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à filosofia
Thomas Nagel
Tradução
SILVANA VlElRA
Martins Fontes
São Paulo 2007
This transknion of WI-IAT DOES IT ALL MEAN? originolly published
;11ElIglish in 1987. is pubtished hy arrangement with Oxford Universitv Press. l nc.
Esta tradução de WHAT DOES rr ALL MEAN? pubíicada originalmente
('til inglês em 1987. está sendo pnblicada por acordo com Oxford Universitv Press. lnc.
Copytight © 1987 hy Thomas Noget.
Cooyrtgtn © 2001, Livraria Marfins Fomes Editora LIda ..
São Paulo. para o presente edição.
11 edição 2001
21 edição 2007
Tradução
SILVANA VI EIRA
Revisão da tradução
Luzia Apon'ôdo dos Santos
Revisões grúficl.ls
Sanara Regina de SOIl:a
tvete Batista dos Sal/tos
Dinarte Zorzanelti da Silva
Produção gráfic:1
Gera/do Atves
l'aginação/Fololilos
Stndio 3 Desenvolvimento Editoríat
Nngel, Thomas
Uma breve introdução à filosofia I Thomas ugcl : tradução
Silvnna Vicira ; [revisão da tradução Luzia Aparecida dos Santos].
- 2i! cd. - São Paulo: Manins Fontes, 2007.
I. Filosofia I. Título.
07-3194 CDD-IOO
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
t Introdução........................................................ 1
2. Como sabemos alguma coisa? 7
. Outras mentes.................................................. 19
4. O problema mente-corpo 27
5. O significado das palavras 39
. Livre-arbítrio..................................................... 49
7. Certo e errado.................................................. 63
8. Justiça 81
9. Morte \,...................... 93
10. O significado da vida :............................ 101
1
Introdução
1
UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA
2
I TRODUÇÃO
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
4
INTRODUÇÃO
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2
Como sabemos
alguma coisa?
7
UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA
8
COMO SABEMOS ALGUMA COISA'
9
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
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COMO SABEMOS AlGUMA COISA?
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UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
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COMO SABEMOS ALGUMA COISA?
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
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COMO SABEMOS ALGUMA COISA?
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
r
dilema egocêntrico.
Dito tudo isso, no entanto, tenho de admitir
que é praticamente impossível levar a sério a idéia
de que todas as coisas que vemos no mundo à
nossa volta na realidade podem não existir. Nos-
sa aceitação do mundo externo é instintiva e po-
derosa: argumentações filosóficas não bastam
para livrar-nos dela. Não apenas continuamos a
agir como se as outras pessoas e coisas existis-
16
COMO SABEMOS ALGUMA COISA?
17
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
18
3
Outras mentes
..
Há um tipo especial de ceticismo que contí-
nua a ser um problema mesmo que você admita
que sua mente não é a única coisa que existe -
que o mundo físico que você aparentemente vê
e sente ao seu redor, até mesmo seu próprio cor-
po, de fato existe. Trata-se do ceticismo quanto
à natureza ou mesmo quanto à existência de ou-
tras mentes ou experiências além da sua.
O que você sabe, de fato, sobre o que se pas-
sa na mente de outra pessoa? A única coisa que
você observa com clareza são os corpos dos
outros seres vivos, incluindo as pessoas. Você vê
o que eles fazem, ouve o que dizem e os outros
sons que produzem, e observa o modo como
respondem ao ambiente que os cerca - que tipo
de coisas os atrai e repele, o que comem, e as-
sim por diante. Você pode também abrir os cor-
pos de outros seres vivos e examiná-Ios por den-
tro, talvez até comparar a anatomia deles com
a sua.
19
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA OUTRAS MENTES
Mas nada disso lhe dará acesso direto às ex- te tem para o seu amigo o mesmo sabor que a
periências, pensamentos e sentimentos que eles baunilha tem para você, e vice-versa?
têm. A única experiência que você pode ter, na A mesma pergunta poderia ser feita com re-
verdade, é a sua própria: se acredita que existe lação a outros tipos de experiência. Como saber
alguma vida espiritual nas outras pessoas, essa que os objetos vermelhos não têm, ~ara o seu
crença se baseia na sua observação do compor- amigo, a mesma apa;ência que os obJ:tos ama-
tamento e da constituição física delas. relos têm para você? E claro que, se voce lhe ~er-
Citemos um exemplo simples: quando você guntar qual é a cor de um carro de bombeH.?,
e um amigo estão tomando sorvete de chocola- ele dirá que é vermelho, como o sangue, e nao
te, como saber se o sorvete tem para ele o mes- amarelo, como um girassol; mas isso porque ele,
mo sabor que tem para você? Você pode provar assim como você, usa a palavra "vermelho" para
o sorvete dele, mas, se tiver o mesmo gosto que se referir à cor que o sangue e os carros de bom-
o seu, isso significará apenas que para você o beiros têm para ele, seja ela qual for. Talvez seja
sabor é o mesmo: não quer dizer que experimen- a cor que você chama de amarelo, ou ~z~l, o~
tou o sabor que tem para ele. Ao que parece, talvez uma experiência de cor que voce Jamals
não há como comparar diretamente as duas ex- teve e nem sequer pode imaginar.
periências de sabor. Para negar isso, você precisará recorrer ao
Você pode dizer, é claro, que, sendo ambos pressuposto de que as experiê~cias ~e cor e sa-
seres humanos, com capacidade para distinguir bor apresentam uma correlaçao umforme .com
entre diferentes sabores de sorvete - por exem- certos estímulos físicos dos órgãos dos sentidos,
plo, ambos podem perceber a diferença entre independentemente de quem os experi~e~t~.
chocolate e baunilha de olhos fechados -, é pro- Mas o cético diria que não há o menor indícío
vável, então, que suas experiências de sabor se- de que assim seja, e, devido ao próprio tip? d:
jam semelhantes. Mas como sabê-Io? A única re- pressuposto, você não poderia ter nenhum mdl:
lação que você já observou entre um tipo de sor- cio que o comprovasse. A única coisa que voce
vete e um certo sabor se deu em você mesmo· , pode observar é a correlação que se estabelece
assim, o que o leva a pensar que correlações si- em você.
milares são válidas também para os demais seres Diante de tal argumento, pode-se admitir aqui
humanos? Dados os indícios disponíveis, não se- um certo grau de incerteza. A correlação entre
ria igualmente coerente imaginar que o chocola- estímulo e experiência pode não ser exatamente
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UMA BREVE I TRODUÇÃO Ã FILOSOFIA OUTRAS MENTES
I igual para cada um: a experiência de COr ou sa- que você sabe, a experiência dele poderia ser al-
bor de duas pessoas que provam o mesmo tipo go que você chamaria de som - ou talvez ser di-
de sorvete pode apresentar ligeiras variações. ferente de tudo o que você já experimentou ou
Na verdade, uma vez que as pessoas são fisica- poderia imaginar.
mente diferentes entre si, isso não surpreende- Se continuarmos nesse caminho, seremos le-
ria. Você poderia dizer, contudo, que as diferen- vados, finalmente, ao ceticismo mais radical, que
ças não podem ser assim tão radicais, pois, do é o ceticismo quanto à existência de outras men-
contrário, poderíamos percebê-Ias. Por exem- tes. Corno você sabe que seu amigo é conscien-
plo, o sorvete de chocolate não poderia ter para te? Como sabe que existem outras mentes além
o seu amigo o mesmo sabor que um limão tem da sua?
para você, senão, ao prová-Io, ele franziria a boca. O único exemplo da correlação entre mente,
Note, porém, que essa afirmação pressupõe comportamento, anatomia e ocorrências físicas
uma outra correlação para cada pessoa: a corre- que você já observou diretamente é você mes-
lação entre a experiência interna e certos tipos de mo. Mesmo que as outras pessoas e os animais
reações observáveís. E, nesse caso, surge a mes- não tivessem nem uma única experiência, ne-
ma questão. Você já observou que, ao provar o nhuma vida mental interior, mas fossem apenas
sabor que chama de azedo, sua boca se contrai; máquinas biológicas sofisticadas, ainda assim te-
mas como saber que o mesmo acontece com ou- riam para você exatamente a mesma aparência.
tras pessoas? Talvez a experiência que faz seu Então, como sabe que eles não são assim? Como
amigo franzir a boca seja semelhante àquela que sabe que os seres à sua volta não são todos ro-
você tem quando come farinha de aveia. bôs destituídos de mente? Você jamais viu o inte-
Se insistirmos nesses tipos de pergunta, pas- rior da mente deles - nem poderia -, e o compor-
saremos de um ceticismo brando e inofensivo tamento físico que apresentam poderia ser pro-
sobre se o sorvete de chocolate tem ou não exa- duzido por causas meramente físicas. Talvez seus
tamente o mesmo sabor para você e seu amigo parentes e vizinhos, seu gato e seu cachorro não
para um ceticismo mais radical sobre se existe tenham nenhuma experiência interna. E, se não
ou não alguma semelhança entre as suas expe- têm, você não terá como saber.
riências e as dele. Quando ele põe algo na boca, Você nem sequer pode recorrer ao modo
como você sabe que a experiência que ele tem é como se comportam, nem ao que eles dizem, pois
do mesmo tipo que você chamaria de sabor? Pelo isso seria admitir que neles, como em você, o
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OUTRAS MENTES
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
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4
o problema mente-corpo
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MENTE-CORPO
sem impulsos do dedo ao cérebro.) Não sabemos o que acontece, por exemplo, quando você
o que se passa no cérebro quando você pensa: morde uma barra de chocolate? O chocolate der-
"Será que vou ter tempo de cortar o cabelo hoje rete na sua língua e produz alterações químicas
à tarde?" Mas temos certeza de que algo aconte- . nas suas papilas gustativas; as papilas gustativas
ce - alguma coisa que envolva alterações quími- enviam impulsos elétricos pelos nervos que li-
cas e elétricas nos bilhões de células nervosas gam a língua ao cérebro e, quando esses impul-
que compõem o seu cérebro. sos chegam ao cérebro, produzem ali mais alte-
Em alguns casos, sabemos de que maneira o rações físicas; e, finalmente, você sente o gosto do
cérebro afeta a mente e de que maneira a mente chocolate. O que é issci Seria uma simples ocor-
afeta o cérebro. Sabemos, por exemplo, que cer- rência física em alguns dos seus neurônios, ou
tas células cerebrais próximas da nuca, quando será algo completamente diferente?
recebem determinado estímulo, produzem ex- Se um cientista retirasse a tampa do seu crâ-
periências visuais. E sabemos que, quando você nio e olhasse o interior do seu cérebro enquan-
decide servir-se de mais um pedaço de bolo, to você come a barra de chocolate, a única coisa
certas outras células cerebrais enviam impulsos que ele veria é uma massa cinzenta de neurônios.
aos músculos do seu braço. Desconhecemos mui- Se ele usasse instrumentos para medir o que
tos dos detalhes, mas é evidente que existem re- acontece ali dentro, detectaria vários processos
lações complexas entre o que acontece na sua
físicos diferentes e complexos. Mas encontraria
mente e os processos físicos que se desenca-
o sabor do chocolate?
deiam .no seu cérebro. Até aqui, tudo o que foi
Ao que parece, ele não o encontraria no seu
dito é assunto da ciência, não da filosofia.
cérebro, porque sua experiência de saborear o
Mas há também uma indagação filosófica
chocolate está de tal forma tranca da dentro da
sobre a relação entre mente e cérebro, que é a
sua mente, que não pode ser observada por nin-
seguinte: a mente é diferente do cérebro, embo-
ra esteja vinculada a ele, ou ela é o cérebro? Seus guém - mesmo que ele abra seu crânio e exami-
pensamentos, sentimentos, percepções, sensações ne dentro do seu cérebro, Suas experiências es-
e desejos são coisas que acontecem além de to- tão no interior da sua mente com um tipo de in-
dos os processos físicos que ocorrem no seu cé- terioridade que é diferente do modo como seu
rebro, ou são, elas próprias, alguns desses pro- cérebro está no interior da sua cabeça. Uma ou-
cessos físicos? tra pessoa pode abrir sua cabeça e observar o que
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
o PROBLEMA MENTE-CORPO
há dentro dela, mas não pode abrir sua mente e tes: um organismo físico complexo e uma alma
puramente mental. (Essa visão é chamada de dua-
examiná-Ia - não dessa forma pelo menos.
Não é só que o gosto do chocolate é um sa- lismo, por razões óbvias:)
bor e, portanto, não pode ser visto. Imagine um Muitas pessoas, porém, acham que a crença
cientista muito louco que, para tentar observar na alma é ultrapassada e não científica. Tudo o
sua experiência de saborear o chocolate, lam- que existe no mundo é feito de matéria física -
besse seu cérebro enquanto você estivesse co- diferentes combinações dos mesmos elementos
mendo uma barra de chocolate. Em primeiro lu- químicos. Por que não seria assim conosco tam-
gar, seu cérebro provavelmente não teria para bém? Mediante um complexo processo físico,
ele o gosto de chocolate. Mas, mesmo que tives- nosso corpo se desenvolve a partir da única cé-
se, ele não teria conseguido entrar na sua mente lula produzida pela união do espermatozóide
e observar a sua experiência de provar chocola- com o óvulo, no momento da concepção. Aos
te. A única coisa que ele teria descoberto, de mo- poucos, matéria comum vai sendo adicionada ,
do bastante bizarro, é que, quando você sente o de tal forma que a célula se torna um bebê , com
gosto do chocolate, seu cérebro se altera e passa braços, pernas, olhos, orelhas e cérebro, capaz
a ter gosto de chocolate para as outras pessoas. de se mover, sentir, ver e, finalmente, falar e pen-
Ele teria a experiência dele do chocolate, e você, sar. Algumas pessoas acreditam que esse sofisti-
cado sistema físico é suficiente, por si só, para
a sua.
Se o que acontece na sua experiência está no fazer surgir a vida mental. Por que não deveria?
interior da sua mente de um jeito diferente do Seja como for, como um simples argumento filo-
que acontece no seu cérebro, parece então que sófico pode demonstrar que não é assim? Se a
as suas experiências, bem como seus diferentes filosofia não pode nos dizer do que são feitos as
estados de espírito, não podem ser meros esta- estrelas e os diamantes, como poderá nos dizer
dos físicos do cérebro. Você deve ser algo mais do que são feitos ou não são feitos os seres hu-
do que um corpo dotado de um buliçoso siste- manos?
A opinião de que as pessoas não passam de
ma nervoso.
Uma conclusão possível é que deve haver matéria física, e que seus estados de espírito são
uma alma ligada ao corpo, de tal forma que am- estados físicos çerebrais, é denominada fisicalís-
bos possam interagir. Se isso é verdade, então mo (ou, às vezes,materialismo). Os fisicalistas
você é constituído de duas coisas muito díferen- não têm uma teoria específica sobre qual pro-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MENTE-CORPO
cesso cerebral pode ser identificado com a expe- Um dualista retrucaria que essas outras coi-
riência de saborear chocolate, por exemplo. Mas sas são diferentes. Quando investigamos a com-
acreditam que os estados de espírito são apenas posição química da água, por exemplo, estamos
estados do cérebro, e que não há nenhuma ra- lidando com algo que pertence claramente ao
zão filosófica para pensar que não sejam. Os de- mundo físico - algo que podemos ver e tocar.
talhes terão de ser descobertos pela ciência. Quando descobrimos que ela é feita de átomos
A idéia é que podemos descobrir que as ex- de hidrogênio e oxigênio, estamos apenas de-
periências são, na verdade, processos cerebrais, compondo uma substância física externa em par-
tal como descobrimos que outras coisas conhe- tes físicas menores. Uma característica essencial
cidas têm uma natureza real que não podería- desse tipo de análise é que não se trata de uma
mos ter adivinhado, até que foi revelada pela decomposição química do modo como vemos,
investigação cíentifica: Por exemplo, os diaman- sentimos e saboreamos a água. Essas coisas acon-
tes são compostos de carbono, o mesmo mate- tecem na nossa experiência interna, não na água
rial do carvão - só que os átomos se combinam que foi decomposta em átomos. A análise física
de maneira diferente num e noutro. E a água, ou química da água desconsidera essas expe-
como sabemos, é formada de hidrogênio e oxi- riências.
gênio, embora nenhum desses elementos, quan- Para descobrir se a experiência que tivemos
do isolados, em nada se assemelhe com a água. do sabor do chocolate foi, de fato, apenas um
Portanto, embora pareça surpreendente que processo cerebral, teríamos de analisar alguma
a experiência de saborear chocolate não seja, tal- coisa mental - não uma substância física obser-
vez, mais do que uma complexa ocorrência físi- vável externamente, mas uma sensação de sabor
ca no cérebro, isso não seria mais estranho que interna - em termos das partes físicas. E, por
as muitas coisas que se descobriram sobre a ver- mais complexas e numerosas que sejam as ocor-
dadeira natureza de objetos e processos comuns. rências físicas no cérebro, elas não poderiam ser
Os cientistas descobriram o que é a luz, como as as partes que compõem a sensação do gosto.
plantas crescem, como os músculos se movem - Um todo físico pode ser analisado em partes físi-
é apenas uma questão de tempo para q~e des- cas menores, mas um processo mental, não. Não
cubram a natureza biológica da mente: E nisso é possível somar partes físicas para obter um
que os fisicalistas acreditam. todo mental.
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MEI\T'fE-CORPO
Há uma outra visão que difere tanto do dua- Sendo assim, seu cérebro teria um interior que
lismo quanto do fisicalismo. O dualismo afirma não poderia ser alcançado por um observador
que somos constituídos de um corpo e uma al- externo, mesmo que ele o abrisse ao meio. Esse
ma, e que nossa vida mental tem lugar em nossa processo que ocorre no seu cérebro produziria
alma. O fisicalismo sustenta que a vida mental em você um certo tipo de sensação ou gosto.
consiste em processos físicos que se desenrolam Poderíamos expressar essa idéia ao dizer que
no cérebro. Outra possibilidade, contudo, é a de você é apenas corpo, não corpo e alma, mas seu
que a vida mental ocorra no cérebro, ainda que corpo, ou pelo menos seu cérebro, não é so-
todas essas experiências, sentimentos, pensamen- mente um sistema físico. É um objeto com as-
tos e desejos não sejam processos físicos do cé- pectos físicos e mentais: pode ser dissecado, mas
rebro. Isso significaria que a massa cinzenta dos tem um tipo de interior que a dissecação não
bilhões de células nervosas dentro do seu crânio pode revelar. Se existe algo dentro que parece
não é apenas um objetofísico. Embora tenha mui- saborear o chocolate, é porque existe algo den-
tas propriedades físicas - uma grande quantidade tro que parece colocar seu cérebro na condição
de atividade química e elétrica -, ali também ocor- que se produz quando você come chocolate.
rem processos mentais. Para os fisicalistas, a única coisa que existe é
A concepção de que o cérebro é a sede da o mundo físico, que pode ser estudado pela ciên-
consciência, mas que seus estados conscientes cia: o mundo da realidade objetiva. Por isso, eles
não são meros estados físicos, é chamada de teo- precisam encontrar um lugar nesse mundo para
ria do aspecto dual.I Ê assim chamada porque, alojar os sentimentos, desejos, pensamentos e
quando você morde uma barra de chocolate, pro- experiências - um lugar para você e para mim.
duz-se no seu cérebro um estado ou processo Uma das teorias apresentadas em defesa do
com dois aspectos: um aspecto físico, envolven- fisicalismo é a de que a natureza mental de nos-
do várias alterações químicas e elétricas, e um sos estados de espírito consiste na relação des-
aspecto mental - a experiência do sabor de cho- ses estados com as coisas que os causam e com
colate. Quando esse processo ocorre, um cien- as coisas que eles causam. Por exemplo, quando
tista, ao examinar seu cérebro, poderá observar você machuca o dedo e sente dor, a dor é algo
o aspecto físico, mas é você, internamente, que que acontece no seu cérebro. Mas o que a faz
passará pelo aspecto mental: você é que vai ex- ser dor não é apenas a soma das características
perimentar a sensação de saborear o chocolate. físicas do cérebro, e tampouco se trata de algu-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
o PROBLEMA ME TE-CORPO
ma misteriosa propriedade não física. Ao contrá- xes, as formigas e os besouros. Quem sabe onde
rio, a dor é o tipo de estado que se produz no seu isso acaba?
cérebro toda vez que você se machuca, e que Nossa concepção geral do mundo será insu-
geralmente o faz gritar e pular e evitar a coisa que ficiente até que possamos explicar de que modo
o machucou. E esse estado poderia ser puramen- os elementos físicos, quando combinados da ma-
te físico. n~ir~ ~erta, formam não apenas um organismo
Mas isso não parece ser suficiente para que biológico funcional, mas também um ser cons-
algo seja doloroso. É certo que as dores são cau- ciente. Se a própria consciência pudesse ser iden-
sadas por ferimentos e que elas nos fazem pular tificada com algum tipo de estado físico, estaria
e gritar. Mas também são sentidas de uma certa aberto o caminho para uma teoria unificada da
maneira, o que parece ser algo diferente de to- mente e do corpo e assim, talvez, para uma teo-
das as relações que têm com causas e efeitos e ria unificada do universo. Mas as razões contrá-
de todas as propriedades físicas que possam ter rias a uma teoria puramente física da consciên-
- se é que, de fato, são ocorrências cerebrais. cia são bastante fortes para nos fazer duvidar de
Pessoalmente acredito que esse aspecto interno que seria possível uma teoria física da realidade
da dor e de outras experiências conscientes não total. A ciência física avançou deixando a mente
pode ser adequadamente analisado em termos de fora daquilo que tenta explicar, mas pode ser
de nenhum sistema de relações causais com es- que haja mais sobre o mundo do que a ciência
física é capaz de entender.
tímulos e comportamentos físicos, por mais com-
plexos que sejam.
Parece haver dois tipos muito distintos de
coisas que acontecem no mundo: as coisas que
pertencem à realidade física, que muitas pessoas
podem observar de fora, e as coisas que perten-
cem à realidade mental, que cada um de nós ex-
perimenta interna e individualmente. E isso é
verdade não somente para os seres humanos:
cachorros, gatos, cavalos e pássaros parecem ser
conscientes, e é provável que também os pei-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS
que isso, uma pessoa que fala chinês pode fazer E não é só isso. Há também o problema de
a mesma pergunta, usando a palavra chinesa de como essa idéia ou conceito se relaciona com to-
mesmo significado. Seja qual for a relação que das as amostras de tabaco real. Que coisa é essa
a palavra "tabaco" tenha com a coisa em si, outras que se relaciona exclusivamente com o tabaco e
palavras também podem ter. nada mais? Parece que não fizemos mais que au-
Isso sugere, de maneira bastante natural, que mentar o problema. Ao tentar explicar a relação
a relação da palavra "tabaco" com todas essas entre a palavra "tabaco" e o tabaco interpondo en-
plantas, cigarros e charutos, no passado, presen- tre ambos a idéia ou o conceito de tabaco, ape- .
te e futuro, é indireta. A palavra, tal como você a nas criamos a necessidade adicional de explicâr
usa, tem alguma outra coisa por trás dela - um as relações entre a palavra e a idéia, entre a idéia
conceito, idéia ou pensamento - que, de algum e a coisa. .'
modo, se estende a todo tabaco do universo. Aqui, Com ou sem o conceito ou a idéia, o proble-
porém, surgem novos problemas. ma parece ser o seguinte: o uso que cada pessoa
Primeiro, que tipo de coisa é esse interme- faz de uma palavra envolve sons, marcas e exem-
diário? Está em sua mente, ou é algo fora da sua plos muito particulares, mas a palavra se aplica a
mente com o qual, de algum modo, você pode algo universal, que outros falantes particulares
fazer uma associação? Parece haver algo com também podem expressar por meio dessa pala-
que você, eu e o chinês podemos todos associar, vra ou de outras palavras em outras línguas. Co-
a fim de expressar a mesma coisa com nossas mo algo tão particular quanto o ruído que faço
palavras para tabaco. Mas de que maneira, tendo ao dizer "tabaco" pode significar algo tão geral
experiências tão distintas da palavra e da planta, que eu possa usá-Ia para dizer: "Aposto que da-
conseguimos fazer isso? Não será isso tão difícil qui a duzentos anos haverá pessoas em Marte
de explicar quanto o fato de sermos capazes de fumando tabaco."
nos referir, com os diferentes usos que fazemos Você pode pensar que o elemento universal
da palavra ou das palavras, à mesma enorme e é fornecido por algo que todos temos em mente
difundida quantidade da substância? O proble- quando usamos a palavra. Mas o que é que to-
ma que temos aqui, de como a palavra pode sig- dos temos em mente? Para pensar: "O tabaco
nificar a idéia ou o conceito (seja qual for), não é está mais caro este ano", tudo o que preciso ter
exatamente igual ao que havia antes, de como a em mente - conscientemente, pelo menos - é a
palavra pode significar a planta ou a substância? própria palavra. É claro que, além disso, posso
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UNJ.f\ J:\lttVJ: llV1KUUUc;AO A FILOSOHA
o SIGNIHCADO DAS PALAVRAS
ter em mente algum tipo de imagem quando uso
a palavra: talvez a imagem de uma planta, ou de sas distantes que você, provavelmente, nunca
encontrará diretamente.
folhas secas, ou do interior de um cigarro. Ainda
assim, isso não ajuda a explicar a generalidade Você pode achar que exagerei a questã~ =
alcance universal da linguagem. Na vida cotidia-
do significado da palavra, pois qualquer imagem
na, a maior parte dos enunciados e pen,sam~n-
dessas será uma imagem particular. Será a ima-
tos para os quais utilizamos a lingua~em"e muito
gem do aspecto ou do cheiro de uma amostra
mais localizada e particular. Se eu digo: Passe o
específica de tabaco. E como isso poderia abar-
sal" e você me passa o sal, não é necessário aqui
car todas as possíveis e reais amostras de taba- ,
nenhum significado universal da pa Iavra "1"
sa ,
co? Além disso, mesmo que você forme uma cer-
do tipo que se apresenta quando pergunta~~s:
ta imagem em sua mente ao ouvir ou usar a pa- "Em que momento da história da 'nossa galáxia,
lavra "tabaco", cada pessoa provavelmente for- a mistura de sódio e cloro deu origem ao sal?" As
mará uma imagem diferente. Isso, no entanto, palavras muitas vezes são usadas simplesmente
não impede que todos usemos a palavra com o como ferramentas nas relações entre as pessoas.
mesmo significado.
Num terminal de ônibus, você vê, numa placa,
O mistério do significado é que ele, aparen- uma pequena figura de saia e uma set~, e sab~
temente, não se situa em nenhum lugar - nem na que isso indica o caminho para o banheuo. femi-
palavra, nem na mente, nem em nenhum con- nino. Não será então a linguagem, de maneira ge-
ceito ou idéia pairando entre a palavra, a mente ral, apenas um sistema de sinais e respostas des-
e as coisas sobre as quais estamos falando. Con- se tipo? .
tudo, usamos a linguagem o tempo todo, e ela Bem, uma parte dela pode ser que SIm, e tal-
nos permite formular pensamentos complica- vez seja assim que começamos a usar as pa~a-
dos, que transpõem grandes distâncias no tem- vras: "papai", "mamãe", "não", "acabei". Mas ~ao
po e no espaço. Você pode falar sobre a quanti- pára por aí, e não fica claro ~e ~ue modo as SIm-
dade de pessoas em Okinawa que têm mais de ples transações que são possrveis usando-~e uma
1,50 m de altura, ou indagar se há vida em ou- ou duas palavras por vez podem nos ajudar a
tras galáxias, e os pequenos ruídos que você emi- entender o uso da linguagem para descrever,
te formarão frases que são verdadeiras ou falsas, bem ou mal, o mundo que está além dos limit~s
em virtude de fatos complicados acerca de cOÍ- da nossa vizinhança. Na verdade, parece ~al.s
provável que o uso da linguagem para proposi-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS
tos mais amplos nos revele alguma coisa sobre o da temos de explicar como meu uso da palavra
que acontece quando a utilizamos numa escala extrai seu conteúdo de todos os outros usos, a
menor. maioria dos quais desconheço - inserir minhas pa-
Uma afirmação do tipo "O sal está na mesa" lavras nesse contexto maior, porém, pode parecer
tem o mesmo significado quer seja dita por ra- que ajuda a explicar seu significado universal.
zões práticas durante o almoço, quer como par- Mas isso não resolve o problema. Quando
te da descrição de uma situação distante no tem- uso a palavra, ela pode ter significado como par-
po e no espaço, quer como uma descrição hipo- te da língua portuguesa, mas de que maneira 2
tética de uma possibilidade imaginária. Significa uso da palavra por todos os outros falantes da
a mesma coisa quer seja verdadeira ou falsa, quer língua lhe dá alcance universal, muito além de to-
o falante, ou ouvinte, saiba ou não se é verda- das as situações em que ela é efetivamente usa-
deira ou falsa. Seja o que for que aconteça nas da? O problema da relação da linguagem com o
situações práticas e corriqueiras, deve ser algo mundo não é tão diferente, quer falemos de uma
suficientemente geral também para explicar es- frase ou de bilhões de frases. O significado de
sas outras situações, bastante diferentes, em que uma palavra contém todos os seus usos possí-
ela tem o mesmo significado. veis, verdadeiros e falsos, não apenas seus usos
É importante, sem dúvida, o fato de que a efetivos - e estes são apenas uma fração mínima
linguagem seja um fenômeno social. Não é algo dos usos possíveis.
que cada pessoa inventa para si mesma. Quan- Somos pequenas criaturas finitas, mas o sig-
do, na infância, aprendemos uma linguagem, in- nificado nos permite, com a ajuda de sons ou
gressamos num sistema já existente, no qual mi- marcas no papel, entender o mundo inteiro e as
lhões de pessoas vêm, há séculos, usando as mes- muitas coisas que há nele, até mesmo inventar
mas palavras para conversar entre si. O uso que coisas que não existem e que, talvez, nunca ve-
faço da palavra "tabaco" não tem significado por nham a existir. O problema é explicar como isso
si apenas, mas antes como parte do uso muito é possível: como alguma coisa que dizemos ou
mais amplo dessa palavra em português. (Mes- escrevemos - inclusive todas as palavras conti-
mo que adotasse um código particular, no qual das neste livro - pode significar algo?
usasse a palavra "blableblu" para dizer "tabaco",
eu o faria definindo "blableblu" para mim mes-
mo em termos da palavra comum "tabaco".) Ain-
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Livre-arbítrio
49
UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA LIVRE-ARBITRIO
É isso? Quando você diz: "Eu poderia ter co- alguns animais). Quando dizemos: "O carro po-
mido o pêssego", está dizendo que só dependia deria ter subido até o alto da colina", queremos
da sua escolha? Você escolheu o bolo de choco- dizer que o carro tinha potência suficiente para
late, e foi isso que você comeu; mas, se tivesse chegar ao topo da colina se alguém o tivesse di-
escolhido o pêssego, era isso que teria comido. rigido até lá. E não que, estando um dia estacio-
Mas ainda não parece suficiente. Você não nado ao pé da colina, o carro simplesmente po-
quer dizer apenas que, se tivesse escolhido o pês- deria ter dado a partida e subido até o alto, em
sego, era o que teria comido. Quando diz: "Eu vez de continuar parado ali. Alguma outra coisa
poderia ter comido o pêssego", quer dizer tam- precisaria ter acontecido antes, como alguém
bém que poderia ter escolhido o pêssego - não entrar nele e ligar o motor. Mas, quando se trata
há "se" nenhum aqui. Mas o que significa essa das pessoas, parecemos acreditar que elas po-
afirmação? dem fazer várias coisas que de fato não fazem,
Não se pode explicá-Ia assinalando as outras exatamente desse jeito, sem que alguma outra
ocasiões em que você de fato escolheu a fruta. E coisa aconteça antes. O que significa isso?
não se pode explicá-la dizendo que, se você ti- Em parte, pode significar o seguinte: até o
vesse pensado melhor ou se estivesse acompa- momento da escolha, não há nada que determi-
nhado de um amigo que come como um passa- ne irrevogavelmente qual será a sua escolha. Per-
rinho, teria escolhido o pêssego. O que você manece aberta a possibilidade de que você es-
está dizendo é que poderia ter escolhido o pês- colha o pêssego até o momento em que efetiva-
sego em vez do bolo de chocolate naquele exa- mente escolha o bolo de chocolate. Não se trata
to momento, sendo as coisas como de fato eram. de algo predeterminado.
Você acha que poderia ter escolhido o pêssego Algumas coisas que acontecem são predeter-
mesmo que tudo tivesse sido exatamente igual minadas. Por exemplo, parece predeterminado
ao que foi no momento em que, de fato, esco- que o Sol nascerá amanhã numa certa hora. Não
lheu o bolo de chocolate. A única diferença é está aberta a possibilidade de que o Sol não nas-
que, em vez de pensar "S~ desta vez: e pegar o ça amanhã e de que a noite se prolongue. Tal
bolo, você teria pensado "E melhor nao" e pega- coisa não é possível, porque só poderia ocorrer
do o pêssego. se a Terra parasse de girar, ou se o Sol deixasse
Essa é uma idéia de "pode" ou "poderia ter" de existir, e não há nada em nossa galáxia que
que aplicamos somente às pessoas (e, talvez, a indique que alguma dessas coisas possa aconte-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO
cer. A Terra continuará girando a menos que demos de fato de nossas escolhas, decisões e von-
seja detida, e amanhã de manhã sua rotação nos tades, e que fazemos diferentes escolhas em di-
trará de novo para o interior do sistema solar, de ferentes circunstâncias: não somos como a Terra
frente para o Sol, e não para o lado de fora, lon- girando em torno do seu próprio eixo com urna
ge dele. Se não há possibilidade de que a Terra regula~idad~ monótona. Mas afirmam que, em
pare Ou de que o Sol deixe de existir, não há cada situação, as circunstâncias que se apresen-
possibilidade de que o Sol não nasça amanhã. tam antes de agirmos determinam nossas ações,
Quando diz que poderia ter comido o pêsse- t?l·na.ndo-as inevitáveis. A soma total das expe-
go em vez do bolo de chocolate, o que você nencias, dos desejos e do conhecimento de uma
quer dizer, em parte, é que não estava predeter- r:,ess.oa, su~ constituição hereditária, as circuns-
minado o que você faria, tal como' está prede- tanCla~ sociais e a natureza da escolha que ela
terminado que o Sol nascerá amanhã. Não havia tem diante de si, juntamente com outros fatores
nenhum processo ou força em ação, antes da sua que ta~vez. ~esconheçamos, combinam-se para
escolha, que tornasse inevitável que você esco- tornar mevltavel uma ação particular nessas cir-
lhesse o bolo de chocolate. cunstâncias.
Pode ser que não seja tudo, mas parece que, Essa visão chama-se determinismo. A idéia
em parte, é isso que você quer dizer. Pois, se es- não é que podemos conhecer todas as leis do
tivesse mesmo predeterminado que você esco- universo e usá-Ias para prever o que irá aconte-
lheria o bolo, como também seria verdade que cer. Em primeiro lugar, não podemos conhecer
você poderia ter escolhido a fruta? A verdade é t~das as complexas circunstâncias que influen-
que nada o teria impedido de comer o pêssego eram uma escolha humana. Em segundo, mesmo
se você tivesse escolhido ele em vez do bolo. quando aprendemos alguma coisa sobre as cir-
Mas esses ses não são o mesmo que dizer que cunstâncias, e tentamos fazer uma previsão isso
você poderia ter escolhido o pêssego, e ponto- por si só é uma mudança nas circunstâncias: que
final. Só poderia tê-lo escolhido se a possibilida- p~de/ alterar o resultado previsto. Mas a questão
de permanecesse aberta até o momento em que nao e a previsibilidade. A hipótese aqui é a de
você a fechasse de vez ao escolher o bolo. que existem leis naturais, como as que governam
Algumas pessoas acham que nunca é possí- o movimento dos planetas, que governam tudo
vel fazer diferente do que na verdade fazemos, o que acontece no mundo - e, de acordo com
nesse sentido absoluto. Reconhecem que depen- essas leis, as circunstâncias que antecedem uma
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBíTRIO
ação determinam o que irá ocorrer e excluem Se acreditasse nisso acerca de si mesmo e
qualquer outra possibilidade. das outras pessoas, o modo como você se sente
Se isso for verdade, então, mesmo enquanto a respeito das coisas provavelmente mudaria.
você decide que sobremesa irá escolher, já esta- Por exemplo, você se culparia por cair em tenta-
rá determinado, pelos inúmeros fatores que ção e comer o bolo? Faria algum sentido dizer:
atuam sobre e dentro de você, que sua escolha "Eu deveria mesmo ter comido o pêssego em vez
será o bolo de chocolate. Você não poderia ter do bolo", se você não pudesse ter escolhido o
escolhido o pêssego, mesmo que assim pensas- pêssego? Com certeza não faria nenhum sentido
se: o processo de decisão é apenas a efetivação dizer tal coisa se não houvesse fruta alguma. As-
do resultado já determinado na sua mente. sim, como poderia fazer sentido se houvesse fru-
Se o determinismo se aplica a tudo o que ta mas você não pudesse optar por ela, porque
acontece, já estava determinado, antes de você estava determinado, de antemão, que você esco-
nascer, que sua escolha seria o bolo. Sua escolha lheria o bolo?
foi determinada pela situação imediatamente an- Isso parece ter sérias conseqüências. Além
terior, e essa situação, por sua vez, foi determina- de não poder culpar-se por comer o bolo, você
da pela situação anterior a ela, e assim sucessiva- provavelmente não poderia culpar pessoa algu-
mente até onde você queira recuar no tempo. ma por fazer algo mau, nem elogiá-Ia por fazer
Ainda que o determinismo não se aplique a algo bom. Se já estava determinado que ela as-
todas as coisas que ocorrem - mesmo que al- sim o faria, era inevitável: ela não poderia agir
guns acontecimentos não sejam determinados de outra forma, dadas as circunstâncias em que
por causas que já existiam de antemão -, seria se encontrava. Então, como considerá-Ia res-
de qualquer modo muito significativo se tudo ponsável?
que fizéssemos já estivesse determinado antes de Você provavelmente ficaria furioso se convi-
o fazermos. Por mais livre que você possa se sen- dasse alguém para uma festa na sua casa, e ele
tir ao escolher entre a fruta e o bolo, ou entre roubasse todos os seus discos do Glenn Gould.
dois candidatos numa eleição, você na verdade Suponha, porém, que você acredite que a ação
só poderia fazer uma escolha nessas circunstân- dele foi predeterminada por sua natureza e pela
cias - mesmo que, se as circunstâncias ou seus situação. Suponha que você acredite que tudo o
desejos fossem outros, você tivesse escolhido di- que ele fez, incluindo as ações anteriores que
ferente. contribuíram para a formação do seu caráter,
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO
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UMA BREVE INTI~ODUÇÀO À FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO
É uma questão engraçada. Todos sabemos o le. E como posso eu determiná-Ia se nada a de-
que significa fazer algo. O problema é que, se o termina?
ato não está predeterminado, por nossos dese- Isso levanta a alarmante possibilidade de que,
jos, crenças e personalidade, entre outras coisas, seja o determinismo verdadeiro ou falso, não so-
a impressão que se tem é que ele simplesmente mos responsáveis por nossas ações. Se o deter-
aconteceu; sem nenhuma explicação. E, nesse minismo é verdadeiro, as circunstâncias anterio-
caso, como foi o seu fazer? res são as responsáveis. Se o determinismo é fal-
Uma resposta possível seria a de que não há so, nada é responsável. Seria, sem dúvida, um
resposta para essa pergunta. A ação livre é uma beco sem saída. '"
característica básica deste mundo e não pode ser Há uma outra hipótese possível, completa-
analisada. Existe uma diferença entre algo que mente oposta à maior parte do que falamos até
simplesmente acontece, sem nenhuma causa, e agora. Algumas pessoas acham que a responsa-
uma ação que é feita sem nenhuma causa. É uma bilidade por nossas ações requer que nossas
diferença que todos nós entendemos, mesmo ações sejam determinadas. Para que uma ação
que não possamos explicá-Ia. seja algo que você fez, dizem elas, precisa ser
Algumas pessoas deixariam por isso mesmo. resultado de certas causas presentes em você.
Outras, porém, acham suspeito que tenhamos Por exemplo, quando você escolheu o bolo de
de apelar a essa idéia inexplicada para explicar chocolate, você fez algo, e não é que algo sim-
em que sentido você poderia ter escolhido a fru- plesmente aconteceu; pois você queria mais o
ta em vez do bolo. Até aqui, parecia que o de- bolo de chocolate do que o pêssego. Como a sua
terminismo era a grande ameaça à responsabili- vontade de comer chocolate era mais intensa,
dade. Agora, no entanto, parece que, mesmo naquele momento, do que seu desejo de evitar
que nossas escolhas não sejam predetermina- um aumento de peso, ela resultou na sua esco-
das, ainda assim é difícil entender de que modo lha pelo bolo. Em outros exemplos de ação, a
podemos fazer aquilo que não fazemos. Qual- explicação psicológica será mais complexa, mas
quer uma das duas escolhas pode ser possível de sempre haverá uma - do contrário, a ação não
antemão, mas, a menos que eu determine qual seria sua. Essa explicação parece significar, ao
delas vai ocorrer, minha responsabilidade não fim e ao cabo, que o que você fez estava prede-
é maior do que seria se a escolha fosse determi- terminado. Se não estava determinado por coisa
nada por causas que estão fora do meu centro- alguma, foi apenas um acontecimento inexplica-
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UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA LIVRE-AHBÍTHIO
do, algo que surgiu do nada, em 'Vez de algo que Para evitar essa conclusão, você teria de ex-
você fez. plicar (a) o que quer dizer quando diz que pode-
De acordo com essa opinião, a determina- ria ter feito outra coisa em vez daquilo que fez,
ção causal, por si mesma, não é uma ameaça à e (b) como você e o mundo teriam de ser para
liberdade - somente um certo tipo de causa a que isso fosse verdade.
ameaça. Se você pegou o bolo porque alguém o
obrigou, então não foi uma escolha livre. Mas
uma ação livre requer que não haja nenhuma
causa determinante: significa que a causa tem de
ser de um tipo psicológico conhecido.
Pessoalmente, não aceito essa solução. Se
pensasse que tudo o que fiz foi determinado pe-
las minhas circunstâncias e pela minha condição
psicológica, eu me sentiria encurralado. E, se
pensasse a mesma coisa sobre todas as outras
pessoas, sentiria que não somos mais do que um
bando de marionetes. ão faria sentido conside-
rá-Ias responsáveis por suas ações, da mesma
forma que não se pode responsabilizar um gato,
um cachorro ou mesmo um elevador.
Por outro lado, me parece difícil entender de
que maneira a responsabilidade por nossas es-
colhas faria sentido, se não estão determinadas.
ão é claro para mim o que significa dizer que eu
determino a escolha, se nada em mim a determi-
na. Assim, a sensação de que você poderia ter es-
colhido o pêssego em vez do pedaço de bolo
talvez seja uma ilusão filosófica, e não poderia
ser correta em caso algum.
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7
Certo e errado
63
UMA BREVE 11TROD çÀO À FILOSOFIA
CERTO E ERRADO
ser ruim porque exige algo que é errado - como errada depende do impacto que ela tem não a~e-
uma lei que exige a segregação racial em hotéis nas sobre aqueles que a praticam, mas tambem
e restaurantes. As idéias de certo e errado dife-
sobre outras pessoas. Elas não gostariam e, se
rem das idéias sobre o que é e não é contrário
descobrissem, fariam objeções. .
às regras. Senão não poderiam ser usadas para
Suponha, contudo, que você te~te explicar
avaliar as regras nem as ações.
tudo isso ao seu amigo e ele diga: "Ser que o che-
Se você acha que seria errado ajudar seu ami-
fe da biblioteca não gostaria disso se descobris-
go a roubar o livro, então não se sentirá à vonta-
se, e é provável que alguns dos outro~ usuários
de para fazer isso: de algum modo, você não vai
querer fazê-Io, mesmo que também relute em fiquem chateados ao perceber ~ue o h~ro desa-
recusar-se a ajudar um amigo. De onde vem o pareceu, mas e daí? Eu quero o livro; pOI que de-
.
veria me importar com e 1es.?" .
desejo de não querer fazer; qual é o motivo, a
razão que está por trás dele? O argumento de que seria errado de~ena ser-
Há muitos aspectos nos quais uma coisa pode vir de razão para que ele não agisse assim. Mas,
estar errada. esse caso, porém, se você tivesse se alguém simplesmente não liga para as outras
de explicar o motivo, provavelmente diria que pessoas, que razão teria para coibir-se de fazer
seria injusto com os outros usuários da bibliote- qualquer uma das coisas que normal~ente s~
ca, que podem ter tanto interesse no livro quan- consideram erradas, se pode escapar rmpun_e.
to seu amigo, mas que o lêem na sala de consul- Que razão teria para não matar, não roubar, nao
ta, onde qualquer um pode encontrá-Io, se ne- mentir não ferir os outros I Se ele pode obter o
cessitar. Você pode sentir também que deixá-I o que d~seja fazend~ tais coisas, ~or que não d_e-
levar o livro seria uma traição aos seus patrões, veria? E, se não há nenhuma razao pela qual nao
que lhe pagam justamente para impedir esse deveria, em que sentido está errado? .
tipo de coisa. É claro que a maioria das pessoas se impor-
Esses pensamentos têm a ver com os efeitos ta em certa medida, com as demais. Mas, se al-
que tal ação pode ter sobre os outros - não ne- guérn não se preocupa, não concluiríamos por
cessariamente com os efeitos sobre os sentimen- isso que ele está isento da moral. Uma pesso.a
tos deles, já que talvez nunca venham a desco- que mata outra apenas para/ ~'oubar=lhe a /carter-
brir o roubo, mas com algum tipo de dano, seja ra, sem se importar com a vitima, nao e_staa~to-
como for. Em geral, a idéia de que uma coisa é maticamente justificada. O fato de ela nao se im-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO
portar não legitima sua ação: ela deveria se im- objeções a esse tipo de resposta. Primeiro, há
portar. Mas por que deveria se importar? muita gente que não acredita em Deus e, mes-
Tem havido muitas tentativas de responder a mo assim, emite juízos do que é certo e errado, e
essa pergunta. Um tipo de resposta tenta identi- acha que ninguém deveria matar por uma cartei-
ficar alguma outra coisa com que a pessoa já se ra mesmo que tivesse certeza de que poderia
preocupa, para então relacionar a moral com escapar ileso. Segundo, se Deus existe e proíbe
isso. o que é errado, não é sua proibição que o torna
Por exemplo, algumas pessoas acreditam que, errado. O assassinato é errado por si mesmo, e
mesmo que você possa escapar impune de cri- por isso Deus o proíbe (se é que o proíbe). Deus
mes horríveis que praticou na Terra, e que não não poderia tornar nenhuma coisa errada pelo
são punidos pela lei ou pelos homens, tais atos simples ato de proibi-Ia. Se Ele o proibisse, por
são proibidos por Deus, que irá castigá-lo de- exemplo, de calçar a meia esquerda antes da di-
pois da morte (e recompensá-lo se você não fez reita, e o punisse por não agir assim, seria desa-
nada errado quando se sentiu tentado a fazer). conselhável fazê-lo, mas não seria errado. Ter-
Assim, ainda que pareça ser do seu interesse fa- ceiro, o medo do castigo e a esperança de re-
zer certas coisas, na verdade não é. Algumas pes- compensa, e mesmo o amor de Deus, parecem
soas chegam mesmo a acreditar que, sem Deus não ser os motivos certos para a moral. Se você
para sustentar as exigências morais com a amea- pensa que é errado matar, enganar ou roubar, de-
ça de punição e a promessa de recompensa, a veria querer evitar tais coisas porque são coisas
moral é uma ilusão: "Se Deus não existe, tudo é prejudiciais às vitimas, e não por temer as con-
permitido. " seqüências que podem trazer a você, ou por não
Trata-se de uma versão bastante rudimentar querer ofender ao seu Criador.
dos fundamentos religiosos da moral. 1 uma ver- Essa terceira objeção também se aplica a ou-
são mais atraente, o motivo para obedecer aos tras explicações da força da moral que apelam
mandamentos de Deus seria não o medo, mas o aos interesses da pessoa que deve agir. Por exem-
amor. Ele o ama, e você deve amá-Lo e de bom plo, pode-se dizer que você deve tratar os ou-
grado obedecer aos Seus mandamentos, para tros com consideração, para que eles o tratem
não ofendê-Io. da mesma maneira. Esse pode ser um bom con-
Mas, independentemente do modo como in- selho, mas só é válido na medida em que você
terpretamos os motivos religiosos, existem três acredita que suas ações irão afetar o modo como
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E EllliADO
as outras pessoas O tratam. Não é uma razão para sem o mesmo com você?" Por que essa pergun-
fazer o que é certo se os outros não vão saber, ta deveria fazê-lo hesitar ou sentir-se culpado?
ou contra fazer o que é errado se você pode es- Parece claro que a resposta direta a essa per-
capar impune (como atropelar alguém e fugir). gunta seria: "Não gostaria nem um pouco!" Mas
Não há substituto para a preocupação direta qual é o próximo passo? Suponha que você dis-
com outras pessoas como fundamento da mo- sesse: "Não gostaria que fizessem isso comigo.
ral. Mas a moral deveria aplicar-se a todos: po- Mas, por sorte, ninguém está fazendo isso comi-
demos Supor que todos têm tal preocupação com go. Sou eu que estou fazendo isso com outra
os outros? É óbvio que não: algumas pessoas pessoa, e não ligo a mínima!"
são muito egoístas, e mesmo as que não são Essa resposta foge ao sentido da pergunta.
egoístas podem importar-se apenas com as pes- Quando lhe perguntam se gostaria que fizessem
soas que conhecem, não com todo o mundo. o mesmo com você, espera-se que você pense
Assim, onde encontrar uma razão para que nin- em todos os sentimentos que teria se alguém
guém prejudique os outros, mesmo aqueles que roubasse seu guarda-chuva. E isso inclui mais do
não conhece? que apenas "não gostar disso" - no sentido em
Bem, há um argumento geral contra prejudi- que você não "gostaria" se batesse o dedo do pé
car outras pessoas, que pode servir a qualquer numa pedra. Se alguém roubasse seu guarda-
um que entenda nossa língua (ou outra língua chuva, você ficaria indignado. Teria sentimentos
qualquer), e que parece mostrar que existe algu- sobre o ladrão do guarda-chuva, e não apenas so-
ma razão para se importar com os outros, mes- bre a perda do guarda-chuva. Pensaria: "Onde ele
mo que, no fim, os motivos egoístas sejam tão se meteu com meu-guarda-chuva, que me custou
fortes que se continue a tratar mal as outras pes- tanto comprar, e que tive a precaução de trazer
soas. Tenho certeza de que você já ouviu falar depois de me informar sobre a previsão do tempo?
desse argumento; diz o seguinte: "Você gostaria Por que ele não trouxe o próprio guarda-chuva?",
que alguém fizesse o mesmo com você?" e assim por diante.
Não é fácil explicar como esse argumento de- Quando nossos interesses são ameaçados
veria funcionar. Suponha que você esteja prestes pelo comportamento de pessoas sem considera-
a roubar o guarda-chuva de alguém ao sair de ção, a maioria de nós facilmente passa a desejar
um restaurante, num dia de tempestade, e uma que essas pessoas tenham uma razão para ter
pessoa por perto lhe diz: "Você gostaria que fizes- mais consideração. Quando você é prejudicado,
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UMA BREVE I TROD çÀO À FILOSOFIA
CERTO E ERRADO
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7l
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO
próprios interesses, mas os interesses dos outros o seu próximo como a si mesmo (mesmo que
também, ao decidir o que fazer. E não basta que não esteja próximo de você)? Deveria perguntar-
ela tenha consideração por algumas pessoas ape- se, toda vez que vai ao cinema, se o preço do
nas - família e amigos, com os quais tem uma ingresso propiciaria mais felicidade se você o des-
atenção especial. É claro que cada um se preo- se a alguma outra pessoa, ou se o doasse para
eu pará mais com certas pessoas e consigo mes- ajudar a combater a fome?
mo. Mas existe uma razão para que ela conside- Pouquíssimas pessoas são tão altruístas. E,
re a influência de suas ações sobre o benefício se alguém fosse assim tão imparcial entre si pró-
ou prejuízo de todos. Se ela for como a maioria prio e os outros, provavelmente sentiria também
de nós, é assim que pensará que os outros de- que deveria ser igualmente imparcial entre as
vem agir com ela, mesmo que não sejam seus outras pessoas. Isso excluiria preocupar-se mais
amigos. com amigos e parentes do que com estranhos.
Ele poderia nutrir sentimentos especiais por cer-
** * * tas pessoas próximas, mas a imparcialidade total
significaria que não iria favorecê-ias - se, por
Mesmo que isso esteja certo, não passa de um exemplo, tivesse de escolher entre ajudar um
mero esboço da fonte da moral. Não nos diz, em amigo ou um estranho em dificuldades, ou entre
detalhes, como devemos considerar os interes- levar os filhos ao cinema e doar o dinheiro para
ses dos outros, ou que peso dar a eles em rela- ajudar no combate à fome.
ção ao interesse especial que temos por nós Parece exagero exigir das pessoas esse nível
mesmos e por certas pessoas que nos são próxi- de imparcialidade. Alguém assim seria um tipo
mas . Nem mesmo nos diz quanto devemos nos assustador de sânto. Mas saber quão imparciais
preocupar com pessoas de outros países em deveríamos ser é uma questão importante no
comparação com nossos concidadãos. As pes- pensamento moral. Você é uma pessoa em parti-
soas que aceitam a moral, de modo geral, diver- cular, mas também é capaz de reconhecer que é
gem muito acerca do que é particularmente cer- apenas uma pessoa entre muitas outras e, olhan-
to e errado. do de fora, não mais importante do que elas. Até
Por exemplo: você deveria preocupar-se com que ponto essa forma de ver as coisas deveria
cada pessoa da mesma forma que se preocupa influenciá-Io? Olhando de fora, você realmente
consigo mesmo? Em outras palavras, deveria amar tem alguma importância - do contrário, não pen-
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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO
saria que as outras pessoas têm razão para se padrão básico de comportamento que todos en-
preocupar com o que fazem a você. Mas, visto de contrem razão para seguir.
fora, você não tem tanta importância quanto tem Existem três formas de lidar com esse pro-
para si mesmo, visto de dentro - já que de fora blema, nenhuma delas muito satisfatória.
você não é mais importante do que ninguém. Primeiro, poderíamos dizer que as mesmas
Se não é claro até que ponto deveríamos coisas são certas e erradas para todos, mas nem
ser imparciais, também não é claro qual seria a todos têm uma razão para fazer o que é certo e
resposta correta para essa pergunta. Existe um evitar o que é errado. Somente as pessoas com o
único modo correto pelo qual cada pessoa pos- tipo certo de motivos "morais" - em particular, a
sa equilibrar aquilo com que se preocupa pes- preocupação com os outros - têm alguma razão
soalmente e aquilo que importa imparcialmen- para fazer o que é certo pelo fato de ser certo.
te? Ou a resposta varia de uma pessoa para ou- Isso torna a moral universal, mas à custa de dre-
tra, de acordo com a força de seus diferentes nar-lhe a força. Não está claro o que significa di-
motivos? zer que seria errado alguém cometer assassinato,
Isso nos leva a outra grande questão: Certo mas que ele não tem nenhuma razão para não o
e errado significam a mesma coisa para todo o cometer.
mundo? Segundo, poderíamos dizer que todos têm
Considera-se, geralmente, que a moral é uni- uma razão para fazer o que é certo e evitar o
versal. Se algo é errado, supõe-se que seja erra- que é errado, mas essas razões não dependem
do para todos; por exemplo, se é errado matar das motivações reais das pessoas. São, na verda-
alguém para roubar-lhe a carteira, então é erra- de, razões para mudar nossas motivações, se
do mesmo que o ladrão se preocupe com a víti- não são corretas". Isso vincula a moral com as ra-
ma ou não. Mas, se o fato de algo ser errado de- zões para agir, mas não esclarece o que são es-
veria ser uma razão para não fazê-Ia e se suas sas razões universais que não dependem das
razões para fazer as coisas dependem de seus motivações que as pessoas de fato têm. O que
motivos, e os motivos das pessoas podem variar significa dizer que um assassino tinha uma razão
muito, parece então que não haverá um único para não matar, embora nenhum de seus dese-
certo e errado para todo o mundo. Não haverá jos ou motivações reais tenha lhe dado tal razão?
um único certo e errado porque, se os motivos Terceiro, poderíamos dizer que a moral não
básicos das pessoas diferem, não haverá nenhum é universal, e que o que moralmente se exige de
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CERTO E ERRADO
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
uma pessoa Só é válido na medida em que ela que certo e errado são relativos a uma época, lu-
tenha certo tipo de razão para fazê-lo, e a razão gar e contexto social específicos?
Existe um sentido no qual certo e errado são
aqui depende do quanto ela efetivamente se im-
obviamente relativos às circunstâncias. De modo
porta com as outras pessoas em geral. Se ela tem
geral, é certo devolver ao dono uma faca que
fortes motivações morais, estas produzirão fortes
você tomou emprestada, se ele a pedir de volta.
razões e fortes requisitos morais. Se suas motiva-
Mas se ele, nesse meio-tempo, ficou louco e quer
ções morais são fracas ou inexistentes, os requi-
a faca para com ela matar alguém, então você
sitos morais sobre ela serão igualmente fracos ou
não deveria devolvê-Ia. Não é desse tipo de rela-
inexistentes. Isso talvez pareça realista, do ponto
tividade que estou falando, pois não significa que
de vista psicológico, mas se opõe à idéia de que a moral é relativa no nível básico. Significa ape-
as mesmas regras morais se aplicam a todos nós, nas que os mesmos princípios morais básicos
e não apenas às pessoas boas. exigirão diferentes ações em diferentes circuns-
A questão sobre os requisitos morais serem tâncias.
ou não universais vem à baila não somente quan- O tipo mais profundo de relatividade, no
do comparamos as motivações de diferentes in- qual algumas pessoas acreditam, significaria que
divíduos, mas também quando comparamos os a maioria dos padrões básicos de certo e errado
padrões morais aceitos em diferentes socieda- - tais como as situações em que é e não é certo
des, em diferentes épocas. Muitas coisas que você matar, ou os sacrifícios que você deve fazer pe-
provavelmente considera erradas foram aceitas los outros - depende inteiramente dos padrões
como moralmente corretas por grandes grupos aceitos, de modo geral, pela sociedade em que
de pessoas no passado: escravidão, servidão, sa- você vive.
crifício humano, segregação racial, negação de li- Acho muito difícil acreditar nisso, principal-
berdade política e religiosa, sistemas de castas mente porque sempre parece possível criticar
hereditárias. E, provavelmente, algumas coisas os padrões aceitos em nossa sociedade e dizer
que hoje você julga serem certas serão conside- que são moralmente equivocados. Mas, para fa-
radas erradas pelas sociedades futuras. É sensato zer isso, você deve recorrer a algum padrão mais
acreditar que existe alguma verdade única sobre objetivo, a uma idéia do que é realmente certo
tudo isso, embora não tenhamos certeza do que e errado, em oposição ao que pensa a maioria
seja essa verdade? Ou é mais razoável acreditar das pessoas. É difícil dizer o que é isso, mas é
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UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA CERTO E ERRADO
uma idéia que a maior parte de nós entende, se Ora, é verdade que, quando as pessoas fa-
não somos servos obedientes do que a comuni- zem o que acham que devem fazer, com freqüên-
dade diz. cia sentem-se bem com isso. De modo seme-
Existem muitos problemas filosóficos com lhante, quando fazem o que consideram ser er-
relação ao conteúdo da moral - como deveria rado, sentem-se mal. Mas isso não significa que
manifestar-se a preocupação ou o respeito mo- esses sentimentos sejam seus motivos para agir.
ral pelos outros; se deveríamos ajudá-Ias a obter Em muitos casos, os sentimentos resultam de
o que desejam ou, simplesmente, abster-nos de motivos que também produzem a ação. Você não
prejudicá-Ias ou atrapalhá-Ias; até que ponto e se sentiria bem em fazer o que é certo, a menos
como ser imparciais. Deixei de lado a maioria que pensasse haver alguma outra razão para agir
dessas questões porque a minha preocupação assim, além do fato de que tal ação o faria sen-
aqui é com os fundamentos da moral em geral - tir-se bem. E não se sentiria culpado em fazer algo
até que ponto ela é universal e objetiva. errado, a menos que pensasse haver alguma ou-
Eu deveria responder a uma possível objeção tra razão para não agir dessa maneira, além do
à idéia da moral como um todo. Você provavel- fato de isso fazê-lo sentir-se culpado: alguma
mente já ouviu falar que a única razão que leva coisa que o fizesse sentir culpa com razão. Pelo
alguém a fazer alguma coisa é o fato de sentir-se menos, é assim que as coisas deveriam ser. É
bem ao fazê-Ia, ou de sentir-se mal por não fazê- verdade que algumas pessoas sentem uma culpa
Ia. Se fôssemos de fato motivados apenas por irracional a respeito de coisas que não têm ne-
nosso conforto, seria inútil para a moral tentar nhuma razão para pensar que são erradas - mas
apelar à preocupação com os outros. Segundo não é assim que a moral deveria funcionar.
esse ponto de vista, mesmo a conduta aparente- Num certo, sentido, as pessoas querem fazer
mente moral, na qual uma pessoa parece sacrifi- o que fazem. Mas suas razões e seus motivos para
car seus próprios interesses em benefício de querer fazer as coisas variam imensamente. Posso
outras, é na verdade motivada por sua preocupa- "querer" dar minha carteira a alguém só porque
ção consigo mesma: ela deseja evitar a culpa que ele tem uma arma apontada para minha cabeça
sentirá se não fizer a coisa "certa", ou experimen- e ameaça me matar se eu me recusar. E posso
tar o cálido fulgor da autocongratulação que ob- querer pular num rio gelado para salvar um es-
terá se fizer. Mas aqueles que não têm esses sen- tranho que está se afogando não porque isso me
timentos não têm motivos para ser "morais". fará sentir bem, mas apenas porque reconheço
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Justiça
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deliberadamente exclui pessoas de certa raça das beneficiadas que outras com os mesmos talentos
oportunidades de emprego, moradia e educação naturais.
acessíveis a pessoas de outra raça. E as mulheres E não é só isso. Num sistema competitivo, as
podem ser mantidas fora do mercado de traba- diferenças quanto aos talentos naturais produzi-
lho, ou impedidas de desfrutar privilégios a que rão grandes diferenças nos benefícios resultantes.
só os homens têm acesso. Aqui não se trata ape- Aqueles cujas habilidades são objeto de grande
nas de uma questão de má sorte. A discrimina- procura terão condições de obter rendimentos
ção racial e sexual é claramente injusta: é uma for- muito maiores do que aqueles sem nenhuma ha-
ma de desigualdade gerada por fatores que não bilidade ou talento especial. Essas diferenças tam-
deveriam interferir no bem-estar básico das pes- bém são, em parte, questão de sorte. Embora te-
soas. A eqüidade requer que tais oportunidades nhamos que desenvolver e usar nossas habilida-
sejam abertas aos que têm qualificação, e, sem des' nenhum esforço, por maior que seja, pode-
dúvida, é uma boa coisa quando os governos rá capacitar a maioria de nós a atuar como Meryl
tentam impor essa igualdade de oportunidade. Streep, pintar como Pablo Picasso ou fabricar
É mais difícil, no entanto, opinar sobre as automóveis como Henry Ford. Algo semelhante
desigualdades que se manifestam no curso nor- acontece com realizações menores. A sorte de
mal dos acontecimentos, sem discriminação ra- ter um talento natural e, ao mesmo tempo, de
cial ou sexual deliberada. Pois, mesmo que exis- pertencer a uma certa família ou classe é um
ta igualdade de oportunidade, e que qualquer importante fator para determinar os rendimentos
pessoa qualificada possa ingressar numa univer- e a posição social de alguém numa sociedade
. sidade, conseguir um emprego, comprar uma competitiva. Oportunidades iguais geram resul-
casa ou candidatar-se a cargos - a despeito de tados desiguais.
•. raça, religião, sexo ou etnia -, ainda assim resta- Essas desigualdades, ao contrário dos resul-
rão inúmeras desigualdades. As pessoas prove- tados da discriminação sexual e racial, são pro-
nientes de famílias mais abastadas geralmente duzidas por escolhas e ações que, em si, não pa-
terão melhor formação e mais recursos, e tende- recem erradas. As pessoas tentam suprir as ne-
rão a ser mais capazes de competir por bons cessidades de seus filhos e dar-lhes uma boa edu-
empregos. Mesmo num sistema de igualdade de cação, e algumas têm mais dinheiro que outras
oportunidades, algumas pessoas contarão com para destinar a esse propósito. Elas pagam pelos
vantagens logo de início e sairão, por fim, mais produtos, serviços e entretenimentos que dese-
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UIVIA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA JUSTIÇA
jam, e alguns fabricantes e artistas ficam mais ri- sequer tem chance de um dia vir a desfrutar uma
cos que outros porque o que têm a oferecer aten- situação econômica equivalente à das pessoas
de aos desejos de um número maior de pessoas. mais pobres da Europa, do Japão ou dos Esta-
Todos os tipos de negócios e organizações bus- dos Unidos. Essas grandes diferenças de boa e
cam contratar empregados que executem bem as má sorte parecem, sem dúvida, injustas; mas o
tarefas, e pagam salários mais altos para aqueles que se deveria fazer a respeito, se é que se de-
que têm habilidades especiais. Se um res~a~ran- veria fazer alguma coisa?
te está repleto de clientes e um outro, vizinho, Precisamos pensar tanto na desigualdade
está vazio, porque o primSiro tem um chejtalen- quanto na solução necessária para reduzi-Ia ou
toso e o segundo não, os clientes que escolhem eliminá-Ia. Com relação à desigualdade, a princi-
o primeiro restaurante e evitam o segundo não pal pergunta é: que causas da desigualdade são
estão agindo de maneira errada, embora suas es- erradas? Com relação à solução, a pergunta mais
colhas tenham uma conseqüência infeliz para o importante é: quais são os métodos certos para
proprietário e os empregados do segundo res- se interferir na desigualdade?
taurante, bem como para suas famílias. No caso da discriminação racial ou sexual
Tais efeitos são ainda mais incômodos quan- deliberada, as respostas são fáceis. A causa da
do deixam algumas pessoas em situação muito desigualdade é errada porque aquele que discri-
ruim. Em alguns países, grandes segmentos da mina está jazendo algo errado. E a solução é
população vivem na pobreza há gerações. Me~- simplesmente ímpedí-lo de fazer isso. Se um se-
mo, contudo, num país rico como os Estados Um- nhorio se recusa a alugar seu imóvel a negros,
" dos, muita gente inicia a vida com grandes des- deve ser processado por isso.
vantagens, devidas a fatores econômicos e edu- Mas em outros casos as questões são mais
"'" cacionais. Algumas pessoas conseguem superar difíceis. O problema é que as desigualdades que
essas desvantagens, mas seu êxito exige mais es- parecem erradas podem surgir de causas que
forço do que seria necessário se tivessem parti- não envolvem pessoas agindo errado. Parece in-
do de uma situação melhor. justo que alguém sofra desvantagens por razões
Mais perturbadoras, no entanto, são as enor- das quais não tem culpa, como nascer mais po-
mes desigualdades de riqueza, saúde, educação bre do que outro. Mas tais desigualdades exis-
e desenvolvimento entre países ricos e países po- tem porque algumas pessoas foram mais bem su-
bres. A maioria das pessoas neste mundo nem cedidas que outras em ganhar dinheiro e, assim,
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fazer o melhor que podiam para ajudar seus fi- procura. Pode ser que você não considere erra-
lhos. E, como as pessoas tendem a se casar com da a desigualdade ocasionada por esses fatores.
membros de sua própria classe social e econô- Mas, se acha que existe algo errado aí e que a
mica, elas acumulam riqueza e posição, que são sociedade deveria tentar reduzir esse tipo de de-
transmitidas depois de uma geração a outra. As sigualdade, então você deve propor uma solu-
ações que se combinam para gerar essas causas ção que intervenha nas próprias causas ou que
- escolhas profissionais, aquisições, casamentos, intervenha diretamente nos efeitos desiguais.
heranças e esforços para criar e educar os filhos Ora, como vimos, as causas em si incluem
- não parecem erradas em si. O que está errado, escolhas relativamente inocentes que as pessoas
se é que está, é o resultado: que algumas pessoas fazem com relação a como investir seu tempo e
comecem a vida com imerecidas desvantagens. dinheiro e como levar suas vidas. Interferir nas
Se rejeitamos esse tipo de má sorte por con- escolhas das pessoas sobre quais produtos com-
siderá-Ia injusta, deve ser porque não concorda- prar, como ajudar seus filhos, ou quanto pagar a
mos com que as pessoas sofram desvantagens seus empregados, é muito diferente de interferir
das quais não têm culpa e que são, meramente, em suas escolhas quando querem roubar bancos
resultado do funcionamento normal do sistema ou discriminar negros ou mulheres. Uma interfe-
socioeconômico em que nasceram. Alguns de rência mais indireta na vida econômica dos indi-
nós talvez acreditem também que toda má sorte víduos é a tributação, particularmente os impos-
que não seja culpa de alguém, tal como nascer tos sobre os rendimentos e a herança e alguns
com uma deficiência física, deve, se possível, ser impostos sobre o consumo, que podem ter em
compensada. Mas deixemos esses casos fora des- vista tirar mais dos ricos que dos pobres. Essa é
ta discussão. Quero me concentrar aqui nas de- uma das formas pelas quais o governo pode ten-
.. sigualdades imerecidas que resultam do modo tar evitar que se desenvolvam grandes desigual-
como operam a sociedade e a economia, parti- dades de riqueza ao longo das gerações - impe-
cularmente numa economia competitiva. dindo que as pessoas conservem para si todo o
As duas principais fontes de desigualdades dinheiro que têm.
imerecidas, como disse, são as diferenças de clas- Mais importante, porém, seria utilizar os re-
se socioeconômica em que as pessoas nascem, e cursos públicos obtidos com os impostos para
as diferenças de talentos ou habilidades naturais propiciar as vantagens da educação e da subsis-
para desempenhar tarefas pelas quais há muita tência às crianças de famílias que não têm con-
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dições de fazer isso por si sós. Os programas de ou às pessoas de rendimentos mais baixos. Po-
bem-estar social tentam fazer isso, usando a ren- deria incluir-se aqui o pagamento em dinheiro
da proveniente dos impostos para oferecer be- à,queles que têm uma capacidade de ganho infe-
nefícios básicos de assistência médica, alimenta- nor, na forma do chamado "imposto de renda
ção, moradia e educação. Esse é um ataque dire- negativo". Nenhum desses programas eliminaria
to às desigualdades. por completo as desigualdades imerecidas e
No caso das desigualdades que resultam de qualquer sistema de tributação terá outros efei-
diferenças de capacidade, não há muito o que se tos sobre a economia - efeitos sobre o emprego
possa fazer para intervir nas causas, além de eli- e a pobreza, inclusive - que talvez sejam difíceis
minar a economia competitiva. Enquanto hou- de prever. E complicada, portanto, essa questão
ver competição na contratação de pessoas para da solução.
os empregos, competição entre as pessoas pelos / .Voltemos nossa atenção para o aspecto filo-
empregos, competição entre as firmas pelos clien- sófico. as medidas necessárias para reduzir as
tes, alguns irão ganhar mais do que outros. A al- d~sigualdades imerecidas que têm origem nas
ternativa seria uma economia centralizada, na dIferenças de classe e de talento natural irão exi-
qual todos tivessem mais ou menos a mesma re- gir interferências nas atividades econômicas dos
muneração e houvesse uma autoridade centrali- indivíduos, sobretudo mediante a tributação: o
zada, por assim dizer, que designasse as pessoas governo tira dinheiro de algumas pessoas e o
para os trabalhos. Embora tenha sido experi- utiliza para ajudar outras. Esse não é o único uso
mentado, esse sistema impõe pesados ônus à que se faz dos impostos, nem mesmo o princi-
liberdade e à eficiência - pesados demais, na mi- pal: muitos impostos são destinados a coisas
nha opinião, para ser aceitável, ainda que outros que beneficiam mais aqueles que gozam de boa
, discordem. situação do que os pobres. Mas a tributação re-
Se pretendemos reduzir as desigualdades distributiva, como é chamada, é a mais relevan-
resultantes das diferenças de habilidade sem nos te para o nosso problema. Ela requer que o go-
livrar da economia competitiva, será necessário verno use seu poder para interferir naquilo que
atacar as próprias desigualdades. Isso poderia as pessoas fazem, não porque o que fazem seja
ser feito mediante uma tributação maior sobre errado em si, como o roubo ou a discriminação,
rendas mais altas e pelo fornecimento gratuito ~~s porque contribui para um efeito que parece
de alguns serviços públicos a toda a população, injusto.
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Algumas pessoas não concordam com a tri- Acredito que as desigualdades decorrentes
butação redistributiva, pois acham que o gover- de qualquer uma dessas causas são injustas. E é
no não deve interferir na vida das pessoas, a me- obviamente injusto que, por causa de um siste-
nos que elas estejam fazendo algo errado, e que ma econômico, algumas pessoas sofram signifi-
todas as transações econômicas que produzem cativas desvantagens materiais e sociais, das quais
essas desioualdades não são erradas, mas total- não têm culpa, quando isso pode ser evitado
mente inocentes. Às vezes sustentam também mediante um sistema de tributação redistributiva
que não há nada de errado com as desiguald~- e programas de bem-estar social, Mas, para deci-
des em si: que, embora sejam imerecidas e as VI- dir-se sobre essa questão, você precisa refletir
timas não tenham culpa, a sociedade não tem a sobre as causas da desigualdade que considera
obrigação de resolvê-Ias. A vida é assim, dirão injustas, e que soluções lhe parecem legítimas.
elas: algumas pessoas têm mais sorte que outras. Falamos aqui principalmente dç problema
O único momento em que temos de jazer algo a da justiça social dentro de uma certa sociedade.
respeito é quando o infortúnio é resultado de al- O problema é muito mais difícil quando aborda-
gum dano que uma pessoa causou a outra. do em escala mundial; primeiro, porque as desi-
Trata-se de uma questão política controver- gualdades são grandes demais e, segundo, por-
sa, sobre a qual há muitas opiniões diferentes. que não é claro quais soluções são possíveis, na
Algumas pessoas se opõem mais às desigualda- ausência de um governo mundial que pudesse
des que surgem do fato de se nascer numa certa arrecadar impostos mundiais e verificar se estão
classe socioeconômica do que às desigualdades sendo eficientemente utilizados. Não há nenhu-
resultantes de diferenças de talento ou habilida- ma perspectiva de um governo mundial, o que
de. Não aprovam as conseqüências geradas por também é bom, pois provavelmente seria um
uma pessoa nascer rica e outra numa favela, mas governo horrível em muitos aspectos. Embora o
,.. acham que uma pessoa merece os ganhos que problema da justiça global ainda persista, é difí-
pode obter com seus próprios esforços - de m~- cil saber o que fazer com relação a ele nesse sis-
do que não é injusto que uma pessoa ganhe .mu~- tema de Estados soberanos independentes que
to e outra ganhe muito pouco, porque a pnmei- temos hoje em dia.
ra tem talento ou capacidade para desenvolver
habilidades sofisticadas e a segunda só pode rea-
lizar trabalho não especializado.
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