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Revista Palavra
Editorial06 /2015
08 Primeiras Palavras
Maron Emile Abi- Abib
10 Ensaios
Maurício Ianês: Espaço Literário
O corpo da linguagem
Contos
12 Veronica Stigger: 78 Leonardo Villa-Forte:
Útero errante Ligações interrompidas
Diego Moraes:
18 Lourenço Mutarelli: Palmas para o silêncio
Meu corpo gera minha Turn away
mente Poemas de derrubar
Muhammad Ali
Dossiê
Armando Freitas Filho Poesia
31 Antonio Cicero: 86 Alice Sant’Anna
A poesia de Armando 89 Ana Elisa Ribeiro
Freitas Filho e a apreensão 92 Josoaldo Lima Rêgo
trágica do mundo
120 Expediente
Sumário
¶
Nesta sexta edição, que discute o
tema Literatura e Corpo, Palavra
homenageia Armando Freitas Filho,
um dos maiores poetas brasileiros de
renome internacional.
¶
Além de suas poesias, de sua trajetória
São quase 70 anos de existência e,
e de uma entrevista especialmente
ao longo de toda a sua história, o
concedida, a revista traz ensaios,
Sesc tem consolidado seu papel na
contos, poesias, depoimentos
sociedade como importante difusor da
e resenhas de outros autores,
cultura brasileira. Os espaços que cria
mostrando que o corpo tem papel
para a troca de saberes, as feiras, as
fundamental também na literatura.
jornadas, os circuitos de contadores
¶
de histórias, os saraus de poesia, os
Com esta Palavra, o Sesc reafirma
cafés literários, as rodas de leitura e
seu compromisso com a difusão da
tantas outras iniciativas promovidas
literatura e da cultura brasileiras,
Brasil afora resultam da certeza de
a ampliação e a diversificação
que a literatura, nos seus processos
do universo de leitores, na
.
e desdobramentos, é um estímulo ao
esperança de assim colaborar
aprendizado e à educação.
com o desenvolvimento da nossa
¶
sociedade
Essa dedicação especial aos livros e
leitores brasileiros foi responsável
pela criação do Prêmio Sesc de Maron Emile Abi-Abib
Literatura. Realizado em parceria
Diretor-Geral do Departamento
com a editora Record, é uma porta Nacional do Sesc
para a entrada de novos talentos no
mercado literário nacional. E foi nesse
contexto que nasceu a revista Palavra,
uma publicação que, ao dialogar com
outras artes, propõe uma reflexão
sobre a realidade, apresentando uma
perspectiva ampliada do fazer cultural.
Primeiras Palavras
Maurício Ianês
nasceu em Santos, em 1973, e traba- linguagens, e suas funções socio-
lha em São Paulo, onde mora. É ar- políticas, muitas vezes propondo a
tista plástico e sua pesquisa levanta participação do público em ações
questões relacionadas às linguagens em que situações de troca, diálogo e
verbal e artística, as possibilida- desconstrução das relações público/
des expressivas e os limites dessas artista são criadas.
O corpo
da
linguagem
Pensar o corpo, ao se pensar em uma em seus buracos e seus vazios, suas
revista, é também pensar no corpo do potências e suas meias palavras, seus
leitor, em suas ações, nas mãos que pontos finais e espaços, sua matéria
folheiam as páginas, no seu toque, nos gravada em preto e branco.
olhos que percorrem o texto, na per- ¶
formatividade da leitura, na voz que Assim foi pensada esta revista, como
dá vida à matéria impressa. Pensar o um pequeno objeto relacional que
corpo, ao se pensar em uma revista, propõe uma reflexão sobre a ação da
.
é também pensar no corpo da lingua- leitura e da escritura, como um corpo
gem, em seus corpos invisíveis, em sua que só respira quando em embate com
matéria mais crua, em seus silêncios, o corpo do leitor
Veronica Stigger
nasceu em 1973, em Porto Alegre. e Barbárie, 2012) e Opisanie świata
Desde 2001, vive em São Paulo. É (Cosac Naify, 2013, Prêmio Machado
escritora, crítica de arte e professora de Assis, Prêmio São Paulo para autor
universitária. Entre seus livros publi- estreante e Prêmio Açorianos para
cados, estão: Os anões (Cosac Naify, Narrativa Longa).
2010), Delírio de Damasco (Cultura
Útero
errante
Na Antiguidade grega, pensava-se que ceras, o quadro poderia ser ainda mais
o útero podia se deslocar pelo corpo e grave, provocando o sufocamento. To-
que todos os males da mulher decor- dos esses deslocamentos são relatados
riam desse deslocamento. Se o útero por Hipócrates (1851) em seu tratado
ia para o fígado, a mulher perdia ime- Da natureza da mulher. Ao traduzi-lo
diatamente a voz, passava a ranger os para o francês, Émile Littré introduziu
dentes e sua pele ficava escura. Se o parênteses que sintetizam e atualizam
útero ia para a cabeça, a mulher sentia cada parágrafo do texto hipocrático,
dores nas narinas e abaixo dos olhos. associando alguns dos espasmos e das
Se o movimento se dava em direção às dores decorrentes do vagar do útero
pernas, a mulher tinha espasmos sob pelo corpo à histeria – palavra que, vale
as unhas dos dedões dos pés. Se o úte- lembrar, deriva do grego hystéra, cone-
ro andava rumo ao coração ou às vís- xo ao latino utĕrus, de onde vem úte-
¶ apresento-lhes
Nas mulheres [...] o que se denomi- o útero errante
na matriz ou útero é um animal que
vive nela com o desejo de procriar o único
filhos, e quando fica muito tempo testado
estéril, depois da estação certa,
suporta com dificuldade sua condi- aprovado
ção, irrita-se e, vagando por todo o que não vai enganchar
corpo, bloqueia os canais do fôlego,
o que dificulta a respiração, provo- nas escadas rolantes
ca extrema angústia na paciente e nem nas esteiras
é causa das mais variadas perturba-
ções, até que, unindo os dois sexos dos aeroportos
o amor e a vontade irresistível, eles o único
venham a colher os frutos, como de
uma árvore, e semear na terra ará- com passe livre nos estados schengen
vel da matriz animais invisíveis por
sua pequenez e ainda informes, e, ¶
depois de promover a diferencia- Não se trata mais do útero em sua re-
ção de suas partes, alimentá-los,
lação com o organismo, mas de um
até que dentro eles cresçam, para,
por último, com trazê-los à luz, ar- órgão autônomo, nômade, feito sob
rematar a geração da criatura viva medida para a viagem (“que não vai
(PLATÃO 2001, p. 145) enganchar / nas escadas rolantes / nem
¶ nas esteiras / dos aeroportos”). Não o
Daí, o fenômeno do “útero errante” acon- “corpo sem órgãos” de Deleuze e Guat-
tecer, segundo Hipócrates (1851), sobretu- tari, mas algo como um órgão sem cor-
Referências
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004.
KRISTEVA, Julia. The feminine and the sacred. Trad. Jane Marie
Todd. New York: Columbia University Press, 2001.
Lourenço Mutarelli
começou sua carreira como dese- 2011, Quando meu pai se encontrou
nhista. Passou a fazer histórias em com o ET fazia um dia quente.
quadrinhos até se tornar escritor. Fez Escreveu sete peças de teatro, cinco
também alguns trabalhos como ator das quais publicou no livro O teatro de
e atualmente dá oficinas de histórias sombras, em 2007. Escreveu também
em quadrinhos no Sesc Pompeia, em uma minissérie para a internet (ww-
São Paulo. w,teatroparaalguem.com.br), intitula-
Como quadrinista publicou 12 álbuns: da Corpo estranho.
Transubstanciação (1991), Desgraça- Atualmente trabalha como drama-
dos (1993), Eu te amo Lucimar (1994), turgo no projeto “Sobre projeções
A confluência da forquilha (1997), Se- mentais” e em um novo romance, in-
quelas (1998), O dobro de cinco (1999), titulado Livro IV e/ou o filho mais velho
O rei do ponto (2000). Em 2001/2002 de Deus.
publicou Soma de tudo, volumes 1 e 2, Como escritor, tem seis livros publi-
que integram seu último lançamento cados: O cheiro do ralo (2002), O nati-
em quadrinhos, intitulado Diomedes, morto (2004), Jesus Kid (2004), A arte
a trilogia do acidente, pela Companhia de produzir efeito sem causa (2008),
das Letras. Em 2004 lançou Mundo Miguel e os demônios (2009) e Nada
pet, em 2006, A caixa de areia e, em me faltará (2011).
Meu corpo
gera minha
mente
Ensaio Lourenço Mutarelli
A poesia
de Armando
Freitas Filho
e a apreensão
trágica do
mundo
Antonio Cicero
é, em essência, autor. Entre outras coisas, dos tido contemporâneo: poesia (2012) e, em parceria
livros de poemas Guardar (1996, Prêmio Nestlé de com Waly Salomão, O relativismo enquanto visão
Literatura), A cidade e os livros (2002), Porventura do mundo (1994). Com Eucanaã Ferraz, organizou
(2012, Prêmio ABL de Poesia). Em parceria com a Nova antologia poética de Vinicius de Morais
Luciano Figueiredo, publicou O livro de sombras (2003). É ainda autor de inúmeras letras de can-
(2010). É também autor dos livros de ensaios ções, tendo como parceiros compositores como
filosóficos O mundo desde o fim (1995), Finalidades Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco,
sem fim (2005), Poesia e filosofia (2012) e Encontros entre outros. Em 2012, foi agraciado com o Prê-
(2013). Organizou os livros de ensaios Forma e sen- mio Alceu Amoroso Lima — Poesia e Liberdade.
primeiro livro publicado depois que ele, com 51 anos, FREITAS FILHO, Armando. Lar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
teve um filho. “Tenho uma filha de trinta anos e tive
agora um menino que tem hoje dez anos. A chegada FREITAS FILHO, Armando. Longa vida. In: FREITAS FILHO, Armando.
Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 299.
dele foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida.
Ser pai aos 51 anos, como eu fui, é algo que a gente re- FREITAS FILHO, Armando. Números anônimos. In: FREITAS FILHO,
cebe na boca” (FREITAS FILHO, 2001), declarou uma Armando. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
p. 505-514.
vez. O poema em questão, dedicado ao filho, manifes-
ta essa alegria. Ei-lo: FREITAS FILHO, Armando. Raro mar. São Paulo: Companhia das
¶ Letras, 2006.
Músculo, mas do coração. FREITAS FILHO, Armando. 3x4. In: FREITAS FILHO, Armando. Máqui-
A felicidade é indefensável na de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 364.
e esta casa está tão delicada
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. In: MELO NETO,
até nos pregos João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 346.
presente
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?
Doce máquina
O corpo é uma importante chave para a leitura da com engrenagem de músculo
obra de Armando Freitas Filho. Ele está no título
de alguns de seus poemas, como “Corpo”, “Cor- suspiro e rangido
poral”, “Corpo fechado”, “Corpofortificação”,
“Corpo de delito”. Está no nome de livros do au-
o espaço devora
tor: De corpo presente, À mão livre, Cabeça de ho- seu movimento
mem. Além disso, é um dos temas sobre os quais
o poeta vem se debruçando desde o lançamento (braços e pernas
de sua obra, no início dos anos 1960, quando ele
tinha pouco mais de 20 anos. sem explosão).
¶
Essa não é uma cifra simples, no entanto. Já em
“Corpo”, incluído no primeiro livro do escritor, Engenho de febre
Palavra (1963), o corpo individual nasce comple-
xo, espécie de inimigo cúmplice a quem o eu é sono e lembrança
submetido:
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.
Mariana Quadros
é professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janei- deu tese sobre a poesia de Carlos Drummond de
ro, e doutora em Teoria Literária pela Universida- Andrade e dissertação sobre a obra de Armando
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde defen- Freitas Filho.
¶
O poema condensa grande parte dos
problemas a que o escritor retornaria
obsessivamente ao longo de sua traje-
tória. O corpo é uma clausura, mas pa-
radoxalmente deixa espaço aberto às quando publiquei Palavra (1963), Eduardo Portela, na resenha do
dúvidas, à interrogação – “para onde”?
livro reclamou, com razão, que minha poesia passava ao largo do
Ele leva necessariamente à morte, po-
rém seu mecanismo desconhecido momento político que se vivia, que não o refletia em suma. Nun-
“arma e desarma” o prolongamen- ca mais esqueci essa observação e procuro atender à demanda
to da vida do sujeito poético, em um externa, sempre que possível, dentro das minhas possibilidades.1
movimento – precário embora – que
se contrapõe ao fechamento total da ¶
“doce máquina” orgânica. Contenção Talvez Palavra de fato não “atendesse à demanda 1. FREITAS FILHO,
Armando. Cor, jump
e expansão revelam, já aqui, ser as for- externa” por não versar diretamente sobre temas
cut, percussão.
ças em confronto quando se trata do tirados ao noticiário. Entretanto, o livro – em um Celuzlose, São Paulo, v.
corpo em Armando Freitas Filho. movimento sintetizado com perfeição por “Cor- 7, p. 4-13, 1 dez. 2010.
Entrevista concedida a
¶ po” – não deixa de lançar luz para o confinamento,
Renan Nuernberger e
O poema evidencia também um dos privado e coletivo, de que sempre partiu a criação André Goldfeder.
principais desígnios da obra do es- literária de Armando Freitas Filho. Naquele poe-
2. Expressões tiradas
critor: o exercício extenuante com a ma, em que o indivíduo está preso à sua organici-
à entrevista citada.
linguagem. Em “Corpo”, os sons par- dade, reconhecemos a “claustrofobia irremediável
ticipam de jogos de reiterações e con- do eu lírico”, para retomarmos os termos em que
trastes que iluminam a carnadura das o autor resume o problema de fundo de sua escri-
sílabas, marcam o ritmo seco dos ver- ta. Em outros textos do mesmo livro, o sujeito poé-
sos e ecoam os sentidos do poema – a tico se vê refém da incontrolável mão que escreve
repetição de /u/ nas sílabas tônicas de – “A mão deseja/ um barco/ mas o lápis/ faz um
“sem nenhuma ruptura”, por exem- peixe” –, como lemos em “Infância”. Tais clausu-
plo, reproduzindo o fechamento abor- ras, embora subjetivas, não deixam de ser “fruto e
dado pelo verso. Além disso, a sintaxe, consequência de uma situação sitiada”. Têm “uma
fraturada, dá a ver a ossatura da frase, historicidade obrigatória”, portanto.2
a qual se tornará, em diversos outros ¶
poemas de Armando, ainda mais en- Seja como for, a partir do segundo livro de Arman-
trecortada, sincopada, gaga. do, editado em 1966, o leitor reconhece mais clara-
¶ mente as respostas ao momento político testemu-
A atenção sem trégua em relação à ma- nhado pelo poeta. Dois anos antes vivíamos sob a
terialidade da palavra e a abordagem ditadura militar, que duraria mais de duas décadas.
marcante do nascimento da escrita do Antes ainda do golpe, as crescentes demandas por
poeta lançaram alguma sombra sobre transformação do país, vindas de diferentes se-
a diversidade da experiência literária tores da sociedade, levavam intelectuais e movi-
apresentada em seu primeiro livro. O mentos artísticos a buscar participar da renovação
próprio escritor o reconhece em uma almejada. O Centro Popular de Cultura da UNE, na
de suas entrevistas: tentativa de propagar ideais revolucionários para
as massas, abdicava de formas estéticas considera-
das “difíceis” ou opacas. O Concretismo, por sua
vez, rejeitava a comunicação como fim da arte ao
apostar que a racionalidade do “poema objeto em
si mesmo” seria capaz de indicar por contraste a
¶
Vinte e cinco anos depois da publicação do tabloide, o cor-
po estaria novamente no centro de uma série, Numeral, a
qual também se abre em função de seu objeto inapreensí-
vel. Não se trata mais do organismo a cada vez transtornado
pela brutalidade da história. Agora o engenho de Arman-
do Freitas Filho busca computar a duração da vida até seu
termo desconhecido. “Numerando até a morte”, verso do
poema 20, resume esse projeto, inaugurado como suple-
mento a Nominal. Junto ao livro de 2003, foram publicados
os primeiros títulos da sequência de poemas datados e nu- ¶
merados a ser expandida a cada livro do autor. Ainda vivo, Corpo, sujeito, vida eram
Armando Freitas Filho publicou novos textos numerados silenciados, por isso? Não.
como suplemento às coletâneas Raro mar, de 2006, Lar, Na produção de Armando
de 2009, e Dever, de 2013. Por enquanto, subsiste a inter- Freitas Filho, eles se ins-
rogação lançada pela associação de números e datas: até creveram e se inscrevem
quando durará a existência do corpo que escreve e lê; até como narrativas, discur-
que ponto acompanharemos a série? sos, gestos atravessados
¶ pelo silêncio. Tal como na
5. Citamos “Projeto”. Uma vez que o limite do projeto é a fi- corrida rumo àquela lebre
nitude do corpo, escrita e vida se sobre- mecânica caçada pelos gal-
6. Expressão retirada
de “Antitexto”, editado põem. Essa intercessão tem sido, aliás, gos, cuja atração contínua
em De corpo presente. um problema constante na poesia de decorre do intervalo en-
Armando Freitas Filho, muito antes de tre o mecanismo veloz e a
7. Versos
encontrados no poema Lar, e Dever apresentarem um viés anun- pele que lhe cobre, a grafia
sem título de longa ciadamente autobiográfico. Na escrita de desses processos é indis-
vida cujo verso inicial é Armando, o registro da vida nutriu-se sociável de um espaço não
“Quem escreviver”.
sempre do curto-circuito entre o cálcu- preenchido, que torna a
8. FREITAS FILHO, lo rigoroso e o desejo intenso de captar tentativa, a caça, o percur-
Armando. Por que a instabilidade do vivo. Essa tensão sur- so tão importantes quanto
escrevo: sou todo
ouvidos, olho, nariz, gia ainda incipiente nos primeiros livros o resultado ou o tento. Esse
boca e mão. In: do autor, em que o impulso construtivo intervalo é desejável justa-
FREITAS FILHO, sobressaía à inscrição, sempre lacunar, mente na medida em que
Armando. O escritor
por ele mesmo. São da vida. No entanto, já o volume de es- impele a busca sem a qual a
Paulo: Instituto Moreira treia, Palavra, apresentava o projeto de obra não se pode expandir,
Salles, 2001. p. 9. unir jardineiro e engenheiro “por linha defende o escritor:
e rima” em uma escrita impulsionada ao
mesmo tempo pelo crescimento incon-
¶
trolável da semente e pelo pensamento A tentativa, aqui, vale tanto quanto o tento; tal-
milimétrico da planta.5 Além disso, os vez porque tenho o cálculo que os galgos não
versos divulgados nos anos 1960 e no iní- possuem: a de pensar e esperar que um dia a
cio dos 1970 jamais rasuraram a intermi-
tência entre a mão que escreve e a grafia
engrenagem que leva o cheiro da lebre imagina-
da vida: “Vivo o corpo/ escapa”, afirma da pode quebrar e parar.
um poema de Dual. As várias coletâneas Se assim for, contudo, será isso desejável?.8
editadas depois investiriam nessa lacuna,
iluminando o descompasso entre a “pa-
lavra-lapso”6 e a “vida voando/ lá fora”.7
¶
Com Numeral, Armando Freitas Filho
transformaria tal tentativa de anotar o
fluxo no motor de um novo processo de
irrigação do texto pela vida. Até o lan-
çamento da série numerada, o contato
entre poesia e existência estabelecia-se
sob a forma de um descompasso da es-
crita em direção à vida, que, fluida, não
se deixava representar. Desse modo,
escrita e vida ficavam interligadas, mas
ainda não fundidas. Em Numeral, a es-
crita é infiltrada pelas características do
corpo – finito, ancorado no tempo – e
este pelas qualidades da escrita – infini- ¶
ta, em deriva. Vida e escrita se confun-
Em Máquina de escrever, livro que planejo,9 vou perseguir o in-
dem, dessa forma. De tal fusão, decorre
a instabilidade do espaço poético: “ain- tento que acredito ser um dos melhores caminhos que a poe-
da” e “enquanto” são as expressões sia contemporânea pode percorrer ou interrogar: o do poema
que, indissociáveis, desenham os con- aberto a todos os ventos da significação, longe dos pré-moldados
tornos sempre móveis da criação poé-
estéticos, das dicções didáticas, com causa e efeitos explícitos,
tica dos numerais. Porque é singular, o
corpo convive com sua condição finita do poema, enfim, com uma taxa de imprevisibilidade maior che-
(ainda não morto) sem que se possa de- gando a surpreender o próprio autor, que, se não perde de vista
finir sua trajetória de antemão. Porque o seu material, deixa o controle dele cada vez mais remoto.
indeterminado, ele pode reverter suas ¶
múltiplas (e talvez infinitas) possibilida- Nos últimos livros do autor e sobre- 9. Citamos
des em novos textos (enquanto vivo, é tudo na série aberta conduzida pela novamente texto
capaz de exercer sempre mais um pou- temporalidade orgânica, o engenheiro
redigido pelo poeta
como apresentação ao
co sua potência). parece preferir à “receita de rigor: Va- CD produzido pelo IMS
¶ léry Cabral”, enunciada em um poema em 2001. Nesse ano,
Essa desestabilização profícua partici- de 3X4, o incontrolável cômputo da
Máquina de escrever,
publicado em 2003,
pa de uma proposta estética bastante criação poética multiplicada de acordo estava em fase de
consequente: com a permanência provisória da vida. planejamento.
bio-
grafia
1940 citais de poesia beat e forma um grupo para entrar em contato com Gullar, 10
Nasce no Rio de Janeiro, no dia 18 de composto por alguns colegas de colégio: anos mais velho que ele. José Guilherme
fevereiro de 1940, filho de Maria do Rubens Gerchman (pintor), Carlos Ro- se entusiasma com o livro e consegue, a
Carmo Accioly Rabello Martins de Frei- drigues Brandão (poeta e futuro antro- partir de um telefonema para Fernando
tas e Armando Martins de Freitas. Até pólogo que viria a trabalhar com Paulo Sabino, uma sobra de papel de boa qua-
os 15 anos mora no bairro da Urca, na Freire), Camargo Meyer (poeta e futuro lidade da Editora do Autor, da qual era
grande casa de seus avós, com os pais membro do Partido Comunista Brasilei- dono. Armando, então, custeado por
e toda a família materna. Muda-se para ro). Além desses, Mauro Gama (poeta) e seu pai, pode fazer o seu primeiro livro,
o Flamengo, onde fica até casar-se com o pianista Arthur Moreira Lima compu- por um preço razoável.
Regina Fabriani, em 1969, quando re- nham o “coletivo”, grupo que estudava
torna à Urca, para uma outra casa que as artes de cada um como também a si-
sua tia-avó lhe deu. tuação social e política do Brasil. 1963
Publica Palavra, com capa de Rubens
Gerchman.
1955 1962
Lê Fazendeiro do ar & poesia até agora, Cleonice Berardinelli, professora de li-
de Carlos Drummond de Andrade, e teratura portuguesa, depois de se dizer 1964
Poesias completas, de Manuel Bandeira. incapaz de uma avaliação precisa dos Sob o impacto do golpe militar e em
originais do primeiro livro de Armando, resposta a um convite de Mario Cha-
Palavra, sugere a ele que leve os originais mie, entra para a Instauração Praxis,
1956 para Manuel Bandeira. Armando não da qual participa até 1975. Antagoni-
Lê Duas águas, de João Cabral de Melo vai sozinho; pede ajuda a seu pai, que o zando o movimento da poesia concre-
Neto, e A luta corporal, de Ferreira Gullar. acompanha. Bandeira diz que a poesia ta, a Praxis foi o único movimento de
de Palavra é “interessantíssima”, mas su- vanguarda que valorizou o discurso
gere que o poeta, muito moço, ouça sem- sintático em contraposição ao uso da
1958 pre a opinião de gente tão moça quanto palavra isolada – recurso comum na
De volta de uma viagem aos Estados ele – seus cúmplices e competidores. poesia concreta e não concreta – e a
Unidos, onde fez um curso de inglês e Aconselha-o então a procurar Ferreira não-palavra do Poema-Processo. A
de história e cultura americanas, vê uma Gullar ou José Guilherme Merquior. Ar- Praxis estimulava o poema engajado,
exposição de Alexander Calder que mui- mando deu preferência a José Guilher- com forte participação política, sem
to o impressionou. Assiste também a re- me, pois sua timidez o deixou inseguro abrir mão de uma dicção renovadora.
entre-
vista
parte de uma coleção orga-
nizada por Irineu Garcia,
onde os poetas contempo-
Você, comumente, cita dois poetas râneos liam seus poemas.
que teriam sido suas grandes in-
Não me lembro de lhe ter
fluências: Bandeira e Drummond.
Poderia nos dizer como se deu o pedido esse presente, que
encontro com a poesia de ambos e foi o melhor que recebi até
que impacto causou em você e na
sua poesia? hoje. Esse disco não para de
tocar. Logo depois ganhei
Bandeira e Drummond me o livro Poesias, de Manuel
chegaram via oral, digamos Bandeira, e Fazendeiro do
assim. Meu pai, em 1955, ar & poesia até agora, de
me deu o disco, que fazia Carlos Drummond de An-
drade. Ainda não acabei de
lê-los como eles merecem
mais de meio século depois.
pois já contornei a grande 2015 - Entrevista para a revista Palavra, número 6, do SESC
Por Flavia Tebaldi e Frederico Girauta
curva e entrei na reta final,
como dizia um famoso lo-
cutor de turfe.
2010
Publica a antologia Melhores poemas. 2014
Armando Freitas Filho. A seleção dos O texto “Cão feroz” é publicado no nú-
poemas e o prefácio são de Heloisa mero 96 da revista Piauí.
Buarque de Hollanda. Recebe o Prêmio Alphonsus de Gui-
É lançada na Argentina Entre cielo y maraens, concedido pela Fundação Bi-
suelo: una antologia. Poemas de Ar- blioteca Nacional, por seu livro Dever,
mando selecionados por Teresa Ari- e o Prêmio Alceu Amoroso Lima – Poe-
jón e Camila do Valle. Texto crítico sia e Liberdade 2014, pelo conjunto da
de Viviana Bosi. obra.
O número 6 da revista Serrote publi-
ca “Compreende?”, ensaio sobre a
poesia e o poeta João Cabral de Melo 2015
Neto. Mais uma vez o poeta é tema de tese
de doutorado – O erotismo na poesia de
Armando Freitas Filho – defendida por
2011 José Felipe Mendonça da Conceição na
“Poesia participante e praia”, mais um Faculdade de Letras da Universidade
ensaio do poeta publicado na revista Federal do Rio de Janeiro.
Serrote, número 8.
Publica no blog do Instituto Moreira
Salles um conjunto de cartas trocadas
com Maria Rita Kehl.
2012
Lança Pingue-pongue, com Alice
Sant’Anna, realização de Sergio Liuzzi.
Sua obra é tema da dissertação de
mestrado Ao rés da escrita: tensões na
poesia de Armando Freitas Filho, defen-
dida por André Barbugiani Goldfeder
na Faculdade de Filosofia, Letras e
O tigre salta
A única ameaça
da página
Depoimentos
Armando — um tema
elas têm que fazer um sentido
quase que corpóreo, estou em
luta com a vibração última.
Clarice Lispector
Depoimentos
Depoimentos
¶
O amálgama entre vida e escrita, entre
corpo e ferramenta de trabalho (mão,
dedos, ossos, máquinas, tecla, fita, tin-
ta), imprime nesse belo poema um resu-
mo dos 40 anos em que o poeta se joga
nessa batalha física, mental e não menos
sentida com a poesia. Assim, o “Nume-
ral 53” vai se for-
2 cf. “Objeto urgente”, mando das partes
texto de introdução
ao volume Máquina de para o todo, numa
escrever. p.18. composição cuja
Depoimentos
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. José. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
O roubo
1. repeti, ouvindo o eco
repetir-nos no museu quase que penetram fundo
Lá no início, havia o cubo, e que acendem partes
eu disse, ele era o ovo vazio
em que cavar outra em nós secretíssimas,
coisa: outro cubo àquela hora, pela manhã, onde do mais alto fogo).
Armando Freitas Filho e eu
vazio visitávamos, mais uma vez, Vidrados em Weissmann,
maravilhados, a exposição de varados por Weissmann,
arrancado ao sólido,
como um silêncio ar- Weissmann. Armando e eu
rancado à musica, de que precisávamos?
um poema ao dicionário. Ficamos ali, girando em
torno de fios metálicos, De mais e mais Weissmann!
Vazio, quadrados desdobrados, Levarmos um Weissmann!
olhando detalhes, um
acrescentou meu amigo, Como resistir?
sobre o qual não canta V Como não querer
o sabiá, nem se fincará
nele um país, ou tempo. articulado a outro, uma em casa um Franz Weissmann?
espiral de, um vôo voo Cada qual o seu!
Vazio de, e planos, e fitas,
e chapas, e vermelhos. Que fazer então?
sem nada dentro, concordei, Como carregá-los?
sem segredos, a só sensação
do sem, como uma casa- (A leveza em ferro
cubo aberta ao vento, pesa toneladas).
2.
vazio Planejamos tudo,
A contemplação não teria erro.
de janela absoluta, que não satisfazia:
desfaz fora e dentro, No momento exato,
casa para desmorarmos, tudo coisa, corpo, como combinado,
ovo-des, deslocamento. incitava a posse
cada qual meteu
Vazio (provando que o número, o seu num seu poema,
sim, e a geometria
que se repete, vazio-ritmo, enquanto o vigia,
disse meu amigo contornando podem o erotismo tonto, cochilava.
em passo leve o leve, como do livre lirismo;
procurasse o que no Não tocou o alarme.
que a régua, só talo, Nada deu por nós,
vazio sem miolo ou pétala
pelo que no arroubo
era o espaço, ou melhor, – outra natureza – fez do verso o werso.
os espaços, disse ele, espaços, tem cor e perfume
Depoimentos
Poema
Ligações interrompidas
Trecho do romance inédito
a ser lançado no segundo semestre de 2015.
Contos
Contos
Contos
Alice Sant’Anna
nasceu em 1988, no Rio de Janeiro. livro Rabo de baleia (Cosac Naify)
Em 2008, publicou seu primeiro recebeu o prêmio APCA de título
livro de poesia, Dobradura (7Letras). de poesia de 2013. Em dezembro de
Em 2012, lançou, em parceria com 2014, lançou outra plaquete, “Ilha da
Armando Freitas Filho, a plaquete decepção”, com fotografias de seu
independente “Pingue-pongue”. Seu pai, Alexandre Sant’Anna.
baixo gávea
você está mais magra a gente só lembra de quem não veio
a qualquer momento o cordão você que está sumida
vai arrebentar de tão velho não te vejo faz quantos meses
se alguém puxasse mesmo essa viagem não te fez bem, está magra demais
que de leve já era e por que não deu certo? achei que fosse
mas ela sempre foi magra durar, todo mundo achou
ficamos marcados para sábado então marcamos sábado
ninguém me chamou? não é isso ou domingo não lembro
daquela vez também trabalho perto de você, vamos combinar
ninguém me convidou para o café a gente sempre aprende
não li a segunda parte, mas a primeira alguma coisa qualquer coisa
me fez mal fisicamente falando no carnaval duzentas mil pessoas no aterro
não posso andar com vocês ela disse que queria ficar só comigo
não tenho pós-graduação eu e ela e eu
pra citar deleuze, falar em epistemologia etc. falei que aquilo não tinha como
mas vocês já se separaram? em pleno carnaval aquela gente toda
a menina vem pra cá nesse fim de semana bateu uma saudade
no fundo não estou assim tão a fim não bolei nenhum plano b
você está com uma cara mas fica bem, você está bem?
parece que alguém que você queria vou comemorar amanhã com a minha mãe
que viesse não veio talvez alguma coisa na minha casa
apareceu tanta gente você tem que conhecer minha casa
e é sempre assim minha casa já está com cara de casa
Poesia
Caixas
numa caixa preta e com uma serra
cortaria a mulher em dois
as perninhas balançando de um lado
e o sorriso amedrontado de outro
depois num lance impressionante o mágico
juntaria as duas caixas
ou todas que fossem necessárias
ele disse que era uma questão e pediria para a moça receber
de ter paciência os aplausos da plateia
e agora vive as pernas e o sorriso num corpo só
dentro de uma pequena caixa numa única caixa
para a qual me curvo que vem a ser o corpo
não estamos próximos mas nos falamos enquanto isso você pega um trem
nas pontas dos dedos embrulhado em muitos casacos
ele me aconselhou a ter paciência que não protegem a lâmina de vidro
disse que as palavras nem sempre têm um túnel subterrâneo
assim tanto peso profundo sob a terra em qualquer parte
que as palavras dentro eu sou a assistente me valendo de mesuras
de uma pequena caixa pedem desço para recolher as flores no chão
boa vontade mas sobretudo paciência sorrio com o olhar distante
tudo é envolto por caixas paciente mas sem muita certeza
principalmente a torácica de que essas são mesmo
o meu coração que você carrega as minhas pernas
por outra parte
talvez em outro planeta
paciência: eu também
caminho empilhando caixas
sou feita de caixas uma em cima
da outra equilibradas mas o tempo todo
a um fio de espatifar no chão
não sei de que material é feita a caixa
algo frágil que não amassa
não é papelão ou papel pardo é mais
vidro fino um cristal
que pode proteger do vento mas não
da queda nunca da queda: paciência
o vidro pode romper numa lufada
se estivéssemos no palco o mágico
convidaria sua assistente para deitar
Poesia
Se eu chego antes,
te pego com respeitos demais;
Se eu chego atrasada,
te pego casado e pai;
Então eu chego agora,
pra ver se é boa hora.
Poesia
Estão me chamando
e a empregada cora.
Falar com quem
se o cachorro só late
e o papagaio repete:
de senhora.
ferrada. Sistematicamente, senhora.
Se nem falar sozinha pode, A senhora não quer? A senhora deseja?
simplesmente, A senhora procurou? Por ali, senhora.
E não faço esforço, não coloro, não descoloro,
não fala. não escondo, não camuflo, não distorço.
Vai pescando E não passo mais batido.
os inferninhos Senhora até o osso.
que vai conseguindo Mas a alma? A alma, não.
no aquário da sala. nem em vizinha gostosa.
livrei-me do perigo
nasci no maranhão na era das migrações
e escapei impune dos canaviais de são paulo
escapei do corte da cana mais dura
(de potência da sacarose da cana
tratada em laboratório)
por descuido não peguei o trem fantasma
na belém-brasília
não enfiaram-me num albergue de beira de estrada
pago pelo gato da fazenda
envelheci sem conhecer aquela prostituta
paranaense
fodida por dez reais
pagos pelo gato da fazenda
agora deixo escorrer como memória
do que poderia ter sido
a cachaça em copo sujo
na dívida antes do trabalho
o trabalho manual nos canaviais
donde escapei como quem escapa
do perigo
sem explicação
(do livro Paisagens Possíveis, Editora 7Letras, 2010)
Poesia
Dançando
não sabemos o destino dos sonhos no
se uma praia real ou o saco de lixo
mas é provável que as imagens prediletas da infância escuro
fiquem guardadas até que um anjo terrível apareça
de cinzas no centro
do mundo
digamos que você pensou no espaço
fora do tempo. talvez na duração das
lembranças após o trauma de ter presenciado
o sumiço de uma estrela. digamos que você Talvez rasgar as costas
pensou na explosão de uma estrela
e depois chorou a matéria aparentemente
na praia.
perdida na imensidão do cosmo. Ser pedra sem viagens
ou mais, que você considerou o fato de desenrolar fora do lume.
questões subalternas e ainda sonha com a compra Caminhar como um killer
de uma bike nova. digamos que você qualquer.
pensou em estações do ano bem definidas, num clima
para passeios: ornamentos em árvores e estações
Agreste entre agrestes,
dentro umas das outras (o verão em pleno inverno, nada. Só uma fresta aberta
por exemplo). digamos que você pensa com a palavra.
não estar nessa quarta-feira de cinzas (do livro Variações do mar, Editora 7Letras, 2012)
no centro do mundo.
(do livro Variações do mar, Editora 7Letras, 2012)
Rogério Pereira
nasceu em Galvão (SC), em 1973. É jornalista, editor e Pública do Paraná. É editor e escreve crônicas se-
escritor. Em 2000, fundou em Curitiba o jornal Ras- manais para o site Vida Breve (www.vidabreve.com.
cunho – uma das raras publicações sobre literatura br). Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha,
no Brasil. É idealizador do “Paiol Literário”, projeto França e Finlândia. É autor do romance Na escuridão,
que já recebeu cerca de 60 grandes nomes da litera- amanhã (Cosac Naify), publicado em 2013, finalista
tura brasileira para debates literários na capital para- do prêmio São Paulo de Literatura e menção honrosa
naense. Desde janeiro de 2011, é diretor da Biblioteca no Prêmio Casa de Las Américas (Cuba).
Para iniciar,
a cólera.
Ou
o ano que
desapareceu
Tenho obsessões. Muitas delas me causam constrangi-
mentos. Busco suas origens para identificar onde nasce
o inimigo. É uma busca cega, um mergulho num mar
em permanente revolta. Sou abstêmio há quinze anos.
Não é obsessão. É apenas uma frágil estratégia para es-
ticar um pouco os segundos que me restam. A agitação
do corpo – encharcado pelo álcool no réveillon – não
me sufoca no Ano-Novo. Estou insanamente sóbrio.
Busco o livro de capa vermelha e o leio em duas longas
golfadas – uma pela manhã, outra à tarde. As pergun-
tas são inevitáveis: “Por que este livro?; O que tem este
livro?; Você não cansa de ler sempre o mesmo livro?”.
Eu Recomendo
Eduardo Lacerda
é poeta, produtor cultural e editor. Metamorfose e O casulo – jornal de poesia
Cursou letras na Universidade de São contemporânea. Atualmente é editor da
Paulo (USP) e trabalhou como produtor Editora Patuá e diretor da Public.Inc –
cultural na Casa das Rosas – Espaço incubadora de publicações e editoras
Haroldo de Campos de Poesia e Lite- independentes. Como poeta, lançou o
ratura e no Programa São Paulo: um livro Outro dia de folia, premiado com o
estado de leitores. Coeditou a revista Programa de Ação Cultural (ProAC).
¶ >>
Embora não tenham nenhuma afinidade em suas poéti-
cas, ambos os livros, por coincidência, trazem em seus
poemas – de maneira muito diversa –, entre muitos outros
temas, a relação com o outro, com o corpo e com a casa.
¶
Desde os títulos há relação explícita com a casa e, por
consequência, com o que é corpo, já que o espaço que
habitamos é uma extensão de nosso corpo, como afir-
mam Deleuze e Guattari:
¶
Talvez fosse um embaralhamento ou um caos, se não hou-
vesse um segundo elemento para dar consistência à carne.
A carne é apenas o termômetro de um devir. A carne é tenra
demais. O segundo elemento é menos o osso ou a ossatura
que a casa, a armadura. O corpo desabrocha na casa (ou
num equivalente, numa fonte, num bosque). Ora, o que
define a casa são as extensões, isto é, os pedaços de planos
diversamente orientados que dão à carne sua armadura:
primeiro-plano e plano-de-fun-
do, paredes horizontais, verti-
cais, esquerda, direita, retos e
míopes. A cerca viva, devorada pelas formigas, desenca- oblíquos, retilíneos ou curvos...
deia o embate entre o casal, o copo de cólera transborda. Essas extensões são muros, mas
também solos, portas, janelas,
¶ portas-janelas, espelhos, que dão
(Escrito em 1970 e publicado oito anos depois, Um precisamente à sensação o poder
de manter-se sozinha em moldu-
copo de cólera, de Raduan Nassar, é um espanto de ras autônomas. São as faces do
concisão. Em menos de 90 páginas, deixou uma mar- bloco de sensação. (DELEUZE;
GUATTARI, 1992 n. pg).
ca permanente na literatura brasileira, graças ao do- ¶
mínio da linguagem – o narrador oscila entre o subli- Começarei comentando sobre
Pequenos afazeres domésticos.
me e o escatológico, entre o popular e o erudito – e à Nos poemas de Lilian Aquino
fúria narrativa que enreda o leitor numa torrente im- o corpo-indivíduo que habita
espaços – muitos espaços aber-
parável. É uma história banal. O encontro de um casal tos e saídas – não se reveste de
[um homem na segunda metade da vida e sua jovem armaduras, nem aparece como
prisão, mas surge sempre em
namorada] se transforma num jorro de ofensas, res- contemplação ou fruição das
sentimentos, mal-entendidos, e escancara o impacto possibilidades de libertação,
como em Urbanismo,
da ditadura sobre toda uma geração.) ¶
¶ Lá onde morava / não tinha mar-
gem / nem esquinas: / era inteiro.
A falha no início da lista tira-me a paz inexistente. // E se à noite pensava / via estra-
Um pequeno salto na loucura que criei para existir. das, cruzamentos / canteiros / e
Eu recomendo
>>
alguém para se transformar em “um novo ser”, como no
poema Outro:
¶
desejo enorme / de não ser este / portar outros gestos / vestir
noutro dedo / o anel alheio / de ter outra casa / noutra cida-
de / assinar cheques / com outro nome / outra letra / desejo
/ de outras sílabas / outros beijos / outra mão a afagar / ou-
tros cabelos / noutro / espelho / outra barba / pontilhando o
rosto / o queixo / sob outra luz / outro cheiro / noutro quar-
to / sem cadeira / sob o nó da forca / sem o copo de veneno
/ lá em cima do piano / onde não pude ser alguém / coisa
que se fixa / como ideia clara / desejo de outro hotel / outra
bagagem / e digitais rasuradas / como quem lava as mãos / e
apaga / o fogo de quem foi (WEINTRAUB, 2002, p. 18).
¶
A impossibilidade de comunicação desse indivíduo, desse
corpo, com o outro, com o outro corpo, é explícita em
Mais magro, com certeza um dos melhores e mais rele-
vantes poemas da poesia brasileira contemporânea:
¶
Mais magro / Meu amigo está
mais magro / Volto a encontrá-lo
tempo. O tempo não passa no rosto vincado, onde / dois ou três verões mais tarde /
sulcos começam a esburacar a pele, nem nas dores e chego mesmo a dizê-lo: / Você
está mais magro, / ‘Problemas de
no ciático (este monstro que, às vezes, me tira o intestino’, / responde-me esquivo
pouco sono), mas nas entrelinhas de personagens / [...] já estive pior, agora / voltei
a engordar. / Não peço detalhes /
que atravessam meu caminho. mas vejo o ombro mirrado / entre
¶ as alças da regata / Evito tocá-lo
/ pois a mera proximidade física
O atacante baixinho fez um gol. Fez vários gols. / parece estranha agora / que
Havia homens pulando em volta de um campo de meu amigo está mais magro //
Novamente juntos / caminhamos
futebol. Homens grandes pulando de alegria por pela orla marítima / Eu lhe recito
algo estranho. Depois, suados, sujos, estropiados, algum verso / ele me ensina outro
insulto / e há quase alegria de tré-
levantam uma taça. Estão muito felizes. Todos mui- gua / não fosse o fato / dele estar
to felizes. As imagens estão comigo. Muita gente fe- mais magro // Se ainda ontem
tocassem / os telefones insones /
liz nas ruas. Somos campeões do mundo. Os gritos na barra da madrugada / e meu
volteiam pelas cidades, pelo país, pelo mundo. É amigo dissesse / palavras de testa-
mento / eu sairia correndo / para
um ano inesquecível. Mas antes, houve muita tris- deitar-lhe compressas / na testa já
teza. Uma curva e a morte. A batida violenta contra repartida // Se fosse eu o afogado
/ dentro da onda invisível / de
o muro na curva assassina. Muitos choram. Lamen- bílis, lua e silêncio / ele pagava o
tam a morte de um gênio das pistas. Eu não chorei. resgate / limpava o sal de meus
Eu recomendo
Referências
AQUINO, Lilia. Pequenos afazeres domésticos.
São Paulo: Patuá, 2011.
DELEUZE Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992.
Não gosto de chorar. Outros morreram: o músico fa- Paulo: Nankin, 2002.
¶
Jamais o corpo foi tão exibido e
interpretado, ao mesmo tempo em
que todo mundo concorda em dizer
que ele é um enigma. Com a arte
corporal e as performances artísticas,
o corpo se faz obra viva. Essa obra não
pretende tratar do corpo na pintura ou
na escultura, mas das incidências da
criação artística e da literatura sobre
sua estética cotidiana.
Corpo,
imagem e
representação
Movi- O corpo
Viviane Furtado Matesco mento da liberdade
Editora Zahar, 2009 total: o
¶ Jorge Coli
Quando se enfrenta a temática do
corpo e Cosac Naify, 2010
corpo na arte, o cerne do problema é a dança ¶
o terreno movediço dos próprios ter- Jorge Coli, professor titular da
mos que envolvem a questão: corpo, José Gil Universidade de Campinas e
imagem e representação não possuem Iluminuras, um dos grandes especialistas na
um sentido único e podemos afirmar 2009 arte do século XIX, revisita com
que a cultura ocidental é fruto dessa ¶ originalidade as obras de mestres
polissemia. Esse livro busca as raízes Esse livro abre novas possibilidades como Goya, David, Ingres, Manet,
históricas da relação entre esses três de reflexão sobre a dança e sua Courbet e pintores brasileiros como
elementos e, assim, amplia a reflexão expressão. O filósofo português José Pedro Américo e Almeida Jr. Com
sobre a questão do corpo na arte con- Gil repensa aqui nada menos que os um olhar livre de esquemas teóricos
temporânea. A sublimação do físico fundamentos ontológicos da dança: prévios, atento sobretudo às
na representação do nu e a afirmação o corpo, a linguagem, o gesto, o obras em si, o autor traça relações
de um corpo primário na arte contem- sentido, a consciência, a comunicação. inesperadas entre arte, cultura
porânea são investigadas a partir de E o faz dialogando ricamente não e sociedade. A ideia que norteia
uma nova ótica. apenas com o trabalho de seu percurso é a de liberdade do
criadores e teóricos da dança, homem. Nas suas próprias palavras:
como Rudolf Laban, Mercê “Todos os estudos aqui presentes
Cunningham, Yvone Rainer, trazem, como pressuposto ou
Steve Paxton e Pina Bausch, como centro, aspectos da liberdade
O corpo como mas também com filósofos nas artes durante o século XIX –
objeto de arte como Merleau-Ponty, Kant pública, política, coletiva, individual
Husserl, Gilles Deleuze e ou artística. Esta liberdade, una e
Henri Pierre Jeudy Félix Guattari. múltipla, reveste-se de um vivido
Editora Estação Liberda- sensível, no qual o corpo, bem
de, 2002 físico, é o protagonista”.
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