Inicialmente, antes de analisarmos como narrativas literárias e/ou fílmicas abordam
questões supostamente contemporâneas, cabe responder às perguntas que o filósofo italiano Giorgio Agamben (2008) também tentou elucidar: “de quem e do que somos contemporâneos?” e, antes de tudo, “o que significa ser contemporâneo?”. Como é sabido, o adjetivo “contemporâneo” significa aquilo que ocorre ou existe ao mesmo tempo, e, portanto, somos sempre contemporâneos a uma determinada época. E, no entanto, o primeiro autor citado por Agamben é o Nietzsche das Considerações intempestivas, do qual Barthes concluiu que “o contemporâneo é o intempestivo”. Ora, Agamben afirma, a partir de Nietzsche e Barthes, que verdadeiramente contemporâneo é aquele que estabelece uma relação de descoincidência e de anacronismo com o seu tempo. Pois, se não houvesse distanciamento, o contemporâneo não enxergaria a sua época. Agamben ressalta do mesmo modo que a contemporaneidade é o “não mais” e o “ainda não”, ou seja, é um limiar entre dois tempos, entre o que passou e o que está para se realizar. Assim, caberia ao contemporâneo apreender o devir do seu tempo, neutralizar as luzes e buscar a escuridão de sua época amórfica. O que, por último, significaria, ainda segundo Agamben, que o contemporâneo rompe com a concepção de tempo linear da história positivista, pois ao colocar o tempo vivido em descoincidência com o tempo cronológico, o contemporâneo encontra marcas do passado no presente, isto é, relaciona outros tempos com o seu presente, e a partir desta leitura inédita da história, pode vislumbrar um porvir diferente. Assim, partiremos dessa definição conceitual para mostrar como as obras literárias de Marçal de Aquino e Ivana Arruda Leite, além da narrativa fílmica de Bong Joon-Ho, fazem emergir vozes que levantam questões da nossa contemporaneidade. No conto “Sábado”, de Marçal de Aquino, é abordado o racismo velado na sociedade brasileira, pois ao narrar uma situação do cotidiano, um almoço de família classe média numa manhã de sábado, cujo intuito é que os pais conheçam o namorado de Flávia, Frederico, um rapaz educado, que trabalha em ONG e pretende cursar medicina, nós, os leitores, criamos uma expectativa positiva em relação à aprovação dos pais, mas Helena, a irmã caçula, bastante esperta, vigia os seus pais e descobre que ambos se preocupam com a cor da pele de Frederico, que nem é negro, nas palavras da mãe, ele é “mulato”, e ainda assim, para ambos, sobretudo para o pai, a sociedade brasileira do século XXI ainda nutre um racismo velado e eles temem que a filha seja mal vista por isso. Já no conto “Mãe, o cacete”, de Ivana Arruda Leite, a figura da personagem mãe é completamente diferente da mãe de Flávia, visto que esta é descrita como um “monstro”, que nunca cuidou direito da filha, por falta de tempo. Assim, essa filha cresce odiando a mãe, até que um dia, um namorado a questiona sobre a figura paterna, e não há referente para esta função. Dessa forma, outro problema social é desnudado: a alienação parental. Em Parasita (2019), premiado filme de Bong Joon-Ho, evidencia-se também uma mazela contemporânea, que não se limita unicamente ao contexto coreano, visto que a desigualdade social parece afetar todos os países capitalistas. No filme, a família Kim mora numa espécie de porão, que contrasta nitidamente com a casa da família Park; projetada por um arquiteto renomado, a casa promete um modo de vida desejado por todas as classes. Por isso, quando os Kim lá vão trabalhar, começam a “parasitar” o espaço, demonstrando, assim, que a ascensão social não ocorre por meios honestos. Voltando à querela de Agamben, é possível afirmar que as obras, analisadas brevemente aqui, posicionam-se contra o seu tempo, fazendo emergir vozes que denunciam as marcas de um passado que continua passando pelo presente; tais marcas podem ser descritas em termos de racismo, alienação parental e desigualdade social, temas que estão à margem dos meios de comunicação de massa, visto que habitam as trevas do nosso tempo, que como demonstrado, cabe aos contemporâneos neutralizar as luzes e confrontar a escuridão do devir histórico.