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PESQUISA
P474 Pesquisa histórica na educação física, vol. 5 / Amarílio Ferreira
HISTÓRICA
Neto, (org.).
192 p.
Aracruz, ES: FACHA, 2000.
NA EDUCAÇÃO
1. Educação física-Pesquisa. 2. Educação Física - F Í S I C A
historiografia. I. Ferreira Neto, Amarílio.
Vol. 5
Revisão do Texto: Alina da Silva Bonella
E
FACULDADE DE
CIÊNCIAS H U M A N A S
ACHA
DE A R A C R U Z
Aracruz, 2000
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA E MASCULINIDADE:
UMA ANÁLISE DOS JOGOS GYMNASTICOS PRIVATIVOS DO
SEXO MASCULINO
Introdução
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Gênero e masculinidade: possibilidades para uma pesquisa de desenvolvimento das reflexões em torno da categoria gênero. De fato,
história da educação e da educação física hoje não se pode examinar a questão da masculinidade sem levar em
conta o conjunto de estudos feministas que há tempos vêm tentando
definir posições políticas e redescobrir novas saídas para as mulheres
Inicialmente, quero ressaltar que o estudo da masculinidade é e, por tabela, redimensionando também o espaço dos homens
para mim um exercício político, na medida em que compreendo-a como (Trevisan, 1998).
um produto histórico e, portanto, aberto à mudança. Deste modo, Estudos de gênero, estudos femininos e estudos masculinos.
centrando meus estudos na tentativa de compreender e revelar uma Sinto a necessidade de demarcar o território deste artigo, pois percebo
pedagogia da masculinidade, ou seja, de estratégias educativas que na literatura a presença destes três e de outros campos de investigação
buscavam desenvolver nos alunos um conjunto de habilidades e que envolvem a sexualidade de um ponto de vista mais amplo. Para
sentimentos que caracterizavarh 'um homem' num determinado tanto, buscando situar-me no e defendendo o campo dos estudos de
contexto socioculturai, pretendo alcançar os objetivos sugeridos por gênero, revisito os fundamentos desta categoria.
Guacira Lopes Louro (1999) quando afirma que "ao fazer a história oú Um dos textos 'clássicos' no âmbito desses estudos é o artigo
as histórias dessa pedagogia, talvez nos tornemos mais capazes de de Joan Scott,1 no qual a autora considera o gênero como uma
desarranjá-la, reinventá-la e tomá-la plurar (p. 33). categoria que se refere à organização social da relação entre os sexos.
Considero igualmente importante declarar que se hoje posso Segundo ela, o gênero pode ser observado nos símbolos culturalmente
estar problematizando determinadas questões relacionadas ao invocados por uma determinada sociedade; nos conceitos normativos
desenvolvimento e ao exercício da masculinidade é justamente porque que interpretam estes símbolos e que estão expressos nas doutrinas
os estudos de gênero, os quais sobremaneira foram feitos por e sobre religiosas, * educacionais, científicas, políticas e jurídicas; nas
mulheres, forneceram-me o entendimento de que tanto a feminilidade instituições sociais, na política, na própria organização social e, por fim,
quanto a masculinidade são condições aprendidas, são construções nas-identidades subjetivas, ou seja, nas maneiras pelas quais as
culturais. Logo, a afirmação de Simone de Beauvoir relativa ao identidades de gênero são realmente construídas pelos sujeitos
'segundo sexo' - não se nasce mulher, torna-se mulher - também pode concretos.
ser efetuada com relação ao 'primeiro': não se nasce homem, torna-se O gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social e cultural
homem. das distinções baseadas no sexo, indicando uma rejeição do
Creio que podemos mesmo falar de uma dívida que os estudos determinismo biológico implícito no uso de termos como 'sexo' ou
que focalizam os homens e a masculinidade - estudos masculinos - 'diferença sexual'. Assim, o gênero:
contraíram com os estudos de gênero e com os estudos sobre as
mulheres e a feminilidade - estudos femininos. rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum, para diversas formas de
De acordo com Margareth Arilha, Sandra G. Unbehaum Ridenti
subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a
e. Benedito Medrado (1998), o interesse pela masculinidade como capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força
campo de estudo teve origem na década de 1960, mais precisamente a muscular superior. Em vez disso, o termo 'gênero' torna-se uma
partir da organização do movimento feminista que promoveu um exame forma de indicar 'construções culturais' - a criação inteiramente social
crítico e tomada de posição diante das desigualdades sociais baseadas de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres
nas diferenças sexuais. Fruto daquele momento histórico, a ênfase nos (Scott, 1995, p. 75).
estudos recaiu sobre a situação das mulheres e sobre a construção da
feminilidade, o que, de certo modo, obscureceu os trabalhos sobre o
1 Publicado inicialmente na revista Feminist Studies, (14) 1, em 1988, sob o título
masculino. Mas, a partir da década de 80, principalmente nos países
Deconstructing equality-versus-difference: or, the uses of poststructuralist theory for
anglo-saxãos, emergiu um conjunto de estudos sobre a construção feminism, este trabalho foi publicado no Brasil em 1995, na revista Educação e
social da masculinidade que apresentavam vínculo direto com as Realidade, Volume 20(2), sob o título Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
conquistas dos movimentos feminista e homossexual, e com o
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inversão de causas e efeitos, pela qual o corpo construído socialmente constituiu-se na norma e no modelo a ser difundido para as demais
serve de fundamentação ideológica para a oposição arbitrária através escolas de ensino secundário do país. O compêndio de Higgins
da qual ele próprio foi construído. adquiriu tal valor por seu alinhamento à concepção higienista que as
atividades físicas, em especial os exercícios ginásticos, adquiriram
3 - A terceira é a codificação simbólica do ato sexual, pela qual o junto ao projeto e ao discurso de regeneração da sociedade brasileira,
homem está acima e a mulher abaixo. O ato sexual é representado em voga principalmente durante o último quartel do século XIX e pela
como um ato de dominação, uma tomada da mulher pelo homem. filiação profissional do autor à prestigiosas instituições oficiais de
ensino.
4 - Em quarto lugar, a somatização de diferenças de gênero Neste artigo, de maneira introdutória, estou interessado em
socialmente instituídas age pela organização simbólica e prática dos discutir uma parte específica-desse manual sob a ótica da categoria
usos diferenciados do'corpo - -^mobilidade e postura - e dos ritos que gênero, enfatizando a dimensão da masculinidade. Trata-se da seção
efetuam a virilização dos meninos e a 'feminização' das meninas. Gymnastica Recreativa ou Jogos Gymnastiços, na qual Arthur Higgins
propõe vários jogos divididos a partir do critério sexual, ou seja, os
Tudo considerado, esse duplo trabalho de insinuação, ao mesmo Jogos Gymnastiços Communs aos Dois Sexos e os Jogos Gymnastiços
tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciante, impõe Privativos do Sexo Masculino.
aos homens e às mulheres diferentes conjuntos de disposições em A pergunta central é: o que há de privativo nos Jogos
relação aos jogos sociais considerados cruciais para a sociedade,
Gymnastiços Privativos do Sexo Masculino?
como os jogos de honra e guerra (aptos à exibição de virilidade) ou,
Respondendo-a, ou seja, demonstrar o que estava reservado'
nas sociedades avançadas, as arenas da política, dos negócios e da
ciência. A masculinização dos corpos masculinos e a feminização exclusivamente aos homens/meninos nos jogos masculinos reunidos
dos corpos femininos realiza uma somatização da arbitrariedade por Arthur Higgins é se aproximardas representações da época sobre o
cultural que eqüivale a uma duradoura construção do inconsciente exercício da masculinidade e das tarefas do mundo masculino.
(Bourdieu, 1998, p: 22). Uma simples leitura dos nomes dos respectivos jogos já me
oferece algumas indicações. Compõem os Jogos Gymnastiços
Esta última dimensão é a que considero como fundamental Communs aos Dois Sexos: 'o besouro', 'a cabra cega', 'a raposa', 'Esaú
para efeitos de realização deste trabalho, no qual analiso parte de uma e Jacob', 'o cão e a lebre', 'quem primeiro chegar', 'casinha para
proposta de exercícios/jogos ginásticos que sugere usos diferenciados alugar', 'o lenço volante', 'o látego' 'anda á roda', 'corridas de bolas',
dos corpos femininos e masculinos. 'pula-pula', e 'saltinhos sobre a corda'.
Os Jogos Gymnastiços Privativos do Sexo Masculino são: 'o
chefe da polícia', 'pella4 ao ar', 'o veado quer fugir', 'raposa para a toca',
A masculinidade nos Jogos Gymnastiços Privativos do Sexo 'os pescadores', 'os negociantes de pássaros', 'a caçada', 'o
Masculino recrutamento', 'os provocadores', 'o gavião', 'o gato e o rato', 'combate',
'o maneta', 'fora o terceiro', 'peteca', 'passagem sob a corda',
'bombardeio', 'flagelladores', 'o anjo e o diabo', 'amarella', 'cavalleiros e
desafio a todos, me tirem o penacho, e si algum apanho, pelo meio cavallos', 'defeza da praça', 'o sol e os planetas', 'barras', 'vae-vem',
racho (frase que inicia o jogo 'o maneta', Higgins, 1934, p. 201). 'pella rebatida', 'pella rechaçada', 'entre dois fogos', 'pelota a mão', 'luta
com a corda', 'luta com o bambú' e 'bola a pé'.
Em trabalho anterior,3 tive a oportunidade de demonstrar a A maioria desses jogos privativos do sexo masculino trazem
importância do manual publicado por Arthur Higgins para a educação em seus próprios nomes habilidades, competências e valores
física brasileira que, via planos de ensino do Colégio Pedro II,
4 Palavra hoje grafada péla, ou seja, bola, especialménte a de borracha, usada para
3 Ver Cunha Junior (1999). jogar ou brincar (Ferreira, 1999).
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Talvez Norbert Elias possa nos ajudar a compreender a elas exprimem praticamente as oposições fundamentais da visão de
presença, vendo com os olhos de hoje, de tanta violência e mundo (Bourdieu, 1995, p. 157)
agressividade nessas atividades. Pensando na sociedade brasileira,
quem sabe estivéssemos no início do século XX num estágio diferente Trabalhemos noutra perspectiva.
do que estamos hoje em termos da civilização dos nossos costumes e
do desenvolvimento dos nossos modos de conduta.
A questão é polêmica, mas importante para percebermos a Referências bibliográficas
fragilidade das concepções que imputam uma certa 'naturalidade' nos
comportamentos e nas atitudes do homem. Valores como a violência e
aqueles outros apresentados são aprendidos e, portanto, passíveis de ARILHA, Margareth, MEDRADO, Benedito, RIDENTI, Sandra G.
mudança. Quem sabe não fbi neste sentido que Higgins tenha Unbehaum. Introdução. In: ARILHA, Margareth, MEDRADO,
'pedagogizado' esses jogos, ou seja, estimulando a violência e a Benedito, RIDENTI, Sandra G. Unbehaum (Orgs.j. Homens e
agressividade, mas ao mesmo tempo controlando-as através de sua masculinidades: outras palavras. São Paulo: ECOS/Ed. 34,1998.
interferência em busca da autodisciplina e do autocontrole dos alunos, BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação e Realidade,
valores morais tão caros a ele8 e bem analisados por Elias.9 v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.
. Conferência do Prêmio Goffman: a dominação masculina
desde o começo da mocidade, o indivíduo é treinado no autocontrole revisitada. In: UNS, Daniel (Org.). A dominação masculina
e no espírito-de precisão dos resultados de seus atos, de que revisitada. Campinas: Papirus, 1998.
precisará para desempenhar funções adultas (Elias, 1993, p. 202). CECCARELU, Paulo Roberto. A construção da masculinidade. Texto
capturado na Internet, 1999.
Retornando a Pierre Bourdieu (1995), verifico que uma das CONNEL, Robert. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade,
dimensões de construção corporificada de diferenças sociais entre os v. 20, n. 2, p. 185-2Q6rjul,/dez..l995a...
sexos ocorre através da organização simbólica e da prática dos usos . Masculinities. Cambridge: Polity Press, 1995b.
diferenciados dos corpos que efetuam a virilização dos meninos e a CUNHA JÚNIOR, CãHos Fernando Ferreira da. Arthur Higgins: Uma
'feminização' das meninas. história de intervenção e conhecimento na educação física
Creio ter demonstrado o potencial dos jogos privativos ao sexo brasileira. In: XI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 1999,
masculino organizados por Arthur Higgins para atuar na educação Florianópolis. Anais...Florianópolis: CBCE, p. 1323-1329.
masculina. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
Termino como comecei: a história do gênero é dinâmica. A 1993. 2 v.
masculinidade é aprendida, construída socialmente. E nós educadores . O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.1 v.
temos um papel importante neste processo. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio
século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1999.
É por isso que a educação ê fundamentalmente política: ela tende a GARCIA, Sandra Mara. Conhecer os homens a partir do gênero e para
inculcar maneiras de portar o corpo, em seu conjunto ou esta ou além do gênero. In: ARILHA, Margareth, MEDRADO, Benedito,
aquela de suas partes...maneiras de caminhar, de manter a cabeça, RIDENTI, Sandra G. Unbehaum (Orgs.). Homens e
ou de dirigir o olhar para o rosto, para os olhos, ou, ao contrário, para masculinidades: outras palavras. São Paulo: ECOS/Ed. 34, 1998.
os próprios, etc., que estão prenhes de uma ética, de uma política e
p. 31-50.
de uma cosmologia, e isto, primordialmente, porque elas são quase
todas sexualmente diferenciadas e porque através dessas diferenças
HIGGINS, Arthur. Compendio de gymnastica escolar. Capital
Federal: Typografia do Jornal do Commercio, 1896.
. Compendio de gymnastica escolar (methodo sueco-belgaj. 2
8 Ver Higgins (1896). ed. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1909.
9 Ver Elias (1994).
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. Compendio de gymnastica escolar (methodo sueco-belga-
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