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répteis
Da Casa
Claudio Angelo
24 de Outubro de 2018 às 17:09
Numa cena do filme Relíquia macabra (1941), o detetive Sam Spade (Humphrey
Bogart) desafia o vilão Kasper Gutman (Sydney Greenstreet) a que o mate, sabendo
que precisa dele para recuperar o precioso falcão maltês. Gutman responde: “Esta,
meu senhor, é uma atitude que demanda o mais delicado julgamento dos dois lados,
porque, como o senhor sabe, no calor da ação os homens tendem a se esquecer do
seu próprio interesse e se deixar levar pelas emoções”.
É difícil imaginar em qual Universo paralelo alguém como Bolsonaro faria um governo
que atendesse aos interesses amplos da população brasileira. Tem-se um arremedo de
programa de governo que o candidato parece não ter coragem — ou capacidade — de
defender num debate público, cujas propostas sobre economia foram terceirizadas a
seu Heidegger (ou Speer) particular, e as outras, loteadas entre generais, pastores
evangélicos e um ator pornô; uma mitomania compulsiva, talvez único aspecto em que
o ex-capitão mereça o apodo que seus seguidores lhe deram; e um total
descompromisso com a coerência. A única coisa coerente ao longo da carreira política
de Bolsonaro tem sido a apologia da violência e da tortura, contra os valores essenciais
do humanismo e da democracia.
Se o período eleitoral for algum guia, a eleição de Bolsonaro tornará o Brasil um país
mais conturbado e mais difícil de viver. Vide o surto coletivo de sociopatia que sua
dianteira no primeiro turno parece ter disparado, no qual comportamentos
evidentemente inaceitáveis – como, digamos, surrar pessoas de vermelho ou matar um
idoso só porque ele era eleitor do Lula – passaram a ser normalizados por uma parcela
da população. Como alguém assim está para ganhar de lavada uma eleição, ainda
mais uma tão crucial para o futuro do país como a de 2018?
Parte da resposta está nos nossos ancestrais répteis (sim, caro general Aléssio, nós
todos descendemos de répteis; durma com esta informação). Eles nos legaram um
conjunto de partes primitivas do cérebro, como a amígdala. Parecida com uma
amêndoa (daí o nome), essa estrutura na base do sistema nervoso está envolvida no
medo e em respostas instintivas como fugir ou lutar. A amígdala entra em ação diante
de algum agente externo que possa representar uma ameaça e que exija do corpo uma
resposta muito rápida. São casos em que não há tempo para o lento processamento do
córtex pré-frontal, seção do cérebro envolvida no raciocínio e do planejamento de longo
prazo e que os humanos desenvolveram mais do que ninguém. A amígdala nos faz
atirar primeiro e perguntar depois.
O discurso do candidato do PSL tem uma conexão direta com a amígdala, mas
também com outros circuitos cerebrais mais sofisticados envolvidos em emoções.
Bolsonaro explora de forma muito competente duas delas: o medo e a vingança. Em
ambos os casos, promete ao eleitor (e ao mercado) alívio imediato e soluções simples.
Tem medo da violência? Vamos te dar uma arma para se defender. Tem medo das
multas trabalhistas e ambientais? Vamos acabar com o Ibama e com os fiscais do
trabalho e você poderá desmatar à vontade e ter quantos escravos quiser em sua
fazenda. Tem medo da dissolução da família? Vamos dar um jeito nesses viados e
nessas sapatas. Quer dar o troco na esquerda corrupta que quebrou o país? Vamos
“fuzilar essa petralhada”.
O cientista canadense ilustra o preço da vingança com um cálculo feito por ocasião da
Guerra das Malvinas: o dinheiro que o Reino Unido gastou para retomar da Argentina
aquele pedaço de nada no Atlântico Sul teria sido suficiente para dar a cada britânico
habitante das ilhas um castelo na Escócia e uma pensão vitalícia. Ocorre que os brios
nacionalistas foram feridos pelo ato da ditadura argentina. A própria coesão do grupo
estava sob ameaça. A resposta extrema – uma guerra cara e fútil que ceifou vidas
britânicas – serviu como mecanismo de dissuasão. Nunca mais a Argentina ameaçou
retomar as hoje ilhas Falklands.
Ocorre que nem tudo que a evolução nos legou funciona bem para a sociedade
humana atual: alguns comportamentos são claramente “maladaptativos”, ou seja,
fizeram sentido em algum momento do passado e hoje mais atrapalham. No limite, o
exercício da revanche, ao desligar temporariamente os controles do córtex pré-frontal
dos cidadãos e impedi-los de pensar nas consequências de longo prazo, pode
prejudicar seriamente o grupo. Daí a ponderação do vilão Kasper Gutman no filme
baseado na obra de Dashiell Hammett.
Nossas emoções reptilianas são péssimas conselheiras para decisões que envolvem
alongar o olhar e pensar em múltiplas consequências, como a que tomaremos no
próximo domingo. Para fazer o PT pagar por seus crimes e erros, uma enorme parcela
da população brasileira, incitada por Bolsonaro e sua guerrilha digital, parece disposta
a abrir mão de bem mais do que um castelo e uma pensão vitalícia. Duzentas e seis
milhões de pessoas arcarão com as consequências nos próximos anos.
***
Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de
S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific
American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados
Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte,
sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria
Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.