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Narrativa da Vida

de Frederick Douglass,
Um Escravo Americano.
Escrita por ele mesmo.

Frederick Douglass

Tradução de Leonardo Poglia Vidal


Revisão de Caroline Navarrina de Moura
Edição de Lis Yana de Lima Martinez
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

CONSELHO EDITORIAL:

Profª. Drª. Sandra Sirangelo Maggio (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Prof. Dr. Claudio Vescia Zanini (Universidade do Vale do Rio dos Sinos)
Profª. Drª. Adriane Ferreira Veras (Universidade Estadual do Vale do Acaraú
Prof. Dr. José Carlos Marquez Volcato (Universidade Federal de Pelotas)
Profª Drª Jaqueline Bohn Donada (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)

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Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título

The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave

Frederick Douglass

Tradução
Leonardo Poglia Vidal

Revisão
Caroline Navarrina de Moura

Acompanhamento Editorial
Lis Yana de Lima Martinez

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP):


____________________________________________________________
Douglass, Frederick

Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano / Frederick


Douglass; traduzido por Leonardo Poglia Vidal.

Título original The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave

ISBN: 1515175340
ISBN-13: 978-1515175346
________________________________________________________________
Todos os direitos autorais desta edição reservados ao tradutor e organizador da
mesma

Copyright © 2012 Leonardo Poglia Vidal


All rights reserved.

ISBN: 1515175340
ISBN-13: 978-1515175346
DEDICATÓRIA

Para Roberta, Elizabeth, Luiz, Daniela, Sandra, Carol e Yana.


SUMÁRIO

NOTA DO TRADUTOR ................................................................................... 3


INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS ........................................ 11

Informações sobre os originais: .......................................................................... 15


Prefácio .............................................................................................................. 17
Wendell Phillips, esq. ....................................................................................... 29
Frederick Douglass........................................................................................... 35
CAPÍTULO I ............................................................................................... 37
CAPÍTULO II ............................................................................................. 45
CAPÍTULO III ............................................................................................ 55
CAPÍTULO IV ............................................................................................ 61
CAPÍTULO V.............................................................................................. 67
CAPÍTULO VIN ........................................................................................ 73
CAPÍTULO VII .......................................................................................... 79
CAPÍTULO VIII ......................................................................................... 87
CAPÍTULO IX ............................................................................................ 95
CAPÍTULO X............................................................................................ 103
CAPÍTULO XI .......................................................................................... 147
APÊNDICE ............................................................................................... 167

COMO ESCAPEI DA ESCRAVIDÃO.................................................... 177

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Caroline Navarrina de Moura, revisora desta edição e autora da


introdução; a Sandra Sirangelo Maggio, que tem me ajudado com os
projetos intempestivos e os (des)caminhos da carreira acadêmica. A Lis
Yana de Lima Martinez, que ajudou com parte da edição. Aos demais
membros da comissão editorial. E isto pode parecer estranho, mas agradeço
também àqueles que têm este livro em mãos, e em especial àqueles que
propagarem e passarem adiante a mensagem que ele traz: a de que a
educação é o caminho verdadeiro para a liberdade.

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NOTA DO TRADUTOR

Esta tradução tem dois objetivos: primeiro,


disponibilizar em Português, pela primeira vez, um dos
textos mais importantes para a abolição da escravatura nos
Estados Unidos da América (EUA), fundamental para a
compreensão do processo histórico e cultural que instituiu
direitos de cidadania a toda uma parcela da população que
até então era legalmente destituída da própria humanidade.
Segundo, estimular não apenas a leitura, mas o letramento
no Brasil. Porque, se a história da vida de Frederick
Douglass tem um tema dominante, é o de que a única fuga
da escravidão que faz sentido começa por dentro – é um
processo angustiante e dolorido, mas necessário, encetado
pelo exercício da liberdade mais básica e íntima, que
mesmo o mais vigiado dos escravos pode cultivar: a
intelectual.
Ouvi falar (literalmente) de Douglass pela primeira vez
quando ouvia o audiobook, de Carl Sagan, entitulado The

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Demon-Haunted World, fiquei tocado pelo episódio descrito


por Sagan, que tem por fim reforçar o argumento de que a
educação é o caminho para a liberdade. Imediatamente
busquei pela versão em domínio público do texto,
disponível na Internet; e, movido pela curiosidade, quis
saber também por quanto o texto estava disponível em
Português. Caiu-me(?) o queixo ao ver que não estava
disponível em Português por preço algum. Considero uma
obra de tal importância necessária e útil, tanto como lição
de cidadania quanto como um estímulo a discussões sobre
nossa história, nossa cidadania e nossa educação. De modo
que decidi fazer alguma coisa nesse sentido, assim que
juntasse do chão o meu queixo.
Esse livro, como já foi apontado, é de extrema
importância para a compreensão do processo abolicionista
nos EUA, amplamente ensinado nas faculdades e escolas
por lá; é considerado um marco da cidadania americana, e
até versões para leitores infantis estão disponíveis. Seu
autor, Frederick Douglass, foi um escravo, um trabalhador
livre em uma fundição, depois um orador em prol do
movimento abolicionista, tanto nos EUA quanto no
exterior, tendo viajado para a Inglaterra e a Irlanda e
difundido a causa da abolição, um recrutador de tropas
para a Guerra Civil Americana, um sufragista, um
conselheiro do presidente Abraham Lincoln e o primeiro
afro-americano a disputar a vice-presidência dos EUA.
Muito se falou quando Barack Obama foi eleito o primeiro
presidente negro dos EUA. Pois bem – o primeiro
candidato a vice-presidente por lá ainda havia sido escravo.

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Como Sagan aponta, Douglass também foi o único – e


gostaria de salientar repetindo: o único – homem negro a
participar da Convenção de Seneca Falls e a falar em defesa
do direito feminino ao voto. Douglas não era apenas
liberto, mas um libertário, e lutou ativamente pela igualdade
de todos, sem distinção de sexo ou de cor.
A Narrativa da Vida de Frederick Douglass (originalmente
publicada em 1845) cobre seus primeiros anos de vida, até
sua fuga da escravidão. Foi publicada porque, mesmo entre
os abolicionistas, não se tinha uma ideia muito boa da
capacidade intelectual dos escravos libertos, e muitos
duvidavam que Frederick Douglass tivesse realmente sido
um escravo, achando que ele apenas fazia este papel para
impressionar e levantar o argumento da igualdade com seu
exemplo. Esse tipo de racismo velado e pervasivo, mesmo
da parte de aliados, Douglass enfrentou talvez da melhor
maneira possível – um livro de seu próprio punho, em que
não só dá nome aos bois, como também aos senhores,
mestres, feitores e cuidadores de escravos sob quem sofreu
as barbaridades que cometeram e, de quebra, indica locais e
datas. Aos que porventura argumentem que Douglass usou
um tijolo para matar uma mosca, é interessante salientar
que teve, sem seu relato, o cuidado de silenciar a respeito
de uma, e apenas uma, coisa: não indicou a forma exata de
sua fuga, pois temia que seu relato fosse usado para impedir
outros escravos de seguirem pelo mesmo caminho.
Quarenta anos depois, entretanto, quando a abolição já
tinha sido declarada e sua precaução tornada inútil,

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Douglass finalmente escreveu o artigo Como Escapei da


Escravidão (1881), em que finalmente revela a maneira com
que fugiu (e repete boa parte do relato de sua vida em New
Bedford). Este artigo foi anexado no final deste livro, a fim
de completar a narrativa.
Douglass escreveu duas outras autobiografias também
inéditas: My Bondage and My Freedom (1855), em que expande
o texto traduzido aqui, e Life and Time of Frederick Douglass
(1881, revisada e expandida em 1892, por conta da abolição
nos EUA), que é o único texto em que fala de sua vida pós
Guerra Civil. Seu texto mais lido, entretanto, é sem sombra
de dúvida o que consta neste volume, e há boas razões para
que seja assim. Falar sobre essas razões também implica em
falar sobre as escolhas realizadas nesta tradução, de modo
que se mata dois coelhos com uma cajadada só: se explica a
natureza do texto e se pede o perdão do leitor pelo miasma
de álibis lunáticos que servem de desculpa para o que se fez
na tradução.
O estilo de Douglass é bastante fluido, direto e fácil de
ler. É provável que isso se dê por conta do ofício de
Douglass como palestrante, o que até certo ponto marcou
sua escrita com a oralidade. São frases curtas, às vezes
bastante repetitivas (o que tentei evitar como pude, para
não tornar a leitura cansativa), fáceis de falar em um fôlego.
Repetir palavras é enfatizar, e é um recurso amplamente
usado na oratória; é, então, compreensível que utilizasse
esse recurso também em sua escrita. Douglass não usa
linguagem rebuscada nem parece pedante ou ansioso para

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

demonstrar sua instrução (para o que teria motivos de


sobra, pois, como o leitor verá ela, é fruto de grande
esforço pessoal). Tudo isso ajuda a explicar – mas não
explica por completo – o tom dado à tradução, em que se
buscou a simplicidade e a fluidez, em vez de se seguir a
construção lógica dos argumentos ou buscar ser fiel ao
estilo original.

A outra metade da explicação está nas intenções deste


livro.
Este, espera-se, é um livro para ser lido: fácil, fluido e
familiar. Todas as medidas foram convertidas para o
sistema métrico, os ditados e lemas adaptados, as citações
bíblicas e literárias pesquisadas (até onde se conseguiu – a
referência do poema, no final da narrativa, eu não pude
encontrar nem com promessa e vela acesa para o Negrinho
do Pastoreio). Não se usou a palavra “inverdade” onde a
“mentira” serviria, e as frases foram colocadas na ordem
mais direta possível. O objetivo de usar linguagem simples
é o de permitir a leitura mais ampla possível, e inspirar
leitores iniciantes e veteranos com este texto peculiar, em
que a educação tem parte tão importante. E o de incluir as
fontes, permitir pesquisas subsequentes por eventuais
alunos ou graduandos interessados.
Finalmente, tenho algo a dizer em relação ao ‘negro’.
Há diferentes tipos de referência à cor de pele no livro, as
que mais aparecem sendo ‘nigger’, que é considerado termo
racista (eu particularmente não entendo por quê, uma vez
que o erro gramatical dentro da palavra faz o serviço
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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

considerável de denunciar a ignorância no seu emprego – a


melhor tradução que pude pensar para o termo seria a
corruptela de ‘negro’ empregada por nossos racistas da
casa, ‘nego’, mas, por motivos óbvios de clareza, não quis
empregá-la), ‘colored’ ou em referências a pessoas ‘of color’,
que corresponderiam ao ‘de cor’, além do ‘black’, que
corresponderia ao nosso ‘negro’. Prefiro esse último tipo de
referência à cor de pele, porque tem um sentido lógico – se
a cor de pele se dá pela quantidade de melanina, um
pigmento escuro, a pele mais escura pode bem ser chamada
de ‘negra’, embora não seja totalmente. O ‘de cor’ é usado
no Brasil como um eufemismo para ‘negro’ (como se
‘negro’ fosse um termo forte ou desconfortável para se usar
comumente, o que denuncia o racismo de seu uso), e não
faz sentido estético, uma vez que a pele branca também
tem cor. Empreguei-o quando não pude evitar, para que o
texto não ficasse repetitivo, porque, quando Douglass
emprega o termo, essa conotação racista não está,
obviamente, presente. Trata-se de uma questão de pesar a
fidelidade ao original e a fidelidade ao sentido do original –
em outra língua e em outra época, uma expressão análoga
pode ter um significado cultural diferente.
Pessoalmente, sou da opinião de que o politicamente
correto faz mais mal do que bem a uma cultura, porque
estabelece palavras aceitáveis e busca eliminar o uso
daquelas que estão imbuídas de preconceito, e não faz nada
para tratar do preconceito em si. Assim, o único efeito que
tem é causar um efeito de bola de neve, em que os novos
termos vão lentamente sendo imbuídos de preconceito e

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

trocados por termos ainda mais exóticos, ad infinitum – e,


desse jeito, vamos acabar tendo que escolher entre ser
pernósticos, preconceituosos ou mudos. Em minha
opinião, a única forma de lidar com o preconceito é a
educação.
Creio que Douglass aprovaria.

Leonardo Poglia Vidal, fev. 2016.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS

Frederick Augustus Washington Bailey, ou apenas


Frederick Douglass, pseudônimo pelo qual se tornou
mundialmente conhecido ao escolhê-lo para assinar suas
obras, foi um cidadão afro-americano abolicionista, orador,
escritor e estadista que espalhou, por meio de suas
autobiografias, o que realmente significava ser um escravo
em seu país. Assim, pôde descrever de forma simples,
objetiva e verdadeira as experiências dolorosas que
presenciou e pelas quais passou, transformando seus
escritos nos relatos mais lidos em todo território nacional,
fazendo de Douglass um verdadeiro líder para o combate
ao sistema legal da escravidão norte-americana.
Nas suas narrativas, revela ao público fatos marcantes
e extraordinários da sua vida: nascido no Condado de
Talbot, no ano de 1818, Douglass encontra o regime
escravagista no seu auge devido ao forte sistema capitalista
no sul dos Estados Unidos. Como consequência, não
possuía documentos próprios – escolhendo a data quatorze
de Fevereiro como sendo o dia de seu aniversário – e é
mandado para uma outra fazenda em Baltimore, a fim de
servir parentes de seu dono original. Contudo, essa
mudança na vida de Douglass se torna fundamental a partir

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

do momento em que a esposa de seu segundo dono,


Sophie, a quem descreve como sendo excepcionalmente
amável e generosa, decide ensiná-lo a ler e a escrever. O Sr.
Auld não aprova a liberdade da esposa e manda
imediatamente que cesse, mas a semente já havia sido
plantada na mente e na criatividade da criança de oito anos.
Douglass não se abate com o fim das aulas e decide seguir
por conta própria as lições que um dia abririam portas para
a sua independência; para atingir seu objetivo, faz
sacrifícios enormes, como trocar comida por aulas e vender
seu serviço extra nas idas pela cidade para comprar o livro
didático de que necessitava.
Aos vinte anos, Douglass é mandado de volta para a
costa Leste, em Maryland, aos cuidados de seu primeiro
dono, Edward Covey, que, ao contrário do Sr. Auld, tratava
cruelmente seus escravos. Em vez de responder às
violências físicas e psicológicas que enfrentava na mesma
moeda, Douglass percebeu que podia mudar o seu mundo
e o de seus colegas permanentemente, através das palavras.
Com o domínio da escrita, teve acesso aos livros desde o
literário até o panfleto que pregava contra o regime
escravagista – e assim ganhou argumentos para questionar
as condições em que vivia. Os conflitos entre Douglass e
seu senhor, Covey, escalam, e Douglass é transferido
novamente. Enfim consegue escapar da escravidão,
chegando à região norte do país – mais especificamente a
New Bedford, no estado de Massachussets, onde é
recebido como um homem livre. Nesse momento, tanto
sua vida pessoal quanto a sua vida política decolam

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

rapidamente. Casa-se com Anna Murray e logo se torna


palestrante pela Sociedade Antiescravagista Americana.
Douglass, então, conhece pessoas novas e influentes, como
o William Lloyd Garrison, que também simpatizam com
sua causa e o encorajam a se manifestar cada vez mais.
Com o fim da Guerra Civil americana, é declarado o
fim do regime escravagista no país e Douglass continua
com suas publicações e palestras, engajando-se também em
outras causas, como o direito ao voto feminino. Nesse
momento, é tido como o mais importante militante a lutar
pelas minorias, atraindo audiências cada vez maiores em
suas reuniões dentro e fora do país, mantendo sempre o
argumento que defendeu até o fim de sua vida: a igualdade
– acreditava que todo o ser humano era igual, possuindo as
mesmas virtudes e defeitos, as mesmas capacidades e
fraquezas.
Seus relatos trazem o que nenhum outro livro didático
leva para os alunos da rede curricular de ensino, ou seja, a
veracidade de um período histórico tão longo e tão duro. É
extremamente gratificante poder contribuir com sua causa
ao ajudar a trazer o seu texto para a língua portuguesa,
perpetuando e propagando o seu legado através da palavra
na qual tanto acreditava, que insiste em permanecer atual a
cada mudança de geração.

Caroline Navarrina de Moura1

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da UFRGS.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

REFERÊNCIAS

DOUGLASS, Frederick. Narrative of the Life of


Frederick Douglass, an American Slave. Boston: Anti-
Slavery Office, 1845.
___________________. Life and Times of Frederick
Douglass: His Early Life as a Slave, His Escape from
Bondage, and His Complete History to the Present Time.
Hartford, Conn.: Park Publishing Co., 1881.
GENOVESE, Eugene. A Economia Política da
Escravidão. RJ: Pallas, 1976.

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

INFORMAÇÕES SOBRE OS ORIGINAIS:

Nota do documento original: este livro eletrônico está


sendo divulgado neste momento em honra do aniversário
de Martin Luther King Jr. (nascido a 15 de Janeiro, 1929),
celebrado oficialmente em 20 de janeiro de 1992.

Narrativa da Vida de Frederick


Douglass, Um Escravo Americano.
Escrita por ele mesmo.
Boston
Publicado pelo Escritório Anti-escravidão, nº 25,
Cornhill, 1845
Adicionado em 1845 por Frederick Douglass ao
escritório da Corte Distrital de Massachussets por ato do
Congressual no ano de 1845

Texto em domínio público encontrado gratuitamente em vários


formatos no endereço eletrônico:
<http://www.gutenberg.org/ebooks/23>

Como Escapei da Escravidão


DOUGLASS, Frederick. "My Escape from Slavery."
The Century Illustrated Magazine 23, n.s. 1 (Nov. 1881):
125-131. Documento em domínio público disponível em
vários formatos no endereço:
<http://www.gutenberg.org/ebooks/99>

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

PREFÁCIO

No mês de agosto de 1841, participei de uma convenção


contra a escravidão em Nantucket, em que felizmente
conheci Frederick Douglass, o autor da narrativa que se segue.
Ele não era conhecido de ninguém por lá, mas, tendo
escapado recentemente dos grilhões da prisão sulista, e
estando curioso em relação aos princípios e medidas
tomadas pelos abolicionistas – de quem ele havia ouvido
falar vagamente enquanto era um escravo – ele foi
convencido a comparecer à convenção, embora na época
residisse em New Bedford.
Que momento feliz! – feliz para os milhões de seus
irmãos acorrentados, ainda esperando a libertação de seu
predicamento! – feliz para a causa da emancipação dos
negros e da liberdade universal! – feliz para sua terra natal,
que ele já fez tanto para salvar e abençoar! – feliz para o
grande número de amigos e conhecidos, cujas simpatia e
afeição, ele ganhou através das muitas tribulações que
sofreu, das virtudes de seu caráter e de sua memória viva
daqueles que ainda estão acorrentados, como se ainda
estivesse com eles! – feliz para as multidões, em várias
partes de nossa república, cujas mentes ele esclareceu em
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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

relação ao assunto da escravidão, e que se derreteram em


lágrimas por sua paixão ou se levantaram indignados diante
de sua denúncia eloquente dos mercadores de homens! –
feliz em si mesmo, uma vez que esse momento o trouxe à
causa pública, “mostrou ao mundo um HOMEM”, atiçou
as energias dormentes de sua alma e o consagrou ao grande
serviço de quebrar o cajado do opressor, e de dar liberdade
ao oprimido!
Jamais esquecerei sua primeira fala na convenção – a
emoção extraordinária que incitou em minha mente – a
impressão poderosa que causou em um auditório cheio,
totalmente tomado pela surpresa – o aplauso que se
estendeu do princípio ao fim de seus comentários
oportunos. Acho que jamais odiei a escravidão tão
intensamente quanto naquele momento; com certeza,
minha percepção da enorme injúria que ela, na natureza
divina de suas vítimas, nunca esteve tão clara. E ali estava
uma delas, de porte altivo e belo, dotada de um rico
intelecto, um prodígio em sua eloquência natural, uma alma
claramente “muito pouco abaixo dos anjos”, e ainda assim
um escravo. Sim, um escravo fugido – temendo por sua
segurança, mal acreditando que, em solo americano, uma
única pessoa pudesse lhe oferecer a mão da amizade em
meio às suas tribulações, por Deus ou pela Humanidade!
Capaz de altos voos como um intelectual e uma criatura
moral, tendo precisado de nada mais que um pouco de
cultivo para torná-lo um distinto membro da sociedade e
uma bênção para sua raça – e, no entanto, pela lei da terra,
pela voz do povo, pelos termos do código da escravatura,

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

ele era apenas uma propriedade, um animal de carga, um


bem material.
Um querido amigo de New Bedford convenceu o Sr.
Douglass a realizar uma palestra na convenção: ele subiu na
plataforma com hesitação e embaraço, compreensíveis em
uma pessoa sensível nesse tipo de situação, nova pra ele.
Após se desculpar por sua ignorância, lembrando a
audiência que a escravidão é escola pobre para o coração e
o intelecto, ele narrou alguns casos de sua própria
experiência como escravo, e durante sua fala, disse muitas
coisas nobres e fez instigantes reflexões. Assim que ele se
sentou, eu, cheio de esperança e admiração, levantei de
minha cadeira e declarei que Patrick Henry, que tem fama
como revolucionário, jamais havia feito um discurso tão
eloquente pela causa da liberdade como aquele que recém
havíamos ouvido daquele fugitivo procurado. Assim
pensava então, e assim penso agora. Lembrei a audiência
do perigo que cercava esse jovem do norte, que havia
emancipado a si mesmo – mesmo em Massachussets, terra
dos nossos ancestrais peregrinos, dentre os descendentes
dos senhores da revolução; e, assim, perguntei a eles se
algum dia permitiriam que ele fosse carregado de novo para
a escravidão – fosse por lei ou não, pela constituição ou
fora dela. A resposta foi unânime em gritos trovejantes de –
“NÃO!” “Vocês prestarão a ele seu socorro e o protegerão
como um de seus irmãos, residentes deste estado
portuário?” “SIM!”, gritou a multidão, com uma energia tão
surpreendente que os tiranos impiedosos, como Mason e
Dixon, poderiam quase ter ouvido a enorme comoção e a

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

reconhecido como a promessa de uma determinação


invencível por parte daqueles que a emitiram, de não trair
aqueles que passam e de esconder os perseguidos e
aguentar com firmeza as consequências.
Imediatamente percebi que, se o Sr. Douglass pudesse
ser persuadido a dedicar seu tempo e talento promovendo
o fim da escravatura, essa causa ganharia um ímpeto
poderoso, e um golpe severo seria dado contra o
preconceito racial contra os negros, sustentado pelo norte.
Então, me dediquei a instigar sua esperança e coragem,
para que ele pudesse ousar seguir uma vocação tão anômala
e de tão grande responsabilidade para uma pessoa em sua
situação; e nisso fui auxiliado por amigos cordiais,
especialmente, pelo falecido agente feral da Sociedade Anti-
escravidão de Massachussets, Sr. John A. Collins, que
concordava comigo nessa questão. No começo, não
logramos convencê-lo: ele não se julgava adequado a uma
tarefa tão grandiosa; o caminho adiante lhe era totalmente
desconhecido, e ele temia fazer mais mal do que bem. Após
muito ponderar, entretanto, ele aquiesceu em experimentar
– e, desde então, tem servido como palestrante, servindo
em prol de ambos os Americanos ou a Sociedade Anti-
escravidão de Massachussets. Ele tem sido muito pródigo
em seu trabalho, e seu sucesso em combater o preconceito,
em converter e agitar as mentes do público superam as
mais elevadas expectativas levantadas no início de sua
brilhante carreira. Ele se comporta de forma gentil e
humilde, e ainda assim, com hombridade. Como
palestrante, se distingue na emoção, perspicácia,

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

comparação, imitação, força de seu argumento e fluência de


sua linguagem. Há nele aquela mistura de cabeça e coração
que é indispensável para se iluminar o entendimento e
ganhar os corações de outros. Que ele continue forte e
constante! Que continue a crescer “em graça e no
conhecimento de Deus”, que ele seja sempre mais útil à
causa da humanidade ferida, seja aqui ou no estrangeiro!
É, com certeza, um fato notável que um dos maiores
defensores públicos da população escrava seja ele mesmo a
pessoa de Frederick Douglass, um escravo fugitivo, e que a
população negra dos Estados Unidos seja tão propriamente
representada por um de seus próprios integrantes, Charles
Lenox Remond, cujos apelos eloquentes têm exortado o
mais alto aplauso nos dois lados do Atlântico. Deixem que
os caluniadores das raças negras desprezem a si mesmos
por sua baixeza e rigidez de espírito, e, de agora em diante,
que se cesse de falar da inferioridade natural daqueles que
requerem nada além de tempo e oportunidade para atingir
o ponto mais alto da excelência humana.
Na verdade, se pode questionar se alguma parte da
população da terra teria sido capaz de aguentar as
privações, sofrimentos e horrores da escravidão sem se
tornar mais degradada do que os escravos de ascendência
africana. Nada faltou fazer para aleijar seu intelecto,
escurecer suas mentes, rebaixar sua natureza moral,
obliterar todos os traços de sua humanidade e, ainda assim,
de que forma maravilhosa eles têm aguentado o fardo
descomunal da mais detestável sujeição, sob o qual vêm
gemendo por séculos! Para ilustrar o efeito da escravidão

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

no homem branco – para demonstrar que, em iguais


condições, ele não tem a mesma resistência de seu irmão
negro – Daniel O’Connel, o distinto defensor da
emancipação universal e o maior campeão da já prostrada,
mas ainda não conquistada, Irlanda, relata a seguinte
história em uma palestra dada por ele no Conciliation Hall,
em Dublin, diante da Loyal National Repeal Association,
em 31 de março de 1845: “Não importa”, disse o Sr.
O’Connel, “sob que termo enganador a escravidão possa
tentar se esconder, continua medonha. Tem uma tendência
natural e inevitável de brutalizar cada qualidade nobre do homem.
Um marinheiro americano, que naufragou na costa da
África, onde foi escravo por três anos, foi descoberto
embrutecido e rebaixado – havia perdido a capacidade da
razão, esquecido sua língua nativa, só conseguia pronunciar
uma algaravia sem nexo entre o Árabe e o Inglês, que
ninguém era capaz de entender e ele próprio achava
dificuldade em pronunciar. Assim se vai a teoria da
influência humanizante de nossas instituições!” Mesmo
admitindo que este é um caso extraordinário de
deterioração mental, ao menos prova de que o escravo
branco pode afundar tanto na escala da humanidade quanto
o negro.
O Sr. Douglass escolheu, muito apropriadamente,
escrever sua narrativa em seu próprio estilo, e da melhor
forma que possa, em vez de empregar a ajuda de outra
pessoa. É, assim, texto de sua própria lavra; e,
considerando quão longos e escuros seus anos de
escravidão – quão poucas foram suas oportunidades de

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

desenvolver sua mente desde que ele quebrou seus grilhões


–, faz jus ao seu coração e seu entendimento. Aquele que
conseguir folheá-lo sem uma lágrima nos olhos, um
suspiro, uma aflição de espírito – sem ser tomado por uma
indizível aversão à escravatura e a todos os seus
instigadores ou determinado a buscar a derrocada de tão
execrável sistema – deve ter um coração de pedra, e
qualificado para atuar como traficante de “escravos e almas
de homens”. Tenho certeza de que esta obra é
essencialmente verdadeira em todos os seus pontos, que
nada tenha sido posto por malícia, nada exagerado, nada
inventado; que, em vez de exagerar um único fato
pertinente à escravidão como ela é, é mais branda que a
realidade. A experiência de Frederick Douglass, enquanto
escravo, não foi extrema; seu caso pode ser entendido
como uma experiência comum do tratamento dispensado
aos escravos em Maryland, estado em que são melhor
alimentados que na Geórgia, Alabama ou Louisiana. Muitos
sofreram incomparavelmente mais, enquanto muito poucos
nas plantações sofreram menos do que ele. Ainda assim,
quão deplorável era sua situação! Que castigos horríveis
foram infligidos em seu corpo! Que atrocidades ainda mais
chocantes cometidas com sua mente! Com todas suas
nobres qualidades e aspirações sublimes, era tratado como
um animal por pessoas que diziam ter os mesmos valores
que Jesus Cristo! A que obrigações horríveis era
constantemente sujeito! Quão carente de conselho e
amparo, mesmo nas situações extremas! Quão escura era a
cortina de mágoas que amortalhou de negro o último raio

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

da esperança, e encheu o futuro de horror e tristeza! E que


ânsias vieram, depois que a liberdade se apossou de seu
peito, e como sua miséria aumentou na proporção em que
se tornou reflexivo e inteligente – demonstrando assim que
um escravo contente é um homem extinto! Como pensou,
raciocinou, sentiu, sob o açoite do condutor, com as
correntes sobre seus membros! Que perigos encontrou em
seus esforços para escapar de seu horrível destino! E quão
singular foi sua salvação e preservação entre uma nação
inteira de inimigos impiedosos!
Esta narrativa contém muitas situações comoventes,
muitas passagens de grande poder e eloquência; mas eu
acho que a mais emocionante delas é a descrição que
Douglass dá de seus sentimentos, enquanto falava com seus
botões sobre seu destino e as chances de um dia ser livre,
nas margens da Cheepsake Bay – vendo os navios se
afastando com suas asas brancas diante da brisa e as
imaginando animadas pelo espírito vivo da liberdade.
Quem poderia ler essa passagem e ficar insensível diante do
patético e do sublime? Dentro dela há uma biblioteca de
Alexandria inteira de pensamentos, sentimentos e emoções
– todos os que poderiam e devem surgir como repreensão,
súplica, resposta, contra este maior dos crimes –
transformar o homem em uma mera propriedade do seu
irmão! Maldito seja esse sistema que sepulta a divina mente
do homem, desfigura a imagem de Deus, diminui aqueles
que foram criados com glória e honra ao nível de animais
quadrúpedes, exaltando o traficante de carne humana,
Deus, que está acima de todos! Por que deveria a sua

24
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

existência ser prolongada por uma hora que fosse? O que


quer dizer sua presença, além da ausência do temor a Deus,
do amor aos homens, por parte do povo dos Estados
Unidos? Que os céus ajudem sua eterna derrocada!
Muitas pessoas são tão profundamente ignorantes da
natureza da escravidão que teimam em não acreditar
quando leem ou ouvem uma descrição das crueldades
infligidas em suas vítimas. Elas não negam que os escravos
são mantidos como propriedade, mas esse fato horrível não
parece sugerir às suas mentes nenhuma ideia de injustiça ou
sofrimento de injúrias e bárbaras selvagerias. Conte a elas
dos cruéis açoitamentos, mutilações e marcações com ferro
em brasa, ou cenas de conspurcação e sangue, do
banimento de toda luz e conhecimento, e elas fingem estar
muito indignadas com a enormidade dos exageros, com as
mentiras nas declarações, com as calúnias ao caráter dos
plantadores do sul! Como se todas essas afrontas medonhas
não fossem o resultado natural da escravatura! Como se
fosse menos cruel reduzir um ser humano ao estado de
uma coisa do que flagelá-lo ou privá-lo de comida e
agasalho necessários! Como se chicotes, correntes,
aparelhos de tortura, palmatórias, mastins, feitores,
condutores, patrulhas, tudo isso não fosse indispensável
para manter os escravos submissos e proteger seus
impiedosos opressores! Como se não fossem abundar o
incesto, concubinato e adultério caso se extinguisse a
instituição do casamento; quando todos os direitos
humanos são aniquilados, as barreiras permanecem para
proteger a vítima da fúria do saqueador; quando poder

25
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

absoluto é assumido sobre vida e liberdade, não será


exercido de forma destruidora! Céticos desse tipo existem
em abundância na sociedade. Em alguns casos, sua
incredulidade vem da falta de reflexão; mas, geralmente, ela
indica uma aversão à luz, o desejo de proteger a escravidão
dos assaltos de inimigos, o desprezo pelos negros, escravos
ou libertos. Esses tentarão desmentir as chocantes histórias
de crueldade escravista registradas nesta narrativa verídica;
mas irão fazê-lo em vão. O Sr. Douglass denunciou com
franqueza seu lugar de nascimento, os nomes daqueles que
clamavam ser donos de seu corpo e alma, e também os
nomes daqueles que cometeram os crimes que constam
nestas páginas. Logo, suas alegações poderiam facilmente
ser desmentidas. Se fossem mentiras.
Em sua narrativa, ele relata dois casos de crueldade
assassina – em um deles, um senhor de escravos
deliberadamente atirou num escravo pertencente a uma
fazenda vizinha, que havia invadido sua propriedade sem
querer enquanto pescava; no outro, um feitor bota uma
bala na cabeça de um escravo que fugiu para uma sanga
para escapar das violentas chibatadas. O Sr. Douglass nos
diz que, em nenhum desses casos, alguma coisa foi feita
para investigar ou prender os culpados. O jornal The
Baltimore American, de 17 de março de 1845, relata uma
atrocidade parecida, realizada com igual impunidade –
como se segue: “Atirando em um escravo – Ficamos sabendo,
através de uma carta do condado de Charles, Maryland,
recebida por um concidadão, que um jovem chamado
Matthews, sobrinho do general Matthews e cujo pai,

26
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

acredita-se, desfruta de uma posição em Washington,


matou um dos escravos da fazenda de seu pai ao atirar
contra ele. A carta diz que o jovem Matthews havia sido
colocado em cargo da fazenda; que deu uma ordem ao
servo, e foi desobedecido, ao que ele entrou na casa, pegou
um revólver e, retornando, disparou contra o servo. Depois, fugiu
imediatamente para a residência de seu pai, onde até então
se encontra ileso.” – Não esqueçamos que nenhum senhor
ou feitor de escravos pode ser condenado de nenhum tipo
de barbárie perpetrada contra um escravo, diabólica como
seja, por declaração de testemunhas negras, escravas ou
libertas. Pelo código da escravatura, são consideradas
incompetentes para testemunhar contra o homem branco,
como se fossem de fato algum tipo de animal. Logo, não há
proteção legal, de qualquer tipo, para a população escrava; e
qualquer montante de crueldade pode ser empregado
contra eles com impunidade. Seria possível, para a mente
humana, idealizar um tipo mais horrendo de sociedade?
O efeito de um sermão religioso sobre a conduta dos
mestres de escravos sulistas é vividamente descrita na
narrativa que se segue, e, como se verá, se mostra tudo
menos salutar. Dada a natureza do caso, deve ser, pelo
contrário, o mais pernicioso possível. O relato do Sr.
Douglass, neste ponto, é sustentado por uma multidão de
testemunhas, cuja veracidade é irrepreensível. “Um senhor
de escravos que alegue ser cristão é evidentemente um
impostor. Ele é um vilão do mais alto calibre. Ele é um
raptor. Não importa o que se põe do outro lado da
balança.”

27
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Leitor! Você simpatiza com o propósito dos raptores ou


com suas vítimas oprimidas? Se for com o primeiro, então
você é inimigo de Deus e dos Homens. Se com o último, o
que você está pronto a dar e ousar em sua defesa? Seja fiel,
seja vigilante, seja incansável em seus esforços para quebrar
cada jugo, e libertar os oprimidos. Venha o que vier – custe
o que custar – escreva no estandarte que você segura ao
vento, como seu lema religioso e político – “NÃO ME
ASSOCIAREI À ESCRAVIDÃO! NÃO ME UNIREI A
SENHORES DE ESCRAVOS!”
Wm. Lloyd Garrison Boston, 1º de maio, 1845

28
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CARTA DE
WENDELL PHILLIPS, ESQ.
Boston, 22 de abril de 1845.

Caro amigo:
Com certeza, você lembra da velha fábula “O Homem e
o Leão”, em que o leão reclama que não teria sido tão
caluniado “se os leões escrevessem a história”.
Bem, estou feliz por ter chegado o tempo em que “os
leões escrevem a história”. Por tempo demais, tivemos que
compreender o caráter da escravidão pela evidência deixada
involuntariamente pelos senhores de escravos. Até se
poderia descansar satisfeito com o que está evidente, e que
por isso pode ser entendido como o resultado dessa
relação, sem buscar mais a fundo, a fim de descobrir se
entendeu sua totalidade. É verdade que aqueles que ficam
uma semana inteira olhando os sacos de milho, e adoram
contar as chibatadas nas costas dos escravos, dificilmente
seriam o material para formar abolicionistas e
reformadores. Lembro que, em 1838, muitos esperavam
pelos resultados do experimento na Índia Ocidental, antes
que se juntassem a nós. Esses “resultados” chegaram muito

29
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

tempo atrás; mas – ah! – poucos deles se converteram à


nossa causa. Um homem deve estar pronto a se decidir pela
emancipação através de outros testes, que não se a
produção de açúcar aumentou – e pronto a odiar a
escravidão por outras razões que não sejam apenas sujeitar
os homens à fome ou flagelar mulheres – antes de ele estar
pronto a deitar os primeiros tijolos de sua nova vida anti-
escravidão.
Fiquei feliz de saber, em sua história, quão cedo as mais
negligenciadas crianças de Deus percebem seus direitos e a
injustiça que sofreram. A experiência é um vívido
professor, e muito antes que aprendesse seu ABC, ou
soubesse para onde iam as “brancas velas” da baía do
Chesapeake, você começou a entender a baixeza em que
está o escravo, não por conta de sua fome, das chibatadas
ou da labuta, mas pela morte cruel e devoradora que rói sua
alma.
A propósito disso, há uma circunstância que traz um
valor único às suas memórias, e faz ainda mais notável sua
percepção prematura. Você vem daquela parte do país em
que nos dizem que a escravidão mostra sua face mais
branda. Vamos ver, então, como é em sua melhor máscara
– olhar seu lado bom, se algum existe, e então, por mais
difícil que seja piorar a imagem apresentada, imaginar como
fica ao se deslocar para o sul, para aquilo que é (para os
negros) o Vale da Sombra da Morte, banhado pelo
Mississipi.
Nos conhecemos há tempo, e sabemos que podemos
colocar toda nossa inteira confiança em sua verdade,

30
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

candor e sinceridade. Todos aqueles que o ouviram falar


sentiram essa veracidade, da mesma maneira que sentirá,
acredito, todo aquele que ler o seu livro. Sem um relato
parcial – sem reclamações gerais – apenas o processo
estrito da justiça medida, sempre que, por um momento, a
bondade individual neutralizou o sistema mortal a que
estava estranhamente aliada. Você tem estado conosco,
também, já há alguns anos, e pode com justeza comparar o
crepúsculo dos direitos, que sua raça desfruta no Norte,
com a “meia-noite” enfrentada pelos trabalhadores ao sul
da linha de Mason e Dixon. Nos dizer se, no fim das
contas, o homem de cor de Massachussets está pior que o
escravo mimado das plantações de arroz!
Ao ler sua vida, ninguém pode dizer que escolhemos
injustamente um espécime raro de crueldade. Sabemos que
mesmo as situações amargas que você passou não foram
insultos incidentais ou males individuais, mas coisas que
sempre e necessariamente estão mescladas à sorte de cada
escravo. São os ingredientes essenciais do sistema, não os
resultados ocasionais.
Tudo dito, eu lerei o seu livro temendo por você. Há
alguns anos atrás, quando você tentou me dizer seu nome
verdadeiro e o lugar em que nasceu, deve lembrar que eu o
detive, e preferi continuar ignorante de tudo. E, com a
exceção de detalhes vagos, ignorante eu continuei, até que
você me leu suas memórias no outro dia. Na hora, eu não
soube se agradecia ou não a confiança que me foi dada, até
que percebi que ainda era perigoso, em Massachussets, que
homens honestos dissessem seus nomes! Dizem que os

31
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

nossos fundadores, em 1776, assinaram a Declaração de


Independência com o perigo da forca pairando sobre eles.
Você, também, publica sua declaração de independência
com o perigo à sua volta. Em todas as regiões cobertas pela
Constituição dos Estados Unidos, não há nenhum lugar,
estreito ou desolado, em que um escravo fugitivo possa
dizer “estou salvo”. Todo o arsenal de Northern Law não
tem um único escudo que pudesse protegê-lo. Posso dizer
que, no seu lugar, eu teria jogado minhas memórias no
fogo.
Você talvez possa contar sua história com segurança,
protegido como está, devido aos méritos de seus raros
dons, pela afeição de tantos bons amigos – devotados a um
fazer ainda mais raro, que é ajudar ao próximo. Mas será
apenas por causa de seu trabalho (e também dos esforços
destemidos daqueles que, pisando sobre as leis e a
Constituição do país, estão determinados a “abrigar os
fugitivos”, de fazer com que seus corações sejam, não
importa o que a lei diga, um asilo aos oprimidos), se, no
futuro, os mais humildes puderem andar na rua de queixo
erguido, e testemunhar em segurança contra as crueldades
que sofreram.
E ainda assim é triste pensar que esses mesmos corações
pulsantes que acolhem sua história e formam a salvaguarda
que permite que você a conte, todos eles batem contra a
lei2. Siga adiante, meu caro amigo, até que você e aqueles

2 [NT] No original, os corações batem contra o "statute in such case made


and provided.", que na tradução literal quereria dizer (contra o) ‘estatuto
desta forma feito e provido’. O termo deixa a frase sem sentido,
intraduzível por fazer referência a um termo legal em Latim, Contra Formam

32
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

que, como você, foram salvos como se pelo fogo3 da prisão


negra, tornem em leis as livres pulsações desses corações
ilegais; e que a Nova Inglaterra, se separando da União
sangrenta, clame a glória de ser a casa do refúgio aos
oprimidos – até que nós não nos limitemos a apenas
“abrigar os fugitivos” ou a ficar parados enquanto eles são
caçados em torno de nós; mas, consagrando novamente a
terra dos Peregrinos, como um asilo para os oprimidos,
gritemos bem-vindo para os escravos tão alto que o som
alcançará todas as senzalas das Carolinas, e fará que o
escravo de coração partido pule ao pensar na velha
Massachussets.
Que esse dia venha logo!
Até então, e sempre seu,
Wendell Phillips

Statuti. “Contra a lei” cumpre com o objetivo de manter o sentido geral e,


principalmente, manter o texto inteligível e claro, uma das ideias que
embasam esta tradução.
3 [NT] Alusão ao verso bíblico Coríntios, 3:15: “porém ele mesmo será

salvo, como se tivesse passado pelo fogo para se salvar”.

33
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

34
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

FREDERICK DOUGLASS

Frederick Douglass nasceu sob o regime da escravidão


com o nome de Frederick Augustus Washington Bailey,
próximo a Easton, no Condado de Talbot, Maryland. Ele
não tinha certeza do ano de seu nascimento, mas sabia que
era 1817 ou 1818. Ele foi enviado a Baltimore ainda
menino para servir em uma casa, e lá aprendeu a ler e
escrever com a assistência da esposa de seu senhor. Em
1838, ele escapou da escravidão e foi para Nova York,
onde casou com Anna Murray, uma negra liberta que havia
conhecido em Baltimore. Logo depois, ele mudou seu
nome para Frederick Douglass. Em 1841, ele realizou uma
palestra em uma convenção da Associação Anti-Escravidão
de Massachussets e impressionou tanto o grupo que eles
imediatamente o empregaram como um agente. Ele era um
orador tão impressionante que muitos até duvidavam que
tivesse sido mesmo um escravo. Ele, então, escreveu a
Narrativa da Vida de Frederick Douglass. Durante a Guerra
Civil, ele ajudou com o recrutamento de homens de cor
para o 54º e o 55º Regimento de Massachussets, e defendeu
constantemente a emancipação dos escravos. Depois da

35
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

guerra, ele se empenhou em defender e assegurar os


direitos dos homens livres. Em seus últimos anos, em
diversas ocasiões, foi secretário da Comissão de Santo
Domingo, oficial e escrivão do Distrito de Colúmbia, e
enviado dos Estados Unidos ao Haiti. Seus outros escritos
autobiográficos são Meus Grilhões e Minha Libertação e Vida e
Casos de Frederick Douglass, publicados em 1855 e 1881,
respectivamente. Ele morreu em 1895.

36
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO I

Nasci em Tuckahoe, perto de Hillsborough, a pouco


mais de dezenove quilômetros4 de Easton, no Condado de
Talbot, Maryland. Não tenho informações acuradas sobre a
minha idade, já que nunca vi nenhum documento que a
contivesse. A grande maioria dos escravos sabe tão pouco
sobre sua idade quanto os cavalos o sabem, e é a vontade
da maior parte dos senhores que conheço manter os
escravos ignorantes do fato. Não lembro de ter algum dia
conhecido um escravo que soubesse seu aniversário. Em
geral, não sabem mais do que a época – época de plantio,
época de colheita, época de cerejas, na primavera ou no
outono. Mesmo em minha infância, a falta dessa
informação era fonte de infelicidade para mim. As crianças
brancas sabiam a sua idade, e eu não entendia por que não
podia ter o mesmo privilégio. Também não me era
permitido perguntar ao senhor – ele considerava esse tipo
de perguntas impróprias e impertinentes se vindas de um

4 [NT] 12 milhas, no original. A milha é uma unidade de medida de


distância usada nos Estados Unidos, correspondente a 1,609344
quilômetros. Logo, doze milhas equivalem a pouco mais de 19Km e 300m.

37
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

escravo, e indício de um temperamento inquieto. A


estimativa mais próxima que posso fazer me dá entre vinte
e sete e vinte e oito anos de idade. Isso porque ouvi meu
senhor comentar, durante o ano de 1835, que eu tinha em
torno de dezessete anos.
O nome de minha mãe era Harriet Bailey. Ela era filha
de Isaac e Betsey Bailey, ambos de cor, e bem escuros.
Minha mãe era de uma compleição ainda mais escura que
ambos.
Meu pai era um homem branco. Isso era conhecido por
todos que já ouvi comentar sobre meus pais. Também se
cochichava que meu senhor era o meu pai, mas não sei
nada sobre isso, esse conhecimento nunca me foi dado.
Minha mãe e eu fomos separados quando era pequeno –
antes que eu soubesse que ela era minha mãe. É um
costume, na parte de Maryland, de que fugi, separar muito
cedo os filhos das mães. Com frequência antes de a criança
completar um ano, sua mãe lhe é tirada e colocada sob
contrato em uma fazenda distante, e a criança é colocada
aos cuidados de uma idosa, muito velha para o trabalho na
plantação. Por que essa separação é feita, eu não sei, a
menos que seja para aleijar o desenvolvimento da afeição
da criança pela mãe, e destruir a afeição natural da mãe pela
criança. Esse é o resultado inevitável.
Eu não vi a minha mãe, ao menos sabendo quem era,
mais do que quatro ou cinco vezes na vida; e cada uma
dessas ocasiões por um curto período de tempo. Ela tinha
sido contratada por um Sr. Stewart, que vivia a cerca de
doze milhas de onde eu morava. Ela vinha à noite para me

38
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

ver, caminhando toda a distância, depois de todo o trabalho


do dia. Ela era uma trabalhadora da plantação, e uma surra
de chibata era a punição que poderia esperar se não
estivesse no campo ao nascer do sol, a menos que tivesse
permissão de seu senhor para o contrário – uma permissão
que raramente ganham, e aqueles que a dão são
considerados orgulhosamente como senhores gentis. Não
lembro de ter visto nunca a minha mãe à luz do dia. Ela
ficava comigo à noite. Ela deitava comigo e me fazia
dormir, mas muito antes que eu acordasse ela tinha partido.
Muito pouco se passava entre nós. A morte logo acabou
com o pouco que tínhamos, e também com suas provações
e seu sofrimento. Ela morreu quando eu tinha cerca de sete
anos, em uma das fazendas de meu senhor perto do
Moinho de Lee. Não me deixaram estar presente durante
sua doença, sua morte nem enterro. Ela tinha se ido antes
que eu soubesse qualquer coisa sobre o fato. Sem nunca ter
desfrutado (por qualquer extensão de tempo considerável)
de sua presença tranquila, seu cuidado terno e vigilante,
recebi a notícia de sua morte como provavelmente teria
recebido a da morte de um estranho.
Tendo sido levada desse modo súbito, ela me deixou
sem a menor indicação de quem era meu pai. O murmúrio
de que meu senhor era meu pai pode ou não ser verdade; e,
verdade ou mentira, teve pouca consequência para mim, já
que (fato odioso que ainda é praticado) os escravagistas
estabeleceram por lei que as crianças de mulheres escravas
devem em todos os casos seguir na condição de suas mães.
Isso se fez obviamente para atender à sua luxúria e

39
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

gratificar seus desejos perversos com o lucro além do


prazer, pois através desse arranjo o senhor é, em muitos
casos, mestre e pai de seus escravos.
Conheço desses casos, e vale a pena ressaltar que esses
escravos invariavelmente sofrem mais e têm que enfrentar
mais provações do que os outros. Eles são, em primeiro
lugar, uma constante ofensa à senhora. Ela está sempre
disposta a encontrar defeitos neles, e nada do que fazem a
agrada; ela prefere vê-los sob a chibata, especialmente,
quando suspeita que seu marido favorece seu filho mulato
mais do que os outros escravos negros. O senhor é, com
frequência, compelido a vender esse tipo de escravo por
deferência aos sentimentos de sua esposa. E, cruel como
possa parecer a alguém um pai vender os próprios filhos a
mercadores de carne humana, é com frequência a coisa
mais humana que ele pode fazer, pois, a menos que isso
aconteça, ele tem que não apenas açoitá-los ele próprio,
mas também tem que assistir um filho seu amarrar o irmão,
poucas nuances mais escuro que ele, e fazer o chicote
sangrento cantar em suas costas nuas. E, se mostrar que
desaprova esse estado de coisas, isso é associado à sua
parcialidade como pai, o que só torna as coisas piores,
tanto para si como para o escravo que tentou proteger ou
defender.
Cada ano traz consigo multidões desse tipo de escravo.
Foi com certeza pensando nesse fato que um grande
estadista do sul previu a queda da escravatura pelas leis
inevitáveis da população. Se essa profecia algum dia for
cumprida ou não, está claro que um tipo de gente muito

40
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

diferente daquele que foi trazido da África para este país


está sendo gerado no sul, e mantido na escravidão. Se seu
incremento não fizer mais nada, pelo menos enfraquece o
argumento de que Deus amaldiçoou Ham5, e que, por isso,
a escravidão Americana é correta. Se os descendentes de
Ham são os únicos a poderem ser escravizados, de acordo
com a escritura, então é certo que a escravidão no sul logo
não poderá ser considerada bíblica, porque todos os anos
são postos no mundo milhares de filhos que, como eu, têm
pais brancos, geralmente seus senhores.
Eu tive dois senhores. O sobrenome do primeiro era
Anthony. Eu não lembro seu primeiro nome. Ele era
geralmente chamado Capitão Anthony – título que, eu
presumo, adquiriu ao comandar um barco na baía do
Chesapeake. Ele não era considerado um senhor de
escravos rico. Tinha duas ou três fazendas, e em torno de
trinta escravos. Suas fazendas e escravos ficavam ao
encargo de um feitor. O nome desse feitor era Plummer. O
Sr. Plummer era um bêbado miserável, um boca-suja e um
monstro selvagem. Ele sempre andava armado de um
chicote e um bastão pesado. Houve vezes em que ele
cortava e talhava as cabeças das mulheres de tal forma que

5 [NT] A maldição de Ham (em Português foi traduzido como ‘Cão’)


confunde-se com a maldição de Canaã, que Noé, ofendido por ter sido
contido por seus filhos ao dançar nu e embriagado em sua tenda, lançou
sobre a linhagem de seu filho Cão (Canaã era filho de Cão): “E disse: Maldito
seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos.” (Gênese, 09:25) O argumento,
que permitia à sociedade americana conciliar a prática da escravidão com o
cristianismo, era baseado na ideia de que os escravos eram descendentes de
Canaã, e, portanto, deveriam servir ao resto da humanidade. Douglass
aponta que a miscigenação invalida esse pretexto.

41
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

o próprio senhor se enraivecia com a sua crueldade, e


ameaçava açoitá-lo se ele não se aprumasse. O Senhor,
entretanto, não era um escravista piedoso. Era preciso
muita barbárie por parte do feitor para afetá-lo. Ele era um
homem cruel, endurecido por uma vida inteira de
escravagista. Às vezes, ele parecia sentir bastante prazer ao
açoitar um escravo. Eu era acordado com frequência ao
alvorecer por gritos de partir o coração – de uma tia minha,
que ele costumava amarrar a uma viga e açoitar suas costas
nuas até que ela estivesse literalmente coberta de sangue.
As palavras, lágrimas ou súplicas de sua vítima
ensanguentada não pareciam tocar seu coração de aço, nem
dissuadi-lo de seu violento propósito. Quanto mais ela
gritava, mais forte ele açoitava; e ele batia mais onde o
sangue corresse mais rápido. Ele a açoitava para fazê-la
gritar, e para que ela se calasse; e não parava de bater com o
chicote, já coberto de sangue coagulado, até que a fadiga o
tomasse. Lembro da primeira vez em que testemunhei essa
cena horrível. Foi o primeiro de uma série de ultrajes em
que viria a testemunhar e tomar parte. Me atingiu com uma
força tremenda. Era o portão de sangue, a entrada no
inferno da escravidão, que eu estava prestes a atravessar.
Foi um espetáculo terrível. Quisera poder colocar no papel
o que senti ao presenciá-lo.
Esse fato se sucedeu pouco depois que fui morar com
meu antigo senhor, e de acordo com as circunstâncias que
se seguem: tia Hester saiu uma noite – para onde ou para
quê eu não sei – e estava ausente quando meu senhor
desejou sua presença. Ele tinha ordenado que ela não saísse

42
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

à noite, e a avisara de que não queria pegá-la na companhia


de um jovem, pertencente ao coronel Lloyd, que estava
interessado nela. Esse jovem se chamava Ned Roberts, mas
era conhecido como o Ned do Lloyd. A razão por que o
senhor se interessava por ela era é fácil de adivinhar. Ela
era uma mulher de porte nobre e proporções graciosas,
tendo poucas iguais e pouquíssimas superiores, na
aparência, entre as mulheres negras e brancas de nossa
vizinhança.
Tia Hester não havia apenas desobedecido suas ordens
ao sair, mas havia estado na companhia de Ned do Lloyd,
circunstância que, percebi pelo que ele disse enquanto a
açoitava, era a pior de seus crimes. Se ele fosse um homem
virtuoso, poderíamos pensar que estava interessado em
resguardar a inocência de minha tia, mas os que o
conheciam sabiam que não era o caso. Antes de começar a
flagelar a tia Hester, ele a levou à cozinha e a despiu até a
cintura, deixando seu pescoço, ombros e costas desnudos.
Ele, então, ordenou que ela cruzasse suas mãos, chamando-
a de ‘cadela maldita’6, e as amarrou ao gancho. Ela estava

6 [NT] No original, “d——d b—-h” – Douglass era, como a convenção da


época ditava, avesso aos xingamentos e às blasfêmias, de modo que, nesta e
em outras ocasiões em que há a menção à linguagem rude, trata-se de uma
estimativa, um jogo de adivinhação. Como a proposta desta obra não é a de
uma tradução literal, não é de grande consequência para o todo, mas é
interessante fazer saber o leitor que Douglass tinha este cuidado – como um
ex-escravo, buscando convencer a elite branca americana da injustiça da
escravidão, dispondo de qualidades raríssimas aos de sua mesma condição,
que eram educação e cultura, ele não estava obrigado apenas a demonstrar
suas altas qualidades, mas também a se ater ao mais alto grau de moral e
respeitabilidade. Em muitos sentidos, da mesma forma que um embaixador
representa seu país.

43
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

pronta para o propósito infernal que ele tinha em mente;


seus braços estavam esticados para cima, de forma que ela
se sustinha na ponta dos pés. Ele então disse a ela: “Agora,
sua cadela maldita, eu vou lhe ensinar a desobedecer
minhas ordens!”; e, depois de enrolar as mangas da camisa,
começou a deitar nela o chicote pesado. Logo o sangue
morno e vermelho (entre os gritos lancinantes e as horríveis
imprecações) caía às gotas no chão. Fiquei tão mortificado
e horrorizado com aquilo que presenciei que me escondi
em um armário, e não ousei sair de lá até muito depois que
tudo tinha terminado. Nunca havia visto nada assim antes.
Sempre vivi com a minha avó nas cercanias da plantação,
onde ela tinha sido colocada para criar os filhos das
mulheres mais novas, então nunca tinha estado próximo
das cenas sangrentas que aconteciam seguido na fazenda.

44
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO II

A família de meu senhor era constituída de dois filhos,


Andrew e Richard; uma filha, Lucretia, junto com o esposo,
capitão Thomas Auld. Eles moravam em uma casa próxima
à fazenda do coronel Edward Lloyd. Meu senhor era
funcionário e superintendente a serviço do coronel Lloyd.
Ele era o que se poderia chamar de ‘o feitor dos feitores’.
Passei dois anos de minha infância nessa fazenda, com a
família de meu antigo senhor. Foi lá que presenciei o
violento caso descrito no capítulo anterior; e, já que foi
nessa fazenda que tive meus primeiros contatos com a
escravatura, vou descrever como ela era, e de que forma se
tratavam os escravos lá. A fazenda fica a cerca de vinte
quilômetros ao norte de Easton, no condado de Talbot, e é
situada à margem do rio Miles. As principais culturas de lá
eram tabaco, milho e trigo. Eram produzidas em grande
abundância, suficiente para permitir, juntamente com a
produção das outras fazendas, o emprego constante de uma

45
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

corveta7 grande, que levava a carga para o mercado em


Baltimore. Essa corveta tinha o nome de Sally Lloyd, em
homenagem a uma das filhas do coronel. O afilhado de
meu senhor, capitão Auld, era o mestre dessa nave, que,
fora ele, era tripulada por escravos do coronel. Seus nomes
eram Peter, Isaac, Rich e Jake. Eles eram tidos em alta
conta entre os escravos, e vistos como os privilegiados da
fazenda, uma vez que não era pouca coisa, aos olhos de um
escravo, ter a permissão de conhecer Baltimore.
O coronel Lloyd tinha entre trezentos e quatrocentos
escravos em sua fazenda, e era dono de mais um grande
número nas fazendas que possuía na vizinhança. Os nomes
das fazendas mais próximas de onde eu me encontrava
eram Wye Town e New Design. “Wye Town” era
administrada por um homem chamado Noah Willis. New
Design, por um homem chamado Sr. Towsend. Os feitores
dessas e do resto das vinte fazendas eram dirigidos pelos
administradores da fazenda do coronel. Esse era o lugar
onde os negócios importantes aconteciam, o centro do
governo de todas as vinte fazendas. Todas as disputas entre
os administradores eram resolvidas lá. Se um escravo era
condenado por um delito grave, e se tornasse intratável ou
demonstrasse determinação em fugir, ele era levado
imediatamente para lá, severamente castigado, colocado a
bordo da corveta, levado para Baltimore e vendido para
Austin Woolfork, ou algum outro mercador de escravos,
como uma advertência para o restante dos escravos.
7 [NT] Barco ágil de médio porte (menor que uma fragata), geralmente de
cerca de 30 metros de comprimento e três velas, com uma capacidade de
carga de cerca de 40 toneladas.

46
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Era lá também que os escravos de todas as outras


fazendas recebiam sua ração mensal de comida e as roupas
do ano. Os homens e as mulheres recebiam de comida,
mensalmente, três quilos e meio de porco ou peixe, e 25kg
de farelo de milho8. Sua roupa anual consistia de duas
camisas de linho grosso, um par de calças do mesmo
material, um casaco, um par de calças para o inverno, feitas
de tecido preto rústico, um par de meias e um par de
sapatos, todo o conjunto não custando mais que sete
dólares. A ração das crianças era dada às suas mães, ou às
mulheres velhas que tomavam conta delas. As crianças que
não podiam trabalhar nos campos não ganhavam sapatos,
meias, casacos ou calças; apenas duas camisas de linho
grosso por ano. Quando elas se gastavam, ficavam nuas até
o próximo dia de distribuição. Crianças quase nuas, de sete
a dez anos, eram comuns em todas as estações do ano.
Os escravos não tinham camas, a menos que se possa
chamar de cama um cobertor rústico – e só os homens e as
mulheres adultos os tinham. Isso, entretanto, não era
considerado uma grande privação. Sentiam menos a
necessidade de camas do que a necessidade de tempo em
que dormir, pois, quando o dia de trabalho no campo
terminava, boa parte deles tinha o que lavar, costurar e
cozinhar, sem nenhum dos instrumentos necessários para
fazer essas coisas – de forma que boa parte das horas de
sono eram consumidas no preparo para o trabalho do dia

8 [NT] No original, um bushel de milho e oito libras de porco ou peixe, mas


se preferiu traduzir as unidades de medida para dar ao leitor brasileiro uma
ideia mais precisa das medidas, uma vez que aqui se adota o sistema
métrico.

47
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

vindouro. Quando este era concluído, os velhos e os


jovens, homens e mulheres, casados e solteiros, caíam lado
a lado na cama comum – o chão úmido e frio – cada um se
cobrindo com os míseros cobertores, e ali dormiam até que
fossem chamados para os campos no dia seguinte pela
corneta do cuidador. Quando ela soava todos tinham de
levantar e se dirigir ao campo, sem demora – e ai daqueles
que não ouvissem essa chamada matinal para os campos,
porque os que não fossem despertos pela audição seriam
pelo tato, sem distinção de sexo ou idade. O Sr. Severo9, o
feitor, costumava ficar à porta da senzala, armado com uma
vara de nogueira e um chicote pesado, pronto a açoitar
qualquer um que fosse infeliz o suficiente para não ouvir
ou que fosse, por qualquer outra razão, impedido de sair
para o campo ao som da corneta.
O nome do Sr. Severo era muito apropriado: era um
homem cruel. Já o vi açoitar uma mulher até o sangue
correr, durante meia hora seguida; e isso em meio às suas
crianças que choravam, implorando para que libertasse a
mãe. Ele parecia ter prazer em manifestar sua diabólica
barbárie, e, além de ser cruel, era um praguejador terrível.
Sua fala era capaz de gelar o sangue nas veias e arrepiar os
cabelos de um homem comum. Eram poucas as sentenças
que escapavam de sua boca que não começassem ou
terminassem em alguma imprecação horrenda. O campo

9 [NT] Não se buscou, nesta tradução, adaptar também os nomes das


personagens, uma vez que dar o nome aos bois (ou, mais ao ponto, aos
escravistas) era um dos pontos da biografia de Douglass. Mas nesse caso se
julgou apropriado fazê-lo, uma vez que o texto comenta o nome. No
original: Mr. Severe.

48
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

era o lugar para se testemunhar sua crueldade e


profanidade, pois sua presença o tornava um lugar de
sangue e de blasfêmia. Do nascer ao pôr do sol, ele estava
amaldiçoando, furioso, cortando e golpeando, em meio aos
escravos do campo, da maneira mais temível. Sua carreira
foi curta. Ele morreu logo após eu ter chegado à fazenda
do coronel Lloyd – e morreu como viveu, entoando
maldições amargas e imprecações horrendas com seus
últimos suspiros. Sua morte foi considerada resultado da
misericórdia divina, pelos escravos.
O Sr. Severo foi substituído pelo Sr. Hopkins. Ele era
um homem muito diferente – menos cruel, menos profano
e fazia menos barulho que o Sr. Severo. Sua atividade não
se caracterizou por nenhuma demonstração extraordinária
de crueldade. Ele açoitava, mas parecia não ter prazer nisso.
Era considerado pelos escravos como um bom feitor.
A fazenda do coronel Lloyd parecia com uma vila do
interior. Todas as operações mecânicas das fazendas eram
realizadas ali. O conserto dos sapatos, a serralheria, a
carpintaria, os reparos em carroças, o feitio de pipas, a
tessitura e a moedura de cereais, todas eram operações
realizadas pelos escravos da fazenda. O lugar inteiro tinha
um aspecto dinâmico e progressista, diferente das fazendas
vizinhas. O número de casas, também, ajudava nessa
impressão de vantagem em relação às vizinhas. Era
chamada de A Fazenda do Casarão10. Poucos privilégios

10[NT] Embora a tradição literal fosse justamente ‘Casa Grande’, que era
usada no Brasil, não quis empregar o mesmo vocábulo para não confundir
o leitor dando a ideia de uma única casa grande - as fazendas em questão

49
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

pareciam maiores para os escravos das fazendas do entorno


do que fazer mandados para a Fazenda do Casarão. Era
associado com grandeza em suas mentes. Um deputado
não estaria mais feliz de sua eleição para o Congresso
Americano do que um escravo de uma das fazendas ao
redor de sua eleição para fazer mandados para o Casarão.
Eles entendiam isso como evidência da confiança de seus
cuidadores; e era por isso, além do desejo constante de
estar longe do campo e do chicote do feitor, que
consideravam o serviço para o Casarão um grande
privilégio pelo qual valia a pena uma vida regrada. Quem
recebia essa honra com maior frequência era chamado de o
mais confiável e esperto dos indivíduos. Aqueles que
competiam por esse posto buscavam diligentemente
agradar seus feitores, como aqueles que buscam cargos de
confiança nos partidos políticos buscam agradar e iludir o
povo. O mesmo tipo de caráter que vemos nos escravos
dos partidos políticos podia ser percebido nos escravos do
coronel Lloyd.
Os escravos escolhidos para irem ao Casarão buscar a
ração mensal deles e de seus colegas escravos eram
particularmente entusiásticos. Pelo caminho, eles faziam as
matas velhas e densas reverberar com suas canções por
quilômetros, mostrando, ao mesmo tempo, a mais elevada
alegria e a mais profunda tristeza. Eles compunham
enquanto caminhavam, sem cuidar o tempo ou o tom. O
pensamento que viesse saía – se não em palavras, em som,

tinham cada uma sua ‘casa grande’ e sua ‘senzala’ – o Casarão, no caso, era
conhecido por ter a Casa Grande maior do que as vizinhas.

50
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

e com frequência em ambos. Eles, às vezes, cantavam o


sentimento mais patético no tom mais arrebatado, e o
sentimento mais extasiado no tom mais patético. Em todas
as suas canções, eles embrenhavam alguma coisa sobre a
Fazenda do Casarão, especialmente quando estavam
deixando a sua própria. Então, cantavam mais exaltados as
palavras:

“Estou indo embora para a Fazenda do Casarão!


Oh, sim! Oh, sim! Oh!”

Isso virava num refrão, em meio a palavras que


pareceriam a muitos uma besteirada sem sentido, mas, que
mesmo assim, eram plenas de sentido para eles. Sempre
achei que escutar aquelas canções faria mais para convencer
algumas mentes do caráter hórrido da escravidão do que a
leitura de volumes inteiros de filosofia sobre o assunto.
Enquanto escravo, eu nunca entendi o significado
profundo daquelas canções rudes e, aparentemente,
incoerentes. Eu estava dentro do círculo, e assim não via
nem ouvia da forma que aqueles que estão por fora são
capazes. Aquelas canções contavam a história de uma
angústia que estava, então, totalmente além de minha parca
compreensão; eram notas altas, longas e profundas, que
respiravam com as queixas e as súplicas de almas cheias,
pesadas, transbordando da mais amarga aflição. Cada nota
era um clamor contra a escravidão e uma súplica a Deus
para que os livrasse das correntes. Ouvir aquelas notas
selvagens sempre me abateu o espírito, me enchendo com

51
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

uma tristeza inexprimível. Com frequência, me encontrei


em lágrimas ao ouvi-las. A mera memória daquelas canções,
até agora, me aflige, e mesmo enquanto escrevo estas
memórias, uma expressão do meu sentimento já correu seu
caminho, descendo pela minha face. É a essas canções que
atribuo a minha primeira, fugidia, compreensão do caráter
desumanizante da escravidão. Eu não consigo me livrar
dessa ideia. Essas canções ainda me seguem, para aumentar
meu ódio à escravatura, e atiçar minha compaixão por
meus irmãos acorrentados. Se alguém desejar ser marcado
com os efeitos esmagadores da escravidão, que vá até a
fazenda do coronel Lloyd e, no dia da ração, se embrenhe
nas matas de pinheiros. Lá, em silêncio, escute os sons que
vão passar pelas câmaras de sua alma – e se mesmo assim
não ficar marcado pela vida, será apenas porque “não há
carne neste coração obstinado”.
Eu fico abismado ao ouvir com frequência, desde que
vim do norte, pessoas falando das canções dos escravos
como um sinal de sua satisfação e contentamento. É
impossível conceber um engano maior. Os escravos cantam
mais quanto mais são infelizes. A canção do escravo
representa as tristezas em seu coração – ele se alivia com
elas, da mesma maneira como um coração partido só se
alivia com as lágrimas. Ao menos, essa é a minha
experiência. Seguido tenho cantado para afogar a minha
mágoa, mas raramente para expressar minha felicidade.
Chorar de alegria, cantar de alegria, também não eram
comuns para mim enquanto estava na goela da escravidão.
O canto de um proscrito, naufragado em uma ilha

52
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

desolada, pode ser considerado uma evidência tão grande


de contentamento e felicidade quanto o canto de um
escravo; as canções de um e do outro vêm da mesma
emoção.

53
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

54
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO III

O coronel Lloyd mantinha um jardim grande e muito


bem cultivado, que demandava os cuidados de quatro
homens, fora o jardineiro-chefe (o Sr. M’Durmond). Esse
jardim era provavelmente a maior atração do lugar.
Durante os meses de verão, vinha gente de perto e de longe
(de Baltimore, Easton e Annapolis) para ver. Era cheio de
todo tipo de frutas, desde a resistente maçã do norte até a
delicada laranja do sul. Esse jardim era fonte de alguns
problemas na fazenda. Suas frutas excelentes eram uma
tentação considerável para os enxames de garotos famintos,
bem como para os escravos mais velhos do coronel, pois
eram poucos os que tinham virtude ou manha suficientes
para resisti-lo. Não se passava um dia de verão sem que um
escravo fosse açoitado por roubar frutas, e o coronel tinha
de recorrer a todo tipo de estratagema para manter os
escravos longe do jardim. O último, e mais bem sucedido,
desses estratagemas era cobrir a cerca com piche – se um
escravo fosse pego manchado de piche, era prova suficiente
de que ou ele tinha entrado no jardim, ou tinha tentado
entrar. Em todo caso, era severamente açoitado pelo

55
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

jardineiro-chefe. Esse plano funcionou bem: os escravos


desenvolveram tanto medo do piche quanto do chicote,
pois perceberam que era impossível tocá-lo sem se sujar.
O coronel também tinha um esplêndido apeiro11. Seu
estábulo e galpões para carroça pareciam com as cocheiras
dos estabelecimentos das cidades grandes. Os cavalos
tinham as melhores figuras e o mais puro sangue. Seu
galpão continha três magníficas carruagens, três ou quatro
cabriolés, além de carroças e caleches do mais alto estilo.
Esse estabelecimento estava sob os cuidados de dois
escravos – o velho Barney e o jovem Barney, pai e filho.
Cuidar desses estabelecimentos era a única coisa que
faziam; mas isso não era um trabalho fácil, pois o coronel
Lloyd era mais exigente com o manejo de seus cavalos do
que com qualquer outra coisa. A menor desatenção era
imperdoável, e punida da maneira mais severa pelos
cuidadores. Se o coronel suspeitasse de qualquer omissão
no trato de seus cavalos – como frequentemente
suspeitava, o que fazia o ofício do jovem e velho Barney
uma atividade muito sofrida –, não havia desculpa que os
salvasse. Eles nunca sabiam quando estavam a salvo do
açoite; com frequência, eram mais castigados quando não
mereciam, e escapavam do castigo quando o mereciam
mais. Tudo dependia da aparência dos cavalos e do estado
mental do coronel quando estes eram levados a ele para o
uso. Se um cavalo não se movesse rápido o suficiente, ou
não mantivesse a cabeça suficientemente erguida, era culpa
11 [NT] Ou arreamento, ou arreios; conjunto de rédeas, selas, barrigueira,
cincha, etc. necessário à montaria ou ao aparelhamento do animal a um
veículo.

56
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

de seus guardadores. Era triste estar próximo da porta do


estábulo e ouvir as reclamações contra os guardadores
quando os cavalos eram levados de volta. “Não deram
atenção apropriada a este cavalo; ele não foi propriamente
raspado e escovado, ou não se alimentou bem; sua
forragem estava muito seca ou muito úmida; ele comeu
cedo ou tarde demais; passou frio ou calor; comeu feno
demais e pouco grão, ou grão demais e pouco feno; em vez
do velho Barney cuidar dele pessoalmente, deixou seu filho
fazer o trabalho.” A todas essas acusações, não importava
quão injustas fossem, o escravo não podia dizer uma
palavra – o coronel não admitiria que um escravo o
contradissesse; quando ele falava, um escravo deveria ficar
em pé, escutar e tremer, e isso era literalmente o que
acontecia. Eu já vi o coronel Lloyd fazer o velho Barney
(que tinha entre cinquenta e sessenta anos de idade)
descobrir sua cabeça calva, ajoelhar no chão úmido e
receber nos ombros nus e gastos pela fadiga mais de trinta
chibatadas de uma só vez. O coronel Lloyd tinha três
genros, o Sr. Winder, o Sr. Nicholson e o Sr. Lowndes.
Todos eles viviam no Casarão, e tinham o privilégio de
açoitar os escravos quando quisessem, desde o velho
Barney até William Wilkes, o cocheiro. Já vi Winder fazer
um dos servos da casa ficar distante o suficiente para tocar
só com a ponta do chicote, de modo que cada açoitada
levantava enormes vergões em suas costas.
Descrever a opulência do coronel Lloyd seria como
descrever as riquezas de Jó. Ele tinha entre dez e quinze
servos na casa. Diziam que ele tinha mil escravos, e

57
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

acredito que não seja exagero; ele tinha tantos que não os
conhecia quando via, e nem os escravos das fazendas do
entorno o conheciam. Dizem que um dia, ao cavalgar pela
estrada, encontrou um negro e perguntou, do jeito comum
de se dirigir aos negros nas estradas públicas do sul:
“Então, garoto, a quem você pertence?” “Ao coronel
Lloyd”, respondeu o escravo. “Bem, e o coronel te trata
bem?” “Não, senhor”, respondeu ele. “Quê, ele faz você
trabalhar demais?” “Sim, senhor.” “E você não tem comida
o suficiente?” “Sim, senhor, o pouco de comida que ele me
dá é suficiente12.”
O coronel, depois de descobrir o lugar a que o escravo
pertencia, continuou seu caminho, e o homem também
seguiu seu rumo, sem sequer sonhar que tinha conversado
com seu senhor. Não se falou, pensou ou ouviu mais a
respeito do ocorrido até duas ou três semanas depois,
quando o pobre homem descobriu através de seu feitor que
seria vendido para um mercador da Geórgia. Ele foi
imediatamente acorrentado e algemado e, assim, sem aviso
prévio, afastado para sempre de sua família e amigos por
uma mão mais implacável que a morte. Esse é o castigo por
dizer a verdade, a mera verdade, ao responder uma série de
perguntas simples.
É, em parte, por conta de casos semelhantes que os
escravos, quando lhes perguntam a respeito de sua
condição ou o caráter de seus senhores, quase sempre

12[NT] No original, "Yes, sir, he gives me enough, such as it is.", o que a princípio
pareceria uma resposta afirmativa – só que ‘such as it is’ é uma expressão
idiomática que sugere algo insuficiente ou de qualidade inferior. A inserção
da contradição na frase traz o mesmo efeito de sentido.

58
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

dizem estar contentes, e que seus senhores são gentis. Sabe-


se que os escravagistas, às vezes, mandam espiões para
investigar a opinião e os sentimentos dos escravos em
relação à sua condição. E, como isso é feito com
frequência, se estabeleceu entre os escravos a máxima que
dita que uma língua quieta é a base de uma cabeça sábia.
Eles preferem suprimir a verdade a aceitar as consequências
de exprimi-la, e assim provam que são parte da família
humana. Se dizem alguma coisa sobre seus senhores, é
geralmente uma coisa boa, especialmente quando falam a
um desconhecido. Quando eu era escravo, me
perguntavam com frequência se tinha um senhor gentil, e
não lembro de já ter dado a isso uma resposta negativa – e
nem, a propósito, imaginava estar falando uma mentira,
pois sempre medi a bondade de meu senhor pelo critério
da bondade dos demais escravagistas da volta. Além disso,
os escravos são como qualquer outra pessoa, e assimilam
da mesma maneira os preconceitos comuns. Acham que o
seu é melhor que o dos outros; muitos, sob a influência
desse chauvinismo, acham que seu senhor é melhor que o
senhor de outros escravos, até mesmo quando a verdade é
o contrário, e não é incomum que os escravos se prendam
em discussões e brigas sobre a bondade relativa de seus
senhores, defendendo que seu senhor é melhor que o dos
outros – ao mesmo tempo em que abominam o seu senhor
quando não o estão comparando a nenhum outro. Era
assim em nossa fazenda. Quando os escravos do coronel
Lloyd encontravam os escravos de Jacob Jepson, era difícil
que partissem sem uma discussão: os de Lloyd dizendo que

59
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

ele era mais rico, os de Jepson dizendo que ele era mais
esperto e mais viril. Os escravos do coronel Lloyd se
gabariam dizendo que ele podia comprar e vender Jacob
Jepson, e os escravos do Sr. Jepson dizendo que ele era
capaz de surrar o coronel Lloyd. Essas discussões quase
sempre acabavam em briga entre os dois grupos, e se
considerava que os que ganhassem no braço tinham
vencido a discussão. Pareciam pensar que a nobreza de seus
mestres era transferida para eles. Já era ruim o suficiente ser
escravo; agora, ser escravo de um homem pobre era
mesmo uma desgraça!

60
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO IV

O Sr. Hopkins ficou pouco tempo como feitor. O


porquê de sua carreira ter sido tão curta, eu não sei, mas
suponho que ele não tivesse a severidade necessária para
agradar ao coronel Lloyd. O Sr. Hopkins foi substituído
pelo Sr. Austin Gore13, um homem que possuía, em grau
eminente, todas as qualidades de caráter necessárias a um
feitor do mais alto grau. O Sr. Gore já servia o coronel
Lloyd como feitor em uma das fazendas do entorno, e se
mostrou digno de um lugar como feitor na Fazenda do
Casarão.
Ele era orgulhoso, ambicioso e perseverante; era
ardiloso, cruel e obstinado. Era o homem certo para a
posição e a posição certa para esse tipo de homem, pois
permitia o pleno exercício de seus poderes, e ele pareceu se
sentir em casa ao assumi-la. Era um desses que podiam
distorcer o menor olhar, palavra ou gesto de um escravo, e

13[NT] Gore, em Inglês, é adjetivo dado às cenas que abundam em violência


e sangue, órgãos e membros decepados. Não tenho certeza quanto ao uso
na época, e nem se a moderna acepção se deve ao escrito de Douglass –
mas não posso deixar de pensar que há, nos nomes do Sr. Gore e do Sr.
Severo, um certo jogo de humor, amargo como possa ser.

61
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

considerá-los um descaramento, que tratava da forma


adequada. Não podia haver uma resposta, uma desculpa,
por parte de um escravo, que mostrasse que tinha sido
erroneamente acusado. O Sr. Gore agia de acordo com a
máxima dos escravagistas, segundo a qual “é melhor que
uma dúzia de escravos sofra sob o chicote do que um feitor
ser culpado por um erro na frente dos escravos”. Não
importava se um escravo era inocente ou não – a inocência
não valia nada diante de uma acusação de qualquer delito
vinda de Sr. Gore. Ser acusado era ser condenado, e ser
condenado era ser punido; uma sempre seguia a outra com
certeza imutável. O único jeito de escapar a punição era
não ser acusado, e poucos escravos tinham essa sorte, sob
o jugo do Sr. Gore. Ele era orgulhoso o bastante para exigir
a reverência mais aviltante por parte do servo, e abjeto o
bastante para se prostrar aos pés do mestre. Ele era
ambicioso o suficiente para almejar o mais alto cargo entre
os feitores, e obstinado o bastante para alcançá-lo. Ele era
cruel o suficiente para infligir o mais duro dos castigos,
ardiloso o bastante para descer ao nível de usar os truques
mais baixos e teimoso o bastante para ser insensível às
reprimendas de sua consciência. Ele era, entre todos os
feitores, o mais temido pelos escravos; sua presença era
aflitiva, seu olhar provocava confusão, quando sua voz
aguda e estridente era ouvida, causava horror e tremores
entre eles.
O Sr. Gore era um homem grave, e, embora fosse
jovem, não contava piadas, não fazia graça com palavras e
dificilmente sorria. Suas palavras e sua aparência

62
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

combinavam perfeitamente. Às vezes, os feitores contam


piadas mesmo junto com os escravos, mas não o Sr. Gore.
Ele não falava senão para comandar, e comandava para ser
obedecido; falava muito pouco com palavras, e muito com
o chicote, nunca usando o primeiro quando o último
servisse. Quando ele açoitava alguém, parecia fazê-lo por
um senso de dever, e não temia consequências; não fazia
nada de forma relutante, não importando se fossem atos
desagradáveis a serem tomados; sempre em seu posto,
nunca inconsistente. Jamais prometia que não cumprisse.
Ele era, em uma palavra, um homem da frieza mais pétrea e
inflexível.
Sua barbárie selvagem era igualada apenas pela frieza
consumada com que cometia os atos mais vis e selvagens
com os escravos sob seu comando. Uma vez, ele resolveu
castigar um dos escravos do coronel Lloyd, chamado
Demby. Ele havia dado poucas chibatadas em Demby
quando este, para se livrar do flagelo, saltou para o meio de
um córrego e lá ficou, com a água pelos ombros,
recusando-se a sair. O Sr. Gore avisou que iria chamá-lo
três vezes e, se até então não saísse de lá, iria disparar
contra ele. Foi chamado pela primeira vez. Demby não
respondeu, mas ficou em seu lugar. O segundo e o terceiro
chamado foram feitos com o mesmo resultado. O Sr. Gore,
então, sem consultar ou discutir o caso com ninguém, sem
ao menos dar a Demby uma última chance, ergueu seu
mosquete, mirando sua vítima, e, em um instante, o pobre
Demby não estava mais entre nós. Seu corpo mutilado
afundou no córrego, e só o sangue e pedaços de cérebro

63
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

marcavam o lugar onde ele tinha estado.


Um calafrio correu por todos no campo, exceto pelo Sr.
Gore. Apenas ele parecia calmo e composto. Quando
perguntado pelo coronel Lloyd por que havia recorrido a
esta atitude extraordinária, respondeu (se me lembro bem)
que Demby tinha se tornado intratável. Estava dando um
perigoso exemplo para os demais escravos – um exemplo
que, se não fosse tratado com tal demonstração de sua
parte, poderia levar à subversão de toda ordem e lei na
fazenda. Ele disse que, se um escravo se recusasse a ser
castigado e escapasse com vida logo, todos os outros
fariam a mesma coisa, e o resultado seria a libertação dos
escravos e o escravizamento dos brancos. A defesa do Sr.
Gore foi satisfatória – ele continuou em seu cargo como
feitor do Casarão. Sua fama como feitor se espalhou, e seu
crime monstruoso não foi nem submetido a uma
investigação judicial. Suas únicas testemunhas eram
escravos, e estes obviamente não podiam iniciar um
processo, nem testemunhar contra ele. Assim, o homem
culpado de perpetrar um dos mais torpes e violentos
assassinatos continua intocado pela justiça, sem sequer ser
censurado pela comunidade em que vive. O Sr. Gore
morava em St. Michaels, no condado de Talbot, Maryland,
quando saí de lá. E, se ainda estiver vivo, provavelmente
ainda mora, agora como era então, estimado e respeitado,
como se sua alma culpada não estivesse manchada pelo
sangue de seu irmão.
Digo isto deliberadamente – matar um escravo ou
qualquer pessoa negra, no condado de Talbot, Maryland,

64
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

não é considerado um crime, tanto pelas cortes quanto pela


comunidade. O Sr. Thomas Lanman, de St. Michaels,
matou dois escravos, um deles com uma machadinha,
batendo nele até que seu cérebro se espalhasse pelo chão.
Ele costumava se gabar de ter cometido essa atrocidade – já
o ouvi fazê-lo, bem como dizer rindo, entre outras coisas,
que ele era o maior benfeitor das cercanias, e que, se todos
fizessem também o que ele tinha feito, eles estariam livres
de vez dos “negros malditos”.
A mulher do Sr. Giles Hicks, que vivia próxima de onde
eu morava, assassinou a prima de minha esposa, uma jovem
entre quinze e dezesseis anos de idade, mutilando-a da
maneira mais horrível, quebrando seu nariz e esterno com
uma clava, de forma que a pobre menina morreu poucas
horas depois. Ela foi imediatamente enterrada, mas ficou
poucas horas em seu túmulo precoce, pois foi desenterrada
e examinada pelo legista, que descobriu que a menina havia
sido espancada até a morte. A ofensa que levou à morte
dessa menina foi a seguinte: ela havia sido colocada para
cuidar do bebê da Sra. Hicks, e, durante a noite, ela pegou
no sono, e o bebê chorou. Como ela não dormia há várias
noites, não acordou com o choro da criança. Eles estavam
no mesmo quarto que o Sr. e a Sra Hicks, e esta, vendo que
a menina não se movia, pulou da cama, pegou um bastão
que estava junto à lareira e, com ele, quebrou o nariz e o
esterno da outra, encerrando, assim, a sua vida. Não posso
dizer que esse assassinato repugnante não causou alguma
comoção na localidade – causou. Mas não o suficiente para
que os assassinos fossem punidos. Um mandato de prisão

65
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

foi emitido para a Sra. Hicks, mas nunca foi cumprido. E


assim ela escapou não só qualquer tipo de castigo, mas até
de ser levada a um tribunal por seu crime horroroso.
Já que estou narrando os casos sangrentos que
aconteceram enquanto eu estava na fazenda do coronel
Lloyd, contarei, brevemente, um outro, que aconteceu mais
ou menos na mesma época em que Demby foi assassinado
pelo Sr. Gore.
Os escravos do coronel Lloyd tinham o hábito de passar
parte de suas noites e seus domingos pescando ostras,
tentando compensar a deficiência de suas rações. Um
velho, que pertencia ao coronel, enquanto praticava esta
atividade, passou dos limites das terras do coronel, indo
parar na propriedade do Sr. Beal Bondly. O Sr. Bondly se
ofendeu com essa invasão e foi para a praia com seu
mosquete, disparando, com ele, no pobre do velho.
O Sr. Bondly veio ver o coronel Lloyd no dia seguinte,
não sei se para pagar pela propriedade ou se justificar pelo
que tinha feito. Em todo caso, essa história logo foi abafada
– muito pouca coisa foi dita a respeito, e nada foi feito. Era
um ditado comum mesmo entre os meninos brancos, que a
vida de um negro valia a mesma coisa que o buraco de seu
túmulo: nada14.

14[NT] Uma adaptação radical do original, que apregoa que “it was worth a
half-cent to kill a ‘nigger,’ and a half-cent to bury one” (valia meio centavo
matar um negro, e meio centavo enterrar um). Mas aqui, seguindo a opção
mais coerente com os objetivos desta tradução, privilegiou-se a clareza e o
sentido em detrimento da fidelidade ao original.

66
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO V

Quanto ao tratamento que recebi enquanto morava na


fazenda do coronel Lloyd, era bem parecido com o de
qualquer outra criança escrava. Eu não tinha idade
suficiente para trabalhar no campo, e, como havia pouca
coisa para fazer que não fosse relacionada ao trabalho no
campo, eu tinha bastante tempo livre. O máximo que tinha
que fazer era conduzir o gado à tarde, manter as aves fora
do jardim, manter o pátio limpo e fazer serviços para a filha
de meu senhor, a Sra. Lucretia Auld. O tempo livre que
tinha, passava ajudando o senhor Daniel Lloyd a encontrar
os pássaros que abatia nas caçadas. O meu contato com o
senhor Daniel era uma vantagem para mim, pois ele
impedia que os garotos mais velhos me incomodassem, e
dividia seu bolo comigo.
Raramente, era açoitado pelo meu velho mestre, e
passava apenas fome e frio – sofria bastante de fome, mas
muito mais por conta do frio. O mais quente verão e o
inverno mais frio, eu passava quase nu – sem sapatos,
meias, casaco, calças, nada além de uma camisa de linho
rústico que ia até meus joelhos. Não tinha cama. Eu teria

67
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

morrido de frio, mas, nas piores noites, eu costumava


roubar um saco que era usado para levar milho para o
moinho, entrar dentro dele e ali dormir, sobre o chão
úmido de argila, com minha cabeça e pés de fora. Meus pés
tinham rachaduras de frieira tão grandes que a caneta com
que estou escrevendo agora caberia dentro de uma delas.
Nós não ganhávamos uma ração regular. Nossa comida
era quirera de milho cozida, que chamavam de lavagem15.
Isso era servido em uma gamela ou tabuleiro de madeira e
colocado no chão. As crianças, então, eram chamadas,
como se fossem porcos, e, como porcos, vinham e
devoravam a lavagem; alguns, com conchas de ostras,
outros, com cacos de telha, outros ainda com as mãos nuas,
e ninguém com colher. Quem comesse mais rápido ingeria
mais, quem era mais forte garantia o melhor lugar, e poucos
saíam satisfeitos.
Eu tinha em torno de sete ou oito anos de idade quando
deixei a fazenda do coronel Lloyd. Saí de lá feliz – jamais
vou esquecer o êxtase com que recebi a notícia de que meu
antigo senhor (Anthony) tinha determinado que eu fosse
para Baltimore, morar com o Sr. Hugh Aule, irmão do
genro de meu senhor, capitão Thomas Auld. Recebi essa
notícia três dias antes de minha partida, e esses foram
alguns dos dias mais felizes que já passei. Fiquei a maior
parte desses dias no riacho, lavando a crosta da fazenda da
pele e me preparando para a partida.
O cuidado com a aparência pessoal que isso parece
15 [NT] No original, mush, podendo ser traduzido também por ‘pirão’ ou
‘angu’, ou mesmo ‘quirera’, mas se preferiu enfatizar na tradução o símile
desenvolvido pelo autor.

68
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

sugerir não era meu. Passei esse tempo todo me lavando


não porque eu quisesse, mas porque a Sra. Lucretia me
disse que eu tinha que tirar toda a pele morta de meus pés e
joelhos antes de poder ir para Baltimore, pois o povo em
Baltimore era muito asseado e riria de mim se eu parecesse
sujo. Além do mais, eu estava ganhando um par de calças,
que não podia colocar a não ser que tirasse toda a sujeira de
mim. A ideia de ganhar um par de calças era incentivo
suficiente para que eu arrancasse não apenas o que os
porqueiros chamam de sarna, mas também a própria pele.
Me empenhei com afinco na tarefa: era a primeira vez na
vida que trabalhava por uma recompensa.
Os laços que normalmente amarram as crianças a seus
lares não se aplicavam no meu caso. Eu não achei difícil
partir – meu lar não tinha nenhum atrativo, não era um lar
para mim; ao deixá-lo, não senti estar deixando nada que
pudesse ter desfrutado caso ficasse. Minha mãe estava
morta, minha avó vivia longe, de modo que dificilmente a
via. Eu tinha duas irmãs e um irmão, que viviam comigo,
mas a separação precoce de nossa mãe havia quase apagado
nosso parentesco da memória. Eu buscava um lar em um
lugar diferente, e estava confiante de que não encontraria
um lugar de que gostasse menos do que aquele que estava
deixando. E, se por acaso em meu novo lar eu encontrasse
fome, frio, açoitadas e nudez, era um consolo saber que
não teria escapado nada disso se ficasse. Já havia provado
tudo isso no lar de meu velho mestre, e tinha confiança de
que poderia suportar isso também em minha nova posição,
especialmente em Baltimore. Me sentia de acordo com o

69
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

provérbio, que dita que “é melhor ser enforcado na


Inglaterra do que morrer de velho na Irlanda”. Tinha muita
vontade de conhecer Baltimore. O primo Tom, embora
não fosse muito eloquente, tinha me inspirado esse desejo
com suas histórias: eu não podia elogiar nada no Casarão
que ele já não tivesse visto muito maior ou mais bonito por
lá. Até o próprio Casarão, com todos os retratos que tinha,
era inferior a muitos prédios em Baltimore. Meu desejo era
tão intenso que achava que atendê-lo compensaria qualquer
perda de conforto que eu tivesse que enfrentar com a
mudança. Parti sem arrependimentos, e com a maior
esperança de felicidade futura.
Levantamos vela do rio Miles para Baltimore num
domingo de manhã – lembro apenas o dia da semana, pois,
na época, não sabia os dias do mês e nem os meses do ano.
Ao partir, fui para trás da embarcação, na popa, e olhei para
as fazendas do coronel Lloyd pela última vez (ou assim
esperava). Então, me dirigi à proa e passei o resto do dia
olhando para a frente, para o que nos esperava na distância,
em vez de o que estava próximo ou atrás.
Na tarde daquele dia, alcançamos Annapolis, a capital do
Estado. Paramos pouco tempo, de modo que não pude
desembarcar. Era a primeira cidade grande que eu via, e,
embora fosse pequena comparada a algumas das vilas
industriais da Nova Inglaterra, achei que era um lugar
impressionante para seu tamanho – ainda mais imponente
que a Fazenda do Casarão!
Chegamos à Baltimore no começo da manhã de
domingo, aportando no cais do Smith, próximos do cais do

70
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Bowley. Tínhamos a bordo da corveta um grande rebanho


de ovelhas, e, após ajudar a tocá-las para o matadouro do
Sr. Curtis, em Louden Slanter’s Hill, fui levado por Rich,
um integrante da tripulação da corveta, para meu novo lar
na rua Alliciana, próxima do estaleiro do Sr. Gardner, em
Fells Point.
O Sr. e a Sra. Auld estavam ambos em casa, e me
receberam à porta junto com seu filho Thomas, que
passaria a ficar a meu encargo, pois por isso tinha sido dado
a eles. E foi ali que vi uma coisa que nunca tinha visto
antes: um rosto branco resplandecente de ternura e emoção
– o rosto de minha nova senhora, Sophia Auld. Quisera
poder descrever o arrebatamento que correu por minha
alma quando a vi. Era uma visão estranha e nova para mim,
iluminando meu caminho com a promessa de felicidade.
Disseram ao pequeno Thomas que ali estava o seu Freddy,
e a mim que tomasse conta do pequeno Thomas; assim
assumi meus deveres em meu novo lar, com a promessa de
um futuro feliz.
Vejo minha partida da fazenda do coronel Lloyd como
um dos eventos mais interessantes de minha vida. É
possível (e até provável) que, se eu não tivesse deixado
aquela fazenda para ir à Baltimore, hoje, eu não estaria aqui,
desfrutando da liberdade e da felicidade de meu lar e
escrevendo essa narrativa, mas, sim, nas garras e correntes
da escravidão. Foi a minha ida à Baltimore que construiu a
fundação e abriu, para mim, os portões de minha
prosperidade ulterior. Sempre considerei essa como sendo
a primeira manifestação da gentil providência que, desde

71
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

então, tem me ajudado e enchido minha vida de favores, e


sempre achei que o fato de eu ter sido escolhido para a
tarefa foi muito singular, pois havia tantos outros comigo,
mais jovens, velhos, e tantos da mesma idade. Entre todos,
eu fui o escolhido, o primeiro e o último – e o único.
Posso até parecer supersticioso, e até mesmo
egocêntrico, ao sugerir que esse evento foi uma intervenção
da divina providência em meu favor, mas seria uma
falsidade com meus sentimentos de então omitir essa
opinião. Prefiro ser honesto comigo mesmo, arriscando o
ridículo, do que ser falso e acabar me desprezando. Desde
que consigo me lembrar, tive a profunda convicção de que
a escravidão não me teria para sempre em seus braços, e
nem nos meus momentos mais negros enquanto escravo
essa certeza se apagou – continuou lá, constante como uma
palavra de fé e um sopro de esperança, anjos que me
ajudaram nos momentos mais tristes. Esse sopro divino
vinha de Deus, e a ele ofereço minhas preces e meu louvor.

72
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO VI

Minha senhora era tudo o que pareceu ser quando a


conheci – uma mulher com o coração gentil e os
sentimentos mais nobres. Ela nunca havia tido um escravo
antes de mim, e trabalhava por si própria antes de se casar.
Ela era fiandeira por profissão, e, por sempre ter trabalhado
por si, havia sido bem preservada dos efeitos perniciosos e
desumanizantes da escravidão. Sua bondade me aturdia, eu
não sabia como me comportar diante dela. Ela não era
como nenhuma outra mulher que conhecera em minha
vida, eu não podia falar com ela da forma com que falava a
outras damas. Tudo o que havia aprendido anteriormente
não se aplicava a ela. A servilidade rastejante, que
normalmente é considerada uma qualidade desejável em
um escravo, não funcionava com ela – não a agradava, mas
a deixava sem jeito. Ela não considerava falta de modos ou
descaramento que um escravo olhasse direto para ela. O
escravo mais vil ficava totalmente à vontade na sua
presença, e ninguém a deixava sem se sentir melhor por tê-
la visto. Seu rosto era feito de sorrisos iluminados, e sua
voz de música tranquila.

73
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Mas – ai de mim! Esse coração gentil iria permanecer


assim por muito pouco tempo. O veneno mortal do poder
sem medidas já estava nas suas mãos, e logo obrou seu
trabalho infernal. Aquele olho alegre, sob a influência
aviltante da escravidão, logo se tornou vermelho de raiva; a
voz que era uma doce harmonia se tornou algo ríspido e
dissonante, e a face angélica cedeu lugar a uma demoníaca.
Logo depois que fui morar com o Sr. e Sra. Auld, ela
gentilmente começou a me ensinar o ABC. Depois que
tinha aprendido isso, ela me ensinou a soletrar palavras de
três ou quatro letras. Neste ponto de meu progresso, o Sr.
Auld descobriu o que estava acontecendo, e imediatamente
proibiu a Sra. Auld de continuar a me ensinar, dizendo a
ela, entre outras coisas, que era proibido – e perigoso –
ensinar um escravo a escrever. Em suas próprias palavras,
“se você der uma mão a um negro, ele toma o braço16. Um
negro deve aprender somente a obedecer seu mestre –
fazer o que lhe mandam. O aprendizado pode estragar o
melhor negro do mundo. Agora”, disse ele, “se você
ensinar esse negro (falava de mim) a ler, não teríamos como
mantê-lo. Isso iria incapacitá-lo para sempre como escravo.
Ele se tornaria imediatamente indócil, e inútil para seu
senhor. E não faria nenhum bem a ele, mas muito mal; o
aprendizado faria ele descontente e infeliz”. Essas palavras
calaram fundo em meu coração, despertando sentimentos
profundos que jaziam adormecidos, e trouxeram à

16[NT] No original, “if you give a nigger an inch, he will take an eel” (se você der
a um negro uma polegada, ele toma uma vara). Como as medidas não são as
mesmas e nem o ditado é familiar, se trocou por um de significado e forma
semelhantes.

74
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

existência uma perspectiva totalmente nova para mim. Era


uma revelação especial, que explicava coisas obscuras e
misteriosas, coisas que meu entendimento imaturo lutava
em vão para entender – compreendi, então, uma das coisas
que me deixava mais perplexo, que era o poder que o
homem branco tinha de escravizar o homem negro. Era
uma conquista importante, a que dei grande valor. A partir
daquele momento, eu via o caminho que vai da escravidão
para a liberdade. Era isso que eu queria, e que me veio
justamente na hora em que menos esperava – bem quando
eu estava triste por ter perdido o auxílio de minha gentil
senhora, me alegrei à luz do segredo valioso que meu
senhor tinha, por acidente, deixado escapar. Embora
soubesse da dificuldade de aprender a ler sem um
professor, tive a partir dali um propósito fixo e grandes
esperanças – de aprender a ler a qualquer preço. A maneira
decidida com que meu senhor falou, buscando educar sua
esposa nas consequências malignas de minha instrução, me
convenceu de que ele era profundamente sensível às
verdades que contava. Isso me deu plena confiança nos
resultados que, segundo ele, viriam como consequência de
meu aprendizado – e aquilo que ele mais temia era o que eu
mais desejava; o que ele mais amava, eu odiava com maior
intensidade. Aquilo que, para ele, era um grande mal, a ser
diligentemente proscrito, era, para mim, um grande bem, a
ser buscado com seriedade; e o argumento que ele deu de
forma tão candente contra minha instrução só serviu para
me inspirar o desejo e a determinação de aprender. A
minha educação, eu devo quase tanto à oposição amarga de

75
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

meu senhor quanto à ajuda gentil de minha senhora. E


reconheço os benefícios de ambos.
Eu não estava morando em Baltimore há muito tempo
quando observei uma diferença no trato dos escravos, em
relação à minha experiência no interior. Um escravo, na
cidade, é quase um homem livre, comparado ao que passa
um escravo na fazenda. Ele é muito melhor alimentado e
vestido, e tem privilégios que o escravo da fazenda nunca
conheceu. Há um vestígio de decência, uma vergonha na
cara, que mantém sob controle os arroubos de crueldade
feroz que são comuns na fazenda. Um escravagista da
cidade tem que estar desesperado para chocar a
humanidade de seus vizinhos libertários com os gritos de
seu escravo lacerado. Poucos se arriscam a desenvolver a
reputação odiosa de senhores cruéis, e, pior ainda, odiariam
ser conhecidos como alguém que não dá o suficiente de
comer a um escravo. Há, no entanto, algumas exceções
tristes a essa regra. Do outro lado da rua Philpot, morava o
Sr. Thomas Hamilton, que tinha duas escravas – Henrietta
e Mary. Henrietta tinha cerca de vinte e dois anos, e Mary
uns quatorze; as duas eram as criaturas mais mutiladas e
emaciadas que já vi na vida. Seria necessário um coração de
pedra para olhá-las sem se sentir tocado. A cabeça, pescoço
e ombros de Mary estavam literalmente aos pedaços. Eu,
com frequência, examinava sua cabeça e a encontrava
coberta de feridas purulentas, causadas pelo chicote de sua
cruel senhora. Nunca ouvi falar de seu senhor batendo
nela, mas fui testemunha da crueldade da Sra. Hamilton.
Ela costumava sentar em uma cadeira grande no meio da

76
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

sala, com um chicote pesado sempre a seu lado, e não se


passava uma hora que não fosse marcada pelo sangue de
uma das escravas. Toda vez que uma delas passava pela
senhora, ela dizia “Ande mais rápido, negra sem-
vergonha!17” ao mesmo tempo que a açoitava com o
chicote na cabeça ou ombros, com frequência tirando
sangue. Ela, então, continuava, dizendo: “Tome isso, negra
sem-vergonha – se você não se mover mais depressa, quem
vai fazer você se mover sou eu!” Somada à crueldade a que
essas escravas estavam sujeitas, elas sempre passavam
fome, dificilmente fazendo uma refeição decente. Já vi
Mary se batendo com os porcos pelo farelo jogado na rua.
Mary estava tão cortada e maltratada que com frequência
chamavam ela de “beliscada18” em vez de dizer seu nome.

17 [NT] "Take that, you black gip!" – ‘gip’ sendo uma corruptela de ‘gyp’,
sinônimo de ‘trapaceiro/a’.
18 [NT] No original, ‘pecked’, que significa ‘bicada’. Uma vez que grande

parte das pessoas hoje em dia mora nas cidades e só conhece a galinha
como vem à mesa, adapta-se para uma forma em que, imagina-se, o sentido
venha mais naturalmente.

77
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

78
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO VII

Morei com a família do Sr. Hugh cerca de sete anos.


Neste período, consegui aprender a ler e a escrever. Para
conseguir isso, tive que recorrer a vários estratagemas – eu
não tinha um professor regular; minha senhora, que tinha
começado minha instrução, não apenas a abandonou
quando seu marido o exigiu, mas também se recusou a me
deixar aprender fosse como fosse. Mas é preciso dizer, pelo
bem dela, que não adotou essa forma de agir
imediatamente. No começo, ela não tinha a depravação
necessária para me isolar de todo – ela ainda precisava
treinar um pouco o exercício do poder irresponsável para
me tratar como se eu fosse um animal.
Minha senhora era, como já disse, uma mulher gentil e
de coração terno; e foi pela bondade de seu coração que ela
começou, quando fui morar com eles, por me tratar como
um ser humano deve tratar o outro. Quando entrou em seu
papel de escravista, ela não percebeu que eu tinha para ela a
qualidade de um imóvel, e que não só era errado, como
perigoso, me tratar como um ser humano. A escravidão foi
tão nociva a ela como foi para mim. Quando lá cheguei, era

79
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

ela uma mulher piedosa, terna e alegre; não havia tristeza


ou provação que não a sensibilizasse – ela tinha pão para os
famintos, roupas para os desnudos e um consolo para todas
as tribulações que alcançasse. A escravidão logo mostrou
sua capacidade de roubá-la dessas qualidades divinas; sob
sua influência, o coração terno virou pedra, e o
temperamento suave de carneiro se tornou rígido e feroz
como o de um tigre. O primeiro passo de sua queda foi ela
cessar minha instrução. A partir daquele momento, ela
começou a agir de acordo com os preceitos de seu esposo,
e finalmente se tornou ainda mais feroz em sua oposição
do que o próprio marido – não satisfeita em agir de acordo
com o que ele havia determinado, parecia ansiosa por
exceder esses ditames. Nada a fazia mais furiosa do que me
ver com um jornal; parecia pensar que ali estava o perigo –
ela vinha até onde eu estava com a face distorcida pela
fúria, e arrancava o jornal de minhas mãos de uma maneira
tal que expunha completamente suas reais apreensões. Ela
era uma mulher inteligente, e um pouco de experiência logo
provou a ela que a escravidão e a educação eram
incompatíveis.
Desse momento em diante, eu era vigiado de perto. Se
estivesse em um aposento separado por um período
considerável de tempo, era certo que seria suspeito de ter
um livro em mãos, e me chamavam imediatamente para
checar o que eu andava fazendo. Mas tudo isso veio tarde
demais – o primeiro passo tinha sido dado. A minha
senhora, ao me ensinar o alfabeto, tinha me oferecido a
mão, e nada podia agora me impedir de tomar o braço.

80
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

O plano que adotei, em que tive muito sucesso, foi o de


fazer amizade com todos os garotos brancos que
conhecesse na rua. Aqueles que pudesse, eu converteria em
professores. Com seu gentil auxílio, finalmente consegui
aprender a ler e escrever. Sempre que era mandado numa
incumbência levava meu livro comigo, e, quando conseguia
me livrar rápido do meu dever, tinha tempo para uma aula
antes de voltar. Também costumava carregar pão comigo,
pois tinha bastante na casa e eu podia pegar quanto
quisesse – nesse sentido, estava muito melhor que várias
das crianças brancas pobres da vizinhança – de modo que
trocava esse pão com os meninos de rua pelo pão mais
valioso do conhecimento. Estou tentado a dar os nomes de
um ou dois desses garotos como um testemunho de minha
gratitude e afeição, mas seria imprudente – não que fosse
me prejudicar, mas poderia embaraçá-los, já que é
praticamente uma ofensa imperdoável ensinar os escravos a
ler neste país cristão. Basta dizer, desses queridos
companheiros, que moravam na rua Philpot, próximos aos
piers de Durgin e Bayley. Eu costumava discutir o assunto
da escravidão com eles, desejando ser livre como eles
quando me tornasse um homem. “Vocês serão livres assim
que fizerem vinte e um, mas eu serei escravo a vida inteira! Não
tenho tanto direito a ser livre quando vocês?” Essas
palavras costumavam transtorná-los; eles expressavam por
mim a mais viva simpatia, e me consolavam com a
esperança de que alguma coisa aconteceria para me libertar.
Eu tinha, então, cerca de doze anos, e o pensamento de
ser escravo a vida inteira começava a pesar em meu coração.

81
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Foi nessa época que consegui um livro entitulado “O Orador


Columbino”, que costumava ler em todas as oportunidades
que tivesse. Entre outros assuntos interessantes, encontrei
o diálogo entre um escravo e seu senhor. O escravo tinha
fugido de seu mestre três vezes, e o diálogo representava a
conversa entre eles quando o escravo foi recapturado na
terceira vez. Neste diálogo, todo o argumento em favor da
escravidão era colocado pelo senhor, e todo ele era
refutado pelo escravo. Esse escravo dizia algumas coisas
impressionantes ao responder a seu senhor – e que, ao
final, tinham o resultado desejado, embora fosse
inesperado: o resultado da conversa será que o senhor
voluntariamente emancipava o escravo.
No mesmo livro, encontrei um dos discursos poderosos
de Sheridan em defesa da emancipação do catolicismo.
Esses eram os que mais gostava. Lia eles com interesse
renovado, vez após outra. Eles davam forma a coisas que
se passavam em minha própria mente, e que morriam sem
serem ditas. Com aquele diálogo, aprendi o poder da
verdade sobre a consciência – mesmo a consciência de um
escravagista. Com Sheridan, aprendi a denúncia da
escravidão e uma poderosa defesa dos direitos humanos. A
leitura desses textos permitiu que eu expressasse meus
pensamentos, e refutasse os argumentos que defendiam a
escravatura; mas, ao mesmo tempo em que eles resolviam
um problema, eles trouxeram outro ainda mais aflitivo que
o primeiro. Quanto mais eu lia, mais eu desprezava e
detestava meus captores. Não conseguia enxergá-los de
outra maneira, eram um bando de ladrões que tinham

82
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

deixado seus lares e ido para a África, nos roubado de


nossos lares e nos reduzido à escravidão em uma terra
distante. Para mim, eram odiosos, os mais baixos e
perversos dos homens. À medida em que lia e pensava no
assunto, vejam só! – o descontentamento previsto pelo
Senhor Hugh tinha seguido no rasto de minha
alfabetização, para atormentar-me e ferroar minha alma
com uma angústia indescritível. Enquanto me contorcia
sob ela, eu, às vezes, sentia que ter aprendido a ler
constituía uma maldição em vez de uma bênção – tinha me
permitido ver minha condição miserável sem me mostrar o
remédio; abriu meus olhos para o abismo horrendo sem me
dar uma escada para escapá-lo. Em meus momentos de
agonia, invejava a estupidez de meus irmãos escravos. Com
frequência, desejei ser um animal, pois preferia a condição
do mais baixo réptil à minha. Daria o que fosse para me
livrar dos pensamentos que me torturavam – mas não era
possível silenciá-los, eles vinham de todos os objetos à
minha volta, de tudo o que via ou escutava, animado ou
inanimado. A trombeta prateada da liberdade havia
despertado totalmente em minha alma. A liberdade lá
estava, para jamais desaparecer, ouvida em cada som, vista
em todas as coisas, sempre pronta a atormentar-me com a
percepção de minha condição ultrajante. Eu não via nada a
não ser isso, não ouvia nada a não ser isso, nem sentia nada
que não fosse isso. Ela me olhava de cada estrela, sorria
para mim no céu calmo, respirava em todo vento e se
movia em toda tempestade.
Seguido me peguei amaldiçoando minha própria

83
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

existência, e desejando estar morto; e, se não fosse pela


esperança de ser livre, não tenho dúvida de que teria me
matado ou feito alguma coisa que me sentenciasse à morte.
Enquanto estava neste estado, ficava ansioso para ouvir
alguém falar na escravidão, era um expectador ansioso. De
vez em quando, ouvia falar sobre os abolicionistas, e levou
algum tempo até que descobrisse o que a palavra significava
– sempre era usada de uma maneira que me parecia
interessante. Se um escravo fugisse e conseguisse escapar,
ou se um escravo matasse seu senhor e tocasse fogo em um
celeiro, ou se fizesse algo muito errado no entender de um
escravagista, isso era tratado como o fruto da abolição.
Ouvindo a palavra dessa maneira com frequência, tentei
aprender o que significava. O dicionário não me ajudou em
nada, pois descobri que era “o ato de abolir”, e, então, não
sabia o que ‘abolir’ significava. E, assim, fiquei, atônito,
pois não ousava perguntar a ninguém o sentido, já que
parecia ser algo que não desejavam que eu soubesse. Após
uma espera paciente, descobri um jornal que tinha uma
notícia sobre o número de petições no norte que requeriam
a abolição da escravatura no Distrito de Colúmbia e do
tráfego de escravos entre os Estados. Desta vez, eu entendi
o que abolição e abolicionista significavam, e, a partir de então,
sempre busquei me aproximar quando as ouvia, na
expectativa de ouvir algo importante para mim e meus
irmãos escravos. A ideia cresceu em mim aos poucos. Um
dia, eu fui ao cais do Sr. Waters e ajudei dois irlandeses a
descarregar uma barcaça de pedras sem que me pedissem.
Quando terminamos, um deles me perguntou se era um

84
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

escravo. Disse que sim. Ele perguntou “Você vai ser um


escravo a vida inteira?” Eu disse que sim. O bom irlandês
pareceu muito compungido pela minha declaração, e disse
ao outro que era uma pena que um rapaz tão decente
quanto eu fosse um escravo a vida inteira. Ele disse que era
uma vergonha me ter cativo, e ambos me aconselharam a
fugir para o norte; lá eu encontraria amigos e seria livre. Eu
fingi não estar interessado no que tinham a dizer como se
não os entendesse, pois tinha medo que fossem traiçoeiros.
Sabia de casos em que homens brancos encorajaram
escravos a fugir para ganhar a recompensa por capturá-los e
entregá-los novamente a seus senhores, e tive medo que
aqueles homens que pareciam tão bons pudessem me usar
dessa maneira. Mas, de qualquer forma, guardei o seu
conselho, e, a partir daquele dia, resolvi fugir. Esperei
ansioso por uma oportunidade de escapar. Eu era novo
demais para pensar em fazer isso imediatamente, e, além do
mais, queria aprender a escrever, porque um dia poderia
escrever minhas memórias. Me consolei com a esperança
de encontrar uma chance boa no futuro. Enquanto isso, eu
iria aprender a escrever.
A ideia de como poderia fazer isso surgiu quando estava
no estaleiro de Bayley, observando os carpinteiros depois
de talhar e aplainar uma peça para uso em uma barca,
escrever na madeira em que parte da nave ela iria. Quando
uma peça ia para bombordo, era marcada com um “B”;
quando ia para estibordo, era marcada com um “E”. Se a
peça era feita para a dianteira de bombordo era marcada
“D.B.”, e quando era da dianteira de estibordo, “D.E.” A

85
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

traseira de bombordo seria nomeada “T.B.” e a de


estibordo, “T.E.”. Logo aprendi o nome dessas letras, e o
que queriam dizer nas placas de madeira do estaleiro.
Imediatamente, copiei o que havia aprendido, passando a
conhecer as quatro letras. Depois, sempre que encontrava
algum garoto que sabia escrever, eu dizia a ele que sabia
escrever tão bem quanto ele. A resposta ser
invariavelmente “Eu não acredito. Quero ver você tentar.”
– eu, então, faria as quatro letras que tinha a sorte de ter
aprendido e dizia a ele que batesse aquilo se pudesse. Dessa
maneira, recebi várias lições de escrita que de outro modo
jamais teria tido. Durante essa época, meu livro de caligrafia
eram a cerca, o pavimento e o muro, e minha caneta e tinta
uma pedra de giz, e, com eles, aprendi a escrever. Comecei,
então, a copiar os itálicos na cartilha de Webster até que
pudesse fazê-los de cabeça. Meu pequeno senhor Thomas
já ia para a escola nessa época, e tinha aprendido a ler e
escrever, e preenchido vários cadernos de caligrafia. Eles
tinham sido levados para casa, mostrados a alguns vizinhos
e depois guardados. Minha senhora costumava ir para as
reuniões sociais no salão da rua Wilk todas as segundas-
feiras, e me deixar tomando conta da casa. Quando isso
acontecia, costumava passar o tempo escrevendo nos
espaços em branco dos cadernos do senhor Thomas,
copiando o que ele havia escrito. Continuei a fazer isso até
conseguir escrever com uma caligrafia similar à do senhor
Thomas. Assim, após me esforçar longa e tediosamente,
finalmente consegui aprender a escrever.

86
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO VIII

Logo depois que fui morar em Baltimore, Richard, o


filho mais novo de meu velho mestre, morreu; e cerca de
três anos e seis meses depois de sua morte, meu velho
senhor, Capitão Anthony, morreu, deixando apenas seu
filho, Andrew, e sua filha, Lucretia, como herdeiros. Ele
morreu durante uma visita a sua filha em Sillsborough.
Partindo assim de forma inesperada, ele não deixou
testamento que dispusesse sobre suas propriedades. Era,
portanto, necessário fazer uma avaliação de tudo o que
tinha, para que fosse igualmente dividido em uma partilha
entre Lucretia e o senhor Andrew. Eu fui imediatamente
convocado para ser incluído na lista das propriedades. Uma
vez mais odiei ser um escravo. Eu, agora, tinha um novo
entendimento da degradação da minha condição. Antes
disso, se eu não era insensível quanto a meu destino, ao
menos o era em parte. Deixei Baltimore com o coração
novo transbordando de tristeza e a alma cheia de
apreensão. Arranjei passagem com o capitão Rowe, na
escuna Wild Cat e, depois de velejar por cerca de vinte e

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

quatro horas, cheguei ao lugar em que havia nascido. Eu


estivera longe por quase cinco anos, mas lembrava muito
bem do lugar. Eu saíra dali para a fazenda do coronel Lloyd
quando tinha cerca de cinco anos, então tinha entre dez e
onze anos.
Fomos todos listados na avaliação. Homens e mulheres,
velhos e jovens, casados e solteiros, junto com cavalos,
ovelhas e suínos. Lá, cavalos e homens, gado e mulheres,
porcos e crianças, todos tinham o mesmo valor, e eram
todos submetidos ao mesmo tipo de inspeção. Das cabeças
brancas aos jovens diabretes, a donzela e a matrona,
passavam pela mesma delicada inspeção. Neste momento,
vi mais claramente do que nunca os efeitos brutalizantes da
escravidão em ambos o escravo e o escravista.
Depois da avaliação, veio a divisão. A minha linguagem
não serve para expressar o alto grau de excitamento e
ansiedade entre nós, pobres escravos, durante este
processo. Nosso destino estava para ser decidido. Não
tínhamos mais voz nessa decisão do que os cavalos e
porcos listados conosco. Uma única palavra dos homens
brancos era suficiente – contra todos nossos desejos,
preces e súplicas – para separar para sempre os melhores
amigos, os familiares queridos e os laços mais fortes entre
os seres humanos. Para somar à dor da separação, ainda
havia a ameaça horrível de cair nas mãos do senhor
Andrew. Ele era conhecido por todos nós por ser um
miserável cruel – um bêbado contumaz que já havia
perdido uma grande parte das propriedades de seu pai com
sua administração imprudente e pródiga devassidão. Todos

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

sentíamos que podíamos muito bem ser vendidos de uma


vez para os mercadores da Geórgia, em vez de cair em suas
mãos, pois sabíamos que seria um processo inevitável – e
também nosso maior receio e horror.
Eu sofri mais de ansiedade do que meus irmãos
escravos. Eu sabia o que era ser tratado com bondade, eles
não sabiam nada disso. Não haviam visto nada do mundo,
eram verdadeiramente homens e mulheres infortunados,
íntimos do pesar. Suas costas eram companheiras da
chibata sangrenta, e, portanto, eram calosas, enquanto as
minhas eram tenras – pois recebi poucas surras em
Baltimore, e poucos escravos poderiam se gabar de terem
um senhor e senhora mais gentis que os meus, e o
pensamento de passar de suas mãos para as do senhor
Andrew, um homem que apenas alguns dias antes, para me
dar um exemplo de seus instintos violentos, pegou meu
irmão pequeno pela garganta e o jogou ao chão, pisando
com o calcanhar da bota em sua cabeça até que o sangue
jorrasse por seu nariz e orelhas, era o bastante para me
fazer temer por meu destino. Depois que ele havia
cometido tal selvageria contra meu irmão, ele se voltou
para mim e disse que era daquela maneira que ele me
trataria um dia desses – querendo dizer, suponho, quando
eu fosse uma posse sua.
Graças à providência, fiquei no lote da sra. Lucretia e fui
imediatamente mandado de volta a Baltimore, viver
novamente com a família do senhor Hugh. Sua alegria com
meu retorno foi igual à sua tristeza com minha partida. Foi
um bom dia para mim. Eu havia escapado um destino pior

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

do que as mandíbulas de um leão. Fiquei ausente de


Baltimore, para a avaliação e partilha, cerca de um mês, e
me pareciam ter sido seis.
Logo depois que voltei à Baltimore, a minha senhora,
Lucretia, morreu, deixando marido e uma filha, Amanda, e
logo depois de sua morte, o senhor Andrew morreu. Agora,
toda a propriedade de meu antigo senhor, escravos
incluídos, estava nas mãos de estranhos, que nada tinham
feito para acumulá-la. Nenhum escravo foi liberto. Todos
permaneceram escravos, do mais novo ao mais velho. E, se
uma coisa contou mais para aprofundar minha convicção
do caráter infernal da escravidão do que as outras, essa foi a
vileza da ingratidão com minha pobre avó. Ela havia
servido meu velho senhor fielmente da juventude à velhice,
uma fonte de riquezas para ele. Ela havia colocado escravos
em sua plantação, se tornado bisavó em seu serviço.
Embalou ele no berço, cuidou dele quando criança, serviu-
o pela vida inteira, e na sua morte enxugou seu cenho frio e
fechou seus olhos para sempre. Ela, entretanto,
permaneceu uma escrava – uma escrava a vida inteira –
escrava nas mãos de estranhos, e, em suas mãos, ela viu
suas crianças, netos e bisnetos divididos, como ovelhas,
sem saber uma única palavra a respeito de seus destinos ou
o dela própria. E, como o ápice dessa montanha de
ingratidão e barbárie demoníaca, a minha avó, agora já
muito velha, tendo sobrevivido meu velho senhor e todos
os seus filhos, visto o começo e o fim de todos, quando
seus novos donos decidiram que ela tinha pouco valor por
conta da idade, sua forma antiga já sofrendo das dores da

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

idade e ficando rapidamente desamparada e fraca, lhe


construíram uma pequena cabana na floresta, com uma
pequena chaminé de barro, e lhe agraciaram com o
privilégio de ganhar ali a sua vida na completa solidão,
assim, abandonando-a para morrer sozinha! Se minha
pobre avó é viva, ela vive para sofrer na solidão mais abjeta;
ela vive para lembrar e chorar a perda de seus filhos, dos
netos e dos bisnetos. Eles se foram, como nos versos do
poeta dos escravos, Whittier19:

“Vendidas, perdidas na distância atroz


Para os charcos úmidos a plantar arroz,
Onde a chibata sem parar castiga
E o inseto barulhento pica,
Onde a febre é o diabo que espalha lento
Seu veneno caindo ao relento,
Onde os raios de um sol doente
Brilham no ar vaporoso e quente
Vendidas, perdidas, na distância atroz,
Para os charcos úmidos a plantar arroz,
Na Virgínia, nas colinas e áreas encharcadas

19 [NT] O fragmento citado por Douglass é a primeira estrofe de um poema


de John Greenleaf Whittier, poeta transcendentalista, conhecido por sua
obra ter sido importante para a abolição da escravatura. O poema, em
específico, é The Farewell of a Virginia Slave Mother to Her Daughters Sold into
Southern Bondage (ou: O Adeus de uma Mãe Escrava da Virgínia a Suas Filhas,
Vendidas como Estravas no Sul). Foi publicado por Edmund Clarence Stedman
em An American Anthology, 1787–1900. no ano de 1900. O original, em
domínio público, pode ser lido no endereço
<http://www.bartleby.com/248/213.html>, acesso em jul. 2015. Aqui se
realizou uma tradução livre dos dísticos heroicos, mantendo a forma e o
ritmo tanto quanto possível.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Ai de mim, com minhas filhas roubadas!”

Seu coração está desolado. As crianças, inocentes que


uma vez cantaram e dançaram em sua presença, se foram.
Ela tateia seu caminho, na escuridão da velhice, em busca
de um gole d’água. Em vez das vozes de seus pequenos, ela
ouve, de dia, o arrulhar dos pombos, e, à noite, os gritos
odiosos das corujas. Tudo é tristeza. O túmulo está à porta.
E, agora, esmagada pelas dores e queixas da idade, quando
a cabeça se inclina para os pés, quando se encontrar o início
e o fim da existência humana e a infância indefesa e a idade
dolorida se combinam – no momento preciso em que a
necessidade é mais premente a ternura que só as crianças
sabem dedicar a um parente em seu declínio – minha pobre
avó, mãe devotada de doze filhos, é deixada sozinha, em
sua pequena cabana, diante de umas poucas brasas turvas.
Ela levanta – ela senta – ela titubeia – ela cai – ela geme –
ela morre – e já não há nenhuma de suas crianças ou netos
presentes para enxugar de seu cenho enrugado o suor frio
da morte, ou plantar sob o solo seus restos caídos. Não há
um Deus justo que corrija essas coisas?
Cerca de dois anos após a morte da senhora Lucretia, o
senhor Thomas casou com sua segunda esposa. Seu nome
era Rowena Hamilton, a filha mais velha do Sr. William
Hamilton. Meu senhor agora morava em St. Michael. Logo
após seu casamento, um mal-entendido aconteceu entre ele
e o senhor Hugh, e, como punição para seu irmão, me
tomou dele e me levou para viver com ele em St. Michael.
Lá, eu passei novamente por uma dura separação, que,

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

entretanto, não foi tão severa quanto a que temi na divisão


das propriedades, pois, durante esse intervalo de tempo,
uma grande mudança havia se operado entre o senhor
Hugh e sua esposa, que, no passado, havia sido boa e
afetuosa. A influência do conhaque sobre ele e a da
escravidão sobre ela causaram uma desastrosa mudança no
caráter de ambos; de modo que, até onde pude perceber, eu
tinha pouco a perder com a mudança. Mas não era a eles
que eu me tinha afeito, mas àqueles meninos de Baltimore.
Tinha recebido deles muitas boas lições, e continuava a
recebê-las, de modo que o pensamento de deixá-los era
verdadeiramente doloroso. Eu estava indo embora sem a
esperança de um dia retornar – o senhor Thomas me
advertiu de que ele jamais me permitiria voltar, pois
considerava irreversível o rompimento com seu irmão.
Então, me arrependi de não ter ao menos tentado dar
ensejo à minha resolução de fugir, pois as chances de
sucesso são dez vezes maiores na cidade do que no campo.
Velejei de Baltimore até St. Michael na corveta Amanda,
com o capitão Edward Dowson. Em meu percurso, prestei
atenção na direção em que os barcos a vapor tomavam para
ir à Filadélfia. Percebi que, ao invés de irem no sentido do
rio, ao atingirem North Point, eles subiam pela baía, na
direção norte-nordeste. Esse me pareceu um conhecimento
muito importante. Minha determinação de fugir era
novamente atiçada. Resolvi esperar apenas por uma
oportunidade favorável. Quando esta chegasse, eu estava
determinado a partir.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO IX

Alcancei agora o período de minha vida em que posso


fornecer datas. Deixei Baltimore e fui morar com o senhor
Thomas Aula, em St. Michael, em março de 1832. Fazia
mais de sete anos que tinha morado com ele e a família de
meu antigo mestre na fazenda do coronel Lloyd.
Obviamente, éramos perfeitos estranhos – ele era meu
novo senhor, e eu, seu novo escravo; não sabia nada sobre
seu temperamento e nem ele sobre o meu. Em pouco
tempo, entretanto, passamos a nos conhecer muito bem, e
vim a conhecer sua esposa como a ele mesmo – eram um
par perfeito, igualmente cruéis e mesquinhos. Pela primeira
vez em sete anos, eu sentia as mordidas da fome – coisa
que não passava desde que deixara a fazenda do coronel
Lloyd. Já era difícil de aguentar quando eu nunca tinha
passado por um período de abastança, mas, depois de viver
com a família do senhor Hugh, onde sempre tinha comida
boa e farta, era dez vezes pior. Eu disse que o senhor
Thomas era um homem mesquinho, e ele era. Não dar a
um escravo o suficiente de comer é tido como o mais grave
tipo de mesquinharia, mesmo entre escravagistas. A regra é:

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

não importa quão rudimentar seja a comida, dê a eles o


suficiente – essa era a teoria e, na parte de Maryland de
onde vim, a prática geral, embora houvesse muitas
exceções. O senhor Thomas não nos dava nem comida boa
nem rústica que bastassem. Éramos quatro escravos na
cozinha – minha irmã Eliza, minha tia Priscilla, Henny e eu;
e nossa ração era de menos de doze quilos20 de quirera de
milho por semana, e, pouco mais que isso, tanto em carne
como em vegetais. Não era o suficiente para sobreviver, e,
por isso, fomos reduzidos à vileza de viver às custas de
nosso próximo. Fazíamos isso mendigando e roubando, o
que viesse mais facilmente na hora da necessidade, pois um
era considerado tão legítimo como o outro. Quantas vezes
nós, pobres criaturas, quase morremos de fome quando
comida abundante mofava no depósito ou no defumador,
com nossa bondosa senhora sabendo o que se passava –
ainda assim, essa senhora e seu marido se ajoelhavam todas
as manhãs e rezavam para que Deus os abençoasse com
fartura!
Não existe o bom escravagista, mas é difícil ver um
totalmente destituído de caráter e qualidades respeitáveis.
Meu senhor era um desses raros elementos. Não sei de
nenhum ato nobre que ele tenha cometido, o traço mais
marcante de seu caráter era a mesquinhez e, se houvesse
mais algum elemento em sua natureza, era submisso a ela.
Ele era avarento, e, como muitos outros homens

20[NT] Menos de meio bushel (portanto, menos que 12,5Kg de milho, para
ser exato, o que daria pouco mais de três quilos por pessoa na semana). A
dieta narrada por Douglass totaliza cerca de 1600Kcal por dia, de acordo
com estimativa do site caloriecount.com, e é indicada para emagrecimento.

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

mesquinhos, não conseguia esconder esse fato. O capitão


Auld não tinha nascido escravagista. Ele tinha sido um
homem pobre, senhor de apenas uma balsa; ele havia
adquirido seus escravos através do casamento, e, de todos
os homens, aqueles que adotam a escravidão são os piores.
Ele era cruel, mas também covarde. Ele comandava sem
firmeza, e suas regras eram, às vezes rígidas, às vezes
frouxas. Em um momento, falava aos escravos com a
firmeza de Napoleão e a fúria de um demônio; em outro,
poderia ser confundido com uma pessoa perdida que
estivesse ali para perguntar o caminho. Ele não se ajudava –
se não fossem as orelhas, poderia ser confundido com um
leão. Sua vileza era aparente até nas coisas nobres que
tentasse. Seu ar, palavras e ações eram o ar, palavras e ações
de quem nasceu senhor de escravos e, como imitações,
eram desajeitadas. Ele sequer era um bom imitador. Tinha
toda a disposição de enganar, mas lhe faltava o talento. Sem
ter recursos em si próprio, era compelido a copiar muitos
outros e, assim, era sempre vítima da própria
inconsistência. Como consequência, era objeto de desprezo
até mesmo por seus escravos. O luxo de escravos para
servi-lo era algo para que não estava preparado; era um
senhor de escravos sem habilidade suficiente para sê-lo21, e
se viu incapaz de comandar seus escravos por força, medo
ou fraude. Dificilmente o chamávamos de ‘mestre’;
geralmente nos dirigíamos a ele como ‘capitão Auld’, e não
sentíamos a disposição de lhe auferir título algum, e não
21 [NT] Como ‘senhor de escravos’ ou ‘mestre de escravos’, em Inglês, é
‘slaveholder’, ‘retentor de escravos’, o trocadilho de um ‘retentor de escravos
sem a habilidade de reter escravos’ fica intraduzível.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

duvido que a nossa conduta tivesse algo a ver com o fato


de ele parecer desajeitado, e, por consequência, irascível –
nossa falta de respeito por ele deveria deixá-lo bastante
perplexo. Ele queria que o chamássemos de mestre, mas
não tinha a firmeza necessária para nos comandar a fazê-lo.
Sua esposa insistia que o fizéssemos, mas sem resultados.
Em agosto de 1832, meu senhor atendeu um congresso
metodista na baía do condado de Talbot, e lá experimentou
a religião. Tive a esperança de que sua conversão o levasse
a emancipar seus escravos e que, se não chegasse a tanto,
talvez o fizesse mais gentil e humano, mas fui desapontado
em ambos os sentidos – ele não se tornou nem mais
humano nem emancipou os escravos. Se a revelação teve
algum efeito em seu caráter, o fez mais cruel e odioso em
todos os sentidos, pois acredito que ele ficou muito pior
depois de sua conversão. Antes, ele era amparado apenas
por sua depravação em sua barbárie selvagem; mas, depois
de sua conversão, ele encontrou sanção religiosa para sua
crueldade escravagista. Ele alegava ser pio, e sua casa era o
lugar das preces. Ele rezava de manhã, à tarde e à noite.
Logo, se distinguiu entre os fiéis, e se tornou um líder e um
entusiasta entre os de sua classe. Era muito ativo durante as
cerimônias, e se provou o instrumento da conversão de
muitas pessoas para a igreja. Sua casa era o segundo lar dos
pastores – costumavam se aprazer em visitá-lo, pois,
enquanto nós passávamos fome, eles se empanturravam.
Chegávamos a ter três ou quatro pastores na casa ao
mesmo tempo. O nome daqueles que visitavam, com maior
frequência, enquanto estive lá, eram o Sr. Storks, Sr. Ewery,

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Sr. Mumphry e Sr. Hickey. Também vi o Sr. George


Cookman em nossa casa. Nós, escravos, adorávamos o Sr.
Cookman, e o tínhamos como um bom homem.
Achávamos que tinha sido essencial em convencer o Sr.
Samuel Harrison, um senhor de escravos muito rico, a
emancipar os seus escravos, e, por alguma razão, tínhamos
a impressão de que ele trabalhava pela emancipação de
todos os escravos. Quando visitava nossa casa, era certo
que seríamos chamados para a hora de rezar. Quando os
outros visitavam, às vezes nos chamavam e às vezes não. O
Sr. Cookman reparava mais em nós do que qualquer dos
outros pastores, mas não podia se misturar conosco sem
trair suas simpatias, e nós, mesmo estúpidos como éramos,
tínhamos a sagacidade de percebê-lo.
Enquanto vivia com meu senhor em St. Michael,
apareceu um jovem branco, um Sr. Wilson, que se propôs a
manter uma escola dominical para a instrução dos escravos
que se dispusessem a ler o Novo Testamento. Nos
encontramos três vezes, mas logo vieram o Sr. West e o Sr.
Fairbanks, ambos líderes de classe, junto de vários outros,
nos acertar com bastões e outros projéteis; nos afastaram e
proibiram de encontrar Sr. Wilson novamente. Assim,
acabou nossa escola dominical, na piedosa cidade de St.
Michael.
Dizia que meu senhor encontrou na religião um amparo
para sua crueldade. Gostaria de contar um entre muitos
casos que tenho como prova da acusação. Já o vi amarrar
uma jovem moça manca e açoitá-la nos ombros nus com
um chicote pesado até que o sangue vermelho gotejasse no

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

chão; e, como justificativa desse feito sangrento, oferecer


uma citação das Escrituras – “Aquele servo que conhece a
vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem
o realiza, receberá muitos açoites.”22
Este senhor mantinha essa moça lacerada em suas
amarras, nessa situação horrenda, quatro ou cinco horas
por vez. Já o vi amarrá-la cedo da manhã e açoitá-la antes
do café. Lá a deixou, foi para sua loja, voltou para o jantar e
depois a açoitou novamente, cortando-a na carne já
machucada com o chicote cruel. O segredo da crueldade do
senhor para com “Henny” pode ser encontrado no fato de
ela ser quase totalmente desamparada. Quando criança, ela
caiu no fogo e se queimou horrivelmente. Suas mãos
ficaram tão queimadas que ela nunca conseguiu usá-las
direito. Ela podia fazer muito pouco que não fosse carregar
cargas pesadas. Ela era, para um senhor, uma despesa; e,
como ele era um homem mesquinho, ela era para ele uma
constante ofensa. Ele parecia desejoso de se livrar dela.
Uma vez, lhe deu à sua irmã, mas, como o presente era
defeituoso, esta não quis mantê-la. Finalmente, meu
bondoso mestre, para usar suas próprias palavras,
“mandou-a embora para cuidar de si mesma”. Ali estava
um homem recém convertido, rezando a Deus e ao mesmo
tempo mandando sua filha embora para morrer de fome! O
senhor Thomas era um entre muitos escravagistas que
tinham escravos para o propósito caridoso de tomar conta
deles.
Eu e meu senhor tínhamos muitas diferenças. Ele me

22 [NT] Lucas, 12:47.

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

achava um escravo impróprio. Minha vida na cidade, dizia


ele, havia tido um efeito pernicioso em mim; quase me
arruinado para qualquer bom propósito, mas me
predispondo para tudo que fosse ruim. Uma de minhas
maiores faltas era deixar seu cavalo fugir para a fazenda de
seu sogro, a oito quilômetros de distância de St. Michael23.
Eu, então, tinha que ir buscá-lo. Minha razão para esse tipo
de descuido, ou de cuidado, era que eu sempre conseguia
alguma coisa para comer quando ia lá. O senhor William
Hamilton, o sogro de meu senhor, sempre dava a seus
escravos o suficiente de comer, e eu nunca saí de lá com
fome, não importava a pressa com que me esperassem. O
senhor Thomas discursava longamente, avisando que não
admitiria mais que isso acontecesse. Eu tinha vivido com
ele por nove meses, tempo em que ele havia me dado uma
série de surras, nenhuma por uma razão justa. Ele havia, em
suas palavras, me escolhido para me domar, e, para este
fim, me emprestou por um ano a um homem chamado
Edward Covey. O Sr. Covey era um homem pobre, que
alugava uma fazenda. Ele pagava pelo lugar em que vivia e
também pela mão-de-obra que o mantinha. Ele tinha uma
grande reputação como domador de jovens escravos, e essa
reputação lhe servia muito, pois vários senhores de
escravos achavam um bom negócio lhe emprestar seus
escravos por um ano para serem treinados, sem qualquer
outro tipo de compensação. Ele também conseguia
contratar mão-de-obra barata por conta de sua reputação,
e, além de suas qualidades naturais, o Sr. Covey era também

23 [NT] 5 milhas, no original.

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Leonardo Poglia Vidal (tradução)

professor de religião – uma alma piedosa – e um membro e


líder de classe na igreja Metodista. Tudo isso aumentava sua
reputação como “domador de negros”. Eu tinha
conhecimento de todos esses fatos através de um jovem
rapaz que tinha vivido lá. Mesmo assim, me mudei
contente, pois sabia que ganharia o suficiente de comer, o
que não é a pior coisa do mundo para um homem faminto.

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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO X

Deixei a casa do senhor Thomas e fui morar com o Sr.


Covey em 1º de janeiro de 1833. Eu era, agora, pela
primeira vez na vida, um escravo de plantação. Em minha
nova ocupação, descobri que era ainda mais desajeitado do
que um garoto do campo que visita pela primeira vez a
cidade grande. Não estava na minha nova casa uma semana
quando levei do Sr. Covey uma boa surra, que cortou
minhas costas, tirou sangue e levantou vergões do tamanho
de meu mindinho em minhas costas. Os detalhes do
ocorrido são os seguintes: o Sr. Covey me mandou buscar
lenha no mato cedo da manhã, em um dos dias mais frios
de janeiro24. Ele me deu uma parelha de bois bravios, e me
disse qual era o da esquerda e o da direita25, amarrou uma

24 [NT] Ou seja, a parte mais fria do inverno no hemisfério norte.


25 [NT] O tocador dos bois vai à esquerda da parelha, ou junta. O boi da
esquerda é chamado de ‘in-hand’, ou ‘near ox’, por estar mais próximo; o da
direita, ‘out-hand’ ou ‘far ox’, por estar mais distante. Os bois estão
acostumados à sua posição e trabalham melhor nela (mas esse não era o
caso, pois os bois não estavam ainda ‘quebrados’, ou acostumados ao
trabalho, como Douglass indica). A parelha em questão, pela descrição
dada, usava um jugo leve, que ligava os dois bois, sendo que a corda que
Douglass levava é chamada de conjunta.

103
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

corda nos chifres do da esquerda e me deu a outra ponta,


dizendo que, se os bois começassem a correr, eu devia
puxar a corda. Nunca havia tocado bois, e claro que ia
muito desajeitado. Mas chegamos à mata sem dificuldades;
porém, logo depois que entramos nela, os bois se
assustaram e começaram a correr, batendo com o carro
contra árvores e troncos caídos da maneira mais
assustadora. A cada momento, eu esperava ser jogado de
cabeça contra o tronco de uma árvore. Depois de correr
por uma distância considerável, eles finalmente viraram o
carro, batendo com ele contra uma árvore, e se
embrenharam na mata. Como escapei de morrer, eu não
sei. Lá estava eu, completamente sozinho na mata cerrada,
em um lugar que não conhecia. O carro estava quebrado e
virado, os bois enredados em meio às árvores novas, e não
havia ninguém para me ajudar. Depois de muito esforço,
consegui levantar o carro, desenredar os bois e amarrá-los
novamente no carro. Então, conduzi a parelha ao local
onde no dia anterior estivera cortando lenha e enchi
bastante o carro, pensando que, desse modo, podia domar
os bois, então me dirigi para casa. Metade do dia já tinha
ido. Saí da mata sem problemas, e sentia que o perigo tinha
passado. Parei a junta para abrir o portão e, assim que o fiz,
antes que tivesse a chance de segurar a conjunta, os bois
recomeçaram a corrida e atravessaram o portão, acertando-
o com a roda e o corpo do carro e fazendo-o em pedaços,
quase me esmagando contra o poste. Assim, duas vezes no
mesmo dia, escapei de morrer por pura sorte. Quando
voltei, contei ao Sr. Covey o que tinha acontecido, e como

104
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

tinha acontecido. Ele me ordenou que voltasse


imediatamente à mata, e me seguiu. Assim que chegamos,
ele veio e me disse para parar o carro, e que iria me ensinar
a perder meu tempo e quebrar portões. Então, foi até um
pé de eucalipto próximo e, com seu machado, cortou três
açoites, que desbastou com seu canivete e ordenou que eu
tirasse minha roupa. Não respondi, mas mantive as roupas.
Ele repetiu seu comando, e eu novamente não respondi
nem me dispus a tirar a roupa, ao que ele veio para mim
com a selvageria de um tigre, arrancou as minhas roupas e
me bateu até ter estragado os açoites, me cortando com
tanta selvageria que as marcas ficaram em mim por um
longo tempo. Essa surra foi a primeira de muitas, por
ofensas similares.
Morei com o Sr. Covey por um ano. Durante os
primeiros seis meses, não se passava uma semana em que
eu não fosse açoitado. Era difícil eu não ter as costas
doloridas, e minha falta de jeito era quase sempre a
desculpa que dava para me bater. Trabalhávamos até não
aguentarmos mais. Bem antes do dia nascer estávamos de
pé, com os cavalos alimentados, e, ao primeiro sinal da luz
do dia, partíamos para o campo com nossas enxadas e
parelhas de arar. O Sr. Covey nos dava comida suficiente,
mas pouco tempo para comê-la – com frequência,
tínhamos menos de cinco minutos para nossas refeições.
Ficávamos no campo da aurora até que o último raio de sol
tivesse partido, e, na época de recolher a forragem, às
vezes, à noite, nos encontrávamos no campo, com as foices
na mão.

105
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Covey saía conosco. O que ele fazia para aguentar nosso


passo era passar a maior parte da tarde na cama, depois sair
à noitinha, refeito, e urgir que continuássemos a trabalhar
com palavras, com seu exemplo e, frequentemente, com o
chicote. O Sr. Covey era um dos poucos feitores de
escravos que podia e fazia trabalho braçal. Era um homem
trabalhador, e sabia por experiência própria o que um
homem ou um garoto conseguiam fazer; não dava para
enganá-lo nesse sentido. O trabalho continuava em sua
ausência tanto como na sua presença, e ele tinha a manha
de nos fazer sentir sua presença até quando não estava
conosco – e isso ele alcançava nos surpreendendo. Era
difícil que ele viesse até onde estávamos trabalhando por
campo aberto se pudesse se espreitar. Sempre buscava nos
pegar de surpresa, e era tão hábil nisso que o chamávamos,
entre nós, de “cobra”. Quando estávamos trabalhando no
milharal, ele era capaz de rastejar sobre as mãos e os
joelhos para evitar ser visto, e, então, levantava no meio de
nós gritando “Ha, há! Vamos lá! Vamos trabalhar!”. Sendo
assaltados desta forma, não era seguro parar por um único
momento; suas visitas eram como as de um ladrão na noite,
parecia sempre estar próximo. Atrás de cada árvore, de
cada toco, em cada arbusto e janela na fazenda. Às vezes,
ele montava em seu cavalo como se fosse ir a St. Michael, a
onze quilômetros de distância, e, depois de meia hora, você
podia vê-lo sentado no moirão da cerca, observando cada
movimento dos escravos. Para fazer isso, ele deixava o
cavalo amarrado na mata. E depois vinha até nós e nos
dava ordens como se fosse encetar uma viagem longa, virar

106
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

as costas para nós e se dirigir à fazenda como se fosse se


aprontar; mas, antes de chegar à metade do caminho, ele
voltava e rastejava novamente para o canto da cerca ou
para trás de uma árvore, e de lá nos espiava até o sol cair.
O ponto forte do Sr. Covey era o seu poder de enganar.
Sua vida era devotada a planejar e perpetrar as fraudes mais
repulsivas. O que ele tinha de conhecimento ou de
preceitos religiosos, ele usava de acordo com essa
disposição para ilusão, e parecia pensar-se capaz de enganar
o próprio Todo-poderoso. Ele entoava uma oração breve
pela manhã e uma longa à noite, e parece estranho, mas
poucas pessoas pareciam tão devotas quanto ele parecia ser
às vezes. Suas cerimônias familiares sempre começavam
com uma canção, e, como ele era um péssimo cantor, a
tarefa de entoar o hino caía sobre mim. Ele lia a letra e
acenava a cabeça para que eu começasse a cantar. Às vezes,
eu começava – e, às vezes, não. Quase sempre, minha
recusa em aquiescer causava confusão. Para mostrar que
não dependia de mim, ele começava a gaguejar o hino da
maneira mais dissonante. Pobre homem! Era tão bem-
sucedido e pronto a enganar que acredito que, às vezes,
enganava a si próprio, de forma a acreditar que era um
adorador devoto e crente no mais alto Deus: e isso numa
época em que se pode dizer que ele compeliu sua escrava a
cometer o pecado do adultério. O que aconteceu nesse caso
foi o seguinte: o Sr. Covey era um homen pobre, recém
começando sua vida, e era capaz de comprar apenas uma
escrava. Então, chocante como possa ser a ideia, ele a
comprou como uma parideira. O nome dessa mulher era

107
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Caroline, e o Sr. Covey a comprou do Sr. Thomas Lowe,


que ficava a cerca de nove quilômetros e meio26 de St.
Michael. Ela era uma mulher grande e atlética, de cerca de
vinte anos. Já havia dado à luz uma criança, o que provava
que ela podia fazer o que ele queria. Depois de comprá-la,
ele contratou um homem casado do Sr. Samuel Harrison
para viver com ele por um ano, e costumava colocar os
dois juntos toda noite! O resultado foi que, no final do ano,
a pobre miserável deu à luz gêmeos. Com isso, o Sr. Covey
pareceu muito satisfeito, tanto com o homem como com a
pobre mulher. Ele e sua mulher ficaram tão contentes que
nada que pudessem e fizessem para Caroline enquanto se
recuperava do parto era difícil ou bom o suficiente. As
crianças foram consideradas uma adição de valor a suas
riquezas.
Se houve um ponto da minha vida em que a escória
amarga da escravidão me foi mais amarga de beber do que
nos demais, foi nos primeiros seis meses da minha estadia
com o Sr. Covey. Trabalhávamos em todos os climas –
nunca estava quente ou frio demais; não podia chover,
soprar vento, nevar ou cair granizo o suficiente para nos
impedir de trabalhar no campo. Trabalho, trabalho,
trabalho, tanto de dia quanto de noite – o dia mais longo
para ele era curto, e a noite mais curta longa. Eu era um
tanto intratável quando cheguei lá, mas alguns meses de sua
disciplina me domaram. O Sr. Covey teve sucesso em me
quebrar – tive tanto meu corpo quanto meu coração e alma
partidos. Minha plasticidade natural foi esmagada, meu

26 [NT] Seis milhas, no original.

108
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

intelecto definhou, a disposição para ler foi-se embora, a


fagulha alegre que brilhava em meus olhos morreu; a noite
negra da escravidão se fechou sobre mim, e, ali, fui um
homem transformado em bicho.
Os domingos eram o único tempo que tinha para o
lazer. Esses, eu passava em um estupor inumano, sem
dormir nem estar desperto, embaixo de alguma árvore
grande. Às vezes, eu levantava, um raio de liberdade e
energia corria pela minha alma, trazendo um pequeno
facho de esperança que brilhava por um momento e, então,
desaparecia. Eu afundava de novo, lamentando minha
condição miserável. Às vezes, fazia planos para tomar
minha própria vida, junto com a de Covey, mas era
impedido por uma mistura de esperança e medo. O que
sofri naquela fazenda hoje parece mais um sonho ruim do
que uma realidade dura.
Nossa casa ficava próxima à baía do Chesapeake, cujo
seio estava sempre cheio de velas de todos os cantos
habitados do mundo. Aquelas naves lindas, vestidas do
branco mais puro, tão agradáveis aos olhos dos homens
livres, eram para mim fantasmas amortalhados, que me
aterrorizavam e atormentavam com a consciência de minha
infeliz situação. Com frequência, na quietude profunda de
um domingo de verão, me quedei sozinho nos bancos
imponentes daquela nobre baía e tracei o incontável
número de velas se distanciando na direção do poderoso
oceano. A visão delas sempre me afetava de um jeito
poderoso. Meus pensamentos exigiam uma voz; e ali, sem
testemunhas senão Deus, eu despejava as queixas de minha

109
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

pobre alma, de meu jeito rude, evocando a multidão de


naves que se moviam na distância:
“Vocês estão soltas dos atracadouros, e são livres. Eu
tenho as correntes apertadas em torno de mim, e sou um
escravo! Vocês se movem alegremente ao vento, e eu
pesaroso diante do chicote! Vocês são os anjos de asas
ligeiras da liberdade, que correm pelo mundo, enquanto eu
estou confinado com elos de ferro! Ah, se eu fosse livre!
Ah, se eu estivesse em um de seus conveses imponentes, e
sob a proteção de suas asas! Mas – ai de mim! Entre nós,
correm as águas revoltas. Vão, vão embora. Quem me dera
ir também! Se eu soubesse nadar! Se eu pudesse voar! Por
que nasci um homem se era pra ser embrutecido? A nave
alegre se foi, se esconde na distância. E eu sou deixado para
trás no inferno quente da escravidão. Deus me ajude! Deus
me salve! Me liberte! Será que existe um Deus? Por que sou
um escravo? Eu vou fugir. Eu não vou aguentar isso. Ser
pego, ou ser livre, eu vou tentar. Tanto faz morrer de febre
como de malária – só tenho uma vida a perder, e prefiro ser
morto correndo do que morrer de pé. É só pensar: cento e
sessenta quilômetros na direção norte, e eu estarei livre!
Será que tento? Claro! Se Deus me ajudar, eu consigo! Não
posso viver e morrer um escravo. Eu vou pela água. Essa
mesma baía ainda vai me carregar para a liberdade. Os
barcos a vapor tomam o rumo nordeste a partir de North
Point. Eu farei o mesmo, e, quando chegar na ponta da
baía, largo a minha canoa e vou na direção norte, direto
através do Delaware, e para a Pensilvânia. Quando chegar
lá, não vão me pedir um passe; eu posso viajar sem

110
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

problemas. Quando vier a primeira oportunidade, eu me


vou. Por enquanto, vou tentar aguentar o jugo. Eu não sou
o único escravo do mundo, por que deveria fraquejar?
Posso suportar tanto quanto qualquer outro. E, além do
mais, sou apenas um garoto, e todos os garotos têm um
senhor. Pode ser que a minha miséria como escravo só
aumente as minhas alegrias, quando eu estiver livre. Um dia
melhor vem surgindo.”
Essas coisas, eu costumava pensar, e falar comigo
mesmo; me aguilhoando por minhas penas até quase
morrer em um momento, e, no instante seguinte, me
reconciliando com meu destino infeliz.
Já comentei que as minhas condições eram muito piores
durante os primeiros seis meses de minha estadia com o Sr.
Covey do que nos seis meses seguintes. As circunstâncias
que levaram à mudança de comportamento do Sr. Cavey
para comigo são um marco na minha humilde história. Já
mostrei como um homem foi feito escravo. Agora, conto
como um escravo se tornou novamente um homem. Em
um dos dias mais quentes de agosto de 1833, Bill Smith,
William Hughes, um escravo chamado Eli e eu estávamos
abanando trigo. Hughes estava recolhendo o trigo abanado
da frente do fole. Eli estava virando o trigo, Smith estava
alimentando o abanador com mais trigo e eu estava levando
trigo até o fole. O serviço era simples, requerendo mais
força do que cabeça e, ainda assim, para alguém que não
estava acostumado, era bem pesado. Por volta das três da
tarde daquele dia desfaleci. Minha força me faltou, e fui
tomado por uma forte dor de cabeça a ponto de me deixar

111
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

tonto, todo meu corpo tremia. Sabendo o que aconteceria,


tentei me recompor, pois sentia que não podia parar de
trabalhar. Trabalhei enquanto pude carregar o grão até o
funil; quando não pude mais ficar de pé, caí no chão, e a
queda me pareceu enorme, como se estivesse em uma
altura tremenda. O fole, claro, parou. Cada um tinha sua
parte da tarefa, e ninguém poderia assumir a tarefa do
outro e continuar com a sua ao mesmo tempo.
O Sr. Covey estava na casa, a quase cem metros27 de
onde estávamos abanando. Ao ouvir o fole parar, ele saiu
imediatamente e veio para onde estávamos, e rapidamente
inquiriu o que estava acontecendo. Bill respondeu que eu
estava mal, e não havia ninguém para trazer o trigo até o
fole. Então, eu estava agachado junto ao moirão da cerca,
esperando encontrar algum alívio saindo do olho do sol.
Ele perguntou por mim, e disseram onde eu estava. Ele
chegou para mim e, depois de me olhar por um tempo,
perguntou o que estava havendo. Eu expliquei como pude,
pois quase não tinha forças para falar. Então, ele me chutou
com força nas costelas, e me mandou levantar. Tentei fazer
o que ele mandava, mas caí de novo. Ele me deu outro
chute, e me mandou levantar de novo. Novamente, tentei
levantar, e, dessa vez, consegui ficar de pé; mas, quando fui
pegar a bacia com que estava alimentando o fole, de novo
eu tropecei e caí. Enquanto estava caído, o Sr. Covey pegou
o sarrafo de nogueira com que Hughes estava recolhendo
as medidas de trigo, e, com ele, me bateu fortemente na
cabeça, cortando fundo, e o sangue correu livre – com isso,

27 [NT] Cem jardas, no original, que dariam cerca de noventa metros.

112
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

me mandou novamente levantar. Não fiz nenhum esforço


para obedecer, pois já tinha me decidido a deixá-lo fazer o
seu pior. Logo depois de levar essa pancada, minha cabeça
melhorou, e o Sr. Covey tinha me deixado em paz. Neste
momento, eu resolvi, pela primeira vez, ir até o meu senhor
fazer uma reclamação e pedir sua proteção. Para fazer isso,
tinha que caminhar onze quilômetros28 naquela tarde, o
que, dentro das circunstâncias, era um empreendimento
difícil. Eu estava fraco demais, tanto pelo mal-estar quanto
pelos chutes e golpes que tinha levado. Entretanto,
aproveitei quando Covey estava olhando para o outro lado
e me dirigi a St. Michael. Consegui cobrir uma distância
considerável no caminho para a mata até Covey me
enxergar; então, ele gritou para que eu voltasse,
enumerando o que ele faria caso eu não o fizesse. Não dei
bola para seus gritos e ameaças, e continuei pela mata tão
rápido quanto meu corpo fragilizado conseguia me levar, e,
imaginando que ele poderia me alcançar se fosse pela
estrada, caminhei pelo mato, distanciado do caminho o
bastante para não ser visto, mas próximo o suficiente para
não me perder. Eu não tinha ido longe quando minhas
forças me faltaram de novo. Eu não conseguia avançar. Caí,
e fiquei assim por um tempo considerável. O sangue ainda
corria do ferimento em minha cabeça, e, por um tempo,
pensei que iria sangrar até morrer – e até hoje acho que
teria morrido se o sangue não tivesse coagulado em meu
cabelo, fechando a ferida. Depois de jazer por cerca de
quarenta e cinco minutos, me levantei novamente e

28 [NT] Sete milhas.

113
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

continuei meu caminho, por banhados e abrolhos, de pés


descalços e sem chapéu, rasgando meus pés com cada
passo. E depois de uma jornada de onze quilômetros, que
me levou cinco horas para empreender, cheguei à loja de
meu senhor. Minha aparência, então, era capaz de afetar
um coração de ferro. Estava coberto de sangue dos pés à
cabeça. Meu cabelo era um coágulo de pó e sangue.
Suponho que parecesse alguém que tinha escapado um
antro de feras selvagens, mal saindo com vida. Neste
estado, eu apareci diante de meu senhor, humildemente
rogando que intercedesse por mim com sua autoridade e
me protegesse. Contei as circunstâncias da melhor maneira
que pude, o que pareceu tocá-lo, às vezes. Ele, então, se
pôs a andar, tentando justificar Covey dizendo que eu
provavelmente tinha merecido. Então, ele me perguntou o
que eu queria que fizesse, a que lhe respondi que me
deixasse ir para um novo lar, pois estava certo de que, se
voltasse a viver com o Sr. Covey, eu acabaria por morrer lá,
e que Covey, com certeza, iria me matar, pois parecia
querer fazê-lo. O senhor Thomas ridicularizou a ideia de
haver qualquer perigo de o Sr. Covey me matar, e disse que
conhecia o Sr. Covey e sabia que era um bom homem, e
nem pensava em me tirar dele – até porque, se o fizesse,
perderia o salário do ano inteiro; eu pertencia ao Sr. Covey
por um ano, e devia voltar para ele custasse o que custasse.
Finalmente, me disse que deixasse de histórias ou ele iria
cuidar de mim. Depois de me ameaçar dessa forma, me deu
uma grande dose de sais e disse que eu iria ficar em St.
Michael naquela noite (uma vez que já era bem tarde), mas

114
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

que deveria retornar para o Sr. Covey cedo pela manhã e, se


não o fizesse, ele iria cuidar de mim, o que significava me
chicotear. Pousei lá naquela noite e, de acordo com suas
ordens, me dirigi à fazenda de Covey pela manhã (era
sábado), com o corpo cansado e o espírito quebrado. Não
jantei naquela noite e nem tive um desjejum pela manhã.
Cheguei à fazenda de Covey pelas nove horas, e, assim que
passei a cerca entre a propriedade da Sra. Kemp e a nossa,
Covey saiu correndo de casa brandindo o chicote, disposto
a me dar outra surra. Antes que me alcançasse, consegui
chegar ao milharal e, como o milho estava bem alto, pude
me esconder a contento. Ele parecia furioso, e procurou
por mim um bom tempo. Meu comportamento era
impensável. Finalmente, ele deixou sua perseguição de lado,
imaginando, suponho, que eu tivesse que voltar para casa
para comer alguma coisa, de forma que ele não precisava se
incomodar em me procurar. Passei o dia inteiro no mato,
pensando em minhas alternativas – ir para casa e ser
açoitado até a morte ou ficar no mato e morrer de fome.
Aquela noite, fiquei com Sandy Jenkins, um escravo que era
meu conhecido. Sandy tinha uma mulher liberta que
morava a seis quilômetros29 do Sr. Covey, e, como era
sábado, ele estava a caminho para visitá-la. Contei a ele o
que tinha acontecido e ele gentilmente me convidou para ir
para casa com ele. Lá conversei sobre o ocorrido e fui
aconselhado sobre qual seria o melhor caminho a tomar.
Sandy era um bom conselheiro. Ele me disse que deveria
voltar para o Sr. Covey, mas que, antes que eu fizesse,

29 [NT] Quatro milhas.

115
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

deveria ir com ele a outra parte da mata onde havia uma


certa raiz que, se a levasse comigo, carregando-a sempre no
meu lado direito, me tornaria impossível de ser chicoteado
pelo o Sr. Covey ou por qualquer homem branco. Ele disse
que carregava a sua por anos e que, desde que tinha
começado, nunca mais havia recebido um único golpe, e
nem esperava receber enquanto a carregasse. A princípio
rejeitei a ideia de que o fato de carregar uma raiz pudesse
ter o efeito que ele descrevia e não me dispus a fazê-lo, mas
Sandy descreveu seu caso com muito zelo, salientando que,
mesmo que não adiantasse, não faria mal algum. Para
agradá-lo, peguei a raiz e pendurei-a no meu lado direito,
como instruído. Isso era domingo de manhã. Me dirigi
imediatamente para casa, e, logo que entrei pelo portão do
pátio, o Sr. Covey veio me receber. Ele falou comigo muito
mansamente, me mandou tocar os porcos de um lote
próximo e se dirigiu à igreja. Essa conduta estranha do Sr.
Covey realmente me fez começar a imaginar se não havia
qualquer coisa com a raiz que Sandy tinha me dado; e, se
aquilo não tivesse acontecido no domingo, não podia ter
atribuído essa conduta a nenhuma outra coisa senão àquela
raiz. Assim, eu fiquei inclinado a pensar se aquela raiz não
era mais do que eu havia pensado a princípio. Tudo correu
bem até segunda de manhã, quando as virtudes da raiz
foram testadas por completo. Bem antes do sol nascer, eu
fui chamado para escovar, esfregar e alimentar os cavalos.
Obedeci com gosto. Mas, enquanto desempenhava minhas
tarefas e tirava alguns fardos de feno do celeiro, o Sr.
Covey entrou no estábulo com uma corda longa nas mãos,

116
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

e, justo quando eu estava junto à escada, me pegou pelas


pernas e tentou me amarrar. Assim que descobri o que ele
pretendia fazer, dei um salto e, como ele estava segurando
minhas pernas, me estatelei no chão do estábulo. O Sr.
Covey pareceu pensar que eu estava à sua mercê, e que
podia fazer o que quisesse, mas nesse instante – de onde
veio essa inspiração, eu não sei – resolvi lutar e, agindo de
acordo com essa resolução, agarrei o Sr. Covey pela
garganta enquanto levantava. Ele estava agarrado em mim,
e eu nele. Minha resistência havia sido tão inesperada que o
Sr. Covey parecia ter sido pego completamente
desprevenido. Ele tremia como uma folha. Isso me
encorajou, e o agarrei fortemente, tirando sangue onde
minhas unhas tocavam. O Sr. Covey logo gritou pedindo
ajuda a Hughes, que veio e, enquanto Covey me segurava,
tentou amarrar minha mão direita. Enquanto ele o fazia, eu
o cuidava e, quando a oportunidade se apresentou, dei-lhe
um chute tão forte nas costelas que ele passou mal. Esse
chute não só enfraqueceu Hughes, mas também Covey:
quando ele viu Hughes se dobrando de dor, sua coragem se
foi. Ele perguntou se eu tinha a intenção de continuar
resistindo, e eu respondi que sim, viesse o que viesse, pois
ele tinha me usado como um animal por seis meses e eu
não tinha nenhuma disposição de continuar a sê-lo. Com
isso, ele tentou me arrastar até um bastão que estava
encostado na porta do estábulo. Sua intenção era me
nocautear com ele, mas, no momento em que ele se
abaixou para pegar o bastão, peguei seu colarinho com
ambas as mãos e o joguei para o chão com um safanão.

117
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Mais ou menos nessa hora Bill chegou, e Covey pediu ajuda


a ele. Bill queria saber o que fazer, e Covey disse: “Agarre
ele, agarre ele!” Bill disse que o seu senhor tinha contratado
ele para trabalhar, e não para ajudá-lo a me açoitar, e deixou
que Covey e eu continuássemos nossa batalha. Ficamos
nisso por quase duas horas. Finalmente, Covey me soltou,
bufando e sem fôlego, dizendo que, se eu não tivesse
resistido, ele não teria me batido tanto. A verdade era que
ele não tinha me batido nem um pouco, e achei que ele
tinha levado o pior em nossa luta, pois não tinha tirado
sangue algum de mim, mas eu o havia feito sangrar. Nos
seis meses seguintes que passei com o Sr. Covey, ele nunca
pôs o dedo em mim com raiva. Ocasionalmente, ele dizia
que não queria me punir de novo. “Não”, eu pensava,
“pois se vier, vai sair ainda pior que da outra vez”.
Essa briga com o Sr. Covey foi o ponto de virada de
minha carreira como escravo. Ela reavivou as brasas
mortiças da liberdade, e fez com que me sentisse
novamente vivo e viril. Me lembrou de minha
autoconfiança e de novo me inspirou a determinação de ser
livre. A recompensa, caso triunfasse, valia qualquer coisa
que pudesse se suceder, até mesmo a morte. Só podem
conhecer a profunda satisfação que senti naquele momento
aqueles que repeliram com a própria força o braço
sangrento da escravidão. Me sentia como nunca havia me
sentido antes – era uma ressurreição gloriosa, da tumba da
escravidão para o paraíso da liberdade. Meu espírito, há
muito esmagado, se ergueu novamente, a minha covardia
partiu, e a coragem desafiadora tomou seu lugar. E, então,

118
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

eu resolvi que, embora pudesse permanecer um escravo na


forma, nunca mais seria um escravo de fato. Não hesitei em
deixar saber aos outros que o homem branco que quisesse
ter sucesso em me açoitar teria também que conseguir me
matar.
A partir deste momento, nunca mais fui açoitado de
verdade, embora tenha permanecido um escravo por
quatro anos ainda. Lutei várias vezes, mas nunca fui
açoitado.
Por um longo tempo, me surpreendeu que o Sr. Covey
não tivesse imediatamente mandado um oficial me levar ao
pelourinho, e lá me açoitado regularmente pelo crime de ter
levantado a mão contra um homem branco em legítima
defesa. A única explicação em que consigo pensar não me
satisfaz de todo, mas, já que é a única, transcrevo aqui. O
Sr. Covey tinha uma grande reputação como um feitor de
escravos e domador de negros. Essa reputação era de uma
importância considerável para ele, e era justamente o que
seria ameaçado caso ele tivesse me mandado – um rapaz de
uns dezesseis anos – para o pelourinho, diante de todos.
Assim, para preservar sua reputação, ele deixou que eu
permanecesse impune.
Meu serviço ao Sr. Edward Covey terminou no natal de
1833. Os dias entre o natal e o ano novo são feriado, e não
nos era dado nenhum trabalho a não ser alimentar e cuidar
do gado e dos demais animais. Esse tempo, entendíamos
como algo que nos era dado graças a nossos senhores, e
usávamos e abusávamos dele com quase total liberdade.
Aqueles de nós que tinham família distante geralmente

119
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

tinham licença de ir passar aqueles seis dias junto dela. O


tempo de lazer, porém, era empregado de diversas
maneiras. Aqueles de nós que eram calmos e sóbrios,
pensadores e engenhosos, passavam o tempo fazendo
vassouras de milho, esteiras, buçaletes de cavalos e cestos;
outros iam caçar gambás, lebres e guaxinins. Mas a maior
parte de nós se dedicava a jogos e brincadeiras, como jogos
de bola, lutas e corridas, a tocar a rabeca, a dançar e a beber
whisky, e esses últimos tipos de dispersão eram os que mais
agradavam aos senhores. Um escravo que trabalhasse
durante o feriado não parecia merecê-lo, de acordo com a
opinião deles, mas era considerado como alguém que rejeita
as graças de seus senhores. Era visto como uma desgraça
não ficar bêbado no natal, e como um preguiçoso aquele
que, durante o ano, não tivesse conseguido os meios para
comprar whisky suficiente para durar o feriado inteiro.
Pelo que eu sei do efeito desses feriados nos escravos,
acredito que são a maneira mais efetiva empregada pelos
escravagistas para conter as ameaças de insurreição. Se eles
abandonassem essa prática, não tenho a menor dúvida de
que uma insurreição imediata dos escravos se seguiria.
Esses feriados servem como condutores ou válvulas de
segurança que continham espírito rebelde da humanidade
escravizada, e, se não fosse por eles, o escravo seria forçado
a se revelar pelo mais intenso desespero, e ai dos
escravagistas, no dia que resolver dispensar esses
condutores! Aviso que, se tentarem fazê-lo, um espírito se
elevará entre os cativos, mais temível que o mais
apavorante terremoto.

120
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Os feriados são parte integrante da fraude vulgar, danosa


e desumanizante, da escravatura. Alegam que é um costume
nascido da benevolência dos escravagistas, mas tenho que
dizer que é o resultado do egoísmo e de uma das fraudes
mais vulgares cometidas contra o escravo oprimido. Não
dão ao escravo esse tempo livre porque não querem que ele
trabalhe, mas porque sabem que seria perigoso privá-lo
dele. Isso pode ser deduzido do fato de que os
escravagistas preferiam ver seus escravos passar o feriado
de uma maneira que ficassem tão contentes em vê-lo acabar
quanto com seu início. Seu objetivo parecia ser o de enojar
os escravos com o prospecto da liberdade ao jogá-los nos
mais profundos estágios de dissipação. Por exemplo, os
feitores não apenas gostam de ver o escravo se embebedar
como também adotam várias estratégias para embebedá-lo
– um desses estratagemas é o de apostar com eles quem
consegue beber mais whisky sem ficar bêbado, e, desse
modo, conseguem fazer uma multidão inteira beber além
da conta. Assim, quando o escravo implora uma liberdade
virtuosa, o astuto feitor, sabendo de sua inocência, lhe dá
uma dose de dissipação e vício a que dá o nome mentiroso
de liberdade. A maioria de nós costumava bebê-la, e o
resultado é o que seria de se esperar: muitos de nós eram
levados a pensar que havia pouca diferença entre a
liberdade e a escravidão. Sentíamos, muito
apropriadamente, que tanto fazia sermos escravos de
outros homens como do rum. De forma que, quando o
feriado acabava, nos levantávamos trôpegos da sujeira em
que chafurdávamos, respirávamos fundo e marchávamos

121
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

para o plantio – nos sentindo, no geral, felizes por sair


daquilo que nosso senhor tinha nos dado como liberdade,
direto para os braços da escravidão.
Comentei que esse tratamento é uma parte de todo o
sistema de fraudes e desumanidade da escravatura. E é isso
mesmo – esse subterfúgio de enojar o escravo com a
liberdade por só lhe permitir ver a liberdade sendo abusada
era empregado também de outras formas. Por exemplo, um
escravo que adora melaço um belo dia rouba um pouco.
Seu senhor, então, na maioria dos casos, vai até à cidade e
compra uma grande quantidade do produto. Ele volta para
casa, pega seu chicote e ordena ao escravo que coma o
melaço até que sinta ânsias só de ouvir falar no produto, e
o mesmo estratagema era usado também para impedir que
os escravos pedissem mais que sua ração regular de comida
– seu senhor fica furioso, mas, não querendo mandar o
escravo embora sem comida, dá mais que o necessário e o
obriga a comer dentro de determinado tempo. Assim, se o
escravo reclama que não consegue comer, dizem que não
fica satisfeito nem com pouco nem com demais, e é
açoitado por ser difícil de agradar! Tenho muitos casos
semelhantes para ilustrar o mesmo princípio, e a todos
observei eu mesmo, mas acho que os casos que já citei são
suficientes. A prática é, afinal, muito comum.
Em primeiro de janeiro de 1834, eu deixei o Sr. Covey
para ir morar com o Sr. William Freeland, que vivia a cerca
de cinco quilômetros de St. Michael. Logo percebi que o Sr.
Freeman era um homem muito diferente do Sr. Covey.
Embora não fosse rico, ele era o que se podia chamar de

122
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

um cavalheiro sulista educado. O Sr. Covey, como ilustrei,


era um domador de negros e feitor de escravos muito bem
treinado, mas esse novo senhor (embora fosse também um
escravagista) parecia possuir algum cuidado com sua honra,
alguma reverência pela justiça e algum respeito pela
humanidade, enquanto que o outro parecia completamente
insensível a todos esses sentimentos. O Sr. Freeland tinha
muitos dos defeitos comuns aos escravagistas, como ser
por demais impetuoso e temível; mas também é justo que
diga que ele não tinha nenhuma mácula dos vícios
degradantes que no Sr. Covey eram contumazes. Um era
franco e aberto, e sempre sabíamos onde encontrá-lo; o
outro era um artista da enganação, e só podia ser
compreendido por aqueles que tinham as manhas de
detectar suas fraudes e artifícios. Outra vantagem que
ganhei com meu novo senhor era que ele não fingia nem
dizia ser religioso; e isso, na minha opinião, era realmente
uma grande vantagem. Eu não hesito em dizer que a
religião, no sul, é apenas uma cortina para cobrir os crimes
mais horrendos, pois justifica as barbáries mais
apavorantes, santifica as mais odiosas mentiras e é um
abrigo escuro no qual os pecados mais negros, sujos,
nojentos e infernais dos escravagistas encontram a proteção
mais segura. Se eu fosse novamente reduzido às correntes
da escravidão, considero que a pior calamidade que poderia
me acontecer seria me tornar novamente escravo de um
senhor religioso, pois dentre todos os escravagistas que
conheci, os religiosos eram os piores - sempre os mais
mesquinhos e baixos, os mais cruéis e covardes de todos.

123
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Fui azarado o bastante para não só ter pertencido a um


senhor religioso, mas por viver em uma comunidade deles.
Próximo ao Sr. Freeland, morava o Reverendo Daniel
Weeden, e, na mesma vizinhança, morava o Reverendo
Rigby Hopkins. Esses eram membros e ministros da Igreja
Reformada Metodista. O Sr. Weeden possuía, entre outros,
uma mulher escrava cujo nome não recordo. As costas
dessa mulher passavam semanas literalmente em pedaços,
esfoladas pelo chicote desse religioso e impiedoso patife. Ele
costumava contratar trabalhadores, e seu lema era: “Se o
escravo se comporta bem ou mal, é o dever de seu senhor
bater nele esporadicamente, para lembrá-lo de sua
autoridade.” Assim pregava, e assim fazia.
O Sr. Hopkins era ainda pior que o Sr. Weeden. Este se
gabava de sua habilidade no trato de escravos. E o principal
elemento de seu governo era o de surrar escravos antes que
o merecessem. Ele sempre conseguia um ou mais escravos
para flagelar todas às segundas pela manhã. Ele fazia isso
para causar medo, e espalhar o terror por aqueles que
escapavam a chibata; seu plano era punir até as menores
ofensas para prevenir ofensas mais graves de serem
cometidas. O Sr. Hopkins conseguia sempre achar uma
desculpa para chicotear um escravo. Seria de estontear uma
pessoa que não estivesse acostumada com a escravidão a
facilidade com que um escravagista consegue encontrar
coisas que servissem de desculpa para surrar um escravo.
Um mero olhar ou movimento – um erro, acidente ou falta
de força, todos são motivos que poderiam levar um escravo
a ser chicoteado a qualquer momento. O escravo que

124
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

parece insatisfeito, diz-se que tem o diabo no corpo, e ele


tem que ser expulso a chibatadas. O escravo que responde
ao senhor? Ele é por demais altivo, e tem que ser abotoado
uma casa mais abaixo. O escravo esquece de tirar o chapéu
quando um branco se aproxima? Lhe falta reverência, e
deve ser chicoteado por isso. Ele ousa justificar seu
comportamento quando lhe censuram? Então, é um sem-
vergonha, um impudente – um dos maiores crimes em que
um escravo pode incorrer. Ele ousa sugerir uma maneira
diferente de fazer alguma coisa que seu mestre ordenou?
Ele é presunçoso e cheio de si, e nada além da surra servirá
para tratá-lo. Ele, ao trabalhar, quebrou um arado ou uma
enxada? É porque é descuidado, e, por isso, um escravo
sempre tem de ser chicoteado. O Sr. Hopkins sempre
conseguia encontrar alguma coisa desse tipo para justificar
o uso do açoite, e era difícil que não aproveitasse cada
oportunidade. Não havia um só homem no condado
inteiro que os escravos não prefeririam ter como mestre a
viverem com este Reverendo Sr. Hopkins. E, ainda assim,
não havia um só homem na vizinhança que professasse ser
mais religioso, fosse mais ativo nas cerimônias, mais
atencioso nas reuniões de classe, recepções, encontros de
orações nem mais devotos na vida familiar, que rezassem
tão cedo, até tão tarde ou durante tanto tempo, do que esse
Reverendo Feitor de Escravos, Rigby Hopkins.
Mas, voltando ao Sr. Freeland e à minha experiência
enquanto empregado em sua fazenda, ele, assim como o Sr.
Covey, nos dava o suficiente para comer; mas, ao contrário
do Sr. Covey, nos dava também tempo para fazer as

125
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

refeições. Trabalhávamos duro, mas sempre entre o nascer


e o pôr do sol. Ele exigia bastante trabalho, mas nos dava
boas ferramentas para empreendê-lo. O tratamento que
recebi enquanto fiquei com ele sempre foi celestial,
comparado com o que vivi nas mãos do Sr. Edward Covey.
O Sr. Freeland era dono de apenas dois escravos. Seus
nomes eram Henry Harris e John Harris. O resto de seus
trabalhadores eram contratados. Estes eram eu próprio,
Sandy Jenkins* e Handy Caldwell.
Henry e John eram inteligentes, e, pouco depois que
cheguei ali, consegui interessá-los em aprender a ler. Esse
desejo logo se espalhou também nos outros. Eles
rapidamente conseguiram velhas cartilhas de alfabetização,
e acabei tendo que concordar em manter uma escola
dominical. Desse modo, passei a dedicar meus domingos a
ensinar meus irmãos escravos a ler; nenhum deles sabia as
letras quando lá cheguei. Alguns dos escravos das fazendas
vizinhas descobriram o que estava acontecendo, e também
tiraram proveito dessa singela oportunidade de aprender a
ler, e todos os que vinham entendiam que era necessário
manter nossas atividades em segredo tanto quanto possível.
Era preciso manter nossos piedosos senhores de St.
Michael ignorantes do fato de que, em vez de passar o
domingo lutando, boxeando e bebendo whisky, estávamos

* [NA] Este Sandy Jenkins era o mesmo homem que me deu a raiz que
supostamente me preveniria de ser surrado pelo Sr. Covey. Ele era um
“sujeito esperto”. Costumávamos, com frequência, falar da luta que travei
com Covey, e sempre que falávamos sobre isso ele atribuiria meu sucesso
como o resultado da raiz que ele tinha me dado. Essa superstição é muito
comum entre os escravos mais ignorantes. É difícil que um escravo morra
sem sua morte ser atribuída a alguma feitiçaria.

126
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

tentando aprender a ler a palavra de Deus, pois eles


prefeririam nos ver entretidos nesses esportes degradantes
do que ver nós nos comportarmos como criaturas
intelectuais, morais e respeitáveis. Meu sangue ferve ao
lembrar a maneira com que os senhores Wright Fairbanks e
Garrison West, ambos cidadãos proeminentes e em contato
com muitos outros, vieram correndo para cima de nós com
bastões para quebrar nossa virtuosa escola dominical em St.
Michael – e se diziam cristãos, humildes seguidores do
Senhor Jesus Cristo! Mas divago, novamente.
Mantinha minha escola dominical na casa de um negro
liberto, cujo nome acho imprudente mencionar – se o caso
fosse conhecido, poderia lhe causar graves embaraços,
apesar de o crime de ter hospedado a escola tenha se dado
dez anos atrás. Cheguei a ter mais de quarenta alunos do
melhor tipo, cheios de vontade de aprender. Eram de todas
as idades, mas principalmente homens e mulheres feitos.
Aqueles foram grandes dias para a minha alma. O trabalho
de instruir meus irmãos era a empresa mais doce com que
já havia sido abençoado. Amávamos uns aos outros, e
deixá-los no fim do domingo era uma verdadeira provação.
Quando penso que aquelas preciosas almas hoje estão
trancadas na prisão da escravidão, meus sentimentos
transbordam e fico pronto a gritar “Será que um Deus
correto governa o universo? E por que ele segura os
trovões em sua mão direita se não é para fulminar o
opressor, e livrar a vítima da mão do malfeitor?” Aquelas
almas queridas não iam à escola dominical porque isso era
popular, e nem eu as ensinava porque era uma ocupação

127
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

respeitável. A cada momento em que estavam na aula,


estavam sujeitos a ser descobertos e levar trinta e nove
chibatadas – eles vinham porque desejavam aprender. Suas
mentes estavam sendo assassinadas por seus senhores
cruéis, eles estavam trancados em uma perpétua escuridão
intelectual. Eu os ensinava porque era um deleite para
minha alma fazer algo que pudesse melhorar a condição de
minha raça. Mantive minha escola dominical durante todo
o ano em que vivi com o Sr. Freeland e, além da escola
dominical, devotei três noites por semana, durante o
inverno, a ensinar os escravos em minha casa. E tenho a
felicidade de saber que vários daqueles que vinham à escola
dominical aprenderam a ler; e que um, ao menos, está livre
por minha intervenção.
O ano se passou sereno. Pareceu durar só a metade do
anterior. Eu o atravessei sem levar um único golpe, e dou
ao Sr. Freeland o crédito de ser o melhor senhor que já
tive, até que me tornei meu próprio senhor, porque a serenidade
com que aquele ano se passou foi, em grande parte, graças
à companhia de meus irmãos escravos. Eles eram almas
nobres, de corações que não só eram amáveis, mas também
cheios de coragem. Éramos ligados e interligados uns aos
outros. Eu os amava com um amor que nunca havia
experimentado antes, e, aos que dizem que os escravos não
se amam ou confiam uns nos outros, respondo que jamais
amei ou confiei em alguém tanto quanto em meus irmãos
escravos, em especial aqueles com quem vivi na fazenda do
Sr. Freeland. Acredito que teríamos morrido uns pelos
outros. Jamais fazíamos nada sem nos consultar

128
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

mutuamente, e não nos separávamos. Éramos um; tanto


por nossos temperamentos e disposições quanto pelas
provações mútuas a que estávamos inevitavelmente
sujeitos, como escravos.
No final do ano de 1834, o Sr. Freeland novamente me
contratou com meu senhor, pelo ano de 1835. Mas, dessa
vez, eu queria viver em terras livres, além de com Freeland30, e
não estava satisfeito, portanto, em viver com ele ou
qualquer outro escravagista. Com o início do ano, comecei
a me preparar para uma última empresa, que iria decidir o
meu destino de um jeito ou de outro. A minha tendência
era subir31. Me aproximava da idade adulta, e, cada ano que
passava, me encontrava ainda escravo. Esses pensamentos
me despertaram – tinha que fazer alguma coisa. Resolvi,
então, que o ano de 1835 não passaria sem que eu tentasse
assegurar minha liberdade, mas não queria guardar para
mim esse intento – meus irmãos escravos me eram
queridos, e estava ansioso para que eles participassem de
minha determinação vivaz. Assim, com a maior prudência,
comecei a tatear por seus pensamentos e ideias, buscando
insuflar em suas mentes a ideia da liberdade. Estava
determinado a desenvolver o plano e os meios de nosso
escape, e, enquanto isso, busquei em todas as ocasiões lhes
mostrar a odiosa fraude e a desumanidade da escravidão.
Primeiro, procurei Henry, depois John, e depois os outros.
30 [NT] Trocadilho intraduzível. O nome ‘Freeland’ é composto de dois
radicais, ‘free’, livre, e ‘land’, terra. Douglass usa o nome do empregador
para sugerir que tinha passado a querer fugir para terras livres da prática da
escravidão.
31 [NT] Alusão ao norte, região dos EUA que assumiu a dianteira no

processo de abolição.

129
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Encontrei, em todos, corações ardentes e espíritos nobres.


Eles estavam ansiosos por me escutar, e preparados para
agir quando um plano factível fosse proposto. Era o que eu
queria. Falei a eles sobre a falta de hombridade que era se
submeter à nossa escravidão sem ao menos buscar a
liberdade. Nos encontrávamos com frequência, e
consultávamos uns aos outros, e contávamos nossos medos
e esperanças, enumerando as dificuldades, reais e
imaginadas, que encontraríamos pelo caminho. Às vezes,
estivemos por desistir e nos resignar a nosso destino infeliz;
em outras, nos firmamos em nossa determinação inflexível
de partir. Sempre que sugeríamos um plano, havia um
recuo – a probabilidade não estava do nosso lado. Nosso
caminho estava cheio de grandes obstáculos, e, mesmo que
conseguíssemos chegar ao final, nosso direito à liberdade
ainda era questionável, pois ainda estávamos sujeitos a
sermos presos. Não havia ponto, neste lado do oceano, em
que pudéssemos gozar de liberdade. Não sabíamos nada a
respeito do Canadá. Nosso conhecimento do norte não se
estendia além de Nova Iorque, e era um pensamento
terrível o de fugir para lá apenas para ficar sempre à mercê
de sermos retornados à condição de escravos – com a
certeza de sermos tratados dez vezes pior do que antes por
conta de nossa fuga. E o caso, às vezes, era outro: em cada
portão em que precisávamos passar, imaginávamos um
soldado; em cada balsa, um guarda, em cada ponte. uma
sentinela, em cada mata, uma patrulha. Éramos cercados
por todos os lados, pensando nas dificuldades, reais ou
imaginárias – o bem que queríamos conquistar e o mal que

130
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

lutávamos para escapar. Em uma mão, a escravidão, uma


realidade dura, nos olhando com olhos terríveis, seus robes
vermelhos com o sangue de milhões, devorando
avidamente nossa própria carne – na outra, perdida na
distância, sob a luz tremeluzente da estrela Polar, atrás de
alguma colina íngreme ou uma montanha coberta de neve,
estava a dúbia liberdade, nos chamando, com as mãos
semicongeladas, para que desfrutássemos de sua
hospitalidade. Só isso, às vezes, já era o bastante para nos
deter, mas, quando tentávamos perscrutar a estrada adiante,
ficávamos com frequência consternados. Em ambos os
lados, estava o cenho da morte, que assumia as formas mais
horrendas. Aqui, era a fome, que nos levava a devorar a
própria carne; ali, lutávamos contra as ondas e acabávamos
afogados; lá, nós éramos alcançados e feitos em pedaços
pelas presas terríveis dos mastins. Éramos picados por
escorpiões, perseguidos por criaturas selvagens, mordidos
de cobras e, finalmente, após quase ter chegado ao ponto
desejado – após atravessar rios a nado, encontrar bestas
selvagens, dormir nas matas, passar fome e desabrigo –
éramos alcançados por nossos perseguidores e, por nossa
resistência, mortos a tiros ali mesmo! Posso dizer que essas
imagens, às vezes, nos aturdiam, e nos faziam pensar que
era

“Preferível suportar os males que sofríamos


Do que partir de encontro a outros, dos quais não

131
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

sabíamos nada.”32

Em nossa determinação de escapar, fomos ainda mais


incisivos do que Patrick Henry, quando este se resolveu
pela liberdade ou morte33. Conosco era na melhor das
hipóteses uma liberdade duvidosa, e quase a morte certa se
falhássemos. De minha parte, preferia a morte à servidão.
Um de nós, Sandy, desistiu da empreitada, mas
continuou a nos encorajar. Nosso grupo, então, era
constituído por Henry Harris, John Harris, Henry Bailey,
Charles Roberts e eu. Henry Bailey era meu tio, e pertencia
a meu senhor. Charles casara com a minha tia, e pertencia
ao sogro de meu senhor, o Sr. William Hamilton.
O plano que acabamos adotando era pegar uma grande
canoa do Sr. Hamilton e, no sábado à noite, anterior aos
feriados de páscoa, remar direto pela baía do Chesapeake.
Quando chegássemos à ponta da baía, entre cento e dez e
cento e trinta quilômetros de onde morávamos34, iríamos
deixar a canoa à deriva e seguir a estrela Polar até que
estivéssemos fora de Maryland. A razão por que
escolhemos ir pela água era porque era mais difícil que
suspeitassem que estávamos fugindo – esperávamos ser

32 [NT] Citação de Shakespeare – Hamlet, ato 3, cena 1, versos 83-84 do


original. Tradução livre.
33 [NT] Patrick Henry (1736-1799) foi um político norte-americano, várias

vezes governador do estado da Virgínia e um dos ‘pais fundadores’ (founding


fathers) da República dos Estados Unidos da América, estabelecida no final
da Revolução Americana, em 1783. Henry ficou conhecido pelo discurso
que é parafraseado por Douglass, Me dê a Liberdade ou me dê a Morte (Give me
Liberty or Give me Death), proferido 60 anos antes da decisão de Douglass e
seus confrades de escapar (1775).
34 [NT] Entre 70 e 80 milhas, portanto entre 112km e 128km.

132
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

tomados por pescadores – além do que, se fôssemos por


terra estaríamos sujeitos a todo tipo de problema. Qualquer
branco que quisesse poderia nos parar e nos submeter a um
exame.
Na semana anterior a nossa partida, escrevi diversas
cartas de proteção, uma para cada um de nós. Pelo que me
lembro, seu conteúdo era o seguinte:

“Através desta, venho certificar que eu, abaixo assinado,


dei ao portador desta missiva, meu servo, total liberdade
para ir a Baltimore e lá passar os feriados de Páscoa.
“Escrito de meu próprio punho, etc., 1835.
“WILLIAM HAMILTON,
“Próximo a St. Michael, no condado de Talbot,
Maryland.”

Nós não íamos a Baltimore, mas, ao subir a baía,


estaríamos indo em direção a Baltimore, e essa proteção
tinha a intenção de nos salvaguardar apenas enquanto
estivéssemos nela.
Quando o dia de nossa partida se aproximou, ficamos
mais e mais ansiosos. Era verdadeiramente um caso de vida
ou morte para nós. A força de nossa determinação logo
seria plenamente testada. Nesses dias, eu estive muito ativo
explicando cada dificuldade, removendo cada dúvida,
dispersando todo medo e inspirando a todos com a firmeza
indispensável ao sucesso em nossa empresa, assegurando-
os de que a metade da jornada era dar o primeiro passo.
Tínhamos discutido o suficiente, e estávamos prontos para

133
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

começar – se não fosse então, não seria nunca, e, se não


pudéssemos nos decidir a nos mexer, era melhor cruzarmos
os braços e aceitar que só servíamos para sermos escravos.
Isso, nenhum de nós conseguia engolir. Todos ficamos
firmes, e, em nossa última reunião, juramos novamente, de
maneira solene, que, na hora combinada, partiríamos em
busca de nossa liberdade. Isso foi no meio da semana em
que iríamos partir. Cada um foi, como de costume, para seu
local de trabalho, mas com os peitos agitados pelo
pensamento das proezas perigosas que teríamos que
desempenhar. Tentamos esconder nossos sentimentos
tanto quando possível, e penso que o fizemos muito bem.
Após uma espera aflitiva, veio a manhã de sábado, sendo
que partiríamos de noite. Fiquei alegre com sua chegada –
pronto para o que quer que trouxesse. Não tinha dormido
na noite de sexta. Eu provavelmente estava mais ansioso
que os outros porque era, por consenso, encabeçando o
grupo. A responsabilidade pelo sucesso ou fracasso pairava
solidamente sobre mim – a glória de um e o tumulto do
outro eram, também, meus. As primeiras duas horas
daquela manhã foram tais que nunca tinha passado nada
semelhante até então, e espero não passar de novo. Cedo
da manhã, costumávamos ir para os campos. Estávamos
espalhando estrume e, de repente, enquanto fazia isso, fui
tomado por um sentimento indescritível, que me levou a
virar para Sandy, que estava do meu lado, e dizer “Fomos
traídos!” “Sim,” disse ele, “acabei de pensar a mesma
coisa.” Não dissemos mais nada. Nunca estive mais certo
de algo.

134
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

A corneta tocou como de costume, e fomos do campo


para a casa para o café da manhã. Eu fui mais pelas
aparências do que por querer comer alguma coisa. Assim
que me aproximei da casa, ao olhar para o portão da
alameda, notei quatro homens brancos, com dois negros.
Os brancos estavam a cavalo, e os negros caminhando atrás
deles, como se estivessem amarrados. Fiquei observando-os
até que chegassem ao portão. Ali pararam, e amarraram os
negros no poste. Eu ainda não estava certo do que estava
se passando. Em alguns instantes, o Sr. Hamilton entrou
com uma rapidez que indicava muito nervosismo. Cavalgou
até a porta e perguntou pelo Sr. William. Quando lhe
disseram que estava no celeiro, o Sr. Hamilton, sem
desmontar, correu rapidamente para o celeiro. Alguns
momentos depois, ele e o Sr. Freeland voltaram à casa.
Então, os três policiais já tinham chegado e desmontado
com bastante pressa, amarrado seus cavalos e encontrado o
Sr. William e o Sr. Hamilton, que voltavam do celeiro;
depois de conversar por um tempo, todos foram até a porta
da cozinha. Não havia ninguém na cozinha a não ser eu e
John. Henry e Sandy estavam no celeiro. O Sr. Freeman
espreitou pela porta e chamou meu nome, dizendo que
havia alguns cavalheiros esperando para falar comigo. Fui
até à porta e perguntei o que queriam, ao que
imediatamente me agarraram e, sem me dar qualquer
satisfação, amarraram minhas mãos uma na outra. Insisti
em saber qual era o problema, e eles me explicaram
longamente que tinham descoberto que eu tinha estado em
alguma “dificuldade” e que seria questionado diante de meu

135
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

senhor; se a informação fosse falsa, eu não seria punido.


Alguns momentos depois, eles conseguiram amarrar
John, ao que se voltaram para Henry, que, então, tinha
voltado, e o mandaram cruzar as mãos. “Eu não!”, disse
Henry, em tom firme, indicando estar preparado para
enfrentar as consequências de sua recusa. “Você não?”,
perguntou Tom Graham, o policial. “Não, não vou!” disse
Henry, ainda mais enfático. Com isso, dois dos policiais
puxaram suas pistolas polidas e juraram pelo Senhor que ou
ele cruzava as mãos, ou eles o matavam. Ambos
engatilharam as pistolas e dedos no gatilho foram até Henry
enquanto diziam que, se ele não cruzasse os braços, eles
iam explodir seu maldito coração a tiros. “Atirem! Atirem!”
gritou Henry; “vocês só vão me matar uma vez. Atirem!
Atirem – malditos sejam! Eu não vou ser amarrado!” Isso ele
falou alto, em desafio, e, ao mesmo tempo, com um
movimento rápido como um raio, com um só golpe
arrancou as pistolas das mãos de ambos os policiais.
Quando ele fez isso, todos caíram em cima dele, e, depois
de bater nele por um tempo, finalmente o renderam e o
amarraram.
Durante a briga, eu consegui, não sei como, pegar o meu
passe e colocá-lo no fogo. Estávamos todos amarrados
então, e, bem na hora em que íamos partir para a cadeia de
Easton, Betty Freeman, a mãe de William Freeman, veio
até a porta com a mão cheia de biscoitos e os dividiu entre
Henry e John. Ela, então, começou um discurso que era
mais ou menos o seguinte: se dirigindo a mim, ela disse
“Seu diabo! Seu diabo covarde! Foi você quem colocou a ideia

136
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

de fugir nas cabeças do Henry e do John. Se não fosse por


você, seu diabo mulato de pernas longas, nem Henry nem
John teriam pensado em fazer uma coisa dessas.” Eu não
respondi nada, e imediatamente fui arrastado na direção de
St. Michael. Logo antes da escaramuça com Henry, o Sr.
Hamilton havia sugerido que seria apropriado fazer uma
busca pelas cartas de proteção que ouvira que o Frederick
tinha escrito para ele próprio e o resto. Mas, no exato
momento em que ele se dispunha a conduzir a busca, sua
ajuda foi necessária para subjugar Henry, e o excitamento
resultante da briga fez com que ou esquecessem da busca
aos documentos, ou julgassem perigoso, dadas as
circunstâncias, empreendê-la. Então, ainda não estávamos
condenados por nossa intenção de fugir.
Quando chegamos na metade do caminho para St.
Michael, enquanto os policiais que nos tinham sob custódia
estavam olhando para a frente, Henry me perguntou o que
deveria fazer com seu passe, e eu disse que o comesse com
o biscoito e não dissesse nada sobre o plano. Ele passou o
recado adiante. “Não digo nada.” E “não digo nada” dissemos
todos. Nossa confiança mútua não havia sido perturbada -
mesmo depois de a calamidade cair sobre nós, tínhamos
resolvido vencer ou falhar juntos. Agora, estávamos
preparados para tudo. Naquela manhã, seríamos arrastados
vinte e cinco quilômetros35 atrás de cavalos, e, então,
jogados na cadeia de Easton. Quando chegamos em St.
Michael, passamos por uma espécie de interrogatório.
Negamos que tivéssemos um plano para fugir, mais para

35 [NT] 15 milhas.

137
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

descobrir quais as evidências que tinham contra nós do que


para tentar evitar sermos vendidos; como já disse,
estávamos prontos para isso. O fato é que não ligávamos
muito para onde iríamos parar, enquanto estivéssemos
juntos. Nossa maior preocupação era nos separarem.
Receávamos isso mais do que qualquer coisa deste lado da
morte. Descobrimos que a evidência contra nós era o
testemunho de uma pessoa, que nosso senhor não iria
nomear, mas a respeito da qual chegamos a uma decisão
unânime – sabíamos quem era o informante. Fomos, então,
mandados à cadeia de Easton. Quando lá chegamos, fomos
entregues ao xerife, o Sr. Joseph Graham, e colocados por
ele atrás das grades. Henry, John e eu ficamos na mesma
cela, e Charles e Henry Bailey em outra. O objetivo deles
era nos separar para evitar que combinássemos nossa
versão.
Não estávamos na cadeia há nem vinte minutos quando
um enxame de mercadores de escravos veio nos ver para
inquirir se estávamos à venda. Seres assim, eu nunca tinha
visto antes! Me senti cercado por demônios de perdição –
um bando de piratas não se pareceria tanto com seu pai, o
diabo. Eles riam e sorriam para nós, dizendo “Ah, meus
rapazes! Agora os pegamos, não é mesmo?” E, depois de
nos provocar de diversas maneiras, eles nos examinaram
um por um, com a intenção de determinar nosso valor.
Eles nos perguntavam descaradamente se não gostaríamos
de tê-los como senhores. Não respondemos, e deixamos
que decidissem eles mesmos a resposta – então, eles nos
amaldiçoaram e praguejaram contra nós, dizendo que

138
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

sabiam como tirar o diabo de nós em um instante se


fôssemos parar em suas mãos.
Enquanto estávamos na cadeia, ficamos muito mais
confortáveis do que esperávamos. Não tínhamos muito de
comer, e o que tínhamos não era muito bom, mas a cela era
limpa e boa, e podíamos olhar a rua pela janela, tudo muito
melhor do que se tivéssemos sido postos em uma das celas
escuras e mofadas. No todo, nos demos muito bem, até
onde iam os aposentos e os carcereiros. Logo após o
feriado acabar, contrariando nossas expectativas, o Sr.
Hamilton e o Sr. Freeland vieram até Easton e tiraram
Charlie, os dois Henrys e John da cadeia, e os levaram para
casa, ficando eu sozinho. Eu encarei essa separação como
definitiva, e isso me doeu mais do que qualquer outra coisa
no episódio inteiro. Imaginei que eles tinham conversado e
decidido que eu era a razão de os outros quererem fugir;
como o inocente não deve sofrer junto com o culpado,
resolveram levar os outros para casa e me vender como um
aviso para os que tinham ficado. Tenho que dizer da
nobreza do Henry que ele parecia tão hesitante em deixar a
prisão quanto ficou ao deixar a casa para ir pra prisão, mas
sabíamos que iam nos separar de qualquer maneira caso
fôssemos vendidos e, como ele estava em suas mãos,
resolveu ir pacificamente para casa.
Eu havia sido deixado à minha própria sorte atrás dos
muros de pedra da prisão. Poucos dias antes, eu estava
cheio de esperança, queria estar a salvo em uma terra de
liberdade; agora estava coberto de tristeza, afundado no
mais completo desespero. Pensei que a possibilidade de ser

139
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

livre se tinha ido para sempre. Fui mantido dessa maneira


cerca de uma semana, ao fim da qual o capitão Auld, meu
senhor, para minha surpresa e completa estupefação, veio
me libertar, com a intenção de me mandar, com um
cavalheiro seu conhecido, para o Alabama. Mas, por uma
razão ou outra, ele acabou não me mandando para o
Alabama, mas resolveu me mandar a Baltimore, para morar
novamente com seu irmão Hugh e aprender um ofício.
Assim, após uma ausência de três anos e um mês, eu
tinha a permissão de retornar à minha antiga casa em
Baltimore. Meu senhor me mandou embora porque por lá
existia um grande preconceito contra mim na comunidade,
e ele temia que eu fosse morto.
Poucas semanas depois de chegar à Baltimore, o senhor
Hugh me empregou com o Sr. William Gardner, um grande
construtor de navios em Fell’s Point. Fui mandado para lá
para aprender a entalhar, mas o lugar não se mostrou
adequado para este objetivo. O Sr. Gardner estava
entretido naquela primavera com a construção de dois
navios de guerra, supostamente para o governo mexicano.
Essas naves tinham que ser lançadas em julho daquele ano,
e, se perdesse o prazo, o Sr. Gardner perderia muito
dinheiro. Assim, quando entrei lá, a pressa era tudo. Não
havia tempo para aprender nada – cada homem fazia o que
ele sabia fazer. Quando entrei no estaleiro, o Sr. Gardner
me mandou fazer o que os carpinteiros me mandassem, o
que na prática significava que tinha que obedecer e auxiliar
setenta e cinco homens. Sua palavra era a minha lei. Minha
situação era muito difícil, às vezes, precisava de doze pares

140
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

de mãos, pois era chamado para doze coisas em um único


minuto. Três ou quatro vozes me chamavam ao mesmo
tempo. Era – “Fred, venha me ajudar a recortar esta
tábua.” – “Fred, leve esta madeira para lá.” – “Fred, me
ajude a serrar a ponta desta prancha.” – “Fred, traga aqui
aquela roldana.” – “Fred, traga uma lata de água.” – “Fred,
rápido, me traga o pé-de-cabra.” – “Fred, segure a ponta
desta ripa.” – Fred, vá até o serralheiro e me traga outra
furadeira.” – “Ei, Fred, corra para cá e me traga uma nova
entalhadeira.” – “Fred, meu rapaz, me ajude aqui e faça um
fogo embaixo desta caldeira.” – “Ê, negro! Venha virar essa
mó.” – “Venha cá! Aqui! Rápido! E dobre esta ripa para
diante!” – “Alô! Alô! Alô!” (Três vozes ao mesmo tempo.)
“Venha cá!” – “Vá pra lá!” – “Fique onde está! Desgraçado,
se você se mexer eu estouro seus miolos!”
Essa foi a minha escola por seis meses, e eu teria ficado
lá mais tempo se não fosse por uma briga terrível que tive
com quatro dos aprendizes brancos, em que quase
arrancaram meu olho esquerdo e fiquei bastante
machucado em diversos outros pontos. O que aconteceu
foi o seguinte: até pouco depois que cheguei lá, os
carpinteiros brancos e negros trabalhavam lado a lado, e
ninguém parecia achar isso impróprio, todos estavam
satisfeitos. Muitos dos carpinteiros negros eram libertos. As
coisas pareciam estar indo muito bem, mas de repente os
carpinteiros brancos bateram o pé e se recusaram a
trabalhar com negros libertos. Sua razão para tanto era que
se os carpinteiros negros libertos fossem encorajados,
acabariam por dominar o mercado, e os homens brancos

141
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

pobres acabariam desempregados. Assim, se


movimentaram de imediato a fim de colocar um basta
naquela situação – e, se aproveitando da necessidade do Sr.
Gardner, saíram, jurando que não iriam mais trabalhar se o
Sr. Garner não demitisse seus carpinteiros negros. Embora
isso teoricamente não me atingisse, na prática me atingiu
muito. Meus colegas aprendizes logo começaram a achar
que era degradante também para eles trabalhar comigo.
Começaram a assumir ares, e a falar dos “negros” tomando
conta do país, que devíamos todos ser mortos; encorajados
pelos outros, começaram a fazer a minha vida tão difícil
quanto podiam, me intimidando e, às vezes, até me
batendo. Eu, obviamente, mantive a promessa que havia
feito depois da luta com o Sr. Covey e respondi na mesma
moeda, não me importando com as consequências. E,
enquanto não se combinaram, pude enfrentá-los muito
bem, pois podia acabar com todos eles, um por um. Eles,
entretanto, se combinaram para me atacar, e vieram para
mim armados com pedaços de pau, pedras e alavancas
pesadas. Um veio pela frente com meio tijolo. Havia um de
cada lado, e um atrás de mim. Enquanto eu me ocupava
dos que estavam em minha frente e nos lados, o de trás me
acertou fortemente na cabeça com a alavanca, me deixando
tonto. Eu caí, e eles vieram por cima, me batendo com os
punhos. Deixei que me batessem por um tempo, enquanto
minhas forças voltavam, e, em um instante, levantei de
repente nos joelhos e mãos. Assim que o fiz, um deles me
acertou um chute no meu olho esquerdo com a bota
pesada. Meu olho parecia ter estourado. Quando viram que

142
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

estava com o olho fechado e muito inchado, me deixaram.


Então, peguei a alavanca e, por um tempo, os persegui, mas
os carpinteiros interviram, e vi que era melhor desistir. Era
impossível resistir contra tantos. Tudo isso aconteceu às
vistas de não menos que cinquenta carpinteiros brancos, e
nenhum deles interpôs sequer uma palavra amistosa, mas
alguns gritavam: “Matem esse negro maldito! Matem ele!
Matem ele! Ele bateu em um branco!” Percebi que minha
única chance de sobreviver era fugindo, e consegui sair de
lá sem levar mais nenhum golpe, mas foi por pouco,
porque bater em um homem branco significava a morte
por linchamento, no tipo de lei que valia no estaleiro do Sr.
Gardner, bem como, deve-se dizer, em qualquer outro
lugar não pertencente ao Sr. Gardner.
Fui direto para casa e contei a história para o senhor
Hugh; e fico feliz em dizer que, embora não fosse um
homem de religião, sua conduta foi celestial se comparada à
do seu irmão, Thomas, em circunstâncias semelhantes. Ele
ouviu com atenção a minha narrativa das circunstâncias que
tinham levado ao episódio selvagem, e pareceu ficar
bastante indignado. O coração de minha senhora, que já
havia sido bondoso demais, derreteu novamente com a
pena. Meu olho inchado e rosto coberto de sangue a
levaram às lágrimas. Sentou em uma cadeira junto a mim,
lavou o sangue de meu rosto e, com uma ternura de mãe,
enfaixou minha cabeça, cobrindo meu olho com um
pedaço de carne fresca. Era quase uma compensação justa,
por meu sofrimento, ter testemunhado, uma vez mais, uma
manifestação de bondade de minha senhora, que outrora

143
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

era tão afetuosa. O senhor Hugh ficou furioso, lançando


maldições sobre aqueles que haviam participado daquele
feito. Assim que fiquei melhor de minhas escoriações, ele
me levou com ele até escritório de advocacia do Sr.
Watson, na rua Bond, para ver o que poderia ser feito a
respeito. O Sr. Watson perguntou se alguém tinha visto o
assalto, ao que o Sr. Hughes respondeu que tinha
acontecido no estaleiro do Sr. Gardner de meio-dia, e havia
um número grande de homens trabalhando. “Assim”, disse,
“foi que aconteceu, e não há nenhum mistério sobre quem
foram os culpados.” O Sr. Watson respondeu que não
podia fazer nada a menos que um homem branco se
apresentasse para testemunhar. Minha palavra não valia um
mandato. Se eu tivesse sido morto na presença de mil
pessoas negras, seu testemunho, combinado, não era o
suficiente para prender um dos assassinos. O Sr. Hugh,
pela primeira vez, foi compelido a dizer que era uma pena
que as coisas fossem assim. Obviamente, era impossível
conseguir que um homem branco se voluntariasse para
testemunhar a meu favor contra os jovens brancos. Mesmo
aqueles que simpatizavam comigo não estavam preparados
para fazê-lo; aquilo requeria um montante de coragem
desconhecido para eles, pois, justo naquela época, a menor
manifestação de humanidade para com uma pessoa de cor
era denunciada como abolicionismo, e quem fosse tido
como abolicionista estava sujeito a sanções temíveis. Os
lemas dos fanfarrões daquela região, naqueles dias, eram
“Malditos sejam os abolicionistas!” e “Malditos sejam os
negros!” Nada foi feito, e provavelmente nada teria sido

144
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

feito se eu tivesse sido morto. Assim eram, e assim


continuam, as coisas na cidade cristã de Baltimore.
O senhor Hugh, descobrindo que não podia pedir
reparação, se recusou a me deixar voltar para o Sr. Gardner.
Ele me manteve em sua companhia, e sua esposa cuidou de
meus ferimentos até que estivesse saudável de novo. Então,
ele me levou para o estaleiro em que ele era capataz,
empregado pelo Sr. Walter Price. Lá, imediatamente
comecei a trabalhar com o recorte de madeira, e
rapidamente aprendi a arte de usar minha marreta e
talhadeiras. Um ano depois de ter deixado o Sr. Gardner, já
ganhava o ordenado mais alto, correspondente aos ganhos
dos entalhadores mais experientes. Agora, era de alguma
importância para meu senhor, pois estava trazendo entre
seis e sete dólares para ele, por semana: meu ordenado era
um dólar e meio por dia. Depois de aprender a entalhar,
busquei meu próprio emprego, fiz meus próprios contratos
e recolhi o dinheiro que ganhava. Meu caminho se tornou
muito menos acidentado do que antes; e minha condição
era muito mais confortável. Quando não conseguia
emprego entalhando, não fazia nada. Durante esses tempos
de folga, as antigas noções de liberdade desciam novamente
sobre mim. Enquanto estive empregado com o Sr.
Gardner, não conseguia pensar em nada, a não ser em
minha vida, e, ao pensar apenas em minha vida, quase
esqueci minha liberdade. Já percebi isso em minha trajetória
como escravo – que sempre que minhas condições
melhoravam, em vez de ficar contente, aumentava meu
desejo por liberdade, e começava a pensar em meios de

145
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

ganhá-la. Descobri que, para fazer um escravo contente, é


preciso fazer um escravo estúpido. É necessário escurecer
sua visão moral e mental, e, até onde possível, aniquilar o
poder da razão. Ele não deve ser capaz de enxergar
nenhuma inconsistência na escravidão, ele precisa achar
que a escravidão é correta, e isso só acontece quando deixa
de ser um homem.
Eu estava ganhando, então, como disse, um dólar e meio
por dia. Eu era empregado, e ganhava o montante, que era
pago a mim, por direito meu. Então, ao chegar em casa
todo sábado de noite, era obrigado a entregar cada centavo
daquele dinheiro para o Sr. Hugh. Por quê? Não porque ele
tivesse ganho o dinheiro, não porque ele o merecesse, não
porque eu devesse a ele, não porque ele tivesse qualquer
sombra de direito. Era simplesmente porque ele tinha o
poder de me obrigar a dar-lhe meus ganhos. O mesmo
direito que tem o pirata de saquear os mares.

146
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

CAPÍTULO XI

Cheguei agora na parte da minha vida em que planejei e


finalmente consegui escapar da escravidão. Mas, antes de
narrar qualquer das circunstâncias peculiares em que isso se
deu, tenho que adiantar que não vou contar todos os fatos
relacionados ao ocorrido. Minhas razões podem ser
entendidas pelo seguinte: primeiro, se eu relatasse
detalhadamente todos os fatos, não seria só possível, mas
também provável, que outros fossem envolvidos em
dificuldades embaraçosas. Segundo, um relato detalhado
provavelmente levaria os escravagistas a vigiar com maior
afinco do que antes, o que teria o efeito de fechar uma
porta por onde um irmão escravo poderia escapar suas
correntes. Lamento muito a necessidade que me compele a
suprimir qualquer detalhe importante ligado à minha
experiência como escravo; seria um grande prazer para
mim, além de aumentar o valor deste meu relato, se
pudesse atender a curiosidade que sei que existe nas mentes
de muitos com um relato apurado de tudo o que está
relacionado a minha fuga, mas tenho que privar a mim e
aos curiosos deste prazer. Prefiro sofrer as piores calúnias

147
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

das mentes malignas do que me explicar e, assim, assumir o


risco de fechar um caminho que um outro escravo poderia
seguir para se livrar das amarras da escravidão.
Nunca pude aprovar a maneira notória com que alguns
de nossos amigos ocidentais conduzem o que chamam de
estrada de ferro do submundo, porque acho que, pelas
declarações que fazem, a tornaram uma estrada de ferro
conhecida e notória36. Eu honro os bons homens e mulheres
por sua nobre ousadia, e os aplaudo por se submeterem à
perseguição sangrenta ao assumir abertamente sua
participação na libertação de escravos. Entretanto, não vejo
nada de bom saindo desse tipo de declaração, tanto para
eles quanto para os escravos que escapam, enquanto tenho
certeza de que esses depoimentos são maldosos para com
os escravos que, ainda sob o jugo, buscam escapar. Não
ajudam em nada o escravo, mas elucidam os senhores e os
estimulam a maior vigilância, aumentando seu poder de
capturar os escravos. Devemos cuidar do escravo ao sul da
fronteira também, não só dos que já chegaram ao norte, e,
se nos esforçamos por libertar esses últimos, temos que ter
o cuidado de não fazer nada que possa ajudar a impedir os
outros de escapar. Eu preferiria manter os escravagistas na
total e completa ignorância dos meios de escape dos
escravos. Prefiro que eles se imaginem cercados de miríades
de sombras invisíveis, prontas a arrancar a presa que têm
cativa em suas garras infernais. Deixem que tateiem seu

36 [NT] No original, ‘estrada de ferro do submundo’ (underground railroad) e


‘estrada de ferro sobre o mundo’ (upper-ground railroad), mas o sentido e a
leitura são melhores preservados se ignorarmos a sutileza do jogo de
palavras, que, de resto, cai mal na tradução.

148
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

caminho no escuro, e deixem que essa escuridão caia sobre


eles de forma proporcional à gravidade de seus crimes; e a
cada passo que deem perseguindo o escravo que escapa, se
arrisquem a ter os miolos estourados por um agente
invisível. Não ajudemos os tiranos, não vamos segurar a
lanterna para ele descobrir as pegadas de nossos irmãos
fugitivos. Mas chega disso. Melhor eu continuar a contar os
fatos relacionados à minha fuga, pela qual sou plenamente
responsável e pela qual ninguém, a não ser eu, possa vir a
pagar.
No começo do ano de 1838, fiquei muito inquieto. Não
conseguia ver nenhuma razão por que devesse, no final de
cada semana, derramar o fruto do meu trabalho no bolso
de meu senhor. Quando levava meu salário para ele, após
contar o dinheiro, me olhava com a intensidade de um
ladrão e perguntava: “É só isso?” Ele não se satisfazia com
nada menos que o último centavo. Mas, às vezes, quando
eu fazia seis dólares, ele me dava seis centavos, para me
encorajar. Esse expediente tinha o efeito oposto – me
parecia uma confissão de meu direito à totalidade da soma.
O fato de ele me dar uma parte de meus ganhos era, para
mim, prova de que ele acreditava que eu tinha direito a
tudo. Eu sempre me sentia pior quando recebia alguma
coisa, pois temia que esses poucos centavos bastassem para
aliviar a consciência dele e o fizessem se sentir como um
tipo muito honrado de ladrão. O descontentamento
cresceu dentro de mim. Estava sempre buscando um jeito
de escapar, e, não achando nada direto, busquei empregar
meu tempo em conseguir dinheiro que me ajudasse em

149
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

minha fuga. Na primavera de 1838, quando o senhor


Thomas veio a Baltimore para fazer suas compras de
primavera, tive uma oportunidade, e pedi sua permissão
para me empregar em meu tempo livre. Sem a mínima
hesitação, ele recusou o meu pedido, e me disse que era
outro estratagema para eu escapar. Disse que eu não
chegaria a lugar algum em que ele não conseguisse me
alcançar, e que, caso eu fugisse, ele não pouparia esforços
para me recapturar. Me disse que eu ficasse contente com o
que tinha, e fosse obediente. E, segundo ele, para ser feliz,
eu tinha que deixar de fazer planos para o futuro, e que, se
eu me comportasse apropriadamente, ele tomaria conta de
mim. ]Na verdade, ele me aconselhou que esquecesse de
qualquer perspectiva de um futuro para depender apenas
dele para minha felicidade. Ele parecia ver a necessidade
premente de me privar de minha natureza intelectual para
que eu me contentasse com a escravidão, mas, a despeito
dele, e apesar de mim mesmo, continuei a pensar e pensar
na injustiça de minha situação e nas formas de minha fuga.
Cerca de dois meses depois do acontecido, pedi ao Sr.
Hugh o privilégio de empregar o meu tempo. Ele não sabia
que já tinha pedido ao senhor Thomas, e que esse privilégio
me tinha sido recusado. Ele também, a princípio, pareceu
disposto a recusar; mas, depois de refletir por um tempo,
ele me deu o privilégio, de acordo com os seguintes termos:
eu podia trabalhar como quisesse, negociar meus contratos
e, em troca dessa liberdade, dar a ele três dólares ao fim de
cada semana e pagar por minhas próprias roupas, comida e
ferramentas. Minha comida custava dois dólares e meio por

150
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

semana. Somado ao gasto com as roupas e as ferramentas


de entalhar, minhas despesas seriam de cerca de seis dólares
por semana. Essa quantia, eu era obrigado a fazer ou
desistir do privilégio de me empregar; chuva ou sol, com ou
sem trabalho, no final de cada semana, essa soma tinha que
estar em mãos ou meu privilégio seria cancelado. Esse
arranjo, percebe-se, era completamente a favor de meu
senhor, pois o aliviava de qualquer obrigação que tivesse
com meus cuidados e garantia seu dinheiro. Ele dispunha
de todas as vantagens da escravidão sem seus males,
enquanto eu continuava a sofrer todos os males de ser um
escravo, mas com as ansiedades e deveres de um homem
livre. Achei um negócio duro, mas, fosse como fosse, era
melhor do que continuar do jeito antigo. Era um passo
para a liberdade, poder suportar as responsabilidades de um
homem livre, e eu estava determinado a dá-lo. Me dobrei
para fazer dinheiro. Estava pronto a trabalhar tanto de dia
como de noite, com a mais incansável perseverança e
engenhosidade. Fazia o suficiente para as minhas despesas
e conseguia guardar um pouco de dinheiro toda semana.
Foi assim de maio até agosto, quando o senhor Hugh se
recusou a me permitir que continuasse empregando meu
tempo. Isso foi devido à minha falha em realizar meu
pagamento semanal num sábado à noite. Essa falha
aconteceu porque eu tinha ido a uma reunião no campo, a
dezesseis quilômetros de Baltimore. Durante a semana,
havia combinado com alguns jovens amigos de ir para o
campo cedo na tarde de sábado; e, como fui detido por
meu patrão, não me foi possível passar no senhor Hugh

151
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

para lhe dar o dinheiro sem deixar meus companheiros na


mão. Eu sabia que o senhor Hugh não tinha nenhuma
necessidade premente de receber o dinheiro naquela noite,
então decidi ir para o encontro e, na volta, pagar os três
dólares a ele. Fiquei no encontro um dia a mais do que
pensei ficar quando parti, mas, assim que voltei, fui pagar o
que pensava lhe dever. Ele estava muito brabo, quase não
conseguia se conter. Ele disse que estava pensando em me
açoitar severamente, e queria saber como eu tinha ousado
sair da cidade sem lhe pedir permissão. Eu lhe respondi que
estava empregando meu tempo e que, enquanto lhe pagasse
o que tinha pedido, não achava que tivesse que pedir
permissão para pedir para ir aos lugares. Essa resposta o
perturbou, e, depois de alguns momentos de reflexão, ele se
voltou para mim e disse que eu não podia mais empregar
meu trabalho, pois a próxima coisa que eu ia fazer era fugir.
Me disse que levasse minhas ferramentas e roupas
novamente para sua casa, o que fiz; aquela semana, ao invés
de procurar trabalho, passei inteira sem dar um único golpe
com a talhadeira. Fiz isso em retaliação. No sábado, ele me
chamou, como de costume, para entregar meus ganhos, e
contei que não tinha ganhos, pois não tinha trabalhado
aquela semana. Neste momento, ficamos próximos de
trocar socos; ele rugia e ameaçava me agarrar. Eu não
deixei escapar uma única palavra, mas estava determinado a
reagir soco por soco se ele resolvesse deitar a mão em mim.
Ele não me bateu, mas me disse que eu tinha que estar
constantemente empregado no futuro. Pensei no assunto
durante o domingo e finalmente me decidi a tentar ganhar

152
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

novamente a liberdade no terceiro dia de setembro. Eu


tinha três semanas para me preparar para a jornada.
Segunda de manhã, antes que o senhor Hugh tivesse tempo
para arrumar qualquer ocupação para mim, saí e consegui
emprego com o senhor Butler, em seu estaleiro próximo à
ponte levadiça, junto do chamado City Block, de forma que
não foi preciso ele conseguir emprego para mim. No fim da
semana, entreguei entre oito e nove dólares. Ele pareceu
muito contente, e perguntou por que não tinha feito o
mesmo na semana anterior, nem suspeitando de meus
planos. Meu objetivo ao trabalhar regularmente era
remover todas as suspeitas que ele pudesse ter de minha
intenção de fugir, e nisso meu plano funcionou
admiravelmente bem. Suponho que ele pensasse que eu
nunca estivera tão satisfeito com a minha condição quanto
nos dias em que planejava minha fuga. A segunda semana
se passou, e novamente levei para ele tudo o que tinha
ganho. Ele ficou tão feliz que me deu vinte e três centavos
(soma alta para um escravagista dar a um escravo), e me
disse que fizesse bom uso do dinheiro. Prometi que o faria.
As coisas estavam indo mesmo muito bem, mas havia
problemas pela frente. É impossível descrever os
sentimentos que cresceram em mim quando se aproximou
o tempo da minha partida. Tinha alguns bons amigos em
Baltimore, que prezava quase tanto quanto a própria vida, e
o pensamento de deixá-los para sempre me causava uma
dor inexprimível. Penso que milhares de escravos já teriam
escapado se não fosse pelos fortes laços de ternura que os
unem aos amigos. A ideia de deixar meus companheiros era

153
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

a pior coisa com que tive que lidar – seu carinho era meu
ponto fraco, e foi o que mais me fez hesitar em minha
decisão. Além da dor da separação, o medo e a apreensão
por uma possível falha eram muito maiores do que em
minha primeira tentativa. A minha derrota anterior voltou
para me atormentar. Tinha certeza que, se falhasse dessa
vez, selaria meu destino – não tinha a menor esperança de
evitar os piores tipos de punição, nem de ser colocado em
um lugar de onde a fuga fosse impossível. Nem precisava
de muita imaginação para enxergar as tribulações horríveis
que me esperavam se eu falhasse. A desgraça da escravidão
e a bênção da liberdade pairavam sempre diante de mim –
era vida ou morte. Mas permaneci firme e, conforme tinha
planejado, a três de setembro de 1838, escapei de meu jugo
e consegui chegar à Nova Iorque sem uma única
interrupção. Como o fiz, que meios adotei, em que direção
viajei e por que tipo de transporte, não posso mencionar
pelas razões que expliquei acima.
Com frequência, me perguntam como me senti quando
cheguei em um Estado livre. Nunca fui capaz de responder
essa pergunta de uma maneira que me satisfizesse. Foi um
dos momentos mais eufóricos que já experimentei;
suponho que me senti como um marinheiro desarmado,
que é salvo de piratas por um navio de guerra. Quando
escrevi a um querido amigo, imediatamente assim que
cheguei à Nova Iorque, disse que me sentia como alguém
que tivesse escapado de uma toca de leões famintos. Mas
esse estado de espírito rapidamente se dissipou, e fui
tomado novamente por uma grande insegurança e solidão.

154
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Ainda podia ser levado de volta, e sujeito a todas as torturas


da escravidão; só isso já era suficiente para resfriar meu
entusiasmo, mas a solidão também me atingiu. Lá estava
eu, em meio a milhares de outras pessoas, e, ainda assim,
um completo estranho, sem lar nem amigos junto a meu
povo – filhos de um mesmo Pai, e, ainda assim, não me
animava a revelar a ninguém minha triste condição. Tinha
medo de falar com qualquer um, porque podia ser a pessoa
errada e cair novamente nas mãos dos sequestradores
ansiosos por dinheiro, que faziam o serviço de ficar à
espreita do fugitivo ansioso, como as bestas da floresta
espreitam suas presas. O lema que adotei quando escapei
da escravidão era: “Não confie em ninguém!” Via em cada
homem branco um inimigo, e, em quase todos os negros,
um motivo para a desconfiança. Era uma situação aflitiva,
e, para compreender a que me refiro, é necessário ter
experimentado isso pessoalmente, ou pelo menos é
necessária a capacidade de se imaginar em circunstâncias
semelhantes. É preciso ser um escravo fugitivo em uma
terra estranha – uma terra que os escravagistas usam como
campo de caça – habitada por sequestradores legalizados –
onde se está a cada momento sujeito a ser capturado por
seus compatriotas, da mesma forma com que um crocodilo
captura sua presa! É preciso, digo, se colocar em meu lugar
– sem casa ou amigos – sem dinheiro ou crédito – sem
abrigo nem ninguém a quem recorrer – sem pão nem
dinheiro para comprá-lo – e, ao mesmo tempo, sentindo
que se é presa de caçadores impiedosos, sem saber o que
fazer, aonde ir ou onde ficar, perfeitamente incapaz de se

155
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

defender e sem ter como escapar; em meio a uma multidão,


mas passando fome; com muitas casas à volta, mas sem ter
um lar. Em torno de seres humanos, mas se sentindo em
meio a animais selvagens, cuja gana por engolir o pobre,
esfomeado e tremulante fugitivo só é igualada pela gana
com que os monstros das profundezas engolem os peixes
indefesos que são o seu sustento. É preciso se colocar nesta
situação penosa, em que eu me encontrava, e só então
alguém pode simpatizar e mesmo apreciar as privações por
que passa o escravo fugitivo, gasto pelo trabalho e marcado
pelo chicote.
Graças aos céus, fiquei pouco tempo nessa situação
angustiante. Fui socorrido pelas mãos humanas do Sr.
David Ruggles, cuja vigilância, bondade e perseverança jamais
vou esquecer enquanto viver, e agradeço por ter uma
oportunidade de expressar, até onde vão as palavras, o
amor e a gratidão que tenho por ele. O Sr. Ruggles, hoje,
está cego, e necessita da mesma ajuda que dava tão
prontamente a oferecer aos outros. Estava há poucos dias
em Nova Iorque quando o Sr. Ruggles me encontrou e
gentilmente me levou à sua pensão, na esquina das ruas
Church e Lespenard. Ele era, então, muito ativo, dedicado
ao memorável caso Darg37 e a ajudar vários outros escravos

37 [NT] Ruggles já era um abolicionista conhecido quando o Sr. John P.


Darg, um escravagista, chegou à Nova Iorque, em 25 de agosto de 1838,
com seu escravo, Thomas Hughes. As negociações das implicações legais
dos senhores de escravos sulistas trazerem sua propriedade humana para
estados libertos ainda estavam tramitando. Alguns dias depois, Hughes
chegou fugido na propriedade de Ruggles, buscando refúgio. Tinha levado
consigo cerca de $ 7000 do dinheiro de seu antigo senhor, que decidiram
intermediar a devolução do dinheiro em troca da libertação de Hughes.

156
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

fugitivos com recursos ou meios para escapar – e, embora


fosse vigiado e acossado por todos os lados, parecia ser um
inimigo à altura para os escravagistas.
Logo depois que cheguei ao abrigo do Sr. Ruggles, ele
perguntou para onde eu desejava ir, pois ele achava
perigoso que eu continuasse em Nova Iorque. Disse que eu
era um entalhador, e preferia ir para um lugar em que
pudesse encontrar trabalho. Pensei em ir para o Canadá,
mas ele foi contra, e a favor de eu me mudar para New
Bedford, pensando que lá conseguiria emprego. Nessa
época Anna*, minha futura esposa, chegou; eu tinha escrito
a ela imediatamente ao chegar à Nova Iorque (apesar de
estar sem-teto, sem casa e em condições deploráveis),
informando do sucesso de minha fuga e pedindo que ela
viesse imediatamente. Poucos dias depois de sua chegada, o
Sr. Ruggles chamou o Reverendo J. W. C. Pennington, que,
na presença do Sr. Ruggles, Sra. Michaels e dois ou três
outros, realizou nossa cerimônia de casamento e nos deu
um certificado, que copio abaixo:

Certifico através deste que uni em sagrado matrimônio


Frederick Johnson e Anna Murray, como marido e esposa,
na presença do Sr. David Ruggles** e da Sra. Michaels.

Quando Darg descobriu que o escravo havia gasto parte do dinheiro,


mandou prender Ruggles e Corse, um companheiro abolicionista, por
roubo. O caso rapidamente ganhou a imprensa. Fonte, acessada em
17/07/2015:
<http://davidrugglesinflorence.blogspot.com.br/2006/07/david-ruggles-
isaac-t-hopper-samuel_17.html>
* [NA] Ela era livre.
** [NA] Tinha mudado meu sobrenome, de Frederick Bailey para Johnson.

157
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

JAMES W. C. PENNINGTON
Nova Iorque, 15 de set. de 1838

Assim que recebemos este certificado e uma nota de


cinco dólares do Sr. Ruggles, coloquei uma mala no ombro,
Anna pegou a outra, e nos dirigimos para bordo do vapor
John W. Richmond, para Newport, a caminho de New
Bedford. O Sr. Ruggles me deu uma carta para um Sr. Shaw
em Newport, e me disse que se o dinheiro não desse para
chegar a New Bedford, que parasse em Newport e lá
pedisse assistência, mas, quando chegamos à Newport
estávamos tão ansiosos para chegar a um lugar seguro que,
embora não tivéssemos dinheiro suficiente para as
passagens, decidimos obter assentos no estrado e
prometemos pagar quando chegássemos em New Bedford.
Dois cavalheiros de New Bedford nos encorajaram a fazer
isso, que descobri depois se chamarem Joseph Ricketson e
William C. Taber. Eles pareceram entender nossa situação
de imediato, e nos asseguraram de sua simpatia, de modo
que ficamos à vontade em sua presença.
Era realmente muito bom encontrar tais amigos em uma
hora daquelas. Quando chegamos a New Bedford, nos
indicaram a casa do Sr. Nathan Johnson, que nos recebeu
gentilmente com toda hospitalidade. Tanto o Sr. quanto a
Sra. Johnson se interessaram vivamente por nossa
condição, provando que eram dignos do título de
abolicionistas. Quando o condutor descobriu que
estávamos sem dinheiro para pagar a passagem, ele reteve
nossas bagagens como seguro do pagamento. Só precisei

158
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

mencionar isso ao Sr. Johnson para que ele me emprestasse


o dinheiro.
Então, começamos a sentir algum grau de segurança, e a
nos preparar para as responsabilidades e deveres de uma
vida de liberdade. Na manhã seguinte, à nossa chegada à
New Bedford, na mesa do café, fui perguntado por que
nome queria ser chamado. O nome que ganhei de minha
mãe era “Frederick Augustus Washington Bailey”, embora
eu tivesse dispensado os nomes do meio muito antes de
deixar Maryland, sendo normalmente conhecido como
“Frederick Bailey”. Saí de Baltimore com o nome de
“Stanley”. Quando cheguei à Nova Iorque, novamente
mudei meu nome para “Frederick Johnson”, e achei que
seria a última vez que o mudava. Mas, quando cheguei a
New Bedford, descobri que era necessário mudar meu
nome de novo. A razão era que havia tantos Johnsons em
New Bedford que já era difícil distingui-los. Deixei ao Sr.
Johnson o privilégio de me escolher um nome, mas pedi
que não mudasse o nome de “Frederick”. Queria mantê-lo
para preservar meu sentido de identidade. O Sr. Johnson,
que andava lendo A Dama do Lago38, de imediato sugeriu
que meu novo sobrenome fosse “Douglass”, e, a partir
daquele momento até o presente, sou o portador do nome
“Frederick Douglass”, e, como sou mais conhecido por ele
do que por qualquer um dos outros, continuo a usá-lo.
Fiquei bastante desapontado ao ver como estavam as

38[NT] The Lady of the Lake, poema narrativo, de Sir Walter Scott, publicado
em 1810. Nele, entre outras coisas, são narrados o feudo e a reconciliação
entre o rei James V, da Escócia, e James Douglas, antigo mentor do jovem
James e conde de Bothwell, que se encontra exilado como inimigo.

159
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

coisas em New Bedford. Descobri que a impressão, que


havia formado durante minha escravidão, de que as
condições das pessoas no norte eram muito menos
luxuosas do que as dos escravagistas do sul, estava errada.
Provavelmente, tinha tirado essa conclusão do fato de que
as pessoas do norte não tinham escravos, e supus que
estivessem no nível da população sulista não possuidora de
escravos. Sabia que eles eram pobres demais, e me
acostumei a atribuir sua pobreza à consequência necessária
de não ter escravos. De alguma forma, havia desenvolvido
a opinião de que na ausência de escravos não poderia haver
a riqueza, e muito pouco refinamento. Assim, ao vir para o
norte, esperava encontrar uma população rude, inculta e
calejada, vivendo em uma simplicidade espartana, sem
saber das facilidades, pompa e grandeza dos escravagistas
do sul. Quem conhece New Bedford já pode perceber o
quanto me enganei em minhas conjecturas.
Na tarde do dia em que alcancei a cidade, visitei o cais,
para inspecionar as embarcações. Lá me encontrei cercado
de enormes sinais de abastança. Atracadas no cais e
andando pela corrente, estavam várias embarcações do
mais fino modelo, melhor classe e maior tamanho. À direita
e à esquerda se erguiam vastos armazéns de granito, cheios
ao limite de suas capacidades com os itens que suprem os
confortos e as necessidades da vida. Somado a isso, quase
todos pareciam estar trabalhando, mas sem barulho, em
comparação com o que estava acostumado em Baltimore.
Não havia canções vindas daqueles que carregavam e
descarregavam os barcos, não havia brados ou pragas

160
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

dirigidas aos trabalhadores, nem homens sendo


chicoteados; apesar disso, tudo parecia correr bem e em
paz. Cada um entendia de seu trabalho e o empreendia com
uma seriedade sóbria, porém alegre, que traía o profundo
interesse que cada um tinha em seu trabalho, e também sua
dignidade enquanto seres humanos. Para mim, tudo isso
parecia muito estranho. Do cais fui passear pela cidade,
olhando com espanto e admiração para as esplêndidas
igrejas, belas moradias e jardins bem cultivados; mostrando
riquezas, conforto, gosto e refinamento que jamais havia
visto em qualquer parte da escravista Maryland.
Tudo parecia limpo, novo e bonito; não vi casas
dilapidadas com habitantes pobres, nem crianças seminuas
e mulheres descalças, como estava acostumado a ver em
Hillsborough, Easton, St.Michael e Baltimore. As pessoas
pareciam mais destras, fortes, saudáveis e felizes do que as
de Maryland, e, pela primeira vez na vida, pude me alegrar
com a visão de uma riqueza extrema, sem ter que me
entristecer com a visão da extrema pobreza. Mas o mais
espantoso e interessante para mim era a condição das
pessoas negras, muitas das quais, como eu, haviam
escapado para lá buscando refúgio dos caçadores de
homens. Encontrei vários que não tinham se livrado de
suas correntes nem sete anos, morando em casas boas e
aparentando desfrutar de mais confortos do que a média
dos escravagistas em Maryland. Ouso dizer que meu amigo,
o Sr. Nathan Johnson (de quem posso dizer com o coração
agradecido que “Eu estava faminto, e ele me deu carne; eu
estava sedento, e ele me deu de beber; eu era um estranho,

161
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

e ele me abrigou”39) morava em uma casa mais limpa,


comia em uma mesa melhor, recebia, pagava e lia mais
jornais, entendia melhor a moral, a religião e o caráter
político da nação – do que nove décimos dos escravagistas
no condado de Talbot, Maryland. Ainda assim, o Sr.
Johnson era um homem trabalhador, suas mãos eram
calejadas, e não só as suas, mas também as da Sra. Johnson.
Descobri que as pessoas negras eram muito mais vivazes
do que pensei que pudessem ser; encontrei entre elas a
determinação de proteger umas às outras da sede de sangue
dos raptores, custasse o que custasse. Logo depois de
minha chegada, soube de um caso que ilustra bem esse
espírito. Um homem negro e um escravo fugido andavam
brigando. O homem livre parecia ter ameaçado o escravo
de informar seu senhor de seu paradeiro – ao que se
chamou uma reunião entre as pessoas negras, alardeada
como um “Assunto importante!” O traidor foi convidado a
comparecer. As pessoas vieram na hora marcada e
organizaram a recepção apontando um velho cavalheiro,
muito religioso, como presidente da mesa, que, se não me
engano, entoou uma prece depois de apreciar o caso e
emitir sua opinião da seguinte maneira: “Amigos, temos ele
aqui, e eu recomendo que vocês jovens levem ele lá para fora e o
matem!” Com isso, vários deles pularam para cima do
traidor, mas foram impedidos por pessoas mais calmas, de
forma que o acusado conseguiu escapar de sua vingança,
mas não havia sido visto em New Bedford desde o
39 [NT] Matheus, cap. 25, ver. 35. Douglass cita a versão contida na Bíblia
do rei James, daí a referência à ‘carne’, em vez de ‘comida’ ou ‘pão’, que são
as traduções normais para o trecho.

162
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

ocorrido. Acredito que não tenham havido mais ameaças


desse tipo, nem então e nem depois, e não duvido que a
morte fosse a consequência, caso houvesse.
Consegui um emprego no terceiro dia após minha
chegada, ajudando a levar uma carga de óleo para uma
corveta. Era um trabalho novo, sujo e difícil para mim. Mas
me entreguei a ele com o coração contente, o braço firme.
Eu era agora meu próprio senhor. Era um momento feliz,
que só pode ser inteiramente compreendido por aqueles
que já foram escravos. Era o primeiro trabalho que faria em
que o ganho era só meu. Não haveria um senhor Hugh
esperando para me roubar o dinheiro assim que eu o
ganhasse. Naquele dia, trabalhei com um prazer que jamais
tinha experimentado antes, pois estava trabalhando para
mim e para minha esposa recém-casada, aquele era o
começo de uma nova existência. Quando terminei aquele
trabalho, procurei emprego como entalhador, mas o
preconceito racial entre os entalhadores brancos era tal que
eles se recusavam a trabalhar comigo, e não consegui
emprego*.
Uma vez que minha profissão não me valia muito ali,
joguei fora minhas ferramentas de entalhar e me preparei
para fazer qualquer tipo de trabalho que conseguisse. O Sr.
Johnson gentilmente me emprestou seu cavalo e uma serra
e logo eu tinha bastante trabalho nas mãos. Não havia
trabalho que fosse difícil ou sujo demais – estava pronto a
serrar lenha, transportar carvão, carregar madeira, limpar

* [NA] Soube que pessoas de cor hoje conseguem trabalhar como


entalhadores em New Bedford – resultado do esforço de abolicionistas.

163
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

chaminés ou transportar barris de óleo, e fiz tudo isso por


quase três anos em New Bedford, antes de ficar conhecido
no mundo abolicionista.
Cerca de quatro meses depois de chegar à New Bedford,
um rapaz chegou para mim e me perguntou se eu não
gostaria de assinar o “Liberator”. Disse a ele que sim, mas,
recém tendo escapado da escravidão, não podia pagar por
uma assinatura por enquanto. Depois de um tempo,
finalmente pude assinar o jornal. Ele veio, e eu o lia todas
as semanas com sentimentos tamanhos que seria inútil
tentar descrever. Aquele jornal se tornou a minha carne e a
minha bebida. Minha alma inteira pegava fogo. A simpatia
que o periódico mostrava por meus irmãos acorrentados –
o modo como denunciava os escravagistas, as denúncias
fiéis da escravidão, e seus poderosos ataques contra aqueles
que defendiam a instituição, tudo isso mandava um frêmito
de alegria pela minha alma de um modo que nunca tinha
sentido!
Pouco depois de começar a ler o “Liberator”, eu já tinha
uma boa ideia dos princípios, medidas e espírito da reforma
contra a escravidão. Logo me dediquei à causa. Não podia
fazer muito, mas o que podia, fazia com o coração alegre, e
nunca estava tão feliz quanto quando estava presente em
um encontro anti-escravidão. Era difícil que eu tivesse
muito a dizer nesses encontros, porque o que trazia em
meu peito era dito de forma muito melhor por outros. Mas,
enquanto participava de uma convenção abolicionista em
Nantucket, em onze de agosto de 1841, me senti
fortemente impelido a falar, e fui incentivado a fazê-lo pelo

164
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

senhor William C. Coffin, um cavalheiro que já tinha me


ouvido falar nos encontros de negros em New Bedford.
Foi um marco difícil de transpor, e foi com relutância que
aceitei. A verdade era que eu me sentia um escravo, e a
ideia de falar para pessoas brancas me esmagava. Mal havia
começado a falar quando senti que estava à vontade, e disse
o que queria dizer com uma facilidade considerável.
Daquele dia em diante, tenho defendido a causa de meu
povo – com que sucesso, ou devoção, deixo que decidam
aqueles que conhecem meu trabalho.

165
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

166
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

APÊNDICE

Percebo, ao reler a narrativa acima, que por várias


vezes falei de tal forma em respeito à religião, que pode dar
a entender a pessoas que não conheçam meus preceitos
religiosos que sou oposto a toda e qualquer manifestação
religiosa. Para que esse mal-entendido não se dê, acho
apropriado explicar brevemente a questão. O que eu disse a
respeito e contra a religião era dirigido especificamente à
religião dos escravagistas desta terra, sem nenhuma referência à
cristandade em geral. Pois, entre a cristandade desta terra e
a cristandade de Cristo, percebo uma total e completa
diferença – tamanha que, para se achar que uma é
apropriada, pura e santa, tem-se que entender a outra como
má, corrupta e perversa. Ser amigo de uma é ser inimigo da
outra. Eu amo a cristandade pura, pacífica e imparcial de
Cristo; e, portanto, odeio a cristandade corrupta,
escravagista, acoitadora de mulheres, assaltante de berços,
parcial e hipócrita que se professa nesta terra. Na verdade,
nem vejo razão honesta para chamar de cristandade a
religião desta terra. Entendo isso como o maior dos
enganos, a mais ousada das fraudes e a mais grosseira das

167
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

calúnias. Nunca houve um caso mais claro de “roubar a


farda da corte celestial para servir ao diabo”. Me encho de
uma aversão indizível quando vejo a pompa religiosa e as
demonstrações, junto com as horríveis inconsistências que
em todo canto me cercam. Temos raptores por ministros,
homens que batem em mulheres servindo de missionários e
ladrões de berços que são membros das igrejas. O homem
que empunha seu chicote sangrento durante a semana
inteira está no púlpito aos domingos, alegando ser um
ministro do manso e humilde Jesus. O homem que me
rouba os ganhos no final de cada semana me encontra
como um membro de classe da igreja no domingo de
manhã, para me mostrar o caminho para a vida e a
salvação. Aquele que vendeu a minha irmã para a
prostituição se intitula o defensor da pureza. Aquele que
proclama que a leitura da Bíblia é o dever de todo religioso
me tirou o direito de aprender a ler o nome do Deus que
me fez. Aquele que é o defensor do casamento religioso
rouba milhões de pessoas dessa instituição, e as deixa à
mercê da total profanação. O defensor inflamado do
caráter sagrado das relações familiares é o mesmo que
separa famílias inteiras – apartando maridos e mulheres,
pais e filhos, irmãos e irmãs, deixando para trás casas vazias
e corações desolados. Vemos ladrões pregando contra o
roubo, e os adúlteros contra o adultério. Temos homens
vendidos para construir igrejas, mulheres vendidas para
contribuir com os evangelhos, e bebês vendidos para
comprar Bíblias para os Pobres Pagãos! Tudo Pela Glória De
Deus E Pelo Bem Das Almas! O sino do comerciante de

168
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

escravos e o sino da igreja tocam juntos, e os gritos


amargos dos escravos de corações partidos são afogados
pelos gritos religiosos de seu piedoso senhor. Cerimônias
religiosas e de escravagistas caminham de mãos dadas, e a
prisão dos escravos e a igreja ficam uma ao lado da outra.
O clangor das correntes e os grilhões na prisão são ouvidos
junto com os hinos solenes e o pio salmo da igreja. Os
traficantes de corpos e almas de homens armam seu altar
diante do púlpito, e se ajudam mutuamente. O traficante dá
seu ouro ensanguentado para o púlpito, o púlpito, em
troca, cobre o negócio infernal do traficante com o manto
da cristandade. Aqui temos a religião e a ladroagem aliadas
uma a outra – diabos vestidos com os robes de anjos, e o
inferno mostrando o semblante do paraíso.

“Bom Deus! E esses são


Os que pregam em seu altar, Deus fiel!
Homens que, com reza e bênção
Põe as mãos na arca de luz de Israel.

“O quê? Pregar e raptar os pobres?


Dar graças e roubar os próprios aflitos?
Falar de sua própria liberdade gloriosa, e por uns cobres,
Trancar a porta dos cativos?

“O quê! Servos de Seu misericordioso


Filho, que veio para fornecer abrigo
Ao sem-teto e ao proscrito, amarrando injurioso
O escravo roubado e batido!

169
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

“De Herodes e Pilatos são colegas cordiais!


Pastores, governantes, se ergam, como de então!
Justo e santo Deus! Sereis vós na igreja que emprestais
Forças ao mais baixo ladrão?”40

A cristandade da América é uma cristandade como a dos


antigos escribas e Fariseus: “Eles atam fardos pesados e os
colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos
não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los.
Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens. Eles
fazem seus filactérios bem largos e as franjas de suas vestes
bem longas; gostam do lugar de honra nos banquetes e dos
assentos mais importantes nas sinagogas, de serem
saudados nas praças e de serem chamados ‘rabis’. (...) Ai de
vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o
Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não
entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-
lo. Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês
devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas
orações. Por isso, serão castigados mais severamente. Ai de
vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas, porque
percorrem terra e mar para fazer um convertido e, quando
conseguem, vocês o tornam duas vezes mais filho do
inferno do que vocês. (...) Ai de vocês, mestres da lei e
fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos

40[NT] Douglass cita um trecho do poema Clerical Opressors ou ‘Opressores


Clericais’, de John Greenleaf Whittier (1836).

170
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a


fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas sem omitir
aquelas. Guias cegos! Vocês coam um mosquito e engolem
um camelo. Ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato,
mas, por dentro, eles estão cheios de ganância e cobiça. (...)
Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são
como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas, por dentro,
estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície. Assim
são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas, por
dentro, estão cheios de hipocrisia e maldade.”41
Escura e horrível como possa ser esse quadro, considero
que é a estrita verdade sobre a maioria esmagadora dos que
se professam cristãos na América. Eles ‘coam um
mosquito, e engolem um camelo’. Poderia uma frase ser
mais verdadeira, aplicada às nossas igrejas? Os religiosos
ficariam chocados caso se propusesse nominar um ladrão
de ovelhas para a cúpula da igreja, mas, ao mesmo tempo,
abraçam um ladrão de homens em comunhão, e me
tomariam por herege se eu os condenasse por isso. Eles
cumprem com rigidez farisaica os ditames mais
insignificantes da religião, e ao mesmo tempo desrespeitam
pontos muitos mais importantes da lei, julgamento, piedade
e fé. Estão sempre prontos ao sacrifício, mas nunca à
piedade. São aqueles que dizem amar a um Deus e que
jamais viram e que odeiam o irmão a seu lado; amam os
infiéis do outro lado do mundo – rezam por eles, pagam
41[NT] Douglass aqui cita trechos de Mateus, cap. 23. Usei a Nova Versão
Internacional da Bíblia e marquei os pontos em que ele pula de um trecho a
outro com reticências entre parêntesis.

171
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

para colocar uma Bíblia em suas mãos e por missionários


para instruí-los, ao passo que desprezam e negligenciam
aqueles que estão às suas portas.
Esta é, em poucas palavras, a minha visão da religião
desta terra, e, para evitar desentendimentos vindos do uso
de termos gerais, por ‘religião desta terra’ quero dizer
aquela religião que é revelada pelas palavras, feitos e ações
daqueles que, no norte e no sul, se chamam cristãos ao
mesmo tempo em que estão unidos a escravagistas. É a
religião professada por esses que me sinto no dever de
denunciar.
Concluo essas memórias copiando o seguinte retrato da
religião do sul (que é, por comunhão e irmandade, também
a religião do norte), que posso afirmar com sobriedade que
é “sua cara viva”, pintado sem caricatura ou o menor
exagero. Parece ter sido traçado, muitos anos antes, que a
presente campanha anti-escravidão começasse, por um
pastor metodista que, enquanto ministrava no sul, teve a
oportunidade de conhecer a moral dos escravagistas, e ver
seus costumes e misericórdia com seus próprios olhos.
“Não devo eu castigá-los por isso?’ Pergunta o Senhor.
‘Não devo eu vingar-se de uma nação como esta?”42

Uma Paródia

Venham, santos e pecadores, me ouçam contar


Como pastores piedosos açoitam a Nell e o Jack,
Compram homens e tiram crianças do seio materno,

42 [NT] Jeremias, cap. 5, ver. 9.

172
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

E pregam que o destino dos pecadores é o Inferno,


E cantam em união celestial.

Eles irão balir e berrar como cabras,


Engolir ovelhas negras, e se estender nas barrancas,
Vestir suas costas em negras casacas,
E pegam seus negros pelas gargantas,
E apertam pela união celestial.

Eles irão reclamar se você beber um pouco,


E amaldiçoá-lo se roubar uma ovelha,
Mas eles roubam o cego e o mouco,
Direitos humanos, pão e carne vermelha,
Raptores pela união celestial.

Eles apregoarão as dádivas de Cristo,


E amarrarão sua imagem com um cordão,
E batem e praguejam com o chicote listo,
E vendem aquele que em Deus é seu irmão,
Para a algemada união celestial.

Eles leem e cantam uma canção sagrada,


E fazem uma alta e longa oração,
Ensinam a coisa certa e fazem a errada,
Saldando irmã, irmão e a multidão,
Com palavras de união celestial.

Pergunto como podem tais santos cantar,


Ou sobre o púlpito Deus louvar,

173
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Se vão com flagelos e gritos surrar,


E aos seus escravos e a Mammon se amarrar
Na união das consciências culpadas.

Eles plantam tabaco, centeio e milho,


E dirigem e roubam, trapaceiam e mentem,
E até os céus tesouros empilham,
Desde que as costas dos escravos aguentem,
Esperando pela união celestial.

Do velho Tony quebrariam a cabeça,


E rugiriam como o touro de Basan,
Ou um burro zurrando, pregando uma peça,
Então agarrariam o velho Jacob pelas lãs,
E puxariam pela união celestial.

Um ladrão de homens que sabe xingar,


Que só do bom do melhor que comem,
Mas que não se permitiria aliviar,
Os desgraçados que morrem de fome,
Estava gordo com a união celestial.

Não ame o mundo, o pregador disse,


E piscou o olho, e professou receio,
Pegou Tom, Dick e Ned,
Cortou todas suas rações ao meio,
Mas ainda amava a união celestial.

Outro pastor falou sentido,

174
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

De um que se apiedou por quem tinha pecado,


Amarrou a velha Nanny a um tronco caído,
E tirou seu sangue a cada açoite dado,
E rezou pela união celestial.

Dois outros abriram as bocas de aço,


E abanaram as patas de ladrões de crianças,
Sentavam empinhados os infantes no paço,
Ao reduzir escravos nas costas e panças,
Se mantiveram na união celestial.

Do Jack tomam tudo o que aprecia,


E entretém seus flertes libertinos,
Se vestem como uma cobra lustrosa e macia,
E enchem suas bocas com confeitos finos,
E isso vai goela abaixo pela união.

Sincera e honestamente esperando que este humilde


livro possa fazer algo para lançar a luz sobre o sistema da
escravidão americana e apressar o dia feliz da libertação
para os milhões de meus irmãos agrilhoados; confiando
fielmente no poder da verdade, amor e justiça para o
sucesso em minha humilde empreitada e solenemente
renovando meus votos à causa sagrada, assino,
Frederick Douglass
Lynn, Massachussets, 28 de abril de 1845.

175
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

176
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

COMO ESCAPEI DA ESCRAVIDÃO

Na primeira narrativa de minha experiência com a


escravidão, escrita há quase quarenta anos atrás, e em vários
escritos desde então, tenho dado ao público razões que
considero muito boas para não revelar a maneira pela qual
consegui escapar. Na essência, essas razões eram, primeiro,
que essa publicação durante a existência da escravidão
poderia ser usada pelo senhor contra seu escravo, e impedir
a fuga de quem quisesse adotar a mesma rota que eu. A
segunda razão era, se possível, ainda mais importante:
publicar detalhes teria posto os bens e as próprias pessoas
de quem me ajudou(?). O próprio assassinato não era
punido com mais severidade no estado de Maryland do que
o ato de ajudar um escravo a fugir. Muitos homens negros,
que não perpetraram nenhum crime além de auxiliar um
escravo fugitivo, pereceram na prisão, como Charles T.
Torrey. A abolição da escravatura, em meu estado nativo e
no país inteiro, entretanto, bem como o tempo que se
passou desde então, fazem com que essas minhas
precauções não sejam mais necessárias. Mas, mesmo depois

177
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

da abolição, eu achava que, contra a curiosidade geral,


bastava o argumento de que, enquanto existia a escravidão,
havia boas razões para não contar como escapei e, depois
que esta foi abolida, não havia nenhuma razão para contar.
Mas agora deixo de me ater a essa fórmula e, até onde
puder, tento satisfazer essa curiosidade, que é bastante
natural. Eu talvez tivesse feito isso mais cedo se houvesse
alguma coisa de heroico ou emocionante nos incidentes
relacionada com minha fuga, mas sinto dizer que não tenho
nada disso para contar. E, ainda assim, a coragem
necessária para se arriscar à traição e à bravura para
enfrentar a morte, quando necessário, foram coisas
essenciais para meu empreendimento. Meu sucesso se deve
à competência mais do que à coragem, e à boa sorte mais
do que à bravura. Meu meio de escape me foi fornecido
pelos próprios homens que lutavam para fazer leis que me
agrilhoassem com mais segurança à escravidão.
Era o costume, no estado de Maryland, exigir que os
homens negros libertos levassem os chamados papéis de
liberação. Eles tinham que renovar esses documentos com
bastante frequência, e, por se cobrar uma taxa para emiti-
los, somas consideráveis eram coletadas pelo estado de
tempos em tempos. Nesses documentos, estavam descritos
o nome, a idade, a cor, a altura e as formas gerais do negro
liberto, junto com cicatrizes e outras marcas em sua pessoa
que pudessem auxiliar em sua identificação. Essa medida,
até certo ponto, era contraditória – pois mais de uma
pessoa podia corresponder à mesma descrição – e, assim,
muitos escravos poderiam escapar com um único

178
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

documento, e isso era feito com frequência da seguinte


maneira: um escravo, parecido com a descrição constante
nos papéis, iria alugá-los ou tomá-los emprestados até que
escapasse para um estado liberto, e, então, através do
correio ou outro expediente, devolvê-los ao dono. A
operação era arriscada tanto para quem emprestava o
documento quanto para quem o tomava emprestado, pois,
se o fugitivo não devolvesse os papéis, seu benfeitor ficaria
em perigo, e se descobrissem os papéis com a pessoa
errada, ambos os dois, o fugitivo e seu amigo, estariam
enredados. Era, portanto, um ato de confiança suprema da
parte de um liberto colocar sua própria liberdade em risco
para que outro pudesse ser livre. Mesmo assim, o
expediente era usado com frequência e poucas vezes
descoberto. Eu não tinha a sorte de parecer o suficiente
com um de meus conhecidos libertos para corresponder à
descrição que constava em seus papéis. Mas eu tinha um
amigo – um marinheiro – que tinha uma proteção especial
para marinheiros, e que era, até certo ponto, análoga aos
papéis de liberação, descrevendo o portador e certificando
que ele era um marinheiro americano livre. Esse
instrumento tinha no cabeçalho a águia americana, o que
fazia com que parecesse um documento oficial. Essa
proteção, em minhas mãos, não descrevia o portador muito
acuradamente. Na verdade, era dirigida a um homem muito
mais escuro do que eu, e um exame detalhado teria
imediatamente causado minha prisão.
Para evitar que os oficiais das estradas de ferro
quisessem realizar essa checagem fatal, combinei com Isaac

179
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Rolls, um fiscal de Baltimore, de levar minha bagagem para


o trem que ia para a Filadélfia no momento em que
estivesse saindo, e pulei para dentro quando o trem já se
movia. Se eu tivesse ido à estação e tentado comprar um
bilhete, teria sido examinado instantaneamente e com
cuidado – e, com certeza, preso. Ao escolher este plano,
pensei no balanço do trem e também na pressa natural do
condutor em um trem cheio de passageiros, e confiei na
minha capacidade de me passar por marinheiro (conforme
estava escrito no documento) para fazer o resto. Um
elemento que contava em meu favor era a forma como o
público favorecia na época, em Baltimore e em outros
portos marítimos, “aqueles que iam para o mar em seus
navios”. “Livre comércio e direitos aos marinheiros” era o
sentimento do país. Eu estava vestido como marinheiro –
tinha uma camisa vermelha e um chapéu de lona encerada e
também um cachecol amarrado à moda dos marinheiros no
pescoço. Meu conhecimento a respeito de navios e da
maneira como falavam os marinheiros veio então a calhar,
pois eu conhecia uma embarcação da proa à popa e da
sobrequilha às cruzetas do mastro, e sabia o jargão dos
marinheiros como um ‘velho salgado’. Estava adiantado no
caminho para Havre de Grace quando o condutor veio até
o carro dos negros para pegar os bilhetes e examinar os
papéis dos passageiros de cor. Esse era um momento
crítico daquele drama. Todo meu futuro dependia da
opinião daquele condutor. Embora estivesse muito agitado
enquanto o procedimento era realizado, ainda assim me
forcei a parecer calmo e seguro. Ele procedeu com suas

180
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

obrigações – examinando vários passageiros negros antes


de chegar a mim. Ele parecia ser bastante rude e autoritário
até que chegou a mim e, então, para minha surpresa e
alívio, suas maneiras mudaram completamente. Ao ver que
eu não produzia imediatamente meus papéis de liberação,
como os outros negros haviam feito, ele me perguntou
muito educadamente, em contraste com a maneira com que
tinha se comportado em relação aos outros passageiros:
“Suponho que você tenha seus papéis de liberação?”
A que eu respondi:
“Não, senhor, eu nunca levo os meus papéis para o mar
comigo.”
“Mas você tem alguma coisa que mostre que é um
homem livre, não?”
“Sim, senhor”, eu respondi. “Tenho um papel com a
águia americana nele e isso basta para me levar pelo mundo
inteiro.”
Com isso, eu tirei do bolso fundo a minha proteção de
marinheiro, conforme descrevi. Um mero olhar o satisfez, e
ele aceitou o dinheiro da passagem e seguiu no seu
caminho. Nunca estive tão nervoso quanto nesses
momentos. Se o condutor tivesse olhado mais longamente
para os papéis, ele não podia ter deixado de perceber que
descreviam uma pessoa muito diferente de mim, e, nesse
caso, teria o dever de me prender de imediato e de me
mandar de volta a Baltimore na próxima estação. Quando
ele me deixou, seguro de que estava tudo bem, percebi que
ainda estava correndo muito perigo (apesar de estar muito
aliviado): estava em Maryland, e sujeito a ser preso a

181
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

qualquer momento. Vi, no trem, várias pessoas que teriam


me reconhecido se estivesse usando outro tipo de roupas, e
temia que me reconhecessem mesmo em minha fantasia de
marinheiro e me denunciassem para o condutor, que,
então, teria de me submeter a uma inspeção completa, o
que, eu sabia, seria minha ruína.
Apesar de não ser um assassino fugindo da justiça, me
sentia tão miserável quanto um criminoso. O trem se movia
em uma velocidade bem alta para a época, mas, em minha
mente angustiada, ia devagar demais. Os minutos eram
horas, e as horas eram dias, durante esse trecho de meu
trajeto. Depois de Maryland, ainda teria que passar por
Delaware – outro estado escravagista, onde os caçadores de
escravos costumavam esperar por sua presa, porque não é
no interior dos estados, mas nas fronteiras, que esses
mastins humanos ficavam mais ativos e vigilantes. O
coração de uma raposa ou cervo que estivessem sendo
perseguidos por cachorros não teria batido mais
ansiosamente nem tão alto quanto o meu, quando deixei
Baltimore, e até que chegasse à Filadélfia. A passagem pelo
rio Susquehanna, em Havre de Grace, era, naquele tempo,
feita por uma balsa a vapor, a bordo da qual encontrei um
jovem negro de nome Nichols, que esteve muito perto de
me trair. Ele era membro da tripulação do barco, mas em
vez de fazer o seu trabalho, ele insistiu em se aproximar de
mim, e fazer perguntas perigosas sobre para onde eu ia,
quando voltava e etc. Saí de perto dele assim que pude e fui
para outra parte da embarcação. Assim que atravessei o rio,
encontrei um novo perigo. Poucos dias antes, eu tinha

182
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

trabalhado como entalhador no estaleiro do Sr. Price, em


Baltimore, sob os cuidados do capitão McGowan. Quando
os trens se cruzaram na estação, o trem que ia para o sul
parou ao lado do que ia para o norte, e aconteceu de o
capitão McGowan estar sentado em uma janela de onde
podia me ver perfeitamente, e, com certeza, teria me
reconhecido se tivesse me olhado por um segundo.
Felizmente, na pressa do momento, ele não me avistou, e
os trens logo seguiram cada um o seu caminho. Esse não
foi a única vez em que escapei por pouco. Um serralheiro
alemão, que eu conhecia bem, estava no trem comigo e
olhava para mim com uma atenção estranha, como se
achasse que já tínhamos nos conhecido em alguma de suas
viagens. E, realmente, acredito que ele me reconheceu
(reconhecera?), mas não ousou me trair. De qualquer jeito,
ele me viu escapando e se manteve quieto.
O último ponto perigoso da jornada, e aquele que eu
temia mais, era Wilmington. Ali nós deixávamos o trem e
entrávamos na balsa a vapor para a Filadélfia. Ao fazer o
translado, novamente temi ser preso, mas ninguém me
incomodou, e logo eu estava no grande e belo estado de
Delaware, acelerando no caminho para Quaker City.
Quando alcancei a Filadélfia, naquela tarde, perguntei a um
homem de cor como poderia seguir para Nova Iorque, e
ele me apontou a estação da Rua William, e, assim, eu segui
pelo trem naquela noite. Cheguei à Nova Iorque na manhã
de terça-feira, tendo completado a jornada inteira em
menos de vinte e quatro horas.
Minha vida livre começou no dia três de setembro de

183
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

1838. Na manhã do dia quatro, depois de uma jornada por


demais nervosa e perigosa, mas tranquila, me encontrei na
grande cidade de Nova Iorque, um HOMEM LIVRE – um
a mais na multidão que caminhava entre os muros
imponentes da Broadway como as ondas confusas do mar
bravio. Apesar de me espantar com as maravilhas que
encontrava em cada esquina, não conseguia pensar em
outra coisa que a minha estranha condição – naquele
momento, meus sonhos de infância e esperanças de minha
vida adulta estavam completamente realizados; as correntes
que haviam me amarrado a meu ‘velho senhor’ haviam sido
partidas. Já nenhum homem tinha o direito de me chamar
de escravo ou se considerar meu mestre, eu tinha caído no
mundo para buscar a minha chance, como todo mundo faz.
Sempre me perguntam como me senti na primeira vez em
que pisei em solo livre43. Não há nada da minha experiência
para que eu pudesse dar uma resposta mais apropriada –
senti que um mundo novo se havia aberto aos meus pés. Se
há mais na vida do que respirar e manter o coração
batendo, vivi mais naquele dia do que em um ano inteiro
como escravo. Foram momentos de excitamento alegre que
as palavras só podem descrever até certo ponto – em uma
carta a um amigo, que escrevi assim que cheguei à Nova
Iorque, eu disse que: “Me senti como alguém se sentiria ao
escapar uma toca de leões famintos.” A angústia e a

43 [NT] A partir do momento em que chega a Nova Iorque, mais


especificamente ao ponto em que comenta que lhe perguntam como se
sentiu, Douglass enceta uma narrativa que apresenta eventos e ações
bastante semelhantes aos de sua biografia, porém diferentes tanto na forma
quanto na narração.

184
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

miséria, como a chuva e a escuridão, podem ser retratadas;


mas a alegria e a felicidade, como o arco-íris, desafiam tanto
nas metáforas quanto nas imagens44 até mesmo o artista
mais habilidoso. Era como se eu tivesse arrastado uma
corrente pesada durante dez ou quinze anos, que eu não
tinha como quebrar – não apenas um escravo, mas um
escravo por toda a vida. Podia me tornar um marido, um
pai, um velho; mas através de toda a minha existência, do
nascimento à morte, do berço ao túmulo, eu me sentia
perdido. Todos os esforços que já tinha empreendido para
alcançar a liberdade não tinham apenas falhado, como
também pareceram só fechar com mais firmeza os grilhões
que me continham e tornar a minha fuga mais difícil.
Enredado, confuso e desencorajado, eu me perguntava às
vezes se, em relação à minha condição de escravo, sendo
esta obra de Deus, e, portanto, dirigida a um fim mais alto e
inescrutável, não era meu dever ser submisso? Esse conflito
entre a minha consciência do que era certo e moral e os
sofismas e desculpas plausíveis da superstição e da teologia,
na verdade, se travava em meus pensamentos há bastante
tempo. Um lado pregava que eu devia ser um escravo
abjeto – prisioneiro por toda a vida, punido por alguma
transgressão que não compreendia e em que não tinha
tomado parte; o outro lado me aconselhava a buscar
virilmente minha liberdade. Essa disputa tinha finalmente
acabado; as correntes haviam se partido, e a vitória me
trazia uma alegria indescritível.
44[NT] Douglass emprega uma metonímia que, em tradução, seria “tanto
na pena como no pincel”, que foi substituída por outra que, espera-se, seja
de leitura mais intuitiva.

185
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Mas essa alegria teve vida curta, pois eu não estava ainda
além do alcance dos escravagistas. Logo descobri que Nova
Iorque não era tão segura ou livre quanto tinha imaginado,
e uma sensação de solidão e insegurança me oprimiu
tristemente. Por coincidência, encontrei na rua, poucas
horas após minha chegada, um fugitivo que eu tinha
conhecido muito bem enquanto escravo. As notícias que
ele me contou me alarmaram. Ele era conhecido em
Baltimore como o “Jake do senhor Allender”, mas, em
Nova Iorque, tinha o nome mais respeitável de ‘William
Dixon’. Jake, por lei, era propriedade do Doutor Allender,
e Tolly Allender, filho do doutor, já tinha tentado
recapturar o SR. DIXON, mas havia falhado por falta de
evidências que amparassem sua petição. Jake me contou as
circunstâncias do processo, e quão perto tinha chegado de
ser mandado de volta à escravidão e à tortura. Me disse que
Nova Iorque estava cheia de sulistas que voltavam para as
terras do norte, e que as pessoas de cor de Nova Iorque
não eram confiáveis, pois havia homens de minha cor que
me trairiam por alguns dólares, e que homens eram
contratados para ficar à espreita dos fugitivos. Que não
deveria confiar a ninguém o meu segredo, e não podia nem
pensar em me dirigir ao cais ou às pensões para os negros,
pois esses lugares eram vigiados de perto. Ele próprio não
tinha como me ajudar, e, na verdade, ele parecia temer que
eu próprio fosse um traidor. Suponho que, por conta dessa
apreensão, ele logo mostrou sinais de querer se livrar de
mim, e em seguida desapareceu à procura de trabalho, com
o pincel de cal na mão.

186
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

O retrato de Nova Iorque pintado pelo pobre ‘Jake’ foi


uma pá de cal em meu entusiasmo. Minha mínima reserva
de dinheiro logo se acabaria, e uma vez que não era seguro
para eu procurar emprego no cais, como tinham me dito,
meu futuro não parecia promissor. Eu entendia ser
prudente me manter longe dos estaleiros, pois estava certo
de que o Sr. Auld, meu “mestre”, iria me procurar entre os
entalhadores. Todas as portas pareciam estar fechadas para
mim. Eu estava perdido em um oceano de seres humanos e
nenhum deles me conhecia. Não tinha nome, conhecidos,
dinheiro, crédito, trabalho e nem conhecimento suficiente
para decidir que caminho trilhar ou em que lugar procurar
ajuda. Em um caso assim extremo, um homem tem muito
em que pensar além de sua recém-conquistada liberdade.
Enquanto estava caminhando sem rumo pelas ruas de
Nova Iorque, passando pelo menos uma noite em meio aos
barris em um dos cais, eu era livre – só que não só da
escravidão, mas também livre de comida e de abrigo.
Mantive meu segredo até onde pude, mas finalmente fui
obrigado a buscar alguém que simpatizasse com meus
predicamentos e que não se aproveitasse de minha miséria
para me entregar. Encontrei essa pessoa de coração
generoso na forma de um marinheiro chamado Stuart, que
me viu de dentro de sua cada na Rua Centre, enquanto eu
estava parado no outro lado da rua, próximo à prisão
Tombs. Quando ele perguntou o que eu fazia, consegui
despertar seu interesse. Ele me deixou passar a noite em
sua casa, e, na manhã seguinte, foi comigo para ver o Sr.
David Ruggles, o secretário do Comitê de Vigilância de

187
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

Nova Iorque, que trabalhava com os Srs. Isaac T. Hopper,


Lewis e Arthur Tappan, Theodore S. Wright, Samuel
Cornish, Thomas Downing, Phillip A. Bell e muitos outros,
na época. Todos esses já terminaram seu trabalho na Terra
(a não ser o Sr. Bell, que ainda é vivo, edita e imprime o
jornal Elevator, em São Francisco). Assim que me coloquei
nas mãos desses homens corajosos e sábios, me senti
seguro. Me escondi por vários dias com o Sr. Ruggles, na
esquina das guas Lispenard e Church, e durante esse
período a minha noiva veio de Baltimore, a meu chamado,
para dividir comigo as penúrias da vida. Ela era uma
mulher livre, e veio assim que soube que eu estava a salvo.
Fomos casados pelo Reverendo J. W. C. Pennington, que
era um conhecido e respeitado ministro presbiteriano da
época. Não tinha dinheiro para pagar a cerimônia, mas ele
pareceu se contentar com nosso agradecimento.
O Sr. Ruggles era o primeiro ‘oficial da estrada de ferro
do submundo’ que conheci depois de chegar ao norte, e foi
o único que conheci até ter me tornado eu mesmo um
desses oficiais. Quando descobriu que eu era um
entalhador, ele imediatamente decidiu que meu lugar era
em New Bedford, em Massachussets. Me disse que muitos
navios baleeiros tinham a manutenção realizada ali, antes de
saírem em suas jornadas, e que ali eu encontraria trabalho
em meu ofício e poderia viver bem. Assim, no dia da minha
cerimônia de casamento, pegamos o pouco de bagagens
que tínhamos e embarcamos no navio a vapor John W.
Richmond, que empreendia o trajeto entre Nova Iorque e
Newport, em Rhode Island. Há quarenta e três anos, os

188
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

negros não podiam ir nas cabines e nem além da popa de


um navio a vapor. Eram obrigados a passar a noite no
convés, qualquer que fosse o tempo – chuvoso ou seco,
quente ou frio. Essa lei não nos perturbou, injusta como
pudesse ser, pois já tínhamos passado por coisas muito
piores. Chegamos à Newport na manhã seguinte, e logo
depois uma carruagem antiquada, com “New Bedford” em
grandes letras amarelas dos lados, veio até o cais. Eu não
tinha dinheiro suficiente para nossas passagens, e não sabia
o que fazer. Felizmente, para nós, dois cavalheiros quaker45
que iam comprar suas passagens – meus amigos William C.
Taber e Joseph Ricketson – imediatamente perceberam
nossa situação e, de maneira discreta, nos disseram que
entrássemos. Nunca tinha obedecido uma ordem com
maior presteza, e logo estávamos a caminho de nosso novo
lar. Quando chegamos à Stone Bridge, os passageiros se
reuniram para o desjejum e pagaram suas passagens ao
condutor. Nós não fizemos a refeição, e, quando o
condutor perguntou por nossas passagens, eu disse que
acertaria quando chegássemos a New Bedford. Esperei que
ele protestasse, mas ele não disse nada. Entretanto, quando
chegamos a New Bedford, ele reteve nossa bagagem,
inclusive três livros de hinos – dois deles coleções dos
trabalhos de Dyer, e um de Shaw – e os trancou até que
pudéssemos resgatá-los, pagando a soma de nossas
passagens. Isso foi feito rapidamente, pois o senhor Nathan
Johnson não só me recebeu com bondade e hospitalidade,
mas também me emprestou dois dólares para acertar as

45 [NT] Ordem religiosa que, em geral, desaprovava a escravidão.

189
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

contas com o condutor, quando ouviu o que tinha


acontecido com nossas bagagens. O Sr. e a Sra. Nathan
Johnson eram idosos e estavam, então, aposentados. Devo
muita gratidão a eles, pois não só me “abrigou quando era
um estranho” e me “deu de comer quando eu estava
faminto”46, mas também me ensinou a ganhar a vida
honestamente. Assim, uma quinzena depois de sair de
Maryland, estava a salvo em New Bedford, um cidadão do
grande e velho estado de Massachussets.
Quando já havia começado minha nova vida de
liberdade e assegurado pelo Sr. Johnson de que não
precisava temer ser recapturado ali, uma questão de
importância comparativamente menor foi levantada a
respeito do nome por que eu iria ser conhecido enquanto
homem livre. O nome que me tinha sido dado por minha
mãe era o pretensioso e longo Frederick Augustus
Washington Bailey. Enquanto estava em Maryland,
entretanto, havia dispensado a parte de ‘Augustus
Washington’, mantendo apenas o ‘Frederick Bailey’. Entre
Baltimore e New Bedford, para me esconder melhor dos
caçadores de escravos, tinha me desfeito do ‘Bailey’ e
passado a me chamar ‘Johnson’, mas, em New Bedford,
descobri que o número de Johnsons era tamanho que já
causava confusão ao distingui-los, então uma mudança de
nome parecia desejável. Nathan Johnson, meu anfitrião,
enfatizou essa necessidade e pediu que eu o deixasse
escolher um nome para mim. Eu aquiesci, e ele resolveu me
chamar com meu nome atual, pelo qual tenho sido

46 [NT] Douglass cita novamente Mateus, cap. 25 ver. 35, em paráfrase.

190
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

conhecido por quarenta e três anos – Frederick Douglass.


O Sr. Johnson andava lendo A Dama do Lago, e tinha
ficado tão encantado com seu protagonista que queria que
eu tivesse seu nome. Desde que li aquele poema fascinante,
tenho pensado com frequência, ao ponderar sobre a
hospitalidade e a firmeza de caráter de Nathan Johnson,
que ele ilustraria muito melhor as virtudes de Douglas da
Escócia do que eu, embora também fosse negro. Estou
certo de que, se qualquer escravagista tivesse entrado em
sua casa tentando me recapturar, o Sr. Johnson teria se
mostrado como a personagem com a ‘mão robusta’.
O leitor pode se surpreender com as impressões que
tinha desenvolvido em relação às condições materiais e
sociais do povo no norte do país. Não tinha uma ideia
apropriada sobre a riqueza, o refinamento, o caráter
empreendedor e o alto nível de civilidade dessa parte do
país. O Orador Columbino, meu único livro, não tinha me
preparado para a sociedade do norte. Eu tinha sido
ensinado que a escravidão era a base de toda riqueza, e,
com essa ideia fundacional, cheguei naturalmente à
conclusão de que a pobreza tinha que ser a condição
reinante nos estados livres. No lugar de onde eu vim, um
homem branco que não tivesse escravos era geralmente
ignorante e pobre, de uma classe que era comumente
chamada “lixo branco pobre”. Logo, eu tinha assumido
que, uma vez que os que não tinham escravos no sul eram
ignorantes, pobres e degradados enquanto classe, o norte,
que inteiro não tinha um escravo, deveria estar em
condições similares. Não poderia ter chegado a outro lugar

191
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

dos Estados Unidos que apresentasse um contraste tão


grande e tão gratificante quanto New Bedford, tanto em
relação à vida em geral, comparada com a do sul, quanto
nas condições em que viviam as pessoas de cor. Fiquei
impressionado quando o Sr. Johnson me disse que não
havia nada nas leis de Massachussets que impedisse que um
negro fosse governador do estado se o povo desejasse
Elegê-lo. Ali, também, as crianças negras frequentavam a
escola pública junto com os filhos dos homens brancos, e
aparentemente ninguém se opunha àquilo. Para me
assegurar de que estava livre da recaptura, o Sr. Johnson me
garantiu que nenhum escravagista conseguiria arrancar um
escravo de New Bedford, pois ali havia homens que dariam
as vidas para me salvar de tal destino.
No quinto dia depois de minha chegada, coloquei roupas
comuns de trabalhador e fui até o cais em busca de serviço.
Em meu caminho pela Rua Union, vi uma grande pilha de
carvão diante da casa do Reverendo Ephaim Peabody, o
ministro unitário. Fui até a porta da cozinha e perguntei se
não queriam que eu os ajudasse a guardar o carvão. “O que
você cobra?”, perguntou a moça, “Deixo isso com a
senhora, madame.” “Pode começar”, ela disse. Não
demorou muito para que eu terminasse o serviço, e a doce
senhora colocou DOIS DÓLARES DE PRATA em
minhas mãos. Para entender a emoção que encheu meu
coração quando apertei aquele dinheiro com força nas
mãos, percebendo que nenhum senhor estaria lá para tirá-lo
de mim – QUE ERA MEU, QUE AS MINHAS MÃOS
ERAM MINHAS e que podiam ganhar mais daquelas

192
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

preciosas moedas – para entender o que é isso, uma pessoa


tem que ter sido escrava. Meu próximo serviço foi carregar
uma corveta no cais de Uncle Gid. Howland com uma
carga de óleo destinada à Nova Iorque. Eu não era apenas
um homem livre, mas um trabalhador livre, e nenhum
senhor estaria pronto para levar meu pagamento no final da
semana.
A estação estava no fim, e havia bastante trabalho. As
embarcações estavam sendo preparadas para a caça à baleia,
e muita madeira era usada para isso. Cortar essa madeira era
considerado um bom trabalho. Com a ajudar de meu velho
amigo Johnson (Deus abençoe sua memória), consegui
uma serra e um cavalo e comecei minha empreitada.
Quando entrei em uma loja para comprar uma corda para
segurar a minha serra no lugar e pedi o comprimento
desejado de um fip47, o homem atrás do caixa olhou
bruscamente para mim e disse, com a mesma brusquidão:
“Você não pertence a este lugar”, o que me deixou
alarmado, pensando que talvez houvesse me traído. Um fip
em Maryland correspondia a seis centavos e um quarto, o
que era chamado de fourpence em Massachussets. Mas a
mancada dos ‘cinco pennys’ não chegou a causar nenhum
mal, e saí para trabalhar confiante e alegre com minha serra
e cavalo. Era um trabalho novo para mim, mas nunca
trabalhei tão bem ou tão contente, na época em que passei

47[NT] No original, ‘fip’s worth’, abreviatura de ‘five penny’s worth’, ou seja, o


equivalente ao valor que havia sido fixado como medida – havia uma
pequena discrepância nos valores, como Douglass indica adiante no texto.
No caso, Douglass pensou que houvesse traído suas origens ao pedir pela
medida no jargão de sua terra natal, que era escravagista.

193
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

na fazenda de Covey, o domador de negros, do que quando


trabalhei por mim mesmo em meus primeiros anos de
liberdade.
Apesar da sensação de justiça e humanidade que senti
em New Bradford quarenta e três anos atrás, o lugar não
era inteiramente destituído do preconceito de cor e raça. A
boa influência dos Roaches, Rodmans, Arnolds, Grinnels e
Robesons não se espalhou por todas as classes de sua
gente. O grande teste para o grau de civilização daquela
comunidade veio quando me propus a trabalhar em meu
próprio ofício, e, então, fui enfática e decididamente
repudiado. Acontece que um Sr. Rodney French, um
cidadão rico e empreendedor, conhecido por suas posições
abolicionistas, estava preparando uma embarcação para
uma caça à baleia, de modo que havia bastante necessidade
de entalhadores e serralheiros. Eu tinha experiência nas
duas atividades, e pedi trabalho ao Sr. French. Ele, sendo
um homem generoso, disse que me empregaria, e que eu
podia ir imediatamente para o navio. Eu obedeci, mas
quando cheguei à plataforma onde os demais entalhadores
estavam trabalhando, me disseram que todos os outros
homens brancos iriam abandonar o trabalho na nave, sem
terminar, se eu desse um único golpe em minhas
talhadeiras. Esse tratamento rude, desumano e egoísta não
era tão chocante e escandaloso para mim na época como
parece ser agora. A escravidão tinha me deixado insensível
às provações, e isso fazia com que os problemas cotidianos
parecessem coisas à toa para mim. Se eu tivesse podido
trabalhar em meu ofício, teria ganho dois dólares por dia.

194
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano

Como um trabalhador normal, só recebia um dólar. A


diferença não era de grande importância para mim, pois, se
não podia ter dois dólares, eu estava satisfeito em ganhar
um; de forma que fui trabalhar para o Sr. French como
trabalhador comum. A consciência de estar livre – não ser
mais escravo – me manteve alegre mesmo com isso e com
muitos casos semelhantes que iriam acontecer comigo em
New Bedford, e em tantos outros lugares do estado livre de
Massachussets. Por exemplo, apesar de as crianças negras
irem à escola, e serem bem tratadas pelos professores, o
Liceu de New Bedford ainda se recusava, até vários anos
depois de eu ter fixado residência na cidade, a permitir
qualquer pessoa negra a assistir as palestras que eram
ministradas em seu auditório. Não foi até que homens
como Charles Sumner, Theodore Parker, Ralph Waldo
Emerson e Horace Mann se recusassem a fazer palestras
em um lugar que tinha essa restrição que o costume foi
abandonado.
Quando percebi que não poderia ganhar a vida em New
Bradford exercendo meu ofício, me preparei para fazer
qualquer tipo de trabalho à mão. Serrei madeira, movi
carvão, cavei porões, tirei lixo de quintais, trabalhei nas
docas, carreguei e descarreguei navios, e limpei as cabines.
Mais tarde consegui trabalho estável na funilaria de
propriedade do Sr. Richmond. Eu lá soprava o fole,
controlava a grua e esvaziava os frascos em que os moldes
eram feitos; às vezes, isso tudo era um trabalho difícil e
pesado. Os artigos produzidos lá se dirigiam principalmente
ao trabalho nos navios, e na estação de pesca a forja

195
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

funcionava dia e noite. Com frequência, eu tinha que


trabalhar duas noites, além de todos os dias de trabalho da
semana. Meu mestre de obras, o Sr. Cobb, era um bom
homem, e mais de uma vez me protegeu do abuso de um
ou mais dos outros empregados. Enquanto estava nessa
situação, tinha pouco tempo para me desenvolver
mentalmente. Trabalho duro, dia e noite, diante de uma
fornalha quente o suficiente para manter o metal correndo
como água deixava a pessoa mais predisposta à ação do que
ao pensamento; ainda assim eu, com frequência, pregava
um jornal em um poste próximo dos foles em que eu ficava
e lia enquanto puxava e comprimia a alavanca que fazia os
foles encherem e esvaziarem. Eu buscava o conhecimento
mesmo em meio a tantas dificuldades, e quando olho para
trás agora, depois de tantos anos, é com um pouco de
complacência e de estupefação que imagino como posso ter
tido tanta perseverança e firmeza na busca de qualquer
coisa que não fosse o pão de cada dia. Eu, com certeza, não
vi nada na conduta daqueles que me cercavam que
inspirasse esse interesse: eles eram devotados
exclusivamente apenas àquelas coisas que faziam com as
mãos. Fico feliz em poder dizer que, durante meu trabalho
naquela forja, nenhuma reclamação jamais foi feita de que
eu não trabalhasse direito. Depois que eu saí, os foles que
eu operava passaram a ser movidos por um motor a vapor.

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197
Leonardo Poglia Vidal (tradução)

SOBRE O TRADUTOR

LEONARDO POGLIA VIDAL é doutorando em Literaturas de Língua


Inglesa pelo Programa de Pós-Graduação da UFRGS. Professor,
quadrinista e ilustrador. Atualmente trabalha com a obra de Alan Moore e
enlouquece a passos lentos com a escrita de sua tese.

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