Você está na página 1de 9

FICHA CATALOGRÁFICA : BIBLIOTECA FACHA

PESQUISA
P474 Pesquisa histórica na educação física, vol. 5 / Amarílio Ferreira
HISTÓRICA
Neto, (org.).

192 p.
Aracruz, ES: FACHA, 2000.
NA EDUCAÇÃO
1. Educação física-Pesquisa. 2. Educação Física - F Í S I C A
historiografia. I. Ferreira Neto, Amarílio.

CDU: 796(81 )(091) Amarílio Ferreira Neto (org.)


Antonio Jorge Soares
Carlos Fernando F. da Cunha Jr.
Ricardo de Figueiredo Lucena
Conselho Editorial: Dr. Amarílio Ferreira Neto - UFES
Dra Carmen Lúcia Soares - UNICAMP
Silvana Vilodre Goellner
Dra Eustáquia Salvadora de Souza - UFMG Tarcísio Mauro Vago
Dr. Ricardo Figueiredo de Lucena - UFES
Dra Silvana Vilodre Goellner - UFRGS Victor Andrade de Melo
Dr. Tarcísio Mauro Vago - UFMG
Dr. Victor Andrade de Melo - UFRJ

Editoração Eletrônica: Amarílio Ferreira Neto


Márcio Schneider Machado

Vol. 5
Revisão do Texto: Alina da Silva Bonella

Capa: Cristina Xavier

E
FACULDADE DE
CIÊNCIAS H U M A N A S

ACHA
DE A R A C R U Z

© Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz

Aracruz, 2000
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA E MASCULINIDADE:
UMA ANÁLISE DOS JOGOS GYMNASTICOS PRIVATIVOS DO
SEXO MASCULINO

Carlos Fernando Ferreira da Cunha Júnior


Universidade Federal de Juiz de Fora
Doutorando em Educação - UFMG

Introdução

O gênero é sempre uma estrutura contraditória. É isso que torna


possível sua dinâmica histórica e impede que a história do gênero
seja um eterno e repetitivo ciclo das mesmas e imutáveis categorias
(CONNEL, 1995a, p. 189).

No Brasil, o gênero tem merecido destaque dentre os temas e


objetos que a história-da educação incorporou em suas anátíses mais
recentemente. Todavia, se nos trabalhos que utilizam o gênero como
categoria de análise as reflexões sobre a educação feminina já são
uma realidade, não podemos dizer o mesmo sobre a educação
masculina.
Crítica análoga pode ser feita aos trabalhos de história da
educação física e do esporte que utilizam a categoria gênero com
objeto de análise, nos quais o conjunto das experiências de meninas e
mulheres tem sido enfatizado em detrimento das vivências masculinas.
Partindo dessa premissa, o presente artigo tem o objetivo de
problematizar os usos e apontar alguns dos desafios e das
potencialidades do gênero enquanto categoria de análise no âmbito da
história da educação física no Brasil, chamando a atenção para a
dimensão da construção da masculinidade. Assim sendo, estarei
analisando, sob a ótica do gênero, uma seção do manual de
gymnastica publicado por Arthur Higgins em 1909 e 1934, a qual ele
denominou Gymnastica Recreativa ou Jogos Gymnasticos,
subdividindo-a ainda em Jogos Gymnasticos Communs aos Dois Sexos
e Jogos Gymnasticos Privativos do Sexo Masculino.

118 113
Gênero e masculinidade: possibilidades para uma pesquisa de desenvolvimento das reflexões em torno da categoria gênero. De fato,
história da educação e da educação física hoje não se pode examinar a questão da masculinidade sem levar em
conta o conjunto de estudos feministas que há tempos vêm tentando
definir posições políticas e redescobrir novas saídas para as mulheres
Inicialmente, quero ressaltar que o estudo da masculinidade é e, por tabela, redimensionando também o espaço dos homens
para mim um exercício político, na medida em que compreendo-a como (Trevisan, 1998).
um produto histórico e, portanto, aberto à mudança. Deste modo, Estudos de gênero, estudos femininos e estudos masculinos.
centrando meus estudos na tentativa de compreender e revelar uma Sinto a necessidade de demarcar o território deste artigo, pois percebo
pedagogia da masculinidade, ou seja, de estratégias educativas que na literatura a presença destes três e de outros campos de investigação
buscavam desenvolver nos alunos um conjunto de habilidades e que envolvem a sexualidade de um ponto de vista mais amplo. Para
sentimentos que caracterizavarh 'um homem' num determinado tanto, buscando situar-me no e defendendo o campo dos estudos de
contexto socioculturai, pretendo alcançar os objetivos sugeridos por gênero, revisito os fundamentos desta categoria.
Guacira Lopes Louro (1999) quando afirma que "ao fazer a história oú Um dos textos 'clássicos' no âmbito desses estudos é o artigo
as histórias dessa pedagogia, talvez nos tornemos mais capazes de de Joan Scott,1 no qual a autora considera o gênero como uma
desarranjá-la, reinventá-la e tomá-la plurar (p. 33). categoria que se refere à organização social da relação entre os sexos.
Considero igualmente importante declarar que se hoje posso Segundo ela, o gênero pode ser observado nos símbolos culturalmente
estar problematizando determinadas questões relacionadas ao invocados por uma determinada sociedade; nos conceitos normativos
desenvolvimento e ao exercício da masculinidade é justamente porque que interpretam estes símbolos e que estão expressos nas doutrinas
os estudos de gênero, os quais sobremaneira foram feitos por e sobre religiosas, * educacionais, científicas, políticas e jurídicas; nas
mulheres, forneceram-me o entendimento de que tanto a feminilidade instituições sociais, na política, na própria organização social e, por fim,
quanto a masculinidade são condições aprendidas, são construções nas-identidades subjetivas, ou seja, nas maneiras pelas quais as
culturais. Logo, a afirmação de Simone de Beauvoir relativa ao identidades de gênero são realmente construídas pelos sujeitos
'segundo sexo' - não se nasce mulher, torna-se mulher - também pode concretos.
ser efetuada com relação ao 'primeiro': não se nasce homem, torna-se O gênero enfatiza o caráter fundamentalmente social e cultural
homem. das distinções baseadas no sexo, indicando uma rejeição do
Creio que podemos mesmo falar de uma dívida que os estudos determinismo biológico implícito no uso de termos como 'sexo' ou
que focalizam os homens e a masculinidade - estudos masculinos - 'diferença sexual'. Assim, o gênero:
contraíram com os estudos de gênero e com os estudos sobre as
mulheres e a feminilidade - estudos femininos. rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum, para diversas formas de
De acordo com Margareth Arilha, Sandra G. Unbehaum Ridenti
subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a
e. Benedito Medrado (1998), o interesse pela masculinidade como capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força
campo de estudo teve origem na década de 1960, mais precisamente a muscular superior. Em vez disso, o termo 'gênero' torna-se uma
partir da organização do movimento feminista que promoveu um exame forma de indicar 'construções culturais' - a criação inteiramente social
crítico e tomada de posição diante das desigualdades sociais baseadas de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres
nas diferenças sexuais. Fruto daquele momento histórico, a ênfase nos (Scott, 1995, p. 75).
estudos recaiu sobre a situação das mulheres e sobre a construção da
feminilidade, o que, de certo modo, obscureceu os trabalhos sobre o
1 Publicado inicialmente na revista Feminist Studies, (14) 1, em 1988, sob o título
masculino. Mas, a partir da década de 80, principalmente nos países
Deconstructing equality-versus-difference: or, the uses of poststructuralist theory for
anglo-saxãos, emergiu um conjunto de estudos sobre a construção feminism, este trabalho foi publicado no Brasil em 1995, na revista Educação e
social da masculinidade que apresentavam vínculo direto com as Realidade, Volume 20(2), sob o título Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
conquistas dos movimentos feminista e homossexual, e com o

114 112 114


homens das prescrições dos papéis tradicionais de gênero, explorando
A categoria gênero indica também a introdução da dimensão
como alguns aspectos das vidas e experiências dos homens são
das relações, ou seja, ela é relacional porque, de acordo com Eliane
limitadas e subdesenvolvidas, em decorrência da infindável pressão em
Marta Teixeira Lopes (1994): (1) relaciona-se com outras categorias -
exibir comportamentos associados à masculinidade. Outros estudos
como classe social, raça e idade - e exige a relação entre categorias e,
discutiram os custos do papel masculino tradicional para a saúde do
consequentemente, dimensões do real; (2) seus estudos supõem que
homem - física e psicologicamente -, e para a qualidade do
se estude também os homens; e (3) leva em conta o outro sexo, quer
relacionamento dos homens com as mulheres, outros homens e com as
dizer, um gênero se constitui culturalmente na sua relação com o seu
crianças. O modelo de papéis de gênero masculino era incapaz de
outro, em presença ou em ausência.
descrever as experiências dos homens, uma vez que estavam
Talvez esteja aqui um dos problemas que os estudos de
baseados numa concepção de natureza estática e num falso
gênero não tenham ainda superado, qual seja, a dificuldade envolvida
universalismo que impossibilitava o entendimento das maneiras como
no exercício de operar com esta categoria enfatizando sua dimensão
esses papéis se modificam, assim com da atuação dos indivíduos
relacional, o que colabora para a confusão com os estudos femininos e
nessa modificação. As pesquisas recentes sobre homens e
masculinos que analisam homens e mulheres, masculinidade e
masculinidades vêm seguindo os mesmos passos teóricos e
feminilidade de maneira isolada, separada.
metodológicos percorridos pelos estudos de gênero de enfoque
Em primeiro lugar, embora os/as estudiosos/as afirmem a
feminista, em que a definição normativa de masculinidade é vista como
necessidade de articular essas diferentes categorias - gênero, classe,
dominante, mas não como a única versão. Há hoje a compreensão de
raça e idade - e sejam mesmo ensaiadas aproximações teóricas que as
que não se pode falar de masculinidade e feminilidade no singular,
levem em consideração, "este ainda é um terreno onde todos se
como bem demonstra Robert Connel (1995b). .
movimentam com extrema cautela, onde são freqüentes os tropeços e
onde, algumas vezes, àcaba-se por preferir as 'Mas mais mnhccidàs" Um novo modelo de trabalho mira o aspecto de fato relacional
(Louro, 1994, p. 32). das relações de gênero, em que a definição de úm gênero depende em
Em segundo lugar, a grande maioria das pesquisas que se parte do entendimento da definição -do outro: Esta tem sido atônica dos
autodenominam estudos de gênero não tem focalizado as experiências trabalhos mais recentes e o desafio que está colocado é o de trabalhar
masculinas e a construção da masculinidade. Seriam melhor com á perspectiva de gênero como sendo relácional, tratando o tema
denominados como estudos femininosõü sobre mulheres é da masculinidade de maneira não separada, mas sempre em relação
feminilidade, pois como ressalta Joan Scott, mulheres e homens são com a feminilidade e as outras dimensões sociais (Garcia, 1998).
definidos em termos recíprocos nos estudos de gênero "e não se
poderia compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo
inteiramente separado" (Scott, 1995, p. 72). O masculino em questão
Os estudos femininos desenvolveram-se a partir da crítica à
subordinação das mulheres e passaram posteriormente a criticar uma
suposta indiferenciação das experiências femininas, considerando a Durante as últimas duas décadas ocorreu um incremento dos
diversidade de vivências das mulheres como definidora da existência estudos que discutem a masculinidade como construção social e que
da pluralidade de feminilidades. Os estudos sobre homens, partindo já tentam redefinir seu exercício a partir de novas perspectivas. Com
desse patamar alcançado pelos estudos sobre mulheres, têm seguido efeito, a dominação masculina passou a ser melhor analisada e alguns
os mesmos passos teóricos e metodológicos, enfatizando a diversidade homens chegaram à conclusão de que o masculino estava em crise.
de modelos masculinos. Os primeiros trabalhos sobre homens e Estes homens passaram a criticar o modelo masculino sob o qual foram
masculinidades foram diretamente influenciados pelas críticas educados e com o qual não mais se conformavam, principalmente
feministas a explicações tradicionais sobre as diferenças sexuais. A pelos incômodos e limitações que ele lhes impunham. Tal modelo
maioria dos estudos sobre identidade masculina tinha seu foco na garantiu para muitos o exercício do poder, mas, ao mesmo tempo,
sexualidade e alguns desses trabalhos sublinharam os custos para os exigia e ainda exige um custo que hoje vem sendo questionado: a

114 112 116


necessidade de sempre se mostrar forte e capaz; de limitar a expressão Dentre as instituições que atuam nesse processo de educação
dos sentimentos; de viver no mundo da competição; de ser provedor; para a masculinidade, merece destaque a escola. Como afirma Guacira
de não falhar; de estar sempre disponível para o sexo; de se ocupar Lopes Louro (1999, p. 31),
somente com 'coisas mais sérias' (Nolasco, 1995). Como bem lembra
Pierre Bourdieu (1995, p. 158), na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços
reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é
exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas
ser homem é estar instalado de imediato numa posição que implica
identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras.
poderes e privilégios, mas também deveres, e todas as obrigações
inscritas na masculinidades [...] o dominante é também dominando,
mas por sua dominação. A escola exerce uma pedagogia da masculinidade que investe
na virilização de seus meninos e jovens. E parece que ainda não nos
Não se nasce homem, torna-se homem. E este processo é demos conta desta questão ou a consideramos de menor importância,
resultado de uma construção intensa e permanente, cujo investimento pois "se temos poucos trabalhos sobre a educação das meninas e
parece ser inclusive mais contundente do que o das mulheres. Como mulheres, talvez tenhamos ainda menos estudos sobre a formação de
afirma Bourdieu (1995, p. 148) meninos e homens" (Louro, 1992, p. 62).
Este trabalho está centrado nesta discussão: a educação e a
no caso daqueles que são designados para ocupar as posições formação de meninos em homens; uma pedagogia da masculinidade,
dominantes, a mediação dos habitus que dispõem o herdeiro a um conjunto de estratégias educativas que buscam imprimir nas'
aceitar sua herança (de homem, de primogênito ou de nobre), isto é, M n t e s e nos..corpos das crianças e jovens um determinado padrão de
seu destino social, é igualmente indispensável. E, contrariamente à conduta masculina.
ilusão do senso comum, as disposições que levam a reivindicar ou a Pierre Bourdieu é um dos estudiosos contemporâneos que tem
exercer Tal ou qual forma de dominação, como a libido dominandi
se debruçado sobre o processo de construção social da masculinidade
masculina numa sociedade falocêntrica, não são de modo algum
naturais, devendo ser constniidas por um longo trabalho de
e da dominação exercida pelos homens. Para tratar do papel exercido
socialização. pela educação neste processo, valho-me das proposições deste autor,
publicadas em várias obras sobre as questões da masculinidade.*
O caminho para a masculinidade precisa ser Segundo Bourdieu (1998), a educação exerce uma ação
permanentemente conquistado, pois permanece sempre o risco de psicossomática que leva à somatização da diferença sexual, ou seja, da
perdê-la, ou seja, ela não é uma aquisição definitiva, mas sim resultado dominação masculina. Uma área particularmente importante de
aplicação desse trabalho de insinuação psicossomática é a construção
de um trabalho constante. Na opinião de Paulo Roberto Ceccarelli
corporificada de diferenças sociais entre os sexos que age de acordo
(1999, p. 5),
com diversas modalidades:
O trajeto que leva o menino da posição masculina à masculinidade -
resultado de um longo percurso que se constrói em um espaço 1 - A primeira consiste em ritos de instituições, como a circuncisão, que
político e social, através de diversos rituais e provas de iniciação - é marcam a oposição não entre um antes e um depois - como nos ritos
extremamente complexo, e o fantasma de não a alcançar é uma de passagem - mas sim entre aqueles que participam do rito - homens -
presença constante. Por esta razão, é frágil e constantemente e aqueles que não participam - mulheres.
ameaçada: tem de se 'forçar', de alguma forma, seu
desenvolvimento, sob pena de que ela não se manifeste. Não é por
2 - A segunda é a construção do corpo biológico que é a reconstituição
acaso que tantos tabus, proibições e expedientes são necessários
simbólica de diferenças anatômicas. Bourdieu observa aqui uma
para salvaguardar a masculinidade do perigo de contaminação pela
feminilidade.
2 Como exemplo, ver Bourdieu (1995,1998).

118 119
inversão de causas e efeitos, pela qual o corpo construído socialmente constituiu-se na norma e no modelo a ser difundido para as demais
serve de fundamentação ideológica para a oposição arbitrária através escolas de ensino secundário do país. O compêndio de Higgins
da qual ele próprio foi construído. adquiriu tal valor por seu alinhamento à concepção higienista que as
atividades físicas, em especial os exercícios ginásticos, adquiriram
3 - A terceira é a codificação simbólica do ato sexual, pela qual o junto ao projeto e ao discurso de regeneração da sociedade brasileira,
homem está acima e a mulher abaixo. O ato sexual é representado em voga principalmente durante o último quartel do século XIX e pela
como um ato de dominação, uma tomada da mulher pelo homem. filiação profissional do autor à prestigiosas instituições oficiais de
ensino.
4 - Em quarto lugar, a somatização de diferenças de gênero Neste artigo, de maneira introdutória, estou interessado em
socialmente instituídas age pela organização simbólica e prática dos discutir uma parte específica-desse manual sob a ótica da categoria
usos diferenciados do'corpo - -^mobilidade e postura - e dos ritos que gênero, enfatizando a dimensão da masculinidade. Trata-se da seção
efetuam a virilização dos meninos e a 'feminização' das meninas. Gymnastica Recreativa ou Jogos Gymnastiços, na qual Arthur Higgins
propõe vários jogos divididos a partir do critério sexual, ou seja, os
Tudo considerado, esse duplo trabalho de insinuação, ao mesmo Jogos Gymnastiços Communs aos Dois Sexos e os Jogos Gymnastiços
tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciante, impõe Privativos do Sexo Masculino.
aos homens e às mulheres diferentes conjuntos de disposições em A pergunta central é: o que há de privativo nos Jogos
relação aos jogos sociais considerados cruciais para a sociedade,
Gymnastiços Privativos do Sexo Masculino?
como os jogos de honra e guerra (aptos à exibição de virilidade) ou,
Respondendo-a, ou seja, demonstrar o que estava reservado'
nas sociedades avançadas, as arenas da política, dos negócios e da
ciência. A masculinização dos corpos masculinos e a feminização exclusivamente aos homens/meninos nos jogos masculinos reunidos
dos corpos femininos realiza uma somatização da arbitrariedade por Arthur Higgins é se aproximardas representações da época sobre o
cultural que eqüivale a uma duradoura construção do inconsciente exercício da masculinidade e das tarefas do mundo masculino.
(Bourdieu, 1998, p: 22). Uma simples leitura dos nomes dos respectivos jogos já me
oferece algumas indicações. Compõem os Jogos Gymnastiços
Esta última dimensão é a que considero como fundamental Communs aos Dois Sexos: 'o besouro', 'a cabra cega', 'a raposa', 'Esaú
para efeitos de realização deste trabalho, no qual analiso parte de uma e Jacob', 'o cão e a lebre', 'quem primeiro chegar', 'casinha para
proposta de exercícios/jogos ginásticos que sugere usos diferenciados alugar', 'o lenço volante', 'o látego' 'anda á roda', 'corridas de bolas',
dos corpos femininos e masculinos. 'pula-pula', e 'saltinhos sobre a corda'.
Os Jogos Gymnastiços Privativos do Sexo Masculino são: 'o
chefe da polícia', 'pella4 ao ar', 'o veado quer fugir', 'raposa para a toca',
A masculinidade nos Jogos Gymnastiços Privativos do Sexo 'os pescadores', 'os negociantes de pássaros', 'a caçada', 'o
Masculino recrutamento', 'os provocadores', 'o gavião', 'o gato e o rato', 'combate',
'o maneta', 'fora o terceiro', 'peteca', 'passagem sob a corda',
'bombardeio', 'flagelladores', 'o anjo e o diabo', 'amarella', 'cavalleiros e
desafio a todos, me tirem o penacho, e si algum apanho, pelo meio cavallos', 'defeza da praça', 'o sol e os planetas', 'barras', 'vae-vem',
racho (frase que inicia o jogo 'o maneta', Higgins, 1934, p. 201). 'pella rebatida', 'pella rechaçada', 'entre dois fogos', 'pelota a mão', 'luta
com a corda', 'luta com o bambú' e 'bola a pé'.
Em trabalho anterior,3 tive a oportunidade de demonstrar a A maioria desses jogos privativos do sexo masculino trazem
importância do manual publicado por Arthur Higgins para a educação em seus próprios nomes habilidades, competências e valores
física brasileira que, via planos de ensino do Colégio Pedro II,
4 Palavra hoje grafada péla, ou seja, bola, especialménte a de borracha, usada para
3 Ver Cunha Junior (1999). jogar ou brincar (Ferreira, 1999).

114 112 120


considerados como essenciais ao mundo dos homens5, tais como Em 'raposa para a toca' verificamos o uso do látego: "aquelle
autoridade, negócio, caça, ataque, defesa, combate e luta. que fôr tocado com o látego, toma-se raposa e todos os outros
A análise da dinâmica de cada um desses jogos propiciou exclamam - para a toca raposa - e perseguem-no com pancadas de
elementos mais consistentes para continuar a investigação e, látego até que entre na toca" (Higgins, 1934, p. 195). Assim como em
previamente, declaro que o privativo dos Jogos Gymnasticos Privativos 'flagelladores', em que o aluno escolhido como flagelador "procura bater
do Sexo Masculino era um conjunto de valores relacionados ao com o látego no adversario antes que elle tire algum objecto de cima do
masculino, destacando-se entre estes o exercício da autoridade, o banco ou mesmo depois, porém antes que elle entre no arraial a que
respeito à hierarquia, o estímulo à recompensa, a distinção, o ato de pertencei" (Higgins, 1934, p. 206). E também em 'fora o terceiro', cujo
desafiar, atacar e defender, a resistência, o espírito militar, a violência e aluno está com o látego "persegue com pancadas o ultimo dessa fila"
o autocontrole. (Higgins, 1934, p. 202).
O exercício da autoridade, o respeito à hierarquia, a distinção Pancadas, agarrões, batidas, beliscões, bolos, boladas e
e o estímulo à recompensa é estimulado' em vários jogos*Quase empurrões fazem parte de vários jogos. Em 'o recrutamento', o
sempre existe um personagem que solicita algo ou dá ordens aos recrutador "procura correndo agarrar um dos companheiros de recreio"
demais que, cumprindo rapidamente a tarefa, tem a possibilidade de (Higgins, 1934, p. 197). Os beliscões estão em 'gavião', onde "o gavião
ascender - o mais veloz - ao cargo superior, do mandante. approxima-se querendo arrebatar um dos pintos. A gallinha com as
No jogo 'o chefe da polícia' deverá ser escolhido pelo azas abertas (os braços, estendidos) defende os filhos, dando quando
professor um aluno que fará o papel do personagem que dá nome à puder bicadas (biliscões) no gavião" (Higgins, 1934, p. 199). Òs bolos
atividade e os demais serão os 'agentes policiais'. O jogo começa pela aparecem.em 'barras': "o provocador colloca-se deante do provocado e
frase do chefe da policia que diz aos agentes policiais:'- Acabam de dá-lhe espaçadamente, contando em voz alfa, tres bolos" (Higgins, 1934,
roubar. Senhores agentes, ides já procurar, muito diligentes'. A seguir, p. 215). Às boladas no 'inimigo' são os objetivos de 'combate' e 'bombardeio'.
os diligentes policiais deverão buscar um determinado objeto requerido Em 'defezà da praça' :é :traçado um círculo no qtiaf se encontra um
pelo chefe de polícia. Aquele agente que primeiro chegar e entregar o aluno, o defensor da praça; outro aluno "investe com os braços
objeto ao chefe de polícia tem como recompensa tomar o seu íuçjãr. cruzados sobre o peito, contra o defensor da praça e encontram se
Em 'a caçada', deverá ser escolhido um caçador, cujo critério é hombro a hombro procurando repellir um ao outro para fora do circulo,
a velocidade: o menino mais veloz. Este deverá escolher alguns para ficando vencedor aquelle que consegui isso" (Higgins, 1934, p. 212).
serem seus galgos6 e os demais serão a caça: "Vale uma preza todo O desenvolvimento do espírito militar também está presente
aquelle em que o caçador dér tres pancadas num dos hombros. Os em alguns dos jogos. Aparecem os cenários do quartel, do campo de
galgos devem acuar, isto é, encurralar a caça, até que o caçador batalha, da prisão e também diversos personagens, tais como os
chegue para colhel-a por meio das tres pancadas num dos hombros" recrutadores, os chefes, os prisioneiros. Expressões como 'alerta' e
(Higgins, 1934, p. 197). A mesma lógica está presente no jogo 'o 'fogo' tomam parte das atividades e as turmas são dividas em grupos
recrutamento'. inimigos que jogam combatendo, lutando entre si. Higgins sugere,
Este último jogo descrito, 'a caçada', denota já uma idéia de inclusive, que estes grupos sejam denominados de russos e japoneses,
como a violência toma parte nessas atividades. Por meio de pancadas, como em 'combate' e 'barras'.
'bolos', beliscões, empurrões, boladas e até pelo uso de utensílios Comparando os jogos comuns a ambos os sexos aos jogos
como o látego7 são desenvolvidas a capacidade de atacar, de resistir, privativos do sexo masculino, chegamos à conclusão de que a
de desafiar e o autocontrole. diferença está nos valores, habilidades e competências que estes
últimos carregam consigo. São eles: o exercício da autoridade, o
respeito à hierarquia, o estímulo à recompensa, a distinção, o ato de
5 Isto pensando em termos de uma masculinidade hegemônica (Connel, op. c/f.).
6 Cão de talhe elevado, pernas longas e musculosas, abdome estreito e focinho afilado,
desafiar, atacar e defender, caçar, lutar, a resistência, o espírito militar
e que se caracteriza pela agilidade e rapidez (Ferreira, 1999). e, principalmente, a violência e a agressividade.
7 Açoite de correia ou de corda (Ferreira, 1999).

112 123
Talvez Norbert Elias possa nos ajudar a compreender a elas exprimem praticamente as oposições fundamentais da visão de
presença, vendo com os olhos de hoje, de tanta violência e mundo (Bourdieu, 1995, p. 157)
agressividade nessas atividades. Pensando na sociedade brasileira,
quem sabe estivéssemos no início do século XX num estágio diferente Trabalhemos noutra perspectiva.
do que estamos hoje em termos da civilização dos nossos costumes e
do desenvolvimento dos nossos modos de conduta.
A questão é polêmica, mas importante para percebermos a Referências bibliográficas
fragilidade das concepções que imputam uma certa 'naturalidade' nos
comportamentos e nas atitudes do homem. Valores como a violência e
aqueles outros apresentados são aprendidos e, portanto, passíveis de ARILHA, Margareth, MEDRADO, Benedito, RIDENTI, Sandra G.
mudança. Quem sabe não fbi neste sentido que Higgins tenha Unbehaum. Introdução. In: ARILHA, Margareth, MEDRADO,
'pedagogizado' esses jogos, ou seja, estimulando a violência e a Benedito, RIDENTI, Sandra G. Unbehaum (Orgs.j. Homens e
agressividade, mas ao mesmo tempo controlando-as através de sua masculinidades: outras palavras. São Paulo: ECOS/Ed. 34,1998.
interferência em busca da autodisciplina e do autocontrole dos alunos, BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação e Realidade,
valores morais tão caros a ele8 e bem analisados por Elias.9 v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.
. Conferência do Prêmio Goffman: a dominação masculina
desde o começo da mocidade, o indivíduo é treinado no autocontrole revisitada. In: UNS, Daniel (Org.). A dominação masculina
e no espírito-de precisão dos resultados de seus atos, de que revisitada. Campinas: Papirus, 1998.
precisará para desempenhar funções adultas (Elias, 1993, p. 202). CECCARELU, Paulo Roberto. A construção da masculinidade. Texto
capturado na Internet, 1999.
Retornando a Pierre Bourdieu (1995), verifico que uma das CONNEL, Robert. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade,
dimensões de construção corporificada de diferenças sociais entre os v. 20, n. 2, p. 185-2Q6rjul,/dez..l995a...
sexos ocorre através da organização simbólica e da prática dos usos . Masculinities. Cambridge: Polity Press, 1995b.
diferenciados dos corpos que efetuam a virilização dos meninos e a CUNHA JÚNIOR, CãHos Fernando Ferreira da. Arthur Higgins: Uma
'feminização' das meninas. história de intervenção e conhecimento na educação física
Creio ter demonstrado o potencial dos jogos privativos ao sexo brasileira. In: XI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 1999,
masculino organizados por Arthur Higgins para atuar na educação Florianópolis. Anais...Florianópolis: CBCE, p. 1323-1329.
masculina. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
Termino como comecei: a história do gênero é dinâmica. A 1993. 2 v.
masculinidade é aprendida, construída socialmente. E nós educadores . O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.1 v.
temos um papel importante neste processo. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio
século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1999.
É por isso que a educação ê fundamentalmente política: ela tende a GARCIA, Sandra Mara. Conhecer os homens a partir do gênero e para
inculcar maneiras de portar o corpo, em seu conjunto ou esta ou além do gênero. In: ARILHA, Margareth, MEDRADO, Benedito,
aquela de suas partes...maneiras de caminhar, de manter a cabeça, RIDENTI, Sandra G. Unbehaum (Orgs.). Homens e
ou de dirigir o olhar para o rosto, para os olhos, ou, ao contrário, para masculinidades: outras palavras. São Paulo: ECOS/Ed. 34, 1998.
os próprios, etc., que estão prenhes de uma ética, de uma política e
p. 31-50.
de uma cosmologia, e isto, primordialmente, porque elas são quase
todas sexualmente diferenciadas e porque através dessas diferenças
HIGGINS, Arthur. Compendio de gymnastica escolar. Capital
Federal: Typografia do Jornal do Commercio, 1896.
. Compendio de gymnastica escolar (methodo sueco-belgaj. 2
8 Ver Higgins (1896). ed. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1909.
9 Ver Elias (1994).

118 124
. Compendio de gymnastica escolar (methodo sueco-belga-
brasileiroj. 3 ed. Rio de Janeiro: 1934.
LOPES, Eliane Marta Teixeira. Pensar categorias em história da
educação e gênero. Projeto História, n. 11, p. 19-29, nov. 1994.
LOURO, Guacira Lopes. Uma leitura da História da Educação na
perspectiva do gênero. Teoria e Educação, Porto Alegre, n. 6, p.
53-67,1992.
. Uma leitura da história da educação sob a perspectiva do gênero.
Projeto História, n. 11, p. 31-46, nov. 1994.
. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O
corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
NOLASCO, Sócrates. A desconstrução do masculino: uma contribuição
crítica à análise de gênero. In: NOLASCO, Sócrates (Org.). A
desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
SCOTT, Joan. Gênero; Uma categoria útil. da análise histórica.
Educação e Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995.
TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do
masculino. Rio de Janeiro: Record. 1998.

126

Você também pode gostar