer o bem, pelo temor da pena, é levado às vezes a praticá-lo por vontade
Os benefícios da guarda compartilhada... 433

própria e com prazer. E assim, a lei, mesmo punindo, leva os homens a se


tornarem bons.” Nesse sentido, os pais se tornarão melhores dentro desse
contexto quando tiverem que cumprir a lei, buscando uma convivência
equilibrada, tendo em vista que a principal característica da lei é preservar
os interesses do menor e o compartilhamento das decisões sobre os filhos.
Filosoficamente, a Suma Teológica de Tomás, no artigo 97 (Das
Mudanças da lei), Agostinho argumenta que a lei humana é fundada na
razão, portanto mutável.
Nesse contexto, com a Lei nº 11.698/2008, o legislador tentou
preservar os direitos de todos os envolvidos no processo de definição de
guarda, todavia, ainda havia preteridos, necessitando a lei de mudanças
com o objetivo de preencher suas lacunas. Certo que o legislador precisou
usar da razão para conseguir fazer tal modificação; entender os conflitos e
a partir daí sair em busca de novas soluções, o que originou a Lei nº
13.058/2014.
Diante da mudança na lei que trata da guarda dos filhos, levanta-
se com os seguintes questionamentos: Para que veio essa nova lei? Quais
as diferenças entre elas? A nova será melhor que a antiga?
Sinteticamente, Tomás diz que uma lei nova não difere da antiga,
pois assim como a antiga esta busca a perfeição.
No art. 4 da questão 107, Tomás discute se a lei nova é mais
onerosa do que a antiga. Aqui, lembra-se que a lei antiga (2008) somente
compartilhava a guarda quando era possível e a nova lei (2014), determina
obrigatório esse compartilhamento. Nesse ponto, os pais serão igualmente
detentores do poder familiar e responsáveis solidários em tudo que diz
respeito aos seus filhos. Aí surge a dúvida se isso onera de alguma forma
algum dos pais. A resposta é dura e forte: sim. Aquele que antes tinha
apenas a obrigação de visitar e patrocinar, agora assume um papel mais
participativo e terá, necessariamente que sair de sua zona de conforto e
exercer o poder familiar que lhe fora dado primeiramente por Deus e em
seguida, homologado pelo julgador. Assim, para fortalecer esse
pensamento, Agostinho diz, que não se deve perder de vista a moderação,
para não se tornar onerosa a vida dos fiéis.
É notório, diante de todo o exposto, que a promulgação da nova
Lei da Guarda compartilhada reconhece a dignidade, os direitos
inalienáveis e intrínsecos a todos os membros da família, e visa sobretudo
a garantia do bem-estar, através do resguardo dos direito e deveres, de
todos os envolvidos na nova estrutura familiar que se forma,
434 Ressonâncias filosóficas - Artigos

fundamentando os princípios de liberdade, da justiça e da paz, tanto para


os genitores quanto para a sua prole.
Aos filhos, entendemos como direito a possibilidade de conviver
com ambos os pais, sendo-lhes preservados os benefícios oriundos da
atenção e afetividade recebidos de seus pais. Aos pais o dever de protege-
los e assisti-los financeiramente e emocionalmente até atingirem a
maioridade, bem como o direito de participarem, decidirem sobre suas
vidas e de usufruírem do convívio rotineiro com estes, confirmando assim
o poder familiar mesmo após a ruptura matrimonial.
Para Lôbo (2009), o poder familiar é mais um dever do que
propriamente um poder legitimado adjudicado aos que ao tornarem-se
pais, adquirem a função de educar e prover sua prole. Partilhando desse
conceito, Gonçalves (2011), define o poder familiar como um “conjunto
de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens
dos filhos menores” (p.412).
O poder familiar teve sua origem no direito romano que
determinava que tal poder só poderia ser exercido através da autoridade
exclusiva e absoluta do chefe da família. No entanto, com a modificação
das relações familiares que marcaram sobretudo o século XX, sua
concepção originária também modificou-se substancialmente, sendo hoje
o poder familiar constituído dos direitos e deveres recíprocos entre pais e
filhos sempre priorizando o interesse dos filhos em detrimento dos de
seus pais, conforme evidenciou-se através das citações de Lôbo (2009) e
Gonçalves (2011).
Além das modificações das relações familiares que marcaram o
século XX, a preocupação com a classe infanto-juvenil também recebeu
destaque, consagrando a preocupação da garantia para o desenvolvimento
da vida digna e igualitária, conferindo ao Estado, a família e a sociedade a
proteção dos seus aspectos psicológicos, físicos e sociais durante o seu
processo de formação, constituindo-se assim em direitos fundamentais.
Podemos citar como exemplo de um dos direitos fundamentais
assegurados às crianças e adolescentes, o direito à convivência familiar que
objetivam através do convívio com seus familiares, proporcionar a
segurança necessária para a manutenção da sua integridade física,
intelectual e moral. Esse direito fundamental dos infanto-juvenis está
especialmente ligado a sustentação da dignidade humana que norteia todo
o ordenamento jurídico brasileiro.
O princípio do respeito à dignidade das pessoas humanas é
considerado um dos mais importantes princípios do nosso sistema
Os benefícios da guarda compartilhada... 435

normativo, pois concebe o sujeito de direito como aquele que é passivo


de um dever jurídico, apto a exercer as prerrogativas que o ordenamento
jurídico lhe atribui e que tem o poder de fazer valer, através dos meios
legais disponíveis, o não-cumprimento do dever jurídico XAVIER (2009).
Supiot (2007) define o sujeito de direito do ponto de vista jurídico “como
sujeito, dotado de razão e titular de direitos inalienáveis e sagrados” (p.
12). Assim podemos entender o indivíduo como um sujeito de direito,
dotado de razão, e capaz de deliberar entre o correto e o incorreto, sendo
que suas escolhas não devem infringir os direitos e valores de outrem.
Entretanto, esses conceitos de Justiça, Direito e Lei tão atuais,
tiveram sua origem no pensamento filosófico Grego, através de Platão e
Aristóteles que conceberam o homem como um agente de racionalidade,
capaz de conhecer a si próprio e, portanto, através da reflexão guiar sua
conduta por meio da razão. Platão e Aristóteles entendiam a palavra
dikaiosyne, traduzida como justiça, como a mais altas das virtudes,
inaugurando o pensamento de uma igualdade de todos perante a Lei. Em
sua obra A Republica este pensamento evidencia-se como segue:

o homem justo é o absolutamente bom e fazer mal aos outros não é


função do mesmo. É por isso que os bons ocupam as magistraturas,
quando governam, pois vão para o poder como quem vai para uma
necessidade. Logo, o justo assemelha-se ao homem sábio e bom, e o
injusto, ao mau e ignorante (PLATÃO).

Os reflexos destes pensamentos na Modernidade são grandiosos


para o que inicialmente foi chamado de Direitos Naturais e a partir do Sec.
XVIII passou a chamar-se de Direitos Humanos, por levarem em
consideração o princípio de que a sociedade e suas normativas devem estar
voltadas para a natureza do homem, buscando uma aproximação das
virtudes éticas e morais das virtudes políticas, afim de atingir uma verdade
universal.
A concepção do filósofo Aristóteles sobre natureza do homem e
sua capacidade de realizar-se a partir da sua própria natureza repercutiu de
maneira fundamental no atual pensamento ocidental, pois para Aristóteles
o homem é um ser por natureza social que devido a sua imperfeição e
carência necessita das relações humanas mais perfeitas para se completar.

36.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS


436 Ressonâncias filosóficas - Artigos

No presente trabalho abordamos as novas possibilidades de


famílias que surgiram com a possibilidade da guarda compartilhada em
direito através da promulgação da Lei nº 11.698/08, bem como suas
modificações legais com a chegada da lei 13.058/14. Evidenciamos os seus
aspectos positivos, inclusive sobre a perspectiva social, psicológica e
filosófica tanto para os pais, pela possibilidade de exercício pleno dos
cuidados parentais, como para o bem-estar do menor que pôde, a partir
de então, valer-se dos cuidados e afeto de seus genitores, mesmo que em
lares diferentes.
É imprescindível que mesmo em uniões dissolvidas, os princípios
para definir a vida de uma criança ou adolescente sejam aplicados a luz das
suas demandas afetivas, de dignidade humana e do seu direito natural,
podendo receber o afeto e cuidados de ambos os pais. Portanto, esses
direitos não podem ser negados a nenhuma criança, sob pena de ferir seus
direitos humanos privando-os de uma vida digna e igualitária e de ter seus
parâmetros morais e valorosos definidos a partir da convivência com seus
familiares.
Assim a guarda compartilhada é um meio para que seja garantida
a efetividade do exercício do poder familiar, mesmo após a dissolução da
sociedade conjugal ou união estável, pela possibilidade do efetivo papel
parental conjunto, não interrompendo os laços parentais dos filhos
mesmo com a ruptura do matrimônio.

REFERÊCIAS

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clássica tradução de Alexandre Correia. Disponível em:
http://permanencia.org.br/drupal/node/1745 Acessado em
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Os benefícios da guarda compartilhada... 437

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LÔBO. Paulo Luiz Netto. Famílias De acordo com a Lei n.11.698/2008,


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PLATÃO. A República. Tradução de Albertino Pinheiro, 6 ed. São Paulo:


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438 Ressonâncias filosóficas - Artigos

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https://www.pailegal.net/veja-mais/ser-pai/analises/303-dois-lares-e-
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XAVIER, E. D. A Bioética e o conceito de pessoa: a re-significação


jurídica do ser enquanto pessoa. Revista Bioética, América do Norte, nº 8 3
11 2009.
XXXVII

PERFEIÇÃO CRISTÃ E SANTIFICAÇÃO PROGRESSIVA EM


JOHN WESLEY

Gabriel Bassaga Nascimento*


José Dias**

INTRODUÇÃO

O principal interesse na elaboração de uma pesquisa que enfoque


a perfeição cristã é entender qual é, ou quais são as principais evidências
bíblicas a respeito da mesma, a fim de esclarecer a possibilidade ou a
impossibilidade, de acordo com a teologia cristã, de viver a perfeição e,
com isso, fornecer os pressupostos que orientem os indivíduos a agir
diante deste assunto.
A relevância acadêmica de tal pesquisa observa-se no fato da
mesma servir de referência a estudantes e profissionais na área teológica e
filosófica, na medida em que aborda as consecuções que norteiam a
questão da santidade e orienta professores, filósofos, pastores, líderes e as
pessoas em geral a buscar um maior entendimento acerca de como lidar
com esse tema.

* Possui graduação em Teologia pelo Instituto Seminário Bíblico de Londrina (2011) e


graduação em Teologia pelo Centro Universitário de Maringá - UNICESUMAR (2012).
Atualmente é graduando do curso de Direito pelo Centro Universitário de Maringá -
UNICESUMAR. Possui ampla experiência como Executivo de Vendas em todo o
território nacional.
** Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em

Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela


Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito
Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma,
Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da
UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura
em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.
440 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Essa pesquisa tem caráter qualitativo, uma vez que se preocupa


com o aprofundamento da compreensão de um tema teológico relevante
para a instituição religiosa e filosófica. Neste caso, o tema proposto é
baseado no conceito de perfeição cristã na obra de John Wesley e terá
alguns de seus aspectos especificamente estudados. Não há preocupação
com a representatividade numérica, como ocorre na pesquisa quantitativa.
A discussão teológica que trata da santidade não vem dos dias
atuais. Ela ocorre há séculos e traz consigo o nome de respeitados teólogos
como Charles Finney, Wayne Grudem, H. Orton Wiley, dentre outros.
Esse último já dizia: “Ainda que a inteira santificação seja doutrina
fundamental do Cristianismo e de vasta importância para a Igreja, há
poucos temas teológicos com maior variedade de opiniões”.1 John Wesley,
como um dos maiores defensores da perfeição cristão, crê na possibilidade
de alcançar a santidade completa ainda em vida, ou seja, acredita na
possibilidade de não pecar mais à partir de um determinado momento da
vida. Outros crêem na impossibilidade de tal feito, entendendo que a
santidade é progressiva e nunca será possível alcançá-la plenamente em
vida. É justamente por isso que se faz necessária uma avaliação equilibrada
sobre o que é a perfeição cristã e sobre a possibilidade ou não de alcançá-
la.
Há, na verdade, um imenso interesse em facilitar o entendimento
acerca da verdade apresentada pela bíblia para o tema em questão.
Clarificar esse entendimento ajudará a evitar uma interpretação legalista e
uma postura hipócrita sobre o tema da santidade, conduzindo os cristãos
a terem uma postura correta diante de Deus e diante dos homens e os não
cristãos a entenderem e respeitarem a complexidade desta matéria.
Para tanto, a teologia básica a ser usada será a de John Wesley.
Espera-se apresentar um conceito que busque o equilíbrio entre a
perfeição cristã e a santificação progressiva, a fim de alcançar uma resposta
à seguinte questão: A perfeição cristã é totalmente oposta à santificação
progressiva ou há alguma possibilidade de complementação entre elas na
teologia Wesleyana? A reposta a esta questão é afirmativa, no sentido de
que elas são complementares. Ou seja, foi possível verificar, através do
estudo realizado, que existe possibilidade de complementação entre as
duas teorias na teologia Wesleyana.

1WILEY, H. Orton. Introdução à Teologia Cristã. São Paulo: Casa Nazarena de


Publicações, 1990, p. 340
Perfeição cristã e santificação... 441

37.1 VIDA E OBRA DE JOHN WESLEY (1703-1791)

John Wesley nasceu a noroeste de Lincolnshire, num distrito


chamado ilha de Axholme, no dia 17 de junho de 1703, época em que seu
pai era pastor de igreja. Foi ali que passou os primeiros anos de sua vida,
em um ambiente que contribuiu grandemente para lhe formar o caráter e
influenciar a sua futura carreira.
O pai de John Wesley chamava-se Samuel. Ele deu aos filhos um
exemplo de todas as virtudes (morais, intelectuais, sociais), mas transmitia-
lhes uma vida religiosa bastante irregular. Exortava-os à prática de uma
vida pura, perfeita, mas não soube indicar-lhes o verdadeiro manancial
dessa experiência, que é a fé sincera em Jesus Cristo. Por maior que tenha
sido a influência paterna na formação da alma e do caráter de John Wesley,
pode-se afirmar, sem dúvida, que seu crescimento moral e religioso foi,
mais propriamente, o fruto do esforço direto e assíduo de sua mãe, uma
cristã muito piedosa. Com a máxima razão tem sido dito que Susana
Wesley foi a mãe, não somente de Wesley, como também do movimento
religioso conhecido como metodismo. O amor aos seus filhos não se
parecia em nada com essa espécie de culto egoísta que muitos pais
professam; ela os considerava plantas tenras, cheias de esperança, que
cultivaria com fidelidade e zelo. E, quando vinha a dificuldade, em vez dela
colher os frutos do campo dos seus carinhos, inclinava-se diante da
vontade de Deus e mostrava-se ainda mais forte em meio aos seus grandes
pesares, mais do que nos dias em que tudo ia bem.
John Wesley tinha um irmão chamado Carlos, cuja vida esteve
estreitamente associada a sua. Ele era cinco anos mais novo que John e
em 1716 ele entrou na escola de Westminster. Ao mesmo tempo que John
começava o ministério pastoral na paróquia do pai (1726), Carlos entrava
na Universidade de Oxford, onde também lhe concederam o título de
Fellow (parte de um grupo de elite, de pessoas esclarecidas, que trabalham
em conjunto como pares na busca do conhecimento) do Christ Church
College. Quando John foi para Oxford, uniu-se com seu irmão e seus
amigos, e, tendo mais idade e mais experiência do que eles, tornou-se o
líder daquele pequeno grupo de jovens. No início, este se constituía
somente dos dois irmãos e dos jovens Roberto Kirkham e Guilherme
Morgan. Pouco a pouco, novos membros, tanto catedráticos como
estudantes, reuniam-se a esse primeiro núcleo. Esses jovens, cujo número
nunca passou de quinze, formaram entre si uma associação para o
fomento da piedade e do saber. Reuniam-se todas as noites para conversar
442 Ressonâncias filosóficas - Artigos

sobre suas ocupações e seus estudos, sendo que começavam essa vigília
com oração, e terminavam com um lanche frugal. Essas reuniões de jovens
tão ajuizados eram uma novidade em Oxford, onde, naquela época, longe
de prevalecer a virtude, reinavam a incredulidade e o relaxamento dos
bons costumes. Por escárnio, os demais estudantes chamavam a sociedade
“o clube dos santos”, e os seus membros receberam o apelido zombeteiro
de “metodistas”, por causa da metodologia e regularidade com que
cumpriam seus deveres religiosos.
John Wesley era a “alma” daquela sociedade fraternal, e mereceu
o título de “procurador do clube dos santos”, conforme a juventude
universitária o designou maliciosamente. Sua superioridade intelectual, a
madureza singular de seu espírito e a aptidão organizadora que já possuía
em alto grau, valeram-lhe uma notável ascendência sobre seus amigos.
Devido à sua influência, os jovens metodistas de Oxford, estando na
aurora da autêntica piedade, dedicavam uma grande parte do tempo à
pratica de boas obras, visitando famílias pobres, organizando cultos nos
cárceres, patrocinando escolas primárias e distribuindo aos necessitados
tudo quanto conseguissem tirar dos seus escassos proventos. John era um
exemplo disso. Sua caridade não tinha outros meios senão os seus próprios
recursos; abstinha-se de tudo quanto era supérfluo, considerando-o algo
furtado dos pobres. Não era menos consciencioso no emprego do tempo
do que no uso do dinheiro. Tendo notado que não passava uma única
noite sem acordar uma vez, deduziu que permanecia na cama mais tempo
do que a natureza exigia e, em consequência de uma série de experiências
e observações, descobriu que a única maneira de dormir sem interrupção
era abreviar as horas em seu leito e levantar-se as quatro da manhã.
Sessenta anos depois de ter adotado essa regra, escreveu em seu diário:
“Desde aquela data, tenho me levantado diariamente, com a ajuda de
Deus, às quatro da manhã e, tirando uma média geral de todos os anos,
posso dizer que não tenho tido quinze minutos de insônia durante o
mês”.2
Enfim, em meio à um ambiente hostil e degradante e diante de
uma educação familiar baseada na disciplina e num estilo metódico, John
Wesley cresceu e se desenvolveu. Em 1725, estando com vinte e três anos
de idade, Wesley leu o livro do Bispo Taylor, “Regra e Exercícios de Viver e
Morrer Santo". Ele relata o que aconteceu com ele: “Lendo várias partes
deste livro, eu fui, sumamente, afetado, por aquela, em particular, que

2 LELIÈVRE, Mateo. Sua vida e obra, 1997. p.43


Perfeição cristã e santificação... 443

relaciona a pureza de intenção”.3 Imediatamente, ele decidiu dedicar toda


a sua vida a Deus, todos os seus pensamentos, palavras e ações; estando
convencido, completamente, que não havia meio termo: ou cada parte de
sua vida (não algumas apenas) deveria ser um sacrifício para Deus, ou seria
dedicada a si mesmo; ou seja, de fato, para o mal.
No ano de 1726, ele se encontrou com o livro de Kempis, “Modelo
Cristão”. A natureza e a extensão da religião interior; a religião do coração,
agora, apareciam a ele, como uma luz forte, que ele nunca tinha sentido
anteriormente. Ele viu que dedicando toda sua vida a Deus — supondo
que fosse possível fazer isso, e não ir mais longe, não o traria benefício
algum, a não ser que ele desse seu coração; sim, todo seu coração para
Deus. Ele viu que 'a simplicidade de intenção e a pureza de afeição' — uma,
destinando-se a tudo o que for falado ou feito; e a outra, destinando-se a
todo temperamento, eram realmente 'as asas da alma', sem as quais, ela
nunca ascende para o monte de Deus.
Um ano ou dois depois, os livros do Sr. Law, “Perfeição Cristã”, e
“Chamado Sério”, lhe foram colocados em mão. Esses lhe convenceram,
mais do que nunca, da absoluta impossibilidade de ser "meio cristão";
assim, ele determinou, pela fé, de estar "por completo" devotado a Deus;
a dar a Ele toda sua alma, corpo e essência. Em 1730, Wesley começou,
não apenas a ler, mas também a estudar a Bíblia, como a única, exclusivo
padrão de verdade, e o único modelo da religião pura. Com isso, ele viu
uma luz, cada vez mais clara, demonstrando a indispensável necessidade
de ter 'a mente, que está em Cristo', e de 'caminhar, como Cristo também
caminhou'; tendo, sempre, não apenas algumas partes, mas toda a mente
que estava nele; e caminhar como Cristo caminhou, não apenas em muitas,
ou, na maioria das circunstâncias, mas em todas as coisas. E essa era a luz,
em que ele, naquele momento, por via de regra, considerou religião, como
um seguir uniforme de Jesus Cristo; uma inteira conformidade, interior e
exterior, para com o seu Deus. Ele não estava com medo de coisa alguma,
exceto de subjugar essa regra na sua própria experiência ou na vida de
outros homens; de permitir a si mesmo ou a outrem que houvesse
qualquer desconformidade com os ensinos bíblicos.
Em 1735 ele e Charles foram nomeados para a capelania da SPE
da Geórgia e lá chegaram no ano seguinte. Eles viajaram no mesmo navio
que um grupo de morávios. Esses, influenciaram sobremaneira a vida

3 WESLEY, Jonh. Um Claro Relato da Perfeição Cristã. Editado por George Lyons -
Wesley Center for Applied Theology at Northwest Nazarene College (Nampa, ID), 1725.
p. 2
444 Ressonâncias filosóficas - Artigos

espiritual de John Wesley. “Com o seu zelo por Cristo, os morávios


escreveram uma das páginas mais nobres das missões cristãs em todos os
tempos. Nenhum grupo protestante teve maior consciência do dever
missionário e nenhum demonstrou tamanha consagração a esse serviço
em proporção ao número de seus membros”.4 Nessa viagem para a
Geórgia, os irmãos Wesley foram trabalhar com os índios, mas depois de
dois anos frustrantes, voltaram para casa.
Dois fatos importantes devem ser ressaltados em relação ao que
aconteceu com Wesley antes e após essa viagem para a Geórgia. Logo no
início da viagem, “John Wesley foi questionado por Spangenberg sobre a
certeza da sua salvação”5 e após voltar para casa “conheceu Peter Böhler,
líder dos morávios de Londres, que lhe falou sobre a necessidade de uma
fé mais profunda”6. Após esse encontro, no dia 24 de maio de 1738,
Wesley relata que lia um trecho do prefácio de Lutero ao livro de Romanos
e que sentiu seu coração aquecer. Sentiu que confiava em Cristo e só em
Cristo para a salvação. Em seu diário, ele diz assim:

Cerca das nove menos um quarto, enquanto ouvia a descrição que


Lutero fazia sobre a mudança que Deus opera no coração através da fé
em Cristo, senti que meu coração ardia de maneira estranha. Senti que,
em verdade, eu confiava somente em Cristo para a salvação e que uma
certeza me foi dada de que Ele havia tirado meus pecados, em verdade
meus, e que me havia salvo da lei do pecado e da morte. Comecei a orar
com todo meu poder por aqueles que, de uma maneira especial, me
haviam perseguido e insultado. Então testifiquei diante de todos os
presentes o que, pela primeira vez, sentia em meu coração.7

Toda essa experiência de John Wesley, aliada aos que o apoiavam


e, principalmente, diante da situação degradante da Inglaterra em sua
época, levaram-no a formar sua teologia sobre a perfeição cristã.

http://www.ultimato.com.br/pg=show_artigos&secMestre=752&sec=769&num_edic
ao=287 (04 de dezebro de 2008).
5 CLOUSE, Robert G. Dois Reinos. São Paulo: Mundo Cristão, 2003, p.390
6 CLOUSE, Robert G. Dois Reinos. São Paulo: Mundo Cristão, 2003, p.391
7 WESLEY, John. Trechos do diário de John Wesley. São Paulo: J.G.E.C. da Igreja

Metodista do Brasil, 1965


Perfeição cristã e santificação... 445

37.2 TEOLOGIA DE JOHN WESLEY SOBRE PERFEIÇÃO


CRISTÃ

Após a análise do contexto sócio-histórico que permeou a vida de


John Wesley, da influência familiar e da influência espiritual que recebeu,
será feita uma análise de sua teologia, da parte que trata do assunto
“perfeição cristã”. Para tanto, a primeira coisa a ser dita é que a doutrina
de Wesley é um agostinianismo ampliado e não abandonado, em relação
ao ensino da santidade. O ensino da santidade é insistentemente tratado
na vida e na teologia de John Wesley. Sua herança, tanto paterna como
materna, era puritana; por isso, não deve causar surpresa saber que em seu
ensinamento, acerca da santidade, ele reproduziu as ênfases agostinianas
da lei de Deus, como compulsória para os cristãos, da insuficiência das
realizações do cristão, por padrões absolutos, e da realidade do socorro
divino para a vida diária. Wesley, de fato, “deu grande ênfase à perfeição
cristã como característica metodista e pensou nela como verdade bíblica
que ele fora o primeiro a trazer à luz”.8
Os ensinamentos acerca da santidade propostos por John Wesley,
refletem a amplitude das fontes nas quais ele havia se baseado. Ele se
refere frequentemente a esse ensinamento como “santidade bíblica”, mas
a sua maneira de entender o ensino bíblico a respeito da santidade havia
provindo de várias fontes. Minuciosamente eclético, ele acrescentou ao
agostinianismo do Livro Anglicano de Orações e ao moralismo da Igreja
Alta, que aspirava ao céu, em que ele fora criado, um conceito de perfeição
que ele aprendera das fontes patrísticas gregas.
Secundariamente, ao fazer essa análise sobre a perfeição cristã na
doutrina Wesleyana, deve-se ater ao seu significado e, também, ao apoio
bíblico utilizado por John Wesley para embasá-la. Primeiramente, Wesley
utiliza o título indiferente de “O Caráter de um Metodista” para expressar
“Perfeição Cristã”. O caráter de um metodista é ressaltado e conhecido
por seus frutos. Isso porque ele ama a Deus e guarda seus mandamentos.
E ele guarda não alguns ou a maioria, mas todos os mandamentos de
Deus, do menor ao maior. Ele não está contente em manter toda a lei e
transgredir, em um ponto, mas tem, em todos os pontos, uma consciência
isenta de ofender no que concerne a Deus e ao homem (referência bíblica:
Atos 24:16). O que quer que Deus tenha proibido, ele evita; o que quer
que Deus tenha prescrito, ele faz. Ele anda no caminho dos mandamentos
de Deus, agora Ele libertou seu coração. O regozijo e a glória, além da
8 PACKER, J. I. Na Dinâmica do Espírito. São Paulo: Vida Nova, 1991
446 Ressonâncias filosóficas - Artigos

coroa diária de um metodista, é fazer a vontade de Deus na terra, como


ela é feita nos céus.

Todos os mandamentos de Deus, ele, concordantemente, mantém, com


toda sua força; porque sua obediência é em proporção ao seu amor; é a
fonte, de onde ele flui. E, consequentemente, amando a Deus, com todo
seu coração, ele serve a Ele, com todo seu vigor; ele, continuamente,
apresenta sua alma e corpo, em um sacrifício vivo, santo e aceitável a
Deus; inteiramente, e sem reserva, devotando a Ele tudo o que tem, tudo
o que é, toda sua glória. Todos os talentos que ele tem, ele emprega,
constantemente, de acordo com a vontade de seu Mestre; cada poder e
faculdade de sua alma, todo o membro de seu corpo.9

Como consequência disso, o que quer que faça em sua vida, tudo
é para a glória do seu Deus. Todos os seus empreendimentos visam a
glória de Deus, e não apenas isso, em todo seu olhar ele busca alcançá-Lo.
Seu trabalho e seu refrigério, tanto quanto suas orações, tudo serve à
grande finalidade. Tanto ficando em casa, como caminhando pela rua;
tanto se deitando, como se levantando, ele está fomentando, em tudo o
que ele fale ou faça, o único trabalho de sua vida. Tanto ele coloque seus
adornos, ou trabalhe, ou coma, ou beba, ou se distraia, também, do
trabalho debilitante, tudo tende à vantagem da glória de Deus, pela paz e
boa-vontade entre os homens. Sua regra constante é: O que quer que eu
faça, em palavra ou ação, faça tudo em nome de Jesus Cristo, agradecendo
a Deus; sempre, ao Pai, através dele (referência bíblica: Colossenses 3:17).

Nem o comportamento do mundo, afinal, impeça-o de seguir o decurso


da vida, que está estabelecido diante dele. (Hebreus 12:1) Ele não poderá,
entretanto, deitar tesouros na terra, não mais do que ele por fogo em seu
peito. Ele não poderá falar mal de seu vizinho, não mais do que ele possa
mentir tanto a Deus, quanto ao homem. E não poderá proferir uma
palavra indelicada a qualquer um; por amor, manterá a boca fechada. Ele
não poderá falar palavras vãs; nem conversa corrupta saia de sua boca;
como tudo isso não é bom para o uso da edificação, nem adequado para
ministrar graça para os ouvintes. Mas, por mais que as coisas sejam puras;
por mais que as coisas sejam amáveis; por mais que as coisas sejam,

9WESLEY, John – A Perfeição Cristã – Kansas City: Casa Nazarena de Publicações,


1981, p. 20.
Perfeição cristã e santificação... 447

justamente, de boa reputação, ele pensa, fala e age, adornando a doutrina


de Deus nosso Salvador em todas as coisas. (Tito 2:10)10

Wesley afirmou que essas são as mesmas palavras, onde ele,


largamente declarou, pela primeira vez, seus sentimentos em relação à
perfeição cristã. Ele completa dizendo: “esse é o mesmo ponto o qual eu
almejo, todo o tempo, desde o ano de 1725; e mais, determinantemente,
desde o ano de 1730, quando eu comecei a ser 'um homem de um só livro',
de preferência nenhum, comparativamente, a não ser a Bíblia”. Diz ainda:
“Que essa é a mesma doutrina, a qual eu acredito e ensino até esse dia; não
adicionando um ponto, tanto para a santidade interna como externa, a qual
eu tenho preservado, há trinta e oito anos”11
Em um trecho de sua obra12, com a finalidade de mostrar por meio
das Escrituras, que Deus promete salvar os Seus de todo o pecado, Wesley
responde à várias questões relativas a esse tema. Uma das perguntas
respondidas foi a seguinte:
Há qualquer afirmativa a respeito da possibilidade da perfeição
cristã no Novo Testamento?

Resposta: “Há, e em termos simples. Assim diz S. João: "Por este


objetivo o Filho de Deus manifestou-se, a fim de que pudesse destruir
as obras do diabo" (João 3:8); as obras do diabo sem qualquer limitação
ou restrição e todo pecado é obra do demônio. Há aquela afirmativa de
S. Paulo paralela a esta: "Cristo amou a sua Igreja e deu-se a si mesmo
por ela para que Ele pudesse apresentá-la a si mesmo, uma Igreja
gloriosa, não possuindo mancha ou ruga ou qualquer coisa assim, mas
que ela deve ser santa e irrepreensível" (Efésios 5:25,27). No mesmo
sentido ele afirma aos Romanos: "Deus enviou o seu Filho, para que a
justiça da lei pudesse ser cumprida em nós, andando não segundo a
carne, mas segundo o espírito" (Rom. 8:3-4).

No sentido em que John Wesley interpreta a perfeição, a pessoa


imperfeita ainda pode carecer de conhecimento, errar em julgamento e,

10 WESLEY, John – A Perfeição Cristã – Kansas City: Casa Nazarena de Publicações,


1981 p.17-21
11 WESLEY, John – A Perfeição Cristã – Kansas City: Casa Nazarena de Publicações,

1981, p. 22
12 Obras: "Minutos de conversações tardias", quarta-feira, 17 de junho de 1747 (VIII,

293-96).
448 Ressonâncias filosóficas - Artigos

por isso, agir tolamente. Pode ainda estar exibindo quaisquer, e talvez
muitas,

das imperfeições interiores ou exteriores que não são de natureza moral;


fraqueza ou lentidão em entender, ignorância ou confusão de apreensão,
incoerência de pensamentos, imaginações irregulares ou obscuras, a falta
de uma memória pronta ou retentora, lentidão no falar, vocabulário
impróprio, pronúncia deselegante...”13

Em relação aos meios de se alcançar a perfeição cristã, Wesley


ensina que a fé é um deles, senão o mais importante dos meios. Ele
argumenta:

[...] Tenho testificado continuamente, tanto em particular como em


público que somos justificados e santificados pela fé. Somos justificados
pela fé como o somos santificados por ela. A fé é a condição e a condição
única da santificação exatamente como da justificação. Ela é a condição;
ninguém santificado senão aquele que crê; sem fé nenhum homem é
santificado. Ela é a única condição; é suficiente para a santificação. Todo
aquele que crê é santificado, não importa o que ele possua ou não a mais.
Noutras palavras, ninguém é santificado enquanto não crer; todos são
santificados quando crêem.14

Embora muitas vezes, ao avaliar esses vários escritos de John


Wesley, seja possível constatar sua clara posição em relação à possibilidade
de se viver a perfeição cristã ou a santidade plena ainda nesta vida, é
imprescindível que se faça um estudo mais aprofundado de um dos textos
bíblicos que Wesley utiliza para apoiar sua doutrina. Sendo assim, um texto
em especial chama a atenção. É o texto de I Tessalonicenses 5:23, utilizado
como argumento no final da descrição do Caráter de um Metodista. Segue
o texto: “Que o próprio Deus da paz os santifique inteiramente. Que todo o espírito,
a alma e o corpo de vocês sejam preservados irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo”.15

13 OUTLER, Albert. John Wesley. Nova Iorque: Oxford University Press, 1964, p. 257
14 BURTNER, Chiles, 1960, p.187
15 I Tessalonicenses 5:23 – Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2001, p. 947 e

948.
Perfeição cristã e santificação... 449

37.3 EXEGESE DE I TESSALONICENSES 5:23

Avaliando o texto específico de I Tessalonicenses 5:23 na língua


grega:
Αὐτὸς δὲ ὁ θεὸς τῆς εἰρήνης ἁγιάσαι ὑµᾶς ὁλοτελεῖς, καὶ ὁλόκληρον
ὑµῶν τὸ πνεῦµα καὶ ἡ ψυχὴ καὶ τὸ σῶµα ἀµέµπτως ἐν τῇ παρουσίᾳ τοῦ κυρίου
ἡµῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ τηρηθείη.

Quadro 1: Análise Gramatical

Palavra no Tradução
Analítico17
grego Interlinear16

Substantivo pronominal, nominativo,


Αὐτὸς ele mesmo
masculino, terceira pessoa do singular

δὲ E Conjunção coordenativa

Artigo definido, nominativo, masculino,


ὁ O
singular

θεὸς Deus Substantivo nominativo, masculino, singular

τῆς Da Artigo definido, genitivo, feminino, singular

εἰρήνης Paz Substantivo genitivo, feminino, singular

Verbo no modo optativo, tempo aoristo,


ἁγιάσαι Santifique
voz ativa, terceira pessoa do singular

16 SCHOLZ, Vilson. Novo Testamento Interlinear Grego-Português. São Paulo: SBB,


2004, p. 761 e 762.
17 FRIBERG, Timothy. O Novo Testamento Grego Analítico. São Paulo: Vida Nova,

1987, p. 627.
450 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Substantivo pronominal, acusativo, segunda


ὑµᾶς a vós
pessoa do plural

ὁλοτελεῖς por completo Adjetivo, acusativo, masculino, plural

καὶ E Conjunção coordenativa

ὁλόκληρον Íntegro Adjetivo, nominativo, neutro, singular

Substantivo pronominal, genitivo, segunda


ὑµῶν Vossos
pessoa do plural

τὸ O Artigo definido, nominativo, neutro, singular

πνεῦµα Espírito Substantivo, nominativo, neutro, plural

καὶ E Conjunção coordenativa

Artigo definido, nominativo, feminino,


ἡ A
singular

ψυχὴ Alma Substantivo, nominativo, feminino, singular

καὶ E Conjunção coordenativa

τὸ O Artigo definido, nominativo, neutro, singular

σῶµα Corpo Substantivo, nominativo, neutro, singular


Perfeição cristã e santificação... 451

ἀµέµπτως irrepreensivelmente Adjetivo adverbial

ἐν Em Preposição, dativo

τῇ A Artigo definido, dativo, feminino, singular

παρουσίᾳ Vinda Substantivo, dativo, feminino, singular

τοῦ Do Artigo definido, genitivo, masculino, singular

κυρίου Senhor Substantivo, genitivo, masculino, singular

Substantivo pronominal, genitivo, primeira


ἡµῶν Nosso
pessoa do singular

Ἰησοῦ Jesus Substantivo, genitivo, masculino, singular

Χριστοῦ Cristo Substantivo, genitivo, masculino, singular

Verbo optativo, no tempo aoristo, na voz


τηρηθείη seja conservado
passiva, terceira pessoa do singular

Fonte: o autor.

Ao avaliar de forma delimitada do verso 23, é importante dividi-lo


em duas partes. Na primeira, vê-se claramente que é o “próprio Deus” que
“santificará inteiramente”. É importante notar que Paulo não descreve
quando. Já na segunda parte do versículo dois problemas podem ser
levantados. Em primeiro lugar, Paulo usa o verbo santificar na forma
aoristo, em contraste com uma forma contínua. Daí surge a pergunta: isto
significa que ele considera semelhante “santificação completa” como
sendo uma ação de uma vez por todas, realizada por Deus? I. Howard
Marshall responde da seguinte forma:
452 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Pode-se responder essa questão ao se comparar o desejo em I


Tessalonicenses 3:12 (“que o Senhor faça crescer e transbordar o amor que vocês
têm uns para com os outros e para com todos, a exemplo do nosso amor por vocês”.)
que forçosamente se refere ao aumento do amor como sendo um
processo paulatino, mas que também é expressado na forma aoristo; aqui
também, portanto, Paulo pode ter em mente um processo, e isto é
confirmado pelo ensino acerca de uma obra contínua de Deus na vida
dos crentes em Filipenses 1:6, 9-10 (“Estou convencido de que aquele que
começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus”.)18

Em segundo lugar, Paulo considera semelhante santificação como


algo que o cristão deve demonstrar a fim de estar pronto para a segunda
vinda de Cristo, ou como algo que será levado a efeito como resultado
desta segunda vinda? O mesmo Marshall responde da seguinte forma:

A linguagem que Paulo certamente dá a entender é que ora em prol dos


crentes serem completamente santos ao se prepararem para a segunda
vida de Cristo (Filipenses 1:10 – “...para discernirem o que é melhor, a fim de
serem puros e irrepreensíveis até o dia de Cristo...”). O mesmo pensamento está
presente em I Tessalonicenses 3:13 (“Que ele fortaleça o coração de vocês para
serem irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso
Senhor Jesus com todos os seus santos”.) e deve ser levado a sério. Posto que
Paulo acreditava que a segunda vinda de Cristo poderia ocorrer dentro
do período de vida dos seus leitores, também acreditava que poderiam
estar plenamente preparados para ela a qualquer tempo. Mesmo se
entendermos que o pensamento diz respeito à santidade em todo o
aspecto da personalidade e à completa consagração a Deus ao invés da
prática de semelhante consagração nos detalhes da vivência diária, a
perspectiva ainda parece intimidadora. O sentido pode ser que a oração
de Paulo represente um ideal que talvez não possa ser plenamente
concretizado.19

Na Chave Linguística20 tem-se a palavra ἁγιάσαι no aoristo


optativo, significando santificar (para uso do optativo em orações para
expressar desejo). Há, também, a palavra ὁλοτελεῖς, que significa
inteiramente, completamente, totalmente. Essa palavra não transmite
18 MARSHALL, I. Howard. I e II Tessalonicenses: Introdução e comentário. São Paulo:
Mundo Cristão, 1984, p. 192
19 MARSHALL, I. Howard. I e II Tessalonicenses: Introdução e comentário. São Paulo:

Mundo Cristão, 1984, p. 192


20 RIENECKER, Fritz. Chave Lingüística do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida

Nova, 1985, p. 447


Perfeição cristã e santificação... 453

apenas a ideia de totalidade, mas envolve a ideia adicional de término, algo


completo, intacto. A outra palavra é ὁλόκληρον, que significa todo,
completo, intacto. Por fim, a palavra ἀµέµπτως, significando irrepreensível
ou inatacado. Ao expressar sua opinião sobre esse versículo, Moody (1991)
diz “que nenhuma parte está faltando, o todo da pessoa deve ser
conservado irrepreensível”.21 Ao avaliar a forma verbal santifique, Beacon
(1985) diz que ela ocorre no tempo grego aoristo. “Pelo que o aoristo
indica, essa não é uma ação contínua, mas uma ação terminada,
completa.”22 Davidson (1963) explica que - O mesmo Deus da paz vos
santifique em tudo (v. 23) - isto é, completar a obra de santificação já iniciada;
o aoristo optativo hagiasai aqui indica – um processo visto em perspectiva,
e assim contemplado com ato, já completo.23 De acordo com The
interpreter’s Bible... “a paz que há em nós e entre nós e Deus provém de
Deus. A palavra inteiramente não é achada em qualquer outro lugar na bíblia
grega, mas ele é usada em algumas literaturas que não deixam de dizer seu
sentido. A palavra ὁλοτελεῖς sugere finalidade e inteireza...que eles possam
ser preservados até a vinda de Cristo” 24. Segundo Clarke (s.d.) a palavra
inteiramente representa todo propósito e toda intenção. A oração de Paulo
é que a totalidade da pessoa (corpo, alma e espírito) seja santificada e
apresentada sem culpa até a parusia.25
Indubitavelmente, a exegese do vigésimo terceiro verso do quinto
capítulo da primeira carta de Paulo aos tessalonicenses, juntamente com a
opinião de Marshall, Pfeiffer, Airhart, Davidson e Clarke demonstra que
Paulo “poderia” se referir à uma inteira santificação ainda em vida. Sendo
assim, embora a interpretação bíblica exija uma avaliação de todo o seu
contexto, não se pode retalhar a interpretação de John Wesley, afirmando
que ele estivesse completamente equivocado com sua interpretação, ou
que ele estivesse forçando o texto para que este se adaptasse a sua
necessidade. Além disso, existem outras passagens bíblicas que podem
suscitar a mesma possibilidade de interpretação, como várias das vinte
citações acima descritas.

21 PFEIFFER, Charles F. (ed.). Comentário Bíblico Moody. São Paulo: IBR, 1991, p. 237
22 AIRHART, Arnold E. Comentário Bíblico Beacon. Kansas City: Casa Nazarena de
Publicações, 1985, p. 525
23 DAVIDSON, F. O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1963, p. 1304
24 The interpreter’s bible. New York: Abingdon Press, 1955, vol. 11, p. 314 e 315
25 CLARKE, Adam. The New Testament of our Lord and Saviour Jesus Christ. New

York: Abingdon-Cokesbury Press, [s.d.], p. 553


454 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Wesley, ainda faz o seu próprio comparativo entre a perfeição


cristã e a santificação progressiva dizendo que:

Desde o momento em que somos justificados, pode haver uma


santificação gradual, um crescimento na graça, um avanço diário no
conhecimento e no amor de Deus. Se o pecado cessar antes da morte,
deve haver um último momento em que ele exista e um primeiro
momento em que ele não exista. "Mas devemos insistir na pregação
sobre ambos"? Devemos certamente insistir na mudança gradual, e
devemos fazê-lo constante e sinceramente. Não há pessoas com as quais
devamos insistir também na mudança instantânea? Se há essa abençoada
mudança antes da morte, não devemos encorajar a todos os crentes a
que a esperem? Certamente porque a experiência constante mostra que
quanto mais vigiam contra o pecado, procuram mais cuidadosamente
crescer na graça, mais zelosos se tornam pelas boas obras e mais pontuais
na obediência a todas as ordenanças de Deus. No entanto, observam-se
efeitos exatamente opostos a esses, sempre que essa esperança
desaparece. São "salvos pela esperança", por esta esperança de mudança
total com uma salvação que se desenvolve gradualmente. Destruindo-se
esta esperança, a salvação tornar-se-á estacionária, ou melhor, diminuirá
diariamente. Portanto todo aquele que quiser desenvolver nos crentes a
mudança gradual deverá insistir fortemente na mudança instantânea.26

Sobretudo, a honesta afirmação que o impediu de reivindicar


perfeição pessoalmente e o levou a escrever, em 1765: “Tenho dito ao
mundo todo que não sou perfeito... Não atingi o caráter que estou
retratando”27. Isso demonstra que John Wesley crê na perfeição cristã ou
na inteira santificação ainda em vida, porém, além de não tê-la
experimentado até 1765, ele defende que pregá-la é essencial para que se
viva a santificação progressiva.

37.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao avaliar minuciosamente a teologia Wesleyana e as diversas


vertentes que tratam do tema deste estudo, constata-se ser um assunto
realmente polêmico e passível de inúmeras interpretações. Interessante se
faz mencionar que, se por um lado verifica-se um equilíbrio entre as
opiniões negativas e positivas dos diversos teólogos pesquisados, por

26 Obras: "Minutos de diversas conversações" (VIII, 329).


27 TELFORD, J. The letters of John Wesley. Londres: Epworth Press, 1931, p. 131
Perfeição cristã e santificação... 455

outro lado nota-se uma clara posição de John Wesley a favor da perfeição
cristã sem, no entanto, negar a santificação progressiva. Sendo assim, é
sobremodo importante relembrar da questão a que esse trabalho se propôs
a responder: A perfeição cristã é totalmente oposta à santificação progressiva ou há
alguma possibilidade de complementação entre elas na teologia Wesleyana? A reposta
a esta questão é positiva no sentido de que elas são complementares. Ou
seja, foi possível verificar, através do estudo realizado, que existe
possibilidade de complementação entre as duas teorias na teologia
Wesleyana.
A perfeição cristã pode ser observada como possibilidade nas
escrituras, embora a experiência cristã demonstre que ela não seja
alcançável. Ou seja, a análise de algumas passagens bíblicas, como I
Tessalonicenses 5:23, permite uma interpretação positiva acerca da
perfeição cristã, porém, não se pode esquecer de contextualizar toda a
escritura com o intuito de alcançar uma conclusão equilibrada em relação
a qualquer tema teológico. Nessa linha de análise, entende-se que a
perfeição cristã serve como um marco perfeito que dá sentido a uma
caminhada numa existência imperfeita.
Como remate é importante frisar que o próprio Wesley negou ser
completamente santificado e explicou, categoricamente, que aquele que
quiser desenvolver nos crentes a mudança gradual deverá insistir
fortemente na mudança instantânea. Dessa forma, ele explica que a
perfeição e a santificação progressiva se complementam na medida em que
a primeira é o estímulo para viver a segunda de forma a buscar uma
crescente santificação. O próprio apóstolo Paulo diz em Filipenses 3:12-
14:

Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas
prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo
Jesus. Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado, mas uma
coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando
para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio
do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.

De uma forma geral, extrapolando os limites da religião, cada


indivíduo deveria se empenhar e insistir na melhoria contínua, pois há um
grande problema quando o ser humano se acostuma a viver uma de vida
com crescimento e desenvolvimento inertes, ficando sempre no mesmo
lugar e não contribuindo com a melhoria própria e do próximo.
456 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Biblicamente, Deus espera o máximo de cada pessoa, de tal forma que se


viva o que o apóstolo Paulo escreveu na sua carta aos Efésios:

E ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para
evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os
santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja
edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento
do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da
plenitude de Cristo”. Efésios 4:11-13.

REFERÊNCIAS

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XXXVIII

RAZÕES DA TOLERÂNCIA E DA IGUALDADE NO CAMPO


DA EDUCAÇÃO

Tiago Anderson Brutti1*

INTRODUÇÃO

As palavras tolerância e igualdade, tomadas como conceitos e


práticas, integram o repertório argumentativo de textos referenciais da
filosofia política, da educação e dos direitos humanos. Advoga-se neste
estudo que a educação deve favorecer a emancipação e a diminuição da
desigualdade. Ao lado disso, reconhece-se que os cidadãos dispõem,
potencialmente, da capacidade de se relacionar sob formas que não sejam
as do extermínio, da intolerância, da opressão às diferenças, da dominação
de uns sobre outros e da indiferença. No essencial, esta pesquisa articula,
por meio de um olhar hermenêutico, narrativas e argumentos sobre a
condição humana, a história dos costumes, as formas de governo, os
modos de organização social e os regimes políticos.
Reconhece-se nos argumentos de autores tais como Locke,
Voltaire, Condorcet, Arendt e Bobbio categorias relevantes para
interpretar e discutir os elementos constitutivos da ordem político-jurídica
predominante nas sociedades contemporâneas. Em outros termos, esta
pesquisa expõe elementos de teor conceitual e histórico que estão nas
origens de questões centrais ao debate político e educacional de nossos
dias, notadamente em relação aos temas tolerância, igualdade, república,
política, democracia e educação, a respeito dos quais se discorre, no intuito
de justificar a relevância do estudo, a partir do próximo parágrafo.

* 1Doutor em Educação nas Ciências pela Unijuí. Pós-doutorando em Filosofia na


Unioeste. Atua no PPG em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Unicruz.
Contato: tiagobrutti@hotmail.com.
460 Ressonâncias filosóficas - Artigos

38.1 CULTURA DE TOLERÂNCIA E IGUALDADE

Bobbio (2004) assevera que a tolerância, em seu significado


histórico predominante, está relacionada ao problema da convivência de
crenças diversas, primeiro religiosas, depois, também, políticas. Contudo,
o conceito de tolerância, atualmente, é generalizado para o problema da
convivência das minorias étnicas, linguísticas e para os assim chamados
“diferentes”, como, por exemplo, os homossexuais, os loucos ou os
deficientes. Para o autor, o núcleo da ideia da tolerância é o
reconhecimento do igual direito a conviver, que é reconhecido a doutrinas
opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considera
depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos do direito ao erro
de boa-fé.
A tolerância, quando a tomamos em seu significado histórico,
refere-se ao problema da coexistência de crenças, tanto na religião como
na política. Locke (1978) apresenta na “Carta acerca da tolerância” a
perspectiva de uma cultura positivamente tolerante entre os cristãos. A
“verdadeira igreja cristã” se distingue por essa cultura de tolerância. O
filósofo recorda, no entanto, que a busca por Cristo tem revelado, no
plano histórico, uma luta dos indivíduos para alcançar o poder e o domínio
social. O papel da religião, a despeito disso, consiste em regular a vida dos
homens segundo a virtude e a piedade. A caridade e a bondade constituem
peças básicas da religião. Locke questiona os indivíduos que perseguem,
destroem, atormentam ou até mesmo matam outros homens em nome da
religião. Não é por caridade ou zelo pelas almas humanas que procedem
dessa maneira.
O evangelho não deve ser imposto nem a si mesmo nem aos
outros, advoga Locke (1978). É importante, para o autor, estabelecer uma
fronteira entre o governo civil e a religião, a igreja e a comunidade. De um
lado está o interesse pela salvação da alma e do outro a vontade pela
segurança da comunidade. Uma comunidade pode ser definida como um
agrupamento para a preservação e melhoria dos bens civis. Estão
presentes, nesse contexto, a vida, a liberdade, a saúde física e mental, a
libertação da dor e, também, as posses de bens externos. Esses bens civis
ficam a cargo do governo e magistrados, os quais devem manter leis
uniformes capazes de preservar a posse justa das coisas que pertencem a
esta vida, cabendo a esses dispositivos punir os que infrinjam direitos de
outros homens. Os poderes dos magistrados são limitados apenas aos
bens civis, não cabendo a eles os cuidados com a alma.
Razões da tolerância... 461

Por essa perspectiva, observa-se que, mesmo que quisesse,


ninguém poderia jamais crer por imposição do outro. Para Locke (1978),
o que leva em busca da salvação por meio da religião é a fé, seja qual for a
religião. O cuidado com a alma jamais poderá pertencer ao magistrado civil
ou a qualquer outro homem, isso porque eles têm poderes apenas
coercitivos, enquanto que a religião consiste apenas na persuasão interior
do espírito, não podendo obrigar por nenhuma força externa. Por mais
que aprisionem e castiguem seus corpos ou confisquem seus bens, sua
mente continuará livre, assim como seus julgamentos internos.
A tolerância vale de forma igualitária para as diferentes religiões,
pondera Locke (1978). Nenhuma delas tem qualquer jurisdição sobre a
outra, nem mesmo quando o magistrado civil pertencer a uma
determinada igreja. O poder civil de forma alguma poderá ser confundido
com preceitos religiosos. Esse poder deve ser fortalecido para suportar o
contágio da idolatria e da superstição, já que nenhuma segurança, paz ou
amizade poderá ser estabelecida ou preservada se a opinião for privilegiada
ou, ainda, fundamentada pela religião e propagada pela força das armas.
Locke (1978) considera, desse modo, que não restam prejudicados
os que somente se preocupam com sua própria vida e em cultuar a Deus
como acreditam ser mais aceitável, e praticam a religião que julgam capaz
de lhes proporcionar a salvação eterna, pois Deus não salvará os homens
contra a vontade deles. Cabe a cada um deles investigar a si mesmo por
meio da reflexão, estudo, julgamento e meditação. Pensando dessa
maneira, o que quer que seja legal na comunidade não pode ser proibido
pelo magistrado na igreja. E o que quer que seja permitido aos súditos para
uso ordinário não pode nem deve ser proibido em reuniões religiosas. As
coisas que, em si mesmas, são prejudiciais à comunidade e proibidas na
vida ordinária por leis decretadas para o bem geral não podem ser
permitidas para o uso sagrado na igreja nem são passíveis de impunidade.
Também não cabe ao magistrado punir com leis o que acredita ser um
pecado contra Deus.
A sociedade política foi instituída unicamente para assegurar a cada
indivíduo a posse das coisas desta vida, assevera Locke (1978). O cuidado
da alma ou dos assuntos espirituais não pertence e nem se subordina ao
Estado. Já a proteção à vida e às coisas que a ela se referem são função do
Estado. A religião, nesse sentido, não poderá de forma alguma ser base
para que alguém seja destituído de seus pertences. O autor usa argumentos
teológicos e seculares para apresentar aos indivíduos diferentes
perspectivas culturais e religiosas com a finalidade de salvaguardar as
462 Ressonâncias filosóficas - Artigos

liberdades individuais e o direito à igualdade independente do credo


religioso que se confesse.
Nas instâncias da vida civil, perora Locke (1978), não devem ser
toleradas quaisquer doutrinas incompatíveis com a sociedade humana e
contrárias aos bons costumes, como se fossem necessárias para a
preservação da sociedade civil. Tais doutrinas podem oportunizar ataques
às leis da comunidade e, também, à liberdade e propriedade dos cidadãos.
A segurança da comunidade será maior se todos forem tratados de forma
igualitária pelas leis, sem nenhuma distinção entre as religiões. Desse
modo, ninguém deve ser submetido ao ódio ou suspeitas devido a falas de
outras pessoas, mas unicamente pelos seus próprios malefícios, e devem
ser punidos, independente de suas religiões ou crenças.
Na Europa continental, a liberdade religiosa como prática
tolerante é o tema delimitado por Voltaire (2008) no “Tratado sobre a
tolerância”. O autor narra nesse livro o suicídio de um dos jovens filhos
de Jean Calas. A religião se faz presente na história, porquanto o jovem
suicida havia se convertido à religião católica, enquanto que seus pais
permaneceram protestantes. O motivo da condenação de Calas foi a
intolerância religiosa. A religião rapidamente converteu-se em motivo de
"camuflagem" para que a população local de Toulouse culpasse e
condenasse o pai, acusado de assassinar o próprio filho. Calas foi
condenado à pena de morte em execução sob tortura. A pena extrapolou
a pessoa do suposto assassino, estendendo-se, dentre outros, ao irmão e à
mãe, que foi banida de ter contato com seu outro filho, seus bens, sua
religião, tendo ficado apenas com a roupa do corpo.
Voltaire (2008) considera que, de todas as religiões, a cristã é a que
deve inspirar mais tolerância. No entanto, os cristãos tem sido os mais
intolerantes no seio da humanidade. Para o autor, constitui um sacrilégio
que se permita retirar a liberdade dos indivíduos por motivos religiosos, e
que por intermédio da força se imponha o que não foi conquistado de
forma racional. Em diversas partes do “Tratado sobre a tolerância”,
Voltaire cita as várias formas de tolerância narradas no percurso da
história, inclusive a dos japoneses, que foram os mais tolerantes, tanto que
doze religiões haviam se estabelecido em seu território. Por essa
perspectiva, a tolerância deve ser compreendida de tal maneira que as
relações humanas sejam baseadas na convivência pacífica entre os
indivíduos, mesmo que haja diferentes interesses, costumes, concepções e
aparências. Tal atitude poderia evitar tragédias como a da família Calas.
Razões da tolerância... 463

No decurso do século XX, Bobbio (2004) assinala que o conceito


de tolerância se estende atualmente, por exemplo, ao problema da
coexistência étnica e linguística, bem como aos homossexuais e aos
indivíduos com mobilidade reduzida. O problema da tolerância em relação
às diferentes crenças e opiniões implica um discurso sobre a verdade.
Releva distinguir duas formas de intolerância. A primeira decorre
da crença de que um grupo expressa a verdade. A segunda deriva do
preconceito, entendido como uma opinião ou um conjunto de opiniões
aceitas passivamente por tradição, costume ou autoridade cujos ditames
são recebidos sem discussão. A convicção de possuir a verdade pode ser
falsa e assumir a forma de preconceito. Bobbio (2004) destaca que a
questão fundamental colocada pelos defensores da tolerância religiosa e
política é: como podem ser compatíveis duas verdades opostas? Para o
autor, a questão a ser posta por um defensor da tolerância é outra: como
você pode provar que a tolerância em relação a uma minoria ou às formas
irregulares ou apenas "diferentes" deriva de preconceitos inveterados,
puramente emocionais, para julgar homens e eventos?
As boas razões da tolerância, destaca Bobbio (2004), não devem
fazer esquecer que a intolerância também pode ter as suas boas razões.
Para cada um de nós isso acontece todos os dias, explodindo em
exclamações como “é intolerável que”, e “como podemos tolerar que”.
Nesse ponto, deve-se esclarecer que o mesmo termo "tolerância" tem dois
significados, respectivamente negativas e positivas. Em um sentido
positivo, a tolerância se opõe à intolerância; no negativo, e de volta para o
sentido tolerância negativa se opõe à intolerância positivo. Intolerância em
um sentido positivo é sinônimo de severidade, firmeza, todas as qualidades
que estão entre as virtudes; tolerância em sentido negativo em vez disso é
indulgência sinônimo de culpa, de condescendência para o mal, o erro, a
falta de princípios, ou bem da paz ou para a cegueira em face dos valores.
É óbvio que quando louvamos a tolerância, reconhecendo nela um
princípio fundamental da vida livre e pacífica, queremos falar de
intolerância de uma forma positiva.
A tolerância e o princípio da igualdade são essenciais para se
estabelecer vínculos razoáveis entre moral e política. O sentido da
igualdade social não se fecha numa abstração. Ele diz respeito ao
reconhecimento de que o mundo social é tensionado continuamente pela
força de cidadãos que, ao sobreviver em condições que não consideram
reciprocamente dignas, almejam conquistar outros meios e modos de vida
mais ajustados aos seus desejos ou às suas necessidades, sejam elas fictícias
464 Ressonâncias filosóficas - Artigos

ou não. Necessidades que não dizem respeito somente aos aspectos


econômicos da vida de cada um.
A igualdade social diz respeito, por essa perspectiva, ao
reconhecimento de que a liberdade de opinião e de iniciativa amplia a
efetividade de direitos daqueles cidadãos que, por sua condição ou por
livre escolha, fazem da igualdade um critério e um propósito de avaliação
do mundo social. O gozo da igualdade impede que a extrema miséria de
uma parte do povo seja definida como socialmente aceitável ou justa. Mas
a igualdade é criação dos homens, porque na natureza tudo parece distinto.
Ela não decorre, simplesmente, de nossos códigos genéticos, senão que
representa um construto das faculdades que dispomos de produzir
sentimentos e de raciocinar.
A miséria deve ser apenas um acidente para algumas famílias e não
a condição habitual de uma classe numerosa. Condorcet (2013) considera
que, ao se eliminarem as desigualdades escandalosas de riquezas, também
se elimina um dos principais fatores da corrupção moral de um povo: o
uso de meios ilegítimos para promover os próprios interesses. Não cabe à
lei educar o povo. Cabe a ela, advoga o filósofo, determinar as normas
comuns que devem proteger os indivíduos. Não são os legisladores que
devem formar a moral de um povo, mas a instrução pública. Não se forma
a moral de um povo sem formar a sua razão. A formação da moral dos
indivíduos não ocorre sem passar pela questão da justiça social, não só na
perspectiva formal do direito, mas, também, em relação às desigualdades
de fato e às injustiças econômicas.
Coutel questiona o sentido da palavra igualdade na obra de
Condorcet: “Como conciliar a afirmação: todos os homens são iguais,
sobre o plano político e dos direitos do homem, com a ideia de que os
espíritos e talentos não são semelhantes? Como fazer para que essa
diversidade não seja interpretada de tal modo que hierarquize as pessoas?”
(2006, p. 02). Diante dessas questões, argumenta que a igualdade de
instrução previne tanto o retorno da desigualdade de acesso aos saberes
como a tentação do “igualitarismo” que, a partir da igualdade moral e
política dos homens, despreza os talentos e as luzes: “a instrução pública
condorcetiana não cede a um entusiasmo simplificador nem a um
obscurantismo igualitarista, pois coloca os saberes à disposição de todos
sem sacrificar a excelência e a diversidade dos espíritos e dos talentos” (p.
11).
A igualdade é um dos princípios elementares da república
moderna. De origem romana, a forma de governo republicana indica o
Razões da tolerância... 465

sentido de coisa pública, de esfera de interesse do povo. A república,


entendida como forma de governo constituída historicamente, caracteriza-
se, grosso modo, pela abertura do poder de governo ao público e pelo
autogoverno do Estado. O governo, por essa perspectiva, é orientado
pelas leis, mais do que simplesmente por homens, os quais podem estar
interessados somente no bem próprio, mesmo que em detrimento do bem
coletivo. A república, em sua versão moderna, é marcada pela máxima
segundo a qual tanto quem governa quanto quem é governado deve
participar da elaboração e do cumprimento das leis.

38.2 POLÍTICA, REPÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITOS


HUMANOS

A política corresponde à antiga prática grega das escolhas, das


experiências de convivência e do exercício da cidadania na esfera da
“polis”. Arendt (2011) acentua que seu sentido original é a liberdade e que
isso se deve ao fato da pluralidade dos homens. A política só é possível
em circunstâncias nas quais não predominem as necessidades materiais e
a força física. Uma vez que interdependentes em sua existência, os seres
humanos encontram vantagens na condição política de convivência. Mais
que isso, reconhece-se a importância de haver um provimento da vida
relativo a todos, sem o qual o convívio poderia ser inviabilizado. O mundo
se renova a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos
recém-chegados, está sempre se comprometendo com um novo
imprevisível. O ser humano não é essencialmente político e a política não
corresponde a uma atividade que brote de cada intimidade, senão que
surge no entre-os-homens, estabelecendo-se como relação.
A palavra democracia, por sua vez, foi produzida como termo de
indistinção para os gregos. Afirma-se, com ela, o poder de uma assembleia
de homens iguais, um regime político ou um modo de exercício do poder
público. Para Ranciére, entender o que ela significa “é entender a batalha
que se trava nessa palavra: não simplesmente o tom de raiva ou desprezo
que pode afetá-la, mas [...] os deslocamentos e as inversões de sentido que
ela autoriza ou que podemos autorizar a seu respeito” (2014, p. 117).
Trata-se de um perpétuo por em jogo que contraria a perpetuação da
privatização da vida pública. A democracia política confere poder a quem
se der ao trabalho de exercê-la, pressupondo condições que viabilizem o
livre intercâmbio de ideias, não devendo manter ponto de observação
466 Ressonâncias filosóficas - Artigos

especial, nem posições privilegiadas. Ela deve encorajar debates vigorosos


e requer argumentos coerentes e honestidade.
No que diz respeito aos direitos humanos, a busca de um
fundamento absoluto é infundada. Bobbio (2004) sugere que essa busca,
em alguns casos, pode constituir-se num pretexto para se defender
posições conservadoras. Os direitos do homem podem sofrer variações
em sua definição, como a história dos últimos séculos demonstrou
suficientemente. O que parece fundamental numa época histórica e numa
determinada civilização pode não ser fundamental em outras épocas e em
outras culturas.
As declarações recentes dos direitos do homem compreendem, de
acordo com Bobbio (2004), além dos direitos individuais tradicionais, que
consistem em liberdades, também os chamados direitos sociais, que
consistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos
aqui os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam a
abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem ser
realizados se forem impostos aos outros (incluídos aqui os órgãos
públicos) obrigações positivas.
Em relação aos modos de fundar os valores no âmbito social,
Bobbio (2004) identifica três possibilidades: deduzi-los de um dado
objetivo constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerar os
valores como verdades evidentes em si mesmas; e, finalmente, a
descoberta de que, num dado período histórico, eles são geralmente
aceitos (prova do consenso). A busca dos fundamentos possíveis não terá
nenhuma importância histórica se não for acompanhada do estudo das
condições, dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode
ser realizado. Em outros termos, o problema filosófico dos direitos do
homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos,
sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização: o problema
dos fins não pode ser dissociado do problema dos meios. Também os
direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das
lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das
transformações das condições de vida que essas lutas produzem.
Para Bobbio (2004), não se pode conceber o problema dos direitos
do homem abstraindo-o dos dois grandes problemas de nosso tempo, a
guerra e a miséria, ou o absurdo contraste entre o excesso de potência que
criou as condições para uma guerra exterminadora e o excesso de
impotência que condena grandes massas humanas à fome.
Razões da tolerância... 467

A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa,


segundo Bobbio (2004), a manifestação da única prova por meio da qual
um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e,
portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua
validade. O problema fundamental em relação aos direitos do homem,
hoje, não seria tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de
um problema não filosófico, mas político. O autor considera que somente
depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de
que a humanidade partilha alguns valores comuns. Podemos, finalmente,
crer na universalidade dos valores, no único sentido em que essa crença é
historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não
algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo
dos homens.

38.3 A EDUCAÇÃO REPUBLICANA EM CONDORCET

As Escolas e as Universidades recebem indivíduos que podem não


expandir os preconceitos da geração que os precede. Com a queda do
poder absoluto na França, estavam em discussão na Convenção Nacional
as seguintes questões: O que a Escola deve favorecer? O que a Escola deve
evitar? Essas perguntas ainda são inovadoras em nossa época de mudanças
radicais. As crianças são os futuros cidadãos e não reproduzem de maneira
idêntica o mundo de seus pais. Ao final do século XVIII Condorcet
assinalou que a primeira educação das crianças corresponderia a dos pais,
mas que todo o esforço do poder público deveria se orientar para a
instrução pública. Pela instrução, os alunos poderiam se libertar dos
prejuízos de uma época, como, por exemplo, os do meio familiar. A
república deveria, por essa via, instruir para que cada cidadão se
convertesse em seu próprio educador. É por isto que o fim da instrução
seria a liberdade de cada homem.
Compete ao Estado, advoga Condorcet (2013), disponibilizar os
recursos necessários para que a instituição escolar instrua os cidadãos para
a liberdade e para que propicie as condições de ilustração do povo. A
instrução não doutrina, não obriga, senão que encoraja os homens a
exercerem sua liberdade. Uma instrução pública defensável, para o
filósofo, deveria ser regulada pela legislação republicana. A instrução e a
legislação nos preveniriam contra os recorrentes despotismos políticos e
nos protegeriam das falsas opiniões em que poderia submergir nossa
imaginação com o entusiasmo pelo charlatanismo. Por uma escolha feliz
468 Ressonâncias filosóficas - Artigos

tanto dos conhecimentos quanto dos métodos de ensinar, seria possível


instruir a massa inteira de um povo para que se defendesse dos
preconceitos “exclusivamente com as forças da razão, para escapar dos
prestígios do charlatanismo, que estenderia armadilhas à sua fortuna, à sua
saúde, à liberdade de suas opiniões e de sua consciência, sob o pretexto de
enriquecê-lo, de curá-lo ou de salvá-lo” (2013, p. 198).
Em relação ao despotismo monárquico na Europa, Condorcet
(1945) sentencia que não se poderia declarar o gênero humano
propriedade de algumas famílias, uma vez que os direitos naturais
pertenciam a todos os povos e constituíam a garantia de seus direitos. Os
princípios invocados pelo filósofo são os seguintes: inalienabilidade da
soberania do povo, ainda que por tempo limitado; imprescritibilidade
absoluta dos direitos dos homens; e a igualdade em toda sua extensão. Tais
seriam os princípios que sua nação defendia em 1793, o que a distinguia
naquele momento de outras nações, as quais em parte já reconheciam
esses direitos e discutiam Constituições capazes de garanti-los.
Quanto à denúncia de que a República Francesa teria destruído a
religião, Condorcet afirma que, pelo contrário, o que ocorreu foi favorável
à religião na medida em que reformou seus abusos temporais, que
transformavam seus ministros em objeto de escândalos e desprezo, e
porque a religião deveria servir à consolação dos povos e não constituir
um instrumento de tirania entre as mãos de hipócritas. Na radicalidade do
momento, o filósofo escreve que só subsistiriam duas configurações de
nações: a de homens livres e a de escravos voluntários. Somente a guerra
levada por homens contra tiranos seria justa, no sentido de que seu êxito
pudesse, por assim dizer, reparar as desgraças acarreadas por esse flagelo:
“Se alguns crimes mancharam certos momentos da nossa revolução, pelo
menos que sirva nosso exemplo para que os eviteis” (1945a, p. 261).
Condorcet (1945) atenta que a palavra despotismo deriva do grego
e significa amo (mestre). Existe despotismo sempre que os homens tem
um senhor, um amo, quer dizer, quando estão submetidos à vontade
arbitrária de outros homens. O despotismo da minoria sobre o maior
número é muito comum e teria duas causas: a facilidade que possui um
pequeno número de indivíduos de reunir-se e empregar o montante de
suas riquezas na compra de outras forças. Segundo o autor, se
examinarmos a história dos países onde se há imaginado que existia o
despotismo de um só homem, se verá sempre uma classe de homens ou
vários corpos que compartem o poder com aquele que se acreditava único.
Razões da tolerância... 469

Existem duas classes de despotismo: de “fato” e “de direito”, ou,


como prefere Condorcet (1945), despotismo indireto e direto. O
despotismo direto tem lugar em todos os países em que os representantes
dos cidadãos não exercem um direito de veto o suficientemente extenso,
carecendo por outra parte de meios para fazer reformar as leis que
encontrem contrárias à razão e à justiça. O despotismo indireto, por sua
vez, existe desde que, em virtude da vontade da lei, a representação não é
igual nem real, ou desde que se está sujeito a uma autoridade não
estabelecida pela lei.
Se as Revoluções Americana e Francesa instituíram novas
configurações republicanas, democráticas e laicas, organizadas à luz do
interesse geral e da justiça social, seu principal desafio foi conciliar
simultaneamente a igualdade dos cidadãos e a máxima liberdade
individual. Convicções religiosas ou ideológicas individuais não poderiam
ser impostas a toda a população, ainda que socialmente majoritárias e com
livre expressão no espaço público. Condorcet defende que as confissões
religiosas não constituam motivos de discórdia entre os homens, ou
motivo de privilégio e discriminação dos cidadãos, ou fundamento
dogmático para qualquer norma de conduta de suposta aplicação
universal.
A esfera pública republicana é um dos últimos lugares a pôr em
evidência o que une os seres humanos ao invés de dividi-los; ela não
prescinde das diferenças, senão que se preocupa, isso sim, em afirmar essas
diferenças de modo compatível com a liberdade reconhecida de deliberar
por si mesmo sem estar sujeito a qualquer fidelidade de grupo. Cada aluno
é convidado a desconfiar de suas próprias opiniões para aceitar a
possibilidade de outro ponto de vista crítico e independente de todo
interesse particular.

38.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação constituiu um esforço hermenêutico de revisitar


a literatura dos autores já citados, evidenciando a atualidade de seus
enunciados no contexto das sociedades republicanas e democráticas do
século XXI, em particular das instituições educacionais. Tais
considerações político-educacionais continuam a lançar luzes sobre nossas
tarefas teóricas e práticas de lidar com os temas da política e da educação
no contexto das sociedades contemporâneas.
470 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Considera-se importante retomar e discutir tais reflexões porque,


entre outras razões, elas reforçam os valores da tolerância e da igualdade
como elementos centrais da sociabilidade contemporânea, e porque na
atualidade se encurtam perigosamente os espaços da atividade cidadã, tal
como foram concebidos pelos imaginários das tradições republicana e
democrática.

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RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Porto Alegre: LP&M, 2008.


XXXIX

REFLEXÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS PRAGMÁTICOS


DA LINGUAGEM EM AUSTIN E GRICE

Luiz Claudio Inocêncio*

A reflexão à qual me proponho para esta investigação traz dois


pensadores que se preocuparam com os aspectos pragmáticos da
linguagem, o filosofo John Langshaw Austin e o filósofo Herbert Paul
Grice, e isso se deve ao fato de a investigação de ambos estarem se
reportando aos aspectos dos enunciados dos atos de fala. Por isso, a
importância de promover esse dialogo reflexivo em torno desse horizonte,
ressaltando os aspectos importantes endereçados a linguagem.
Esses dois pensadores contemporâneos se ocuparam desse estudo
acerca dos atos de fala e sua interpretação quando se profere um
enunciado. Aqui apresento uma reflexão de alguns aspectos em uma troca
lingüística entre falantes. Trata-se de uma reflexão e não um confronto. O
que vai ser importante perceber aqui, é que ambos estavam preocupados
com a linguagem e com o discurso entre falantes e sua interpretação e
como disso resulta a sua significação.
Ambos vivenciaram momentos próximos, e promover esse
diálogo será de grande valia para a nossa proposta de investigação.
Entendo que os elementos que estarão em pauta irão acrescentar para o
nosso universo reflexivo e isso faz parte da filosofia para conceber um
diálogo construtivo.
E para direcionar o presente trabalho ressalto que o enunciado é
um dos aspectos que irão nortear o nosso estudo. O enunciado proferido
resulta em desdobramentos diversos quando proferimos uma frase o que
culmina consequentemente em aspectos pragmáticos.
Para ambos pensadores, o processo ganha novos modelos, a
preocupação com os elementos do discurso passa a ser diferenciado. Além
de incorporar o par atributivo verdade e falsidade elementos estes da
semântica tradicional, eles fazem emergirem novos elementos para o
conhecimento linguístico. Esses novos aspectos serão elementos para
novas discussões e alcances ainda maiores. Se na tradição a análise da
* UNIOESTE; E-mail: luizclaudioinocencio@hotmail.com
472 Ressonâncias filosóficas - Artigos

sentença estava restrita a um campo semântico delimitado, na nova


perspectiva novos aspectos serão incorporados.
Na proposta destes dois pensadores, entra em questão o contexto,
o sujeito, as intenções, as convenções, o principio cooperativo, as
implicações, a prática e a ação. Assim, evidencia-se que a linguagem
comporta uma amplitude mais ampla do que na tradição passada. Ambos
procuram mostrar que tais aspectos causam uma virada na forma de
conceber o processo linguístico, dado que há uma inversão dos aspectos
centrais da linguagem e, no centro, a pragmática se torna o elemento que
permite conhecer e produzir o conhecimento em uma relação com o
mundo prático.
A preocupação de Austin e Grice a partir dos comentários e
apontamentos mencionados foi de rever alguns aspectos que foram
negligenciados pela tradição antiga e inicio do pensamento
contemporâneo, direcionando o seu foco de investigação para o campo
das relações ao se emitir um proferimento entre falantes. Talvez esse fato
de trazer o pragmático para um campo mais elevado permita avaliar por
um novo prisma os elementos apresentados acima. Isso não quer dizer
que os problemas da linguagem estão resolvidos. Eles estão sendo
colocados em evidência de uma forma prática, em que os atores principais
interagem entre si.
Em um primeiro momento elenco alguns aspectos fundamentais
para Austin. Para ele há um conjunto de elementos que compõem a
realidade – contexto, intenções, verdade, falsidade, felicidade e infelicidade
– em consonância com determinadas convenções oriundas de acordos
entre elementos de um mesmo campo, como o próprio Austin descreve
em uma passagem:

Pode se dizer que por demasiado tempo os filósofos negligenciaram este


estudo, tratando todos os problemas como problemas de “uso
locucionário”, e também que a “falácia descritiva” mencionada na
conferência I geralmente surge do erro de confundir um problema do
primeiro tipo com um problema do segundo. É bem verdade que
estamos agora superando tal confusão; há alguns anos começamos a
perceber cada vez com mais clareza que a ocasião de um proferimento
tem enorme importância, e que as palavras utilizadas têm de ser até certo
ponto “explicadas” pelo “contexto” em que devem estar ou em que
foram realmente faladas numa troca lingüística (AUSTIN, 1990, p. 89).
Reflexão sobre alguns aspectos pragmáticos... 473

Na passagem acima, percebe-se a importância de mais elementos


serem inseridos no processo investigativo. No processo de investigação
austiniana, a pergunta se direciona para o uso da linguagem, e a ação que
ela desempenha em um contexto entre falantes. Os questionamentos são
outros; não se pergunta pela essência da coisa em si, tampouco pelos
conceitos. O que se requer é um exame da linguagem procurando entender
como se é capaz de conhecer a partir dos enunciados, como as palavras
têm significações e como a linguagem interfere no mundo. A preocupação
com a essência do primeiro momento, no qual reinava o pensamento
ontológico de Platão e Aristóteles, e a analise do segundo momento
pautado em dois pensadores contemporâneos Frege e Wittgenstein perde
espaço para um processo de sistematização, que prioriza o sentido do
enunciado. E a reflexão filosófica se centra na análise da linguagem
interativa.
Em Austin ressalto alguns aspectos que serão importantes para a
nossa reflexão em torno da linguagem: em primeiro lugar, a importância
dos aspectos das intenções do locutor e sua força, que não foram
priorizados pela tradição passada. Para Austin, as intenções desempenham
papel primordial em um enunciado proferido, pois para ser entendido terá
que estar em consonância com uma dada convenção. Percebe-se em
Austin uma preocupação com quem fala e com as circunstâncias da
informação. A interação com o locutor que profere não estava em pauta
no pensamento tradicional.
O segundo aspecto que ressalto diz respeito às convenções
contextuais. Para Austin, as convenções contextuais têm uma grande
importância. As circunstâncias nas quais é proferido o discurso convergem
para um contexto, onde indivíduos compactuam de uma linguagem
comum. O contexto é o que serve de referência para se extrair o
significado. Há uma dependência do contexto para que a fala tenha sentido
ou significação em um discurso proferido. Nessa perspectiva, as
convenções contextuais são de natureza social, em acordo com regras e
normativas de um dado grupo de indivíduos que compartilham de uma
língua.
O terceiro aspecto que apresento é a tese principal de Austin de
que a linguagem deve ser analisada a partir da ação. Para ele, a ação é
importante em um enunciado, pois a partir dela é que percebemos que
tipos de âmbitos constituem um discurso. São âmbitos distintos, que
adquirem uma significação de acordo com a ação desempenhada. Para
Austin, a ação é o diferencial em um enunciado, pois é a partir dela que a
474 Ressonâncias filosóficas - Artigos

investigação deve ter seu início. É a partir de Austin com sua forma de
analise que a investigação sobre o exame dos diversos usos da linguagem
ganha novos contornos. Com essa abertura de mentalidade priorizando
aspectos que envolvem o discurso, a ação faz com que a linguagem seja
endereçada para uma nova ótica, realizando uma inversão de prioridades.
A preocupação se volta para a linguagem e sua aplicação em um campo
prático onde os atores participam e interagem. A ação como aspecto
fundamental em um discurso quando proferido um ato de fala, pois
permite entende-lo.
Após tratar alguns aspectos importantes em Austin passo para o
segundo momento da nossa reflexão, fazendo uma exposição de alguns
aspectos das implicaturas convencionais e conversacionais e o principio de
cooperação de Grice em a Lógica da conversação mostrando a pertinência
dessa temática acerca da linguagem o que irá contribuir para o nosso
propósito. Nesse sentido, a sua abordagem referente ao tema proposto
para essa investigação terá uma grande relevância para o nosso foco de
estudo. Ele propõe a sua forma de analise da linguagem investigando as
implicaturas1 e o processo cooperativo acerca desse universo pragmático.
Ao apontar para as implicaturas, Grice apresenta dois tipos: as
implicaturas convencionais e as implicaturas conversacionais. Grice faz
uma reflexão acerca dos significados comunicados em uma fala, mas não
ditos. A partir desse primeiro enfoque, ele estabelece uma distinção entre
esses aspectos que não são ditos, mas estão indicados pelo material
linguístico, que estão em acordo com uma convencionalidade. Esse é um
tipo de implicatura apresentada de maneira convencional, em que os
elementos estão condicionados a certa estrutura linguística. “No sentido
em que estou usando a palavra dizer, o que alguém disse está intimamente
relacionado ao significado convencional das palavras (da sentença) que
está usando” (GRICE, 1982, p. 84).
Para exemplificar essa proposta de implicatura, Grice faz menção
à frase “Ele é um inglês” como uma implicatura convencional. Isso porque
ela remete à bravura: ele é, portanto, um bravo. Percebe-se que há uma
relação do que é dito com o material linguístico, que pressupõe essa
conexão, de maneira a seguir certa convenção. Aqui é apresentada a
primeira forma de implicatura, que culminará com a elaboração da

1As Implicaturas conversacionais em Grice trará uma importante contribuição para a


nossa proposta de investigação, pois, ela permite uma aproximação com a preocupação
de Austin quanto aos aspectos pragmático.
Reflexão sobre alguns aspectos pragmáticos... 475

segunda implicatura. Essa primeira só abrange uma parte do dizer em uma


frase, em consonância com uma convenção.
Por outro lado, temos outra estrutura de implicaturas que não são
ditos nem indicados pelo material linguístico, mas são comunicados em
uma dada situação de conversação entre falantes. Nesse segundo caso, não
há nada que possibilite a identificação de materialidade linguística,
dificultando saber o que está implícito ou implicitado. A esse tipo de
implicativa Grice chamaria de implicatura conversacional.
É nesse sentido que um novo tipo de abordagem é realizado, novas
observações são adotadas por Grice. Vejamos o exemplo a seguir:

[...] suponha que A e B estejam conversando sobre um amigo C que está,


atualmente trabalhando num banco. A pergunta a B como C está se
dando em seu emprego, e B retruca: Oh, muito bem, eu acho, ele gosta
de seus colegas e ainda não foi preso (GRICE, 1982, p. 84).

Esse exemplo nos deixa claro que o que fora citado não está
constituído de uma frase explicativa do que é dito, mas de um conjunto de
elementos presentes em uma situação conversacional. Nota-se que o que
é comunicado não está propriamente no que foi dito, nem está presente
uma indicação dada para os elementos linguísticos, o que torna necessário
que se conheça os elementos ligados a essa realidade situacional para
entender o seu significado. Grice afirma estar interessado em estudar esse
tipo de implicatura, salientando, ainda, que embora reconheça a
importância de saber que o significado dos enunciados, anunciados acima,
depende do contexto, preocupa-se com quem faz a enunciação, a intenção
do enunciado e como o interlocutor recebe essa enunciação, não se
limitando em dizer que, ao se conhecer o contexto, se conhece o
significado.
O que se percebe é que as implicaturas estão conectadas com
traços gerais do discurso, o que permite pressupor que existem leis ou
máximas que regulam o discurso em uma língua numa conversação.
É essa aproximação conectiva entre locutor e interlocutor que
possibilita a aplicação das leis ou máximas, e a partir disso se constrói o
significado para além do que foi dito. Aqui se percebe que tanto locutor
quanto interlocutor tem papéis importantes. "Aquele que diz" tem papel
importante na conversação, por causa da sua intencionalidade, mas o
interlocutor também é fundamental nesse processo, pois é ele que realiza
o cálculo para desvendar o que está subentendido no discurso do sujeito
476 Ressonâncias filosóficas - Artigos

que profere. Sem dúvidas, há nessa perfeição, uma relação de locutor e


interlocutor em um cenário de conversação.
A teoria de Grice consiste em uma análise do significado
impregnado em um discurso, o que se dá com base em um mecanismo de
interpretação por parte do ouvinte. O enunciado proferido contempla
regras e procedimentos que permitem a identificação ou o
reconhecimento das intenções do falante ao dizer algo. Assim, se permite,
a partir dessa construção de maneira ordenada, que se reconstruam os
elementos implícitos na realização dos atos de fala, sobretudo dos atos de
fala indiretos. As máximas conversacionais permitem uma análise das
expectativas do falante e do ouvinte em sua interação, mostrando como o
entendimento mútuo pode resultar desse tipo de troca linguística.
Os âmbitos que estavam presentes na tradição não foram capazes
de sanar as nossas inquietações. É importante ressaltar que, quando se
profere um ato de fala, vários aspectos devem ser considerados, não
somente a sua estrutura como frase e os aspectos da semântica. Por meio
dessas distinções proposta por Austin e Grice, é possível perceber a
importante inversão de prioridades de âmbitos. Para ambos pensadores, a
importância não está no estatuto ontológico da tradição antiga, tampouco
na proposição possuidora das condições de verdade como proposto pela
tradição lógica da filosofia da linguagem. O estudo se volta em Austin e
Grice para os constituintes básicos da linguagem, que são em última
instância os atos de fala propriamente ditos. É a partir de tais atos que a
compreensão de tais âmbitos se torna possível e seu sucesso está
condicionado a uma série de eventos presentes em um discurso. Entender
esses aspectos que se encontram nos atos de fala é de suma importância
para compreender o âmbito pragmático da linguagem, pelo fato de ele
estar ligado ao enunciado em um contexto, interagindo no processo
comunicativo.
O mérito de Austin e Grice reside justamente em pensar os
aspectos pragmáticos da linguagem como elemento central, por entender
que a análise daquilo que é proferido não deve ser limitada apenas aos
âmbitos da sintaxe e a semântica como na tradição, e que análise deve ser
endereçada para os personagens reais que interagem com o meio aos quais
se encontra inseridos. O aspecto pragmático tem esse papel de interação
entre locutor e interlocutor; é a partir dessa participação ou interação de
uma linguagem pública que ele se destaca.
A partir dos aspectos apresentados, a linguagem como elemento
do discurso se torna priorizada; o estudo se volta para o campo das nossas
Reflexão sobre alguns aspectos pragmáticos... 477

ações no mundo; o sujeito passa a controlar as ações e a linguagem se


torna o elemento central no século XX, pois o que deve ser priorizado é
o aspecto que ora se apresenta como âmbito pragmático. Para Austin e
Grice, o objetivo principal era propor um método de análise que
consistisse no exame do uso da linguagem, não uso no sentido da palavra,
mas como essa relação entre falantes se desempenha em um ambiente
socializado.
O que Austin e Grice perceberam é que dentro de um enunciado
ou frase discursiva não se encontram somente os âmbitos sintático,
semântico. Para além desses, existem aspectos que tais instâncias não
conseguiram explicar, como a ação e as implicações desempenhadas ao se
fazer um proferimento e as consequências derivadas daí. São instâncias
que extrapolam um horizonte limitado, elevando o grau de dificuldade da
investigação do filósofo que não se contenta com o que está à sua frente
e é explicado de um ponto de vista lógico.
Para Austin, a linguagem não tem uma função de descrever os
fatos, mas de realizar atos, os quais se evidenciam em uma prática em
acordo com o contexto no qual o falante se encontra inserido e os fins a
atingir. São personagens reais que interagem entre si em um ambiente
contextualizado. Para Grice, a linguagem comunica bem mais do que está
proposto pelo enunciado proferido nela em um ambiente, pois ao proferir
ou se comunicar vários elementos estarão implícitos na fala. Além disso,
nem sempre é possível o discurso proferido abarcar todos os elementos
presentes em um dado contexto, e o significado só será possível a partir
das implicaturas conversacionais e um processo cooperativo.
Nesse sentido os aspectos apresentados possibilitam pensar a
linguagem por um novo viés no campo prático das ações entre os falantes.
Desse modo fora relevante para nossa discussão o fato de ambos
pensadores estarem apontando caminhos para resolução do problema em
torno da linguagem. Aqui não se trata de dizer que essa ou aquela proposta
foi melhor, mas de destacar uma preocupação com uma nova forma de
pensar a linguagem. Nessa perspectiva, o diálogo com pensadores que
vivenciaram aquele momento de transição da virada linguística ou
pragmática nos possibilitou uma produtiva reflexão para podermos fazer
ciência a partir da linguagem.
478 Ressonâncias filosóficas - Artigos

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XXXX

SOCIALISMO E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DO


JOVEM LEFORT

Martha Gabrielly Coletto Costa*

RESUMO

Nosso objetivo é reconstituir em linhas gerais a gestação do conceito de


democracia em Lefort, remontando ao período de sua filiação a uma
matriz marxista de pensamento. Nos seus primeiros ensaios acerca do
regime soviético, parece-nos instigante, embora pouco notado pelo
comentário, a existência de traços que configuram uma primeira
concepção da democracia em Lefort – uma democracia socialista ou um
socialismo democrático –, que se delineia a partir da crítica endereçada ao
sistema social e ideológico figurado pela URSS. Numa época em que o
pensador francês ainda se situava num horizonte revolucionário
compartilhado pelo grupo Socialisme ou Barbarie, estava em jogo a
desconstrução da definição “objetiva” e “científica” do socialismo, presa
à forma jurídica da propriedade, mas indiferente à forma das relações
sociais. Para Lefort, não há socialismo sem a consciência do proletariado
sobre seu lugar e suas tarefas na sociedade moderna; sem a positivação do
poder proletário e a gestão da produção pelos trabalhadores; sem a
negação da divisão social entre dirigentes e executores; sem a superação
dos órgãos burocráticos que administram a exclusão dos homens dos
centros de ação e decisão; em suma, não há socialismo se não for
democrático, se não se apoiar na força institucional dos conselhos. Por um
tempo, esta concepção pareceu a Lefort ser confirmada pela história, por
meio dos movimentos antitotalitários que eclodiram no Leste europeu nos
anos 1950, que se orientaram, sobretudo a Revolução húngara, em busca
da fórmula de uma democracia ao mesmo tempo antiburocrática e
anticapitalista.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Socialismo; Revolução; Marxismo.

* Universidade de São Paulo; e-mail: martha.costa@usp.br


482 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Nos últimos anos, a obra de Claude Lefort vem saindo de uma


posição relativamente marginal no campo da filosofia política
contemporânea e conquistando reconhecimento por sua abordagem
inovadora da democracia moderna (FAUSTO, 2012; POIRIER, 2015).
Sem dúvida, isso se deve à recepção que tiveram as teses lefortianas sobre
a democracia desenvolvidas em seus ensaios de maturidade, dos anos 1970
e 80, que compõem os livros A invenção democrática e Pensando o político.
Nestes, encontra-se a concepção lefortiana “clássica”, em sua formulação
mais conhecida pelo grande público: a democracia é apresentada como
uma formação social moderna, situada por oposição à sociedade do
Antigo Regime e às sociedades totalitárias, surgida historicamente a partir
de um acontecimento decisivo: a destruição do corpo do rei pela
Revolução Francesa e a consequente separação das esferas do Poder, do
Saber e do Direito. A ênfase na desincorporação do poder não é fortuita.
Para Lefort, o corpo duplo do rei (natural e místico, mortal e imortal,
profano e sagrado) sinalizava a origem teológica do poder, concentrava e
controlava a produção do conhecimento e da lei, ao mesmo tempo em
que remetia a ordem social a uma instância transcendente, de onde eram
extraídos os princípios que fixavam a organização da sociedade, bem
como o entendimento das leis, normas, valores, ideias, crenças. Se o
advento da democracia se dá com a destruição do corpo do rei é porque
este acontecimento tem por efeito esvaziar o lugar do poder, isto é, retirar
o poder do corpo do governante, e, ao mesmo tempo, retirar da ordem
social o fundamento último que determinava previamente a sua
organização e impedia o livre questionamento dos fundamentos do poder,
do direito e da verdade (LEFORT, 1991). Assim, nesta perspectiva
lefortiana “clássica”, é porque o lugar do poder se torna simbolicamente
vazio e exposto aos efeitos da divisão social, é porque a ordem social deixa
de ser percebida como fixa e imutável, devido a uma determinação
transcendente, é porque o saber e o direito conquistam certa autonomia
perante o poder, em suma, é porque a legitimidade se mostra sob disputa
que a sociedade democrática pode surgir e se lançar a uma aventura histórica
indeterminada, deixando-se trabalhar pelos conflitos e abrindo-se à luta
contínua pela efetivação e criação de direitos, de modo a tornar possível a
experiência da liberdade, da igualdade e da justiça social.
É inegável o valor teórico e político dessa concepção “clássica” da
democracia, que Lefort se esforçou por construir num contexto histórico
profundamente impactado pelas experiências totalitárias e pelo descrédito
do marxismo: vale enfatizar que esta concepção foi construída a partir de
Socialismo e democracia... 483

uma revalorização inédita dos direitos do homem numa perspectiva de


esquerda, quer dizer, uma revalorização empreendida não simplesmente
para louvar os direitos individuais e marcar um limite à interferência do
Estado, mas para estabelecer uma nova relação entre democracia e direito
e colocar no cerne da vida democrática a produtividade dos conflitos e a
legitimidade das lutas pela criação de direitos – lutas movidas num espaço
público por grupos sociais singulares que buscam fazer valer a efetividade
de garantias e condições de caráter universal contra a opressão oriunda
dos interesses particulares (LEFORT, 2011). No entanto, por mais
fecunda que seja, tal concepção se expõe a críticas justificadas: 1) uma vez
que a democracia, na visão de Lefort, se institui a partir do lugar vazio do
poder, sua abordagem é vista como desprovida de “poder popular”
efetivo, pois o “povo”, não exercendo diretamente o poder (o qual deve
permanecer vazio, inapropriável), ficaria relegado a uma posição de
exterioridade perante os centros de decisão política e limitado a exercer
uma mera função de contestação, sem grande efetividade; 2) a democracia
lefortiana clássica, por negligenciar a importância do controle e gestão da
economia por alguma forma de “poder popular”, teria se acomodado
demasiadamente bem aos moldes da economia capitalista e, portanto, se
mostraria teoricamente desarmada perante as investidas da nova
configuração econômica neoliberal, que desde os anos 1970 vem
instituindo aquilo que os sociólogos franceses Dardot e Laval (DARDOT;
LAVAL, 2016) chamaram “um sistema pós-democrático”, “um sistema
fora da democracia”, isto é, um processo de autonomização do
econômico, que impõe suas normas a todos os outros campos da vida
social ao mesmo tempo em que escapa aos mecanismos de controle,
participação e intervenção contidos na ideia de soberania popular.
É possível enfrentar essas críticas sem sair do terreno do
pensamento lefortiano, recuperando um momento geralmente esquecido
de sua reflexão de juventude. Gostaríamos de mostrar que, muito antes de
se tornar um dos grandes “teóricos da democracia moderna”,
privilegiando os efeitos do lugar vazio do poder, a ação dos movimentos
sociais e a luta por direitos, Lefort nos forneceu traços preciosos de uma
concepção socialista da democracia. É verdade que essa concepção está
dispersa nos ensaios redigidos entre 1948 e 1963 que formam a coletânea
Éléments d’une critique de la bureaucratie (LEFORT, 1979), e ela apenas ganha
forma quando depreendida da crítica que Lefort dirigiu à URSS desde o
final dos anos 1940, contestando a definição e a imagem do socialismo
que a URSS encarnava. Vale lembrar que essa crítica pioneira do regime
484 Ressonâncias filosóficas - Artigos

soviético, elaborada numa perspectiva de esquerda, foi uma diretriz que


Lefort compartilhou com o grupo Socialisme ou Barbarie, grupo fundado em
1949 por Lefort e Castoriadis e do qual Lefort participou até 1958. Grupo
de orientação marxista e anti-trotskista, Socialisme ou Barbarie almejou ser
um órgão de crítica teórica e, sobretudo, de orientação revolucionária,
disputando, no campo intelectual francês do pós-guerra, a definição
quanto à natureza do socialismo1:

As análises de Socialisme ou Barbarie, a experiência que alguns tiravam,


como eu mesmo, de sua antiga ação num partido conduziam
naturalmente a ver, sob uma nova luz, a luta de classes e o socialismo. (…)
A autonomia se tornou, a nosso ver, o critério da luta e da organização
revolucionárias. [...] Julgávamos que o objetivo da luta não poderia ser
outro que a gestão da produção pelos trabalhadores, pois qualquer outra
solução apenas consagraria o poder de uma burocracia nova;
buscávamos, por conseguinte, determinar reivindicações que
testemunhavam imediatamente uma consciência antiburocrática;
conferíamos um lugar central à análise das relações de produção e de sua
evolução [...]; enfim, éramos levados a definir o socialismo como uma
democracia dos conselhos (LEFORT, 1979, p. 101-102, grifos nossos)

No período de quase uma década de vinculação ao grupo, Lefort


se concentrou na crítica política do stalinismo, da burocracia e da função
do Partido Comunista, bem como na desconstrução do imaginário
soviético, que se destinava a ocultar a contradição do regime, qual seja,
apresentar-se como Estado do proletário e, ao mesmo tempo, excluir o
proletariado de todo protagonismo e de todo controle sobre o processo
de produção, reduzindo-o a tarefas de pura execução e excluindo-o de

1 O grupo Socialisme ou Barbarie: organe de critique et d’orientation révolutionnaire (Socialismo ou


Barbárie: órgão de crítica e orientação revolucionária) apresenta, no primeiro número de sua
revista homônima, uma autoimagem de maneira intrinsecamente vinculada a um
propósito revolucionário: “Apresentando-nos hoje, por meio dessa revista, diante da
vanguarda dos operários manuais e intelectuais, nós sabemos sermos os únicos a responder de
uma maneira sistemática aos problemas fundamentais do movimento revolucionário
contemporâneo: pensamos ser os únicos a retomar e a continuar a análise marxista da
economia moderna, a pôr sobre uma base científica o problema do desenvolvimento
histórico do movimento operário e de sua significação, a definir o stalinismo e, em geral,
a burocracia “operária”, a caracterizar a Terceira Guerra Mundial, enfim, a pôr,
novamente, levando em conta os elementos originais criados pela nossa época, a
perspectiva revolucionária”. (SOCIALISME OU BARBARIE, 1949, p. 2). Para uma
história sociológica do grupo, remetemos o leitor ao trabalho de Philippe Gottraux
(GOTTRAUX, 1997).
Socialismo e democracia... 485

todo poder real sobre a sociedade dita soviética. A imagem construída em


torno da URSS eclipsava a apreensão desse regime enquanto novo sistema
de exploração baseado na formação de uma nova classe dominante – a
burocracia –, classe que fundou uma nova forma de exploração (uma
apropriação coletiva da mais-valia) graças à sua integração ao aparelho
dirigente do Estado. A eficácia da imagem soviética consistia, portanto,
em ofuscar a compreensão da nova dinâmica da luta de classes entre o
proletariado e a burocracia, e a relação desta classe com a formação do
stalinismo, compreendido enquanto poder totalitário, isto é,

uma forma de poder que [Stalin] encarnou e que podemos resumir


sumariamente pela concentração de todas as funções, políticas,
econômicas, judiciárias numa só autoridade, a subordinação forçada de
todas as atividades ao modelo imposto pela direção, o controle dos
indivíduos e dos grupos e a eliminação física de todas as oposições (e de
todas as formas de oposição) (LEFORT, 1979, p. 169)

Para enfrentar o fato do stalinismo e deslegitimar sua pretensão de


se identificar com o socialismo, era preciso dar uma resposta satisfatória à
seguinte pergunta: como seria possível acusar o regime de exploração da
força de trabalho se, por um lado, o proletariado não era mais uma força
de trabalho assalariada regulada por um contrato de tipo burguês e, por
outro, a forma privada da propriedade havia sido minada? Em outras
palavras, era preciso superar as justificativas tradicionais que visavam
legitimar o regime soviético com base numa definição puramente formal
e autoritária do socialismo. Ora, isso exigia uma dupla recusa: de um lado,
afastar a explicação trotskista ortodoxa, fundada na ideia de desfiguração:
segundo Trotski, apesar da formação de uma burocracia (casta
privilegiada, mas provisória), apesar dos traços autoritários do regime, a
URSS era um regime socialista: desfigurado pelo fato da ditadura do partido
e pelas desigualdades sociais grosseiras, mas socialista, devido à prevalência
das bases sociais proletárias do regime e à abolição da propriedade privada;
de outro lado, era preciso desconstruir a explicação típica stalinista que
definia o socialismo objetivamente pelas leis econômicas progressivas,
pela ênfase no desenvolvimento das forças produtivas, o que reduzia o
socialismo a um conjunto de medidas econômicas como a planificação, a
coletivização e a estatização.
Contra esse essas definições, Lefort defende que o socialismo não
pode ser definido pela forma jurídica da propriedade, sob o risco de
negligenciar o essencial, a saber, a forma das relações sociais, a natureza e a
486 Ressonâncias filosóficas - Artigos

distribuição dos produtos do trabalho e a posição da classe trabalhadora


no interior da sociedade. Nesse sentido, o pensador sustenta que “não há
construção do socialismo independente da consciência do proletariado, de
sua participação efetiva na direção e no controle da economia” (LEFORT,
1979, p. 142). De maneira ainda mais explícita, declara que

o socialismo não poderia se deixar definir “em si”, pela nacionalização


dos meios de produção, a coletivização da agricultura e a planificação,
ou seja, de maneira independente do poder proletário. (…) O socialismo
não pode designar uma infraestrutura, uma vez que ele significa a
tomada pelo proletariado dos meios de produção ou a gestão coletiva da
produção. (...) Que este [modo de gestão] escape ao proletariado, que ele
seja reconduzido ao papel de simples executor que lhe é atribuído na
indústria capitalista, não há mais traço de socialismo. (LEFORT, 1979,
p. 173-174)

Essa afirmação é, sem dúvida, central num contexto em que o


trabalho operário estava despojado de sua substância criadora, de iniciativa
própria de organização, em suma, de qualquer traço de autonomia,
encontrando-se submetido à teia de controle burocrático e policial. Mas a
ênfase sobre a necessidade de controle da produção não quer dizer que,
na visão de Lefort, o proletário seja compreendido apenas em função de
sua posição econômica e que o socialismo deva se definir pela supremacia
do econômico em detrimento de outras esferas da vida social. Para Lefort,
o socialismo se mostra dependente de uma ação primordialmente política,
pois, a seu ver, o verdadeiro desafio da construção de uma sociedade
socialista não é a negação da propriedade privada, a destruição do inimigo
de classe ou a tomada do Estado, mas a capacidade de positivar e organizar
o poder proletário, sem o que sua emancipação não se efetiva. É inegável que
um socialismo autêntico implique a retomada do controle da produção
pela classe trabalhadora, ou melhor, a refundação da ordem econômica
sob bases inteiramente novas, mas o que convém ressaltar é que tal ação
já é fruto de uma decisão política primeira, ou melhor, de um projeto
político geral centrado no poder do proletariado:

No fim das contas, o proletariado apenas acessa à consciência das tarefas


da revolução quando realiza essas tarefas propriamente, no momento em
que a luta de classes abraça a sociedade inteira e onde a formação e a
multiplicação dos conselhos de trabalhadores dão os sinais sensíveis de uma
nova sociedade possível (LEFORT, 1979, p. 110).
Socialismo e democracia... 487

O conselho, órgão socialista por excelência, é uma instituição


singular, distinta das que se fundam numa lógica burocrática; é sobre ela
que a classe proletária pode edificar o seu poder e exercê-lo
permanentemente. Este órgão se define, essencialmente, por oposição à
lógica burocrática operante em partidos e sindicatos: o conselho é uma
recusa de que a formulação do conteúdo do socialismo, o monopólio da
verdade e o poder de decisão sejam prerrogativas exclusivas do militante
profissional, pois o que define o conselho, na visão lefortiana, é uma
experiência horizontal de organização, decisão, elaboração e troca de
saberes, buscando impedir que uma fração dos seus membros se arrogue
o direito de dirigir à distância o conjunto dos demais. Portanto, é na
existência e no funcionamento específico dos conselhos que se encontra
a chave de deciframento do sentido democrático que Lefort busca atrelar
ao socialismo. Este socialismo democrático, ou, se quisermos, esta democracia
socialista vislumbra-se como a formação social em que o poder da classe
trabalhadora se efetivaria por meio desse órgão socialista por excelência.
A onda contestatória que se ergueu no Leste Europeu no ano de
1956, na Polônia e sobretudo na Hungria, pareceu a Lefort vir confirmar
“uma experiência revolucionária das massas” (LEFORT, 1979, p. 232), em
grande parte movida pelo desejo de instituir um socialismo democrático.
Lembremos que a Hungria dos anos 1950, dominada pela Rússia
desde o fim da 2ª Guerra Mundial, carregava uma dupla determinação
histórica ditatorial: esse país havia passado, sem transição, de uma
dominação de tipo feudal a uma dominação burocrática oriunda do
imperialismo russo. Para Lefort, a experiência revolucionária húngara, que
durou 12 dias entre outubro e novembro de 1956, pôde ser chamada uma
revolução porque o movimento de sublevação procedeu de baixo da
sociedade, quebrou o quadro institucional em vigor e criou “formas de
organização [e] de socialização incompatíveis com a antiga ordem”.
(LEFORT, 2007, p. 306)
A Revolução húngara foi um acontecimento singular por três
razões. Em primeiro lugar, esse acontecimento desempenhou o papel de
um revelador histórico, expondo a contradição do regime totalitário, a saber,
a contradição de um poder totalitário que ocupava, ao mesmo tempo, uma
posição absolutamente externa ao social e absolutamente interna a ele,
razão pela qual ele se fazia onipresente e invisível, exercendo-se
necessariamente pela coerção e pela ideologia. Em segundo lugar, a
revolução se singularizou pela sua radicalidade, pois não se limitou a fazer
pressão sobre os governantes ou a encaminhar demandas de reforma ao
488 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Estado, mas alvejou a destruição do fundamento do regime totalitário,


afrontou a potência e a legitimidade do Estado-Partido e o reduziu aos
limites de proteção de seu aparelho policial, opondo-lhe a força e a
autoridade de novas instituições (tal como a federação de conselhos). Em
terceiro lugar, a revolução deu mostras de uma rara inventividade,
perseguindo a fórmula de uma democracia socialista, ao mesmo tempo
antiburocrática e anticapitalista.

Anticapitalista ela o foi implicitamente, pela razão de que não exigiu, em


parte alguma, um retorno à propriedade privada dos meios de produção.
A formação dos Conselhos operários estava ligada ao projeto de uma
gestão coletiva das empresas pelos trabalhadores, inconcebível no
quadro do capitalismo. E antiburocrática ela não o foi apenas porque se
atacou ao poder dos funcionários do Estado-Partido. Todas as
informações que pudemos recolher sobre a vida das múltiplas
associações, comitês, conselhos, mostram que houve, em toda parte, a
preocupação de criar instituições que permanecessem sob o controle dos
seus membros, de evitar a formação de aparelhos que monopolizam a
decisão e a informação. Prática democrática que é o efeito da
espontaneidade democrática. (LEFORT, 2007, p. 307)

É verdade que a Revolução húngara contou com um apoio


massivo da população, conseguiu a proeza de “totalizar” a resistência
contra um poder totalitário, mas ela foi revolucionária porque a classe
trabalhadora entrou em cena e o movimento se traduziu, rapidamente, na
criação de novas instituições que se inspiraram no modelo dos conselhos de
fábrica e que se espalharam pelos principais bairros de Budapeste (Csepel,
Rada, Utca, etc.) e nas regiões industrializadas da província (Miskolc,
Gÿor, Szolnok, etc.). Os conselhos inventaram e pautaram um novo modo
de organizar a sociedade, destituindo de legitimidade a autoridade do
aparelho dirigente e de suas instituições tradicionais e anunciando a
possibilidade de uma sociedade nova.
Em sua interpretação dos acontecimentos revolucionárias, exposta
no artigo “A insurreição húngara”, de 1956, Lefort ressalta o caráter
inovador das reivindicações e dos programas formulados no âmbito da
organização econômica. Para o filósofo, não há dúvida de que o caráter
revolucionário do movimento resida aí, pois o “que na realidade decide
sobre a luta das forças sociais são as relações que existem no seio da
produção, no coração das empresas” (LEFORT, 2011, p. 172). A
maturidade revolucionária do movimento se encontra, justamente, nas
reivindicações próprias à organização da produção. Se o conselho é a
Socialismo e democracia... 489

instituição central dessa experiência proletária é porque ele se enraíza no


processo de produção concreto, permitindo um modo de representação
da classe proletária e um modo de elaboração das diretrizes e decisões
sobre o trabalho que, ao mesmo tempo, afrontam o aparelho burocrático
dirigente e buscam devolver aos trabalhadores a autonomia na condução
de suas atividades. Não se deve concluir disso que Lefort atribua ao
conselho uma exclusiva função econômica ou lhe restrinja à defesa de
interesses particulares e imediatos de uma classe, à semelhança de um
simples órgão corporativo. Para o filósofo, os conselhos são uma
instituição na qual o econômico e o político são indissociáveis. Em suas
palavras, os conselhos

não são organismos essencialmente ligados à vida de uma empresa em


particular e dotados de atribuições exclusivamente “econômicas”
(versões melhoradas de nossos comitês de fábrica), mas os elementos
componentes de uma representação global dos trabalhadores. Sua
originalidade vem de que, pelo seu modo de eleição e revogabilidade, traduzem
melhor que qualquer outro organismo a vontade coletiva dos homens
associados num meio concreto de produção e de que, pela sua federação,
são capazes de tratar do conjunto dos problemas econômicos e sociais. Portanto,
ora se pode temer que, limitado às tarefas de organização da empresa, o
conselho tenha tendência a exprimir os interesses materiais imediatos
dos operários, ora se pode esperar que, colocado perante
responsabilidades políticas e econômicas de conjunto, um organismo
central saído dos conselhos saiba promover uma planificação que leve
em conta as necessidades da sociedade inteira, tanto de seu futuro quanto
de seu presente (LEFORT, 2011, p. 237).

Os conselhos húngaros puseram em marcha uma prática nova, de


pretensões econômicas e políticas, capaz de impor uma reformulação
teórica às maneiras tradicionais de conceber a organização e a
representação proletárias e, mais profundamente, relançar a ideia de que
uma sociedade socialista é aquela em que o poder seria exercido e
controlado por órgãos da classe trabalhadora. Os conselhos húngaros
materializam, portanto, a recusa da imposição da norma externa
burocrática, o desejo de autonomia para organizar o trabalho segundo a
perspectiva e o saber daqueles que o realizam, o desejo de participação dos
operários na economia, mas também na vida política, na medida em que
as diretrizes econômicas revelam um alcance que ultrapassa os limites da
esfera produtiva ao pôr em jogo ponderações e decisões concernentes à
vida em comum.
490 Ressonâncias filosóficas - Artigos

A interpretação de Lefort se desdobra indicando que o


protagonismo radical conferido ao órgão do poder proletário – o conselho
– se chocaria com a natureza de instituições burguesas clássicas,
especialmente o Parlamento. À época, Lefort manifestava uma nítida
expectativa de que, com a evolução do movimento operário, os conselhos
viessem a superar a fonte de representação e autoridade parlamentares,
expondo a impossibilidade de reacomodação de instituições políticas
capitalistas no seio de uma formação democrático-socialista.

O proletariado não quer mais eleições em que o partido comunista


impõe uma lista de candidatos e em que o resultado é representado de
antemão. Ele quer escolher seus representantes. Amanhã, sem dúvida,
descobrirá que não pode dominar por intermédio de um Parlamento que
submerge sua voz na de todas as outras camadas sociais. Amanhã, sem
dúvida, deverá, se quer triunfar, opor seus conselhos a esse Parlamento.
(LEFORT, 2011, p. 187).

Se a democracia socialista que Lefort tem em seu horizonte teórico


repousa na radicalidade da posição dos conselhos, é importante
compreender no que consiste a diferença dessa instituição em comparação
ao Parlamento. Novamente, recorremos aos termos da explicação que o
filósofo elabora:

Podemos sublinhar que a representação parlamentar é de uma essência


diferente da dos conselhos, que apenas dá ao eleitor a possibilidade de
escolher de tempos em tempos (de quatro em quatro anos) seu
representante, que não lhe oferece nenhum recurso durante a duração do
mandato, que dá a palavra a um indivíduo artificialmente dissociado de
seu meio (LEFORT, 2011, p. 238).

Se Lefort critica as esperanças depositadas num parlamento – mais


fortes na experiência polonesa do que na húngara, note-se de passagem –
é por considerar que essa disposição significa a busca de um paliativo nas
instituições próprias aos regimes capitalistas. Poderíamos perguntar se o
sistema parlamentar, “viciado numa estrutura dilacerada pela luta de
classes, em que os privilegiados têm mil meios de fazer prevalecer seu
poderio, ganha[ria] novamente inteira eficácia ali onde toda a população
se encontra integrada à vida produtiva e onde as condições do monopólio
da propriedade não mais existem” (Ibid., p. 238). Contudo, tal argumento
só pode ser aceito se continuarmos raciocinando a partir de uma noção
estreita de “socialização”, limitada à forma da propriedade dos meios de
Socialismo e democracia... 491

produção. Se levarmos a sério a ideia de que a socialização tem que se


traduzir, primordialmente, numa forma de relação e de participação sociais, em
que estão implicadas a gestão proletária das empresas e a planificação
dirigida pelos representantes dos trabalhadores, então, a necessidade da
manutenção de um Parlamento, para a representação e defesa dos
interesses políticos do proletariado, cai por terra. A rigor, caso a
socialização não se traduza numa forma específica e concreta de gestão
proletária, ela volta a ser “uma socialização ‘privada’, a circunscrever uma
nova camada dirigente dispondo livremente dos recursos materiais e da
força de trabalho, livre para desenvolver e consolidar seus privilégios e pôr
os meios de expressão política e cultural a serviço de seus próprios fins”
(Ibid., p. 238).
Ora, o que buscamos enfatizar é que a concepção de uma
democracia socialista, esboçada por Lefort no fim dos anos 50, apoia-se e
ao mesmo tempo ultrapassa a experiência da Revolução húngara,
apresentando uma radicalidade que consiste no modo de pensar a
articulação da economia e da política. Reunindo os traços que despontam
da análise histórica e embasam a visão teórica lefortiana, fica nítido que a
organização econômica e a organização política surgem indissociáveis
numa sociedade democrática e socialista. Na perspectiva de Lefort à época, o
socialismo é um modo de gerir a produção de maneira coletiva por aqueles
que estão inseridos nos meios concretos de trabalho, sem o que não
haveria a positivação do poder proletário. Mas não podemos ficar a meio
caminho, pois Lefort sugere que uma democracia socialista é, ao mesmo
tempo, um modo de organização econômica e um modo de organização
política. Por um lado, não é possível haver socialismo enquanto uma
burocracia exercer controle sobre uma massa de trabalhadores no campo
produtivo; por outro, não é possível haver socialismo enquanto os
assuntos políticos forem entregues à exclusiva decisão de um Parlamento,
pois nesse caso se reporiam os efeitos do distanciamento e da alienação, e
a política continuaria existindo como esfera separada e especializada dos
sujeitos sociais. No nível dos princípios, a sociedade democrático-
socialista, vislumbrada por Lefort – e da qual a experiência húngara lhe
pareceu chegar mais perto –, é aquela em que, em todos os níveis da vida
social, há gestão operária da produção, mecanismos de participação efetiva, controle
dos representantes, modos de interferência e revogabilidade das instâncias de
representação, liberdade de expressão e de organização. E justamente porque os
conselhos concentram todas essas dimensões é que eles podem fornecer
o modelo institucional exemplar para que essa experiência se multiplique
492 Ressonâncias filosóficas - Artigos

em larga escala, formando “a armadura” do Estado proletário e


democrático2.
Por várias razões, a concepção lefortiana da democracia, em sua
versão clássica, tem traços muito diferentes dessa concepção de juventude.
Lefort, é verdade, não chega ao ponto de identificar democracia e
capitalismo e não deixa de assinalar a tensão trágica que marca a sua
relação histórica. No entanto, é inegável que Lefort recue perante a
indissociabilidade e a coerência entre o plano da economia e o plano
político, princípios que constituíam a singularidade de sua concepção de
juventude. O gradual distanciamento que Lefort tomou das diretrizes de
Marx (sobretudo devido ao estatuto do proletariado e da revolução)
significou também um afastamento das questões relativas à economia. Ao
que nos parece, o filósofo francês abriu e fechou uma via que poderia nos
levar a uma concepção da democracia mais radical e mais combativa em
vista dos desafios contemporâneos. Quando dissemos que essa primeira
elaboração da democracia em seus textos de juventude é geralmente
esquecida, é preciso agora acrescentar que o próprio filósofo contribuiu
para esse esquecimento. Sem dúvida, os tempos atuais exigem aprofundar
a reflexão política sobre a democracia, exigem resistir à ameaça da
imposição jurídica e invalidar o discurso moralizante, mas pensamos que
essas frentes não podem negligenciar o novo lugar da economia na
política, em especial, o impulso do neoliberalismo em constituir um
sistema próprio, indiferente à soberania popular. Se, embora recentes, as
ideias de revolução ou de gestão coletiva da produção parecem tão distantes e
pouco mobilizadoras, talvez pudéssemos reativar o desejo de
transformação dedicando-nos à seguinte tarefa: pensar politicamente a forma
contemporânea da economia e a necessidade de subordiná-la ao debate, à
participação e à intervenção popular, sem o que os princípios básicos da
democracia correm o risco de se tornar, realmente, letra morta.

2 No quadro de sua experiência na Polônia, em que o país vivia a indefinição


quanto aos rumos que Gomulka daria ao regime após a realização das eleições no começo
de 1957, Lefort reconstitui um diálogo que teve com um alto funcionário do Estado, em
que debatem sobre as relações entre o Estado e os conselhos e o peso que estes deveriam
ter na reconfiguração da sociedade após as lutas contestatórias. Rebatendo a posição do
funcionário, que buscava restringir as funções dos conselhos, Lefort pontua: “Se se quer
forjar um Estado democrático, se se procura um controle popular, não se deve considerar
que os conselhos de fábrica e órgãos análogos instituídos nos meios de trabalho devem
formar a armadura do poder? E se se quer atingir esse objetivo não devemos nos inquietar
com o fato de o governo, ao contrário, ter tendido, nos seus primeiros atos, a limitar
estritamente seu campo de potência?”. (LEFORT, 2011, p. 236, grifos nossos)
Socialismo e democracia... 493

REFERÊNCIAS

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. “O neoliberalismo, um sistema


fora da democracia”. Trad. COSTA, M. Revista Fevereiro, n.9, abril de
2016. Disponível em:
http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=18

FAUSTO, Ruy. “L’héritage de Castoriadis et Lefort, critiques de Marx”.


In GRANGE, J. & MUSSO, P. Les socialismes. Paris: Le Bord de L’eau,
2012, p. 245-258.

LEFORT, Claude. Éléments d’une critique de la bureaucratie. Paris: Gallimard,


1979.

_______. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e


liberdade. Trad. Eliana M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

_______. Le temps présent: écrits 1945-2005. Paris: Belin, 2007.

_______. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. Trad.


Isabel Loureiro, Maria Leonor F. R. Loureiro. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.

GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou Barbarie: un engagement politique et


intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne: Payot, 1997.

POIRIER, Nicolas. (org) et al. Cornelius Castoriadis et Claude Lefort:


expérience démocratique. Paris: Le Bord de L’eau, 2015.

VÁRIOS AUTORES. (Texto coletivo de apresentação do grupo).


Socialisme ou Barbarie, 1949, n. 1.
XXXXI

TEMPO E MEMÓRIA EM AGOSTINHO DE HIPONA:


o ser humano volta-se para o seu interior

Ademir Menin*

RESUMO

A obra de Agostinho assume proporções monumentais. De fato, o autor


é estudado sob diversos aspectos, incluindo numerosos temas de
fundamental importância para a filosofia. O que aqui nos interessa estudar
mais de perto são dois temas centrais contidos na sua obra Confissões, ou
seja, a memória e o tempo. Os referidos temas encontram-se
principalmente nos Livros X e XI da obra acima citada, a qual é a mais
conhecida do autor. Memória e tempo são argumentos estudados e
debatidos durante toda a História da Filosofia Moderna e Contemporânea,
pois são campos abertos à discussão, haja vista a sua complexidade.
Inclusive, a filosofia contemporânea vê na argumentação de Agostinho
bons motivos para os próprios interesses. A fenomenologia de Husserl e
Heidegger debruçou-se sobre as reflexões do Bispo de Hipona no intuito
de extrair desse pensador argumentos para a fundamentação das próprias
teses. A leitura agostiniana da memória e do tempo como vivências do
espírito, ou experiências internas do homem, levaram os principais
fenomenólogos a considerar o autor das Confissões como um dos primeiros
autores a fazerem uma análise fenomenológica da existência humana. Isso
se dá principalmente a causa da tese agostiniana de que o tempo não é um
ser que existe por si fora da experiência de cada pessoa, mas existe só
enquanto vivência interna da autoconsciência, a qual é corroborada pela
memória. Sem a memória não seria possível ter noção do tempo, isto é,
passado, presente e futuro não existem enquanto entidades apartadas da
vivência de um determinado ser. A preocupação de Agostinho em relação
a esses dois temas é essencialmente ontológica, pois o pensador procura
explicar o ser humano diante de Deus e do mundo. A desesperada busca

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail:


ademirmenin@gmail.com
496 Ressonâncias filosóficas - Artigos

interior do filósofo baseia-se no sempre antigo e sempre novo impulso


filosófico do autoconhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Agostinho de Hipona; tempo; memória;


fenomenologia; Heidegger.

INTRODUÇÃO

A obra de Agostinho de Hipona sobre a qual versa esse artigo é


aquela conhecida sob o título de Confissões. Nessa obra, a qual é a mais
conhecida dentre tantas as obras escritas pelo famoso bispo, tem-se um
interessante diálogo entre o autor e o seu interlocutor: Deus. Dentre tantos
méritos presentes nessa obra, é preciso assinalar que se trata de um gênero
literário inaugurado pelo próprio Agostinho, o qual procura fazer uma
retrospectiva da sua existência como ser humano em particular, mas ao
mesmo tempo resolvendo temas cruciais para a Humanidade inteira.
Através de uma simples divisão dessa obra, podemos ver nos primeiros
nove livros uma rememoração dos fatos particulares e pessoais com o uso
de um estilo literário propriamente confidencial; nos últimos livros da
obra, isto é, do X ao XIII, são apresentados temas de grande interesse
filosófico, principalmente relacionados à memória e ao tempo. O foco
desse estudo dirige-se exatamente sobre essa última parte da referida obra
agostiniana, e mais especificamente sobre os livros X e XI das Confissões.
Trilhando tal estrada, o presente estudo desenvolver-se-á em três
momentos, os quais têm o escopo de explanar os temas centrais em
debate, levando em consideração a própria disposição dos referidos temas
na obra de Agostinho. Portanto, em um primeiro momento tratar-se-á o
problema da memória, o qual está contido no Livro X das Confissões; o
segundo momento versará sobre o tempo, que Agostinho expõe no Livro
XI da mesma obra, com enfoque especial sobre o § 14, o qual é tido como
momento central da exposição do autor sobre o tema; e, finalmente, em
um terceiro momento, os temas referidos, ou seja, tempo e memória, serão
expostos e analisados enquanto experiências espirituais, entendendo-se
com isso aquelas vivências internas, psicológicas e particulares de cada ser
humano. Esse terceiro momento terá um enfoque claramente
fenomenológico, centrado nas reflexões heideggerianas sobre o sentido do
ser, tendo o tempo como argumento em destaque para tal questão.
Tempo e memória... 497

41.1 SOBRE A MEMÓRIA – LIVRO X DAS CONFISSÕES

Lendo o X Livro das Confissões de Agostinho, vem espontânea a


pergunta sobre o porquê de o autor ter enfrentado tal argumento como
essencial para a sua busca pela verdade. Ao mesmo tempo, a resposta se
deixa notar, pois a memória é algo que não se pode desconsiderar quando
se quer entender o sentido do ser. Não se pode pensar o ser sem a
memória, enquanto essa característica humana, juntamente com a
capacidade de raciocínio, é justamente o que nos distingue dos animais e
de todas as formas de ser presentes nesse mundo.
O estudo da memória é de fundamental importância na obra
agostiniana, pois vem completar temas já debatidos e que se tornam
essenciais à compreensão da ontologia do autor. Segundo Brechtendorf,

O tratado de Agostinho sobre a memória (memoria) é uma das partes mais


conhecidas das Confissões. Que objetivo persegue Agostinho com a
análise da memória, e porque ele a insere nas Confissões? De início, parece
estranho que Agostinho dê tanta atenção precisamente a essa faculdade
humana. Por outro lado, o intelecto e a vontade já foram amplamente
tematizados nos livros VII e VIII, de modo que um debate sobre a
memória completa a análise do espírito humano. No entanto, um mero
critério de completude seria superficial. A análise da memória, em
contrapartida, levanta uma pretensão fundamental, a saber, alicerçar os
primeiros nove livros como um todo (BRACHTENDORF, 2008, p.
206).

Portanto, na visão de Agostinho, tal argumentação se faz


necessária para poder explicar a situação do ser humano diante de Deus,
pois este é o objetivo do autor enquanto teólogo. No entanto, tal
argumentação teológica termina por adentrar-se em problemas filosóficos
de fundamental importância para o debate ontológico desde então e até
hoje. A situação psicológica de Agostinho enquanto “pesquisador” do ser
é a de um filósofo desesperado à procura da verdade. Em diversos
momentos o Bispo de Hipona faz recurso a Deus para que a sua Luz o
ilumine no sentido de fazer-lhe entender as coisas que normalmente não
são dadas à compreensão humana. Deixa-se entrever nessa visão de
mundo a visão cristão de Deus como ser onipotente, onipresente e
onisciente que não poderia faltar no autor, visto ser um teólogo
preocupado em estabelecer bases filosóficas seguras para a teologia cristã.
498 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Passando em revista o Livro X das Confissões, pode-se notar o


recurso a uma figura retórica de ímpar beleza em Agostinho. O § 8
apresenta a metáfora do palácio da memória, onde é possível encontrar
também interessante teorização sobre o conhecimento humano, enquanto
faz-se uma análise de como o ser humano chega a obter material para que
possa ser trabalhado pela racionalidade. Todo o material captado pelos
sentidos vai sendo depositado em um grande “palácio” composto de
muitos compartimentos, câmeras e antecâmaras, onde tudo fica
armazenado para ser novamente retomado quando for necessário. As
divisões existentes nesse palácio, através dessa interessante metáfora,
levam a entender melhor o funcionamento da memória humana, pois é
fácil intuir que em uma tal “construção” existem lugares recônditos onde
ficam armazenadas lembranças nunca mais retomadas pela consciência.
Por outro lado, nota-se de igual modo facilmente que existem ambientes
os quais a consciência revisita continuamente, senão obsessivamente. Se
trata das recordações que afloram com mais facilidade na mente humana,
provocando efeitos sejam eles bons ou maus.

Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de


inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda a espécie. Aí está
também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer
diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os
sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou e depôs, se
é que o esquecimento ainda não absorveu e sepultou (AGOSTINHO,
2017, p. 238-239).

Desse ponto de vista é possível notar o aspecto psicológico da


existência humana, seguindo as pegadas de Agostinho. O filósofo é um
dos primeiros a adentrar-se nesse aspecto da consciência humana,
encontrando uma vertente de reflexão filosófica de fundamental
importância que perdura desde àquela época até hoje.
Nesse palácio temos lembranças de vários tipos: aquelas captadas
do ambiente externo à consciência e deixadas tal e qual como a mente as
recebe, ou seja, as memórias sensíveis; aquelas que são produto das
memórias sensíveis trabalhadas pelo intelecto e depois guardadas em
algum ambiente adequado de tal palácio; e finalmente, as memórias
afetivas, as quais são transformações do material captado pelos sentidos,
o qual passa pelo crivo não do intelecto e da razão, mas dos sentimentos
internos.
Tempo e memória... 499

Continuando a leitura desse parágrafo agostiniano, nota-se que o


autor deixa transparecer um aspecto negativo em relação à organização da
memória humana, pois fala de uma certa dificuldade em relembrar
determinadas coisas quando a consciência precisa delas e de uma certa
desordem por parte de lembranças que se apresentam no momento em
que não são desejadas. Isso significa que o mecanismo que rege tal
atividade não sempre é eficiente como gostaríamos que fosse visto que,
seguidamente nos deixa “a ver navios” nos momentos que mais
precisamos dos materiais guardados em algum recôndito cômodo do
palácio:

Quando lá entro [no palácio da memória], mando comparecer diante de


mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente,
outras fazem-me esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim
dizer, de certos receptáculos ainda mais recônditos. Outros irrompem
aos turbilhões e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para
o meio como que a dizerem: “Não seremos nós?” Eu então, com a mão
do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que
quero e do seu esconderijo a imagem apareça à vista. Outras imagens
ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo
(AGOSTINHO, 2017, p. 239).

Mas o que se faz notar com grande interesse aqui é a tendência de


Agostinho a ser, de certa forma, “empirista”, enquanto dá uma certa
ênfase ao fato que tudo o que está na nossa memória entre por um dos
nossos cinco sentidos. Esse material todo poderá ser processado à medida
que temos necessidade dele.
Em conclusão, o que Agostinho expõe sobre a memória se
demonstra algo de grande importância para os estudos modernos e
contemporâneos sobre esse tema. Fazendo ligação com o próximo
capítulo, pode-se dizer que só é possível falar do tempo enquanto
estritamente entrelaçado com a memória, pois sem ela, perder-se-ia até
mesmo a consciência do próprio ser, vale dizer, a autoconsciência. A busca
pelo sentido do ser passa pela memória, a qual faz referência ao interior
do ser humano, onde estão armazenados todos os tesouros do próprio ser.
500 Ressonâncias filosóficas - Artigos

41.2 SOBRE O TEMPO – LIVRO XI DAS CONFISSÕES

No XI Livro das Confissões de Agostinho, perfila-se um importante


estudo sobre o tempo. O interesse do autor é sempre voltado à explicação
desse elemento do mundo e do homem, que é o tempo, em vistas de uma
explicação da vida humana ante a face de Deus. Não podemos esquecer o
pano de fundo da doutrina cristã que permeia toda a reflexão filosófica
agostiniana, sendo Agostinho um filósofo-teólogo preocupado em dar
bases racionais e, portanto, filosóficas, à fé cristã.
Temos uma novidade, no entanto, no tratamento dado ao tema do
tempo em Aurélio Agostinho. Aristóteles já tinha tocado o problema com
grande maestria diversos séculos antes na sua Física, no Livro IV. Outros
filósofos, como por exemplo Plotino nas suas Enéadas (Terceira Enéada),
também já tinham feito as suas elucubrações sobre tal “enigma” da vida
humana. Claramente Agostinho se reporta aos filósofos anteriores a ele
para poder desvendar tal problema, explicando-o no âmbito da
cristandade que vinha formando-se nos primeiros séculos que se sucedem
ao aparecimento de Cristo.
A novidade trazida por Agostinho, portanto, é a visão do tempo
como uma componente interna ao próprio ser, ou seja, a chave de leitura
do tempo para o nosso autor se encontra no interior do homem, nas suas
experiências internas, nas suas vivências particulares dentro daquele
âmbito que é o mais íntimo ao ser humano, no seu esconderijo secreto. O
Bispo de Hipona percebeu esse recôndito “lugar” no ser humano onde as
experiências vão se desenrolando e onde o ser vai tendo a sua
autoconsciência no mundo que o cerca. A explicação básica da vida
humana é aquela em que as experiências internas ao sujeito são as que
realmente contam, enquanto são as únicas coisas que promovem a
autoconsciência do ser no mundo. O que passa despercebido a esse
recôndito “santo dos santos” acaba por não existir para a sujeito, vale a
dizer, é o próprio ser aquele que constrói as suas vivências. Daí vem a
notória afirmação de Agostinho no sentido de fazer os seus auscultadores
notarem que é preciso voltar-se para dentro de si próprios para poder
encontrar-se e encontrar o próprio Deus. Quem busca Deus ou o
autoconhecimento fora de si mesmo, nada encontra, pois tudo está dentro
do próprio ser, no mais íntimo espaço ôntico.
Naquele mesmo “palácio da memória” proposto no Livro X das
Confissões, poderíamos localizar também uma “sala”, que é o refúgio mais
íntimo da alma, a qual conversa com todas as memórias que vêm bater à
Tempo e memória... 501

sua porta, que são as mesmas que imprimem no espírito humano as suas
marcas. Essas impressões são aquelas que realmente permanecem e que
fazem a diferença no ser de cada pessoa, ou seja, são elas as responsáveis
pela construção daquilo que costumeiramente chamamos de consciência
e autoconsciência.
O tempo também entra nesse jogo de experiências internas ao ser.
Aqui não estamos falando do tempo cronológico, pois este tem um
compasso monótono enquanto é constituído de partes iguais e serve para
uma organicidade cósmica de todas as coisas. O tempo de que trata
Agostinho é o da vivência da alma, o qual independe da cronologia.
Segundo Brachtendorf (BRACHTENDORF, 2008, p. 240-241), o
XI Livro das Confissões é uma exegese do primeiro livro do Gênesis, pois é
propriamente ali que se fala do tempo, enquanto relacionado à criação
divina do mundo no tempo. Deve-se notar que na visão agostiniana, a qual
está em conformidade com a doutrina cristã, o tempo teve um início, assim
como terá um fim. Esse início ocorreu exatamente no momento em que
Deus criou o mundo, ou seja, Deus é eterno, fora do tempo, e criou o
mundo e o tempo no mesmo instante. Desse modo, o tempo é dependente
da eternidade: para falar do tempo é preciso partir da eternidade divina e
do seu Ser Absoluto enquanto criador de tudo.
O ponto de partida de Agostinho é a curiosidade de alguns que
queriam o que Deus fazia antes de criar o mundo e o tempo
(AGOSTINHO, 2017, p. 293-294). A partir dessa questão, o filósofo
explica que, se Deus é eterno, não pode estar no tempo. Além do mais,
esclarece a confissão de termos ao redor de eternidade e perpetuidade. A
pergunta sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo dá a entender que
quem a faz pensa na eternidade como uma quantidade imensurável de
tempo. No entanto, isso não se constitui em eternidade, mas em uma
extensão de tempo que ultrapassa a capacidade humana de mensurar. A
eternidade, por outro lado, é a totalidade do ser em um só momento; essa
tal característica pode ser atribuída somente a um ser que se revela como
ato puro, ou seja, imutável, eterno.
O ponto central da reflexão de Agostinho sobre o tempo se
encontra em Confissões XI, 14 (AGOSTINHO, 2017, p. 295-296), onde ele
declara ser o tempo o objeto mais corriqueiro, pois está presente em todas
as conversações, mas que ao mesmo tempo é algo de difícil compreensão.
O filósofo não esconde a sua ignorância em relação ao tema, quando diz:
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se
quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (AGOSTINHO,
502 Ressonâncias filosóficas - Artigos

2017, p. 296). Essa aparente ignorância sobre o assunto pode ser


considerada retórica, pois na sequência pode-se perceber a argumentação
em favor de uma análise profunda sobre o tempo.
Agostinho não aceita mais a simples divisão do tempo em passado,
presente e futuro. Esse novo modo de ver o tempo acontece justamente
pelo fato do autor considerar o tempo como experiência interna ao sujeito
e não mais como algo fora, alheio às experiências do espírito. Pode-se até
mesmo continuar com a velha terminologia, mas deve-se ao menos ter em
mente o fato que o tempo como estamos habituados a pensá-lo não existe,
pois o que existe realmente é um átimo extremamente fugaz e inextenso
que contém certas experiências tidas no passado, mas que não são
passadas enquanto são reportadas para o presente através do concurso da
memória. O futuro também não existe em si, pois aquilo que chamamos
de futuro nada mais é do que projeções feitas no presente, com pouca ou
nenhuma certeza de realização.
Portanto, a chave de leitura da experiência “espiritual” do tempo
está no presente, o qual também não existe no entender de Agostinho,
pois é inextenso. Esse raciocínio é ímpar, pois nos deixa sem bases seguras
sobre as quais apoiar as nossas certezas. A final de contas, o que é que
existe se o passado não existe pois não é mais, se o futuro ainda não
chegou, portanto não existe e se o presente, o qual poderíamos dizer que
é a única coisa que existe, não tem extensão e, consequentemente, não
existe também? A conclusão a que agostinho chega é a seguinte: “Vejo
portanto que o tempo é uma certa distensão” (AGOATINHO, 2017, p.
305-306). Mais adiante (pg. 308), Agostinho afirma ainda: “Pelo que,
pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão distensão; mas de que
coisa o seja, ignoro”.
Concluindo essa argumentação acerca do tempo, Agostinho vê-se
obrigado a colocar às claras a dificuldade de falar sobre o tema. Porém,
nota-se o progresso realizado na tentativa de desvendar esse “mistério”
que é o tempo e de como ele se propõe na existência humana. O fato de
o tempo ser visto como uma experiência interna da alma, muda
completamente o modo de perceber e estudar essa componente básica ser.
As evoluções modernas e contemporâneas em relação ao tempo deixam
claro que a reflexão proposta pelo Bispo de Hipona deu bons resultados,
tendo sido o “sêmen” de novas interpretações.
Tempo e memória... 503

41.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A MEMÓRIA E O


TEMPO EM AGOSTINHO

A este ponto, cabe somente dizer que a reflexão agostiniana sobre


a memória e sobre o tempo levaram importantes filósofos modernos e
contemporâneos a tomar em consideração esse raciocínio. É o caso de
filósofos ligados à Fenomenologia, especialmente Husserl e Heidegger, os
quais viram em agostinho o gérmen das reflexões fenomenológicas
capazes de dar uma explicação ao problema do ser através de uma maior
explanação do conceito de tempo.
O tempo, portanto, visto na tripartição tradicional de passado,
presente e futuro, pode ser aceito, mas existe um aspecto temporal que
nada tem a ver com o tempo cronológico, o qual é puramente abstrato. Se
trata da concepção do tempo como uma componente do Dasein, seguindo
a terminologia de Heidegger, ou seja, do tempo como algo que é intrínseco
ao ser e que possibilita experiências internas, ou melhor dizendo, o tempo
é a própria experiência interna do sujeito, tornando-se uma componente
essencial para a interpretação do ser. O tempo é o horizonte do ser, pois
a compreensão do ser dá-se nessa dimensão temporal.
Para Heidegger, o percurso de vida de Agostinho acaba por tornar-
se um “tipo” para o desenvolvimento de uma explicação acerca do sentido
do ser:

(...) Heidegger lê a história de conversão de Agostinho como um drama


existencial, em que Agostinho passa da impropriedade à propriedade.
Mas o significado que Heidegger atribui às Confissões alcança muito além
de semelhante drama. A consideração sobre o tempo é, segundo ele, uma
confessio no sentido eminente. No décimo primeiro livro, Agostinho faz
confissões de forma mais enérgica do que nas demais partes. Sem cessar,
ele confessa não saber o que é o tempo e, com isso, não saber o que ele
é como homem. O profundo não-saber de Agostinho pergunta por
aquilo que é digno de perguntar. Esse perguntar se exprime como busca
e pedido. Perguntar de tal modo pelo tempo significa pedir o
desvelamento do tempo. Visto que nós mesmos, segundo Heidegger,
somos o tempo, isso, por sua vez, significa pedir que possamos ser
propriamente temporais. E como apenas o Dasein tornado próprio
compreende o ente corretamente, a saber, temporalmente, isso significa
pedir o desvelamento do ente (BRACHTENDORF, 2008, p. 267).

Por fim, fica esclarecido o grande interesse da filosofia moderna e


contemporânea pela figura carismática de Agostinho e pela sua reflexão
504 Ressonâncias filosóficas - Artigos

entorno de temas de fundamental importância ainda hoje. A


temporalidade do tempo envolve o ser ainda hoje, como um véu difícil de
ser ultrapassado.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio


de Pina. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2017.

BRACHTENDORF, J. Confissões de Agostinho. Trad. Milton Camargo


Mota. São Paulo: Loyola, 2008.

BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de


Janeiro/São Paulo: Record, 2017.

COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 3 ed. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2013.

GILSON. Étienne. Introduction a l'étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 1929.

HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. Trad. Enio Paulo


Giachini; Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

_______. O conceito de tempo. In: Cadernos de tradução. Trad. Marco


Aurélio Werle. São Paulo: USP, 1997, n˚ 2, p. 7-39.

HERRMANN, Friedrich-Wilhelm. Augustinus und die phänomenologische


Frage nach der Zeit. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1992.

NOVAES, M. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de


Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.

PRZYWARA, Erich. San Agustín: Trayectoria de su genio, contextura de


su espíritu. Trad. Lope Cilleruelo. Buenos Aires, 1949.
XXXXII

UM ESTUDO CRÍTICO SOBRE O PRINCÍPIO DA


LIBERDADE RELIGIOSA E A LAICIDADE ESTATAL EM
FACE DA TEORIA HABERMASIANA:
a Racionalidade Instrumental e a Fé

Matheus Hagemann de Almeida *

RESUMO

Este artigo tem como escopo discutir em face da jusfilosofia de Habermas,


a tarefa do direito em bloquear a colonização do mundo sistêmico nas
religiões e garantir a necessária cisão entre Estado e Religião. Logo, a
problemática incide nas inúmeras violações ao estado laico e reflete a
alienação dos fiéis por meio de uma ideologia da eficiência garantidora do
poder político e econômico dos pregadores, isto é, a religião encontra-se
colonizada pela razão instrumental oriunda do mundo sistêmico e o
mundo da vida, que deveria ser resguardado pelo direito, permanece
imobilizado pelas deformidades racionais. A partir de uma análise do
pensamento Habermasiano, aponta-se que manter a religião na esfera
privada ou exterminá-la não é a solução, faz-se necessário que o direito
crie mecanismos para uma tradução do discurso religioso, por meio do
qual todo o potencial da solidariedade das religiões possa ser – concernido
na esfera pública – válido para toda a sociedade, religosos ou não.

PALAVRAS-CHAVE: Religião. Razão instrumental. Mundo da vida.


Direito.

*Acadêmico do Curso de Direito da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas


de Cascavel
506 Ressonâncias filosóficas - Artigos

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo analisar criticamente o


princípio da liberdade religiosa e a laicidade estatal em face da teoria
Habermasiana. Nesse sentido, se torna tangível uma análise do conceito
de racionalidade instrumental e sua influência direta no campo da fé e da
religião. Por conseguinte, analisa-se a religião como um instituto do
mundo da vida, mas que ora foi afetada pela colonização oriunda do
mundo sistêmico, por meio da racionalidade instrumental inerente a ele.
Logo, a religião foi afetada, se tornando uma potente instituição geradora
de crises da modernidade.
Em sentido amplo, Habermas apresenta as sociedades
contemporâneas dividas em dois modelos: o mundo da vida, que é o
responsável pela integração social, reprodução cultural e socialização; e o
mundo do sistema no qual a economia e a politica se desdobram
amplamente. O primeiro, de caráter não problemático, com um fim em si
mesmo, engloba todos os indivíduos de uma comunidade, permitindo suas
interações transparentes e desproblematizadas. Já o segundo, é
compreendido como um fim para a sociedade, ou seja, o sistema político
é dotado de instrumentos para criar leis em prol de toda a sociedade.
(ARAGÃO, 2006).
O Alemão de Frankfurt apresenta a religião como uma esfera do
mundo da vida que foi colonizada pela racionalidade instrumental,
manifestando certos tipos de transtornos. Tal incômodo recai quando a
razão instrumental (mecanismo do sistema) extrapola os limites da sua
função e acaba instrumentalizando os indivíduos do mundo da vida, mais
especificamente, utilizando-os como meios para obtenção de poder
econômico e/ou político através da alienação capitalista.
Ainda, a religião é uma instituição do mundo da vida, que invadida
pela racionalidade instrumental do sistema, acaba sendo utilizada com um
viés empresarial, capaz de promover um discurso de figuras alienadas, que
pretende dar validade jurídica para crenças religiosas, impedindo
mudanças sociais, como direito ao aborto, eutanásia, casamento entre
pessoas do mesmo sexo e, consequentemente, infringindo a laicidade
estatal.
É nesse sentido de invasão promovida pelo sistema por meio da
razão instrumental que Habermas concebe o conceito de colonização, e a
partir daí, há uma deturpação dos verdadeiros valores intrínsecos das
religiões. Em virtude disso, elas (as religiões) passam a operar somente via
Um estudo crítico... 507

a alienação, buscando pela obtenção de lucro e com o intuito de atender


os interesses pessoais de uma minoria.Verifica-se, diante de tais
desdobramentos, certa ausência de regulamentação normativa, ou até um
certo mau uso da liberdade religiosa, a qual tornou-se uma salvaguarda
para as instituições de fé. Tais instituições atuam livremente, usando desse
princípio do direito mesmo quando a sua prática se aproxima mais do
exercício da estratégia gerencial das empresas do que da ‘solidariedade
entre estranhos’, defendido por Habermas e Ratzinger em seu conhecido
debate sobre Fé e Razão.
Não de outra forma, o Direito deve tomar as rédeas para
solucionar a colonização, é o que Habermas defende quando ensina sobre
a descolonização, entendida como a permissão que a razão comunicativa
volte a imperar nas instituições do mundo da vida, a partir do potencial
discursivo do direito.
A respeito do olhar que Habermas concede às religiões,
posicionando-se de forma positiva e otimista, ressalta-se que enxerga o
potencial religioso de despertar e propagar a solidariedade e a
comensalidade. Essa seria uma condição benéfica para todos, tanto para
os religiosos, quanto para os que alegam não ter fé, enaltecendo de tal
forma a humanidade e seus próprios indivíduos como pessoas melhores.
Por sua vez, tal tarefa da esfera religiosa só poderá se efetivar, quando o
direito realizar sua função de mediador entre sociedade civil e estado,
propagando outro tipo de racionalidade para além daquela estratégica
instrumental oriunda do mundo sistêmico. Ele, o direito, precisa resgatar
seu potencial de médium entre o mundo da vida e o mundo sistêmico,
sendo o escudo contra a colonização.

42.1 DIAGNÓSTICO HABERMASIANO DAS RELIGIÕES:


NECESSIDADE DE TRADUÇÃO DO DISCURSO RELIGIOSO

Inicialmente, vale considerar que as sociedades liberais existentes


nos dias de hoje, já foram Estados que não diferenciavam esfera pública
da religião, mas que pelo contrário, baseavam as normas jurídicas estatais
em fundamentos e moral religiosa, portanto aqueles que resistiam ao
estado ou a religião, sofriam coerção dos dois. A título de exemplo, temos
os tribunais de inquisição na Europa, e na América do Sul o massacre de
povos indígenas, o que justifica a afirmação habermasiana de que ele
espera o fim da religião para que o mundo possa ser livre, criticando a fé
508 Ressonâncias filosóficas - Artigos

e defendendo que as religiões estão a serviço de uma classe dominante


com o intuito único de alienar os dominados (VASCONCELOS, 2015).
Contudo, num segundo momento, Habermas abandona a ideia de
extinção da religião para defender a sua privatização, devido seu potencial
de dar sentido existencial aos seres humanos, consolando-os em seus
sofrimentos. Faz-se, portanto, sua limitação à esfera privada, já que a
religião é entendida como uma entidade do mundo da vida, preenchida
pela ação comunicativa (VASCONCELOS, 2015). Não distante,
Habermas afirma que já vivemos numa sociedade secular, pois as
instituições políticas, econômicas, jurídicas, científicas, educacionais e
artísticas, desvencilharam-se do controle religioso e desenvolveram-se a
partir da lógica autônoma devida de cada esfera, havendo um afastamento
considerável da religião e perda do seu poder (KNAPP, 2011).
Ainda em Markus Knapp (2011), quando a igreja começa a ser
empurrada para fora da esfera pública e fica restrita ao âmbito privado, é
devido ao declínio de sua influência, pois as ideologias religiosas começam
a se desgastar e não ter mais sucesso. Diante deste panorama de
secularização, surgem benefícios de grande monta, por exemplo: o
aumento da autonomia individual e o crescente desenvolvimento da
ciência não amarrada por contenções religiosamente motivadas. Imagina-
se, portanto, que se historicamente o mundo tivesse seguido este aspecto,
as religiões estariam hoje isoladas no domínio privado, ou até mesmo
desaparecidas diante da visão atual. No entanto, foi exatamente o oposto
que aconteceu, verificando-se o surgimento de uma sociedade pós-secular.
Dentre suas afirmações, Markus Knapp (2011, p. 180-183 apud
VASCONCELOS, 2015, p. 228-229) explica o que é a sociedade pós-
secular:

Na atualidade, constatamos um interesse crescente nas questões


religiosas, sobretudo na atuação da religião na esfera pública social. ‘É
no interior desse contexto que Habermas fala de uma sociedade pós-
secular’. Chega-se ao século XXI, constatando-se que a religião
permanece em um poder significativo (KNAPP, 2011, p. 180-181).
Prossegue Knapp: ‘[...] Habermas chama atenção para as religiões, pois
ele sabe: não raro a razão filosófica aprendeu também das religiões.
Portanto, estas pertencem sem dúvida nenhuma à história da razão’.

Dessa forma, num terceiro e último momento, Habermas concede


esse olhar mais benevolente às religiões quando percebe que “para resolver
os problemas da tecnicização da vida e da expansão da pobreza” é
Um estudo crítico... 509

necessário defender e apoiar as religiões nas instituições morais. Estas,


juntamente com os sistemas religiosos, representam uma enorme carga de
sentido, tendo em vista que é devido à valorização das pessoas e civilização
das sociedades que Habermas eneltece as religiões, com enfoque especial
na solidariedade, que é o vital princípio religioso (VASCONCELOS,
2015).
Lembra-se, contudo, que apesar de uma contemplação mais
positiva das religiões, o filósofo alemão, Habermas, deixa explícita a
necessidade de separação entre Estado e igreja, pois para uma sociedade
democrátia atuar em prol de todos, tanto de crentes, quanto de não
crentes, “o Estado liberal não deve impor a seus cidadãos religiosos
obrigações assimétricas” (VASCONCELOS, 2015). Tanto que, alega o
Frankfurtiano no seu livro Entre Naturalismo e Religião:

[...] as tradições religiosas possuem um poder de articulação peculiar para


as intuições morais, especialmente no que diz respeito às formas
sensíveis de uma convivência humana. Esse potencial torna o discurso
religioso, em questões políticas correspondentes, um sério candidato a
possíveis conteúdos de verdade, que, então, podem ser traduzidos do
vocabulário de uma comunidade religiosa determinada para uma
linguagem acessível a todos (HABERMAS, 2007, p. 135).

Nesse sentido, é necessário que convicções religiosas apresentem


reflexão e que estejam preparadas para uma mudança no olhar religioso,
tendo em vista que aqueles que creem precisam extrapolar seus limites
internos da fé, buscando um entendimento que reflita sobre uma
perspectiva externa, ou seja, da visão daqueles que não creem. Habermas
define que esta “tradução” é a única forma de o discurso religioso ser
reconhecido e incorporado nas negociações públicas, e integrar um
processo político mais amplo (KNAPP, 2011).

42.1.1 Mundo da vida e o agir comunicativo

Interações não problematizadas da sociedade civil, entre


indivíduos que demonstram interesse em fazer o exercício do potencial
crítico do homem, é o cerne do conceito de mundo vida, conceito este que
engloba os fiéis, suas religiões e a fé. De forma oposta, temos o sistema
dotado de racionalidade instrumental, que regulamenta a Economia e o
Estado. O direito, por sua vez, incide tanto no mundo vivido, como no
sistema, regulamentando um estado laico, para que não haja privilégios
510 Ressonâncias filosóficas - Artigos

estatais ou econômicos para um determinado grupo social que


compartilham a mesma crença ou descrença. Dessa forma, o direito dá a
possibilidade de inserção do discurso religioso na esfera pública, mas de
forma traduzida para toda a sociedade, o que possibilita à cidadãos
religiosos contribuírem para debates públicos, resguardando sempre o
acordo constitucional de separação entre Estado e Igreja e,
consequentemente, impedindo que o estado governe somente para uma
maioria religiosa. (TOMÉ, 2015).
Por esse motivo, elucida-se, a respeito do mundo da vida, segundo
Walter Reese-Schäfer (2012), que os indivíduos sociais podem interagir,
participando dos processos de interpretação das comunicações uns com
os outros, compartilhando as tradições e a cultura de determinada
sociedade. Portanto, este mundo é dotado de três principais características:
(a) impossível de problematização, de modo que é apresentado às pessoas
de forma irrefutável, existindo sempre no pano de fundo à ação
comunicativa; (b) existe anteriormente a qualquer discordância entre seus
agentes, pois todo e qualquer membro de um grupo social está inserido no
mundo da vida, baseado num acúmulo de conhecimento cultural,
partilhado consensualmente entre os membros; (c) ele é inesgotável,
apresentando limites que não podem ser ultrapassados, de forma que
mesmo havendo o surgimento de situações não 7 convencionais, o mundo
da vida expande-se e contrai-se da forma necessária para englobar os
participantes comunicativos e seus conhecimentos. (SCHÄFER, 2012).
Não obstante, o mundo da vida, conforme Aragão (2006), é
entendido como um contexto social da vida: uma realidade
simbolicamente pré-estruturada, com estruturas de conhecimento que
determinam sentidos gramaticais pré-determinados: atos simples da fala
entre comunicantes (expressões imediatas); textos, documentos, bens,
obras de arte, objetos materiais da cultura (fortificação das expressões
imediatas); e, finalmente, as instituições, sistemas e estruturas sociais (o
nível de maior complexidade do mundo da vida). Esse conjunto formador
desta realidade estruturada simbolicamente é anterior a qualquer
abordagem teórica.
Ao passo que se observa que o mundo da vida tem a própria forma
de suportar as interações dos seus indivíduos, Habermas (2004) apresenta
a razão comunicativa orientada como forma de comunicação por meio da
qual os falantes buscam entendimento uns sobre os outros, de forma a
chegar num consenso sobre o que está sendo discutido.
Fica evidente quando Habermas (2004, p. 107) ensina:
Um estudo crítico... 511

Essa racionalidade comunicativa exprime-se na forma unificadora da fala


orientada ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes
envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado e, ao
mesmo tempo, o horizonte no interior do qual todos podem se referir a
um único e mesmo mundo objetivo.

Portando, aqueles que se comunicam mediante o agir


comunicativo “referem-se não mais diretamente a algo no mundo
objetivo, social ou subjetivo, mas relativizam suas enunciações diante da
possibilidade de que a validade dela seja contestada por outros atores”
(HABERMAS, 1987, p. 148 apud SCHÄFER, 2012, p. 47).
Nesse sentido, Habermas coloca a necessidade das religiões –
como instituições do mundo da vida – sofrerem um “surto de reflexão”.
Primeiro, a consciência religiosa deve trabalhar em cima da relação
desarmônica com as outras religiões. Em seguida, deve permanecer em
conformidade com as autoridades científicas que dominam o
conhecimento do mundo. E por fim, é indispensável que o entendimento
religioso fique subordinado ao raciocínio de um Estado de direito
constitucional e de ordem democrática, consequentemente, “se justifique
a partir de uma moral profana”. Somente dessa forma o direito, criador da
Constituição, e a religião poderão pacificamente determinar um Estado
neutro, onde niguém é favorecido por crer, nem por não crer.
(HABERMAS, 2002).

42.1.2 Mundo do sistema e a razão instrumental

Habermas (1987), em seu livro ‘A Teoria da Ação Comunicativa',


considera que através da evolução histórica das sociedades, qual seja o
aumento da complexidade do ‘mundo da vida, leva a evidenciação de
mecanismos sistêmicos – dinheiro e poder – e, posteriormente, ao
surgimento de sistemas (economia e política). Esses, diferentemente do
mundo da vida, que busca entendimento mútuo e consensual entre os
falantes, ocupam-se em desligar-se de valores e normas. Dessa forma,
caminham para longe do mundo da vida, organizando-se de forma
autônoma e com características altamente formais, totalmente
desinteressados em cultura, sociedade e suas personalidades. Esse modo
de distanciar-se tão largamente do mundo da vida, constitui o mundo
sistêmico.
Contudo, inicialmente, o sistema apresenta uma postura de
observador externo do mundo vivido, não se opondo de forma alguma,
512 Ressonâncias filosóficas - Artigos

mas sim, complementando-o, pois com o auxílio do mundo sistêmico é


possível a descrição de estruturas societárias que garantem a reprodução
“material e institucional da sociedade: a economia e o Estado”. Em outras
palavras, o sistema era um instrumento do mundo da vida, por exemplo,
o Estado, que é um instrumento para a criação de leis que garantem a
ordem democrática e social da sociedade. (FREITAG, 1995, p. 141).
Ainda de acordo com Bárbara Freitag (1995), a partir da cisão entre
mundo da vida e sistema e com o passar do tempo, a complexidade das
sociedades aumentou, ocasionando o processo de modernização societária
do mundo sistêmico. Significa dizer, portanto, que o sistema sofreu uma
diferenciação interna, dando origem a dois sub-sistemas: (a) economia de
mercado, orientada para a busca do lucro e rentabilidade da relação de
trabalho; (b) Estado racional legal, apoiado por um sistema jurídico,
burocracia própria, poder de polícia. Tal processo de modernização levou
a uma racionalização da economia e do Estado, culminando na
predominância da razão instrumental.
Sendo assim, essa modernização societária diz respeito tanto à
expulsão da razão comunicativa do mundo sistêmico quanto a sua
limitação ao mundo da vida. De tal sorte, a economia e o Estado servem
de instrumento para a manutenção material e institucional da sociedade
moderna, mas sem admitir qualquer tipo de contestação aos princípios que
conduzem o seu funcionamento. (FREITAG, 1995).
Deste modo, confirma Habermas (2004, p. 118):

No agir estratégico, esse potencial de racionalidade comunicativa


permanece inutilizado, mesmo quando são linguisticamente medidas.
Como aqui os envolvidos coordenam seus planos de ação mediante uma
influenciação recíproca, a linguagem não é empregada
comunicativamente no sentido já explicado, mas de forma orientada a
consequências. Para análise desse uso da linguagem, as chamadas
perlocuções fornecem a chave apropriada.

Portando, conclui-se que o agir estratégico orienta-se por meios


persuasivos, objetivando metas perlocucionárias, onde pelo menos um
dos participantes da comunicação, fazendo uso de discurso em que os
ouvintes não se comunicam racionalmente, ignorando o entendimento
mútuo e as metas cooperativas, pretende que seus objetivos próprios
sejam alcançados. A linguagem é utilizada para produzir efeitos
persuasivos sobre os ouvintes, garantindo o sucesso dos narradores
(HABERMAS, 2004).
Um estudo crítico... 513

De tal forma, quando o sistema deixa de agir somente nas esferas


que precisa regulamentar e a passa a fazer incursões pelo mundo vivido,
mais especificamente na religião, ocorre a colonização, que acaba
deturpando uma laicidade estatal constitucionalmente normatizada e
ferindo a democracia. Dessa forma, indivíduos buscam a própria
satisfação pessoal (mentalidade colonizada pelo sistema) e desferem
ataques de ódio contra minorias, por exemplo, grupos LGBT’s, dizendo
que as agressões estão regulamentadas, pois o princípio da liberdade
religiosa garante a expressão das religiões dessa forma (TOMÉ, 2015).

42.1.3 O discurso religioso e a colonização pelo sistema

Sabe-se que o Estado liberal não vai privar o discurso religioso,


muito pelo contrário, conforme a visão de Habermas, é necessário que
sejam incentivadas as vozes religiosas na esfera pública, para que aqueles
que creem possam contribuir com a criação de sentido. Essa abertura do
Estado laico é devido ao fato de que a coibição precoce de manifestaçãoes
religiosas poderia acarretar na privação da sociedade de contribuições
importantes (BARROS, 2009).
Todavia, para que os indivíduos teístas possam colaborar
democraticamente para a sociedade e serem ouvidos no âmbito público,
suas colaborações devem passar por um crivo de tradução. Tanto que, o
alcance do discurso religioso, para conseguir ser ouvido nas negociações
estatais, está condicionado ao sucesso da sua tradução. Essa
obrigatoriedade de tradução surge para evitar que quando a esfera pública
abra as portas para discursos de cunho religioso, evite que isso transforme
o Estado em um ente que vai governar somente para aqueles que
compartilham das crenças, marginalizando ateístas e crenças diferentes e
acabando por ferir a democracia. (BARROS, 2009).
Ainda na análise de João Roberto Barros (2009, p. 68), sobre a obra
Entre Naturalismo e Religião:

A alegação de que o Estado não é um agente de uma maioria religiosa


escamoteia uma verdade patente. Creio que é justamente abrindo o
debate religioso dentro do parlamento é que se pode constatar o quanto
os argumentos pretensamente racionais estão eivados de premissas de
cunho religioso. A alegada laicidade do Estado é uma cortina de fumaça
que impede a resolução dos problemas, porque eles são estruturais. Seria
com esse debate que formas de vida religiosas poderiam ser legitimadas
no Estado liberal e garantiriam seu espaço na sociedade.
514 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Paralelamente, as sociedades que estão imbuídas de racionalidade


comunicativa começaram a se tornar mais complexas, ou seja, há um
processo de racionalização e modernização. Faz-se necessário, portanto, a
criação de um sistema com forma própria de racionalidade, por exemplo,
a criação da esfera política, orientada pelo diálogo do entendimento
mútuo, com o objetivo de solucionar a violência, opressão, garantir justiça,
etc. (GONÇALVES, 1999).
Contudo, infelizmente o crescente processo de evolução das
sociedades necessita de uma demanda muito grande de mecanismos
orientados ao entendimento mútuo, os quais acabam saturados,
juntamente com esse abarrotamento sobre os mecanismos comunicativos.
Por isso, tem-se o enorme desenvolvimento do sistema, que objetiva dar
validade ao dinheiro e ao poder, para que estes possam coordenar as ações
dos indivíduos e projetar os processos de comunicação para a periferia, o
que leva o sistema a se desenvolver de acordo com padrões e lógicas
autossuficientes, diferente das validades conhecidas.
Sendo assim, Habermas (1987, p. 196, Trad. Nossa), afirma:

No final, mecanismos sistêmicos reprimem formas de integração social


mesmo nas áreas onde uma coordenação de ação dependente do
consenso não pode ser substituída, isto é, onde a reprodução simbólica
do mundo da vida está em jogo. Nessas áreas, a mediação do mundo da
vida assume a forma de uma colonização.

É nesse sentido de colonização que se encontra uma sociedade


pós-secular, na qual a religião faz parte do perímetro da vida privada, mas
está também no setor da esfera pública social, gerando um novo stress
constante entre as sociedades evoluidas e a religião. A saber, Knapp (2011)
usa, a título de exemplo, o potencial violento e motivador que a religião
ainda inspira no século XXI, que veio a ocasionar o ataque terrorista em
11 de setembro de 2001.
Nacionalmente, a situação é tão caótica quanto, a começar pelo
discurso instrumentalizado da religião, onde figuras com elevado poder
persuasivo, orientadas para o fim de adquirir poder econômico, faz dos
fieis meio para esse fim. Estas, ignorando qualquer fim em si mesmo que
a religião possa apresentar, oprimem os valores e a moral, que representam
verdadeiras reservas de sentido, originados nos sistemas religiosos e que a
eles deveriam permanecer antes de traduzidos (VASCONCELOS, 2015).
Um estudo crítico... 515

42.1.4 Infrações a laicidade do estado: o papel do direito

Encontra-se, na política e na economia, uma situação igualmente


crítica. A religião perdeu totalmente seu sentido e deturpou-se por
completo com a colonização do sistema e o agir comunicativo na sua
seara, que originou atrocidades como a bancada evangélica no Congresso
Nacional. Esta é definida como uma bancada de parlamentares reunidos
em torno de um único interesse, representar os interesses da religião
evangélica1, o que leva a defesa de interesses que não corresponde a toda
população brasileira, incoerente primeiramente com a democracia e
segundamente com a laicidade estatal.
A Religião no Brasil sofre uma enorme crise na modernidade,
devido às invasões da racionalidade instrumental oriundas do mundo
sistêmico. Ao passo que a religião, inicialmente entendida por Habermas,
na Teoria da Ação Comunicativa, como a instituição abrangente que
mantinha a coesão de todas as outras formas de instituições na sociedade
arcaica, for perdendo este papel na medida em que as sociedades passam
a desenvolver cada vez mais a prática comunicativa orientada para alcançar
o entendimento, deixa de lado convicções religiosas explicadas pelo
sagrado (PINTO, 1995).
Nesse sentido, Habermas (apud PINTO, 1995, p. 91):

[...] a comunidade religiosa que fez, pela primeira vez, possível a


cooperação social é transformada em uma comunidade de comunicação
baseada na pressão para cooperação. A interação guiada pela norma
muda sua estrutura à medida que as funções de reprodução cultural,
integração social, e socialização (ou seja, a reprodução simbólica do
mundo da vida) passam do domínio do sagrado para aquele da prática
comunicativa cotidiana.

Não é estranho que em um Congresso Nacional, com um grupo


de parlamentares orientados para defender os interesses de uma religião
específica, apresente-se no § 1º do Artigo 79 do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados a seguinte disposição: “A Bíblia Sagrada deverá
ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem
dela quiser fazer uso”. Complementando a atrocidade, o § 2º do mesmo
Artigo dispõe:

1 Parlamentares integrantes des ta bancada são pagos por toda a população, mas
governam somente para aqueles que compartilham da mesma crença que eles.
516 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Achando-se presente na Casa pelo menos a décima parte do número


total de Deputados, desprezada a fração, o Presidente declarará aberta a
sessão, proferindo as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus e
em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos” (Grifo
nosso).

Incontroversa a incoerência do dispositivo e afronta que apresenta


ao estado laico, afinal, o redator desta resolução considera mais importante
a presença da bíblia sagrada do que a própria Constituição da República
Federativa do Brasil, pois nada versa sobre a última.
Não diferente, as propagandas eleitorais religiosas violam
igualmente o estado laico brasileiro, na medida em que figuras como
bispos e pastores usam estes títulos para promover-se no objetivo de ter
sucesso no poder político. A título de exemplo, na véspera do primeiro
turno para as últimas eleições de prefeito no Rio de Janeiro, o Pastor
Daniel Santos, da Igreja Universal do Reino de Deus pediu expressamente
votos para o bispo Marcelo Crivella, comparando os eleitores que não
votassem no candidato indicado a Judas – o apóstolo que traiu Jesus.
Conforme dispõe o Artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal
de 1988, o princípio da liberdade religiosa: “VI - é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias”. Percebe-se, portanto, a proteção das expressões religiosas,
bem como, o princípio da liberdade religiosa, que está senda usado de
forma instrumental, por uma minoria dominante, a fim de alcançar poder
político e/ou econômico, deixando de lado o agir comunicativo orientado
para o entendimento mútuo e a busca pelo bem da coletividade, com o
objetivo de satisfazer as ambições pessoais daqueles comunicantes
persuasivos (HABERMAS, 1987).
Diante dos conceitos de mundo da vida, mundo do sistema, razão
comunicativa e razão instrumental, sabe-se que este último invadiu o
mundo da vida e está rechaçando a razão comunicativa. Esse processo é
dominado de colonização, pois a princípio, a economia e a política eram
instrumentos para garantir a reprodução da sociedade moderna. Contudo,
o sistema exterminou o agir comunicativo de sua esfera, não admitindo
que fosse questionada, criticada ou renegociada a validade de suas normas
e valores. Sendo assim, no momento em que o sistema vê-se livre de
qualquer princípio que rege seu funcionamento, surgem as patologias da
modernidade, pois passa a funcionar somente orientado pela racionalidade
Um estudo crítico... 517

instrumental, onde não importam os meios para obtenção de lucro e


poder, o sistema usa tudo e todos (FREITAG, 1995).
Inclusive, a razão instrumental passa a expandir as fronteiras dos
subsistemas da economia e da política, chegando até mesmo a colonizar
esferas do mundo da vida, como por exemplo, a religião que passa a
funcionar somente para obtenção de lucro e exercício do poder. No
entanto, Habermas dá a solução, entendida como a descolonização,
permitindo que a razão comunicativa volte a imperar nas instituições do
mundo da vida: o direito é a instituição que deve resguardar e reguiar, na
visão habermasiana, esse potencial discursivo (DURÃO, 2006).
Outrossim, é a forma como o direito deve trabalhar para garantir
a organização democrática das sociedades complexas. Habermas começa
com a afirmação de que “é possível pensar que o direito está ligado
essencialmente à idéia de uma auto-organização de cidadãos livres e
iguais”. Para isso, é necessário que as validades e as legitimidades do direito
sejam discutidas valendo-se do “princípio da razão comunicativa –
procedimental” (SIEBENEICHLER, 2006).
Tal princípio diz respeito à interpretação do direito por meio de
um procedimento racional, comunicativo e discursivo, pois a partir do
momento em que participantes decidem constituir uma comunidade social
regida pelo direito e pela razão, descobrem que os direitos dos indivíduos
se atribuem mutuamente. Já que nas sociedades pluralistas e complexas
atuais não é possível um consenso geral sobre algum conteúdo das normas
do direito, o que deve imperar é o procedimento gerador das normas. Por
sua vez, o procedimento deve ser o “democrático-comunicativo” – “Nele,
o direito positivo pode se legitimar mediante um procedimento público e
racional de formação da opinião e da vontade” (SIEBENEICHLER,
2006).

42.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, é válido considerar que o presente trabalho


buscou elucidar a respeito da teoria de Jürgen Habermas, isto é, sobre a
colonização do sistema nos campos de atuação do mundo da vida e em
seguida, demonstrar que o atual quadro brasileiro a respeito da religião é
um caso concreto daquilo que foi teorizado pelo filósofo alemão. Nesse
sentido, basta apenas um olhar de relance para perceber que mentes
tornaram-se alienadas pelo sistema e são orientadas somente pela busca de
518 Ressonâncias filosóficas - Artigos

dinheiro e poder, servindo para a manutenção do mundo sistêmico e,


consequentemente, a perda dos sentidos.
De tal modo, são concebidas duas hipóteses para sanar as crises da
modernidade que vêm sendo geradas ao longo do tempo, decorrente da
colonização das religiões pela razão instrumental do sistema. A primeira é
explicada pela tradução dos discursos religiosos para o vocabulário de toda
sociedade, de modo que crentes e não crentes “beberiam” da fonte de
caridade ao próximo que são respaldadas as religiões; a segunda é pura e
simples descolonização, onde o direito, por meio de seus mecanismos,
torna-se o médium da razão comunicativa para o âmbito religioso,
expurgando a razão instrumental juntamente com a ideia de favorecimento
econômico e político de uma minoria em face aos desfavorecidos. Mesmo
que as duas só poderão apresentar resultados ao longo prazo, é válido
apoiá-las.
Apesar do olhar otimista de Habermas para com as religiões e seu
potencial solidário, a situação no Brasil encontra-se em tal limbo execrável,
que urgentemente precisa ir à encontro daquilo que é proposto na teoria
do agir comunicativo. Por meio do direito é possível manter a razão
instrumental trabalhando dentro do sistema pela busca da ordem política
e econômica, permitindo que as interações do mundo da vida se vejam
livres de indivíduos persuasivos comunicando-se de forma a usar seus
pares como escada para objetivos pessoais egoístas.
Não obstante, basta observar a recente construção da sede
mundial da Igreja Universal o Reino de Deus em São Paulo, o templo de
Salomão, que teve o custo de 680 milhões de reais, ocupando um espaço
de 100.000 (cem mil) metros quadrados. Conforme o cronograma
disponibilizado no endereço eletrônico do próprio templo, nas segundas
feiras, durante todo o dia, é oferecida a “palestra motivacional para o
sucesso financeiro”. É um exemplo nítido da colonização, onde o real
sentido das religiões – caridade, reciprocidade, amparo – é colocado de
lado pela racionalidade instrumental, que se orienta somente pelo
incessante uso dos indivíduos como meio para um fim.
Um estudo crítico... 519

REFERÊNCIAS

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Estado/Religião na sociedade “pós-secular”. In: PIBIC/CNPq – UFCS,
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Um estudo crítico... 521

VASCONCELOS, Francisco Antonio de. Religião e Política em Habermas:


fé e pós-secularização. In: Kalagatos – Revista de Filosofia, Fortaleza:
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<http://kalagatos.com.br/index.php/kalagatos/article/view/53/43>
Acesso em: 09 mai. 2017.
XXXXIII

UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE STEPHEN C.


PEPPER FOCADO EM SEU LIVRO WORLD HYPOTHESES

Vinicius Reis de Siqueira*

RESUMO

Stephen Coburn Pepper (nascido em 1891 – falecido em 1972) foi um


filósofo pragmatista que propôs em seu livro World Hypotheses (1942)
(Hipóteses de Mundo de 1942) que a razão para muitos filósofos não
concordarem entre si foi devido a estes terem visões de mundo, ou
hipóteses básicas sobre o mundo, diferentes. As hipóteses de mundo de
Pepper podem ser interpretadas enquanto formas de definir a natureza de
“verdade” sobre o mundo, ou ainda enquanto epistemologias funcionais.
De acordo com este autor, existem quatro hipóteses de mundo: 1)
Formismo; 2) Mecanicismo; 3) Organicismo; e 4) Contextualismo. Para o
primeiro a verdade é encontrada a partir de relações de categorias baseadas
em similaridade. O segundo se preocupava em identificar relações de
causa-efeito. O terceiro tinha a perspectiva de que aquilo que ele via fazia
parte de um todo orgânico dentro de um desenvolvimento temporal. O
último se preocupava em identificar relações/padrões a partir da
perspectiva e contexto do observador. Pepper pode ser considerado um
meta-filosofo (ao filosofar sobre a filosofia) interessado em identificar e
fazer sentido das ideias filosóficas e científicas de seu tempo.

PALAVRAS-CHAVE: Pepper; filosofia da ciência; metáforas

* UNIOESTE; e-mail: vinicius.r.siqueira@hotmail.com


524 Ressonâncias filosóficas - Artigos

INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos uma apresentação da filosofia de Pepper, um


autor não muito conhecido, considera-se como válido para a melhor
compreensão deste filósofo observar o contexto histórico no qual Pepper
esta inserido, bem como seu estilo de escrita.
Stroud (2015) avalia historicamente a filosofia de Pepper enquanto
uma ponte entre o trabalho de John Dewey (1920 – 1930) e o inicio da
revitalização do movimento pragmatista, classificando Pepper enquanto
pragmatista por quatro razões: 1) Pepper foi influenciado por George
Santana e Ralph Barton Perry em Harvard, autores de tradição
pragmatista; 2) Pepper transparece em seu trabalho uma posição favorável
ao contextualismo, uma característica de muitos pragmatistas; 3) Apesar
de não se descrever enquanto pragmatista em sua autobiografia o autor se
declarava mais preocupado em lidar com hipóteses e evidências mais
confiáveis, um método que se aproxima daquele proposto por pensadores
pragmatistas; e 4) Richard Rorty utiliza a teoria de Pepper para corrigir
pensadores muito importantes do pragmatismo.
Similar a outros autores que tem a pretensão de transmitir uma
perspectiva ou uma lógica filosófica, Pepper apresenta em sua escrita as
características de tal filosofia ao oferecer em diversos momentos do livro
World Hypotheses (Hipóteses de Mundo) exemplos e analogias de sua
argumentação (ou contra-argumentação dependendo do caso). O autor
propõe em seu livro que a compreensão do mundo tem suas raízes em
metáforas básicas (as quais serão discorridas em maior detalhes adiante),
sendo que metáforas podem ser compreendidas e utilizadas enquanto
exemplos e analogias.
Pepper pode ser considerado um meta-filosofo, ao filosofar sobre
a filosofia, preocupado em identificar e fazer sentido das ideias e conceitos
da filosofia e ciência de seu tempo, observando similaridades e padrões
entre diversas escolas do pensamento filosófico que emergiram em seu
tempo.
Para o autor, qualquer filosofia científica poderia ser categorizada,
através de uma análise da linguagem metafórica implícita que um filósofo
utiliza, e seu critério de verdade, i.e. o conjunto de regras que um pensador
abraça enquanto base para alcançar a veracidade de uma observação e/ou
análise. Colocado de outra forma, o conceito de critério de verdade
corresponde aos pressupostos epistemológicos relacionados a natureza do
Uma introdução à filosofia... 525

conhecimento e verdade.
Considera-se relevante estudar e conhecer tal autor uma vez que o
assunto referente ao papel de premissas filosóficas e seus efeitos sobre o
desenvolvimento da ciência não é muito discutido e/ou refletido. Fox
(2008) comenta que muitos estudiosos frequentemente não declaram os
pressupostos básicos de sua teoria, abraçando diversas perspectivas (como
uma colcha de retalhos sem necessariamente considerar as divergências
entre estas), ou simplesmente confiam em dados brutos sem ponderar
sobre tais fatos (estratégia contraria ao programa de pesquisa científica, e
que provavelmente não leva a nenhuma inovação). Tal posição
(irreflexiva) pode dificultar o desenvolvimento coerente e progressivo do
conhecimento, pois teorias e seus pressupostos filosóficos guiam a
construção e a avaliação da fundação do desenvolvimento científico.
O conceito “teoria” possui uma variedade de significados e
interpretações, este artigo, ao tratar e discorrer sobre Popper, se posiciona
a partir de sua definição, considerando teoria aquelas declarações que são
relativamente precisas e têm escopo relativamente amplo de
conhecimento. O beneficio das teorias se encontra em sua economia
conceitual e em sua capacidade de orientação para enfrentar novos
problemas, além de evitar que um programa científico se torne
desorganizado e incoerente.
A filosofia da ciência tem valia neste quadro de reflexões ao
oferecer uma forma de orientar as possibilidades de construção de uma
ciência e sua utilidade, uma vez que existem diversas situações em que uma
teoria particular pode encontrar dificuldade em ser reconhecida, podendo,
por exemplo, ser criticada por estudiosos que não reconhecerem o critério
de fundamentação empírica ou filosófica; ou por não reconhecerem tais
dados enquanto compatíveis com o sistema de compreensão de seus
membros; ou ainda por considerarem que outra posição teórica pode
explicar os mesmos dados de forma mais satisfatória; entre outras
situações. Todas as situações previamente descritas podem ser causadas
pela não especificação clara dos pressupostos básicos filosóficos,
podendo-se assim observar o benefício e “produtividade” na discussão das
premissas filosóficas no desenvolvimento científico.
A próxima seção tem como objetivo expor a posição de Pepper
referente ao debate dos pressupostos filosóficos na ciência, suas visões de
mundo e metáforas raiz, tal como apresentado em seu livro World
Hypotheses (1942).
526 Ressonâncias filosóficas - Artigos

43.1 WORLD HYPOTHESES

O livro de Stephen C. Pepper, World Hypotheses (1942) pode ser


considerado uma tentativa do autor de sistematizar, a partir de um
processo de comparação, os sistemas científicos/filosóficos de sua era,
tentando-se observar a metafísica por trás das tentativas
científico/filosóficas de entender e pesquisar o mundo.
Ao tratar os sistemas científicos/filosóficos em seu livro o autor
critica a tentativa de alguns estudiosos de tomarem uma perspectiva
dogmática de tais sistemas, podendo igualmente considerar que sua
própria posição não deveria ser considerada enquanto dogmática ou final,
mas como uma perspectiva útil a fim de observar o papel de premissas
filosóficas no desenvolvimento científico.
Durante seu livro, Pepper não se dedicou a discorrer sobre os
vários tipos de dogmatismo, somente sinalizando algumas características
constituintes e critérios do dogmatismo relacionados a falácia da
convicção e falta de fundamento para sustentar sua credibilidade,
diferenciado em seu livro entre a atitude prática, a qual denomina como
convicção, e a atitude cognitiva, a qual denomina como crença, tratando
em mais detalhes sobre os riscos do dogma, da autoridade infalível, dos
princípios autoevidentes e do fato indubitável.
O livro World Hypothesis é organizado em três partes divididos
em doze capítulos com várias pequenas subdivisões. Na primeira parte do
livro, o autor combate o absoluto ceticismo e o completo dogmatismo
relacionado a construção e transmissão do conhecimento, colocando sua
posição, que pode ser sumarizada enquanto acreditando que, princípios
lógicos (ou outros) não necessariamente precisam ser coerentes com o
conhecimento já estabelecido, e que não existe percepção sem julgamento.
Pepper exemplifica sua posição quanto aos pontos descritos no
paragrafo anterior ao exemplificar que “fatos” que podem ser
considerados enquanto indubitáveis por um filósofo podem ser
interpretados de forma diferente por outro estudioso, de forma a iniciar a
apresentação de sua posição de que o que pode ocorrer é que a
interpretação de um fato pode ser diferente dependente a categorias
fundamentais de percepção entre os pensadores.
Para Pepper, o conhecimento não inicia (ou não deveria começar)
com certezas, mas sim deveria “crescer” de uma posição de “hipótese”
para uma posição de “conhecimento” critico e corroborativo. De acordo
com o autor existem dois tipos de corroboração, o multiplicativo e o
Uma introdução à filosofia... 527

estrutural, o primeiro é alcançado quando diversos estudiosos


testemunham e afirmam o mesmo fato, comentando ainda que tal
confirmação pode ser feita através de novas tecnologias, e.g. máquinas,
que refinam a observação e resultam no que o autor define quanto
“dados”; o segundo é alcançado através da aceitação de vários estudiosos
sobre um fato, através da ligação e estruturação de uma observação através
de hipóteses resultando na proposição de novos fatos prováveis.
Segundo a posição de Pepper, ambos os tipos de corroboração
previamente discutidos tem o mesmo valor, rejeitando assim a tese
positivista a qual defende somente a evidencia corroborada através do
método multiplicativo enquanto valido e aceitável, avaliando tal posição
como dogmática. Quanto aos tipos de corroboração o autor comenta
ainda que tais processos de corroboração podem ocorrer no dia a dia dos
indivíduos, resultando no que Pepper denominou como “danda”, se
posicionando novamente contra uma posição positivista dogmática ao
admitir a possibilidade de que danda pode ter um valor tanto quanto dados
no processo de construção do conhecimento.
O professor Pepper admite o valor e importância da corroboração
estrutural ao posicionar sua teoria de “hipóteses de mundo” como
substanciada através de tal método, uma vez que tais hipóteses derivam da
correlação de diversas observações levantadas em seu livro.
Ao tratar sobre os conceitos de evidência e corroboração, o autor
enfatiza a tensão entre o senso comum e o conhecimento refinado,
propondo sua ideia de que o método pelo qual o conhecimento se
desenvolve, parte do senso comum, e é refinado através de um processo
de cognição critica em conhecimento refinado.
Seguinte a exposição de tais argumentos, Pepper inicia a definição
e descrição do que este define enquanto hipóteses de mundo. Tais
hipóteses seriam a tentativa do autor de criar uma interpretação
unificadora de vários fatos e experiências organizados a partir uma única
“pista” a qual este denominou “root metaphor” (metáfora raiz). A ideia é
que estudiosos percebem fatos (que podem ser um evento ambiental ou
fenômeno orgânico, ou mesmo outro ainda) através da experiência, e
tentam compreender tal fato a luz de certas categorias básicas. De tal
forma, de acordo com Pepper, todos os sistemas metafísicos de pesquisa
científica/filosófica tem como base uma raiz intuitiva – uma metáfora raiz.
Tratado de outra forma, metáforas raiz correspondem aos
pressupostos ontológicos a respeito da natureza e/ou existência. Pepper
aparentemente apresenta o conceito da metáfora raiz em uma tentativa
528 Ressonâncias filosóficas - Artigos

deste conceito servir como um instrumento crítico a fim de adequar os


dados obtidos frente a uma certa visão de mundo.
Ao estudar os sistemas (que serão expostos em maiores detalhes a
diante), Pepper os considera enquanto independentes uns dos outros, e
que um sistema não pode ser julgado pelos conceitos de outro sistema. O
autor propõe que a tentativa de comparar sistemas não é possível, pois
cada sistema possui uma concepção de verdade que a sustenta, e que tal
concepção tem uma base metafísica – paralela aos dados empíricos mas
de origem cognitiva; bem como cada hipótese de mundo possui um teste
epistemológico próprio.
A fim de esclarecer o ponto referente a autonomia e campo de
estudo de uma visão de mundo, o autor faz uma analogia as regras de um
jogo, colocando que um jogador de baseball não poderia criticar um
jogador de tênis pela sua falta de “home runs”, demonstrando assim a
ilegitimidade de forçar um grupo de regras de um contexto em cima de
outro “jogo”.
Colocado de outra forma, o autor argumenta que cada visão de
mundo é autônoma, e que cada visão cria seu próprio campo de estudo.
Dentro de um mesmo campo, no entanto, visões de mundo competem
(direta ou indiretamente) para interpretar os dados. Pepper, no entanto,
coloca que utilizar as categorias de uma visão de mundo para avaliar e
analisar uma outra visão de mundo é tanto ilegítima como inútil, pois uma
visão de mundo não consegue demonstrar mais “força” ao apontar as
“fraquezas” de outra visão de mundo pois suas bases são diferentes.
O autor, no entanto, se coloca a favor de uma posição de
humildade frente ao embate de visões de mundo, pois não importa o
“grau” de uma evidência, ela nunca irá “provar” que uma visão de mundo
é superior a outra, pois pressupostos filosóficos possibilitam uma análise,
não que estas são o resultado de uma análise.
O autor critica ainda a possibilidade de ecleticismo entre visões de
mundo devido a confusão que isto traria, comentando, no entanto, que
existe uma exceção na possibilidade da integração de visões de mundo
subordinadas a uma única visão de mundo já existente e estabelecida.
Retomando ao exemplo de “jogos” para discorrer sobre o
ecleticismo, seria virtualmente impossível implementar simultaneamente
as regras do baseball e tênis em um único jogo, pois não saberíamos como
determinar “pontos”, “faltas”, e “vencedores”, demonstrando que no
ecletismo filosófico se torna impossível avaliar teorias e suas alegações de
forma coerente e sistemática.
Uma introdução à filosofia... 529

Para Pepper, o conceito de verdade de uma hipótese de mundo


busca ser o mais abrangente (que abraça o maior número de dados) e mais
preciso (que oferece uma interpretação mais exitosa para uma pluralidade
de dados) quanto possível. O autor observa, como vários outros
estudiosos, que precisão e abrangência são inversamente proporcionais,
isto é, um modelo que especifica como interpretar um dado evento tende
a não incorporar diversos eventos, e aqueles modelos que buscam ver
diversos eventos falham ao descrever eventos específicos. Pepper avalia
hipóteses de mundo falhas ou ruins (como por exemplo o animismo e o
misticismo) quando tais hipóteses falham ao prover abrangência ou
precisão.
Apesar do autor não considerar nenhuma hipótese de mundo
enquanto perfeita, Pepper considera que existem quatro hipóteses que
podem ser avaliadas enquanto relativamente adequadas: o formismo;
mecanicismo; organicismo; e contextualismo.
É interessante notar que ao tratar sobre os sistemas
teórico/filosóficos previamente mencionados, Pepper aparentemente
toma a posição de buscar ignorar posições filosóficas particulares e
questões referentes a personalidades dentro da ciência, se focando e
apresentando visões de mundo de uma forma mais geral, utilizando seus
próprios termos.
Também deve ser considerado que nenhuma filosofia, que será
tratada em mais detalhes a seguir, apresenta-se tão “simplesmente” tal qual
Pepper descreve, podendo ser concebido o trabalho do autor como uma
abstração levantada a partir de características enfatizadas por Pepper ao
observar tais sistemas filosóficos.

43.1.1 Formismo

A metáfora raiz do formismo recai sobre o conceito de


similaridade, tendo a correspondência enquanto seu critério de verdade.
Pepper comenta em seu livro sobre duas variações do formismo, o qual
este tratou como formismo imanente e formismo transcendente.
O formismo imanente baseá-se na metáfora raiz relacionada à
percepção que dois ou mais objetos possuem características semelhantes;
i.g. laranjas e maças são redondas. O formismo transcendente baseá-se na
metáfora raiz relacionada à percepção que dois objetos podem ser
incluídos em padrões preestabelecidos de conceitos; i.g. cada maça é única
e diferente, todavia elas podem ser classificadas dentro de uma categoria
530 Ressonâncias filosóficas - Artigos

transcendente denominada maça.


A chave de análise do formismo está em ou descrever as
semelhanças e diferenças de dois objetos (imanente), ou em nomeando-os
e descrevendo suas formas das quais um objeto é exemplo
(transcendente). A mensuração de verdade no formismo está no “grau”
de similaridade na qual uma descrição tem de um objeto de referência
(imanente), ou na correspondência entre a descrição e sua referência
(transcendente).
Formismo é descrito por Pepper enquanto uma forma dispersa de
análise, na qual fatos são assumidos como não relacionados até provados
o contrário. Pepper considera tal sistema teórico/filosófico como talvez a
hipótese de mundo mais velha, podendo-se relacionar tal visão de mundo
até Platão (e possivelmente Aristóteles), os quais consideram que o
fenômeno do mundo podem ser compreendidos ao designá-los as devidas
classes e tipos.

43.1.2 Mecanicismo

Para o mecanicismo, os eventos, objetos, e até as leis da natureza


são assumidos enquanto unidos e conectados (oposto ao formismo),
estando integrados a partes de um sistema maior. A analogia básica do
mecanicismo é aquele relacionado ao de uma máquina, tendo sua visão de
mundo assumindo que o mundo é organizado a priori em uma estrutura,
i.e. o universo, o qual pode ser dividido em suas partes, contendo um
critério de verdade determinado através de uma linguagem, avaliado por
Pepper enquanto ambígua, que revela uma organização interna do
universo.
Construtivistas relacionam a visão de mundo do mecanicismo com
as propostas do positivismo e objetivismo, sendo que Pepper observa o
mecanicismo enquanto oferecendo a base para a maioria dos projetos de
psicologia cognitiva (de seu tempo).
O critério de verdade pode ser considerado uma versão mais
elaborada de verdade enquanto correspondência, comparada ao
formismo, podendo ser melhor descrita enquanto uma tentativa de
verificação preditiva (predições), i.e. declarações assumindo a verdade a
partir de uma organização de mundo que após testado pode ser
generalizado para outros fenômenos semelhantes.
A pesquisa mecanicista dominou áreas como a da psicologia e
educação, buscando e oferecendo uma tradição de modelos hipotéticos
Uma introdução à filosofia... 531

que oferece a possibilidade de predizer o futuro.

43.1.3 Organicismo

A metáfora raiz do organicismo tem como analogia básica o


desenvolvimento orgânico, tendo seu critério de verdade alcançado
através da coerência. Organicistas tem uma visão de mundo nas quais
eventos e/ou fenômenos são integrados, como um organismo que é vivo,
cresce, e muda, sendo que a verdade é obtida através de um sistema de
crença que com o seu desenvolvimento abarca mais eventos e/ou
fenômenos, levando uma completa e absoluta compreensão.
Tal qual mecanicistas, organicistas consideram todos os fatos do
mundo interconectados, todavia diferente dos mecanicistas, os
organicistas não consideram o sistema total (o universo) como uma mera
coleção de partes, mas sim enquanto um sistema na qual as partes só fazem
sentido se relacionadas ao todo.
O fluxo é uma característica intrinsecada do sistema orgânico, de
tal forma que os organicistas aceitam o novo e a mudança enquanto
naturais, e que a estabilidade e a constância devem ser estudados e
explicados.
Exemplos de empreendimentos de pesquisa baseadas na metáfora
do organicismo podem ser vistas nas teorias desenvolvimentais da
aprendizagem e psicologia, como o trabalho de Piaget, o qual é baseado
em estágios de desequilíbrio e equilíbrio.

43.1.4 Contextualismo

Para a hipótese contextualista, o evento histórico, enquanto


experienciado intuitivamente, durante o processo, e em um contexto
específico, envolve uma ação específica, bem como atores/agentes
específicos que formam a analogia básica do contextualismo.
De acordo com Pepper, um evento histórico, real, em sua
atualidade; é um evento dramático e dinâmico, tal como um “ato”, o qual
tem seu devido contexto simbólico, dado. Colocado de outra forma, atos
ou eventos são intrinsecamente complexos e compostos de diversos
padrões e atividades inter-relacionadas, continuamente mudando.
A analogia que Pepper relaciona ao contextualismo, é aquele
referente ao de uma “trama” dentro de um dado livro, havendo
“incidentes reais”.
532 Ressonâncias filosóficas - Artigos

Sistemas contextuais da filosofia podem ser vistos na filosofia de


Willian James, considerado por Pepper como um pragmatista, o qual
assume que o evento e/ou fenômeno do universo por ser compreendido
através do reconhecimento de que todos os eventos são únicos e devem,
de tal forma, ser relacionados ao contexto específico na qual se busca
compreender um dado fato, considerando que tal fato tinha uma outra
forma antes de ser estudado, e que após estudado pode assumir ainda
outra forma, como num fluxo de um rio.

43.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de Pepper poder ser considerado um estudioso que tratou


de assuntos que possuem um certo valor para a reflexão do conhecimento
e prática, o pensamento de tal autor não foi perseguido ou mesmo
reconhecido por grande parte dos filósofos de sua era. Pode-se levantar a
hipótese de que tal não-aceitação pode estar relacionado ao tempo em que
o autor expôs suas ideias, quando a maioria dos estudiosos dos E.U.A.
começaram a seguir uma filosofia analítica “britânica” no que pode ser
retratado enquanto filosofia Weltanschauung.
Pode ser considerado que Pepper, em seu livro World Hypothese,
tentou corrigir e contextualizar linhas de pesquisa do pragmatismo, em um
momento histórico em que o pragmatismo estava perdendo espaço para
o positivismo lógico (Stroud, 2015).
O pragmatismo de Pepper pode ser caracterizado enquanto
metafísico ao buscar soluções para o processo cognitivo humano e a
diversidade da experiência humana em um nível individual.
Pepper, assim como outros autores pragmatistas trabalharam a
questão de como o mundo do senso comum é refinado em conhecimento
criticável, e World Hypotheses foi seu livro escrito para tratar sobre
características que o autor considerou relevante, uma vez que de
Aristóteles até Hegel é possível observar que existem diferentes visões
para lidar com o mundo, no entanto, como Pepper observou, “fatos
científicos” são influenciados (em sua “base”) pelas hipóteses de mundo,
como o autor demonstra em seu livro.
Para o autor, ao se atentar para estas visões de mundo é possível
nos orientar no processo de explicação e análise dos detalhes do “fato”,
uma vez que, dependente da hipótese de mundo que um estudioso segue
é possível indicar quais outros “fatos” vão diretamente corroborar com
uma dada afirmação com precisão ou abrangência, através do que Pepper
Uma introdução à filosofia... 533

já tratou como corroboração estrutural.


As preocupações de Pepper expostas em World Hypotheses
implicam em uma tentativa de relacionar uma ontologia junto a uma
epistemologia a partir de uma visão metafísica ao assumir o papel
compreensivo das hipóteses de mundo.
Pepper identifica quatro formas relativamente adequadas de visões
de mundo e combate formas inadequadas, e.g. o dogmatismo e o
ecletismo, estabelecendo assim bases/padrões aceitáveis relacionadas a
racionalidade lógica, criticidade e evidências (corroborativas),
considerando que as formas inadequadas se fecham contra um dialogo
(dogmatismo) ou transformam um dialogo em algo confuso (ecletismo).
Outra visão que o autor considera enquanto infrutífera é o
ceticismo, salientando que uma posição ceticista, que coloca tudo em
dúvida, pode ser também uma forma dogmática de observar o mundo, se
posicionando (Pepper) enquanto um pragmatista em relação a verdade,
onde aquilo que demonstra um suporte e oferece utilidade ou traz
benefícios para o empreendimento de acumulação e desenvolvimento do
conhecimento é reconhecido enquanto verdade.
O caminho do meio para Pepper, entre o dogmatismo e o
ceticismo, é sua concepção de metáfora raiz ao tentar oferecer uma
compreensão do desenvolvimento do conhecimento a partir de sua base,
argumentando que pode-se retroceder toda a evolução de um dado
conhecimento a uma experiência humana mais “básica” a qual serve para
iluminar o caminho da compreensão de fatos e/ou eventos mais
“complexos”, tendo assim uma função orientadora do conhecimento.

REFERÊNCIAS

CAMBRIDGE Dictionaries Online. Disponível em:


<http://dictionary.cambridge.org/>

DILTHEY, W. Selected Works. Vol. IV: Hermeneutics and the Study of


History. Eds. Rudolf A. Marrkkreel & Frithjof Rodi. Princeton, NJ:
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534 Ressonâncias filosóficas - Artigos

PEPPER, S. C. World Hypotheses: A Study in Evidence. Berkeley, CA:


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Charles Scribner’s Sons. 1937.

_______. The Basis of Criticism in the Arts. 5th ed. Cambridge, MA:
Harvard University Press. 1963.

SHUSTERMAN, R. The Invention of Pragmatist Aesthetics:


Genealogical Reflections on a Notion and a Name. In Practicing Pragmatist
Aesthetics: Critical Perspectives on the Arts, ed. Wojciech Malecki, 13–32.
New York: Rodopi, 2014.

STROUD, S. R. Pragmatism, Pluralism, and World Hypotheses: Stephen


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No. 3, pp. 266-291, 2015.

WALSH, W. H. World Hypotheses: a Study in Evidence. By Stephen C.


Pepper. (University of California Press. 1942. Pp. xiii + 348. Price not
stated.). Philosophy 20 (75):86-. 1945.
XXXXIV

UNIDADE PSICOFÍSICA E AUTONOMIA DO


PENSAMENTO EM ARISTÓTELES:
ingano sobre De Anima III 4-5 e Castoriadis sobre a imaginação

Libanio Cardoso*

Um problema persistente e interdisciplinar, alcançando as ciências


humanas e biológicas, é a relação entre atividade psíquica e atividade
fisiológica. Em Aristóteles, notadamente no seu tratado sobre a psykhé
(“alma”), conhecido pelo título latino De Anima, a unidade psicofísica é
pensada a partir do hilemorfismo – a junção entre forma e matéria que
compõe a unidade de um sínolo1. O hilemorfismo, por sua vez, atende a
uma teleologia geral – a formação constitutiva a partir do fim mais próprio
de cada entidade – e enfrenta um dilema, a saber, a autonomia do
pensamento, que parece vinculado a estímulos externos, as afecções do
corpo ou afecções em geral. Sem “imagens”, isto é, sem a faculdade que
transforma tais afecções em signo imagético para operação do
pensamento, este não tem “material” com que operar. Esse problema do
hilemorfismo, concernente à forma específica do ser vivo humano, leva a
que, por vezes no tratado aristotélico mesmo, pareça não haver,
propriamente, nenhuma autonomia do pensamento. Daí perguntarmos
como o início da filosofia ocidental se propôs o problema da existência,
origem e autonomia do “puro pensar”, diante da evidência da realidade
psicofísica. Examinar este problema à luz de alguns comentários ao
tratado aristotélico De Anima é o propósito principal do presente escrito.
Mas que significa essa questão? Por que o tratado de Aristóteles sobre a
“alma” é o texto à base da investigação?
Em primeiro lugar, deve-se dizer que o De Anima enfrenta, pela
primeira vez de maneira sistemática, a pergunta concernente a como o
* Professor da colegiado de filosofia da Unioeste. O presente artigo é o primeiro resultado
da orientação e pesquisa (PIBIC) conduzidas na UNIOESTE junto ao estudante
Matheus Gabriel de Oliveira, no período 2016-2017. Agradeço ao estudante o auxílio na
pesquisa bibliográfica e pelas discussões que resultaram tanto neste escrito quanto no
trabalho a ser em breve apresentado no EAICTI (Cascavel, PR, 2017). Agradeço também
à PROGRAD-Unioeste, que viabilizou a bolsa de pesquisa para o estudante.
1 “Sínolo” é o termo para o ente composto de matéria e forma.
536 Ressonâncias filosóficas - Artigos

corpo pensa, ou melhor, como a efetividade física de um corpo exposto a


afecções “relaciona”, no caso humano, sensibilidade e razão. Não há, de
fato, segundo tais critérios – “sistematicidade” e formulação hilemórfica –
, tratado semelhante anterior ao De Anima, e todos os posteriores – até o
advento da Psicologia e da Medicina modernas, e mesmo nelas –
dependem de alguma maneira das descobertas do Estagirita.2
O significado da questão sobre como o puro pensar é
compreendido em meio à efetividade psicofísica repousa, por sua vez,
sobre o seguinte dilema: à primeira vista, somente se aceitarmos a hipótese
de que algo se possa pensar sem o corpo, sem o concurso das sensações,
sem um mundo exterior que de algum modo se ofereça à percepção,
poderemos defender, em certa medida, a plena autonomia do psiquismo
humano, ao menos no que concerne ao pensar puro (isento de
determinação pela sensibilidade). A sobrevivência da alma não é a única
tese que podemos reconhecer atrelada à hipótese anterior; mesmo a
eternidade da alma, isto é, sua precedência relativamente à corporeidade –
como é o caso em Platão – pode ser defendida. Não é nossa questão
discutir tais teses. Para nós, é relevante que elas não expliquem o modo por
que o corpo, ou a “efetividade da corporeidade”, se faz presente e
“necessário” para o pensamento, e em que medida, nem expliquem em
que consiste, afinal, a alma eterna ou imortal. Além disso, o que significa
“pensar”? Como propriamente pensa um ente que é “também” corpo? Em
que medida o corpo determina o pensar? Em que medida o pensamento
puro “existe”?
Em se tratando de uma questão que permite muitas orientações
ainda que delimitada pelo foco no De Anima, concentraremos o presente
artigo no exame de uma questão, suscitada pela leitura do comentário de
Marco Zingano ao Livro III da obra aristoélica, nos seus capítulos quarto
e quinto: Razão e sensação em Aristóteles. Um ensaio sobre De Anima III 4-5
(ZINGANO, 1992), a qual mobiliza toda a rede conceitual do tratado e
justamente apontando para o foco de nossa investigação.3 Em seu
renomado comentário, o autor se pergunta como entender a afirmação de
que o pensar é “impassível” (enquanto tal, não é um padecer afecções e
alterações correspondentes, mas permanece como é e se distingue pela
pura atividade, produção, impassível, simples, sem mistura). Ora, se sentir

2 Para além dos pontos que mencionamos, Frede (in NUSSBAUM & RORTY, 1992, p.
93) afirma que o estudo da concepção aristotélica de alma “help us to identify more
clearly some o four preconceptions concerning both the mental and the physical”.
3 De fato, a descoberta dessa passagem se mostrou o ponto central da pesquisa.
Uma introdução à filosofia... 537

é ser afetado, padecer, aquele que sente experimenta uma alteração;


pensar, porém, mesmo para distinguir-se frente à sensação, não se pode
restringir a mera alteração promovida por alguma coisa sentida, i.é., pela
percepção. Como, porém, a razão se liga à sensação e em que sentido pode
ainda ser produtiva? Pode pensar aquele que nada sente? Há pensamento
sem corpo? Pode, por outro lado, propriamente pensar aquele que
necessariamente “sente”, por ser uma realidade fisiológica? Que significa
a efetividade psicofísica humana, restritamente para o processo do
pensamento? Tais são as questões que abordaremos, de modo breve,
acompanhando o comentário mencionado, até o ponto em que outro
problema, desta vez suscitado por Castoriadis (2002), puser em questão a
hipótese que seguíamos, ao ressaltar, no texto aristotélico, a função e o
sentido da imaginação.4 Zingano propõe que toda a questão reside em
como o pensamento virá a pensar (ativamente, no futuro) mantendo como
tal tudo que foi representado (no passado, passivamente, mediante
recepção sensível e operação imaginante); donde a afamada distinção entre
parte passiva e produtiva do intelecto, que se adverte no De Anima. Tudo
isso pressupõe que “nunca se pensa sem fantasma” (sem fantasia, sem
imagem, dependente, em última instância, de alguma impressão sensível)
– com o que a unidade psicofísica é uma tese, mas o pensar puro é
problemático. Castoriadis ressalta a dificuldade de compreender,
justamente, o modo como o intelecto puramente produtivo poderia
“formar” as definições essenciais dos entes e ser ainda “produtivo”, ao
mesmo tempo em que é difícil compreender de que modo as
essencialidades (os Universais) reconhecidas no pensamento produtivo
puro a propósito do que foi dado pela imaginação, a partir da sensibilidade,
guardariam uma relação com a coisa mesma da afecção inicial. Onde está
a essência que o pensar “produz”? Na coisa? Nele mesmo? Mas como?

44.1 O PROBLEMA DO COMENTÁRIO DE MARCO ZINGANO

O tratado aristotélico De Anima investiga entes que estão situados


entre os “naturais” (ou “físicos”) – aqueles que têm em si a capacidade de
se moverem ou serem movidos, em sentido amplo; a distinção dos entes
aí investigados está em serem determinados por uma forma específica, a
psykhé (alma). Esta é a “forma de um corpo vivo em potência”. O sentido

4O presente artigo explora a parte relativa ao texto de Marco Zingano; em um artigo em


vias de completar-se, discutiremos as teses de Castoriadis e de outros comentadores,
como Schofield, Berti e outros.
538 Ressonâncias filosóficas - Artigos

de “forma”, na definição, é o de “ato”; a alma atualiza, efetiva, a potência


de viver. Essa atualização, por sua vez, só pode ser vista nos diferentes
modos por que se observa o viver mesmo, a saber, o das plantas, o dos
animais em geral e o do ser humano – precisamente os que pautam uma
divisão geral do tratado. A alma, enquanto forma, não é, pois, nem uma
substância separada5, nem é a mente humana6, como parte isolada de um
corpo; enquanto princípio do ser vivo em ato, ela tem mais de um significa,
ou modo de acontecer, justamente à medida que se dão diversos modos
de vida. Nutrição e sensibilidade constituem o modo mais básico aquele
partilhado pelas plantas; a locomoção caracteriza os animais e geral; o
pensamento, porém, caracteriza os seres humanos. É relevante ressaltar
que cada modo de ser vivo inclui, a partir do último citado, as
características dos demais, sendo o ser humano, portanto, capaz de
locomoção, de nutrição (que inclui e reprodução) e sensível. Esta é a linha
mais visível do tratado aristotélico, que se encontra em qualquer manual.
Nossa questão é muito específica, porém. Se ser a forma de vida mais
ampla distingue a psykhé humana mediante o pensamento, e se isto não
exclui – ao contrário, inclui – um corpo vivo sensível, pode-se perguntar
em que consiste a diferença humana, visto que se deve estabelecer com
firmeza de que modo seu caráter psicofísico específico se efetiva. Dizer
que o psicofisiologismo especificamente humano reside no “pensamento”
é insuficiente, à medida que (i) os animais têm imaginação, isto é,
representam de algum modo o que percebem pelos sentidos corpóreos e
(ii) nunca se pode pensar sem imagens, vale dizer, parece que o
pensamento é um tipo de sensibilidade, visto que depende da oferta de
percepções, mediadas pela imaginação. Resta, pois, como exigência,
decidir em que medida há algo que propriamente se distingue como o
pensamento, que ou bem guarda autonomia frente ao percebido, ou bem
permanece indistinto frente ao psicofisiologismo animal mais geral.
É precisamente neste ponto que encontramos, na parte final do
comentário de Marco Zingano a De Anima III 4-5 (ZINGANO, 1998) a
posição do problema mediante uma bem articulada interpretação do texto.
Trata-se do seguinte. Necessariamente, o pensamento humano depende
da sensibilidade, mediante a operação da imaginação. Esta se caracteriza

5 “[…] the soul is that in virtue of which an animate thing is alive; it is also characterized
by his rejection of the assumption that the soul is an entity distinct from the body it
animates […]”. FREDE, in NUSSBAUM & RORTY, 1992, p. 103).
6 “Evidently, I could not translate it as ‘mind’, since my ambition is to contrast ‘mind’

and ‘psykhe’ “. WILKES, in NUSSBAUM & RORTY, 1992, p. 109).


Uma introdução à filosofia... 539

por reter como imagem a realidade dos entes que impressionam a


sensibilidade, porém sem a matéria. Ocorrem, nesse processo, todavia,
dois problemas: o primeiro é que o intelecto se torna, assim, passivo,
dependente da imaginação; o segundo é que qualquer autonomia
intelectual que possa distinguir a forma humana de psicofisiologismo terá
de ocorrer em relação com essa passividade, mas de modo ativo. Eis,
precisamente, o que se deve caracterizar, sob pena de acarretar um desastre
conceitual para o tratado.
Ora, neste ponto concentramos nossa atenção e, simultaneamente,
localizamos a discussão em Razão e sensação em Aristóteles (ZINGANO,
1998). Com efeito, o comentador afirma que, neste ponto – a exposição
sobre o modo como o pensamento, ou intelecto, guarda autonomia
produtiva em meio a sua dependência da imaginação, e, por ela, da
sensibilidade – “Este é o ponto mais alto que Aristóteles reconhece e que
pode reconhecer para o intelecto”. (p. 168). Vamos ao problema:

[...] após ter mostrado que a razão é distinta da sensação, Aristóteles


evoca uma dificuldade, formulada em 429b 23-26, que estaria naseada
no reconhecimento de que o pensar é uma certa afecção, ei tò noein
páskhein ti estin (429b 24-25). Isto pode acarretar [...] na aceitação da tese
de que o pensar é um certo sentir. (p. 160).

Onde reside o problema? Aristóteles leva em conta a distinção de


Anáxogoras sobre o pensar, a qual o afirmava como simples, impassível
(não passível de sensação) e sem nada e comum com outra coisa (p. 161).
Mas, a ser este o caso, como poderia o pensar ser certa afecção, isto é, ser
afetado justamente por aquilo que ele deve pensar (os entes)? Como pode
“o intelecto vir a pensar” (p.161) se for impassível? Por outro lado, como
será autonomamente pensamento, se depende de afecção, sendo, pois,
“uma certa afecção”?
Zingano analisa brevemente uma tentativa de solução engenhosa,
a de Franz Brentano, que recorre à idéia medieval da alteratio corruptiva sed
non perfectiva: o pensar se deixa alterar no sentido do aperfeiçoar-se, porém
não no de corromper-se. Assim como a sensação se deixa afetar (e é
precisamente isto) pelo sensível sem corromper-se, o intelecto se deixa
afetar pelo inteligível (retirado pela imaginação à sensação? – este ponto
fique em aberto) sem corromper-se. De fato, em De Anima II 5, Aristóteles
afirmara que a sensação é alteração não corruptiva. O problema, porém,
aponta Zingano, está em tomar um aperfeiçoamento como alteração – e
o exemplo escolhido é esclarecedor: se apomos a uma casa um telhado,
540 Ressonâncias filosóficas - Artigos

nós a aperfeiçoamos, no sentido de completá-la rumo a sua forma própria,


porém isto não é uma alteração. Se o pensamento é um aperfeiçoamento,
não pode ser alteração.
Vejamos em que sentido Aristóteles aceita a tese de Anaxágoras
sobre o intelecto. Este é dito “simples, impassível e nada tem de comum”
(p. 162). Simples significa, para o Estagirita, neste caso, (i) o pensar é uma
atividade; (ii) a impassibilidade tem seu sentido estrito conservado; (iii) o
nada ter de comum indica nada ter de comum com outra coisa, ou seja,
que é sem mistura. O problema surge, pois, daquela comparação antes
formulada entre sensação e pensamento: “como então se pensará, se o
pensar é uma certa afecção? Pois é mediante algo comum a ambos que um
parece agir, o outro sofrer” (DA, 429b 24-26, apud ZINGANO, p. 162).
A estratégia do comentador brasileiro reside em dar valor ao tempo verbal
escolhido por Aristóteles na formulação acima, para daí retirar uma
distinção intraintelectiva capital.
Segundo Zingano, o problema não reside propriamente em que o
pensar seja um sentir, mas em que, dependendo do sentir, ainda assim
venha a ser pura produção. Isto, porém, deve ser entendido da seguinte
maneira: uma vez que o intelecto é afetado pela sensação e chega a
determinado conjunto de conhecimento ou informação, os quais
poderiam ainda ser determinados como peculiares a todos os animais e
como um certo ser afetado, como poderia (no futuro) o pensamento valer-
se daquilo que afetou, para então vir a pensar puramente? Como seria
possível – é assim que Zingano entende o raciocínio aristotélico – que ao
pensar não tivéssemos que ser novamente afetados pelo pensado? E, de
fato, não precisamos. O pensar “puro” opera sobre uma base de
conhecimentos, certamente oriundos de nossa sensibilidade, porém
dispensando o concurso de uma nova sensibilização. Essa disponibilidade
do pensado ou inteligido permite um inteligir próprio, distinto e ele, sim,
independente de afecção. É isto que permite a Aristóteles distinguir u
intelecto passivo (ligado à sensibilidade) do intelecto ativo (produtivo). E
isto mostra, também, que a afirmação de que a razão é uma certa afecção
não diz mal, mas não diz tudo: porque é uma parte do intelecto que é
afetada, tão somente.
No capítulo seguinte do De Anima é que Aristóteles chegará, por
fim, àquele “ponto mais alto” de sua doutrina, conforme afirmava
Zingano. Trata-se da afirmação aristotélica de que o intelecto “por um
lado, torna-se todas as coisas, e, por outro, produz todas as coisas” (DA,
430ª 14-15, apud ZINGANO, p. 168). Ora, com a distinção entre intelecto
Uma introdução à filosofia... 541

passivo e ativo-produtivo, pode Aristóteles fundar o modo de ser integral


desse estar vivo pensante: tornar-se todas as coisas significa poder receber
todas as coisas mediante a sensação, passivamente; produzir todas as
coisas significa poder pensá-las, depreendendo do primeiro momento os
universais e operando com eles o que propriamente se nomeia
conhecimento humano.
Com isso, o psicofisiologismo aristotélico atende a alguns de seus
conceitos centrais: pelo hilemorfismo (a junção entre matéria e forma na
constituição dos entes, e particularmente na do ser humano), mostra que
a corporalidade é necessária, ainda que não suficiente para o puro pensar,
por possibilitar o pensamento passivo7; pela teleologia, mostra que, sem
uma determinação do fim próprio especificante do puro pensar, o
psicofisiologismo humano seria psicofisiologismo meramente animal, por
não corresponder ao fim próprio do pensar produtivo (razão,
universalidade); mostra que a psykhé ou alma não é substância, mas a
atividade mesma de inteligir, que tem uma parte receptiva e potencial (daí
não precisarmos pensar produtivamente todo o tempo) e uma parte ativa
e produtiva, nisso tudo se conformando um modo de vida específico
(humano); o inteligir (aqui, o noûs), por sua vez, identificou-se a essa
atividade compreendida em seu duplo aspecto.

44.2 UMA SUGESTÃO DE CASTORIADIS SOBRE O PAPEL DA


IMAGINAÇÃO

Acompanhando os esforços de Zingano sobre a especificidade


desse modo da vida que especifica o humano, passa-se talvez por alto a
função da imaginação, enquanto atividade da psykhe responsável por
formar as “fantasias”, isto é, as imagens sem matéria daquilo que é dado à
sensibilidade, e unicamente a partir das quais o pensar puro poderá
propriamente inteligir. “Na ausência de fantasia, nada pode ser pensado.
Para pensar os inteligíveis é preciso contemplar alguma fantasia”, diz
Castoriadis (1987, p. 372). Tentemos entender melhor a imaginação.
Distingue-se o imaginar do sentir porquanto este último se
determina por ato e potência, dá-se sempre e é sempre verdadeira,
enquanto que o primeiro independe da atualização de uma potência, nem
sempre ocorre e nem sempre é verdadeiro. Assim, um ser humano tem
sensação todo o tempo, e suas sensações, enquanto sensações, são

7Cf. a ênfase de Charles Lefevre quanto à unidade hilemórfica, em LLOYD & OWEN,
1975; especialmente p. 35-36.
542 Ressonâncias filosóficas - Artigos

verdadeiras, ocorrendo pela atualização de alguma potência, p.ex., pela


visão de uma cor que impressionou a potência dos olhos. Já o ser humano
que imagina um objeto colorido pode nada imaginar, em algum estado de
transe, não atualiza alguma potência (sobretudo não ligada a algum órgão)
e pode representar-se algo falso. Ora, justamente a falsidade da imaginação
é ligada, em Aristóteles, à distância que o imaginado se encontra de alguma
sensação e, mais ainda, ao modo da sensação que gera a fantasia. Há
sensação dos sensíveis próprios (um sabor como o amargo, uma cor), da
coisa que acompanha o sensível próprio (o alimento que é amargo, p.ex.)
e dos sensíveis comuns, como movimento e grandeza. No primeiro caso,
a sensação dos sensíveis próprios, é mínimo o erro da imaginação; no dos
outros dois ele depende da distância relativa ao objeto que causou a
sensação. Embora estejamos reconstruindo o movimento do texto
aristotélico, nós o fazemos mediante a reconstrução de Castoriadis (1987),
que a conclui afirmando:

Assim, a imaginação aparece, ao término desta discussão, como


inteiramente dependente da sensação, homogênea a esta e por ela
causada [...]. Ela aparece como o par supérfluo da sensação e, tal como
apresentada aqui, parece possuir uma única e estranhíssima função:
multiplicar consideravelmente as possibilidades de erro inerentes às
sensações do objeto comitante e às dos sensíveis comuns (p. 361).

Estamos interessados na ligação psicofisológica humana, isto é, no


pensamento humano enquanto (i) é puro pensamento, impassível,
produtivo e (ii) que ocorre ligado a um corpo e como o modo mesmo da
vida desse corpo. Se, porém, inteligir depende de imaginar, isto é, da
formação das fantasias a partir da sensação, e se, como afirma Castoriadis,
a imaginação apenas faz “multiplicar consideravelmente” possibilidades de
erro, então em que sentido e medida ela pertence ao pensar e em que
medida e sentido o pensar consegue a verdade?
Recordemos agora as conclusões de Marco Zingano: vir a pensar
ativa/produtivamente depende de um conjunto de intelecções formadas
mediante certa passividade, sem, porém, ter que percorrer novamente toda
a sensação que formou no intelecto passivo o conhecimento inicial. A
imaginação parece ser o nexo entre sensação e intelecto, mas também
entre intelecto passivo e intelecto produtivo. Seu estatuto é ambíguo, ainda
que seja o mais das vezes associada, por Aristóteles, ao intelecto. Do que
vimos, parece simples afirmar que a parte passiva do pensamento
corresponde à imaginação, ou é onde ela atua e a que fica ligada, enquanto
Uma introdução à filosofia... 543

que a parte ativa produz a partir das imagens reunidas pelo intelecto
passivo. Todavia não está claro, com esse tratamento dos conceitos, que a
imaginação não pode ser uma passividade, um recipiente, e por isso, o
intelecto dito passivo é eminentemente ativo. Sua ação consiste sem
separar, do sensível, o que não é matéria, bem como em distinguir
“aspectualmente” momentos do assim separado, como que perspectivas
categoriais do mesmo. Esse problema não havia sido tocado pelo
comentário de Zingano. Vejamos aonde nos leva a “descoberta da
imaginação”.
Imaginar é, em Aristóteles, separar do que foi dado pela
sensibilidade o que não é matéria, e considerar, p.ex., um conjunto de
objetos percebido à minha frente como sendo múltiplo, quantitativamente
(são três lápis), semelhante na coloração (são lápis azulados),
substancialmente oferecendo-se como lápis. A fantasia, i.é., a imagem
separa quantidade, qualidade e substância da matéria junto à qual
unicamente se dão e podem ser percebidas; em separando, permite a
concepção da coisa ou estado de coisas em sua unidade, por composição
– a imaginação permite, pois, a síntese mediante a análise, mas também
permite o inverso, já que somente a imagem una, eliminando a matéria,
fundamenta o dividir dos momentos para toda síntese. Vê-se claramente
que, apesar de toda a obscuridade do processo mesmo por que se dá tal
separação, ainda estamos no âmbito preparatório para que a distinção dos
momentos “formais” (as perspectivas categoriais imaginadas do ente
percebido) ponham-se à disposição de um poder de elaborá-las, conjugá-
las, dividi-las já sem a imaginação prévia, ligada à sensibilidade: formação
de juízos e de saber universal. Porém, resta um problema: Aristóteles
afirma “Para a alma capaz de pensar, as imagens subsistem como
sensações percebidas. [...] É por isso que a alma jamais pensa sem imagem”
(DA, 431ª14-16). Jamais – escreve Aristóteles, e ao final do tratado
(estamos em pleno Livro III, 7, depois, portanto, dos trechos analisados
por Zingano). Ora, se o intelecto, ou alma, ou pensamento, jamais se dá
sem imagem, sem fantasia, a intelecção dita “pura”, aquela que se ergue a
partir das imagens é ainda, de algum modo, passividade, uma vez que as
imagens são dependentes da sensação, são como que “sensação sem
matéria”? Mais grave: se a compreensão de um indivisível como a
substância ou forma (eidos) de um ente separa-a da matéria e a
compreende como fora do tempo (as formas não são modificadas
temporalmente) o que, precisamente, resta de imagem aí? Observo a roda
de um carro que passa. A roda é no tempo, a passagem do carro obedece
544 Ressonâncias filosóficas - Artigos

a uma sequência cronológica. Depreendo dali a quantidade: uma roda;


depreendo a substância: roda; depreendo o formato circular, separando da
roda a figura ‘círculo’, que só se pode encontrar junto a alguma matéria e,
nisso submetida a tempo. Mas agora roda, quantidade uma e circularidade,
imageadas, isto é, separadas na fantasia, não se submetem a tempo, pois o
círculo enquanto tal nada tem a ver com o desgaste de uma roda material,
e assim como a unicidade quantitativa etc. Poderíamos julgar que esses
puros abstraídos são o que a imaginação entrega para o pensamento
produtivo formular seus juízos universais. Mas Aristóteles afirma que
jamais – nem mesmo no pensamento produtivo – deixa de haver
imaginação, imagem. Estará ele afirmando que só posso pensar a partir de
imagens? Isto não é diferente do que Zingano propunha, mesmo sem
conceder função conceitual relevante para a imaginação – o que reforça
seu caráter aparentemente subordinado, de “passagem”.
Castoriadis, porém, propõe o problema com que queremos
concluir, concedendo-lhe um papel para nossas questões referentes ao
psicofisiologismo humano. O problema reside no ‘esquematismo’ (cf. p.
368 ss.) da imaginação aristotélica, ou seja, no modo como pertence
necessariamente e continuamente à imaginação a unificação de razão
(pensamento) e sensação. Se a imaginação fosse um degrau para
passarmos da sensação a intelecções puras, a unidade e a consecução
(unificação) do pensamento humano mesmo procedendo de um corpo,
não seriam mais justificadas. O pensamento seria uma elucubração a partir
de dados epistêmicos cada vez mais numerosos, mas ela mesma, a
intelecção, jamais encontraria sentido e unidade e se desfaria mais
rapidamente que a memória das sensações. Numa palavra: se a imaginação
apenas separasse as formas atemporais dos entes hilemórficos,
entregando-as ao pensamento produtivo, este produziria fora do tempo,
nada podendo entregar àquele corpo submetido à ordem do mundo, que
é temporal ou que só pode ser experimentada temporalmente.
Assim, é decisivo para o psicofisiologismo humano, para a unidade
psicofísica humana, que a imaginação, enquanto capacidade de distinguir
o atemporal do temporal, lance ao mesmo tempo, e sempre, uma imagem
do próprio tempo para que o intelecto produtivo não se perca em suas
concatenações. Ou seja, a imaginação deve poder separar do tempo
sucessivo aquilo que é a forma do tempo, a unidade atemporal do tempo,
e entrega-a como imagem primeira, juntamente a toda imagem formal,
para que haja propriamente pensamento humano, uno, coeso e capaz de
dirigir um corpo e suas imagens, um corpo no mundo.
Uma introdução à filosofia... 545

44.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estes difíceis problemas nos conduziram à observação de um


novo item para a consideração da doutrina aristotélica sobre a “alma” ou
intelecto: a imaginação. Se, com Zingano, observamos que o pensamento
produtivo é o futuro de uma parte passiva do pensar, que recebia e
separava imagens da percepção sensível, e se esse raciocínio permitia
garantir a unidade psicofísica sem retirar autonomia a um pensamento
puro, as observações de Castoriadis nos levam a um patamar renovado do
problema. Como, afinal, a unidade psicofísica humana é uma “unidade”?
Se o pensamento “puro” é operação universal judicativa que parte de
imagens, decalcadas aos entes hilemórficos, perguntamos: Como tal
operação universal não se perde na atemporalidade? Como consegue
coordenar as diversas perspectivas categoriais sob um eixo de retorno?
Como consegue operar, mediante formas sem tempo, sobre o mundo
temporal de que foram destacadas as imagens sem as quais o pensamento
jamais subsiste? Como o pensamento puro não enlouquece, por
desagregação, “pensando” como fora de tempo o que só se dá no tempo?
A sugestão de Castoriadis, como vimos, é de que a imaginação
fornece uma imagem atemporal do tempo – imagem da unidade indivisível
do tempo que é potencialmente divisível ao infinito. Com isso, se a
sugestão de Zingano era a da firme autonomia do intelecto humano como
forma própria de viver, Castoriadis propõe a relação necessária da vida
humana, unidade psicofísica, com o tempo e a imaginação, dependendo
desta última, porém, a unificação entre o tempo e o intelecto – sem o que
seríamos corpos sem “alma”, como máquinas, fornecendo sensações para
mentes formularem abstrações e raciocínios sem unidade, continuidade,
consecução e efeito histórico. E isto nada teria do que chamamos de vida
humana”. Explorar a sugestão de Castoriadis e pô-la à prova diante de
comentários sobre o papel conceitual da imaginação no De Anima deve,
pois, constituir o passo futuro de nossa pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006.

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Lucas Angioni. Coleção Textos Didáticos, n. 38, janeiro. Campinas:
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Gusmão Verçosa Filho. São Paulo: Loyola, 2011.

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Uma introdução à filosofia... 547

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548 Ressonâncias filosóficas - Artigos
XXXXV

VERIFICAR A IGUALDADE:
as ocupações estudantis pensadas à luz da filosofia de Rancière

Felipe Pereira Gomes*

Dentre os pensadores contemporâneos, Jacques Rancière


estabelece o jogo, que aqui será apresentado, entre acaso, igualdade e
política. Desse jogo nasce a ideia de que o governo político tem um
fundamento que o transforma em uma contradição: a política é o
fundamento do poder de governar na ausência de fundamento; ele só é
legítimo quando é político e é político quando repousa na ausência de
fundamento.
Rancière, ao escrever sobre a luta dos operários franceses, no livro
A Noite dos Proletários: arquivos do sonho operário (1988), se depara com Joseph
Jacotot, revolucionário francês exilado nos países baixos após a
restauração da monarquia francesa, onde foi convidado a lecionar. A partir
de tal achado, Rancière escreve o livro intitulado O mestre ignorante: cinco
lições sobre a emancipação intelectual (2005) contando as aventuras deste
revolucionário professor e seu excêntrico método de ensino baseado no
princípio da igualdade das inteligências.
Jacotot teve a missão de lecionar a língua francesa aos alunos que
só falavam holandês, língua que ele não dominava o holandês. Tudo o que
Jacotot aprendera sobre teorias pedagógicas não poderia funcionar nessas
condições, era preciso, então, inventar uma outra relação pedagógica. Até
o momento, apenas existia nele a vontade de ensinar e em seus alunos a
vontade de aprender. Mas isso bastava? Com a ajuda de um intérprete,
atribuiu aos alunos a tarefa da leitura do livro Telêmaco, de Fénelon, em
versão bilíngue (francês-holandês), a fim de que aprendessem a língua
francesa. Após encontrar uma coisa em comum (o livro), e recorrer a este
improviso, percebeu que os alunos obtiveram avanço. Mesmo sem sua
explicação, os alunos aprenderam usando apenas como ferramenta suas
inteligências e vontades. Buscaram as palavras francesas correspondentes
àquelas que eles conheciam da sua língua materna; observaram,

* Bolsista PIBIC/CNPq; e-mail: felipdegomes@gmail.com


550 Ressonâncias filosóficas - Artigos

compararam e combinaram palavras; com atenção formaram “frases


francesas”, “frases de escritores” (RANCIÈRE, 2005, p. 20).
Em oposição ao “princípio do embrutecimento”, no qual o
professor é o detentor do saber e o passa ao aluno por meio de
explicações, às quais fazem o aluno ser dependente de um mestre
explicador para continuar a aprender, surge o “princípio da emancipação”.
Ao evidenciar ser possível ao aprendiz aprender qualquer coisa que seja,
desde que exista vontade e uma inteligência atenta, Rancière, por meio de
Jacotot, afirma uma real capacidade dos indivíduos, uma igualdade das
inteligências que é anterior à desigualdade vivenciada na sociedade e na
própria escola.
A partir desta ideia de igualdade, que não fica apenas restrita ao
ensino, veremos que ela pode ser verificada na sociedade e, de modo
especial, na política. Porém, isso não parte de Ranciére, mas é uma questão
muito anterior, vivida na Grécia antiga e reconhecida por Platão. Trata-se
do método do sorteio por meio do qual todos possuem a mesma condição
de obter o poder, basta ser escolhido pelo deus acaso. Neste método
subjaz o princípio de igualdade que se sobrepõe ao poder de nascimento,
de riqueza, de força e de sabedoria. Pelo sorteio, cabe ao acaso decidir
quem chegará ao poder; mesmo que a pessoa sorteada seja detentora de
riquezas não são elas que lhe fazem ser governante, mas simplesmente o
acaso.
Platão (2010), no diálogo As leis, ou da legislação e Epinomis, apresenta
sete direitos de autoridade e obediência. Sendo os quatro primeiros de
ordem natural por nascimento, o quinto e o sexto pela natureza e o sétimo
pela sorte. O 1° é o poder dos pais em relação aos seus filhos. O 2° é o do
nobre sobre o não-nobre. O 3° do mais velho para com o mais novo. O
4° é a obediência dos escravos aos seus senhores. O 5° é o poder do mais
forte sobre o mais fraco. O 6° é dado a quem possui o mais importante
título. Por fim, o 7°, que é o favor dos deuses e da fortuna, um lance da
sorte.
Deste modo, para se obter o poder, se ignora os seis primeiros
direitos, para se dar lugar ao mais justo: a sorte. Contudo, para governar,
não era exatamente qualquer um da polis o escolhido: sorteava-se 50
membros de cada tribo grega, no total de 10 tribos. Dali saia o “Conselho
dos quinhentos”, responsável pela elaboração de leis e administração geral
da polis; uma espécie de câmara dos deputados, porém com o mandato de
um ano, para que as pessoas não se perpetuassem no poder.
Verificar a igualdade... 551

Quem era sorteado para exercer cargos políticos possuía apenas


um mandato, este poderia ser sorteado novamente somente depois que
todos os outros fossem sorteados. Assim, a pessoa verifica a igualdade
frente a todos os outros, pois sendo rico ou pobre, com estudo ou sem
estudo, pode chegar ao poder da mesma forma. Com tal verificação, quem
está no poder não agirá em favor de si, mas fará o melhor para todos, pois
qualquer um pode o substituir depois, assim, ele precisa garantir um futuro
bom. Portanto, ele cumprirá um bom mandato a todos, para depois viver
um mandato justo, de um outro alguém que o substituirá.
Frente a essa tradição guiada pelo método orientado pelo acaso,
podemos olhar para o nosso país e nos perguntarmos se ele está sendo
justo com a forma de acesso ao poder e se a igualdade democrática
originária está presente ou não. Na atual democracia brasileira, são todos
que podem ocupar o poder são sempre são os mesmos? Claramente
nossos governantes ficam anos no poder, tanto de forma direta, quanto
de forma indireta. Cabe, deste modo, nos perguntarmos mais uma coisa:
vale a pena pensarmos um Brasil com o sistema do sorteio, onde qualquer
um, independentemente de suas riquezas, mas sim de seu caráter e sendo
um cidadão justo poderia alcançar o poder ou devemos confiar na
meritocracia que seleciona os mesmos: os ricos?
Essa reflexão pode ser mais profunda, podemos nos questionar e
pensarmos: eu teria capacidade de governar? Ou, ao menos, eu posso
discutir política e reivindicar meus direitos? Para isso, podemos recorrer a
alguns exemplos, como o ocorrido em 2016: as ocupações das escolas
públicas do estado do Paraná.
Os estudantes experimentaram e mostraram a capacidade de fazer
discussões que dizem respeito a eles, mesmo sobre algo que poderia ser
muito distante de suas vidas singulares. Através de um ato político eles se
fizeram ouvir; mostraram qual era a sua opinião sobre a Reforma do
Ensino Médio (MP746), sobre a Proposta de Emenda Constitucional 055
(a PEC do teto dos gastos públicos), sobre a proposta que tramitava no
Senado e em vários outros espaços legislativos do Brasil, o que se
conheceu por “Escola sem partido”, e tantas outras coisas que implicavam
a política nacional com consequências diretas no presente e na vida futura
de cada estudante.
Defendemos que os atos de ocupação das escolas merecem ser
considerados atos políticos a partir daquilo que Rancière apresenta por
política e polícia. Definida, de um lado, a polícia como o “conjunto dos
processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das
552 Ressonâncias filosóficas - Artigos

coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e


funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” (RANCIÈRE,
1996a, p. 41). De outro, a política se resume

ao conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia pela


inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea. Essa
pressuposição é a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro
ser falante. Essa igualdade, como vimos, não se inscreve diretamente na
ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais
originário do termo: uma perturbação do sensível, uma modificação
singular do que é visível, dizível, contável (RANCIÈRE, 1996b, p. 372).

Tratou-se de política aquilo que os estudantes fizeram ao longo de


2016, pois eles puseram em questão o que fazia “a polícia” ao determinar
o lugar exato que eles deveriam ocupar; uma vez que, apesar de os que
sofreriam as consequências das “reformas” não serem consultados, com
as manifestações e, principalmente, as ocupações das escolas, ganharam
voz em todo o país. Além de questionar as mudanças no Ensino Médio,
que atingiria diretamente os estudantes, estes se revoltaram contra a PEC
55 que congelou, por 20 anos, os investimentos públicos em setores de
suma importância para a população brasileira: investimentos em educação,
saúde, segurança e em serviços de assistência social.
Os estudantes verificaram a inteligência neles presente, e em
qualquer um, na medida em que questionaram a viabilidade das propostas
do legislativo e do executivo: como pode um governo querer mexer na
estrutura de educação querendo transformá-la em período integral, com
aulas teóricas e práticas, se não há espaço suficiente para todos nas salas e
não há local para aulas práticas, como laboratórios, por exemplo? Como
pode ser feita uma mudança que requer altos investimos se ao mesmo
tempo se cria uma PEC que congela os investimentos na educação?
Que melhoria é essa da educação que propõe a retirada de matérias
de suma importância para o desenvolvimento da cidadania dos estudantes,
como filosofia e sociologia; também a exclusão de campos de saber que
auxiliam o desenvolvimento cultural e a livre expressão de pensamentos
na arte, o desenvolvimento desportivo dos alunos capaz de incentivar a
prática de atividades físicas e diminuir o sedentarismo e a obesidade que
nossa população enfrenta; além de que, ao praticar esportes, aprende-se a
respeitar as suas regras e a ter disciplina?
Como poderá ser mais qualificada a educação se a MP abre as
portas das escolas para “profissionais de notório saber” sem formação
Verificar a igualdade... 553

específica para o ensino e a relação com jovens, com salários reduzidos,


nitidamente para que não haja tanta “despesa” com profissionais
capacitados, com pós-graduação, mestrado e doutorado? Além de
diminuir a qualidade do ensino, que já não é “grande coisa”.
Como fica o princípio da inclusão dos jovens nas escolas se com
o aumento da carga horária, tornando-se período integral, reduz o número
de estudantes? Pois se em 2 a 3 períodos diários as escolas estão
superlotadas, se compactar todos os estudantes ao mesmo tempo na
escola não haverá lugar para todos. Para a efetividade de tal proposta ser
alcançada, é necessária a ampliação das escolas, mas isso não se poderá
fazer, pois o teto da PEC não autoriza. Outro fator que compromete tal
realização, é que muitos estudantes do Ensino Médio além de estudarem,
trabalham no contra turno para auxiliar as famílias, sendo assim, teriam
que optar: estudo ou um prato de comida garantido na mesa?
Partindo desses questionamentos e da constatação da falta de
consideração para com a opinião dos estudantes, estes puseram em
questão o lugar que a “polícia” lhes reservou e tomaram a iniciativa de se
fazerem ouvir. Foram para as ruas, mas sem muito resultado, partiram para
as ocupações que tiveram um efeito maior: os estudantes, por si mesmos,
estudaram e debateram as reformas e a proposta de congelamento de
gastos em áreas primordiais para a população.
Do ponto de vista de Rancière, ao romper com a ordem do
sensível, os estudantes fizeram política e mostraram que o seu fundamento
é a ausência de fundamento. Com isso, a população e o Estado pararam
para ouvi-los. Tamanho foi o efeito de suas reivindicações que foram
ouvidos na Assembleia Legislativa do estado do Paraná. Nesse ato, os
estudantes afirmaram a igualdade que subjaz à condição de qualquer um,
independente de sua idade, posição econômica e social: falaram a língua
dos homens e foram ouvidos por eles. Mesmo não conseguindo a vitória,
em relação a suas pautas, os estudantes se mostraram capazes de lutar, de
discutir, foram reconhecidos e ouvidos. Assim, o aspecto de igualdade
marca a história do movimento estudantil. Por meio de atos consequentes
dos estudantes, eles mostraram que a igualdade, ainda que a ordem policial
não queira reconhecer, está presente em todos os lugares e em todos os
momentos em que um humano se dirige a outro.
554 Ressonâncias filosóficas - Artigos

REFERÊNCIAS

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EDIPRO, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução Mariana Echalar São


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Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de
Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996a.

_______. O desentendimento. Tradução Ângela Leite Lopes São Paulo,


Editora 34, 1996b.
OS ORGANIZADORES:

CÉLIA MACHADO BENVENHO é doutoranda em Filosofia pela


Universidade Estadual do Oeste do Paraná; é Mestre em Filosofia pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2008), financiado pelo
CNPQ, na linha de pesquisa Metafísica e Conhecimento. Possui
graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(1994). Especialista em Administração e Planejamento de Sistemas
Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997), e
especialista em Computação Aplicada ao Ensino pela Universidade
estadual de Maringá (1998). Atualmente é professor Assistente da
UNIOESTE - campus de Toledo.
E-mail: celia.benvenho@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9781758140510682

JOSÉ DIAS é Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo


- RS (1996) e Bacharel em Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista
em Docência no Ensino Superior pela Unicesumar (2015); Mestre em
Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do
Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor
em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana,
Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2005); Doutor em Filosofia também
pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália
(2008). Atualmente é professor Adjunto da UNIOESTE, no Campus de
Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia;
Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da
UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas
filosóficas e juristas.
E-mail: jfad_br@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231
JUNIOR CUNHA é graduando do curso de Licenciatura em Filosofia
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR. É estagiário
da Biblioteca Universitária da UNIOESTE-Campus Toledo. Bolsista – no
período de 01 de junho de 2016 a 31 de março de 2017 – do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), vinculado a
CAPES/MEC. Bolsista – no período de 1 de abril de 2017 até 31 de março
de 2018 – do Projeto de Extensão Teatro em Ação, vinculado ao
Programa Universidade Sem Fronteiras-USF, financiado com recursos do
Fundo Paraná. Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Teatro e
Filosofia com enfoque em William Shakespeare e Friedrich Nietzsche.
E-mail: juniorlcunha@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7824455868007103

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