Você está na página 1de 120

1

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 1 05/05/15 12:29


2

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 2 05/05/15 12:29


Editorial 3

Em 1963, o poeta Armando Freitas


Filho publica seu primeiro livro, Pala-
vra. Entre os poemas que compõem a
obra, está “Corpo”, do qual transcre-
vemos a última estrofe: “Engenho de
febre/ sono e lembrança/ que arma/ e
desarma minha morte/ em armadura
de treva.” O poema de AFF reflete a
forma como percebemos e nos rela-
cionamos com o corpo e como este Essas construções discursivas em tor-
catalisa e exprime todas as dimensões no do corpo têm reflexo na arte. Na
da existência humana: física, intelec- literatura, o corpo está presente não
tual e afetiva. somente como tema ou elemento na
¶ composição dos personagens; o texto
Primeiro meio de comunicação huma- literário em si é um corpo. Além disso,
na, a capacidade expressiva do corpo é ainda na relação com outro corpo,
foi aos poucos sendo reprimida e mol- do leitor, que o texto se completa.
dada, à medida que o homem desen- ¶
volvia outras formas de se expressar. A relação entre o corpo no texto e o
Além disso, ao longo da história da corpo do texto e suas representações
humanidade, a forma como o corpo é sempre nos inspirou: primeiramente, Depoimentos de Eucanaã Ferraz,
visto reflete a própria cultura em que na definição de um projeto editorial Mário Alex Rosa, Eduardo Coelho e
está presente, seus hábitos, valores e em que a concepção visual e o pro- Laura Liuzzi, artigo de Antonio Cicero
ideias. Assim, o corpo é associado tan- jeto gráfico caminham na direção da e ensaio de Mariana Quadros sobre
to à força, à bravura, à beleza quanto palavra-sinestesia, tratando o próprio um dos temas centrais da poesia frei-
à tentação, ao pecado, ao erro. Ele texto como personagem visual, convi- tasiana – o corpo – enriquecem a re-
é tanto objeto de sujeição quanto de dando o leitor para a performance de vista, que traz ainda o poema “À flor
autonomia, de aprisionamento e de leitura, que não se encerra no que o da pele”, com fotos de Roberto Maia,
libertação, marca de identidade indi- texto diz, mas se amplia com o que ele publicado originalmente em 1978 e
vidual e coletiva. mostra – ou insinua. Essa relação, tão reproduzido especialmente nesta
¶ presente na literatura, surge agora na edição. Tudo isso e mais uma entre-
No entanto, sua característica funda- escolha do tema para este número da vista com Armando Freitas Filho é a
mental, a materialidade, dá a ele uma revista Palavra. homenagem da Palavra a esse grande
dimensão política transgressora. O ¶ poeta, um dos maiores do Brasil, cuja
corpo é presença, se impõe. Nesta edição, com projeto visual obra nos inquieta desde o primeiro
¶ assinado pelo artista Maurício momento.
Ianês, você encontrará ensaios de ¶
Veronica Stigger, Lourenço Mutarelli Boa leitura!
e do próprio artista. Na seção “Eu
recomendo”, resenhas de Eduardo
Lacerda e Rogério Pereira sobre
livros em que o corpo assume lugar
fundamental. Palavra traz ainda
contos de Diego Moraes e Leonardo
Villa-Forte, e poemas de Ana Elisa
Ribeiro, Alice Sant’Anna e Josoaldo
Lima Rêgo.

Revista Palavra
Editorial06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 3 05/05/15 12:29


4

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 4 05/05/15 12:29


5

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 5 05/05/15 12:29


Sumário

08 Primeiras Palavras
Maron Emile Abi- Abib

10 Ensaios
Maurício Ianês: Espaço Literário
O corpo da linguagem
Contos
12 Veronica Stigger: 78 Leonardo Villa-Forte:
Útero errante Ligações interrompidas
Diego Moraes:
18 Lourenço Mutarelli: Palmas para o silêncio
Meu corpo gera minha Turn away
mente Poemas de derrubar
Muhammad Ali

Dossiê
Armando Freitas Filho Poesia
31 Antonio Cicero: 86 Alice Sant’Anna
A poesia de Armando 89 Ana Elisa Ribeiro
Freitas Filho e a apreensão 92 Josoaldo Lima Rêgo
trágica do mundo

39 Mariana Quadros: Eu Recomendo


De corpo presente 98 Rogério Pereira: Para
iniciar, a cólera. Ou o ano
48 Biografia que desapareceu
99 Eduardo Lacerda:
49 Entrevista O corpo desabrocha na
casa — uma breve leitura
58 Suíte para o Rio de Novo endereço, de Fabio
Weintraub e Pequenos afa-
zeres domésticos, de Lilian
Depoimentos Aquino.
61 Laura Liuzzi:
O tigre salta da página
Eduardo Coelho: 109 Dicas
A única ameaça Poesia
Ficção
64 Eucanaã Ferraz: Não ficção
Armando — um tema Filmes
Mário Alex Rosa: Música
A máquina do poema
116 Colaboradores

120 Expediente

Sumário

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 6 05/05/15 12:29


7

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 7 05/05/15 12:29


8 Primeiras Palavras


Nesta sexta edição, que discute o
tema Literatura e Corpo, Palavra
homenageia Armando Freitas Filho,
um dos maiores poetas brasileiros de
renome internacional.

Além de suas poesias, de sua trajetória
São quase 70 anos de existência e,
e de uma entrevista especialmente
ao longo de toda a sua história, o
concedida, a revista traz ensaios,
Sesc tem consolidado seu papel na
contos, poesias, depoimentos
sociedade como importante difusor da
e resenhas de outros autores,
cultura brasileira. Os espaços que cria
mostrando que o corpo tem papel
para a troca de saberes, as feiras, as
fundamental também na literatura.
jornadas, os circuitos de contadores

de histórias, os saraus de poesia, os
Com esta Palavra, o Sesc reafirma
cafés literários, as rodas de leitura e
seu compromisso com a difusão da
tantas outras iniciativas promovidas
literatura e da cultura brasileiras,
Brasil afora resultam da certeza de
a ampliação e a diversificação
que a literatura, nos seus processos
do universo de leitores, na

.
e desdobramentos, é um estímulo ao
esperança de assim colaborar
aprendizado e à educação.
com o desenvolvimento da nossa

sociedade
Essa dedicação especial aos livros e
leitores brasileiros foi responsável
pela criação do Prêmio Sesc de Maron Emile Abi-Abib
Literatura. Realizado em parceria
Diretor-Geral do Departamento
com a editora Record, é uma porta Nacional do Sesc
para a entrada de novos talentos no
mercado literário nacional. E foi nesse
contexto que nasceu a revista Palavra,
uma publicação que, ao dialogar com
outras artes, propõe uma reflexão
sobre a realidade, apresentando uma
perspectiva ampliada do fazer cultural.

Primeiras Palavras

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 8 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 9 05/05/15 12:29
10 Ensaios

Maurício Ianês
nasceu em Santos, em 1973, e traba- linguagens, e suas funções socio-
lha em São Paulo, onde mora. É ar- políticas, muitas vezes propondo a
tista plástico e sua pesquisa levanta participação do público em ações
questões relacionadas às linguagens em que situações de troca, diálogo e
verbal e artística, as possibilida- desconstrução das relações público/
des expressivas e os limites dessas artista são criadas.

O corpo
da
linguagem
Pensar o corpo, ao se pensar em uma em seus buracos e seus vazios, suas
revista, é também pensar no corpo do potências e suas meias palavras, seus
leitor, em suas ações, nas mãos que pontos finais e espaços, sua matéria
folheiam as páginas, no seu toque, nos gravada em preto e branco.
olhos que percorrem o texto, na per- ¶
formatividade da leitura, na voz que Assim foi pensada esta revista, como
dá vida à matéria impressa. Pensar o um pequeno objeto relacional que
corpo, ao se pensar em uma revista, propõe uma reflexão sobre a ação da

.
é também pensar no corpo da lingua- leitura e da escritura, como um corpo
gem, em seus corpos invisíveis, em sua que só respira quando em embate com
matéria mais crua, em seus silêncios, o corpo do leitor

Ensaio Maurício Ianês

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 10 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 11 05/05/15 12:29
12

Veronica Stigger
nasceu em 1973, em Porto Alegre. e Barbárie, 2012) e Opisanie  świata
Desde 2001, vive em São Paulo. É (Cosac Naify, 2013, Prêmio Machado
escritora, crítica de arte e professora de Assis, Prêmio São Paulo para autor
universitária. Entre seus livros publi- estreante e Prêmio Açorianos para
cados, estão: Os anões (Cosac Naify, Narrativa Longa).
2010), Delírio de Damasco  (Cultura

Útero
errante
Na Antiguidade grega, pensava-se que ceras, o quadro poderia ser ainda mais
o útero podia se deslocar pelo corpo e grave, provocando o sufocamento. To-
que todos os males da mulher decor- dos esses deslocamentos são relatados
riam desse deslocamento. Se o útero por Hipócrates (1851) em seu tratado
ia para o fígado, a mulher perdia ime- Da natureza da mulher. Ao traduzi-lo
diatamente a voz, passava a ranger os para o francês, Émile Littré introduziu
dentes e sua pele ficava escura. Se o parênteses que sintetizam e atualizam
útero ia para a cabeça, a mulher sentia cada parágrafo do texto hipocrático,
dores nas narinas e abaixo dos olhos. associando alguns dos espasmos e das
Se o movimento se dava em direção às dores decorrentes do vagar do útero
pernas, a mulher tinha espasmos sob pelo corpo à histeria – palavra que, vale
as unhas dos dedões dos pés. Se o úte- lembrar, deriva do grego hystéra, cone-
ro andava rumo ao coração ou às vís- xo ao latino utĕrus, de onde vem úte-

Ensaio Veronica Stigger

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 12 05/05/15 12:29


13

ro em português. Uma associação que do entre as solteironas e as viúvas. Para


não era gratuita. Ainda se acreditava, estas últimas, a receita era ficar grávida;
num período pré-Charcot e pré-Freud, para aquelas outras, arranjar um marido.
que manifestações histéricas, até en- ¶
tão vistas como exclusivas das mulhe- O “útero errante”, de Um útero é do ta-
res, derivavam do mau funcionamen- manho de um punho, de Angélica Frei-
to do aparelho sexual feminino. Cabia tas (2012), não se desloca mais pelo
à mulher procriar. Para os antigos, se corpo, mas pelo mundo. É assim que
ela não procriasse, ou seja, se não co- a autora o apresenta no poema que dá
locasse seu útero em funcionamento, título ao livro:
este se punha a mover-se, e o organis- ¶
mo inteiro entrava em colapso. É para
prezadas senhoras, prezados senhores,
esse entendimento que aponta Platão,
contemporâneo e provável leitor de Hi- excelentíssimo ministro, querida rainha da festa da uva,

pócrates, no Timeu: amigos ouvintes, brasileiros e brasileiras:

¶ apresento-lhes
Nas mulheres [...] o que se denomi- o útero errante
na matriz ou útero é um animal que
vive nela com o desejo de procriar o único
filhos, e quando fica muito tempo testado
estéril, depois da estação certa,
suporta com dificuldade sua condi- aprovado
ção, irrita-se e, vagando por todo o que não vai enganchar
corpo, bloqueia os canais do fôlego,
o que dificulta a respiração, provo- nas escadas rolantes
ca extrema angústia na paciente e nem nas esteiras
é causa das mais variadas perturba-
ções, até que, unindo os dois sexos dos aeroportos
o amor e a vontade irresistível, eles o único
venham a colher os frutos, como de
uma árvore, e semear na terra ará- com passe livre nos estados schengen
vel da matriz animais invisíveis por
sua pequenez e ainda informes, e, ¶
depois de promover a diferencia- Não se trata mais do útero em sua re-
ção de suas partes, alimentá-los,
lação com o organismo, mas de um
até que dentro eles cresçam, para,
por último, com trazê-los à luz, ar- órgão autônomo, nômade, feito sob
rematar a geração da criatura viva medida para a viagem (“que não vai
(PLATÃO 2001, p. 145) enganchar / nas escadas rolantes / nem
¶ nas esteiras / dos aeroportos”). Não o
Daí, o fenômeno do “útero errante” acon- “corpo sem órgãos” de Deleuze e Guat-
tecer, segundo Hipócrates (1851), sobretu- tari, mas algo como um órgão sem cor-

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 13 05/05/15 12:29


14

po. No século XXI, seus deslocamentos me olho no espelho


não produzem mais transtornos; muito
pelo contrário: em contraposição a uma visão da andrade neves
negativa da histeria, tal qual descrita no poema da general osório
“uma canção popular (séc. XIX-XX)”, em que os
arroubos da mulher são reprimidos e subjugados da gartuk street
violentamente (“interna, enterra”), de maneira
a zelar pelo bem-estar do homem (“são porcas da johanitterstrasse
permanentes / mas como descobrem os maridos
/ enriquecidos subitamente / as porcas loucas
da barão de tatuí
trancafiadas / são muito convenientes”), se ela- da 11 de abril
bora uma visão positiva, a que não falta, porém,
ironia – a ironia de quem sabe estar se confron- de poptahof-zuid
tando, a cada palavra, com um discurso predomi-
nante antagônico (FREITAS, 2012, p. 15). (FREITAS, 2012, p. 48)


Se o útero é uma metonímia da mu-
Emancipado do organismo, o útero li-
lher, a errância é, aqui, uma forma de
berta-se definitivamente de sua função
libertação. Um dos poemas do livro se
biológica. É, antes de tudo, um órgão
chama justamente “metonímia”, e nele
-palavra, um órgão-poema, isto é, um
a voz lírica, que diz ter encontrado o
órgão-arma. Por isso, a pergunta, for-
significado daquela palavra no Google,
mulada sem ponto de interrogação:
indaga: “a parte pelo todo em minha vida / este
“para que serve um útero quando não
pedaço de tapeçaria / é representativo? não é re-
presentativo?”. Sem resposta, observa: “eu não se fazem filhos”. Uma pergunta que
queria saber o que era / metonímia, entrei na ressoa ao longo do livro na formulação
página errada”. O que ela buscava não poderia elíptica “para quê” – e ainda em sua va-
ser outra coisa senão o caminho por onde seguir:
riante na língua do “i”, “piri qui”. É nes-
“eu queria saber como se chegava / perguntei a
sa língua que se quer secreta, extraída
um guarda” (FREITAS, 2012, p. 52). O corpo do
das brincadeiras infantis, que o “para
útero é agora o mundo, onde ele se en-
quê” aparece na epígrafe, “i piri qui”,
contra a vagar:
logo abaixo da citação de três versos da
canção “Seeräuber Jenny” (“Jenny Pira-
ta”), de A ópera de três vinténs, de Bel-
tolt Brecht e Kurt Weil – versos que fun-
cionam como estribilho, com pequenas
modificações a cada ocorrência: “Und ein
Schiff mit acht Segeln / Und mit fünfzig Kanonen /
Wird liegen am Kai” (na tradução de Wolfgang Ba-
der e Marcos Roma Santa e versificação de Wira
Selanski: “E a nau de oito velas, / Com cinquen-
ta canhões, / Ancora no cais”). Assim, logo

Ensaio Veronica Stigger

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 14 05/05/15 12:29


15

de início, a possibilidade da partida ma que dá título a seu segundo livro,


se anuncia, uma partida que, de certa diga-se de passagem, se origina de uma
maneira, se acha associada à questão: experiência pessoal da poeta, quando
“para que serve um útero quando não ela acompanhou uma amiga a uma clí-
se fazem filhos”; ou, trocando em miú- nica de aborto no México, diante da
dos, para que serve a mulher se não for qual um grupo de católicas fazia um
para procriar? protesto a fim de dissuadir as pacien-
¶ tes de interromperem a gravidez. Daí,
“O corpo humano, e, ainda mais dramaticamen- a potência de sua pergunta recorrente:
te, o corpo da mulher, é uma estranha intersec-
“para quê”. Ao sair pelo mundo, libera-
afirma Julia Kristeva
ção entre zoé e bios”,
do do corpo – isto é, do corpo construí-
(2001, p. 14) em O feminino e o sagrado,
do pela sociedade –, o “útero errante”
evocando a diferenciação proposta por
nega seu destino fisiológico e começa a
Hannah Arendt, com base em Aristó-
construir sua própria história.
teles, entre duas noções de vida: zoé

sendo a vida biológica e bios, a vida
No mesmo ano em que foi lançado
possível de ser contada, de ser narra-
Um útero é do tamanho de um punho,
da. Desse modo, a mulher se dividiria
Angélica Freitas publicou o romance
“entre fisiologia e narração, genética e
gráfico Guadalupe, com desenhos de
biografia”. Kristeva observa ainda que
Odyr. No final dessa narrativa, ambien-
costumamos esquecer que a transfor-
tada no México, o tio Minerva, travesti
mação da vida em algo sagrado tem
que criou Guadalupe, concede a esta
uma história; e que “esta história depende
a livraria de que era proprietário e lhe
do lugar que a religião e as sociedades conce-
entrega também um espelho que tem o
deram às mulheres”. Tendo a imagem da
poder de mostrar o rosto da pessoa no
Virgem Maria como modelo, nada pa-
futuro. A protagonista se olha imedia-
rece mais sagrado que dar vida a outro
tamente no espelho e vê uma senhora,
ser. Mas reduzir a mulher a esse papel
de óculos, cercada de livros. Assustada,
de genitora é negar-lhe toda uma vida
pensando na imagem que viu, ela de-
para além de uma mera função biológi-
ca. “Depois de dois mil anos de história mundial cide recusar a livraria: “eu
preciso
dominada pela sacralidade do Menino Jesus, não
estaria a mulher em condições de dar uma colo- construir um futuro novo
ração diferente ao sagrado último, ao milagre da
vida humana: não a vida por ela mesma, mas a
para mim”, diz ela. Guadalupe
vida produzindo sentido, para cuja formulação as pega então seu carro e sai em viagem,
mulheres são convocadas a oferecer seus desejos sozinha e sem rumo. Depois de muita
e suas palavras?”, pergunta Kristeva (2001, estrada rodada, ela volta a se olhar no
p. 14). Angélica Freitas dessacraliza a espelho, e este agora não reflete coisa
função reprodutiva da mulher. O poe- alguma: nem o presente, nem o futuro,

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 15 05/05/15 12:29


16

muito menos o passado. Com um largo


sorriso no rosto, Guadalupe atira o es-
pelho ao mar. Ela não precisa mais dele
para saber que seu futuro é deliciosa-
mente incerto.

O exílio, diz Roberto Bolaño (2004,
p. 157) pela boca de seu personagem
Amalfitano, “contribui para abolir o destino
ou o que comumente se considera o destino”.
Bolãno, escritor errante, que nasceu no
Chile mas passou boa parte de sua vida
morando no México (terra de Guada-
lupe) e na Espanha, também escreveu
que “toda literatura leva em si
o exílio, tanto faz que o escri-
tor tenha tido de ir embora
aos vinte anos ou que nunca
tenha saído de sua casa”.

Referências
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004.

BOLAÑO, Roberto. Exilios. In: BOLAÑO, Roberto. Entre parente-


sís. Barcelona: Anagrama, 2004.

BRECHT, Bertolt; WEIL, Kurt. A ópera de três vinténs. In:


BRECHT, Bertolt; WEIL, Kurt. Teatro completo 3. São Paulo: Paz
e Terra, 1988.

FREITAS, Angélica. Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras,


2012.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Pau-


lo: Cosac Naify, 2012.

HIPÓCRATES. De la nature de la femme. Trad. E. Littré. Paris: Chez


J. B. Baillière, 1851.

KRISTEVA, Julia. The feminine and the sacred. Trad. Jane Marie
Todd. New York: Columbia University Press, 2001.

Ensaio Veronica Stigger

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 16 05/05/15 12:29


17

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 17 05/05/15 12:29


18

Lourenço Mutarelli
começou sua carreira como dese- 2011, Quando meu pai se encontrou
nhista. Passou a fazer histórias em com o ET fazia um dia quente.
quadrinhos até se tornar escritor. Fez Escreveu sete peças de teatro, cinco
também alguns trabalhos como ator das quais publicou no livro O teatro de
e atualmente dá oficinas de histórias sombras, em 2007. Escreveu também
em quadrinhos no Sesc Pompeia, em uma minissérie para a internet (ww-
São Paulo. w,teatroparaalguem.com.br), intitula-
Como quadrinista publicou 12 álbuns: da Corpo estranho.
Transubstanciação (1991), Desgraça- Atualmente trabalha como drama-
dos (1993), Eu te amo Lucimar (1994), turgo no projeto “Sobre projeções
A confluência da forquilha (1997), Se- mentais” e em um novo romance, in-
quelas (1998), O dobro de cinco (1999), titulado Livro IV e/ou o filho mais velho
O rei do ponto (2000). Em 2001/2002 de Deus.
publicou Soma de tudo, volumes 1 e 2, Como escritor, tem seis livros publi-
que integram seu último lançamento cados: O cheiro do ralo (2002), O nati-
em quadrinhos, intitulado Diomedes, morto (2004), Jesus Kid (2004), A arte
a trilogia do acidente, pela Companhia de produzir efeito sem causa (2008),
das Letras. Em 2004 lançou Mundo Miguel e os demônios (2009) e Nada
pet, em 2006, A caixa de areia e, em me faltará (2011).

Meu corpo
gera minha
mente
Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 18 05/05/15 12:29


19

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 19 05/05/15 12:29


20

Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 20 05/05/15 12:29


21

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 21 05/05/15 12:29


22

Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 22 05/05/15 12:29


23

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 23 05/05/15 12:29


24

Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 24 05/05/15 12:29


25

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 25 05/05/15 12:29


26

Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 26 05/05/15 12:29


27

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 27 05/05/15 12:29


28

Ensaio Lourenço Mutarelli

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 28 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 29 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 30 05/05/15 12:29
Dossiê 31

A poesia
de Armando
Freitas Filho
e a apreensão
trágica do
mundo
Antonio Cicero

é, em essência, autor. Entre outras coisas, dos tido contemporâneo: poesia (2012) e, em parceria
livros de poemas Guardar (1996, Prêmio Nestlé de com Waly Salomão, O relativismo enquanto visão
Literatura), A cidade e os livros (2002), Porventura do mundo (1994). Com Eucanaã Ferraz, organizou
(2012, Prêmio ABL de Poesia). Em parceria com a Nova antologia poética de Vinicius de Morais
Luciano Figueiredo, publicou O livro de sombras (2003). É ainda autor de inúmeras letras de can-
(2010). É também autor dos livros de ensaios ções, tendo como parceiros compositores como
filosóficos O mundo desde o fim (1995), Finalidades Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco,
sem fim (2005), Poesia e filosofia (2012) e Encontros entre outros. Em 2012, foi agraciado com o Prê-
(2013). Organizou os livros de ensaios Forma e sen- mio Alceu Amoroso Lima — Poesia e Liberdade.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 31 05/05/15 12:29


32
Em depoimento ao site do Memorial da América La- ticas. Um poema como eu fiz: ‘Catar feijão’. Você acha
tina, por ocasião do lançamento do livro Fio terra, de que no mundo alguém imaginou um poema sobre o
2000, Armando Freitas Filho (2001) declarou que ato de catar feijão para botar o feijão para cozinhar?”
¶ (ATHAYDE, 1998, p. 53).
João Cabral é, no mínimo, referência ¶
obrigatória – incontornável – para mi- O poema deixa claro que, quando se cata feijão para
nha geração. Temos que encará-lo, en- comer, deve-se jogar fora o que não boiar, como a pe-
frentá-lo mesmo, até para que a leitura dra. Por outro lado, quando se catam palavras num
de sua obra possa ser feita com mais poema, as pedras caem bem, pois obrigam o leitor a
distanciamento evitando, com esse prestar atenção no que está lendo. A pedra, aliás, é
procedimento, mimetizá-lo acritica- evocada pela sonoridade da letra “r” nos encontros
mente, como quase sempre acontece, consonantais “dr”, “fr”, “gr” e “tr”, nos versos “a pe-
pegando ou fazendo o mais fácil: rigor dra dá à frase seu grão mais vivo: /obstrui a leitura
de fachada (não levando em conta o fluviante, flutual”. Já o que boia é “o leve e oco, palha
quanto de visceral sua poesia contém) e eco”. O leve é, evidentemente, o superficial; o oco
e ranhetice idiossincrática [...]. é o que nada diz; a palha é o supérfluo; e o eco é o
¶ que não passa da repetição do que o escritor já ouviu
De fato, Armando encara e enfrenta João Cabral; e o ou leu antes. Ora, Cabral pensa que tudo o que vem
faz na sua própria poesia. É conhecida, por exemplo, espontaneamente ao escritor é exatamente “o leve e
sua paródia ao poema de Cabral “Catar feijão”. Lem- oco, palha e eco”. É isso, e não a pedra dura e pesada,
bro que esse poema consiste no seguinte: que ele tem que eliminar por meio do trabalho.
¶ ¶
Catar feijão A paródia de Armando, “Caçar em vão”, não se opõe
a todas essas ideias, mas afirma outras verdades. Seu
Catar feijão se limita com escrever: poema diz:
jogam-se os grãos na água do alguidar ¶
e as palavras na da folha de papel; Caçar em vão
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel, Às vezes escreve-se a cavalo.
água congelada, por chumbo seu verbo: Arremetendo, com toda a carga.
pois para catar esse feijão, soprar nele, Saltando obstáculos ou não.
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Atropelando tudo, passando
por cima sem puxar o freio –
Ora, nesse catar feijão entra um risco: a galope – no susto, disparado
o de que entre os grãos pesados entre sobre pedras, fora da margem
um grão qualquer, pedra ou indigesto, feito só de patas, sem cabeça
um grão imastigável, de quebrar dente. nem tempo de ler no pensamento
Certo não, quando ao catar palavras: o que corre ou o que empaca:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo: sem ter a calma e o cálculo
obstrui a leitura fluviante, flutual, de quem colhe e cata feijão.
açula a atenção, isca-a com risco.
(FREITAS FILHO, 2003, p. 583)
(MELO NETO, 1995, p. 346) ¶
¶ O poema realiza o que descreve/prescreve. O primeiro
Sobre o título do poema, João Cabral mesmo explica verso enuncia a tese: “Às vezes escreve-se a cavalo”.
que a poesia deve procurar elevar o não-poético ao O segundo e o terceiro explicam a tese; e os enjam-
poético. “Eu não acredito num poeta”, disse ele uma bements, do quarto ao décimo verso, produzem uma
vez, “e nem gosto da poesia que fale de coisas já poé- analogia rítmica da “escrita a cavalo”. Os dois últimos

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 32 05/05/15 12:29


33
versos se referem diretamente ao poema de Cabral, E em vez de pedra quebra-dente
que negam. para manter a atenção de quem lê
¶ como isca, como risco, a ameaça
Ora, por que “às vezes” não se teria “a calma e o cál- do que está no ar, iminente.
culo /de quem colhe e cata feijão”, por que se escre-
veria “a cavalo”, senão por se sentir certa urgência de (FREITAS FILHO, 2006, p. 19)
escrever? Escreve-se “a cavalo” por alguma necessida- ¶
de vital. Aqui a poesia é vital: diz respeito à vida. Com Aqui se explicita a exigência da fusão da vida com o
efeito, é essa a sensação que se tem ao ler a poesia de poema. O que se quer “escrevível” é exatamente o
Armando. Leia-se, por exemplo: que flutua, isto é, o que Cabral chama de “fluviante,
¶ flutual”, ou seja, a vida imediata, impensada, espon-
Escrevo tânea, que ele quer eliminar do poema. Esta não só
só está presente no poema de Armando, mas, em parte,
em último caso confunde-se com a própria feitura dele, com o “ruí-
ou como quem alcança do discreto e breve /o rumor da rosca, a relojoaria /
o último carro do dia e do sentido se fazendo /sem hora para acabar,
como quem interminável /sem acalmar a mesa, sem o clic”. Cabral
por um triz dizia que sabia quando seu poema estava pronto por-
por um fio que ele fazia um clique, como um estojo que se fecha.
não fica Armando replica:
no fim da linha ¶
de uma estação sem flores Gritos por dentro
a ver navios. que acabam calados
na boca do céu.
(FREITAS FILHO, 2003, p. 299) Píncaros! Terrível.
¶ Qualquer palavra que tenha escarpas
O poema “Outra receita”, que abre o livro Raro mar,
também se refere a “Catar feijão”, considerando-o, é
claro, como a uma receita anterior de poesia. Ele diz: sentidos ou ritmos de perfis agudos

Outra receita
de sprinter e sentinela
Da linguagem, o que flutua em arrepiadíssimos despenhadeiros.
ao contrário do feijão à João Sem luxo.
é o que se quer aqui, escrevível: Sem o encaixe justo da joia no estojo.
o conserto das palavras, não só
o resultado final da oficina (FREITAS FILHO, 2003, p. 514)
mas o ruído discreto e breve ¶
o rumor de rosca, a relojoaria Ao final de “Outra receita”, persiste “como isca, como
do dia e do sentido se fazendo risco, a ameaça /do que está no ar, iminente”. Em tal
sem hora para acabar, interminável poesia tem lugar “o eco, o feno, a palha, o leve” que
sem acalmar a mesa, sem o clic Cabral rejeita. Eles servem, segundo o poema de Ar-
final, onde se admite tudo – mando, “até para efeito de contraste /para fazer do
o eco, o feno, a palha, o leve – peso – pesadelo”. Ou seja, o próprio “peso” ou dificul-
até para efeito de contraste dade da palavra do poema que, no autor de “Catar fei-
para fazer do peso – pesadelo. jão”, é oposto à vida espontânea, “fluviante, flutual”,
produz, no poema de Armando, “pesadelo”, isto é,
vira também vida.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 33 05/05/15 12:29


34
¶ mento dele afirmando que, embora possa lembrar um
Sobre a relação entre vida e poesia, leia-se, também, poema-piada, não deixa de manifestar o que chamo
o seguinte: de “apreensão trágica do mundo”. Ei-la: “Acredito em
¶ Deus. Na ferocidade dele.” (FREITAS FILHO, 2001)
Abrir os pulsos ¶
as gavetas O paradigma de tal apreensão se encontra, é claro, nas
e cortar as veias tragédias. O herói trágico enfrenta seu destino com tal
enquanto é tempo dignidade que, longe de serem deprimentes, as tra-
de salvar a vida gédias são exaltantes. Nas peças de Shakespeare, em
e impedir que o poema particular, embora sejam reconhecidas em monólogos
caia poéticos, verdades profundas sobre o caráter patéti-
em si mesmo co, ridículo, terrível e/ou absurdo da própria condição
corno os repuxos, os reflexos humana jamais apresentam resultado deprimente. Ao
os anúncios luminosos contrário, exatamente a coragem de reconhecer tais
que trabalham sempre verdades exalta tanto o herói quanto o ouvinte e/ou
com a mesma água leitor desses monólogos.
sem o risco das hemorragias. ¶
Pois bem, manifestações exaltantes da apreensão trá-
(FREITAS FILHO, 2003, p. 364) gica do mundo podem dar-se não apenas na poesia
¶ trágica ou na épica, mas também na boa poesia lírica.
O que aqui importa é “impedir que o poema /caia / Assim é, por exemplo, o seguinte poema:
em si mesmo”. Aqui, o inaceitável é o beletrismo, l’art ¶
pour l’art, o poema que não passa de repetição dos Deposição
antigos artifícios, a negação da sujeira vital e da liber-
dade da poesia. Paradoxalmente, para salvar a vida do A vida vem com a morte implícita.
poema, vale até “abrir os pulsos /as gavetas /e cortar Trações iguais da mesma corrente
as veias”: figurativamente abrir os pulsos e as veias, com elos idênticos que só mudam
isto é, ir até o limite da vida, para que o sangue jorre de sentido quando algum quebra.
e corra no próprio poema; abrir as gavetas para que A ferida de entrada, aberta desde
o que não passa de rascunho, de experimentação, de o princípio, dura um minuto
risco passe para o poema. ou muitos. Nada se explica nunca.
¶ Tudo é parte da mesma pedra
Contudo, é preciso enfatizar que aqui se trata, de amordaçada por sua camisa-de-força
fato, de uma fusão entre poesia e vida, entre forma natural, e que cai — cada vez mais —
e conteúdo. De maneira nenhuma Armando despreza no poço até o fundo, que não é falso
o conhecimento da tradição canônica ou o trabalho mas o que se sente, permanente
da feitura do poema. Ao contrário: seus poemas são é a queda, não o primeiro chão
extremamente elaborados e bem construídos. Nesse da cama ou o do próprio corpo
sentido, eles se opõem inteiramente ao vitalismo da ou depois o último, final, de terra.
chamada “poesia marginal”.
¶ (FREITAS FILHO, 2003, p. 588)
Mas não é somente isso que opõe a poesia de Arman- ¶
do à “poesia marginal”. Há algo mais profundo. É que, Lembro que a palavra “deposição” é polissêmica. Ela
enquanto a poesia marginal se deleita com o cotidiano pode significar depoimento, testemunho, destituição,
em estado bruto e superficial, como no “poema-pia- demissão, renúncia, abdicação, desistência, abando-
da”, a poesia de Armando tende, ao contrário, a ma- no, descenso, descensão... E o poema joga com todos
nifestar o que considero ser uma profunda apreensão esses sentidos, a partir do primeiro: o depoimento
trágica do mundo. Recordo-me, aliás, de um depoi- trágico de que “a vida vem com a morte implícita”. E

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 34 05/05/15 12:29


35
“nada se explica nunca”. Não: pois “tudo é parte da construída e definitiva.
mesma pedra”. Volta aqui a imagem da pedra. E, de Pratos, copos, toda a louça
novo, a pedra tem o sentido muito diferente do que e o que é de vidro, vive
tem para João Cabral. De novo, aqui ela tem a ver com plenamente — brilha
a vida. Trata-se da vida natural, corpórea, sujeita à sem medo do esplendor.
gravidade natural, tendendo, desde o início, para a
queda e a morte. (FREITAS FILHO, 2003, p. 505)
¶ ¶
Outra belíssima manifestação da apreensão trágica do Dada a felicidade “indefensável”, isto é, que não pode
mundo é o seguinte poema, que não necessita de ex- ser defendida ou que não pode ser justificada, a “casa
plicação: está tão delicada /até nos pregos / construída e defini-
¶ tiva”. E o poema afirma que tudo “o que é de vidro” –
Fuso tudo o que é frágil – “brilha /sem medo do esplendor”.
Em suma, nesse momento de júbilo, é como se não se
Tento acertar meu relógio soubesse que tudo na casa – tudo o que é esplêndido
pelo seu, parado, há tanto e delicado nesta vida – é louça, é vidro, é frágil. Em
com o suor do pulso, seco suma, penso que esse poema, como grande parte da
a pulseira de couro partida poesia de Armando Freitas Filho se distingue por ser
que ainda guarda algum sal. uma esplêndida e delicada manifestação da apreensão
Pai, a certeza de sua hora trágica do mundo.
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência Referências
os firmes compromissos ATHAYDE, Félix. Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro:
pois me perdi pelo caminho. Nova Fronteira, 1998.

FREITAS FILHO, Armando. Entrevista Armando. Entrevista cedida a


(FREITAS FILHO, 2009, p. 54) José Almino, Viviana Bosi e Fabio Weintraub. São Paulo: Memorial da
¶ América Latina, [18 out. 2001]. Disponível em: <http://www.memorial.
Mas quero terminar essas considerações sobre a poe- org.br/cbeal/poetas-na-bilbioteca/armando-freitas-filho/entrevista-ar-
mando/>. Acesso em: 7 abr. 2015.
sia de Armando com um exemplo paradoxal – e pa-
radoxalmente magnífico – da apreensão trágica do FREITAS FILHO, Armando. Fio terra. In: FREITAS FILHO, Armando.
mundo. Trata-se de um poema de Números anônimos, Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 583-588.

primeiro livro publicado depois que ele, com 51 anos, FREITAS FILHO, Armando. Lar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
teve um filho. “Tenho uma filha de trinta anos e tive
agora um menino que tem hoje dez anos. A chegada FREITAS FILHO, Armando. Longa vida. In: FREITAS FILHO, Armando.
Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 299.
dele foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida.
Ser pai aos 51 anos, como eu fui, é algo que a gente re- FREITAS FILHO, Armando. Números anônimos. In: FREITAS FILHO,
cebe na boca” (FREITAS FILHO, 2001), declarou uma Armando. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
p. 505-514.
vez. O poema em questão, dedicado ao filho, manifes-
ta essa alegria. Ei-lo: FREITAS FILHO, Armando. Raro mar. São Paulo: Companhia das
¶ Letras, 2006.

Músculo, mas do coração. FREITAS FILHO, Armando. 3x4. In: FREITAS FILHO, Armando. Máqui-
A felicidade é indefensável na de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 364.
e esta casa está tão delicada
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. In: MELO NETO,
até nos pregos João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 346.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 35 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 36 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 37 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 38 05/05/15 12:29
De
39

corpo Acrobata enredado


em clausura de pele

presente
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
O corpo é uma importante chave para a leitura da com engrenagem de músculo
obra de Armando Freitas Filho. Ele está no título
de alguns de seus poemas, como “Corpo”, “Cor- suspiro e rangido
poral”, “Corpo fechado”, “Corpofortificação”,
“Corpo de delito”. Está no nome de livros do au-
o espaço devora
tor: De corpo presente, À mão livre, Cabeça de ho- seu movimento
mem. Além disso, é um dos temas sobre os quais
o poeta vem se debruçando desde o lançamento (braços e pernas
de sua obra, no início dos anos 1960, quando ele
tinha pouco mais de 20 anos. sem explosão).

Essa não é uma cifra simples, no entanto. Já em
“Corpo”, incluído no primeiro livro do escritor, Engenho de febre
Palavra (1963), o corpo individual nasce comple-
xo, espécie de inimigo cúmplice a quem o eu é sono e lembrança
submetido:
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

Mariana Quadros
é professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janei- deu tese sobre a poesia de Carlos Drummond de
ro, e doutora em Teoria Literária pela Universida- Andrade e dissertação sobre a obra de Armando
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde defen- Freitas Filho.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 39 05/05/15 12:29


40


O poema condensa grande parte dos
problemas a que o escritor retornaria
obsessivamente ao longo de sua traje-
tória. O corpo é uma clausura, mas pa-
radoxalmente deixa espaço aberto às quando publiquei Palavra (1963), Eduardo Portela, na resenha do
dúvidas, à interrogação – “para onde”?
livro reclamou, com razão, que minha poesia passava ao largo do
Ele leva necessariamente à morte, po-
rém seu mecanismo desconhecido momento político que se vivia, que não o refletia em suma. Nun-
“arma e desarma” o prolongamen- ca mais esqueci essa observação e procuro atender à demanda
to da vida do sujeito poético, em um externa, sempre que possível, dentro das minhas possibilidades.1
movimento – precário embora – que
se contrapõe ao fechamento total da ¶
“doce máquina” orgânica. Contenção Talvez Palavra de fato não “atendesse à demanda 1. FREITAS FILHO,
Armando. Cor, jump
e expansão revelam, já aqui, ser as for- externa” por não versar diretamente sobre temas
cut, percussão.
ças em confronto quando se trata do tirados ao noticiário. Entretanto, o livro – em um Celuzlose, São Paulo, v.
corpo em Armando Freitas Filho. movimento sintetizado com perfeição por “Cor- 7, p. 4-13, 1 dez. 2010.
Entrevista concedida a
¶ po” – não deixa de lançar luz para o confinamento,
Renan Nuernberger e
O poema evidencia também um dos privado e coletivo, de que sempre partiu a criação André Goldfeder.
principais desígnios da obra do es- literária de Armando Freitas Filho. Naquele poe-
2. Expressões tiradas
critor: o exercício extenuante com a ma, em que o indivíduo está preso à sua organici-
à entrevista citada.
linguagem. Em “Corpo”, os sons par- dade, reconhecemos a “claustrofobia irremediável
ticipam de jogos de reiterações e con- do eu lírico”, para retomarmos os termos em que
trastes que iluminam a carnadura das o autor resume o problema de fundo de sua escri-
sílabas, marcam o ritmo seco dos ver- ta. Em outros textos do mesmo livro, o sujeito poé-
sos e ecoam os sentidos do poema – a tico se vê refém da incontrolável mão que escreve
repetição de /u/ nas sílabas tônicas de – “A mão deseja/ um barco/ mas o lápis/ faz um
“sem nenhuma ruptura”, por exem- peixe” –, como lemos em “Infância”. Tais clausu-
plo, reproduzindo o fechamento abor- ras, embora subjetivas, não deixam de ser “fruto e
dado pelo verso. Além disso, a sintaxe, consequência de uma situação sitiada”. Têm “uma
fraturada, dá a ver a ossatura da frase, historicidade obrigatória”, portanto.2
a qual se tornará, em diversos outros ¶
poemas de Armando, ainda mais en- Seja como for, a partir do segundo livro de Arman-
trecortada, sincopada, gaga. do, editado em 1966, o leitor reconhece mais clara-
¶ mente as respostas ao momento político testemu-
A atenção sem trégua em relação à ma- nhado pelo poeta. Dois anos antes vivíamos sob a
terialidade da palavra e a abordagem ditadura militar, que duraria mais de duas décadas.
marcante do nascimento da escrita do Antes ainda do golpe, as crescentes demandas por
poeta lançaram alguma sombra sobre transformação do país, vindas de diferentes se-
a diversidade da experiência literária tores da sociedade, levavam intelectuais e movi-
apresentada em seu primeiro livro. O mentos artísticos a buscar participar da renovação
próprio escritor o reconhece em uma almejada. O Centro Popular de Cultura da UNE, na
de suas entrevistas: tentativa de propagar ideais revolucionários para
as massas, abdicava de formas estéticas considera-
das “difíceis” ou opacas. O Concretismo, por sua
vez, rejeitava a comunicação como fim da arte ao
apostar que a racionalidade do “poema objeto em
si mesmo” seria capaz de indicar por contraste a

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 40 05/05/15 12:29


41

irracionalidade das relações sociais. Armando Freitas Filho,


observador atento dessas propostas e das que se seguiriam
nos anos seguintes, não militaria em nenhuma daquelas fi-
leiras. Dual, de 1966, e Marca registrada, de 1970, trazem al-
gumas características da Poesia-Práxis, em que o trabalho da
forma não se fecha à semântica e às manifestações subjetivas. dois poemas de longa vida (1982) para mais uma
Contudo, esses livros, mais do que endossar proposições de vez infiltrar nas palavras ufanistas de nosso hino o
qualquer movimento de vanguarda, indicam o caminho pes- sofrimento dos seviciados pelo regime militar.3 É a
soal trilhado pelo poeta para corresponder às demandas pú- violência urbana tantas vezes reportada ao longo
blicas de seu tempo. Essas respostas passam novamente pelo da trajetória do escritor por meio do contraste en-
exercício da linguagem em poemas a representar o corpo em tre o homem “acuado em corpo único” e a cidade
sua luta contra o confinamento e a paralisia. “engatilhada”.4 São os crimes famigerados referidos
¶ por meio do signo do corpo, seja ele o dos adoles-
3. Trata-se dos São as “Massas”, de Dual, a mover o centes “marchetados na calçada” após a chacina da
poemas sem título
“amálgama de corpos/ crus” até que “a Candelária ou o desaparecimento do corpo de Eliza
iniciados pelos versos
“No pau de arara” marcha se amassa:/ pata sapato estaca/ Samudio – “eli-/diu-seliza no ar”, nos termos de um
e “As paredes têm de supetão – stop.” – a repetição de sons dos poemas de Dever (2013). É a experiência radical
ouvidos”.
explosivos /p/ /t/ e a justaposição sem de A flor da pele, publicado como um tabloide com
4. Citamos trechos amarras dos substantivos reproduzindo fotos de Roberto Maia em 1978, e depois incluído
de poema sem título a violência e a ubiquidade agressiva do sem as imagens no livro de 1979. Por sua singulari-
de Números anônimos
exército. É o “Cartão-postal”, de Mar- dade, esse poema faz jus à leitura detida.
iniciado por “A cidade
atravessa o dia”. ca registrada, corrompido pelo vazio ¶
“estofo do estômago” dos “mendigos O folheto simula um jornal: o título, em letras gar-
de trapo”, presos à doença social que rafais, dispõe-se à moda das manchetes jornalís-
morde e fere as “grades” de seus cor- ticas; as fotografias margeiam os textos escritos
pos. O poema se torna nesse contexto à maneira das ilustrações nos periódicos; data e
a “frase medida/ da fome, a fala/ afiada lugar, “Setembro, 1978/ Rio”, inscritos na última
que frisa/ a ferida faminta.” – a iteração página do encarte, situam tempo e espaço do
da consoante aspirante /f/ garantindo acontecimento noticiado. Todavia o corpo desse
alguma passagem de ar, respiração, noticiário ímpar foge radicalmente à variedade
aos versos sobre os efeitos paralisantes encontrada nos jornais: na primeira página do
da miséria. É o “Corpofortificação”, de tabloide, reproduz-se o verbete “pele” do dicio-
De corpo presente (1975), cujas dez estro- nário Aurélio. O evento que se noticia é, portanto,
fes acompanham, em contagem decres- também o da linguagem em busca de se tornar
cente, de 00.10 a 00.00, o lançamento permeável para o momento histórico. Nessa difícil
da bomba H por distantes membros do
exército – a rotina do “cálculo de retinas”
– a atingir espantados corpos sem chan-
ce de fuga, “andaimes de ossos”, reféns
dos “nós górdios do ódio” que varreram
o século XX. É o “Corpo de delito”, de À
mão livre (1979), a retomar e perverter os
termos do hino nacional para dar à dor
dos corpos torturados nas prisões da
ditadura uma dimensão coletiva: “e em
cada um de nós/ um límpido incêndio
resplandece.” Ou ainda o corpo “fudi-
do em verde-amarelo”, que retorna em

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 41 05/05/15 12:29


42

procura, a associação com as imagens é decisi-


va. À margem da entrada do dicionário, está a
fotografia de uma boca se escancarando até seu
limite máximo, em uma careta ou em um gri-
to. Estão também a foto de uma jovem com um
grande adorno de plumas – metonímia para a
constituição da mulher como adorno, pura ex- do no simulacro de jornal criado pelo
posição – e a imagem de seres sem rosto, em poeta: por meio da violência contra a
um ambiente que, apesar da caracterização linguagem do dicionário, A flor da pele
pouco nítida, remete aos sistemas prisionais. divulga a brutalidade nos porões da di-
Na segunda página, em tamanho crescente, tadura, tema que os jornais da cidade
encontramos duas novas reproduções do tre- e do país, censurados, não poderiam
cho do Aurélio divididas por uma foto de um narrar em 1978 ou anos que se segui-
corpo feminino encaixotado – sem rosto, puro ram. O testemunho por ele constituído
fragmento – que deixa descoberta a região se contrapõe, dessa forma, ao esqueci-
pubiana, aquela que mais facilmente abre as mento ampliado ao fim de cada verbete
vias de invasão erótica do corpo. Na terceira – espécie de imperativo a que ainda po-
página, ocupada por uma nova e ainda maior dem recorrer os torturadores de hoje e
reprodução do trecho do Aurélio, aparecem de outrora: “e esquecer de tudo isso
novas figuras do corpo aprisionado: retratos bem depressa, pois agora a história é
identificam uma presidiária cuja boca – pos- outra, as águas passadas não movem o
sibilidade de voz – foi apagada. Somente no moinho e o Brasil é feito por nós”.
seio dos verbetes reproduzidos se esclarece ¶
o horror prenunciado pelas imagens. Neles a O registro histórico no poema em prosa transcende o con-
pele deixa de ser a membrana que “reveste” teúdo desse noticiário extraordinário, não obstante: ele está
o corpo para se tornar “veste”, vestimenta, também na representação do corpo encarcerado em um
cobertura provisória. Assim caracterizada, tempo e em um lugar específicos, mas não apenas. É sig-
a superfície maleável vira o alvo privilegiado nificativo que o texto tenha sido publicado sem o local e a
da agressividade do eu, o qual invade a lin- data em À mão livre e assim mantido em Máquina de escre-
guagem objetiva do dicionário. A pele é por ver, obra que reúne e revê a poesia do autor produzida até
ele “arranhada”, “despida”, “arrancada”, “es- 2003. É fundamental ainda que ele se encerre com uma pá-
tendida”, “devorada; até a pelanca”. A cada gina quase em branco, encimada apenas pela entrada “Pele.
nova inscrição desse sujeito sádico, a cena se [Do lat. pelle.] S.f.”, marca da potência infinita de retorno e
torna mais nítida e mais terrível. Inicialmente, avanço daquela engrenagem poética. Convidando o públi-
“com carinhos e unhas”, é por meio da violên- co a realizar novas inscrições de uma violência que se tem
cia sexual que ele empreende o processo de mostrado ilimitada e onipresente, A flor da pele não se fecha.
destruição dos limites dos corpos torturados Aberta, a obra contrapõe-se ao esquecimento inscrito ao fim
até a deformidade e a perda da identidade – de cada verbete. É impossível esquecer, visto que o trauma,
“seres sem nome e sem feitio”. Depois, com a não completamente simbolizado, retorna obsessivamente.
expansão da ferocidade ao longo dos verbetes Não devemos esquecer, já que – afirma um poema de longa
reproduzidos e pervertidos por Armando Frei- vida, livro seguinte a À mão livre – “as águas passadas/ mo-
tas Filho, a cena deixará de se circunscrever à vem os moinhos” embora o passado, presente, pareça esca-
“hora da tortura do amor”. Se “a mão do car- par: “as pás, os pés descalços,/ na areia de ontem/ aonde?”.
rasco pendura no pau de arara” os despojos do
corpo do prisioneiro, não restam dúvidas de
que o torturador, “uniformizado”, identifica-
se com a polícia e o exército brasileiros. Essas
figuras desvendam o acontecimento noticia-

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 42 05/05/15 12:29


43


Vinte e cinco anos depois da publicação do tabloide, o cor-
po estaria novamente no centro de uma série, Numeral, a
qual também se abre em função de seu objeto inapreensí-
vel. Não se trata mais do organismo a cada vez transtornado
pela brutalidade da história. Agora o engenho de Arman-
do Freitas Filho busca computar a duração da vida até seu
termo desconhecido. “Numerando até a morte”, verso do
poema 20, resume esse projeto, inaugurado como suple-
mento a Nominal. Junto ao livro de 2003, foram publicados
os primeiros títulos da sequência de poemas datados e nu- ¶
merados a ser expandida a cada livro do autor. Ainda vivo, Corpo, sujeito, vida eram
Armando Freitas Filho publicou novos textos numerados silenciados, por isso? Não.
como suplemento às coletâneas Raro mar, de 2006, Lar, Na produção de Armando
de 2009, e Dever, de 2013. Por enquanto, subsiste a inter- Freitas Filho, eles se ins-
rogação lançada pela associação de números e datas: até creveram e se inscrevem
quando durará a existência do corpo que escreve e lê; até como narrativas, discur-
que ponto acompanharemos a série? sos, gestos atravessados
¶ pelo silêncio. Tal como na
5. Citamos “Projeto”. Uma vez que o limite do projeto é a fi- corrida rumo àquela lebre
nitude do corpo, escrita e vida se sobre- mecânica caçada pelos gal-
6. Expressão retirada
de “Antitexto”, editado põem. Essa intercessão tem sido, aliás, gos, cuja atração contínua
em De corpo presente. um problema constante na poesia de decorre do intervalo en-
Armando Freitas Filho, muito antes de tre o mecanismo veloz e a
7. Versos
encontrados no poema Lar, e Dever apresentarem um viés anun- pele que lhe cobre, a grafia
sem título de longa ciadamente autobiográfico. Na escrita de desses processos é indis-
vida cujo verso inicial é Armando, o registro da vida nutriu-se sociável de um espaço não
“Quem escreviver”.
sempre do curto-circuito entre o cálcu- preenchido, que torna a
8. FREITAS FILHO, lo rigoroso e o desejo intenso de captar tentativa, a caça, o percur-
Armando. Por que a instabilidade do vivo. Essa tensão sur- so tão importantes quanto
escrevo: sou todo
ouvidos, olho, nariz, gia ainda incipiente nos primeiros livros o resultado ou o tento. Esse
boca e mão. In: do autor, em que o impulso construtivo intervalo é desejável justa-
FREITAS FILHO, sobressaía à inscrição, sempre lacunar, mente na medida em que
Armando. O escritor
por ele mesmo. São da vida. No entanto, já o volume de es- impele a busca sem a qual a
Paulo: Instituto Moreira treia, Palavra, apresentava o projeto de obra não se pode expandir,
Salles, 2001. p. 9. unir jardineiro e engenheiro “por linha defende o escritor:
e rima” em uma escrita impulsionada ao
mesmo tempo pelo crescimento incon-

trolável da semente e pelo pensamento A tentativa, aqui, vale tanto quanto o tento; tal-
milimétrico da planta.5 Além disso, os vez porque tenho o cálculo que os galgos não
versos divulgados nos anos 1960 e no iní- possuem: a de pensar e esperar que um dia a
cio dos 1970 jamais rasuraram a intermi-
tência entre a mão que escreve e a grafia
engrenagem que leva o cheiro da lebre imagina-
da vida: “Vivo o corpo/ escapa”, afirma da pode quebrar e parar.
um poema de Dual. As várias coletâneas Se assim for, contudo, será isso desejável?.8
editadas depois investiriam nessa lacuna,
iluminando o descompasso entre a “pa-
lavra-lapso”6 e a “vida voando/ lá fora”.7

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 43 05/05/15 12:29


44


Com Numeral, Armando Freitas Filho
transformaria tal tentativa de anotar o
fluxo no motor de um novo processo de
irrigação do texto pela vida. Até o lan-
çamento da série numerada, o contato
entre poesia e existência estabelecia-se
sob a forma de um descompasso da es-
crita em direção à vida, que, fluida, não
se deixava representar. Desse modo,
escrita e vida ficavam interligadas, mas
ainda não fundidas. Em Numeral, a es-
crita é infiltrada pelas características do
corpo – finito, ancorado no tempo – e
este pelas qualidades da escrita – infini- ¶
ta, em deriva. Vida e escrita se confun-
Em Máquina de escrever, livro que planejo,9 vou perseguir o in-
dem, dessa forma. De tal fusão, decorre
a instabilidade do espaço poético: “ain- tento que acredito ser um dos melhores caminhos que a poe-
da” e “enquanto” são as expressões sia contemporânea pode percorrer ou interrogar: o do poema
que, indissociáveis, desenham os con- aberto a todos os ventos da significação, longe dos pré-moldados
tornos sempre móveis da criação poé-
estéticos, das dicções didáticas, com causa e efeitos explícitos,
tica dos numerais. Porque é singular, o
corpo convive com sua condição finita do poema, enfim, com uma taxa de imprevisibilidade maior che-
(ainda não morto) sem que se possa de- gando a surpreender o próprio autor, que, se não perde de vista
finir sua trajetória de antemão. Porque o seu material, deixa o controle dele cada vez mais remoto.
indeterminado, ele pode reverter suas ¶
múltiplas (e talvez infinitas) possibilida- Nos últimos livros do autor e sobre- 9. Citamos
des em novos textos (enquanto vivo, é tudo na série aberta conduzida pela novamente texto
capaz de exercer sempre mais um pou- temporalidade orgânica, o engenheiro
redigido pelo poeta
como apresentação ao
co sua potência). parece preferir à “receita de rigor: Va- CD produzido pelo IMS
¶ léry Cabral”, enunciada em um poema em 2001. Nesse ano,
Essa desestabilização profícua partici- de 3X4, o incontrolável cômputo da
Máquina de escrever,
publicado em 2003,
pa de uma proposta estética bastante criação poética multiplicada de acordo estava em fase de
consequente: com a permanência provisória da vida. planejamento.

Este é inegavelmente um dos melhores


caminhos percorridos pela poesia con-
temporânea. “Acrobata enredado” em
seu próprio corpo, o poeta fez da clau-
sura o motor de uma poesia a resvalar
para o infinito.

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 44 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 45 05/05/15 12:29
46

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 46 05/05/15 12:29


47

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 47 05/05/15 12:29


48
Armando Freitas Filho

bio-
grafia
1940 citais de poesia beat e forma um grupo para entrar em contato com Gullar, 10
Nasce no Rio de Janeiro, no dia 18 de composto por alguns colegas de colégio: anos mais velho que ele. José Guilherme
fevereiro de 1940, filho de Maria do Rubens Gerchman (pintor), Carlos Ro- se entusiasma com o livro e consegue, a
Carmo Accioly Rabello Martins de Frei- drigues Brandão (poeta e futuro antro- partir de um telefonema para Fernando
tas e Armando Martins de Freitas. Até pólogo que viria a trabalhar com Paulo Sabino, uma sobra de papel de boa qua-
os 15 anos mora no bairro da Urca, na Freire), Camargo Meyer (poeta e futuro lidade da Editora do Autor, da qual era
grande casa de seus avós, com os pais membro do Partido Comunista Brasilei- dono. Armando, então, custeado por
e toda a família materna. Muda-se para ro). Além desses, Mauro Gama (poeta) e seu pai, pode fazer o seu primeiro livro,
o Flamengo, onde fica até casar-se com o pianista Arthur Moreira Lima compu- por um preço razoável.
Regina Fabriani, em 1969, quando re- nham o “coletivo”, grupo que estudava
torna à Urca, para uma outra casa que as artes de cada um como também a si-
sua tia-avó lhe deu. tuação social e política do Brasil. 1963
Publica Palavra, com capa de Rubens
Gerchman.
1955 1962
Lê Fazendeiro do ar & poesia até agora, Cleonice Berardinelli, professora de li-
de Carlos Drummond de Andrade, e teratura portuguesa, depois de se dizer 1964
Poesias completas, de Manuel Bandeira. incapaz de uma avaliação precisa dos Sob o impacto do golpe militar e em
originais do primeiro livro de Armando, resposta a um convite de Mario Cha-
Palavra, sugere a ele que leve os originais mie, entra para a Instauração Praxis,
1956 para Manuel Bandeira. Armando não da qual participa até 1975. Antagoni-
Lê Duas águas, de João Cabral de Melo vai sozinho; pede ajuda a seu pai, que o zando o movimento da poesia concre-
Neto, e A luta corporal, de Ferreira Gullar. acompanha. Bandeira diz que a poesia ta, a Praxis foi o único movimento de
de Palavra é “interessantíssima”, mas su- vanguarda que valorizou o discurso
gere que o poeta, muito moço, ouça sem- sintático em contraposição ao uso da
1958 pre a opinião de gente tão moça quanto palavra isolada – recurso comum na
De volta de uma viagem aos Estados ele – seus cúmplices e competidores. poesia concreta e não concreta – e a
Unidos, onde fez um curso de inglês e Aconselha-o então a procurar Ferreira não-palavra do Poema-Processo. A
de história e cultura americanas, vê uma Gullar ou José Guilherme Merquior. Ar- Praxis estimulava o poema engajado,
exposição de Alexander Calder que mui- mando deu preferência a José Guilher- com forte participação política, sem
to o impressionou. Assiste também a re- me, pois sua timidez o deixou inseguro abrir mão de uma dicção renovadora.

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 48 05/05/15 12:29


49
Armando Freitas Filho

entre-
vista
parte de uma coleção orga-
nizada por Irineu Garcia,
onde os poetas contempo-
Você, comumente, cita dois poetas râneos liam seus poemas.
que teriam sido suas grandes in-
Não me lembro de lhe ter
fluências: Bandeira e Drummond.
Poderia nos dizer como se deu o pedido esse presente, que
encontro com a poesia de ambos e foi o melhor que recebi até
que impacto causou em você e na
sua poesia? hoje. Esse disco não para de
tocar. Logo depois ganhei
Bandeira e Drummond me o livro Poesias, de Manuel
chegaram via oral, digamos Bandeira, e Fazendeiro do
assim. Meu pai, em 1955, ar & poesia até agora, de
me deu o disco, que fazia Carlos Drummond de An-
drade. Ainda não acabei de
lê-los como eles merecem
mais de meio século depois.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 49 05/05/15 12:29


50

1966 da. Depois de sua morte, como cura- 1980


Publica Dual, com capa de Rubens dor de sua obra, Armando organizou Publica o livro para crianças Apenas
Gerchman, edição particular. e publicou os livros póstumos, já que uma lata, que lhe rendeu o Prêmio
Começa a trabalhar como pesquisa- estava sob seus cuidados o acervo da Fernando Chinaglia.
dor no Centro de Pesquisas da Fun- poeta, por desejo dela. Torna-se assessor do Instituto Nacio-
dação Casa de Rui Barbosa, no Rio de nal do Livro, na agência do Rio de
Janeiro, onde fica até 1974. Janeiro, permanecendo nesse cargo
1977 por 10 anos.
Lança Mademoiselle Furta-Cor, com Casa-se com Cristina Barros Barreto.
1970 litografias de Rubens Gerchman. Com-
Publica Marca registrada, com capa de posto e impresso manualmente por
Emilie Chamie. Dual e Marca registra- Cléber Teixeira, trata-se de um livro 1982
da representam a fase de engajamento de arte que contou com uma tiragem Publica longa vida, com capa de Vic-
na Instauração Praxis. de 200 exemplares, numerados e tor Burton sobre colagem de Rubens
assinados pelo editor, pelo ilustrador Gerchman e prefácio de Ana Cristina
e pelo poeta. Cesar.
1971 Publica também A meia voz a meia luz,
Nasce sua filha Maria. edição particular e peculiar, impressa
1978 a seco. O texto aflora quando o leitor
Publica A flor da pele, com fotos de passa um lápis pelas letras em relevo.
1974 Roberto Maia, edição particular em O conteúdo tem relação com esse
Assume a Assessoria do Departamen- formato tabloide. O lançamento acon- processo.
to de Assuntos Culturais do Ministério teceu no Parque Lage, Rio de Janeiro,
de Educação e Cultura, na área de onde Rubens Gerchman dirigia a
literatura, onde ficou até 1990. Escola de Artes Visuais, à época lugar 1983
Casa-se com Hileana Menezes. importante para todos os movimentos Morre a poeta Ana Cristina Cesar,
culturais de resistência e que mere- grande amiga de Armando.
ceu, no ano de 2009, uma exposição
1975 organizada por Heloisa Buarque de
Publica De corpo presente, muito im- Hollanda e Hélio Eichbauer, chamada 1985
portante para Armando, que conside- Jardim da Oposição. Armando conside- Publica 3X4, com capa de Victor
ra esse o seu livro de transição, já que ra esse poema o que ele fez de melhor Burton sobre desenho de Rubens Ger-
os três anteriores foram seus livros de no gênero de poesia engajada e de chman e posfácio de Silviano Santia-
formação. denúncia. Em 1979, A flor da pele é go. O livro recebeu, um ano depois, o
Nomeado secretário da Câmara de incluído no livro À mão livre. Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara
Artes do Conselho Federal de Cultura, Brasileira do Livro.
no Rio de Janeiro, cargo que ocupou Publica o livro para crianças Breve
por dois anos. 1979 memória de um cabide contrariado.
Conhece Heloisa Buarque de Hollanda Pela primeira vez lança um livro por Organiza e prefacia o primeiro livro
e Ana Cristina Cesar. De vital impor- uma grande editora: À mão livre, com póstumo de Ana Cristina Cesar, Iné-
tância à trajetória de Armando, elas capa de Victor Burton sobre desenho ditos e dispersos, a partir do acervo
representavam um olhar feminino e de Rubens Gerchman e prefácio de José literário da poeta.
mais aberto em relação ao entendi- Guilherme Merquior.
mento do meio cultural brasileiro que Junto com Heloisa Buarque de Hollanda
se expressava no Rio de Janeiro com a e Marcos Augusto Gonçalves, participa 1986
geração marginal, reunida por Heloisa da coleção Anos 70, no volume dedicado Publica Paissandu Hotel, com projeto
em antologia famosa – 26 poetas hoje. a literatura. Heloisa e Marcos trataram a gráfico de Salvador Monteiro, edição
Com Ana Cristina a relação foi profun- ficção do período e Armando, a poesia. não comercial que traz os poemas

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 50 05/05/15 12:29


51

Fale um pouco sobre a série “Nu-


meral”, publicada pela primeira
vez em Máquina de escrever, junto
com sua poesia completa reunida,
Seu primeiro livro, Palavra, é de e que continuou sendo publicada
1963. Naquele período, a poesia nos livros seguintes.
brasileira parecia dividida, de
modo geral, entre os formalistas,
Entendo “Numeral” como
ancorados na poesia concreta, os
expoentes da corrente nacional-po- um poema finito e infinito.
pular e os não filiados a nenhuma Como um poema aflitivo,
dessas correntes. Como você se
coloca nesse contexto?
que vai acabar comigo,
mais dia menos dia. No
Me colocava espremido, entanto, ele não acaba, ou
para dizer o mínimo. Nas ele acaba em aberto, como
minhas costas, pesava o re- qualquer vida, sabendo
trocesso da chamada gera- que a morte é inexorável e
ção de 45 e, na minha fren- inaceitável.
te, o concreto da poesia de
Augusto e Haroldo de Cam-
pos e Decio Pignatari como
que vedavam o horizonte
para mim e para eles, em-
bora eles não soubessem
disso, como continuaram
não sabendo, ad nauseam.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 51 05/05/15 12:29


52

escritos durante o tempo em que voices – the twentieth-century poetry of 1996


Armando e sua mulher, Cristina, Latin America. Lança Cadernos de Literatura 3, que
se hospedaram no hotel de mesmo Tem seus poemas traduzidos para o reúne poemas seus e de Adolfo Mon-
nome, enquanto a casa na Urca esta- alemão por Fritz Frosch e publicados tejo Navas. Os poemas de Armando
va em obras. na revista Manuskript, em Viena. são acompanhados por “desenhos de
telefone para mão esquerda”, produ-
zidos pelo poeta em folhas casuais,
1988 1994 quando, ao falar ao telefone, segura
Lança De cor, com capa de Victor Passa a trabalhar na Funarte, presi- o fone com a mão direita e desenha
Burton sobre desenho de Rubens Ger- dida por Ferreira Gullar, no Rio de com a esquerda.
chman e prefácio de José Miguel Wis- Janeiro. Morre sua mãe, Maria do Carmo Ac-
nik. O livro reflete profundamente a Lança Números anônimos, capa de cioly Rabello Martins de Freitas.
morte de Ana Cristina Cesar, fato que Victor Burton sobre desenhos datilo- Aposenta-se pela Funarte.
marca para sempre a vida e a poesia gráficos de Carlos Sussekind e orelhas
de Armando. de Laymert Garcia dos Santos.
Com tradução de Maria Luiza Cesar, Escreve os poemas do livro de arte de 1997
mãe de Ana Cristina, ele organiza Rubens Gerchman, Doble identidad/ Lança Duplo cego, capa de Armando
Escritos da Inglaterra. O livro com- Dupla identidade, traduzidos para o Freitas Filho, Sergio Liuzzi e Hen-
preende a tese e alguns estudos sobre espanhol por Adolfo Montejo Navas e rique Cairus sobre foto de Evandro
tradução de poesia e prosa modernas para o inglês, por David Treece. Teixeira retratando uma imagem do
que Ana escreveu durante seu curso Tem seus poemas publicados na revis- teste Rorschach.
de mestrado em Essex. ta Modern poetry in translation, edição
Morre Armando Martins de Freitas, organizada por David Treece.
pai do poeta. 1999
Participa da Anthologie de la nouvelle Lança Erótica, publicação que junta
poésie brésilienne, organizada por 1995 poemas eróticos colhidos em cada
Serge Bourgea. Lança Dois dias de verão, em parceria livro de Armando. Gravuras de Mar-
com Carlito Azevedo, com ilustrações celo Frazão, capa e projeto gráfico
de Artur Barrio. A edição totalizou de Sylvio de Oliveira.
1989 200 exemplares, numerados e assina- Organiza com Heloisa Buarque de
Morre o poeta Tite de Lemos, seu dos pelos autores. Hollanda – e prefacia – o livro Corres-
grande amigo. Lança também Loveless!, poema em pondência incompleta, de Ana Cristi-
formato tabloide, com gravura de Mar- na Cesar.
celo Frazão. Organiza a edição do livro Crítica e
1991 Armando é tema da dissertação de tradução, de Ana Cristina Cesar.
Nasce seu filho Carlos. mestrado Estratégias felinas – discurso
Lança Cabeça de homem, com capa de poético x mídia na poesia brasileira
Victor Burton sobre desenho de Mil- contemporânea: Armando Freitas Filho 2000
ton Machado e prefácio de Luiz Costa e Sebastião Uchoa Leite, defendida por Lança Fio terra, capa de Ricardo
Lima. Renato Tapado na Universidade Fede- Tamm, Tatiana Brasil e Armando Frei-
ral de Santa Catarina. tas Filho, pelo qual recebe o Prêmio
1993 Em edição bilíngue é lançado o livro Alphonsus de Guimaraens, concedido
Por ocasião do 10º aniversário de Cabeza de hombre, com prefácio e pela Fundação Biblioteca Nacional.
morte de Ana Cristina Cesar, organiza tradução para o espanhol de Adolfo Uma seleção de poemas seus, traduzi-
e prefacia Escritos no Rio, com artigos, Montejo Navas. dos por David Treece, é publicada em
resenhas e depoimentos da poeta. “Poems”, volume 9 do Journal of Latin
A poesia de Armando é analisada American Cultural Studies.
por David Treece em The gathering of

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 52 05/05/15 12:29


53

Escrevo a qualquer hora,


em qualquer lugar. Como
escrevo a mão, vale tudo:
lápis meu ou o que peço
Recentemente você foi responsável emprestado na rua; máqui-
pela organização das reedições da na de escrever, quando pas-
obra de Ana Cristina Cesar. Como
você vê a importância da poeta no
so a limpo o que ficou no
contexto literário brasileiro e na papel ou na palma da mão.
sua trajetória pessoal?
Atualmente, o computador
entrou para me atormentar,
Recentemente não é o ter-
pois aceita sem dificuldade
mo. Cuido da minha mor-
“n” mudanças. Como se ele
ta-viva há mais de 30 anos.
tivesse um hímen compla-
Cuido com esmero e de-
cente ou coisa que o valha.
dicação. Cuido porque ela
Sou um escritor trifásico e
quis assim. Cuido com raiva
rápido e um reescritor len-
por ela ter feito o que fez.
to; não é por acaso que gos-
Cuido com o amor possível.
to tanto da fábula da lebre e
No contexto literário bra-
da tartaruga: “elas sou eu”,
sileiro ela é um dos poetas
como dizia Flaubert sobre
mais vivos. Ela não parou
Madame Bovary.
de viver um minuto sequer.
Qual é a sua rotina de trabalho?
Você escreve todos os dias, no
mesmo horário? Usa computador,
máquina de escrever ou caneta?

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 53 05/05/15 12:29


54

2001 Lança Numeral/Nominal em edição Uma edição de 50 exemplares, bas-


Lança 3tigres, com Vladimir Freire, bilíngue. A tradução para o catalão é tante peculiar: o livro foi todo escrito
uma edição particular, e o álbum Sol de Josep Domènech Ponsatí. à mão pelo poeta.
e carroceria, com serigrafias de Anna Outros lançamentos: Tercetos na má-
Letycia. quina, plaquete composta por Ronald
O Instituto Moreira Salles, do Rio de 2005 Polito, e Sol e carroceria, edição con-
Janeiro, lança o CD O escritor por ele Realiza W: homenagem a Franz Weiss- cebida por Sergio Liuzzi, obtida por
mesmo: Armando Freitas Filho. mann. Concepção e poema: Armando meio de fotocópias a partir do álbum
O poeta obtém a Bolsa Vitae de Artes Freitas Filho. Realização e arte gráfica: lançado em 2001.
com o projeto do livro Máquina de es- Sérgio Liuzzi. Bula: Adolfo Montejo Escreve “O descobrimento de Ca-
crever – poesia reunida e revista. Navas. Pintura e acabamento: Paulo bral”, prefácio para o livro O cão sem
Esteves. A homenagem deveria ter plumas, de João Cabral de Melo Neto,
sido prestada ao grande escultor ainda primeiro volume da obra do poeta
2002 em vida, mas infelizmente acaba sen- pernambucano, reeditada no Rio de
Publica Toma de tierra, edição bilín- do póstuma. Janeiro.
gue com versão em espanhol por O poeta é tema da tese de doutorado Publica Rara mar em edição bilíngue.
Adolfo Montejo Navas, e Doble cec, O elogio da instabilidade. Ensaios por A tradução para o catalão é de Josep
traduzido para o catalão por Josep uma semiologia do corpo, defendida Domènech Ponsatí.
Domènech Ponsatí. por Marcelo Diniz na Universidade
Mais uma vez o poeta é tema de dis- Federal do Rio de Janeiro.
sertação de mestrado – Travessia cega 2008
de um desejo incurável. A experiência Numa realização de Sergio Liuzzi,
sublime na obra de Armando Freitas 2006 com ilustrações do poeta, é lançado
Filho – defendida por Eduardo Guer- Lança Raro mar, capa de Sergio Liu- Mr. Interlúdio, poema publicado no
reiro na Universidade Federal do Rio zzi sobre gravura de Anna Letycia, livro À mão livre, de 1979.
de Janeiro. prefácio de João Camillo Penna, pelo
qual recebe o Prêmio Jabuti.
O Instituto Moreira Salles e a Vídeo 2009
2003 Filmes lançam o DVD Fio terra, no Lança o livro Lar, com capa de Ser-
Publica Máquina de escrever – poesia Rio de Janeiro. gio Liuzzi e prefácio de Vagner Ca-
reunida e revista, que reúne 13 livros Tem um dossiê sobre sua vida e obra milo, que recebeu os Prêmios Jabuti
com toda sua poesia até então. O volu- publicado no número 22 da revista e Portugal Telecom.
me abre com um livro inédito, Nume- Poesia sempre, da Fundação Bibliote- Nesse ano, em especial, a obra do
ral/Nominal. Recebe o Prêmio Jabuti. ca Nacional. poeta é estudada em vários traba-
A tese de doutorado de Raimundo O poeta é, mais uma vez, tema de lhos acadêmicos:
Nonato Gurgel Soares, Seis poetas para dissertação de mestrado – Palavra - Na fenda dos dias: leituras a partir
o próximo milênio, defendida na Uni- e imagem: paisagens disparadas em de algumas datas na obra de Ar-
versidade Federal do Rio de Janeiro, Armando Freitas Filho, defendida mando Freitas Filho, dissertação de
fala sobre o poeta. por Cristiane Lemos Rodrigues na mestrado defendida por Mariana
Universidade Federal Fluminense. Quadros Pinheiro na Universidade
Uma antologia, organizada por Ar- Federal do Rio de Janeiro;
2004 mando, é lançada em Portugal. - O outro possível: a poesia de Ar-
Lança Tríptico, com arte gráfica de mando Freitas Filho em diálogo com
André Luiz Pinto, e Trailer de raro Carlos Drummond de Andrade, dis-
mar, plaquete composta por Ronald 2007 sertação de mestrado defendida por
Polito. É publicado Para este papel. Poemas Mariana Rezende Gontijo Campos na
Organiza o livro Ana Cristina César – de Armando, realização de Sergio Universidade Vale do Rio Verde de
novas seletas. Liuzzi e acabamento de Paulo Esteves. Três Corações (MG);.

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 54 05/05/15 12:29


55

Como vê a poesia brasileira con-


temporânea? Você lê os poetas
mais jovens? A poesia e sua rela-
ção com as tecnologias digitais lhe
interessam? Ao lermos sua obra, podemos ob-
servar a existência de quatro eixos
temáticos: o fazer poético, o tempo,
O momento é rico, a meu
a memória e o corpo. Como esses
ver. O momento é livre e as temas surgem na sua produção e
tecnologias digitais favore- dialogam entre si?

cem essa liberdade, apesar


No alvo. Esses problemas,
de facilitá-las além da con-
pois eles não são temas,
ta. Valeu a pena brigar por
surgiram por si sós. Sur-
uma poesia sem dogmas,
giram porque, pensando
sem ordens unidas estéti-
bem, são questões sempre
cas. Leio bastante os mais
presentes para quem es-
moços, mas não leio tanto
creve. É uma pauta, enfim,
como antes porque, agora,
que dá caldo, uma pauta
não tenho tempo a perder
para toda uma vida.
com tantos outros. Preciso
de mim, concentrado, sem
narcisismo. Eu me preciso, Armando Freitas Filho

pois já contornei a grande 2015 - Entrevista para a revista Palavra, número 6, do SESC
Por Flavia Tebaldi e Frederico Girauta
curva e entrei na reta final,
como dizia um famoso lo-
cutor de turfe.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 55 05/05/15 12:29


56

- Dualidades na poesia de Armando Ciências Humanas da Universidade de


Freitas Filho, tese de doutorado defen- São Paulo.
dida por Mário Alex Rosa na Universi-
dade de São Paulo;
- A estética do vertiginoso na poesia de 2013
Armando Freitas Filho, dissertação de O número 87 da revista Piauí publica
mestrado defendida por José Felipe o texto Inconfissões e inconfidências –
Mendonça da Conceição na Universi- duas conversas telefônicas com Ana Cris-
dade Federal do Rio de Janeiro. tina Cesar.
Começa a filmagem de Manter a linha Faz a curadoria editorial do livro Poé-
da cordilheira sem o desmaio da planí- tica, de Ana Cristina Cesar, publicado
cie, filme de Walter Carvalho, sobre a por ocasião do 30o aniversário de mor-
vida e a obra de Armando. te da poeta.
Lança o livro Dever.

2010
Publica a antologia Melhores poemas. 2014
Armando Freitas Filho. A seleção dos O texto “Cão feroz” é publicado no nú-
poemas e o prefácio são de Heloisa mero 96 da revista Piauí.
Buarque de Hollanda. Recebe o Prêmio Alphonsus de Gui-
É lançada na Argentina Entre cielo y maraens, concedido pela Fundação Bi-
suelo: una antologia. Poemas de Ar- blioteca Nacional, por seu livro Dever,
mando selecionados por Teresa Ari- e o Prêmio Alceu Amoroso Lima – Poe-
jón e Camila do Valle. Texto crítico sia e Liberdade 2014, pelo conjunto da
de Viviana Bosi. obra.
O número 6 da revista Serrote publi-
ca “Compreende?”, ensaio sobre a
poesia e o poeta João Cabral de Melo 2015
Neto. Mais uma vez o poeta é tema de tese
de doutorado – O erotismo na poesia de
Armando Freitas Filho – defendida por
2011 José Felipe Mendonça da Conceição na
“Poesia participante e praia”, mais um Faculdade de Letras da Universidade
ensaio do poeta publicado na revista Federal do Rio de Janeiro.
Serrote, número 8.
Publica no blog do Instituto Moreira
Salles um conjunto de cartas trocadas
com Maria Rita Kehl.

2012
Lança Pingue-pongue, com Alice
Sant’Anna, realização de Sergio Liuzzi.
Sua obra é tema da dissertação de
mestrado Ao rés da escrita: tensões na
poesia de Armando Freitas Filho, defen-
dida por André Barbugiani Goldfeder
na Faculdade de Filosofia, Letras e

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 56 05/05/15 12:29


57

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 57 05/05/15 12:29


58

Suíte para o Rio


O mar amarrotado é o mesmo há 450 anos A paisagem se deixa pintar
visto pelo recorte estreito se larga, parada, debaixo
da seteira da fortaleza que do calor do dia espalhado.
se soergueu depois, inserida Ou é ela mesma a pintura
como parte da paisagem virgem já feita, posta a secar, há muito?
onde surgiu, dentre as folhas
a edição princeps dos tamoios O pôr do sol do Arpoador
primeiros cariocas avant la lettre. troca o dia pela noite
num piscar de olhos, mudando
Também a praia estava como está o disco do sol pela vigia da lua
até agora, rente à montanha que se repete no coração da Lagoa imóvel
que cresceu de um assomo só à espera do toque do luar e da sua sonata.
na forma de pão de fôrma
furando o céu, aspergido O dia de maio me redime
por simulado açúcar, ao lado e delibera; sol sem pressa
de um morro com cara de cão. azul de Volpi, não exclamativo
como o de Mallarmé:
O fundador do Rio de Janeiro ainda não tinha são recortes de céu em flâmulas
chegado para o combate e a conquista tocantes, tocadas pela brisa no afresco.
com suas velas e cascos de caravelas
que adentraram sob flechas na baía No contracampo, o mar alto
onde mais tarde na terra da cidade a vela do barco a vela branca
seu corpo é lápide de pedra alisada passa, e infla o perfil agudo
pelo mármore e pelo tempo da garça pousada em primeiro plano.
em cuja face gravou-se nome, armas e data As duas imagens verticais
marcando a lembrança daqueles dias. de pano e pena
se assimilam graças aos elementos
Às vezes, o mar idênticos que as compõem: o vento aliado
está milagrosamente caribenho: no mesmo ambiente de peixe de
Rio de janeiro – botos, barcos ânimo de asa e sal, alvura, azul-céu, passagem.
à flor da água, golfinhos-símbolos
da cidade, ao vivo
e duas arraias translúcidas.

Dossiê Armando Freitas Filho

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 58 05/05/15 12:29


59

No mar defronte, contra o sol O silêncio aqui na Urca


do crepúsculo, empunhadas à noite é um túnel aberto
as linhas dos anzóis são os fios de teto altíssimo de céu
esticados da sua luz, desde o molinete e profundo piso de mar.
até o mar que esplende, parado. Bairro feito à imagem
do barco indígena ovalado
Amendoeiras plantadas ou sigla de Urbanização Carioca
a intervalos regulares que dispôs seus quarteirões
instalam o teclado enquadrados pelo aterro estreito?
de sol e sombra Na entrada da barra, ao longe
na calçada litorânea de madrugada, os navios mugem
e a música é o mar tristes por abandonar o oceano
rente ao paredão da Urca e chegar à baía domesticada.
em adágio e calmaria
tocada sem parar O Terrorama da Baixada
quando o dia é sem nuvens se espraia pela cidade
até a chegada do pisca-pisca e a reúne numa cartografia única.
da noite de estrelas de Vincent. Suas linhas são traçadas
Aí, o concerto para piano por balas perdidas ou não.
se encerra, e começa Só sabemos ainda ser próximos assim:
o solo crescente e claro da lua. embora ombro a ombro
desiguais, feridamente.
Mar e morro conflitantes parecem
que não moram na mesma paisagem.

E os breves olhos d’água


com catarata
do Rio Carioca
que ainda nos enxergam
por umas três vezes
na sua corrente
ficarão cegos, presos, internos
por completo, incapazes
de refletir um pingo de céu?

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 59 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 60 05/05/15 12:29
Depoimentos 61

Laura Liuzzi Eduardo Coelho


nasceu no Rio de Janeiro em é professor de Literatura Brasileira da ção em Ciência da Literatura. Entre
1985. Seu primeiro livro de Faculdade de Letras da Universida- outros, organizou o livro Manuel Ban-
poesia, Calcanhar (7Letras), foi de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). deira, da coleção Melhores Crônicas,
publicado em 2010. Em 2014, Nessa mesma instituição, leciona publicada em 2003 pela Global.
lançou Desalinho (Cosac Naify). também no Programa de Pós-Gradua-

O tigre salta
A única ameaça
da página

“Xerox, tigre, terror. / Reproduzo o que


não consigo exprimir.” Até onde minha
Em 2013, com a publicação do livro Dever, Armando
memória alcança, esse é o primeiro Freitas Filho atingiu a marca de 50 anos de criação
par de versos que li do Armando. O
poema “Torpedo” está publicado em
poética. Nesse percurso que se inicia com Palavra,
De cor, de 1988. Eu tinha apenas três de 1963, é possível constatar um movimento que
anos e, naturalmente, não sabia ler.

torna mais profunda a relação de sua obra com o
Tempos depois, voltando de outro tempo. Trata-se de uma relação ainda mais proble-
lançamento do poeta na livraria Tim-
bre, na Gávea, o livro caiu nas minhas
matizada a partir de Máquina de escrever, de 2003,
mãos. No banco traseiro do carro, meu quando instaurou a dualidade “Nominal” e “Nume-
irmão e eu folheávamos curiosos as pá-
ginas escritas pelo amigo bigodudo do
ral”, repetida em todos os seus títulos posteriores.
papai. Demos com as três palavras lado ¶
a lado e, como nos desenhos anima-
dos, o tigre extrapolara o papel e me
Percebe-se, em “Nominal”, uma reflexão voltada
arranhara. Àquela altura, eu já devia especialmente para o tempo passado. O poeta rees-
ter uns nove anos.

creve aquilo que a própria passagem do tempo vai
O poema segue nervoso, veloz, elétrico. apagando. Nesse processo de recuperação, o ima-
A cada verso o espanto inflava mais – “e
desligo a árvore final da paisagem”. A
ginário parece intervir determinantemente sobre a
incompreensão pode ser fascinante. No realidade. Não se identifica, dessa maneira, apenas a
pensamento lógico de uma criança, uma
árvore não pode ser desligada. Mas no
restauração do vivido: de modo geral, desponta um
imaginário, no sonho e no delírio, uma senso analítico-imaginativo que atribui gravidade
caneca anda, uma onda subitamente
congela, uma pessoa inexistente passa
e novos sentidos aos acontecimentos, mesmo que
a existir. Com a poesia não é diferente. tenham sido triviais. Essa recuperação, portanto, é

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 61 05/05/15 12:29


62

Embora não entendesse bem o porquê,


desliguei a árvore “com a água / quase
também uma revisão dramática das linhas já vividas
no ponto de virar mármore.” e escritas, em que não há redenção: ao contrário,

O Armando morou toda a vida na Urca.
irrompe uma ameaça, conforme “Ar de família”, de
Desde bem criança, ia à casa dele e Dever: “O que escrevo me ameaça de tão perto”.
logo me dirigia ao quintal, onde fica,
como ele chama, a “unha do Pão de

Açúcar”. Uma rocha crua irrompe nos Firma-se uma mineração do outro e de si mesmo,
fundos da casa como se o pé de um gi-
gante estivesse a um passo de esmagá
por meio da qual são principalmente as perdas que
-la. Ali se camuflavam camaleões, que levam o sujeito a estados de insegurança e de in-
ficavam quase mais imóveis do que a
própria pedra. Não é à toa que a pai-
certezas. No poema “Marcas da mãe”, também de
sagem da poesia do Armando é mon- Dever, vai-se do “primeiro prato feito” pela mãe,
tanhosa: fixa, concreta, exata, angular.

que “não admitia dúvida”, até o sujeito servir-se
E assim é com a vida: ajustado o ângulo “hesitante”. Dessa recuperação, provém um dos ín-
ideal, empenha-se no exercício da poe-
sia, que é a vida, que é a poesia. Uma
dices de instabilidade: “o que corto, o que ponho/
vida, sim, dedicada à escrita; subme- ora sobra, ora falta/ e não sei, exatamente/ o que
tida ao rigor atlético da palavra. Tudo
parece falar: o telefone, o morro, o es-
me alimenta ou me mata.”
pelho – “[...] tudo o que penso / pousa ¶
em mim, e me vence”. O pensamento
é sempre atravessado pelo que o corpo
Já na série “Numeral”, o memorialismo é substituído
atravessa. Isso tem um peso e marca. pelo registro do presente – enfim, pelo diário. Aqui

Sempre frequentador dos mesmos
a revisão ganha outro papel: ela está ligada à tenta-
restaurantes, dos mesmos amigos, do tiva de corrigir a propensão maior de erro que todo
mesmo alfaiate, dos mesmos jornais,
dos mesmos discos, do mesmo único,
relato ao calor da hora contém em si. Nesse aspecto,
pontual e noturno cigarro. Em tudo há a própria criação se torna uma ameaça mais ence-
o toque da escolha exata. Se nada apa-
renta passar impune pelo Armando,
nada, ao menos. Nos textos seriados, existe uma
sua rotina também não permite mui- dimensão instintiva em jogo, que, sem dúvida algu-
tos sobressaltos. Uma nova placa no
percurso das caminhadas, um buraco
ma, é portadora de alguma precariedade sob a ótica
na calçada ou uma casa que se tenha de um poeta altamente construtivo como Armando
pintado de outra cor: qualquer alte-
ração no espaço produzirá um efeito.
Freitas Filho, o que está de acordo com o poema
Talvez uma marca. 101: “Desengrena. O poema não é mais,/ um objeto,

Longe do puro devaneio ou de um
mesmo indireto/ mas um aparelho estourado/ com
tratamento tão somente estético das alguns canos aparentes/ e o cabedal, a mixórdia de
palavras reunidas no poema, o punho
vibrante mas firme do Armando não
fios/ dos gatos, das ligações clandestinas/ se não
deixa que um vento, por exemplo, o forem, também, perigosas.” A dimensão construtiva

Depoimentos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 62 05/05/15 12:29


63

desvie do próprio vento; que uma nu-


vem o distraia do que é a nuvem que
se mantém, mas infiltrada por improvisos que são
sombreia o verso. Cada vírgula é pon- compensados pelo recurso da metalinguagem.
tuda e talvez fira, cada ponto tem um
peso correspondente, todo verso tem

uma e somente uma medida. Ao ape- Diante dessas constatações, é perceptível que o
lo da beleza formal se antecipa o cha-
mado da fala, do que precisa ser dito.
tempo se apresenta como moeda de dupla face
Tudo que se escreve é tudo aquilo que na lírica freitasiana: enquanto sua passagem vai
se toca. Mesmo o amor é táctil, odoran-
te, murmurante. E mais: as próprias
apagando os fatos e o próprio sujeito, igualmente
palavras têm vocação. Elas chamam as favorece que outras perspectivas sejam engendra-
seguintes por afinidades sonoras e ex-
pressivas, como se dotadas de vontade
das em torno do passado, corrigindo equívocos,
própria. ajustando imagens e interpretações. No entanto,

“Reproduzo o que não consigo expri-
a partir de uma nova perspectiva se adensam e se
mir.” – o poder de evocação da palavra, multiplicam as perdas. É uma luta de perde e ga-
a um só tempo mutante e de caracte-
res fixos, é convocado a suprir aquilo
nha, em que a morte, em especial a do poeta, se
de que o nome não dá conta. Por um agiganta como instrumento amedrontador, como
lado xerox, repetição, reprodução. Por
outro, tigre, terror, susto, suspensão.
agente principal da perda de sentido. Logo, o tem-
¶ po nesse caso alimenta e mata.
O Pão de Açúcar será sempre a mesma
montanha. Exata, estática, imóvel. O

poeta, no entanto, tem sempre reno- No poema 109, afirma: “Escrever é como caminhar:
vada a visão da montanha – seja por-
que o céu a cobre de nuvens, porque
se reconhece/ o autor, não pela letra, que se falsi-
a noite foi mal dormida ou porque as- fica/ nem pelo tema tratado na face da superfície/
sume as feições de uma cara. A poesia
do Armando é insistente e obstinada.
mas pelo problema de fundo, o húmus original/
Tem para a sua cartografia afetiva o que alimenta os passos subterrâneos do assunto.”
comportamento de uma pipa (ou pa-
pagaio): entrega-se ao desenho do
Para esse autor, é a interrupção da série, é sua
vento, mas sob o controle e o domínio própria morte − a máquina emperrada − o “proble-
do pulso.

ma de fundo” e o “húmus original”, como se pode
Quando ele desliga a árvore final da observar em versos de 115: “Numeral é volume sem
paisagem, todos a desligamos.
volume./ [...]/ Não tem peso próprio, pega/ caro-
na nos livros que passam/ depressa, e, de repente,
Referências parará/ a série, melhor dizendo, o seriado/ no dia
FREITAS FILHO, Armando. De cor: 1983-1987. Rio de longe ou no dia perto/ na data certa de um desas-
Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
tre.” Na poética freitasiana, todas as ameaças são
FREITAS FILHO, Armando. De corpo presente: 1970-
1975. Rio de Janeiro: Práxis, 1975. uma só – a morte!

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 63 05/05/15 12:29


64

Eucanaã Ferraz Mário Alex Rosa


Poeta, Eucanaã Ferraz publi- livros, entre eles, Letra só é autor dos livros ABC Futebol
cou, entre outros, Desassombro (2003) e O mundo não é chato Clube e outros poemas (Editora
(2002, Prêmio Alphonsus de (2005), ambos de Caetano Ve- Bagagem, 2007), Formigas (Co-
Guimaraens, da Fundação Bi- loso, e Poesia completa e prosa sac Naify, 2013), ambos infantis;
blioteca Nacional), Sentimental de Vinicius de Moraes (2004). Ouro Preto – poemas (Editora
(2012, Prêmio Portugal Tele- Publicou, na coleção Folha Ex- Scriptum, 2012) e Via férrea (Co-
com de Poesia), Escuta (2015) plica, o volume sobre Vinicius sac Naify, 2013).
e os infanto-juvenis Bicho de de Moraes (2006). É professor
sete cabeças e outros seres fan- de Literatura Brasileira na Fa-
tásticos (2009) e Palhaço, ma- culdade de Letras da Universi-
caco, passarinho (2010, Prêmio dade Federal do Rio de Janeiro
Ofélia Fontes, pela Fundação (UFRJ) e, desde 2010, atua
Nacional do Livro Infantil e como consultor de Literatura
Juvenil, o Melhor Livro para
a Criança). Organizou vários
do Instituto Moreira Salles.
A máquina do
poema

E se tenho que usar-te palavras,

Armando — um tema
elas têm que fazer um sentido
quase que corpóreo, estou em
luta com a vibração última.

Clarice Lispector

Desde o início da sua carreira, Arman-


do Freitas Filho foi obstinado pela pa-
Reúno aqui quatro poemas escritos em torno de lavra. Mas dizer isso é pouco, pois, a
um mesmo tema: Armando Freitas Filho. Tema, rigor, todo grande poeta vive essa an-
gústia da busca. No caso do poeta ca-
sim, pois não há como dizê-lo de outro modo, já rioca, fica muito claro quando, já no
que não são apenas textos dedicados ao amigo. É primeiro livro, publicado em 1963, o
título é exatamente Palavra. Vocábulo
sua figura, sua escrita, nosso convívio que estão no que se repete quatro vezes na capa,
centro desses poemas. Todos foram movidos por três em branco, sendo que a segunda
se destaca fortemente na cor preta, o
alguma situação. Ou melhor, pela suposição de que que, de alguma forma, enfatiza a pa-
determinado acontecimento poderia ser converti- lavra em si.

do em palavras capazes de valerem por si mesmas. Como se não bastasse, a epígrafe foi
A explicação parece óbvia. E talvez seja. Mas é a retirada do poema “O lutador”, de
Carlos Drummond de Andrade (2012):
partir de tal obviedade que os poetas escrevem. “Palavra, palavra, (digo exasperado),
¶ se me desafias, aceito o combate”.
Poema que pertence ao livro José, de
Já não me recordo exatamente das circunstâncias do 1942. Portanto, de 1963 para cá, Ar-
primeiro, “Da grande máquina”, publicado em 2004 mando Freitas Filho continua, talvez

Depoimentos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 64 05/05/15 12:29


65

menos exasperado, não só aceitando,


no livro Rua do mundo. Mas sei que remetem ao fato mas também combatendo as pala-
de Ronald Polito, que passava uma longa temporada vras. Como o próprio autor já disse
em inúmeras entrevistas, a sua meta
no Japão, haver mandado para Armando o fragmento é numerar até o fim, e aqui por nu-
de um texto de Clarice Lispector no momento em que merar entende-se escrever ou buscar
obstinadamente as palavras que pos-
nosso amigo dava os ajustes finais no volume de sua sam traduzir a sua expressão poética.
poesia reunida, sob o título geral de Máquina de escre- ¶
Afora as plaquetes (edições de pe-
ver, de 2003. Armando acabou usando o fragmento quenas tiragens, fora de comércio),
como epígrafe ao volume. Ouvindo tudo isso do pró- já são mais de quinze 15 livros publi-
cados. Em todos eles, podemos dizer
prio Armando, imediatamente me veio a certeza – ou a que o “projeto” de Armando tem em
vaga impressão? – de que ali “estava um poema”. Tudo sua totalidade a tentativa de que a
palavra seja mais que a ferramenta
o que ouvi parecia descrever o funcionamento de uma de trabalho, ou seja, que ela em suas
máquina impecável: um conjunto de peças/episódios mãos possa ser transformada em
concretude. Isso se dá de um modo
encaixados à perfeição, ou ainda, um equilíbrio obje- muito particular nessa poesia mar-
tivo e total entre personagens, coisas, tempo e espaço. cada, muitas vezes e de modos dife-
rentes, pela metalinguagem, o que
Quis que os versos se aproximassem de uma descrição, reforça, novamente, a procura pela
mas era preciso, simultaneamente, evitar certos deta- palavra. Em linhas gerais, podería-
mos dizer que quanto mais o poeta
lhes. Assim, o que havia de prosaico e simplesmente procura a palavra, mais ela se torna
descritivo ganhou a aparência de um enigma, pelo sim- uma busca quase inalcançável. Daí
a persistência dessa luta corporal,
ples fato de o leitor desconhecer o contexto e porme- portanto quase física, que Armando
nores circunstanciais. Curiosamente, o texto consigna trava com esse objeto. Batalha que,
sem dúvida, é para poucos.
os nomes dos personagens envolvidos na trama e isso ¶
o torna ainda mais estranho em sua estranha clareza. Mas ainda estamos muito longe de
compreender como esse processo da
¶ escrita se dá nesse poeta. Sem entrar
O segundo poema, “Armando Freitas Filho e os em detalhes, percebe-se que há uma
engrenagem entre palavra e corpo,
tigres”, também do Rua do mundo, nasceu do dese- como se vê em títulos de alguns dos
jo de fazer a poesia se aproximar criticamente do seus livros: De corpo presente (1975),
À mão livre (1979), A meia voz a meia
poeta. Ou seja, os versos deveriam ter certa pro- luz (1982), 3x4 (1985), De cor (1988),
priedade crítica, abordando metaforicamente a sua Cabeça de homem (1991) e Máquina
de escrever (2003), edição contendo
escrita. Não saberia dar exemplos, mas é certo que toda a poesia reunida e revista. Nesse
eu trazia então na memória a presença do tigre na feliz e justo título, e não à toa, o poeta
soube nomear parte de sua trajetória,
sua obra. E se tal presença não é recorrente, regis- pois após essa reunião revista, ainda
tro pelo menos que em 2000 ele publicara uma pla- saíram Raro mar (2006), Lar, (2009)

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 65 05/05/15 12:29


66

e Dever (2013).1 Portanto, desde sem-


quete chamada 3 tigres, que reúne um poema seu, pre palavra e corpo são batalhas en-
“Último tigre”, inédito, o célebre “The tiger”, de frentadas nesse poeta que escreveu no
encarte do CD O escritor por ele mesmo,
Blake, e “El oro de los tigres”, de Borges. em 2001: “Sou todo ouvidos, olho, na-
¶ riz, boca e mão”.

O terceiro, “O roubo”, poema publicado em Cinema- Mas vamos dizer que, com esse nome,
teca, de 2008, nasceu de um entusiasmo comum a máquina de escrever ficará para sem-
pre como representação de sua poesia.
nós dois: a escultura de Franz Weissmann. Mas não Essa comunhão de que máquina, aqui,
só isso. Vimos juntos duas ou três exposições desse duplamente representa o sujeito, por-
tanto o homem, e a própria máquina
grande artista. O poema aproveita o fato e conver- em si, porém a serviço do poeta. Quem
te-o numa espécie de narrativa poética em que tudo sabe mesmo uma simbiose entre ho-
mem e máquina. Se é assim, nota-se
– forma e conteúdo – buscam certa qualidade Weiss- que a epígrafe da reunião da obra revi-
mann, a que não faltam humour e o “jeito” de uma sada começa exatamente deste modo:
“O que sou neste instante? Sou uma
quase história policial. Se o poema é sobre Arman- máquina de escrever fazendo ecoar as
do, é também sobre mim, sobre nós, sobre Weiss- teclas secas na úmida e escura madru-
gada [...]”. Aqui cito apenas o início,
mann, sobre a criação e a fruição das obras de arte. mas quem se interessar pelo resto da
¶ citação, é só verificar o romance Água
Viva (1973), de Clarice Lispector (1998),
O último, que se chama simplesmente “Poema” – de onde Armando Freitas Filho retirou
está no livro Escuta, de 2015 –, demorou muito tem- a epígrafe.

po sendo feito. Eu tinha o seu início – “daqui posso Aliás, romance que tem como uma de
ver a Urca, onde Armando está posto no sofá de não suas bases a metalinguagem, mas para
além desse recurso estilístico, poeta e
dormir” – mas não conseguia avançar. Outra vez escritora parecem se doar nas palavras
há, na base, uma circunstância: moro no Flamengo, como confissão do impossível. Afinal,
escrever é escreviver. Ou mesmo nas di-
Armando na Urca, bairros que se miram. Digamos, versas passagens da obra, onde se pode
portanto, que eu poderia avistar daqui o meu ami- ler versos como “Escrever é cortar”,
“Existo por escrito”, “Escrever, apon-
go em sua casa. E é mesmo como se eu o visse. Sei, tando o lápis”, “Parar de escrever pode
por exemplo, da probabilidade de estarmos os dois, ser morrer”, é ter na linguagem um mo-
vimento continuado da falta. Por isso,
agora, insones, às voltas com a escrita, e isso nos o poeta disse: “escrever é rezar com
aproxima numa espécie de visão ou escuta. raiva”. É, mais uma vez, reafirmar que
em Armando o processo da escrita está
¶ constantemente
Esses quatro poemas guardam memórias da ami- 1 Aqui não estão em apuro.
contempladas as ¶
zade e da minha admiração pelo poeta. Fico feliz plaquetes e nem os
A perícia em es-
tabloides A flor da pele
vendo-os reunidos aqui. (1978) e Loveless! (1995). crever sobre o es-

Depoimentos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 66 05/05/15 12:29


67
crever faz com que em muitos poemas
Da grande máquina fique registrado o processo da escrita,
que, no entanto, já foi altamente peri-
ciado pelas mãos do poeta. Mas a sensa-
Então, a hipertecnologia ção que fica, por vezes, é que o resulta-
do é ainda vívido. É por isso que nessa
que a urgência exige obra a metalinguagem jamais é exercí-
faz ver que não há limites. cio retórico do ato sobre a escrita. Em
Armando, como bem observou Viviana
E tudo se cumpre: Bosi no prefácio de Máquina de escrever
(2003), “o tema da escrita se impõe do-
minante, não como mera metalingua-
todas as peças, programas, comandos, gem, antes como sentimento de mundo
funções, sensores, ajustes, conexões, retesado entre a necessidade e a impos-
sibilidade de dizer”.² No “Numeral 53”,
acessos, sinais, executam perfeita do livro Raro mar (FREITAS, 2006), isso
e ininterruptamente, o que tem de ser. parece ficar mais evidente:

Máquina, descrever. A partir desta ordem


Foi assim que do céu de Tóquio caiu, à mão, tento, nas suas teclas pretas
com 1 dedo só operante, dizer do que é feita
trazida por Ronald Polito, e do que me faz, há 40 anos: ferro, fera, fé
uma mensagem de Clarice Lispector nas falanges que se extremam em hastes
cada qual com seu caráter, seu caractere
para Armando Freitas Filho. que imprime, vibrante, na fita entintada
as letras, o primeiro plano da palavra
que vai se lapidando na leitura até chegar
ao prisma, à refração, às vezes brusca –
alto contraste em preto-e-branco – outras tantas
lenta, em arco-íris, sem se ferir
mesmo martelando os tipos disparados
catando milho e algarismo, direto no miolo
do mecanismo, na entrelinha da madrugada:
Máquina d’Escrever, ‘Mariana’, ‘Manuela’
Remington, Lettera 22, Máquina Descrever.
20 X 2003


O amálgama entre vida e escrita, entre
corpo e ferramenta de trabalho (mão,
dedos, ossos, máquinas, tecla, fita, tin-
ta), imprime nesse belo poema um resu-
mo dos 40 anos em que o poeta se joga
nessa batalha física, mental e não menos
sentida com a poesia. Assim, o “Nume-
ral 53” vai se for-
2 cf. “Objeto urgente”, mando das partes
texto de introdução
ao volume Máquina de para o todo, numa
escrever. p.18. composição cuja

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 67 05/05/15 12:29


68

Armando Freitas Filho e os tigres imagem é a de um corpo-poema-escrito


atravessando o tempo e o espaço. Afinal,
há aqui tributos a dois poetas: Mário de
Armando traz sempre consigo, precavido, Andrade e Manuel Bandeira, que, como
se sabe, batizaram suas máquinas de
tigres. escrever homenageando um ao outro,
“Mariana”, de Mário de Andrade, e “Ma-
nuela”, de Bandeira.
Com eles, evita poemas em gaiola, metros ¶
bem adaptados ao aquário. Mas para além dessa homenagem, que-
ro ver esse poema-máquina como uma
das metas do poeta Armando Freitas
Treina com tais o que já sabe: Filho, mesmo porque aqui parece ha-
ver em síntese o sentimento todo de
Saltar uma história de vida ensimesmada na
– e em prol – da poesia.

agressivo E além disso, que não é pouco, esse
acima da existência dos animais numeral tange questões que podem
confirmar as diversas formas da su-
premacia da metalinguagem corporal,
que farejam por inspiração, sobretudo pelo som que podemos ou-
vir pelos gestos físicos – dedos que to-
que farejam cam teclas – e pelo ritmo, entrecortado
como se a velocidade de se bater nas
teclas da máquina de escrever causas-
a inspiração. Nos tigres, se, ou melhor, provocasse sons numa
aprende a ser inda mais acre harmonia imitativa dessa máquina na
construção do poema.

ao acrescentar impaciência Os sons aqui mais do que nunca fazem
sentidos. Sentidos sonoros que se ou-
aos seus cuidados de matemático vem nas aliterações em F (ferro, fera, fé
/ nas falanges que se extremam em has-
tes), no jogo fonético entre “caráter” e
e, em contraponto, método “caractere”, e, mais ainda, na postura
ao frenesi, ao fremir. Assim, ética e material que o poeta dedica a
essa máquina: de alguma forma, mais
que sua aliada, uma companheira da
Armando veste seus versos em tigres vida inteira.

como a si mesmo em t-shirts E é ela a grande homenageada em to-
dos os versos que se entrecortam em
passagens “bruscas”. É como se no
(listadas, vê-se, limite dos intervalos entre a margem
de sombras esquerda e a direita da máquina de es-
crever, sobretudo da segunda, quando
não há como continuar datilografando,

Depoimentos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 68 05/05/15 12:29


69

que rompem a continuidade se faz necessário mudar de linha para


dar continuidade à próxima frase.
– cabralina? – do pátio ensolarado;
Nesse sentido, a descrição imagética e
sonora parece falar por si nessa impac-
ou, ao contrário, de sol é a malha tante passagem final do poema, quan-
que grava em lâminas alternadas, do se pode ouvir o tic-tac da máquina
de escrever, as cores dos tipos ganhan-
do forma sobre o espaço branco da pá-
fazendo em fatias a prolixidade gina e no silêncio da madrugada, quem
sabe ouvir o poeta dizer:
do escuro, em fatias
Máquina d’Escrever, ‘Mariana’, ‘Manuela’
Remington, Lettera 22, Máquina Descrever.
a monotonia, a morte,
a mediocridade que grassa). ¶
Em um poeta em que os limites de vida
e escrita se acumulam, se separam,
para depois se imporem numa forma
que é o poema, a criação não é tarefa
das mais fáceis. No entanto, a obra do
poeta Armando Freitas Filho, com sua
obstinação em fisgar a palavra, sem dú-
vida é um testemunho de fé naquilo em
que talvez ele mais acredite: a poesia.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. José. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

FREITAS, Armando. Raro mar. São Paulo: Compa-


nhia das Letras, 2006.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Roc-


co, 1998.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 69 05/05/15 12:29


70

O roubo
1. repeti, ouvindo o eco
repetir-nos no museu quase que penetram fundo
Lá no início, havia o cubo, e que acendem partes
eu disse, ele era o ovo vazio
em que cavar outra em nós secretíssimas,
coisa: outro cubo àquela hora, pela manhã, onde do mais alto fogo).
Armando Freitas Filho e eu
vazio visitávamos, mais uma vez, Vidrados em Weissmann,
maravilhados, a exposição de varados por Weissmann,
arrancado ao sólido,
como um silêncio ar- Weissmann. Armando e eu
rancado à musica, de que precisávamos?
um poema ao dicionário. Ficamos ali, girando em
torno de fios metálicos, De mais e mais Weissmann!
Vazio, quadrados desdobrados, Levarmos um Weissmann!
olhando detalhes, um
acrescentou meu amigo, Como resistir?
sobre o qual não canta V Como não querer
o sabiá, nem se fincará
nele um país, ou tempo. articulado a outro, uma em casa um Franz Weissmann?
espiral de, um vôo voo Cada qual o seu!
Vazio de, e planos, e fitas,
e chapas, e vermelhos. Que fazer então?
sem nada dentro, concordei, Como carregá-los?
sem segredos, a só sensação
do sem, como uma casa- (A leveza em ferro
cubo aberta ao vento, pesa toneladas).
2.
vazio Planejamos tudo,
A contemplação não teria erro.
de janela absoluta, que não satisfazia:
desfaz fora e dentro, No momento exato,
casa para desmorarmos, tudo coisa, corpo, como combinado,
ovo-des, deslocamento. incitava a posse
cada qual meteu
Vazio (provando que o número, o seu num seu poema,
sim, e a geometria
que se repete, vazio-ritmo, enquanto o vigia,
disse meu amigo contornando podem o erotismo tonto, cochilava.
em passo leve o leve, como do livre lirismo;
procurasse o que no Não tocou o alarme.
que a régua, só talo, Nada deu por nós,
vazio sem miolo ou pétala
pelo que no arroubo
era o espaço, ou melhor, – outra natureza – fez do verso o werso.
os espaços, disse ele, espaços, tem cor e perfume

Depoimentos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 70 05/05/15 12:29


71

Poema

Daqui posso ver a Urca, onde Armando está posto



no sofá de não dormir. Daqui posso ver a Urca,

onde Armando aguça o mastro da insônia

à procura da própria incapacidade de conciliar o sono.

Posso ver nitidamente, está no alto



espicaçando a sedução do repouso,

ferindo com vara escassa a mágoa do que se perdeu em sonhos
quando o dicionário parecia novo e o amor tão numeroso.
Hoje, ao contrário, quando tanto vive avaro ou está morto,

de que vale esta inquietude? Posso ler em sua boca a pergunta
assim como da Urca posso ver iluminada a dentadura.

Armando arrasta seu espinho do quarto para a sala



e outra vez e ainda e se as velas balançam no vento

nada move o Pão de Açúcar nem muda o destino desta noite
em que só a maré baixa parece tranquila,

ironicamente tranquila, eu diria.

E como se encontrasse o que buscava, Armando estanca.


Põe-se a escrever. De pé.

Não posso ver o que escreve, mas escuto

perfeitamente o lápis contra a folha, o poema
fazendo-se em sua pequena Urca

imensa embaciando à primeira luz do dia.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 71 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 72 05/05/15 12:29
73

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 73 05/05/15 12:29


74

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 74 05/05/15 12:29


75

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 75 05/05/15 12:29


76

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 76 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 77 05/05/15 12:29
78 Contos

Diego Moraes Leonardo Villa-Forte


é autor dos livros “A foto- é autor do livro de contos O explicador, de exposições como o Festival Interna-
grafia do meu antigo amor editado em 2014 pela Editora Oito e cional de Linguagem Eletrônica (File).
dançando tango” e “A soli- Meio, da intervenção urbana Paginá- Nascido no Rio de Janeiro, em 1985, é
dão é um deus bêbado dan- rio e da série de colagens e mash-ups graduado em Psicologia e mestre em
do ré num trator” (Editora MixLit – O DJ da Literatura. Tem con- Literatura, Cultura e Contemporanei-
Bartlebee) e publicará até o tos publicados em antologias e revistas dade, e alterna atividades nas áreas de
fim de 2015 “Um Bar fecha no Brasil e na Inglaterra. Já participou tradução, edição e educação.
dentro da gente” (Editora
Douda Correria) e “Eu já fui
aquele cara que comprava
vinte fichas e falava ‘eu te
amo’ no orelhão” (Editora
Corsário-Satã).

Ligações interrompidas
Trecho do romance inédito
a ser lançado no segundo semestre de 2015.

Palmas para O esforço para lembrar é sempre pouco. E talvez força-


o silêncio do. Tornou-se lacuna, vasto branco intocável. Do que
aconteceu, só sei pela boca dos outros. Pela boca de
outra, para ser mais preciso. A única que poderia saber
como ocorreu, aquela que me aplicou o golpe. Não é
Ontem acordei com barulho de
móveis enchendo caminhão-baú. raro dizerem, “se não se lembra, é possível que tenha
Acho que era lá pelas duas da manhã. sido de outra maneira”, mas as consequências não dei-
Não liguei muito. Extraí um siso xam dúvida. O corpo é sincero.
e ando dopado de Paracetamol e

Sedalax. O barulho parou e fechei os
olhos, mas não sou besta. Sei que não Eu voltava de mais uma noite tocando no Jazzmania,
existe desfecho mais aterrorizador onde fazia a base de piano para uma banda com um
que o silêncio. O amor é uma peça de baixista, um baterista e o sax alto que solava. Era meu
teatro que sempre acaba em silêncio.
lugar preferido para tocar em toda a cidade. Havia lá
E dentro do teatro dos pombinhos
apaixonados não há palmas. O um piano Kurzweil, uma preciosidade maravilhosa-
silêncio é um rito de passagem. A mente temperada, privilégio para poucos tocá-lo do
Rita, moça que faz a limpeza aqui em jeito que merecia. Podia mesmo sentir meus dedos
casa duas vezes por semana, se dá
escorrendo leves pelas suas teclas. Eram tão lisas que
com os vizinhos. Bate papo. Troca
pratinhos de comida e comenta o brilhavam, e eu conseguia controlá-las à perfeição,
último capítulo da novela. É amiga creio que já havíamos criado uma afinidade íntima.
de fofoca da dona Marta, senhora No início da noite eu ia apalpando o terreno, sentin-
de carne dura, peituda que vive
do como ele estava, relembrando às suas teclas quais
usando um top vermelho realçando
os bicões dos mamilos. Lembra eram aquelas mãos que o tratavam com tanto carinho,
uma portuguesa de lábios grossos e logo ele estava pedindo para que eu abusasse dele

Contos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 78 05/05/15 12:29


79
como nenhum outro sabia fazer tão bem. Meus dedos
cantadora de fado. Nunca troquei
já não respondiam a qualquer raciocínio, apenas ao uma palavra com dona Marta. Se tem
instinto musical que eu traduzia de forma selvagem uma coisa que respeito é a mulher dos
na dança das minhas mãos pelo seu tapete de teclas outros. Mulher alheia é cova rasa. Não
vou dar moral para o abismo. Não vou
brancas e negras. Ao final da apresentação, me des-
dar mole para kojak. Sei que posso
pedia dele ansioso pelo próximo reencontro, e quase me foder numa de ficar dando uma de
o escutava me agradecendo por mais uma vez não ter galã. Todo santo dia o jornal estampa
sido subutilizado. Com meus colegas de banda, toma- galãs baleados ou estirados no asfalto
de braços abertos. Galã que deseja o
va umas últimas no bar.
que é do próximo morre atravessado
¶ com bala ou faca. Deve ser brinde das
Às vezes conseguia uma paquera – ah, o poder de coisas do coração. Enfim, só quero
mãos bailarinas −, mas via esses momentos como dizer que dona Marta é muito gostosa
e mora bem à frente da minha casa, e
oportunidades para exercitar a sedução. Geralmente,
Rita chegou hoje falante, com a língua
após um papo qualquer, dispensava as paqueras e ia solta feito personagem do livro O
para casa. Algumas se chateavam com isso, como a cortiço, e perguntou algo que fez eco:
garota que volta e meia esbarrava comigo aqui pela ¶
“Oi, dona Marta! Cadê seu João?
rua e não cansava de insistir. A triste verdade é que eu
Trouxe umas mangas pra ele do
amava minha mulher. interior. Manga docinha da beira do
¶ rio.”
Naquela noite cheguei bêbado em casa. Não era raro ¶
“saiu.”
isso acontecer quando eu vinha do Jazzmania. E en-

tão... Desculpem-me pela falta de minúcias, mas conta- “foi pra onde?”
rei de forma breve, dadas as circunstâncias que envol- ¶
vem a minha noção das coisas. Prossigo e corrijo: não “não sei.”

tenho certeza se estava realmente bêbado, isso me foi
“ele volta hoje?’
dito depois, não sou eu quem o diz, é ela, e ela afirma ¶
que eu estava alcoolizado ao extremo naquela noite. “Não. Ele morreu.”
¶ ¶
Escutei a zoada da janela de dona
Logo na cozinha a encontrei fazendo algo para comer.
Marta se fechando e tive consciência
Não usava nada além de uma camisa social que eu nun- que as tragédias do cotidiano
ca vira antes. Camisa de homem. Foi como percebi na produzem obras-primas. Abri um
hora. Sílvia se defende dizendo que o meu estado de sorriso e bati palmas sozinho dentro
do meu quarto.
extrema embriaguez não me permitiu lembrar da cami-

sa nova que ela me comprara há menos de uma sema- ¶
na. Mas por que vesti-la àquela hora? ¶
¶ ¶

O que se seguiu foi meu repentino ataque para cima

de Sílvia, desfiando as mais agressivas acusações e a ¶
encurralando na parede. Ao chegar perto dela, isso ¶

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 79 05/05/15 12:29


80
eu lembro bem, senti o tenebroso cheiro que parecia
grudar-se à sua pele, um cheiro que sonegava todo o
TURN AWAY aroma próprio de Sílvia e me dizia que eu sempre esti-
vera enganado, que nunca houvera outro cheiro no seu
corpo senão aquele. Segundo ela, fiz uma péssima con-
fusão com a mistura do seu perfume novo, os odores
Ficamos juntinhos ali sentados na da preparação do molho do macarrão e a fritura das
beira do flutuante. Nossos pés na almôndegas. Mas, para mim, não havia reação possível
água. Submersos feito submarinos de
que não um tapa na cara. E, num impulso, dei dois,
pele e osso. Botos saltavam, barcos
azulados passavam, um cão latia atrás três, quatro. Sílvia conta que cinco tapas explodiram
de nós, de frente para o bar onde em seu rosto até ela cair no chão.
serpentes descansavam dentro de ¶
garrafas de pinga.
Até aí, são fatos que de vez em quando me arranham

– Você precisa escutar Beck, Beatriz. o pensamento com as unhas compridas da memória e
¶ se encaixam com o que Sílvia me contou. Mas depois
– Já escutei. É lindo, né? de tudo isso é que veio o branco que escapa a qualquer

tentativa de reconstituição.
– Morning Phase. É capaz de curar sua
gastrite. ¶
¶ Acordei no hospital. Ninguém ao lado, silêncio. Sentia-
Não tive a intenção de instalar me bem e quis me tocar, checar se o corpo estava in-
o silêncio naquele momento de
tacto. A única mão que levantou foi a esquerda. A mão
paisagem de filme do Sérgio Andrade.
Sabe deus como estava o estômago direita, preguiçosa, pesada, tombada, tinha uma sutura
dela. O fígado, a cabeça, o útero, os horrível no dorso. Entrei numa aflição extrema. Fiz for-
ex-namorados suicidas junto com a ça com o braço, mexi-o desesperadamente para que a
alma devastada pelo câncer.
mão reagisse, tentei até levitá-la com a força do pensa-

– Você não precisa ser eufemista mento. Nada. Ela continuava parada, resistindo, excluí-
comigo, Diego. Não é gastrite. É câncer. da de toda a movimentação do resto do braço. Isolada.
¶ Com a mão esquerda, apertei o botão na cabeceira da
– Sei, mas não gosto de repetir essa
cama e logo apareceu uma enfermeira. Afobado, eu
palavra. Ela corroi até o sol.
¶ tropeçava nas palavras, exigindo uma resposta para o
Lembrei-me do dia em que tomamos desmaio da minha mão direita.
sorvete num lugar lindo e depois ¶
passeamos num Monza prata do
A enfermeira, de voz calma e solidária, disse-me que eu
pai dela pela estrada do aeroporto,
com os braços tatuados, cheios de havia levado uma facada na mão e que o corte fora bas-
versos de um poeta húngaro cujo tante profundo: os ligamentos musculares da sua mão
nome esqueci, deixamos a brisa direita foram rompidos. Olhei para a mão dormida com
lamber nossos rostos ingênuos num
a agonia dos que vislumbram uma despedida inaceitá-
sábado como se fôssemos crianças
que aprendem a se equilibrar em vel. Mexi os dedos da mão esquerda simulando tocar
bicicletas sem três rodinhas. as teclas de um piano, suspeitando que esse movimen-

Contos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 80 05/05/15 12:29


81
to, de tão familiar, seria lembrado e imitado pela mão

direita. Mas não, ela permaneceu desanimada, e com – Não quero que deixe nada escrito
frieza zombava de todas as tentativas de despertá-la. pra mim. Não quero ter um pedaço
Caí num deserto. Sem minha mão, eu não faria música, de mim num livro que quase ninguém
irá ler. Tenho pavor de prateleiras
eu não faria nada. Eu não seria eu.
empoeiradas de sebos do centro de
¶ Manaus.
A faca cravada em mim deve ter sido uma imagem tão ¶
intragável que não a registrei. Não consigo lembrar – Bobagem. Você não pode regular
quem entra ou sai da poesia. Não
de nada entre o momento em que acusava Sílvia, logo
existe arte mais livre. É uma forma
após ela cair no chão, e o meu acordar no hospital. Síl- de alugar pedalinho no rio da tua
via diz que eu parecia ter engasgado, como se golfasse, saudade. Mesmo que você não queira
mas sem expelir coisa alguma, nem mesmo uma pala- um livro dedicado, vou saber que foi
escrito pra você. E não existe solidão
vra. Ela gritava, havíamos chegado ao fundo do poço,
maior que a musa obscura de um
eu era um canalha, não podia me aceitar bebendo por artista que quase ninguém prestigia.
aí à noite e chegar e bater nela, xingá-la e acusá-la de ¶
traição. Também fora de si, fato que ela reconhece, – Tá bom. Espera eu morrer. Não
quero me emocionar mais que a
Sílvia esperneava que eu era injusto e egoísta e que, se
luta contra essa desgraça que vai me
alguém ali era traidor, era eu. Mas lá, na hora, não ouvi comendo por dentro.
nada disso. Não me lembro de nada dessas coisas que ¶
ela me contou por telefone. Depois do acontecido, nun- Beatriz tosse. O cão late mais alto.
Pássaro que devora pássaro no
ca mais nos vimos pessoalmente. Quem quer que esteja
deserto. Mistérios a que damos o
certo ou errado, pouco importa; um não perdoa o ou- nome de mistérios. Ela vomita patacas
tro. Continuamos afastados, e admito: às vezes sonho de sangue no rio Negro. Piranhas
com suas pernas de professora de dança quebradas. mordem nossas pernas. Tropeçamos
rindo, correndo com as pernas em

carne viva. Entre as vigas do porto
As palavras às quais tento me ater, com detestável au- flutuante, peixes nadavam com raiva
topiedade, são as do médico que me intimou a melho- querendo devorar a doença terminal
rar: com fisioterapia, aos poucos, você recuperará o do meu primeiro amor.

básico da movimentação. Poderá apertar uma tecla, mas

nada que exija muito esforço. Esqueça isso de tocar por ¶
muito tempo ou fazer movimentos rápidos e bruscos. ¶
Nunca será como antes, mas sim melhor do que o agora. ¶



Nada me fará ter os orgásmicos picos de felicidade da ¶
época de jazz livre e bem tocado, sem limitações. A ¶
vida ficou morna. ¶



Sim, houve progressos, em dezoito meses algo tinha ¶
que melhorar. Recuperei os movimentos mais simples ¶

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 81 05/05/15 12:29


82
dos dedos e do punho. Consigo abrir e fechar a mão
bem devagar, apertar teclas como disse o médico, tudo
Poemas de forma cuidadosa e paciente.

de derrubar Isso me permitiu fazer trabalhos com jingles e mixes
Muhammad para publicidade, ainda que os programas de compu-
tador ajudem bastante e a minha mão esquerda, irmã
Ali rica da família, desdobre-se para compensar o que a
direita não faz. É difícil ter de se contentar com o pro-
gresso limitado. É uma tristeza sem saída; por mais que
se evolua, nunca se voltará à melhor forma. Parece ser
Uma chuva com som de chiado de possível porque já desfrutei dela antes, mas é insupor-
fim do lado A do disco do Vinicius
tável, a cada melhora, a cada passo adiante, perceber o
de Moraes cai lá fora, escuto alguém
falar na TV a cabo que extraterrestres quanto é inatingível o auge do passado.
existem, que os americanos ¶
arquitetaram a queda das torres Preciso forçar o espírito para não me deixar abater
gêmeas pra invadir o Iraque e o
num dia nublado assim, em que um bom livro talvez
Afeganistão. Que instalaram uma
sonda no mar Cáspio pra roubar até caísse bem, e prefiro lembrar que, embora nem
petróleo. São notícias desinteressantes sempre, ouvindo um bom disco ainda consigo sair da
pra mim. Nunca quis ser alguém na letargia e sentir algum ânimo.
vida. Nunca quis ter dinheiro. Sempre

caguei para a bolsa de valores e o
preço do dólar. Devo ter 45 centavos Aliás, ouso dizer que há pouco me surpreendi positiva-
na minha conta poupança do Itaú mente. Digo “ouso” porque desconfio da sensação agra-
e 4 reais na gaveta de talheres da dável e até mesmo da obscura alegria causada pelo ines-
cozinha. Sou um fracasso econômico.
perado. É tão recente que nem consigo avaliar direito.
Tenho 32 anos e meu último celular
foi trocado por duas caixas de cerveja ¶
num bar com as paredes pintadas Um dia desses, quando voltava da fisioterapia, esbar-
“Brasil rumo ao hexa!” Ninguém rei com a garota que mora na minha rua, aquela que
dá a mínima pra minha existência.
insistia em me paquerar. Fazia mais ou menos um mês
Se eu morrer amanhã, escreverão
postagens no Facebook falando que eu desde a última vez em que a havia encontrado, e a dis-
escrevia legalzinho. Que representava pensado, após ela me pedir para tocar qualquer coisa
Bukowski e outras merdas de quem no piano de casa.
sempre discordei em relação aos

meus escritos. Fiz muitos inimigos por
bobagem. Sempre toquei o foda-se por Algumas tentativas mais e a garota me convenceu a
bem pouco. Sempre escolhi o caminho irmos para minha casa. Após uma transa bastante sa-
mais difícil. Sou um cara doente. Sou tisfatória, ela se fixou no meu sorriso habitualmente
um babaca. Sou mestre em fazer coisas
restrito e, numa mistura de afirmação com indagação,
erradas. Parece que meu maior vício
é ter peso na consciência. Não devia disse: “Viu, até que não foi tão ruim eu ter vindo pra
ter feito o papelão de socar o atual cá.” Não me fiz de rogado, mostrei-lhe o seu lugar, do

Contos

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 82 05/05/15 12:29


83
jeito que fazia com todas as mulheres desde que saíra
namorado da minha ex-mulher no
do hospital: “Até me alegro por você, mas tenha uma shopping center. Não posso estragar a
coisa na cabeça: nem você, nem nada, nem ninguém felicidade de quem não me quer mais.
me fará feliz de verdade.” O amor não é um jogo. Uma partida
de futebol. Um torneio de pôquer

onde você pode acusar o oponente de
Isso costumava deixá-las sem outra saída que não fos- trapacear e quebrar cadeiras e mesas
se o respeito pela minha dor. Mas ela me confrontou: na cabeça do cara. Você não pode se
“Você se desacostumou, é só isso. Não tem problema, tornar um psicopata. Um palerma
que agride os outros por ter perdido
ninguém tem pressa.”
quem dormia ao seu lado e ria das
¶ suas piadas toscas e chorava com seus
Olhava fundo nos meus olhos. Devagar, entrelaçou suas poemas de derrubar Muhammad Ali.
pernas nas minhas e deitou a cabeça no meu peito. – Alô. Liguei pra pedir desculpas. Não
consegui te ver com outro cara. Não
Pensei que era coisa de menina nova, ingênua e sonha-
sei qual é a dele. O sujeito parece legal.
dora, mas não pude disfarçar em mim mesmo o estra- Só liguei pra dizer que estou caindo
nho e esquecido ricto que se formava no meu rosto; eu fora da cidade. Vou pegar a estrada.
podia sentir como se o mais habilidoso ventríloquo sus- Vou vender pulseirinhas de hippie
pelas BRs da vida. Você foi a fonte da
pendesse com destreza cada um dos cantos da minha
minha literatura por um bom tempo,
boca e um sorriso se abrisse com cuidado, sem puxar mas chegou a hora de parar com esse
excessivamente a pele. sonho besta de ser reconhecido e
¶ viver de literatura. Tchau. – Cara, não
estamos mais juntos. Terminei com
Não sei mais o que dizer sobre isso. Ainda me é sus-
a Roberta ontem. Ela só fala de ti.
peita a sensação de contentamento. O que posso dizer Às vezes acordo de madrugada e ela
é que esta semana consegui mover os dedos da mão está fazendo carinho no teu livro de
direita numa velocidade antes impraticável. Pude en- poesia. Ela é tua. Foi atrás de você. Não
precisa me acertar outro jab no queixo.
tão encadear notas de uma forma que me permitiu
Não sou de briga. Sou voluntário do
dar vazão à melodia mais versátil desses dezoito me- Greenpeace. Minha causa é salvar
ses. Mais um passo em direção à utopia, estou ciente baleias encalhadas de bancos de areia.
disso, mas as palavras do médico têm se tornado cada Boa sorte com seu amor. A chuva
engrossa. O chiado aumenta. Vinicius
vez menos dignas de melancolia. Nunca será como
canta algo lindo com Tom Jobim na
antes, mas sim melhor do que o agora. minha vitrola. Apago o cigarro e espero
Roberta chegar com seu sorriso de sol
se deitando na beira do mar.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 83 05/05/15 12:29


84

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 84 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 85 05/05/15 12:29
86 Poesia

Alice Sant’Anna
nasceu em 1988, no Rio de Janeiro. livro  Rabo de baleia  (Cosac Naify)
Em 2008, publicou seu primeiro recebeu o prêmio  APCA  de título
livro de poesia,  Dobradura  (7Letras). de poesia de 2013. Em dezembro de
Em 2012, lançou, em parceria com 2014, lançou outra plaquete, “Ilha da
Armando Freitas Filho, a plaquete decepção”, com fotografias de seu
independente “Pingue-pongue”. Seu pai, Alexandre Sant’Anna.

baixo gávea
você está mais magra a gente só lembra de quem não veio
a qualquer momento o cordão você que está sumida
vai arrebentar de tão velho não te vejo faz quantos meses
se alguém puxasse mesmo essa viagem não te fez bem, está magra demais
que de leve já era e por que não deu certo? achei que fosse
mas ela sempre foi magra durar, todo mundo achou
ficamos marcados para sábado então marcamos sábado
ninguém me chamou? não é isso ou domingo não lembro
daquela vez também trabalho perto de você, vamos combinar
ninguém me convidou para o café a gente sempre aprende
não li a segunda parte, mas a primeira alguma coisa qualquer coisa
me fez mal fisicamente falando no carnaval duzentas mil pessoas no aterro
não posso andar com vocês ela disse que queria ficar só comigo
não tenho pós-graduação eu e ela e eu
pra citar deleuze, falar em epistemologia etc. falei que aquilo não tinha como
mas vocês já se separaram? em pleno carnaval aquela gente toda
a menina vem pra cá nesse fim de semana bateu uma saudade
no fundo não estou assim tão a fim não bolei nenhum plano b
você está com uma cara mas fica bem, você está bem?
parece que alguém que você queria vou comemorar amanhã com a minha mãe
que viesse não veio talvez alguma coisa na minha casa
apareceu tanta gente você tem que conhecer minha casa
e é sempre assim minha casa já está com cara de casa

Poesia

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 86 05/05/15 12:29


87

falamos sobre o percurso até o fracasso


ou sobre como falar em fracasso talvez
já seja um passo adiante
um passo adiante do fracasso
o passo não sei bem em que direção
lá perto do polo norte
você sabia que tem duas ilhas
uma grande e uma pequena tiros ou fogos como dizer a diferença
as ilhas diomedes ou as ilhas do amanhã pensei em fechar a janela mas mudei de ideia
separadas pela linha que corta o fuso e no lugar escancarei o vidro
a linha que divide o ontem do hoje o vidro não suavizaria o baque
numa distância de apenas um quilômetro como por exemplo estar de óculos num
conversávamos perto de uma palmeira acidente
iluminada por baixo que cobria os óculos protegeriam os olhos
uma constelação, o céu estranhamente claro ou pelo contrário os estilhaços
porque choveu nos últimos dias e agora da lente entrariam na retina? o que dói menos?
lá está saturno, como você sabe o cinto de segurança como uma marca
que é saturno? só sei reconhecer para sempre cruzando o peito
as três marias e mesmo assim uma faixa de miss ou de presidente
depois tentei fingir que não ouvia o dedo gira na borda do copo
o tiroteio do outro lado da montanha um pingo no vestido
vinte e três horas separadas por uma linha
onde quem sabe algum dia
talvez construam uma ponte
um túnel um ferryboat
um trem um voo uma ciclovia
uma avenida uma estrada um voo
um balão um bom par de tênis já servia

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 87 05/05/15 12:29


88

Caixas
numa caixa preta e com uma serra
cortaria a mulher em dois
as perninhas balançando de um lado
e o sorriso amedrontado de outro
depois num lance impressionante o mágico
juntaria as duas caixas
ou todas que fossem necessárias
ele disse que era uma questão e pediria para a moça receber
de ter paciência os aplausos da plateia
e agora vive as pernas e o sorriso num corpo só
dentro de uma pequena caixa numa única caixa
para a qual me curvo que vem a ser o corpo
não estamos próximos mas nos falamos enquanto isso você pega um trem
nas pontas dos dedos embrulhado em muitos casacos
ele me aconselhou a ter paciência que não protegem a lâmina de vidro
disse que as palavras nem sempre têm um túnel subterrâneo
assim tanto peso profundo sob a terra em qualquer parte
que as palavras dentro eu sou a assistente me valendo de mesuras
de uma pequena caixa pedem desço para recolher as flores no chão
boa vontade mas sobretudo paciência sorrio com o olhar distante
tudo é envolto por caixas paciente mas sem muita certeza
principalmente a torácica de que essas são mesmo
o meu coração que você carrega as minhas pernas
por outra parte
talvez em outro planeta
paciência: eu também
caminho empilhando caixas
sou feita de caixas uma em cima
da outra equilibradas mas o tempo todo
a um fio de espatifar no chão
não sei de que material é feita a caixa
algo frágil que não amassa
não é papelão ou papel pardo é mais
vidro fino um cristal
que pode proteger do vento mas não
da queda nunca da queda: paciência
o vidro pode romper numa lufada
se estivéssemos no palco o mágico
convidaria sua assistente para deitar

Poesia

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 88 05/05/15 12:29


89
Ana Elisa Ribeiro

nasceu em 1975, em Belo Horizonte, onde enquanto. Chicletes, Lambidinha e outras


vive. É autora dos livros Poesinha  (1997), crônicas (2011) e Meus segredos com Capi-
Perversa  (2002),  Fresta por onde tu (2012) são seus dois livros de crônicas.
olhar  (2008) e Anzol de pescar infernos Participa de coletâneas e antologias no
(2003), todos de poesia.  Sua mãe  (2011), Brasil, em Portugal, na França e no Mé-
Com H ou sem H (2013) e O em-mail de Ca- xico. É cronista do site Digestivo Cultural
minha (2014) são seus livros infantis, por (www.digestivocultural.com).

Ele piscava para todas as meninas.


Eu só piscava pra ele.
Nem todas as meninas correspondiam,
mas algumas iam piscar na cama dele.
Até que eu resolvi acabar com a festa
e dei pra ele um anzol de pescar infernos.

Se eu chego antes,
te pego com respeitos demais;
Se eu chego atrasada,
te pego casado e pai;
Então eu chego agora,
pra ver se é boa hora.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 89 05/05/15 12:29


90

Eu quero encontrar alguém


com quem eu fique, more, morra.

Que não me chore, não me doa,


não destrate, não corra.

O que é isso, então,


que eu quero, porra?

Todos os poemas, exceto “Poema tentativo”, inédito,


estão publicados em Anzol de pescar infernos (Editora
Patuá, 2013), quarto livro de poesia da autora.

Poesia

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 90 05/05/15 12:29


91
Falar com
quem?
Pra Líria Porto

Se ela não fala


não reza
não confessa
nem se refresca.
Não exprime
não respira amarrar com nó cego
não mira seu sorriso –
em mais nada.
sacanagem.
Não mora
não chora e, Perdoe os olhos de sono:
de novo, era pra estar acordada
não ora. entre sua cicatriz
Se ela não confia e sua tatuagem.
em analista
nem em vizinha gostosa.
Se o marido é ex

Estão me chamando
e a empregada cora.
Falar com quem
se o cachorro só late
e o papagaio repete:
de senhora.
ferrada. Sistematicamente, senhora.
Se nem falar sozinha pode, A senhora não quer? A senhora deseja?
simplesmente, A senhora procurou? Por ali, senhora.
E não faço esforço, não coloro, não descoloro,
não fala. não escondo, não camuflo, não distorço.
Vai pescando E não passo mais batido.
os inferninhos Senhora até o osso.
que vai conseguindo Mas a alma? A alma, não.
no aquário da sala. nem em vizinha gostosa.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 91 05/05/15 12:29


92
Josoaldo Lima Rêgo

nasceu no Maranhão, em 1979. É autor de Paisagens


possíveis (2010), Variações do mar (2012) e Máquina de
filmar (2014), publicados pela Editora 7Letras

livrei-me do perigo
nasci no maranhão na era das migrações
e escapei impune dos canaviais de são paulo
escapei do corte da cana mais dura
(de potência da sacarose da cana
tratada em laboratório)
por descuido não peguei o trem fantasma
na belém-brasília
não enfiaram-me num albergue de beira de estrada
pago pelo gato da fazenda
envelheci sem conhecer aquela prostituta
paranaense
fodida por dez reais
pagos pelo gato da fazenda
agora deixo escorrer como memória
do que poderia ter sido
a cachaça em copo sujo
na dívida antes do trabalho
o trabalho manual nos canaviais
donde escapei como quem escapa
do perigo
sem explicação
(do livro Paisagens Possíveis, Editora 7Letras, 2010)

Poesia

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 92 05/05/15 12:29


93

Dançando
não sabemos o destino dos sonhos no
se uma praia real ou o saco de lixo
mas é provável que as imagens prediletas da infância escuro
fiquem guardadas até que um anjo terrível apareça

(do livro Máquina de filmar, Editora 7Letras, 2014)


a vizinha guarda dinheiro e morte
no armário da cozinha, dentro
de algum pote. abraça a cura de um filho
com resignação e suor. não reconhecerá
o barulho dos trilhos quando o acaso
ditar a força da américa:

Quarta-feira dois metros de corda e um nó


(do livro Máquina de filmar, Editora 7Letras, 2014)

de cinzas no centro
do mundo
digamos que você pensou no espaço
fora do tempo. talvez na duração das
lembranças após o trauma de ter presenciado
o sumiço de uma estrela. digamos que você Talvez rasgar as costas
pensou na explosão de uma estrela
e depois chorou a matéria aparentemente
na praia.
perdida na imensidão do cosmo. Ser pedra sem viagens
ou mais, que você considerou o fato de desenrolar fora do lume.
questões subalternas e ainda sonha com a compra Caminhar como um killer
de uma bike nova. digamos que você qualquer.
pensou em estações do ano bem definidas, num clima
para passeios: ornamentos em árvores e estações
Agreste entre agrestes,
dentro umas das outras (o verão em pleno inverno, nada. Só uma fresta aberta
por exemplo). digamos que você pensa com a palavra.
não estar nessa quarta-feira de cinzas (do livro Variações do mar, Editora 7Letras, 2012)
no centro do mundo.
(do livro Variações do mar, Editora 7Letras, 2012)

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 93 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 94 05/05/15 12:29
95

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 95 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 96 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 97 05/05/15 12:29
98 Eu recomendo

Rogério Pereira
nasceu em Galvão (SC), em 1973. É jornalista, editor e Pública do Paraná. É editor e escreve crônicas se-
escritor. Em 2000, fundou em Curitiba o jornal Ras- manais para o site Vida Breve (www.vidabreve.com.
cunho – uma das raras publicações sobre literatura br). Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha,
no Brasil. É idealizador do “Paiol Literário”, projeto França e Finlândia. É autor do romance Na escuridão,
que já recebeu cerca de 60 grandes nomes da litera- amanhã (Cosac Naify), publicado em 2013, finalista
tura brasileira para debates literários na capital para- do prêmio São Paulo de Literatura e menção honrosa
naense. Desde janeiro de 2011, é diretor da Biblioteca no Prêmio Casa de Las Américas (Cuba).

Para iniciar,
a cólera.
Ou
o ano que
desapareceu
Tenho obsessões. Muitas delas me causam constrangi-
mentos. Busco suas origens para identificar onde nasce
o inimigo. É uma busca cega, um mergulho num mar
em permanente revolta. Sou abstêmio há quinze anos.
Não é obsessão. É apenas uma frágil estratégia para es-
ticar um pouco os segundos que me restam. A agitação
do corpo – encharcado pelo álcool no réveillon – não
me sufoca no Ano-Novo. Estou insanamente sóbrio.
Busco o livro de capa vermelha e o leio em duas longas
golfadas – uma pela manhã, outra à tarde. As pergun-
tas são inevitáveis: “Por que este livro?; O que tem este
livro?; Você não cansa de ler sempre o mesmo livro?”.

Eu Recomendo

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 98 05/05/15 12:29


99

Eduardo Lacerda
é poeta, produtor cultural e editor. Metamorfose e O casulo – jornal de poesia
Cursou letras na Universidade de São contemporânea. Atualmente é editor da
Paulo (USP) e trabalhou como produtor Editora Patuá e diretor da Public.Inc –
cultural na Casa das Rosas – Espaço incubadora de publicações e editoras
Haroldo de Campos de Poesia e Lite- independentes. Como poeta, lançou o
ratura e no Programa São Paulo: um livro Outro dia de folia, premiado com o
estado de leitores. Coeditou a revista Programa de Ação Cultural (ProAC).

O corpo desabrocha na casa


– Uma breve leitura de Novo
endereço, de Fabio Weintraub e
Pequenos afazeres domésticos,
de Lílian Aquino.

¶ “Uma espécie de sombra que


Não foram tantas leituras: quatorze nos últimos qua- quem sabe um dia possa achar o
seu corpo.”
torze anos. Sempre no primeiro dia de janeiro. O (FIGUEIREDO, 2002, p. 14)
livro vermelho – título em preto, autor em branco,
capa simples, sem ilustrações, desprovida de qual- Para um poeta, mais do que os
quer peripécia gráfica – abre a lista anual de leitura. livros que marcam a sua vida,
existem alguns que no exato
Umas das tantas obsessões. Desde 1993 – nos meus momento de sua leitura podem
longínquos vinte anos de idade –, registro todos os lhes dar uma consciência esma-
gadora sobre a poesia e o fazer
livros lidos durante o ano. Algo bastante simples: o poético. Muitos desses livros me
número, o título em negrito e o autor. Tudo em letra encontraram nos últimos anos.

minúscula. Arrasto esses arquivos de computador a Por volta de 2003, dois desses
computador como um móvel de estimação a percor- “encontros” marcaram funda-
mentalmente a minha vida, as
rer gerações de uma nobre família. Agora, estão num minhas escolhas afetivas e poéti-
arquivo online, em algum lugar desconhecido. Tal- cas e a minha grande paixão re-
cém-descoberta naquela época:
vez nas nuvens ao lado de Deus. a edição de livros. O primeiro
¶ deles chama-se Novo endereço,
do poeta Fabio Weintraub, o
Há tempos algo me incomoda. Uma falha em minhas ob- segundo, Pequenos afazeres do-
sessões. Uma greta escancarada diante de meus olhos mésticos, da poeta Lilian Aquino.
>>

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 99 05/05/15 12:29


100

¶ >>
Embora não tenham nenhuma afinidade em suas poéti-
cas, ambos os livros, por coincidência, trazem em seus
poemas – de maneira muito diversa –, entre muitos outros
temas, a relação com o outro, com o corpo e com a casa.

Desde os títulos há relação explícita com a casa e, por
consequência, com o que é corpo, já que o espaço que
habitamos é uma extensão de nosso corpo, como afir-
mam Deleuze e Guattari:

Talvez fosse um embaralhamento ou um caos, se não hou-
vesse um segundo elemento para dar consistência à carne.
A carne é apenas o termômetro de um devir. A carne é tenra
demais. O segundo elemento é menos o osso ou a ossatura
que a casa, a armadura. O corpo desabrocha na casa (ou
num equivalente, numa fonte, num bosque). Ora, o que
define a casa são as extensões, isto é, os pedaços de planos
diversamente orientados que dão à carne sua armadura:
primeiro-plano e plano-de-fun-
do, paredes horizontais, verti-
cais, esquerda, direita, retos e
míopes. A cerca viva, devorada pelas formigas, desenca- oblíquos, retilíneos ou curvos...
deia o embate entre o casal, o copo de cólera transborda. Essas extensões são muros, mas
também solos, portas, janelas,
¶ portas-janelas, espelhos, que dão
(Escrito em 1970 e publicado oito anos depois, Um precisamente à sensação o poder
de manter-se sozinha em moldu-
copo de cólera, de Raduan Nassar, é um espanto de ras autônomas. São as faces do
concisão. Em menos de 90 páginas, deixou uma mar- bloco de sensação. (DELEUZE;
GUATTARI, 1992 n. pg).
ca permanente na literatura brasileira, graças ao do- ¶
mínio da linguagem – o narrador oscila entre o subli- Começarei comentando sobre
Pequenos afazeres domésticos.
me e o escatológico, entre o popular e o erudito – e à Nos poemas de Lilian Aquino
fúria narrativa que enreda o leitor numa torrente im- o corpo-indivíduo que habita
espaços – muitos espaços aber-
parável. É uma história banal. O encontro de um casal tos e saídas – não se reveste de
[um homem na segunda metade da vida e sua jovem armaduras, nem aparece como
prisão, mas surge sempre em
namorada] se transforma num jorro de ofensas, res- contemplação ou fruição das
sentimentos, mal-entendidos, e escancara o impacto possibilidades de libertação,
como em Urbanismo,
da ditadura sobre toda uma geração.) ¶
¶ Lá onde morava / não tinha mar-
gem / nem esquinas: / era inteiro.
A falha no início da lista tira-me a paz inexistente. // E se à noite pensava / via estra-
Um pequeno salto na loucura que criei para existir. das, cruzamentos / canteiros / e

Eu recomendo

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 100 05/05/15 12:29


101

flutuava sobre / a / cidade aberta / traçando com giz / (um


a um) seus limites // delineava / zonas de silêncio (AQUINO,
2011, p. 25).

Ou no poema Último botão



[...] Na sala dos passos perdidos / eram renovadas, a todo
momento, / as pessoas em volta / : um breve roçar de saias
/ e os sapatos conhecendo / aquele não-lugar, / um ar em
redemoinho / impossível pegar com / as mãos. (AQUINO,
2011, p. 27).

Como dito, esses poemas são – em muitos sentidos – re-
pletos de saídas, de portas, mas também de reentrâncias
por onde podemos re-conhecer um corpo como corpo,
como indivíduo que habita espaços e silêncios, como no
poema Acesso:

Porque a rua / estava vazia na madrugada / o asfalto
molhado, / tratei logo de abrir
/ as portas procurando / não
amolecer / as fibras da madeira /
Nas listas estão aprisionadas histórias que me acom- a textura do seu corpo / trama de
panham – autores e livros da minha vida. Alguns não pele e osso / já que o aguaceiro /
da chuva recém-caída / escoava
deixaram nenhuma marca. Outros cavaram cicatrizes pela sarjeta / furiosamente /
incuráveis. A tempestade pode inundar minha biblio- Atrás de mim, você / e certos tons
vermelhos / me davam / coragem
teca. O fogo, consumi-la em minutos. As traças assas- de ser tímida / e eu ventava / ba-
sinas, devorá-la. Os livros podem tomar o caminho do lançando os quadris / As janelas,
então, / certas de que você / me
sumidouro das palavras perdidas. Mesmo assim nada roubaria / traços do meu rosto /
será capaz de me roubar as obras lidas, suas histórias, das / minhas coxas, / deixavam
amanhecer o dia / enquanto a
personagens, silêncios e assombros. chave balançava na / fechadura
¶ (AQUINO, 2011, p. 91).

No alto, a fenda por onde entra uma luz negra. O ano Ao contrário das escolhas de
de 1994 sumiu. Sem rastro, nenhuma pegada no de- Pequenos afazeres domésticos,
no livro Novo endereço, de
serto solitário das leituras. Li o livro de capa verme- Fabio Weintraub, o indivíduo
lha naquele ano? Sim. Talvez a única certeza. O que e o corpo aparecem quase
sempre em situações limite, de
aconteceu na minha vida? Volto às listas com certa impossibilidades físicas ou de
frequência. Abro um ano qualquer e passeio pelos tí- comunicação com o outro, mas
também com o enorme dese-
tulos e autores. De alguns, a lembrança é nenhuma. jo de mudança, de um “novo
De outros, certa emoção me atira novamente àquele endereço” ou de deixar de ser
>>

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 101 05/05/15 12:29


102

>>
alguém para se transformar em “um novo ser”, como no
poema Outro:

desejo enorme / de não ser este / portar outros gestos / vestir
noutro dedo / o anel alheio / de ter outra casa / noutra cida-
de / assinar cheques / com outro nome / outra letra / desejo
/ de outras sílabas / outros beijos / outra mão a afagar / ou-
tros cabelos / noutro / espelho / outra barba / pontilhando o
rosto / o queixo / sob outra luz / outro cheiro / noutro quar-
to / sem cadeira / sob o nó da forca / sem o copo de veneno
/ lá em cima do piano / onde não pude ser alguém / coisa
que se fixa / como ideia clara / desejo de outro hotel / outra
bagagem / e digitais rasuradas / como quem lava as mãos / e
apaga / o fogo de quem foi (WEINTRAUB, 2002, p. 18).

A impossibilidade de comunicação desse indivíduo, desse
corpo, com o outro, com o outro corpo, é explícita em
Mais magro, com certeza um dos melhores e mais rele-
vantes poemas da poesia brasileira contemporânea:

Mais magro / Meu amigo está
mais magro / Volto a encontrá-lo
tempo. O tempo não passa no rosto vincado, onde / dois ou três verões mais tarde /
sulcos começam a esburacar a pele, nem nas dores e chego mesmo a dizê-lo: / Você
está mais magro, / ‘Problemas de
no ciático (este monstro que, às vezes, me tira o intestino’, / responde-me esquivo
pouco sono), mas nas entrelinhas de personagens / [...] já estive pior, agora / voltei
a engordar. / Não peço detalhes /
que atravessam meu caminho. mas vejo o ombro mirrado / entre
¶ as alças da regata / Evito tocá-lo
/ pois a mera proximidade física
O atacante baixinho fez um gol. Fez vários gols. / parece estranha agora / que
Havia homens pulando em volta de um campo de meu amigo está mais magro //
Novamente juntos / caminhamos
futebol. Homens grandes pulando de alegria por pela orla marítima / Eu lhe recito
algo estranho. Depois, suados, sujos, estropiados, algum verso / ele me ensina outro
insulto / e há quase alegria de tré-
levantam uma taça. Estão muito felizes. Todos mui- gua / não fosse o fato / dele estar
to felizes. As imagens estão comigo. Muita gente fe- mais magro // Se ainda ontem
tocassem / os telefones insones /
liz nas ruas. Somos campeões do mundo. Os gritos na barra da madrugada / e meu
volteiam pelas cidades, pelo país, pelo mundo. É amigo dissesse / palavras de testa-
mento / eu sairia correndo / para
um ano inesquecível. Mas antes, houve muita tris- deitar-lhe compressas / na testa já
teza. Uma curva e a morte. A batida violenta contra repartida // Se fosse eu o afogado
/ dentro da onda invisível / de
o muro na curva assassina. Muitos choram. Lamen- bílis, lua e silêncio / ele pagava o
tam a morte de um gênio das pistas. Eu não chorei. resgate / limpava o sal de meus

Eu recomendo

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 102 05/05/15 12:29


103

cílios / me devolvia em segredo / sobre a toalha mais limpa //


Mas hoje estamos exaustos / há um dreno em nossa bondade:
/ minha boca só tem dentes / e meu amigo /está mais magro.
(WEINTRAUB, 2002, p. 66).

Dois livros muito diferentes, mas que recomendo. Foram
fundamentais para minha vida e o são para a poesia.

Referências
AQUINO, Lilia. Pequenos afazeres domésticos.
São Paulo: Patuá, 2011.

DELEUZE Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992.

FIGUEIREDO, Priscila. [Apresentação]. In:


WEINTRAUB, Fabio. Novo endereço. São

Não gosto de chorar. Outros morreram: o músico fa- Paulo: Nankin, 2002.

moso e o humorista trapalhão. Gostava de ambos.


Mais do trapalhão. Parece que muitas coisas aconte-
ceram naquele ano.

Mas para mim 1994 é apenas uma cicatriz aberta,
por onde sangra um livro de capa vermelha, um
copo de cólera.

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 103 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 104 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 105 05/05/15 12:29
106

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 106 05/05/15 12:29


107

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 107 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 108 05/05/15 12:29
Dicas 109

Armando Freitas Filho


Companhia das Letras

Os três mais recentes livros lançados
pelo escritor Armando Freitas Filho,
Raro Mar, Lar e Dever (Companhia das
Letras) reúnem toda a produção poéti-
ca do autor nos últimos 11 anos.

Raro Mar Lar Dever


2002-2006 2004-2009 2007-2013

O livro praticamente a cada página, Sei Shô- ¶


nagon ilumina tanto os pequenos fatos Escrito na particularíssima prosa de
do traves- do cotidiano no Palácio Imperial, como Hilda Hilst, na qual todos os gêneros
seiro os fenômenos da natureza, as sutis narrativos se fundem e os recursos
interações da vida social e a refinada estéticos mais variados são usados,
Sei trama de valores estéticos que enlaça e a obscena senhora D é Hillé, que,
Shônagon organiza praticamente todas as esferas após a morte do seu amante, se
Editora 34, da cultura. recolhe ao vão da escada, para falar
2013 “dessa coisa que não existe, mas é
¶ crua e viva, o Tempo”. Obra plena
Escrito no século X em Quioto, por Sei dos temas mais caros à autora – o
Shônagon, dama da corte da Impera- desamparo, a condição humana,
triz Teishi, esse livro é a principal obra A o apodrecimento da carne, a alma
da literatura clássica japonesa. Com- obscena conturbada – o livro é uma procura
posto por mais de 300 textos curtos lúcida e hipnótica das razões
– que podem ser lidos em sequência
senhora da existência, onde tudo pode
ou com a liberdade do acaso –, o livro D acontecer, – de uma facada pelas
compõe um inventário da cultura do costas até um apaixonado beijo de
Japão feudal, vista pelo olhar poético Hilda Hilst amor. Como a própria Senhora D
de uma escritora. Com uma capacida- Editora Globo, afirma: “... A vida foi uma aventura
de de produzir insights inesperados 2001 obscena, de tão lúcida.”

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 109 05/05/15 12:29


110


Jamais o corpo foi tão exibido e
interpretado, ao mesmo tempo em
que todo mundo concorda em dizer
que ele é um enigma. Com a arte
corporal e as performances artísticas,
o corpo se faz obra viva. Essa obra não
pretende tratar do corpo na pintura ou
na escultura, mas das incidências da
criação artística e da literatura sobre
sua estética cotidiana.

Corpo,

imagem e
representação
Movi- O corpo
Viviane Furtado Matesco mento da liberdade
Editora Zahar, 2009 total: o
¶ Jorge Coli
Quando se enfrenta a temática do
corpo e Cosac Naify, 2010
corpo na arte, o cerne do problema é a dança ¶
o terreno movediço dos próprios ter- Jorge Coli, professor titular da
mos que envolvem a questão: corpo, José Gil Universidade de Campinas e
imagem e representação não possuem Iluminuras, um dos grandes especialistas na
um sentido único e podemos afirmar 2009 arte do século XIX, revisita com
que a cultura ocidental é fruto dessa ¶ originalidade as obras de mestres
polissemia. Esse livro busca as raízes Esse livro abre novas possibilidades como Goya, David, Ingres, Manet,
históricas da relação entre esses três de reflexão sobre a dança e sua Courbet e pintores brasileiros como
elementos e, assim, amplia a reflexão expressão. O filósofo português José Pedro Américo e Almeida Jr. Com
sobre a questão do corpo na arte con- Gil repensa aqui nada menos que os um olhar livre de esquemas teóricos
temporânea. A sublimação do físico fundamentos ontológicos da dança: prévios, atento sobretudo às
na representação do nu e a afirmação o corpo, a linguagem, o gesto, o obras em si, o autor traça relações
de um corpo primário na arte contem- sentido, a consciência, a comunicação. inesperadas entre arte, cultura
porânea são investigadas a partir de E o faz dialogando ricamente não e sociedade. A ideia que norteia
uma nova ótica. apenas com o trabalho de seu percurso é a de liberdade do
criadores e teóricos da dança, homem. Nas suas próprias palavras:
como Rudolf Laban, Mercê “Todos os estudos aqui presentes
Cunningham, Yvone Rainer, trazem, como pressuposto ou
Steve Paxton e Pina Bausch, como centro, aspectos da liberdade
O corpo como mas também com filósofos nas artes durante o século XIX –
objeto de arte como Merleau-Ponty, Kant pública, política, coletiva, individual
Husserl, Gilles Deleuze e ou artística. Esta liberdade, una e
Henri Pierre Jeudy Félix Guattari. múltipla, reveste-se de um vivido
Editora Estação Liberda- sensível, no qual o corpo, bem
de, 2002 físico, é o protagonista”.

Dicas

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 110 05/05/15 12:29


111

ensaia resistência política a partir do ¶


Tatuagem deboche e da anarquia. Desde pequena, Nagiko (Vivian Wu)
A vida de Clécio muda ao conhecer é brindada pelo pai escritor (Ken
Direção: Fininha, apelido do soldado Arlindo Ogata) com um presente: saudações
Hilton Lacerda Araújo, 18 anos, um garoto do interior escritas belamente em seu rosto e
(Brasil, 2013) que presta serviço militar na capital. nuca. Ela passa a entender aquilo
Distribuição: como uma tradição, como se a pele
Imovision fosse o papel através do qual o
¶ pai dá vazão aos sentimentos pela
Brasil, 1978. A ditadura militar, ainda filha. A trama muda quando um
atuante, mostra sinais de esgotamen- livro erótico (homônimo), datado
to. Em um teatro/cabaré, localizado do século X, é dado de presente a
na periferia entre duas cidades do O livro Nagiko por sua tia (Hideko Yoshida).
Nordeste do Brasil, um grupo de artis- O cenário é o Japão, em plena
de
tas provoca o poder e a moral estabe- década de 1970, quando o sexo é
lecida com seus espetáculos e interfe- cabeceira livre, mas as mentes são dominadas
rências públicas. Liderado por Clécio pelo politicamente correto. Nesse
Wanderley, a trupe conhecida como Direção: Peter Greenaway contexto, a moça se utiliza dos
Chão de Estrelas, juntamente com (Holanda/França/Inglaterra/ aprendizados do livro para usar o
intelectuais e artistas, além de seu Luxemburgo, 1996) corpo de seus amantes e fazer das
tradicional público de homossexuais, Distribuição: Spectra Nova suas peles o seu livro de cabeceira.

para gerar novas composições e arran- ¶


jos. Nele está registrado o RG sonoro Trilha sonora de um espetáculo
do Barbatuques, que desde o lança- do Grupo Corpo, fundado em Belo
mento de Corpo do som vem desen- Horizonte (MG) em 1975, que a cada
volvendo e evoluindo sua linguagem ano lança um novo espetáculo com
artística em palcos, oficinas e trocas nova coreografia e trilha. Esse disco
diversas, como uma família musical. foi feito com apoio do Ministério
O seguinte é esse da Cultura, Pronac e Ministério das
Comunicações e reuniu
Grupo Barbatuques Tom Zé (compositor,
¶ cantor, arranjador e ator)
Grupo Corpo:
Trazendo novas paisagens sonoras e e José Miguel Wisnik
experiências no universo da música Parabelo – CD (músico, compositor e
corporal, o segundo CD do grupo professor de Literatura
mostra o avanço na pesquisa da per- Tom Zé e José Miguel Brasileira).
cussão corporal e da improvisação, Wisnik

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 111 05/05/15 12:29


112

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 112 05/05/15 12:29


113

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 113 05/05/15 12:29


114

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 114 05/05/15 12:29


115

Revista Palavra 06 /2015

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 115 05/05/15 12:29


116 Colaboradores

Armando Freitas Filho Alice Sant’Anna

Ana Elisa Ribeiro Antonio Cícero Diego Moraes

Eduardo Coelho Eduardo Lacerda Eucanaã Ferraz

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 116 05/05/15 12:29


117

Josoaldo Lima Rego Laura Liuzzi Leonardo Villa-Forte

Lourenço Mutarelli Mariana Quadros Mário Alex Rosa

Maurício Ianês Rogerio Pereira Veronica Stigger

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 117 05/05/15 12:29


PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 118 05/05/15 12:29
PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 119 05/05/15 12:29
120 Expediente

Sesc | Serviço Social do Comércio Publicação ©Sesc Departamento Nacional,


2015.
Presidência do Conselho Nacional Projeto editorial Av. Ayrton Senna, 5.555 –
Antonio Oliveira Santos Gerência de Cultura Jacarepaguá – Rio de Janeiro/RJ
CEP: 22775-004
Departamento Nacional Gerente Telefone: (21) 2136-5555
Márcia Costa Rodrigues www.sesc.com.br
Direção-Geral
Maron Emile Abi-Abib Equipe de Literatura
Flavia Tebaldi
Coordenadoria de Educação Frederico Girauta
e Cultura Henrique Rodrigues
Nivaldo da Costa Pereira
Coordenação Tiragem: 15.000 exemplares -
Flavia Tebaldi Distribuição gratuita
ISSN 2178-1443
Curadoria
Literatura Todos os direitos reservados e
Flávia Tebaldi protegidos pela Lei nº 9.610 de
Frederico Girauta 19/02/1998. Nenhuma parte desta
Artes Visuais publicação poderá ser reproduzida
Caroline Souza sem autorização prévia por escrito
Leidiane Carvalho do Departamento Nacional do Sesc,
sejam quais forem os meios e mídias
Edição empregados: eletrônicos, impressos,
Assessoria de Comunicação mecânicos, fotográficos, gravação ou
Diretor quaisquer outros.
Pedro Hammerschmidt Capeto
Os textos assinados são de
Supervisão Editorial responsabilidade dos autores e não
Jane Muniz refletem, necessariamente, a opinião
da revista.
Revisão
Elaine Bayma
Tathyana Viana

Concepção Visual
Maurício Ianês Para sugestão ou recebimento
de exemplares, entre em contato
Projeto gráfico conosco pelo seguinte endereço
Estúdio Campo eletrônico: ascomsecretaria@sesc.
com.br
Estagiário de Produção Editorial
Diogo Franca
Escreva-nos, sua opinião é muito
Produção Gráfica importante para o aprimoramento
Celso Clapp da revista!

PALAVRA 6_MauricioIanes_MIOLO_vale.indd 120 05/05/15 12:29

Você também pode gostar