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Uma breve introdução

à filosofia
Thomas Nagel

Tradução
SILVANA VlElRA

Martins Fontes
São Paulo 2007
This transknion of WI-IAT DOES IT ALL MEAN? originolly published
;11ElIglish in 1987. is pubtished hy arrangement with Oxford Universitv Press. l nc.
Esta tradução de WHAT DOES rr ALL MEAN? pubíicada originalmente
('til inglês em 1987. está sendo pnblicada por acordo com Oxford Universitv Press. lnc.
Copytight © 1987 hy Thomas Noget.
Cooyrtgtn © 2001, Livraria Marfins Fomes Editora LIda ..
São Paulo. para o presente edição.

11 edição 2001
21 edição 2007

Tradução
SILVANA VI EIRA

Revisão da tradução
Luzia Apon'ôdo dos Santos
Revisões grúficl.ls
Sanara Regina de SOIl:a
tvete Batista dos Sal/tos
Dinarte Zorzanelti da Silva
Produção gráfic:1
Gera/do Atves
l'aginação/Fololilos
Stndio 3 Desenvolvimento Editoríat

Dados Intcrnacionaís de Cnlalogação na Publicação (Crp)


(Cãmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Nngel, Thomas
Uma breve introdução à filosofia I Thomas ugcl : tradução
Silvnna Vicira ; [revisão da tradução Luzia Aparecida dos Santos].
- 2i! cd. - São Paulo: Manins Fontes, 2007.

Título original: What does it ali mcan?


ISBN 978-85-336·2372-9

I. Filosofia I. Título.

07-3194 CDD-IOO
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100

Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria Martins FOII/es Editora Lida.
RI/a Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (" )3241.3677 Fax (") 3/05.6993
e-mail: ill[o@marfillsfomesedifOra.com Iff(p://www.martill.\fonlesedilora.com
Índice

t Introdução........................................................ 1
2. Como sabemos alguma coisa? 7
. Outras mentes.................................................. 19
4. O problema mente-corpo 27
5. O significado das palavras 39
. Livre-arbítrio..................................................... 49
7. Certo e errado.................................................. 63
8. Justiça 81
9. Morte \,...................... 93
10. O significado da vida :............................ 101
1

Introdução

Este livro é uma breve introdução à filosofia


para aqueles que não conhecem nada sobre o as-
sunto. Geralmente, só se estuda filosofia quando
se chega à faculdade, e por isso suponho que a
maioria dos leitores deste livro ou estão em idade
de cursar a faculdade ou são pessoas mais ve-
lhas. Mas isso nada tem a ver com a natureza do
tema, e ficaria muito satisfeito ,se o livro desper-
tasse o interesse também de alunos inteligentes
do ensino médio que apreciam idéias abstratas
e argumentos teóricos - se algum deles chegar
a lê-lo.
Nossa ca acidade analítica geralmente já se en-
contra bastante desenvolvi a antes mesmo que
tenhamos aprendido muita coisa sobre o mundo, .
e por volta dos catorze anos muitos jovens co-
meçam a refletir sobre questões filosóficas por si
sós - sobre o que realmente existe, se podemos
chegar a saber alguma coisa, se existe algo que
seja realmente certo ou errado', se a vida tem al-

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UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA

gum significado, se a morte é o fim de tudo. Mui-


to se escreveu sobre essas questões ao longo des-
ses milhares de anos, mas a matéria-prima filo-
sófica nos é fornecida diretamente pelo mundo
e por nossa relação com ele, não pelos escritos
do passado. É por isso que esses temas surgem
repetidas vezes na cabeça de pessoas que' nunca
leram nada a respeito deles.
Esta é uma introdução direta a nove proble-
mas filosóficos, cada um dos quais pode ser en-
tendido por si mesmo, sem referência à história
do pensamento. Não discutirei aqui os grandes
tratados filosóficos do passado, nem o contexto
cultural em que foram escritos. O cerne da filo~
sofia reside em certas indagações que a reflexiva
mente humana considera naturalmente intrigan-
tes, e a melhor forma de iniciar o estudo da filo-
sofia é pensar sobre elas diretamente. Feito ísso.;
você estará mais bem preparado para apreciar o
trabalho de outras pessoas que tentaram resolver
os mesmos problemas.
A filosofia é diferente da ciência e da mate-
mática. Ao contrário da ciência, ela não se apóia
em experimentos ou na observação, mas apenas
na reflexão. E, ao contrário da matemática, não
dispõe de nenhum método formal de verificação.
Ela se faz pela simples indagação e argüição, en-
saiando idéias e imaginando possíveis argumen-
tos contra elas, perguntando-nos até que ponto
nossos conceitos de fato funcionam.

2
I TRODUÇÃO

r A principal ocupação da filosofia é questio-


nar e entender idéias muito comuns que todos
nós usamos no dia-a-dia sem nem sequer refletir
sobre elas. O historiador perguntará o que acon-
teceu em determinado tempo do passado, en-
quanto o filósofo indagará: "O que é o tempo?"
O matemático investigará as relações entre os
números, ao passo que o filósofo perguntará: "O
~ que é um número?" O físico desejará saber de que
são feitos os átomos, ou como se explica a gra-
vidade, mas o filósofo indagará como podemos
saber se existe alguma coisa fora da nossa men-
te. O psicólogo talvez pesquise como a criança
aprende a linguagem, mas a indagação do filó-
sofo será: "O que dá sentido a uma palavra?" Al-
guém pode perguntar se é certo entrar sorratei-
ramente no cinema e assistir ao filme sem pagar,
mas o filósofo perguntará: "O, que faz com que
uma ação seja certa ou errada?"
\... Não iríamos muito longe se não tivéssemos
como certas as idéias de tempo, número, conhe-
cimento, linguagem, certo e errado a maior par-
te do tempo; mas na filosofia investigamos essas
coisas em si. O objetivo é aprofundar um pouco
mais nossa compreensão do mundo e de nós mes-
mos. Obviamente, não é uma tarefa fácil. Quan-
to mais básicas as idéias que tentamos investi-
gar, menos são os instrumentos de que dispomos
para nos ajudar. Não há muita coisa que possa-
mos dar por certa ou garantida. Assim, a filoso-

3
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

fia é uma atividade um tanto vertiginosa, e pou-


cos de seus resultados permanecem incontesta-
dos por muito tempo.
Como acredito que a melhor forma de apren-
der filosofia é refletir sobre questões particulares,
não direi mais nada sobre sua natureza geral. Os
nove problemas que vamos examinar são os
seguintes:

o conhecimento do mundo além da nossa mente


O conhecimento de outras mentes além da nossa
A relação entre mente e cérebro
Como a linguagem é 'possível
Se temos livre-arbítrio
O fundamento da mora I
Que desigualdades são injustas
A natureza da morte
O significado da vida

Trata-se apenas de uma seleção, pois há mui-


tas outras questões em filosofia.
( O que eu disser aqui será reflexo da minha
própria visão acerca desses problemas e não re-
presentará, necessariamente, o pensamento da
maiOria dos filósofos. Seja como for, não há nada,
provavelmente, que seja compartilhado pela maio-
ria dos filósofos ao refletirem sobres essas ques-
tões: os filósofos divergem, e há mais de dois la-
dos para cada questão filosófica. Minha opinião
pessoal é que a maior parte desses problemas

4
INTRODUÇÃO

nã foi resolvida, e alguns deles talvez jamais o


~ .jarn. Mas o objetivo aqui não é fornecer res-
P tas - nem mesmo respostas que eu possa
, nsiderar corretas - mas apresentar os proble-
ma de maneira bastante preliminar, para que
v cê possa ocupar-se deles por si só. Antes de
,Iprender muitas teorias filosóficas, é melhor en-
r dar-se nas questões filosóficas a que essas teo-
rias buscam responder. E a melhor forma de fa-
zê -10 é examinar algumas soluções possíveis e
v r o que há de errado com elas. Tentarei deixar
a questões em aberto, mas, ainda que eu diga o
ue penso, você não tem por que acreditar em
mim, a menos que considere meu argumento
onvincent~
Existem muitos textos introdutórios excelen-
L s, que incluem coletâneas dos grandes filóso-
r s do passado e de escritos mais recentes. Este
livro conciso não substitui essa abordagem, mas
spero que propicie um primeiro contato com o
assunto que seja tão claro e direto quanto possí-
vel. Se, depois de sua leitura, você resolver apro-
fundar-se um pouco mais, verá que há muito
mais a dizer sobre esses problemas do que foi
dito aqui.

5
2

Como sabemos
alguma coisa?

Se você pensar bem, verá que o interior da sua


mente é a única coisa da qual pode ter certeza.
Qualquer coisa em que você acredite - seja
a respeito do Sol, da Lua, das estrelas, da casa e
da vizinhança em que você vive, seja sobre his-
t' ria, ciência, outros povos, até sobre a existên-
ia de seu próprio corpo - está baseada em suas
xperiências e pensamentos, sentimentos e im-
pressões sensoriais. Essas são as únicas evidências
m que você pode se basear diretamente, seja ao
v r o livro em suas mãos, ao sentir o chão sob
s us pés, ou ao lembrar que George Washington
foi o primeiro presidente dos Estados Unidos,
u que a água é HzO. Todo o resto está mais
listante de você do que suas experiências inter-
nas e seus pensamentos, e somente chega a você
através deles.
Geralmente você não duvida da existência
10 chão sob seus pés, ou da árvore que vê pela
janela, ou dos seus dentes. Na verdade, na maior

7
UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA

parte das vezes você nem sequer pensa nos es-


tados de espírito que o fazem perceber essas coi-
sas: parece que você as percebe diretamente. Mas
como sabe que elas realmente existem?
Se tentar argumentar que deve existir um
mundo físico externo, porque, se não houvesse
coisas lá fora que refletissem ou difundissem luz
nos seus olhos, produzindo suas experiências vi-
suais, você não poderia ver os edifícios, as pes-
soas ou as estrelas, a resposta é óbvia: Como sa-
be dissci É apenas mais uma afirmação sobre o
mundo externo e sua relação com ele, e precisa
estar baseada nas evidências dos seus sentidos.
Mas você só poderá confiar nessas evidências
especificas sobre como se produzem as experiên-
cias visuais se já puder confiar, de maneira ge-
ral, no conteúdo da sua mente para lhe dizer
como é o mundo externo. E é exatamente isso
que está em questão. Se tentar provar a credibili-
dade das suas impressões recorrendo a suas im-
pressões, estará argumentando em círculo e não
chegará a lugar algum.
Será que as coisas lhe pareceriam diferentes
se, de fato, todas elas existissem apenas na sua
mente - se tudo o que você julgasse ser o mun-
do externo real fosse apenas um sonho ou aluci-
nação gigante, de que você jamais fosse desper-
tar? Se assim fosse, então é claro que você nunca
poderia despertar, como faz quando sonha, pois
significaria que não há mundo "real" no qual des-

8
COMO SABEMOS ALGUMA COISA'

p rtar. Logo, não seria exatamente igual a um so-


nho ou alucinação normal. Costumamos pensar
n sonhos como algo que acontece na mente
Ia pessoas quando elas estão deitadas numa
'ama real, numa casa real, mesmo que no sonho
.stejam fugindo de um cortador de grama assas-
xin pelas ruas de Kansas City. Também pressu-
I mos que os sonhos normais têm a ver com o
ILI está acontecendo no cérebro do sonhador
-nquanto ele dorme.
Mas será que todas as nossas experiências
nã poderiam ser um sonho gigante, sem ne-
uburn mundo fora dele? Como você pode saber
Iu não é assim? Se todas as suas experiências
r s m um sonho e não houvesse nada do lado
I ' fora, então qualquer evidência que você ten-
Ias utilizar para provar a si mesmo que há um
mundo externo apenas faria parte do sonho. Se
o
,A batesse na mesa ou se beliscasse, ouviria a
batida e sentiria o beliscão, mas isso seria ape-
nas mais uma coisa acontecendo dentro da sua
111 .nt , como tudo o mais. Não adianta: se você

qu 'r descobrir se o que há dentro da sua mente


s -rv de guia para o que está fora dela, não pode
,Ij oiar-se no que as coisas parecem ser - a partir
do int rior da sua mente - para obter uma res-
posta.
Mas onde mais se apoiar? Todas as evidên-
('i:ls acerca de qualquer coisa têm de vir através
(l.I sua mente - seja na forma de percepção, seja

9
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

como testemunhos de livros e de outras pessoas,


seja como memória -, e tudo aquilo de que você
tem ciência é inteiramente compatível com a idéia
de que não existe absolutamente nada que não
seja o interior da sua mente.
É possível até que você não tenha corpo nem
cérebro - já que suas crenças sobre isso vêm da
evidência fornecida pelos seus sentidos. Você
nunca viu seu cérebro - simplesmente admite que
todos têm um cérebro -, mas, ainda que o tenha
visto, ou pense que o viu, seria apenas mais uma
experiência visual. Talvez você, o sujeito da ex-
periência, seja a única coisa que existe, e não haja
absolutamente nenhum mundo físico - nem es-
trelas, nem Terra, nem corpos humanos. Talvez
nem mesmo o espaço exista.
A conclusão mais radical que se poderia tirar
disso tudo é que sua mente é a única coisa que
existe. Essa visão é chamada de solipsismo. É uma
visão muito solitária, e poucas pessoas a susten-
tam. Como você pode perceber por esse comen-
tário, nem mesmo eu a sustento. Se eu fosse um
solipsista, provavelmente não escreveria este li-
vro, pois não acreditaria que houvesse outra pes-
soa para Iê-lo. Por outro lado, talvez o escrevesse
para tornar minha vida interior mais interessan-
te, ao incluir a impressão de ter o livro publica-
do, de haver outras pessoas que poderiam lê-lo
e contar-me suas reações, e assim por diante. Se
tivesse sorte, poderia até ter a impressão de re-
ceber direitos autorais.

10
COMO SABEMOS AlGUMA COISA?

Talvez você seja um solipsista: nesse caso,


I .n ará que este livro é produto de sua própria
m nte, ganhando existência em sua experiência
; medida que você o lê. É óbvio que nada do
[u eu disser poderá provar-lhe que eu real-
111 nte existo, ou que o livro, como objeto físi-
, ,existe.
Por outro lado, concluir que você é a únic;'o
.oisa que existe está além do que a evidência
I de comprovar. Você não pode saber, com base
n que se passa dentro da sua mente, que não
, iste nenhum mundo fora dela. Talvez a con-
'lu ão correta seja a mais modesta, a de que você
n10 conhece nada além de suas impressões e
, p riências. Pode existir ou não um mundo ex-
l 'mo, e, se existe, ele pode ser ou não comple-
tamente diferente do que lhe parece - você não
I m como saber. Essa visão é denominada ceti-
-/
.ismo acerca do mundo externo.
É possível uma forma ainda mais acentuada
I ceticismo. Argumentos similares parecem de-
m nstrar que você não sabe nada nem mesmo
a' rca de sua própria existência ou experiência
I assada, uma vez que tudo em que você pode
se apoiar são os conteúdos presentes na sua
111 mte, incluindo as impressões da memória. Se

nao pode ter certeza de que o mundo fora da sua


111 ente existe agora, como pode ter certeza de que
vo 'ê mesmo existia antes? Como sabe que não
passou a existir alguns minutos atrás, já comple-

11
UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

to, com todas as suas memórias presentes? A úni-


ca evidência de que você não poderia ter come-
çado a existir há alguns minutos baseia-se em
crenças sobre como as pessoas e suas memórias
são produzidas, o que, por sua vez, baseia-se em
crenças sobre o que aconteceu no passado. Mas
apoiar-se nessas crenças para provar que você
existia no passado seria, mais uma vez, argumen-
tar em círculo. Seria pressupor a realidade do pas-
sado para provar a realidade do passado.
Parece que você não consegue livrar-se do
fato de que não pode ter certeza de nada, a não
ser dos conteúdos dà sua própria mente no mo-
mento presente. E parece que qualquer argumen-
to que você tente usar para sair desse impasse
irá falhar, pois o argumento terá de pressupor o
que você está tentando provar ~ a existência do
mundo externo à sua mente ..
Suponha, por exemplo, que você argumente
que deve haver um mundo externo, porque é
impossível acreditar que você tenha todas essas
experiências sem que haja alguma explicação
em termos de causas externas. O cético pode
responder a isso de duas formas. Primeiro, mes-
mo que existam causas externas, como você pode
saber, pelo conteúdo da sua experiência, que
causas são essas? Você nunca observou nenhu-
ma delas diretamente. Segundo, em que se ba-
seia sua idéia de que deve haver uma explicação
para tudo? É verdade que, em sua concepção no r-

12
COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

mal e não filosófica do mundo, processos com


s que se desenrolam em sua mente são ocasio-
nados, pelo menos em parte, por coisas exter-
nas. Mas você não pode pressupor que isso seja
rdade, se o que está tentando descobrir é
, mo sabe alguma coisa sobre o mundo fora da
S I mente. Não há como provar tal princípio sim-
I 1 smente examinando o que vai dentro da sua
111 nte. Por mais plausível que o princípio possa

parecer, que razões você tem para acreditar que


'I se aplica ao mundo?
A ciência também não nos ajudará a resolver
e problema, ao contrário do que pode pare-
r. No pensamento científico usual, confiamos
m princípios gerais de explicação para passar-
mos da maneira como o mundo nos parece à pri-
111 ira vista para uma concepção diferente sobre
aquilo que ele realmente é. Tentamos explicar
a aparências em termos de-urna teoria que des-
reva a realidade por trás delas, uma realidade
que não podemos observar diretamente. É assim
que a física e a química concluem que todas as
. isas que vemos à nossa volta são compostas
de átomos invisivelmente pequenos. Poderíamos
argumentar que a crença geral no mundo exter-
no tem o mesmo tipo de respaldo científico que
a crença nos átomos?
O cético responderia que o processo do ra-
ciocínio científico levanta o mesmo problema cé-
tico que estivemos examinando desde o início: a

13
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

ciência é tão vulnerável quanto a percepção. Co-


mo saber que o mundo fora de nossas mentes
corresponde a nossas idéias do que seria uma
boa explicação teórica para nossas observações?
"'Se não podemos estabelecer a confiabilidade de
nossas experiências sensoriais em relação ao mun-
do externo, também não há razão para pensarmos
aue podemos confiar em nossas teorias científicas.
Há uma outra resposta, muito diferente, para
o problema. Alguns diriam que esse tipo de ceti-
cismo radical que mencionei não faz sentido,
pois a idéia de uma realidade externa que nin-
guém nunca pudesse descobrir não faz sentido.
Argumenta-se queo sonho, por exemplo, tem de
ser algo do qual você possa acordar para desco-
brir que esteve dormindo; uma alucinação tem
de ser algo que os outros (ou você, mais tarde)'
possam ver que não está ali de fatorAs impres-
sões e aparências que não correspondem à rea-
lidade têm de ser comparadas com outras que
correspondam de fato à realidade; do contrário,
a distinção entre aparência e realidade não faz
sentido j,
Segundo esse ponto de vista, a idéia de um
sonho do qual nunca se pode acordar não é, em
absoluto, a idéia de sonho: é a idéia de realida-
de - o mundo real em que se vive. Nossa idéia
acerca das coisas que existem é simplesmente
nossa idéia do que podemos observar. (Essa vi-
são é chamada, às vezes, de verificacionismo.)

14
COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

AI umas vezes, nossas observações são equivo-


'adas, mas isso significa que podem ser corrigi-
Ias por outras observações - como acontece
[uando você desperta de um sonho ou descobre
lue o que pensava ser uma cobra era apenas
uma sombra na relva. Contudo, se não houver
alguma possibilidade de existir uma visão corre-
ta (sua ou de outra pessoa) acerca de como as
isas são, não fará sentido a idéia de que suas
impressões do mundo não são verdadeiras.
Se isso está certo, então o cético se ilude ao
imaginar que a única coisa que existe é sua pró-
pria mente. Ele se ilude porque não poderia ser
verdade que o mundo físico realmente não exis-
te, a menos que alguém pudesse observar que
não existe. E o que o cético tenta imaginar é pre-
cisamente que não há ninguém para observar isso
ou qualquer outra coisa - exceto, é claro, o pró-
prio cético, e tudo o que ele pode observar é o
interior de sua própria mente. Assim, o solipsismo
não faz sentido. Ele tenta subtrair o mundo ex-
terno da totalidade das minhas impressões; mas
fracassa, porque, se o mundo externo é suprimido,
elas deixam de ser meras impressões para tor-
nar-se, em vez disso, percepções da realidade.
fEsse argumento contra o solipsismo e o ceti-
cismo tem alguma serventia? Não, a menos que
a realidade possa ser definida como aquilo que
podemos observar. Mas seremos mesmo incapa-
zes de entender a idéia de um mundo real, ou

15
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

um fato acerca da realidade, que não pode ser


observado por ninguém, humano ou não?
O cético dirá que, se existe um mundo ex-
terno, as coisas nele são observáveis porque exis-
tem, e não o contrário: existência não é o mes-
mo que observabilidade. E, embora nossa idéia
sobre sonhos e alucinações se baseie em situa-
ções nas quais julgamos poder observar o con-
traste entre as nossas experiências e a realidade,
temos a impressão de que a mesma idéia pode
estender-se a situações nas quais a realidade não
é observá vel.
Se é assim, não parece então absurdo pensar
que o mundo pode consistir apenas no interior
da sua mente, ainda que nem você nem ninguém
possa descobrir se isso é verdade. E, se isso não
é absurdo, mas uma possibilidade a ser conside-
rada, parece que não existe maneira de provar
que ela é falsa sem argumentar em círculo. Por-
tanto, talvez não haja como escapar da prisão de
sua mente. Isso é o que se chama, às vezes, de

r
dilema egocêntrico.
Dito tudo isso, no entanto, tenho de admitir
que é praticamente impossível levar a sério a idéia
de que todas as coisas que vemos no mundo à
nossa volta na realidade podem não existir. Nos-
sa aceitação do mundo externo é instintiva e po-
derosa: argumentações filosóficas não bastam
para livrar-nos dela. Não apenas continuamos a
agir como se as outras pessoas e coisas existis-

16
COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

,', -m. acreditamos que existem mesmo depois de


I 'I'In aceitado argumentos que pareçam mos-
I I.r r ue não temos razão para sustentar tal cren-
.r. No âmbito do nosso sistema geral de crenças
.'l( lhr o mundo, podemos ter razões para susten-
1.1 r .r nças mais particulares sobre a existência
(I . , isas particulares, como um rato numa testa
I I ' lã, por exemplo. Mas isso é outra coi-sa. Tal
I r 'r a pressupõe a existência do mundo externo.)
uma crença no mundo fora de nossas
111 -nt s se apresenta a nós de maneira tão natu-.
r, ri, talvez não necessitemos de razões para sus-'
I '111ft-Ia.Podemos simplesmente aceitá-Ia e es-
I 'ra r que estejamos certos. É isso que a maioria
d,IS p ssoas faz, na verdade, depois que desis-
11'1ll I tentar prová-Ia: embora não possam opor
I.IZ(' ao ceticismo, também não conseguem
.« 'il'Í-JO. Isso quer dizer, porém, que nos agarra-
111( >sà nossas crenças habituais sobre o mundo
,I (I .speito do fato de que (a) elas podem ser to-

r.rlm .nte falsas, e (b) não temos fundamento


1>,1 r;r lescartar essa possibilidade.
I~estam-nos, portanto, três questões:

• I. Existe uma possibilidade significativa de


que o interior da sua mente seja a única coi-
sa que existe? Ou, mesmo que exista um
mundo fora da sua mente, que ele seja
completamente diferente daquilo em que
você acredita?

17
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

2. Se essas coisas são possíveis, há alguma


maneira de provar para você mesmo que
elas não são, de fato, verdadeiras?
3. Se você não pode provar que existe algu-
ma coisa fora da sua mente, é certo conti-
nuar acreditando no mundo externo, mes-
mo assim?

18
3
Outras mentes

..
Há um tipo especial de ceticismo que contí-
nua a ser um problema mesmo que você admita
que sua mente não é a única coisa que existe -
que o mundo físico que você aparentemente vê
e sente ao seu redor, até mesmo seu próprio cor-
po, de fato existe. Trata-se do ceticismo quanto
à natureza ou mesmo quanto à existência de ou-
tras mentes ou experiências além da sua.
O que você sabe, de fato, sobre o que se pas-
sa na mente de outra pessoa? A única coisa que
você observa com clareza são os corpos dos
outros seres vivos, incluindo as pessoas. Você vê
o que eles fazem, ouve o que dizem e os outros
sons que produzem, e observa o modo como
respondem ao ambiente que os cerca - que tipo
de coisas os atrai e repele, o que comem, e as-
sim por diante. Você pode também abrir os cor-
pos de outros seres vivos e examiná-Ios por den-
tro, talvez até comparar a anatomia deles com
a sua.

19
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA OUTRAS MENTES

Mas nada disso lhe dará acesso direto às ex- te tem para o seu amigo o mesmo sabor que a
periências, pensamentos e sentimentos que eles baunilha tem para você, e vice-versa?
têm. A única experiência que você pode ter, na A mesma pergunta poderia ser feita com re-
verdade, é a sua própria: se acredita que existe lação a outros tipos de experiência. Como saber
alguma vida espiritual nas outras pessoas, essa que os objetos vermelhos não têm, ~ara o seu
crença se baseia na sua observação do compor- amigo, a mesma apa;ência que os obJ:tos ama-
tamento e da constituição física delas. relos têm para você? E claro que, se voce lhe ~er-
Citemos um exemplo simples: quando você guntar qual é a cor de um carro de bombeH.?,
e um amigo estão tomando sorvete de chocola- ele dirá que é vermelho, como o sangue, e nao
te, como saber se o sorvete tem para ele o mes- amarelo, como um girassol; mas isso porque ele,
mo sabor que tem para você? Você pode provar assim como você, usa a palavra "vermelho" para
o sorvete dele, mas, se tiver o mesmo gosto que se referir à cor que o sangue e os carros de bom-
o seu, isso significará apenas que para você o beiros têm para ele, seja ela qual for. Talvez seja
sabor é o mesmo: não quer dizer que experimen- a cor que você chama de amarelo, ou ~z~l, o~
tou o sabor que tem para ele. Ao que parece, talvez uma experiência de cor que voce Jamals
não há como comparar diretamente as duas ex- teve e nem sequer pode imaginar.
periências de sabor. Para negar isso, você precisará recorrer ao
Você pode dizer, é claro, que, sendo ambos pressuposto de que as experiê~cias ~e cor e sa-
seres humanos, com capacidade para distinguir bor apresentam uma correlaçao umforme .com
entre diferentes sabores de sorvete - por exem- certos estímulos físicos dos órgãos dos sentidos,
plo, ambos podem perceber a diferença entre independentemente de quem os experi~e~t~.
chocolate e baunilha de olhos fechados -, é pro- Mas o cético diria que não há o menor indícío
vável, então, que suas experiências de sabor se- de que assim seja, e, devido ao próprio tip? d:
jam semelhantes. Mas como sabê-Io? A única re- pressuposto, você não poderia ter nenhum mdl:
lação que você já observou entre um tipo de sor- cio que o comprovasse. A única coisa que voce
vete e um certo sabor se deu em você mesmo· , pode observar é a correlação que se estabelece
assim, o que o leva a pensar que correlações si- em você.
milares são válidas também para os demais seres Diante de tal argumento, pode-se admitir aqui
humanos? Dados os indícios disponíveis, não se- um certo grau de incerteza. A correlação entre
ria igualmente coerente imaginar que o chocola- estímulo e experiência pode não ser exatamente

20 21
UMA BREVE I TRODUÇÃO Ã FILOSOFIA OUTRAS MENTES

I igual para cada um: a experiência de COr ou sa- que você sabe, a experiência dele poderia ser al-
bor de duas pessoas que provam o mesmo tipo go que você chamaria de som - ou talvez ser di-
de sorvete pode apresentar ligeiras variações. ferente de tudo o que você já experimentou ou
Na verdade, uma vez que as pessoas são fisica- poderia imaginar.
mente diferentes entre si, isso não surpreende- Se continuarmos nesse caminho, seremos le-
ria. Você poderia dizer, contudo, que as diferen- vados, finalmente, ao ceticismo mais radical, que
ças não podem ser assim tão radicais, pois, do é o ceticismo quanto à existência de outras men-
contrário, poderíamos percebê-Ias. Por exem- tes. Corno você sabe que seu amigo é conscien-
plo, o sorvete de chocolate não poderia ter para te? Como sabe que existem outras mentes além
o seu amigo o mesmo sabor que um limão tem da sua?
para você, senão, ao prová-Io, ele franziria a boca. O único exemplo da correlação entre mente,
Note, porém, que essa afirmação pressupõe comportamento, anatomia e ocorrências físicas
uma outra correlação para cada pessoa: a corre- que você já observou diretamente é você mes-
lação entre a experiência interna e certos tipos de mo. Mesmo que as outras pessoas e os animais
reações observáveís. E, nesse caso, surge a mes- não tivessem nem uma única experiência, ne-
ma questão. Você já observou que, ao provar o nhuma vida mental interior, mas fossem apenas
sabor que chama de azedo, sua boca se contrai; máquinas biológicas sofisticadas, ainda assim te-
mas como saber que o mesmo acontece com ou- riam para você exatamente a mesma aparência.
tras pessoas? Talvez a experiência que faz seu Então, como sabe que eles não são assim? Como
amigo franzir a boca seja semelhante àquela que sabe que os seres à sua volta não são todos ro-
você tem quando come farinha de aveia. bôs destituídos de mente? Você jamais viu o inte-
Se insistirmos nesses tipos de pergunta, pas- rior da mente deles - nem poderia -, e o compor-
saremos de um ceticismo brando e inofensivo tamento físico que apresentam poderia ser pro-
sobre se o sorvete de chocolate tem ou não exa- duzido por causas meramente físicas. Talvez seus
tamente o mesmo sabor para você e seu amigo parentes e vizinhos, seu gato e seu cachorro não
para um ceticismo mais radical sobre se existe tenham nenhuma experiência interna. E, se não
ou não alguma semelhança entre as suas expe- têm, você não terá como saber.
riências e as dele. Quando ele põe algo na boca, Você nem sequer pode recorrer ao modo
como você sabe que a experiência que ele tem é como se comportam, nem ao que eles dizem, pois
do mesmo tipo que você chamaria de sabor? Pelo isso seria admitir que neles, como em você, o

22 23
OUTRAS MENTES
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

Ias pessoas acredita que as plantas não são cons-


c?m.portamento externo está ligado à experiên-
íentes; tampouco as rochas, os lenços de papel,
era interna; e é precisamente isso o que você
automóveis, os lagos nas montanhas e os
não sabe.
cigarros. Citando ainda um outro exemplo bioló-
Considerar a possibilidade de que nenhuma
gico, a maioria de nós diria que as células indivi-
das pes~oas que o rodeiam é consciente produz
duais que compõem nossos corpos não têm
um sentm~ento estranho. Se, por um lado, pare-
nenhuma experiência consciente.
ce conceblv~l.- e nenhum indício que você possa
Como sabemos todas essas coisas? Como
obter excluiria definitivamente essa hipótese -
você sabe que, quando corta o galho de uma ár-
P?r outro, não é realmente possível acredita;
vore ela não sente dor? Talvez não expresse sua
russo. Sua convicção de que existem mentes nes-
dor ~orque não pode se mexer. (Ou, talvez, ela
ses corpos,. visão por trás desses olhos, audição
adore ser podada.) Como sabe que as células
nesses OUVI?O~ etc. é instintiva. Mas, se a força
musculares do seu coração não sentem dor ou
de tal convicçao provém do instinto, podemos
euforia quando você sobe as escadas correndo?
falar.em conhecimento real? No momento em que
Como sabe que um lenço de papel não sente
a~m~te a possibilidade de que a crença na exis-
nada quando você assoa o nariz nele?
tencía de outras mentes é equivocada você não
E os computadores? Imagine que um dia se
precisará de algo mais confiável para justificar
desenvolvam computadores capazes de contro-
sua adesão a ela?
lar robôs com aparência de cachorros, que rea-
Há u~ outro aspecto, nessa questão, que to-
gem ao meio ambiente de maneiras complexas
ma uma direção totalmente oposta.
e se comportam, em muitos aspectos, exatamen-
Acreditamos, de maneira geral, que os outros
te como os cachorros, embora por dentro sejam
seres. humanos são conscientes, e quase todos
apenas um monte de circuitos e chips de silício.
acredlta~ qu: os demais mamíferos e os pássa-
Haveria algum modo de saber se essas máquinas
ros tambem sao conscientes. Mas as pessoas di-
eram ou não conscientes?
~ergem. sobre se os peixes, insetos, vermes e
É claro que são exemplos muito diferentes
aguas-vrvas são também conscientes. E a maior
uns dos outros. Se uma coisa é incapaz de se
parte duvida de que os animais unicelulares, como
mover, ela não pode oferecer nenhum indício
amebas e paramécios, têm experiências conscien-
de comportamento sobre o que sente ou perce-
te~, embora essas criaturas reajam, de maneira
be. E, se não for um organismo natural, terá uma
evidente, a vários tipos de estímulos. A maioria

25
24
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

constituição interna totalmente diferente da nos-


sa. Mas que razões temos para pensar que so-
mente as coisas que se comportam mais ou me-
nos como nós, e que têm uma estrutura física
observável mais ou menos como a nossa, são
capazes de ter algum tipo de experiência? Tal-
vez as árvores sintam as coisas de um modo to-
talmente diferente do nosso, mas não podemos
saber, pois, no caso delas, não temos como des-
cobrir as correlações entre experiência e mani-
festações observáveis, ou condições físicas. Só
poderíamos descobrir essas correlações se ob-
servássemos ao mesmo tempo as experiências e
as manifestações externas, mas não há como
observar as experiências diretamente, a não ser
em nós mesmos. Pela mesma razão, não seria
possível observar a ausência de experiência e,
conseqüentemente, a ausência de tais correlações,
em nenhum outro caso. Não se pode olhar den-
tro de uma árvore para dizer que ela não tem ex-
periência, da mesma forma que não se pode olhar
dentro de um verme para dizer que ele tem ex-
periência.
Então, a questão é: o que você realmente sabe
sobre a vida consciente neste mundo, além do
fato de que você tem uma mente consciente? É
possível que haja bem menos vida consciente do
que você supõe (nenhuma a não ser a sua), ou
bem mais do que poderia imaginar (até mesmo
nas coisas que presume serem inconscientes)?

26
4

o problema mente-corpo

Esqueçamos o ceticismo e admitamos que o


mundo físico existe, até mesmo seu corpo e cére-
bro; e deixemos de lado nosso ceticismo quanto
à existência de outras mentes. Admito que você
é consciente, se você admitir que eu também sou.
Ora, qual pode ser a relação entre a consciência
e o cérebro?
Todos sabem que o que acontece na cons-
ciência depende do que acontece ao corpo. Se
você der uma topada com o dedo do pé, ele irá
doer. Se você fechar os olhos, não poderá ver o
que há na sua frente. Se morder uma barra de cho-
colate, sentirá o sabor do chocolate. Se alguém
der uma pancada na sua cabeça, você poderá
desmaiar.
Ao que tudo indica, para que alguma coisa
aconteça em sua mente ou consciência, é preci-
so que algo aconteça no seu cérebro. (Você não
sentiria dor ao bater o dedão se os nervos que
correm por sua perna e coluna não transmitis-

27
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MENTE-CORPO

sem impulsos do dedo ao cérebro.) Não sabemos o que acontece, por exemplo, quando você
o que se passa no cérebro quando você pensa: morde uma barra de chocolate? O chocolate der-
"Será que vou ter tempo de cortar o cabelo hoje rete na sua língua e produz alterações químicas
à tarde?" Mas temos certeza de que algo aconte- . nas suas papilas gustativas; as papilas gustativas
ce - alguma coisa que envolva alterações quími- enviam impulsos elétricos pelos nervos que li-
cas e elétricas nos bilhões de células nervosas gam a língua ao cérebro e, quando esses impul-
que compõem o seu cérebro. sos chegam ao cérebro, produzem ali mais alte-
Em alguns casos, sabemos de que maneira o rações físicas; e, finalmente, você sente o gosto do
cérebro afeta a mente e de que maneira a mente chocolate. O que é issci Seria uma simples ocor-
afeta o cérebro. Sabemos, por exemplo, que cer- rência física em alguns dos seus neurônios, ou
tas células cerebrais próximas da nuca, quando será algo completamente diferente?
recebem determinado estímulo, produzem ex- Se um cientista retirasse a tampa do seu crâ-
periências visuais. E sabemos que, quando você nio e olhasse o interior do seu cérebro enquan-
decide servir-se de mais um pedaço de bolo, to você come a barra de chocolate, a única coisa
certas outras células cerebrais enviam impulsos que ele veria é uma massa cinzenta de neurônios.
aos músculos do seu braço. Desconhecemos mui- Se ele usasse instrumentos para medir o que
tos dos detalhes, mas é evidente que existem re- acontece ali dentro, detectaria vários processos
lações complexas entre o que acontece na sua
físicos diferentes e complexos. Mas encontraria
mente e os processos físicos que se desenca-
o sabor do chocolate?
deiam .no seu cérebro. Até aqui, tudo o que foi
Ao que parece, ele não o encontraria no seu
dito é assunto da ciência, não da filosofia.
cérebro, porque sua experiência de saborear o
Mas há também uma indagação filosófica
chocolate está de tal forma tranca da dentro da
sobre a relação entre mente e cérebro, que é a
sua mente, que não pode ser observada por nin-
seguinte: a mente é diferente do cérebro, embo-
ra esteja vinculada a ele, ou ela é o cérebro? Seus guém - mesmo que ele abra seu crânio e exami-
pensamentos, sentimentos, percepções, sensações ne dentro do seu cérebro, Suas experiências es-
e desejos são coisas que acontecem além de to- tão no interior da sua mente com um tipo de in-
dos os processos físicos que ocorrem no seu cé- terioridade que é diferente do modo como seu
rebro, ou são, elas próprias, alguns desses pro- cérebro está no interior da sua cabeça. Uma ou-
cessos físicos? tra pessoa pode abrir sua cabeça e observar o que

28 29
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
o PROBLEMA MENTE-CORPO

há dentro dela, mas não pode abrir sua mente e tes: um organismo físico complexo e uma alma
puramente mental. (Essa visão é chamada de dua-
examiná-Ia - não dessa forma pelo menos.
Não é só que o gosto do chocolate é um sa- lismo, por razões óbvias:)
bor e, portanto, não pode ser visto. Imagine um Muitas pessoas, porém, acham que a crença
cientista muito louco que, para tentar observar na alma é ultrapassada e não científica. Tudo o
sua experiência de saborear o chocolate, lam- que existe no mundo é feito de matéria física -
besse seu cérebro enquanto você estivesse co- diferentes combinações dos mesmos elementos
mendo uma barra de chocolate. Em primeiro lu- químicos. Por que não seria assim conosco tam-
gar, seu cérebro provavelmente não teria para bém? Mediante um complexo processo físico,
ele o gosto de chocolate. Mas, mesmo que tives- nosso corpo se desenvolve a partir da única cé-
se, ele não teria conseguido entrar na sua mente lula produzida pela união do espermatozóide
e observar a sua experiência de provar chocola- com o óvulo, no momento da concepção. Aos
te. A única coisa que ele teria descoberto, de mo- poucos, matéria comum vai sendo adicionada ,
do bastante bizarro, é que, quando você sente o de tal forma que a célula se torna um bebê , com
gosto do chocolate, seu cérebro se altera e passa braços, pernas, olhos, orelhas e cérebro, capaz
a ter gosto de chocolate para as outras pessoas. de se mover, sentir, ver e, finalmente, falar e pen-
Ele teria a experiência dele do chocolate, e você, sar. Algumas pessoas acreditam que esse sofisti-
cado sistema físico é suficiente, por si só, para
a sua.
Se o que acontece na sua experiência está no fazer surgir a vida mental. Por que não deveria?
interior da sua mente de um jeito diferente do Seja como for, como um simples argumento filo-
que acontece no seu cérebro, parece então que sófico pode demonstrar que não é assim? Se a
as suas experiências, bem como seus diferentes filosofia não pode nos dizer do que são feitos as
estados de espírito, não podem ser meros esta- estrelas e os diamantes, como poderá nos dizer
dos físicos do cérebro. Você deve ser algo mais do que são feitos ou não são feitos os seres hu-
do que um corpo dotado de um buliçoso siste- manos?
A opinião de que as pessoas não passam de
ma nervoso.
Uma conclusão possível é que deve haver matéria física, e que seus estados de espírito são
uma alma ligada ao corpo, de tal forma que am- estados físicos çerebrais, é denominada fisicalís-
bos possam interagir. Se isso é verdade, então mo (ou, às vezes,materialismo). Os fisicalistas
você é constituído de duas coisas muito díferen- não têm uma teoria específica sobre qual pro-

30 31
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MENTE-CORPO

cesso cerebral pode ser identificado com a expe- Um dualista retrucaria que essas outras coi-
riência de saborear chocolate, por exemplo. Mas sas são diferentes. Quando investigamos a com-
acreditam que os estados de espírito são apenas posição química da água, por exemplo, estamos
estados do cérebro, e que não há nenhuma ra- lidando com algo que pertence claramente ao
zão filosófica para pensar que não sejam. Os de- mundo físico - algo que podemos ver e tocar.
talhes terão de ser descobertos pela ciência. Quando descobrimos que ela é feita de átomos
A idéia é que podemos descobrir que as ex- de hidrogênio e oxigênio, estamos apenas de-
periências são, na verdade, processos cerebrais, compondo uma substância física externa em par-
tal como descobrimos que outras coisas conhe- tes físicas menores. Uma característica essencial
cidas têm uma natureza real que não podería- desse tipo de análise é que não se trata de uma
mos ter adivinhado, até que foi revelada pela decomposição química do modo como vemos,
investigação cíentifica: Por exemplo, os diaman- sentimos e saboreamos a água. Essas coisas acon-
tes são compostos de carbono, o mesmo mate- tecem na nossa experiência interna, não na água
rial do carvão - só que os átomos se combinam que foi decomposta em átomos. A análise física
de maneira diferente num e noutro. E a água, ou química da água desconsidera essas expe-
como sabemos, é formada de hidrogênio e oxi- riências.
gênio, embora nenhum desses elementos, quan- Para descobrir se a experiência que tivemos
do isolados, em nada se assemelhe com a água. do sabor do chocolate foi, de fato, apenas um
Portanto, embora pareça surpreendente que processo cerebral, teríamos de analisar alguma
a experiência de saborear chocolate não seja, tal- coisa mental - não uma substância física obser-
vez, mais do que uma complexa ocorrência físi- vável externamente, mas uma sensação de sabor
ca no cérebro, isso não seria mais estranho que interna - em termos das partes físicas. E, por
as muitas coisas que se descobriram sobre a ver- mais complexas e numerosas que sejam as ocor-
dadeira natureza de objetos e processos comuns. rências físicas no cérebro, elas não poderiam ser
Os cientistas descobriram o que é a luz, como as as partes que compõem a sensação do gosto.
plantas crescem, como os músculos se movem - Um todo físico pode ser analisado em partes físi-
é apenas uma questão de tempo para q~e des- cas menores, mas um processo mental, não. Não
cubram a natureza biológica da mente: E nisso é possível somar partes físicas para obter um
que os fisicalistas acreditam. todo mental.

32 33
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o PROBLEMA MEI\T'fE-CORPO

Há uma outra visão que difere tanto do dua- Sendo assim, seu cérebro teria um interior que
lismo quanto do fisicalismo. O dualismo afirma não poderia ser alcançado por um observador
que somos constituídos de um corpo e uma al- externo, mesmo que ele o abrisse ao meio. Esse
ma, e que nossa vida mental tem lugar em nossa processo que ocorre no seu cérebro produziria
alma. O fisicalismo sustenta que a vida mental em você um certo tipo de sensação ou gosto.
consiste em processos físicos que se desenrolam Poderíamos expressar essa idéia ao dizer que
no cérebro. Outra possibilidade, contudo, é a de você é apenas corpo, não corpo e alma, mas seu
que a vida mental ocorra no cérebro, ainda que corpo, ou pelo menos seu cérebro, não é so-
todas essas experiências, sentimentos, pensamen- mente um sistema físico. É um objeto com as-
tos e desejos não sejam processos físicos do cé- pectos físicos e mentais: pode ser dissecado, mas
rebro. Isso significaria que a massa cinzenta dos tem um tipo de interior que a dissecação não
bilhões de células nervosas dentro do seu crânio pode revelar. Se existe algo dentro que parece
não é apenas um objetofísico. Embora tenha mui- saborear o chocolate, é porque existe algo den-
tas propriedades físicas - uma grande quantidade tro que parece colocar seu cérebro na condição
de atividade química e elétrica -, ali também ocor- que se produz quando você come chocolate.
rem processos mentais. Para os fisicalistas, a única coisa que existe é
A concepção de que o cérebro é a sede da o mundo físico, que pode ser estudado pela ciên-
consciência, mas que seus estados conscientes cia: o mundo da realidade objetiva. Por isso, eles
não são meros estados físicos, é chamada de teo- precisam encontrar um lugar nesse mundo para
ria do aspecto dual.I Ê assim chamada porque, alojar os sentimentos, desejos, pensamentos e
quando você morde uma barra de chocolate, pro- experiências - um lugar para você e para mim.
duz-se no seu cérebro um estado ou processo Uma das teorias apresentadas em defesa do
com dois aspectos: um aspecto físico, envolven- fisicalismo é a de que a natureza mental de nos-
do várias alterações químicas e elétricas, e um sos estados de espírito consiste na relação des-
aspecto mental - a experiência do sabor de cho- ses estados com as coisas que os causam e com
colate. Quando esse processo ocorre, um cien- as coisas que eles causam. Por exemplo, quando
tista, ao examinar seu cérebro, poderá observar você machuca o dedo e sente dor, a dor é algo
o aspecto físico, mas é você, internamente, que que acontece no seu cérebro. Mas o que a faz
passará pelo aspecto mental: você é que vai ex- ser dor não é apenas a soma das características
perimentar a sensação de saborear o chocolate. físicas do cérebro, e tampouco se trata de algu-

34 35
UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
o PROBLEMA ME TE-CORPO

ma misteriosa propriedade não física. Ao contrá- xes, as formigas e os besouros. Quem sabe onde
rio, a dor é o tipo de estado que se produz no seu isso acaba?
cérebro toda vez que você se machuca, e que Nossa concepção geral do mundo será insu-
geralmente o faz gritar e pular e evitar a coisa que ficiente até que possamos explicar de que modo
o machucou. E esse estado poderia ser puramen- os elementos físicos, quando combinados da ma-
te físico. n~ir~ ~erta, formam não apenas um organismo
Mas isso não parece ser suficiente para que biológico funcional, mas também um ser cons-
algo seja doloroso. É certo que as dores são cau- ciente. Se a própria consciência pudesse ser iden-
sadas por ferimentos e que elas nos fazem pular tificada com algum tipo de estado físico, estaria
e gritar. Mas também são sentidas de uma certa aberto o caminho para uma teoria unificada da
maneira, o que parece ser algo diferente de to- mente e do corpo e assim, talvez, para uma teo-
das as relações que têm com causas e efeitos e ria unificada do universo. Mas as razões contrá-
de todas as propriedades físicas que possam ter rias a uma teoria puramente física da consciên-
- se é que, de fato, são ocorrências cerebrais. cia são bastante fortes para nos fazer duvidar de
Pessoalmente acredito que esse aspecto interno que seria possível uma teoria física da realidade
da dor e de outras experiências conscientes não total. A ciência física avançou deixando a mente
pode ser adequadamente analisado em termos de fora daquilo que tenta explicar, mas pode ser
de nenhum sistema de relações causais com es- que haja mais sobre o mundo do que a ciência
física é capaz de entender.
tímulos e comportamentos físicos, por mais com-
plexos que sejam.
Parece haver dois tipos muito distintos de
coisas que acontecem no mundo: as coisas que
pertencem à realidade física, que muitas pessoas
podem observar de fora, e as coisas que perten-
cem à realidade mental, que cada um de nós ex-
perimenta interna e individualmente. E isso é
verdade não somente para os seres humanos:
cachorros, gatos, cavalos e pássaros parecem ser
conscientes, e é provável que também os pei-

36 37
5

o significado das palavras

Como pode uma palavra - um ruído ou uma


série de marcas no papel- significar alguma coi-
sa? Algumas palavras, como "sussuro" ou "es-
trondo", têm um som parecido com aquilo a que
se referem, mas, em geral, não existe nenhuma
semelhança entre o nome e a coisa que ele no-
meia. A relação deve estar em algo totalmente
diferente.
Existem muitos tipos de palavras: algumas
delas designam pessoas ou coisas, outras deno-
minam qualidades ou atividades, outras se refe-
rem a relações entre coisas ou acontecimentos,
outras nomeiam números, lugares ou épocas, e
outras ainda, como "e" e "de", só têm significado
porque contribuem para dar sentido a afirmações
ou perguntas maiores.inas quais aparecem como
partes. Na verdade, todas as palavras funcionam
desta maneira: seu significado está, efetivamen-
te, relacionado com a contribuição que elas dão
ao sentido de frases ou enunciados. Usamos as

39
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA
o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS

p~lavras principalmente para falar e escrever, e


nao apenas como rótulos. sentido, e também uma resposta, mesmo que
você não consiga encontrá-Ia. Mas o sentido da
~o entanto, tendo entendido isso, vamos in-
pergunta, bem como a resposta, depende do
yestlgar como uma palavra pode ter sionificado
fato de que a palavra "tabaco" se refere a todas
Certas palavras podem ser definidas e~ termo;
as amostras da substância que existem no mun-
d~.out,~~spalavras: "quadrado", por exemplo, sig-
do - incluindo, na verdade, épocas passadas e
DIf~.~~fIgura plana de quatro lados, eqüilátera e
futuras -, a cada cigarro fumado na China no
e~U1angu:a". A maioria dos termos dessa defini-
ano passado, a cada charuto fumado em Cuba, ::
ç~o tambem pode ser definida. Mas as definições
assim por diante. As outras palavras na frase lI-
nao podem ser a base do significado para todas
mitam a referência a lugares e épocas específi-
as pala~ras, do contrário andaríamos eternamen-
cos, mas a palavra "tabaco" só pode ser usada
te em CIrculo. Devemos chegar, no final, a certas
palavras que têm significado direto. para fazer tal pergunta porque tem esse enorme,
mas especial, alcance, que ultrapassa toda a sua
Tomemos a palavra "tabaco", que talvez pa-
experiência de cada amostra de um certo tipo de
r~ça um exempl? fácil. Ela se refere a uma espé-
substância.
CIe de planta cujo nome latino a maioria de nós
Como a palavra faz isso? Como pode u~ sim-
d~scon~ece, e cujas folhas são usadas para fa-
bncar cIgarros e charutos Todos nó .~ . ples ruído ou um rabisco ter tal alcance? E evi-
. . s Ja VImos e dente que não é por causa do som ou do aspec-
cheIramos tabaco, mas a palavra, tal como a usa-
to. Nem por causa do número relativamente pe-
~os~ refere-se não apenas às amostras da subs-
queno de amostras de tabaco com que você de-
tancia que vimos, ou que está por perto quando
parou, e que estavam por perto quando você
usamos a palavra, mas a todos os exemplos de
pronunciou, ouviu ou leu a palavra. Trata-se de
t~baco, ~uer saibamos, quer não de sua existên-
alguma outra coisa, algo de caráter geral, que se
CIa. Você talvez tenha aprendido a palavra por-
aplica ao uso que cada pessoa faz da palavra.
~~e lhe mostraram amostras de tabaco, mas não
Você e eu, que nunca nos encontramos e que
Ira entendê-Ia se pensar que se trata apenas do
nome dessas amostras. deparamos com diferentes amostras de tabaco,
usamos a palavra com o mesmo significado. Se
Assim, s~ disser: "Será que no ano passado
ambos usamos a palavra para fazer a pergunta
~~ou-s~ mais tabaco na China do que no hemis-
sobre a China e o hemisfério ocidental, a pergun-
feno OCIdental inteiro?", essa pergunta tem um
ta é a mesma, e a resposta é a mesma. Mais do

40
41
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS

que isso, uma pessoa que fala chinês pode fazer E não é só isso. Há também o problema de
a mesma pergunta, usando a palavra chinesa de como essa idéia ou conceito se relaciona com to-
mesmo significado. Seja qual for a relação que das as amostras de tabaco real. Que coisa é essa
a palavra "tabaco" tenha com a coisa em si, outras que se relaciona exclusivamente com o tabaco e
palavras também podem ter. nada mais? Parece que não fizemos mais que au-
Isso sugere, de maneira bastante natural, que mentar o problema. Ao tentar explicar a relação
a relação da palavra "tabaco" com todas essas entre a palavra "tabaco" e o tabaco interpondo en-
plantas, cigarros e charutos, no passado, presen- tre ambos a idéia ou o conceito de tabaco, ape- .
te e futuro, é indireta. A palavra, tal como você a nas criamos a necessidade adicional de explicâr
usa, tem alguma outra coisa por trás dela - um as relações entre a palavra e a idéia, entre a idéia
conceito, idéia ou pensamento - que, de algum e a coisa. .'
modo, se estende a todo tabaco do universo. Aqui, Com ou sem o conceito ou a idéia, o proble-
porém, surgem novos problemas. ma parece ser o seguinte: o uso que cada pessoa
Primeiro, que tipo de coisa é esse interme- faz de uma palavra envolve sons, marcas e exem-
diário? Está em sua mente, ou é algo fora da sua plos muito particulares, mas a palavra se aplica a
mente com o qual, de algum modo, você pode algo universal, que outros falantes particulares
fazer uma associação? Parece haver algo com também podem expressar por meio dessa pala-
que você, eu e o chinês podemos todos associar, vra ou de outras palavras em outras línguas. Co-
a fim de expressar a mesma coisa com nossas mo algo tão particular quanto o ruído que faço
palavras para tabaco. Mas de que maneira, tendo ao dizer "tabaco" pode significar algo tão geral
experiências tão distintas da palavra e da planta, que eu possa usá-Ia para dizer: "Aposto que da-
conseguimos fazer isso? Não será isso tão difícil qui a duzentos anos haverá pessoas em Marte
de explicar quanto o fato de sermos capazes de fumando tabaco."
nos referir, com os diferentes usos que fazemos Você pode pensar que o elemento universal
da palavra ou das palavras, à mesma enorme e é fornecido por algo que todos temos em mente
difundida quantidade da substância? O proble- quando usamos a palavra. Mas o que é que to-
ma que temos aqui, de como a palavra pode sig- dos temos em mente? Para pensar: "O tabaco
nificar a idéia ou o conceito (seja qual for), não é está mais caro este ano", tudo o que preciso ter
exatamente igual ao que havia antes, de como a em mente - conscientemente, pelo menos - é a
palavra pode significar a planta ou a substância? própria palavra. É claro que, além disso, posso

42 43
UNJ.f\ J:\lttVJ: llV1KUUUc;AO A FILOSOHA
o SIGNIHCADO DAS PALAVRAS
ter em mente algum tipo de imagem quando uso
a palavra: talvez a imagem de uma planta, ou de sas distantes que você, provavelmente, nunca
encontrará diretamente.
folhas secas, ou do interior de um cigarro. Ainda
assim, isso não ajuda a explicar a generalidade Você pode achar que exagerei a questã~ =
alcance universal da linguagem. Na vida cotidia-
do significado da palavra, pois qualquer imagem
na, a maior parte dos enunciados e pen,sam~n-
dessas será uma imagem particular. Será a ima-
tos para os quais utilizamos a lingua~em"e muito
gem do aspecto ou do cheiro de uma amostra
mais localizada e particular. Se eu digo: Passe o
específica de tabaco. E como isso poderia abar-
sal" e você me passa o sal, não é necessário aqui
car todas as possíveis e reais amostras de taba- ,
nenhum significado universal da pa Iavra "1"
sa ,
co? Além disso, mesmo que você forme uma cer-
do tipo que se apresenta quando pergunta~~s:
ta imagem em sua mente ao ouvir ou usar a pa- "Em que momento da história da 'nossa galáxia,
lavra "tabaco", cada pessoa provavelmente for- a mistura de sódio e cloro deu origem ao sal?" As
mará uma imagem diferente. Isso, no entanto, palavras muitas vezes são usadas simplesmente
não impede que todos usemos a palavra com o como ferramentas nas relações entre as pessoas.
mesmo significado.
Num terminal de ônibus, você vê, numa placa,
O mistério do significado é que ele, aparen- uma pequena figura de saia e uma set~, e sab~
temente, não se situa em nenhum lugar - nem na que isso indica o caminho para o banheuo. femi-
palavra, nem na mente, nem em nenhum con- nino. Não será então a linguagem, de maneira ge-
ceito ou idéia pairando entre a palavra, a mente ral, apenas um sistema de sinais e respostas des-
e as coisas sobre as quais estamos falando. Con- se tipo? .
tudo, usamos a linguagem o tempo todo, e ela Bem, uma parte dela pode ser que SIm, e tal-
nos permite formular pensamentos complica- vez seja assim que começamos a usar as pa~a-
dos, que transpõem grandes distâncias no tem- vras: "papai", "mamãe", "não", "acabei". Mas ~ao
po e no espaço. Você pode falar sobre a quanti- pára por aí, e não fica claro ~e ~ue modo as SIm-
dade de pessoas em Okinawa que têm mais de ples transações que são possrveis usando-~e uma
1,50 m de altura, ou indagar se há vida em ou- ou duas palavras por vez podem nos ajudar a
tras galáxias, e os pequenos ruídos que você emi- entender o uso da linguagem para descrever,
te formarão frases que são verdadeiras ou falsas, bem ou mal, o mundo que está além dos limit~s
em virtude de fatos complicados acerca de cOÍ- da nossa vizinhança. Na verdade, parece ~al.s
provável que o uso da linguagem para proposi-

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45
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA o SIGNIFICADO DAS PALAVRAS

tos mais amplos nos revele alguma coisa sobre o da temos de explicar como meu uso da palavra
que acontece quando a utilizamos numa escala extrai seu conteúdo de todos os outros usos, a
menor. maioria dos quais desconheço - inserir minhas pa-
Uma afirmação do tipo "O sal está na mesa" lavras nesse contexto maior, porém, pode parecer
tem o mesmo significado quer seja dita por ra- que ajuda a explicar seu significado universal.
zões práticas durante o almoço, quer como par- Mas isso não resolve o problema. Quando
te da descrição de uma situação distante no tem- uso a palavra, ela pode ter significado como par-
po e no espaço, quer como uma descrição hipo- te da língua portuguesa, mas de que maneira 2
tética de uma possibilidade imaginária. Significa uso da palavra por todos os outros falantes da
a mesma coisa quer seja verdadeira ou falsa, quer língua lhe dá alcance universal, muito além de to-
o falante, ou ouvinte, saiba ou não se é verda- das as situações em que ela é efetivamente usa-
deira ou falsa. Seja o que for que aconteça nas da? O problema da relação da linguagem com o
situações práticas e corriqueiras, deve ser algo mundo não é tão diferente, quer falemos de uma
suficientemente geral também para explicar es- frase ou de bilhões de frases. O significado de
sas outras situações, bastante diferentes, em que uma palavra contém todos os seus usos possí-
ela tem o mesmo significado. veis, verdadeiros e falsos, não apenas seus usos
É importante, sem dúvida, o fato de que a efetivos - e estes são apenas uma fração mínima
linguagem seja um fenômeno social. Não é algo dos usos possíveis.
que cada pessoa inventa para si mesma. Quan- Somos pequenas criaturas finitas, mas o sig-
do, na infância, aprendemos uma linguagem, in- nificado nos permite, com a ajuda de sons ou
gressamos num sistema já existente, no qual mi- marcas no papel, entender o mundo inteiro e as
lhões de pessoas vêm, há séculos, usando as mes- muitas coisas que há nele, até mesmo inventar
mas palavras para conversar entre si. O uso que coisas que não existem e que, talvez, nunca ve-
faço da palavra "tabaco" não tem significado por nham a existir. O problema é explicar como isso
si apenas, mas antes como parte do uso muito é possível: como alguma coisa que dizemos ou
mais amplo dessa palavra em português. (Mes- escrevemos - inclusive todas as palavras conti-
mo que adotasse um código particular, no qual das neste livro - pode significar algo?
usasse a palavra "blableblu" para dizer "tabaco",
eu o faria definindo "blableblu" para mim mes-
mo em termos da palavra comum "tabaco".) Ain-

46 47
Livre-arbítrio

Imagine que você está na fila de um restau-


rante self-service e, quando chega ao balcão das
sobremesas, hesita entre um pêssego e uma gran-
de fatia de bolo de chocolate com chantili. O
bolo parece gostoso, mas você sabe que engor-
da. Mesmo assim, você o escolhe e come com
prazer. No dia seguinte, você se olha no espelho,
ou sobe na balança, e pensa: "Eu não devia ter
comido aquele bolo de chocolate. Eu poderia
ter comido o pêssego."
"Eu poderia ter comido o pêssego." O que
significa isso - e é verdade?
Os pêssegos estavam ali quando você en-
trou na fila do restaurante: você teve a oportuni-
dade de pegar um pêssego. Mas não é só isso
que você quer dizer. O que você quer dizer é que
poderia ter comido o pêssego. Poderia ter feito
algo diferente do que de fato fez. Antes de se de-
cidir, você tinha a possibilidade de pegar a fruta
ou o bolo, e foi a sua escolha, unicamente, que
decidiu qual dos dois seria.

49
UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA LIVRE-ARBITRIO

É isso? Quando você diz: "Eu poderia ter co- alguns animais). Quando dizemos: "O carro po-
mido o pêssego", está dizendo que só dependia deria ter subido até o alto da colina", queremos
da sua escolha? Você escolheu o bolo de choco- dizer que o carro tinha potência suficiente para
late, e foi isso que você comeu; mas, se tivesse chegar ao topo da colina se alguém o tivesse di-
escolhido o pêssego, era isso que teria comido. rigido até lá. E não que, estando um dia estacio-
Mas ainda não parece suficiente. Você não nado ao pé da colina, o carro simplesmente po-
quer dizer apenas que, se tivesse escolhido o pês- deria ter dado a partida e subido até o alto, em
sego, era o que teria comido. Quando diz: "Eu vez de continuar parado ali. Alguma outra coisa
poderia ter comido o pêssego", quer dizer tam- precisaria ter acontecido antes, como alguém
bém que poderia ter escolhido o pêssego - não entrar nele e ligar o motor. Mas, quando se trata
há "se" nenhum aqui. Mas o que significa essa das pessoas, parecemos acreditar que elas po-
afirmação? dem fazer várias coisas que de fato não fazem,
Não se pode explicá-Ia assinalando as outras exatamente desse jeito, sem que alguma outra
ocasiões em que você de fato escolheu a fruta. E coisa aconteça antes. O que significa isso?
não se pode explicá-la dizendo que, se você ti- Em parte, pode significar o seguinte: até o
vesse pensado melhor ou se estivesse acompa- momento da escolha, não há nada que determi-
nhado de um amigo que come como um passa- ne irrevogavelmente qual será a sua escolha. Per-
rinho, teria escolhido o pêssego. O que você manece aberta a possibilidade de que você es-
está dizendo é que poderia ter escolhido o pês- colha o pêssego até o momento em que efetiva-
sego em vez do bolo de chocolate naquele exa- mente escolha o bolo de chocolate. Não se trata
to momento, sendo as coisas como de fato eram. de algo predeterminado.
Você acha que poderia ter escolhido o pêssego Algumas coisas que acontecem são predeter-
mesmo que tudo tivesse sido exatamente igual minadas. Por exemplo, parece predeterminado
ao que foi no momento em que, de fato, esco- que o Sol nascerá amanhã numa certa hora. Não
lheu o bolo de chocolate. A única diferença é está aberta a possibilidade de que o Sol não nas-
que, em vez de pensar "S~ desta vez: e pegar o ça amanhã e de que a noite se prolongue. Tal
bolo, você teria pensado "E melhor nao" e pega- coisa não é possível, porque só poderia ocorrer
do o pêssego. se a Terra parasse de girar, ou se o Sol deixasse
Essa é uma idéia de "pode" ou "poderia ter" de existir, e não há nada em nossa galáxia que
que aplicamos somente às pessoas (e, talvez, a indique que alguma dessas coisas possa aconte-

50 51
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO

cer. A Terra continuará girando a menos que demos de fato de nossas escolhas, decisões e von-
seja detida, e amanhã de manhã sua rotação nos tades, e que fazemos diferentes escolhas em di-
trará de novo para o interior do sistema solar, de ferentes circunstâncias: não somos como a Terra
frente para o Sol, e não para o lado de fora, lon- girando em torno do seu próprio eixo com urna
ge dele. Se não há possibilidade de que a Terra regula~idad~ monótona. Mas afirmam que, em
pare Ou de que o Sol deixe de existir, não há cada situação, as circunstâncias que se apresen-
possibilidade de que o Sol não nasça amanhã. tam antes de agirmos determinam nossas ações,
Quando diz que poderia ter comido o pêsse- t?l·na.ndo-as inevitáveis. A soma total das expe-
go em vez do bolo de chocolate, o que você nencias, dos desejos e do conhecimento de uma
quer dizer, em parte, é que não estava predeter- r:,ess.oa, su~ constituição hereditária, as circuns-
minado o que você faria, tal como' está prede- tanCla~ sociais e a natureza da escolha que ela
terminado que o Sol nascerá amanhã. Não havia tem diante de si, juntamente com outros fatores
nenhum processo ou força em ação, antes da sua que ta~vez. ~esconheçamos, combinam-se para
escolha, que tornasse inevitável que você esco- tornar mevltavel uma ação particular nessas cir-
lhesse o bolo de chocolate. cunstâncias.
Pode ser que não seja tudo, mas parece que, Essa visão chama-se determinismo. A idéia
em parte, é isso que você quer dizer. Pois, se es- não é que podemos conhecer todas as leis do
tivesse mesmo predeterminado que você esco- universo e usá-Ias para prever o que irá aconte-
lheria o bolo, como também seria verdade que cer. Em primeiro lugar, não podemos conhecer
você poderia ter escolhido a fruta? A verdade é t~das as complexas circunstâncias que influen-
que nada o teria impedido de comer o pêssego eram uma escolha humana. Em segundo, mesmo
se você tivesse escolhido ele em vez do bolo. quando aprendemos alguma coisa sobre as cir-
Mas esses ses não são o mesmo que dizer que cunstâncias, e tentamos fazer uma previsão isso
você poderia ter escolhido o pêssego, e ponto- por si só é uma mudança nas circunstâncias: que
final. Só poderia tê-lo escolhido se a possibilida- p~de/ alterar o resultado previsto. Mas a questão
de permanecesse aberta até o momento em que nao e a previsibilidade. A hipótese aqui é a de
você a fechasse de vez ao escolher o bolo. que existem leis naturais, como as que governam
Algumas pessoas acham que nunca é possí- o movimento dos planetas, que governam tudo
vel fazer diferente do que na verdade fazemos, o que acontece no mundo - e, de acordo com
nesse sentido absoluto. Reconhecem que depen- essas leis, as circunstâncias que antecedem uma

52 53
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBíTRIO

ação determinam o que irá ocorrer e excluem Se acreditasse nisso acerca de si mesmo e
qualquer outra possibilidade. das outras pessoas, o modo como você se sente
Se isso for verdade, então, mesmo enquanto a respeito das coisas provavelmente mudaria.
você decide que sobremesa irá escolher, já esta- Por exemplo, você se culparia por cair em tenta-
rá determinado, pelos inúmeros fatores que ção e comer o bolo? Faria algum sentido dizer:
atuam sobre e dentro de você, que sua escolha "Eu deveria mesmo ter comido o pêssego em vez
será o bolo de chocolate. Você não poderia ter do bolo", se você não pudesse ter escolhido o
escolhido o pêssego, mesmo que assim pensas- pêssego? Com certeza não faria nenhum sentido
se: o processo de decisão é apenas a efetivação dizer tal coisa se não houvesse fruta alguma. As-
do resultado já determinado na sua mente. sim, como poderia fazer sentido se houvesse fru-
Se o determinismo se aplica a tudo o que ta mas você não pudesse optar por ela, porque
acontece, já estava determinado, antes de você estava determinado, de antemão, que você esco-
nascer, que sua escolha seria o bolo. Sua escolha lheria o bolo?
foi determinada pela situação imediatamente an- Isso parece ter sérias conseqüências. Além
terior, e essa situação, por sua vez, foi determina- de não poder culpar-se por comer o bolo, você
da pela situação anterior a ela, e assim sucessiva- provavelmente não poderia culpar pessoa algu-
mente até onde você queira recuar no tempo. ma por fazer algo mau, nem elogiá-Ia por fazer
Ainda que o determinismo não se aplique a algo bom. Se já estava determinado que ela as-
todas as coisas que ocorrem - mesmo que al- sim o faria, era inevitável: ela não poderia agir
guns acontecimentos não sejam determinados de outra forma, dadas as circunstâncias em que
por causas que já existiam de antemão -, seria se encontrava. Então, como considerá-Ia res-
de qualquer modo muito significativo se tudo ponsável?
que fizéssemos já estivesse determinado antes de Você provavelmente ficaria furioso se convi-
o fazermos. Por mais livre que você possa se sen- dasse alguém para uma festa na sua casa, e ele
tir ao escolher entre a fruta e o bolo, ou entre roubasse todos os seus discos do Glenn Gould.
dois candidatos numa eleição, você na verdade Suponha, porém, que você acredite que a ação
só poderia fazer uma escolha nessas circunstân- dele foi predeterminada por sua natureza e pela
cias - mesmo que, se as circunstâncias ou seus situação. Suponha que você acredite que tudo o
desejos fossem outros, você tivesse escolhido di- que ele fez, incluindo as ações anteriores que
ferente. contribuíram para a formação do seu caráter,

54 55
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO

estava predeterminado por circuhstâncias pré- determinismo, já estivesse determinado que eu


vias. Você poderia responsabilizá-lo por um com- pensaria dessa forma.)
portamento tão degradante? Ou seria mais sensa- Esses são os problemas que teremos de en-
to considerá-Io uma espécie de desastre natural frentar, caso o determinismo seja verdadeiro. Mas
- como se seus discos tivessem sido comidos por talvez não o seja. Muitos cientistas acreditam
cupins? . hoje que ele não se aplica às partículas básicas
As pessoas divergem sobre esse assunto. Al- da matéria - que, numa dada situação, há mais
gumas pensam que, se o determinismo é verda- de uma coisa que um elétron pode fazer. Se o
deiro , então não faz sentido elogiar nem culpar determinismo também não se aplica às ações hu-
alguém por coisa alguma, da mesma forma que manas, talvez então haja espaço para o livre-ar-
não faz sentido culpar nem elogiar a chuva por bítrio e para a responsabilidade. E se as ações hu-
cair. Outros acham que faz sentido elogiar as manas, ou pelo menos algumas delas, não são
boas ações e condenar as más, ainda que sejam predeterminadas? E se, até o momento da sua
inevitáveis. Afinal, o fato de alguém estar prede- escolha, estiver aberta a possibilidade de você es-
terminado a agir mal não significa que ele não colher o bolo de chocolate ou o pêssego? Nesse
agiu mal. Se ele rouba seus discos, essa atitude caso, no que diz respeito ao que aconteceu ante-
revela falta de consideração e desonestidade, quer riormente, você poderia escolher qualquer um
seja determinada, quer não. Além disso, se não o deles. Mesmo que escolha o bolo, você poderia
culparmos, ou talvez até se não o punirmos, ele ter escolhido o pêssego.
provavelmente fará de novo. Mas, ainda que seja assim, dá para falar em
Por outro lado, se pensamos que a ação dele livre-arbítrio? É só isso que você quer dizer com:
estava predeterminada, então puni-lo seria seme- "Eu poderia ter escolhido a fruta em vez do bo-
lhante a punir um cachorro por roer o tapete. lo" - que a escolha não estava predeterminada?
Não significa que não o consideramos responsá- Não, você acredita em algo mais. Acredita que
vel pelo que fez: estamos apenas tentanto influen- você determinou o que faria ao Jazer. Não es-
ciar seu comportamento futuro. Pessoalmente, tava predeterminado, mas não é, tampouco,
não creio que faça sentido culpar alguém por fa- que simplesmente aconteceu. Você o Jez, e pode-
zer uma coisa que era impossível para ele deixar ria ter feito o contrário. Mas qual o significado
de fazer. (Embora, é claro, do ponto de vista do disso?

56 57
UMA BREVE INTI~ODUÇÀO À FILOSOFIA LIVRE-ARBÍTRIO

É uma questão engraçada. Todos sabemos o le. E como posso eu determiná-Ia se nada a de-
que significa fazer algo. O problema é que, se o termina?
ato não está predeterminado, por nossos dese- Isso levanta a alarmante possibilidade de que,
jos, crenças e personalidade, entre outras coisas, seja o determinismo verdadeiro ou falso, não so-
a impressão que se tem é que ele simplesmente mos responsáveis por nossas ações. Se o deter-
aconteceu; sem nenhuma explicação. E, nesse minismo é verdadeiro, as circunstâncias anterio-
caso, como foi o seu fazer? res são as responsáveis. Se o determinismo é fal-
Uma resposta possível seria a de que não há so, nada é responsável. Seria, sem dúvida, um
resposta para essa pergunta. A ação livre é uma beco sem saída. '"
característica básica deste mundo e não pode ser Há uma outra hipótese possível, completa-
analisada. Existe uma diferença entre algo que mente oposta à maior parte do que falamos até
simplesmente acontece, sem nenhuma causa, e agora. Algumas pessoas acham que a responsa-
uma ação que é feita sem nenhuma causa. É uma bilidade por nossas ações requer que nossas
diferença que todos nós entendemos, mesmo ações sejam determinadas. Para que uma ação
que não possamos explicá-Ia. seja algo que você fez, dizem elas, precisa ser
Algumas pessoas deixariam por isso mesmo. resultado de certas causas presentes em você.
Outras, porém, acham suspeito que tenhamos Por exemplo, quando você escolheu o bolo de
de apelar a essa idéia inexplicada para explicar chocolate, você fez algo, e não é que algo sim-
em que sentido você poderia ter escolhido a fru- plesmente aconteceu; pois você queria mais o
ta em vez do bolo. Até aqui, parecia que o de- bolo de chocolate do que o pêssego. Como a sua
terminismo era a grande ameaça à responsabili- vontade de comer chocolate era mais intensa,
dade. Agora, no entanto, parece que, mesmo naquele momento, do que seu desejo de evitar
que nossas escolhas não sejam predetermina- um aumento de peso, ela resultou na sua esco-
das, ainda assim é difícil entender de que modo lha pelo bolo. Em outros exemplos de ação, a
podemos fazer aquilo que não fazemos. Qual- explicação psicológica será mais complexa, mas
quer uma das duas escolhas pode ser possível de sempre haverá uma - do contrário, a ação não
antemão, mas, a menos que eu determine qual seria sua. Essa explicação parece significar, ao
delas vai ocorrer, minha responsabilidade não fim e ao cabo, que o que você fez estava prede-
é maior do que seria se a escolha fosse determi- terminado. Se não estava determinado por coisa
nada por causas que estão fora do meu centro- alguma, foi apenas um acontecimento inexplica-

58 59
UMA BREVE INTRODUÇÀO À FILOSOFIA LIVRE-AHBÍTHIO

do, algo que surgiu do nada, em 'Vez de algo que Para evitar essa conclusão, você teria de ex-
você fez. plicar (a) o que quer dizer quando diz que pode-
De acordo com essa opinião, a determina- ria ter feito outra coisa em vez daquilo que fez,
ção causal, por si mesma, não é uma ameaça à e (b) como você e o mundo teriam de ser para
liberdade - somente um certo tipo de causa a que isso fosse verdade.
ameaça. Se você pegou o bolo porque alguém o
obrigou, então não foi uma escolha livre. Mas
uma ação livre requer que não haja nenhuma
causa determinante: significa que a causa tem de
ser de um tipo psicológico conhecido.
Pessoalmente, não aceito essa solução. Se
pensasse que tudo o que fiz foi determinado pe-
las minhas circunstâncias e pela minha condição
psicológica, eu me sentiria encurralado. E, se
pensasse a mesma coisa sobre todas as outras
pessoas, sentiria que não somos mais do que um
bando de marionetes. ão faria sentido conside-
rá-Ias responsáveis por suas ações, da mesma
forma que não se pode responsabilizar um gato,
um cachorro ou mesmo um elevador.
Por outro lado, me parece difícil entender de
que maneira a responsabilidade por nossas es-
colhas faria sentido, se não estão determinadas.
ão é claro para mim o que significa dizer que eu
determino a escolha, se nada em mim a determi-
na. Assim, a sensação de que você poderia ter es-
colhido o pêssego em vez do pedaço de bolo
talvez seja uma ilusão filosófica, e não poderia
ser correta em caso algum.

60 61
7

Certo e errado

Imagine que você trabalha numa biblioteca,


verificando os livros que as pessoas levam ao
sair, e um amigo lhe pede que o deixe levar às
escondidas uma obra de referência muito difícil
de encontrar, que ele deseja ter para si.
Você pode hesitar em concordar por várias
razões. Talvez tenha medo de que ele seja pego
e que ambos, você e ele, se metam em encren-
ca. Talvez queira que o livro continue na biblio-
teca para que você mesmo possa consultá-lo
quando desejar.
Mas pode ser também que, na sua opinião, o
que ele propõe está errado - que ele não deve-
ria fazer isso e você não deveria ajudá-lo. Se é
assim que você pensa, o que isso significa e por
que seria verdade, se é que seria?
Dizer que está errado não é apenas dizer
que contraria as regras. Podem existir regras ruins
que proíbam coisas que não são erradas - como
uma lei contra criticar o governo. Uma regra pode

63
UMA BREVE 11TROD çÀO À FILOSOFIA
CERTO E ERRADO

ser ruim porque exige algo que é errado - como errada depende do impacto que ela tem não a~e-
uma lei que exige a segregação racial em hotéis nas sobre aqueles que a praticam, mas tambem
e restaurantes. As idéias de certo e errado dife-
sobre outras pessoas. Elas não gostariam e, se
rem das idéias sobre o que é e não é contrário
descobrissem, fariam objeções. .
às regras. Senão não poderiam ser usadas para
Suponha, contudo, que você te~te explicar
avaliar as regras nem as ações.
tudo isso ao seu amigo e ele diga: "Ser que o che-
Se você acha que seria errado ajudar seu ami-
fe da biblioteca não gostaria disso se descobris-
go a roubar o livro, então não se sentirá à vonta-
se, e é provável que alguns dos outro~ usuários
de para fazer isso: de algum modo, você não vai
querer fazê-Io, mesmo que também relute em fiquem chateados ao perceber ~ue o h~ro desa-
recusar-se a ajudar um amigo. De onde vem o pareceu, mas e daí? Eu quero o livro; pOI que de-
.
veria me importar com e 1es.?" .
desejo de não querer fazer; qual é o motivo, a
razão que está por trás dele? O argumento de que seria errado de~ena ser-
Há muitos aspectos nos quais uma coisa pode vir de razão para que ele não agisse assim. Mas,
estar errada. esse caso, porém, se você tivesse se alguém simplesmente não liga para as outras
de explicar o motivo, provavelmente diria que pessoas, que razão teria para coibir-se de fazer
seria injusto com os outros usuários da bibliote- qualquer uma das coisas que normal~ente s~
ca, que podem ter tanto interesse no livro quan- consideram erradas, se pode escapar rmpun_e.
to seu amigo, mas que o lêem na sala de consul- Que razão teria para não matar, não roubar, nao
ta, onde qualquer um pode encontrá-Io, se ne- mentir não ferir os outros I Se ele pode obter o
cessitar. Você pode sentir também que deixá-I o que d~seja fazend~ tais coisas, ~or que não d_e-
levar o livro seria uma traição aos seus patrões, veria? E, se não há nenhuma razao pela qual nao
que lhe pagam justamente para impedir esse deveria, em que sentido está errado? .
tipo de coisa. É claro que a maioria das pessoas se impor-
Esses pensamentos têm a ver com os efeitos ta em certa medida, com as demais. Mas, se al-
que tal ação pode ter sobre os outros - não ne- guérn não se preocupa, não concluiríamos por
cessariamente com os efeitos sobre os sentimen- isso que ele está isento da moral. Uma pesso.a
tos deles, já que talvez nunca venham a desco- que mata outra apenas para/ ~'oubar=lhe a /carter-
brir o roubo, mas com algum tipo de dano, seja ra, sem se importar com a vitima, nao e_staa~to-
como for. Em geral, a idéia de que uma coisa é maticamente justificada. O fato de ela nao se im-

64 65
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO

portar não legitima sua ação: ela deveria se im- objeções a esse tipo de resposta. Primeiro, há
portar. Mas por que deveria se importar? muita gente que não acredita em Deus e, mes-
Tem havido muitas tentativas de responder a mo assim, emite juízos do que é certo e errado, e
essa pergunta. Um tipo de resposta tenta identi- acha que ninguém deveria matar por uma cartei-
ficar alguma outra coisa com que a pessoa já se ra mesmo que tivesse certeza de que poderia
preocupa, para então relacionar a moral com escapar ileso. Segundo, se Deus existe e proíbe
isso. o que é errado, não é sua proibição que o torna
Por exemplo, algumas pessoas acreditam que, errado. O assassinato é errado por si mesmo, e
mesmo que você possa escapar impune de cri- por isso Deus o proíbe (se é que o proíbe). Deus
mes horríveis que praticou na Terra, e que não não poderia tornar nenhuma coisa errada pelo
são punidos pela lei ou pelos homens, tais atos simples ato de proibi-Ia. Se Ele o proibisse, por
são proibidos por Deus, que irá castigá-lo de- exemplo, de calçar a meia esquerda antes da di-
pois da morte (e recompensá-lo se você não fez reita, e o punisse por não agir assim, seria desa-
nada errado quando se sentiu tentado a fazer). conselhável fazê-lo, mas não seria errado. Ter-
Assim, ainda que pareça ser do seu interesse fa- ceiro, o medo do castigo e a esperança de re-
zer certas coisas, na verdade não é. Algumas pes- compensa, e mesmo o amor de Deus, parecem
soas chegam mesmo a acreditar que, sem Deus não ser os motivos certos para a moral. Se você
para sustentar as exigências morais com a amea- pensa que é errado matar, enganar ou roubar, de-
ça de punição e a promessa de recompensa, a veria querer evitar tais coisas porque são coisas
moral é uma ilusão: "Se Deus não existe, tudo é prejudiciais às vitimas, e não por temer as con-
permitido. " seqüências que podem trazer a você, ou por não
Trata-se de uma versão bastante rudimentar querer ofender ao seu Criador.
dos fundamentos religiosos da moral. 1 uma ver- Essa terceira objeção também se aplica a ou-
são mais atraente, o motivo para obedecer aos tras explicações da força da moral que apelam
mandamentos de Deus seria não o medo, mas o aos interesses da pessoa que deve agir. Por exem-
amor. Ele o ama, e você deve amá-Lo e de bom plo, pode-se dizer que você deve tratar os ou-
grado obedecer aos Seus mandamentos, para tros com consideração, para que eles o tratem
não ofendê-Io. da mesma maneira. Esse pode ser um bom con-
Mas, independentemente do modo como in- selho, mas só é válido na medida em que você
terpretamos os motivos religiosos, existem três acredita que suas ações irão afetar o modo como

66 67
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E EllliADO

as outras pessoas O tratam. Não é uma razão para sem o mesmo com você?" Por que essa pergun-
fazer o que é certo se os outros não vão saber, ta deveria fazê-lo hesitar ou sentir-se culpado?
ou contra fazer o que é errado se você pode es- Parece claro que a resposta direta a essa per-
capar impune (como atropelar alguém e fugir). gunta seria: "Não gostaria nem um pouco!" Mas
Não há substituto para a preocupação direta qual é o próximo passo? Suponha que você dis-
com outras pessoas como fundamento da mo- sesse: "Não gostaria que fizessem isso comigo.
ral. Mas a moral deveria aplicar-se a todos: po- Mas, por sorte, ninguém está fazendo isso comi-
demos Supor que todos têm tal preocupação com go. Sou eu que estou fazendo isso com outra
os outros? É óbvio que não: algumas pessoas pessoa, e não ligo a mínima!"
são muito egoístas, e mesmo as que não são Essa resposta foge ao sentido da pergunta.
egoístas podem importar-se apenas com as pes- Quando lhe perguntam se gostaria que fizessem
soas que conhecem, não com todo o mundo. o mesmo com você, espera-se que você pense
Assim, onde encontrar uma razão para que nin- em todos os sentimentos que teria se alguém
guém prejudique os outros, mesmo aqueles que roubasse seu guarda-chuva. E isso inclui mais do
não conhece? que apenas "não gostar disso" - no sentido em
Bem, há um argumento geral contra prejudi- que você não "gostaria" se batesse o dedo do pé
car outras pessoas, que pode servir a qualquer numa pedra. Se alguém roubasse seu guarda-
um que entenda nossa língua (ou outra língua chuva, você ficaria indignado. Teria sentimentos
qualquer), e que parece mostrar que existe algu- sobre o ladrão do guarda-chuva, e não apenas so-
ma razão para se importar com os outros, mes- bre a perda do guarda-chuva. Pensaria: "Onde ele
mo que, no fim, os motivos egoístas sejam tão se meteu com meu-guarda-chuva, que me custou
fortes que se continue a tratar mal as outras pes- tanto comprar, e que tive a precaução de trazer
soas. Tenho certeza de que você já ouviu falar depois de me informar sobre a previsão do tempo?
desse argumento; diz o seguinte: "Você gostaria Por que ele não trouxe o próprio guarda-chuva?",
que alguém fizesse o mesmo com você?" e assim por diante.
Não é fácil explicar como esse argumento de- Quando nossos interesses são ameaçados
veria funcionar. Suponha que você esteja prestes pelo comportamento de pessoas sem considera-
a roubar o guarda-chuva de alguém ao sair de ção, a maioria de nós facilmente passa a desejar
um restaurante, num dia de tempestade, e uma que essas pessoas tenham uma razão para ter
pessoa por perto lhe diz: "Você gostaria que fizes- mais consideração. Quando você é prejudicado,

68 69
UMA BREVE I TROD çÀO À FILOSOFIA
CERTO E ERRADO

sente, provavelmente, que os outros deveriam


admitir que a razão que ela teria é muito geral e
se importar: não pensa que não é da conta deles
não se aplica somente a você, ou a ela, então,
e que eles n~o têm nenhuma razão para evitar
por uma questão de coerência, você tem de ad-
prejudicá-Io. E esse sentimento que o argumen-
mitir que a mesma razão se aplica a você agora.
to: "Você gostaria que lhe fizessem o mesmo?",
deveria despertar. Você não deveria roubar o guarda-chuva, e de-
veria sentir-se culpado se o fizesse.
Porque, ao admitir que ficaria indignado se
Alguém poderia esquivar-se desse argumen-
alguém fizesse a você o mesmo que está fazen-
to se, quando lhe perguntassem: "Você gostaria
do a ele, você admite pensar que ele teria uma
que fizessem o mesmo a você?", ele respondes-
razão para deixar de fazê-Io. E, se admite isso
se: "Não ficaria nem um pouco indignado. Não
você tem de considerar qual é essa razão. Não
gostaria que alguém roubasse meu guarda-chu-
poderia ser simplesmente que, de todas as pes-
va num dia de tempestade, mas não pensaria que
soas do mundo, é a você que ele está prejudi-
existe uma razão para que ele levasse em conta
cando. Não há nenhuma razão especial para que
meus sentimentos sobre isso." Quantas pessoas,
ele não roube o seu guarda-chuva e roube o dos
contudo, poderiam honestamente dar essa res-
outros. Você não é assim tão especial. Seja qual
posta? Acho que a maior parte das pessoas, a
for a razão, é a mesma que ele teria para não
menos que sejam loucas, pensaria que seus inte-
prejudicar nenhuma outra pessoa dessa manei-
resses e os danos que possam sofrer dizem res-
ra.
. E é a razão que todos teriam também , numa peito a todos, não apenas a si mesmas - o' que
snuação semelhante, para não prejudicar você nem
ninguém. dá aos outros uma razão para se importarem
com eles também. Quando sofremos, achamos
_ Mas, se é a razão que cada pessoa teria para que é mau nãó apenas para nós, mas que é
nao prejudicar ninguém, então é a razão que
mau, e ponto. ,
A

uoce tem para não prejudicar ninguém (já que


A base da moral é a crença de que o benefí-
cada
~
pessoa significa todas as pessoas). Portanto ,
- cio e o prejuízo causados a pessoas particulares
e uma razao para não roubar o guarda-chuva de
outra pessoa agora. (ou animais) são bom ou mau não apenas do pon-
to de vista delas, mas de um ponto de vista mais
É uma questão de simples coerência. Ao ad-
geral, que pode ser compreendido por qualquer
mitir que outra pessoa teria uma razão para não
um que pense. Isso significa que cada pessoa tem
prejudicá-Io em circunstâncias semelhantes e ao
um motivo para levar em conta não apenas seus

70
7l
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO

próprios interesses, mas os interesses dos outros o seu próximo como a si mesmo (mesmo que
também, ao decidir o que fazer. E não basta que não esteja próximo de você)? Deveria perguntar-
ela tenha consideração por algumas pessoas ape- se, toda vez que vai ao cinema, se o preço do
nas - família e amigos, com os quais tem uma ingresso propiciaria mais felicidade se você o des-
atenção especial. É claro que cada um se preo- se a alguma outra pessoa, ou se o doasse para
eu pará mais com certas pessoas e consigo mes- ajudar a combater a fome?
mo. Mas existe uma razão para que ela conside- Pouquíssimas pessoas são tão altruístas. E,
re a influência de suas ações sobre o benefício se alguém fosse assim tão imparcial entre si pró-
ou prejuízo de todos. Se ela for como a maioria prio e os outros, provavelmente sentiria também
de nós, é assim que pensará que os outros de- que deveria ser igualmente imparcial entre as
vem agir com ela, mesmo que não sejam seus outras pessoas. Isso excluiria preocupar-se mais
amigos. com amigos e parentes do que com estranhos.
Ele poderia nutrir sentimentos especiais por cer-
** * * tas pessoas próximas, mas a imparcialidade total
significaria que não iria favorecê-ias - se, por
Mesmo que isso esteja certo, não passa de um exemplo, tivesse de escolher entre ajudar um
mero esboço da fonte da moral. Não nos diz, em amigo ou um estranho em dificuldades, ou entre
detalhes, como devemos considerar os interes- levar os filhos ao cinema e doar o dinheiro para
ses dos outros, ou que peso dar a eles em rela- ajudar no combate à fome.
ção ao interesse especial que temos por nós Parece exagero exigir das pessoas esse nível
mesmos e por certas pessoas que nos são próxi- de imparcialidade. Alguém assim seria um tipo
mas . Nem mesmo nos diz quanto devemos nos assustador de sânto. Mas saber quão imparciais
preocupar com pessoas de outros países em deveríamos ser é uma questão importante no
comparação com nossos concidadãos. As pes- pensamento moral. Você é uma pessoa em parti-
soas que aceitam a moral, de modo geral, diver- cular, mas também é capaz de reconhecer que é
gem muito acerca do que é particularmente cer- apenas uma pessoa entre muitas outras e, olhan-
to e errado. do de fora, não mais importante do que elas. Até
Por exemplo: você deveria preocupar-se com que ponto essa forma de ver as coisas deveria
cada pessoa da mesma forma que se preocupa influenciá-Io? Olhando de fora, você realmente
consigo mesmo? Em outras palavras, deveria amar tem alguma importância - do contrário, não pen-

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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA CERTO E ERRADO

saria que as outras pessoas têm razão para se padrão básico de comportamento que todos en-
preocupar com o que fazem a você. Mas, visto de contrem razão para seguir.
fora, você não tem tanta importância quanto tem Existem três formas de lidar com esse pro-
para si mesmo, visto de dentro - já que de fora blema, nenhuma delas muito satisfatória.
você não é mais importante do que ninguém. Primeiro, poderíamos dizer que as mesmas
Se não é claro até que ponto deveríamos coisas são certas e erradas para todos, mas nem
ser imparciais, também não é claro qual seria a todos têm uma razão para fazer o que é certo e
resposta correta para essa pergunta. Existe um evitar o que é errado. Somente as pessoas com o
único modo correto pelo qual cada pessoa pos- tipo certo de motivos "morais" - em particular, a
sa equilibrar aquilo com que se preocupa pes- preocupação com os outros - têm alguma razão
soalmente e aquilo que importa imparcialmen- para fazer o que é certo pelo fato de ser certo.
te? Ou a resposta varia de uma pessoa para ou- Isso torna a moral universal, mas à custa de dre-
tra, de acordo com a força de seus diferentes nar-lhe a força. Não está claro o que significa di-
motivos? zer que seria errado alguém cometer assassinato,
Isso nos leva a outra grande questão: Certo mas que ele não tem nenhuma razão para não o
e errado significam a mesma coisa para todo o cometer.
mundo? Segundo, poderíamos dizer que todos têm
Considera-se, geralmente, que a moral é uni- uma razão para fazer o que é certo e evitar o
versal. Se algo é errado, supõe-se que seja erra- que é errado, mas essas razões não dependem
do para todos; por exemplo, se é errado matar das motivações reais das pessoas. São, na verda-
alguém para roubar-lhe a carteira, então é erra- de, razões para mudar nossas motivações, se
do mesmo que o ladrão se preocupe com a víti- não são corretas". Isso vincula a moral com as ra-
ma ou não. Mas, se o fato de algo ser errado de- zões para agir, mas não esclarece o que são es-
veria ser uma razão para não fazê-Ia e se suas sas razões universais que não dependem das
razões para fazer as coisas dependem de seus motivações que as pessoas de fato têm. O que
motivos, e os motivos das pessoas podem variar significa dizer que um assassino tinha uma razão
muito, parece então que não haverá um único para não matar, embora nenhum de seus dese-
certo e errado para todo o mundo. Não haverá jos ou motivações reais tenha lhe dado tal razão?
um único certo e errado porque, se os motivos Terceiro, poderíamos dizer que a moral não
básicos das pessoas diferem, não haverá nenhum é universal, e que o que moralmente se exige de

74 75
CERTO E ERRADO
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA

uma pessoa Só é válido na medida em que ela que certo e errado são relativos a uma época, lu-
tenha certo tipo de razão para fazê-lo, e a razão gar e contexto social específicos?
Existe um sentido no qual certo e errado são
aqui depende do quanto ela efetivamente se im-
obviamente relativos às circunstâncias. De modo
porta com as outras pessoas em geral. Se ela tem
geral, é certo devolver ao dono uma faca que
fortes motivações morais, estas produzirão fortes
você tomou emprestada, se ele a pedir de volta.
razões e fortes requisitos morais. Se suas motiva-
Mas se ele, nesse meio-tempo, ficou louco e quer
ções morais são fracas ou inexistentes, os requi-
a faca para com ela matar alguém, então você
sitos morais sobre ela serão igualmente fracos ou
não deveria devolvê-Ia. Não é desse tipo de rela-
inexistentes. Isso talvez pareça realista, do ponto
tividade que estou falando, pois não significa que
de vista psicológico, mas se opõe à idéia de que a moral é relativa no nível básico. Significa ape-
as mesmas regras morais se aplicam a todos nós, nas que os mesmos princípios morais básicos
e não apenas às pessoas boas. exigirão diferentes ações em diferentes circuns-
A questão sobre os requisitos morais serem tâncias.
ou não universais vem à baila não somente quan- O tipo mais profundo de relatividade, no
do comparamos as motivações de diferentes in- qual algumas pessoas acreditam, significaria que
divíduos, mas também quando comparamos os a maioria dos padrões básicos de certo e errado
padrões morais aceitos em diferentes socieda- - tais como as situações em que é e não é certo
des, em diferentes épocas. Muitas coisas que você matar, ou os sacrifícios que você deve fazer pe-
provavelmente considera erradas foram aceitas los outros - depende inteiramente dos padrões
como moralmente corretas por grandes grupos aceitos, de modo geral, pela sociedade em que
de pessoas no passado: escravidão, servidão, sa- você vive.
crifício humano, segregação racial, negação de li- Acho muito difícil acreditar nisso, principal-
berdade política e religiosa, sistemas de castas mente porque sempre parece possível criticar
hereditárias. E, provavelmente, algumas coisas os padrões aceitos em nossa sociedade e dizer
que hoje você julga serem certas serão conside- que são moralmente equivocados. Mas, para fa-
radas erradas pelas sociedades futuras. É sensato zer isso, você deve recorrer a algum padrão mais
acreditar que existe alguma verdade única sobre objetivo, a uma idéia do que é realmente certo
tudo isso, embora não tenhamos certeza do que e errado, em oposição ao que pensa a maioria
seja essa verdade? Ou é mais razoável acreditar das pessoas. É difícil dizer o que é isso, mas é

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UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA CERTO E ERRADO

uma idéia que a maior parte de nós entende, se Ora, é verdade que, quando as pessoas fa-
não somos servos obedientes do que a comuni- zem o que acham que devem fazer, com freqüên-
dade diz. cia sentem-se bem com isso. De modo seme-
Existem muitos problemas filosóficos com lhante, quando fazem o que consideram ser er-
relação ao conteúdo da moral - como deveria rado, sentem-se mal. Mas isso não significa que
manifestar-se a preocupação ou o respeito mo- esses sentimentos sejam seus motivos para agir.
ral pelos outros; se deveríamos ajudá-Ias a obter Em muitos casos, os sentimentos resultam de
o que desejam ou, simplesmente, abster-nos de motivos que também produzem a ação. Você não
prejudicá-Ias ou atrapalhá-Ias; até que ponto e se sentiria bem em fazer o que é certo, a menos
como ser imparciais. Deixei de lado a maioria que pensasse haver alguma outra razão para agir
dessas questões porque a minha preocupação assim, além do fato de que tal ação o faria sen-
aqui é com os fundamentos da moral em geral - tir-se bem. E não se sentiria culpado em fazer algo
até que ponto ela é universal e objetiva. errado, a menos que pensasse haver alguma ou-
Eu deveria responder a uma possível objeção tra razão para não agir dessa maneira, além do
à idéia da moral como um todo. Você provavel- fato de isso fazê-lo sentir-se culpado: alguma
mente já ouviu falar que a única razão que leva coisa que o fizesse sentir culpa com razão. Pelo
alguém a fazer alguma coisa é o fato de sentir-se menos, é assim que as coisas deveriam ser. É
bem ao fazê-Ia, ou de sentir-se mal por não fazê- verdade que algumas pessoas sentem uma culpa
Ia. Se fôssemos de fato motivados apenas por irracional a respeito de coisas que não têm ne-
nosso conforto, seria inútil para a moral tentar nhuma razão para pensar que são erradas - mas
apelar à preocupação com os outros. Segundo não é assim que a moral deveria funcionar.
esse ponto de vista, mesmo a conduta aparente- Num certo, sentido, as pessoas querem fazer
mente moral, na qual uma pessoa parece sacrifi- o que fazem. Mas suas razões e seus motivos para
car seus próprios interesses em benefício de querer fazer as coisas variam imensamente. Posso
outras, é na verdade motivada por sua preocupa- "querer" dar minha carteira a alguém só porque
ção consigo mesma: ela deseja evitar a culpa que ele tem uma arma apontada para minha cabeça
sentirá se não fizer a coisa "certa", ou experimen- e ameaça me matar se eu me recusar. E posso
tar o cálido fulgor da autocongratulação que ob- querer pular num rio gelado para salvar um es-
terá se fizer. Mas aqueles que não têm esses sen- tranho que está se afogando não porque isso me
timentos não têm motivos para ser "morais". fará sentir bem, mas apenas porque reconheço

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UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

que a vida dele é importante, assim como minha,


e reconheço que tenho uma razão para salvar
sua vida, da mesma forma que ele teria uma ra-
zão para salvar a minha se estivéssemos na situa-
ção oposta.
O argumento moral tenta apelar 'para uma
capacidade de motivação imparcial que se su-
põe existir em todos nós. Infelizmente, ela pode
estar profundamente enterrada e, em alguns ca-
sos, pode simplesmente não existir. Em todo ca-
so, precisa competir com poderosos motivos
egoístas, e com outros motivos pessoais que tal-
vez não sejam tão egoístas, em sua luta para con-
trolar nosso comportamento. A dificuldade de
justificar a moral não está em haver apenas um
motivo humano, mas em haver muitos.

80
8

Justiça

É injusto que algumas pessoas nasçam ricas


e outras pobres? Se é injusto, deveríamos fazer
alguma coisa quanto a isso?
O mundo está repleto de desigualdades -
dentro dos países e entre os países. Algumas
crianças nascem em lares prósperos e cheios de
conforto, crescem bem alimentadas e recebem
boa educação. Outras nascem pobres, não têm o
suficiente para comer e nunca têm acesso a boa
educação ou assistência médica. Evidentemente,
é uma questão de sorte: não somos responsáveis
por nascer numa certa classe social ou econômi-
ca ou num certo país. A questão é: até que pon-
to são ruins as desigualdades que não são culpa
das pessoas afetadas por elas? Deveriam os go-
vernos usar seu poder para tentar reduzir esse
tipo de desigualdade, que não é responsabilida-
de das vítimas?
Algumas desigualdades são deliberadamente
impostas. A discriminação racial, por exemplo,

81
UMA BREVE INTRODUÇÃO À FILO OFIA JUSTIÇA

deliberadamente exclui pessoas de certa raça das beneficiadas que outras com os mesmos talentos
oportunidades de emprego, moradia e educação naturais.
acessíveis a pessoas de outra raça. E as mulheres E não é só isso. Num sistema competitivo, as
podem ser mantidas fora do mercado de traba- diferenças quanto aos talentos naturais produzi-
lho, ou impedidas de desfrutar privilégios a que rão grandes diferenças nos benefícios resultantes.
só os homens têm acesso. Aqui não se trata ape- Aqueles cujas habilidades são objeto de grande
nas de uma questão de má sorte. A discrimina- procura terão condições de obter rendimentos
ção racial e sexual é claramente injusta: é uma for- muito maiores do que aqueles sem nenhuma ha-
ma de desigualdade gerada por fatores que não bilidade ou talento especial. Essas diferenças tam-
deveriam interferir no bem-estar básico das pes- bém são, em parte, questão de sorte. Embora te-
soas. A eqüidade requer que tais oportunidades nhamos que desenvolver e usar nossas habilida-
sejam abertas aos que têm qualificação, e, sem des' nenhum esforço, por maior que seja, pode-
dúvida, é uma boa coisa quando os governos rá capacitar a maioria de nós a atuar como Meryl
tentam impor essa igualdade de oportunidade. Streep, pintar como Pablo Picasso ou fabricar
É mais difícil, no entanto, opinar sobre as automóveis como Henry Ford. Algo semelhante
desigualdades que se manifestam no curso nor- acontece com realizações menores. A sorte de
mal dos acontecimentos, sem discriminação ra- ter um talento natural e, ao mesmo tempo, de
cial ou sexual deliberada. Pois, mesmo que exis- pertencer a uma certa família ou classe é um
ta igualdade de oportunidade, e que qualquer importante fator para determinar os rendimentos
pessoa qualificada possa ingressar numa univer- e a posição social de alguém numa sociedade
. sidade, conseguir um emprego, comprar uma competitiva. Oportunidades iguais geram resul-
casa ou candidatar-se a cargos - a despeito de tados desiguais.
•. raça, religião, sexo ou etnia -, ainda assim resta- Essas desigualdades, ao contrário dos resul-
rão inúmeras desigualdades. As pessoas prove- tados da discriminação sexual e racial, são pro-
nientes de famílias mais abastadas geralmente duzidas por escolhas e ações que, em si, não pa-
terão melhor formação e mais recursos, e tende- recem erradas. As pessoas tentam suprir as ne-
rão a ser mais capazes de competir por bons cessidades de seus filhos e dar-lhes uma boa edu-
empregos. Mesmo num sistema de igualdade de cação, e algumas têm mais dinheiro que outras
oportunidades, algumas pessoas contarão com para destinar a esse propósito. Elas pagam pelos
vantagens logo de início e sairão, por fim, mais produtos, serviços e entretenimentos que dese-

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UIVIA BREVE INTRODUÇÃO À FILOSOFIA JUSTIÇA

jam, e alguns fabricantes e artistas ficam mais ri- sequer tem chance de um dia vir a desfrutar uma
cos que outros porque o que têm a oferecer aten- situação econômica equivalente à das pessoas
de aos desejos de um número maior de pessoas. mais pobres da Europa, do Japão ou dos Esta-
Todos os tipos de negócios e organizações bus- dos Unidos. Essas grandes diferenças de boa e
cam contratar empregados que executem bem as má sorte parecem, sem dúvida, injustas; mas o
tarefas, e pagam salários mais altos para aqueles que se deveria fazer a respeito, se é que se de-
que têm habilidades especiais. Se um res~a~ran- veria fazer alguma coisa?
te está repleto de clientes e um outro, vizinho, Precisamos pensar tanto na desigualdade
está vazio, porque o primSiro tem um chejtalen- quanto na solução necessária para reduzi-Ia ou
toso e o segundo não, os clientes que escolhem eliminá-Ia. Com relação à desigualdade, a princi-
o primeiro restaurante e evitam o segundo não pal pergunta é: que causas da desigualdade são
estão agindo de maneira errada, embora suas es- erradas? Com relação à solução, a pergunta mais
colhas tenham uma conseqüência infeliz para o importante é: quais são os métodos certos para
proprietário e os empregados do segundo res- se interferir na desigualdade?
taurante, bem como para suas famílias. No caso da discriminação racial ou sexual
Tais efeitos são ainda mais incômodos quan- deliberada, as respostas são fáceis. A causa da
do deixam algumas pessoas em situação muito desigualdade é errada porque aquele que discri-
ruim. Em alguns países, grandes segmentos da mina está jazendo algo errado. E a solução é
população vivem na pobreza há gerações. Me~- simplesmente ímpedí-lo de fazer isso. Se um se-
mo, contudo, num país rico como os Estados Um- nhorio se recusa a alugar seu imóvel a negros,
" dos, muita gente inicia a vida com grandes des- deve ser processado por isso.
vantagens, devidas a fatores econômicos e edu- Mas em outros casos as questões são mais
"'" cacionais. Algumas pessoas conseguem superar difíceis. O problema é que as desigualdades que
essas desvantagens, mas seu êxito exige mais es- parecem erradas podem surgir de causas que
forço do que seria necessário se tivessem parti- não envolvem pessoas agindo errado. Parece in-
do de uma situação melhor. justo que alguém sofra desvantagens por razões
Mais perturbadoras, no entanto, são as enor- das quais não tem culpa, como nascer mais po-
mes desigualdades de riqueza, saúde, educação bre do que outro. Mas tais desigualdades exis-
e desenvolvimento entre países ricos e países po- tem porque algumas pessoas foram mais bem su-
bres. A maioria das pessoas neste mundo nem cedidas que outras em ganhar dinheiro e, assim,

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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA JUSTIÇA

fazer o melhor que podiam para ajudar seus fi- procura. Pode ser que você não considere erra-
lhos. E, como as pessoas tendem a se casar com da a desigualdade ocasionada por esses fatores.
membros de sua própria classe social e econô- Mas, se acha que existe algo errado aí e que a
mica, elas acumulam riqueza e posição, que são sociedade deveria tentar reduzir esse tipo de de-
transmitidas depois de uma geração a outra. As sigualdade, então você deve propor uma solu-
ações que se combinam para gerar essas causas ção que intervenha nas próprias causas ou que
- escolhas profissionais, aquisições, casamentos, intervenha diretamente nos efeitos desiguais.
heranças e esforços para criar e educar os filhos Ora, como vimos, as causas em si incluem
- não parecem erradas em si. O que está errado, escolhas relativamente inocentes que as pessoas
se é que está, é o resultado: que algumas pessoas fazem com relação a como investir seu tempo e
comecem a vida com imerecidas desvantagens. dinheiro e como levar suas vidas. Interferir nas
Se rejeitamos esse tipo de má sorte por con- escolhas das pessoas sobre quais produtos com-
siderá-Ia injusta, deve ser porque não concorda- prar, como ajudar seus filhos, ou quanto pagar a
mos com que as pessoas sofram desvantagens seus empregados, é muito diferente de interferir
das quais não têm culpa e que são, meramente, em suas escolhas quando querem roubar bancos
resultado do funcionamento normal do sistema ou discriminar negros ou mulheres. Uma interfe-
socioeconômico em que nasceram. Alguns de rência mais indireta na vida econômica dos indi-
nós talvez acreditem também que toda má sorte víduos é a tributação, particularmente os impos-
que não seja culpa de alguém, tal como nascer tos sobre os rendimentos e a herança e alguns
com uma deficiência física, deve, se possível, ser impostos sobre o consumo, que podem ter em
compensada. Mas deixemos esses casos fora des- vista tirar mais dos ricos que dos pobres. Essa é
ta discussão. Quero me concentrar aqui nas de- uma das formas pelas quais o governo pode ten-
.. sigualdades imerecidas que resultam do modo tar evitar que se desenvolvam grandes desigual-
como operam a sociedade e a economia, parti- dades de riqueza ao longo das gerações - impe-
cularmente numa economia competitiva. dindo que as pessoas conservem para si todo o
As duas principais fontes de desigualdades dinheiro que têm.
imerecidas, como disse, são as diferenças de clas- Mais importante, porém, seria utilizar os re-
se socioeconômica em que as pessoas nascem, e cursos públicos obtidos com os impostos para
as diferenças de talentos ou habilidades naturais propiciar as vantagens da educação e da subsis-
para desempenhar tarefas pelas quais há muita tência às crianças de famílias que não têm con-

86 87
UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA JUSTIÇA

dições de fazer isso por si sós. Os programas de ou às pessoas de rendimentos mais baixos. Po-
bem-estar social tentam fazer isso, usando a ren- deria incluir-se aqui o pagamento em dinheiro
da proveniente dos impostos para oferecer be- à,queles que têm uma capacidade de ganho infe-
nefícios básicos de assistência médica, alimenta- nor, na forma do chamado "imposto de renda
ção, moradia e educação. Esse é um ataque dire- negativo". Nenhum desses programas eliminaria
to às desigualdades. por completo as desigualdades imerecidas e
No caso das desigualdades que resultam de qualquer sistema de tributação terá outros efei-
diferenças de capacidade, não há muito o que se tos sobre a economia - efeitos sobre o emprego
possa fazer para intervir nas causas, além de eli- e a pobreza, inclusive - que talvez sejam difíceis
minar a economia competitiva. Enquanto hou- de prever. E complicada, portanto, essa questão
ver competição na contratação de pessoas para da solução.
os empregos, competição entre as pessoas pelos / .Voltemos nossa atenção para o aspecto filo-
empregos, competição entre as firmas pelos clien- sófico. as medidas necessárias para reduzir as
tes, alguns irão ganhar mais do que outros. A al- d~sigualdades imerecidas que têm origem nas
ternativa seria uma economia centralizada, na dIferenças de classe e de talento natural irão exi-
qual todos tivessem mais ou menos a mesma re- gir interferências nas atividades econômicas dos
muneração e houvesse uma autoridade centrali- indivíduos, sobretudo mediante a tributação: o
zada, por assim dizer, que designasse as pessoas governo tira dinheiro de algumas pessoas e o
para os trabalhos. Embora tenha sido experi- utiliza para ajudar outras. Esse não é o único uso
mentado, esse sistema impõe pesados ônus à que se faz dos impostos, nem mesmo o princi-
liberdade e à eficiência - pesados demais, na mi- pal: muitos impostos são destinados a coisas
nha opinião, para ser aceitável, ainda que outros que beneficiam mais aqueles que gozam de boa
, discordem. situação do que os pobres. Mas a tributação re-
Se pretendemos reduzir as desigualdades distributiva, como é chamada, é a mais relevan-
resultantes das diferenças de habilidade sem nos te para o nosso problema. Ela requer que o go-
livrar da economia competitiva, será necessário verno use seu poder para interferir naquilo que
atacar as próprias desigualdades. Isso poderia as pessoas fazem, não porque o que fazem seja
ser feito mediante uma tributação maior sobre errado em si, como o roubo ou a discriminação,
rendas mais altas e pelo fornecimento gratuito ~~s porque contribui para um efeito que parece
de alguns serviços públicos a toda a população, injusto.

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UMA BREVE INTRODUÇÃO Ã FILOSOFIA JUSTIÇA

Algumas pessoas não concordam com a tri- Acredito que as desigualdades decorrentes
butação redistributiva, pois acham que o gover- de qualquer uma dessas causas são injustas. E é
no não deve interferir na vida das pessoas, a me- obviamente injusto que, por causa de um siste-
nos que elas estejam fazendo algo errado, e que ma econômico, algumas pessoas sofram signifi-
todas as transações econômicas que produzem cativas desvantagens materiais e sociais, das quais
essas desioualdades não são erradas, mas total- não têm culpa, quando isso pode ser evitado
mente inocentes. Às vezes sustentam também mediante um sistema de tributação redistributiva
que não há nada de errado com as desiguald~- e programas de bem-estar social, Mas, para deci-
des em si: que, embora sejam imerecidas e as VI- dir-se sobre essa questão, você precisa refletir
timas não tenham culpa, a sociedade não tem a sobre as causas da desigualdade que considera
obrigação de resolvê-Ias. A vida é assim, dirão injustas, e que soluções lhe parecem legítimas.
elas: algumas pessoas têm mais sorte que outras. Falamos aqui principalmente dç problema
O único momento em que temos de jazer algo a da justiça social dentro de uma certa sociedade.
respeito é quando o infortúnio é resultado de al- O problema é muito mais difícil quando aborda-
gum dano que uma pessoa causou a outra. do em escala mundial; primeiro, porque as desi-
Trata-se de uma questão política controver- gualdades são grandes demais e, segundo, por-
sa, sobre a qual há muitas opiniões diferentes. que não é claro quais soluções são possíveis, na
Algumas pessoas se opõem mais às desigualda- ausência de um governo mundial que pudesse
des que surgem do fato de se nascer numa certa arrecadar impostos mundiais e verificar se estão
classe socioeconômica do que às desigualdades sendo eficientemente utilizados. Não há nenhu-
resultantes de diferenças de talento ou habilida- ma perspectiva de um governo mundial, o que
de. Não aprovam as conseqüências geradas por também é bom, pois provavelmente seria um
uma pessoa nascer rica e outra numa favela, mas governo horrível em muitos aspectos. Embora o
,.. acham que uma pessoa merece os ganhos que problema da justiça global ainda persista, é difí-
pode obter com seus próprios esforços - de m~- cil saber o que fazer com relação a ele nesse sis-
do que não é injusto que uma pessoa ganhe .mu~- tema de Estados soberanos independentes que
to e outra ganhe muito pouco, porque a pnmei- temos hoje em dia.
ra tem talento ou capacidade para desenvolver
habilidades sofisticadas e a segunda só pode rea-
lizar trabalho não especializado.

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