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Reflexões sobre (fazer) um arquivo do conhecimento

gramatical em História das Ideias Linguísticas


Michel Marques de Faria (UNICAMP – Bolsista CNPq de Mestrado) | Orientadora: Ana Cláudia Fernandes Ferreira

INTRODUÇÃO O ARQUIVO EM HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS


► O presente trabalho parte de reflexões iniciais que empreendi para pensar o que é ► É possível apontar que entendemos o arquivo enquanto uma memória
(fazer) um arquivo em História das Ideias Linguísticas (HIL). São reflexões que vão institucionalizada, ou seja, o arquivo como aquilo que “congela, que organiza,
ao encontro de meu objeto de pesquisa no mestrado: a compreensão da historicidade que distribui sentidos” (ORLANDI, 2003, p. 15) e que o ato de constituir
dos saberes linguísticos produzidos sobre o processo de formação de palavras com arquivo vincula-se à prática de regulação administrativa, jurídica, econômica e
os sufixos -eiro e -ista a partir da montagem de um arquivo de gramáticas de autores política que é promovida pelo Estado, é imprescindível dizer que esse arquivo
brasileiros, publicadas entre o século XIX e início do século XX. É o que intitulo de funciona, então, dentro de uma instituição (espaço de constituição dos
arquivo do conhecimento gramatical. Por isso, a reboque dessa questão do arquivo conhecimentos linguísticos e de relação com a constituição de uma língua e
em História das ideias Linguísticas, em que busco compreender como a noção de que atua na legitimação e na unidade, linearizando e cristalizando o
arquivo ganha forma na História das Ideias Linguísticas (em sua singularização) no conhecimento).
Brasil, vem uma outra reflexão: pensar o que é (e por que) montar um arquivo de
► O que é interessante pontuar sobre essa questão é que o ato de construir
gramáticas.
arquivo, atua na desestabilização da unidade dessa memória. Sobre isso, Nunes
O ARQUIVO: QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS (2008b) muito bem aponta que “a memória institucionalizada tem uma história
e que ela é sustentada por certas condições que, quando deixam de vigorar,
► O trabalho com arquivo é amplo e penetra em muitas áreas do conhecimento. Em abalam a estabilidade do arquivo” (p. 90). Assim, é válido apontar que se o
cada área científica, seja na própria arquivologia ou na história, ou na filosofia ou na arquivo – enquanto memória institucional – seleciona, organiza, normatiza e
sociologia, etc. o arquivo é concebido de forma diferente. Assim, dentro das ciências estabiliza, somos convidados por Pêcheux para desestabilizá-lo.
da linguagem, não é diferente. Ao tomar o arquivo para si, enquanto objeto teórico,
► Nas palavras de Guillamou e Maldidier (2016[1990]), “o arquivo “exibe”,
esta acaba por compreender o arquivo de uma determinada posição e assim, criar o
de algum modo, um sentido determinado; ele introduz restrições na descrição
próprio do arquivo dentro dos estudos da linguagem. Dos (inúmeros) trabalhos
do semantismo dos enunciados” (p. 238). Por isso, para desestabilizá-lo é
desenvolvidos tomando a questão do arquivo, dois textos são fundamentais para
necessário realizar a construção de um arquivo cujos gestos vão na direção da
início dessa reflexão, são eles: “Ler o Arquivo Hoje” de M. Pêcheux (2014[1982]) e
heterogeneidade, da polissemia, da historicidade material, da política, da
“Discurso e arquivo. A análise do discurso no lado da História” de Guillaumou e
ideologia dos gestos de leitura. Outrossim, construir um arquivo (afinal, ele
Maldidier (2014 [1986]). São, pois, escritos fundamentais para a compreensão desse
nunca está dado...) incide sobre a estabilidade dessa memória congelada, pois é
sab(or)er de arquivo.
um ato ímpar do analista em organizá-lo de uma determinada maneira e não de
► Uma definição ampla do que é o arquivo nos é dada por Pêcheux (2014[1982]) outra (e essa organização, cabe dizer, não é o simples acúmulo de textos, mas
ao dizer que o arquivo é entendido como “campo de documentos pertinentes e sim ir...) em busca de respostas às suas perguntas (o arquivo não fala, ele
disponíveis sobre uma questão” (p. 59). O arquivo, então, pode ser múltiplas ordens: responde... e, diria eu, às vezes ele sussurra ).
física ou digital, coletiva ou individual (só para exemplificar algumas
► Penso, então, que é nesse sentido, o da desestabilização, que interessa
possibilidades). Memorandos emitidos por uma universidade, por exemplo, atas
pensar o arquivo, melhor dizendo, a montagem de arquivo ao campo da
departamentais e fichas de inscrição podem ser componentes de um arquivo. O
História das Ideias Linguísticas. Se, nos tripés apresentados, a língua é posta
mesmo ocorre para um banco de dados. Um (mesmo) arquivo pode ser reunido para
em evidencia, seja como uma questão de estado, seja como o cidadão que por
formar a memória de uma instituição (e aqui temos o seu funcionamento em uma
ela é construído, então importa à HIL o fato de que montar um arquivo e
ordem coletiva) bem como, a partir de determinados critérios, reunido para compor
organizá-lo de x e y maneiras para que ele responda (ou sussurre) nossas
um objeto de análise de um pesquisador (e aqui temos ele funcionamento em uma
perguntas, implica em desestabilizar não apenas o arquivo, como também a
ordem individual).
própria noção de arquivo.
► Com Guillamou e Maldidier (2014 [1986]), temos que o arquivo “nunca é dado a
priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento é opaco” (p. 170, itálicos dos CONCLUSÃO PROVISÓRIA: POR UM ARQUIVO DO
autores). O trabalho de leitura de um arquivo reside, então, que ele não está dado e, CONHECIMENTO GRAMATICAL
por isso, não é um simples ato de documentação (no caso específico do presente
► Montar um arquivo de gramáticas (com a reunião de obras publicadas do
trabalho, o que é pensado é a documentação de gramáticas). Do contrário, o trabalho
século XIX ao início do século XX) implica em compreender o modo como esse
de leitura desse arquivo permitirá trazer “à tona dispositivos e configurações
saber, no caso de nossa pesquisa, o saber da formação de palavras por meio dos
significantes” (GUILHAMOU; MALDIDIER, 2014 [1986], p. 170) ao considerar a
sufixos -eiro e -ista, foi construído e, mais ainda, como ele foi documentado .
relação entre língua e discurso em sua historicidade (não entrarei, agora, nessa
Tendo isso em vista, a construção e a leitura de um arquivo possibilitam
relação. Trarei à baila a questão na próxima seção). O que é importante pontuar é
compreender como o saber se constrói a partir do que, dentro do campo da
que no gesto de leitura empreendido no arquivo, sobressai-se o fato de que “para que
História das Ideias Linguísticas, S. Auroux, por exemplo, propõe como horizonte
a língua faça sentido, é preciso que a história intervenha, pelo equívoco, pela
de retrospecção: a memória, a história (e aqui relembro Roudinesco (2006), para
opacidade, pela espessura material do significante” (ORLANDI, 2013, p. 47). Ou
quem, conforme apontado anteriormente, “não há como não admitir que o
seja, é pensar que aquilo que está arquivado significa, mas significa pelas redes de
arquivo (destruído, presente, excessivo ou apagado) é a condição da história” (p.
sentido que a história faz valer.
9)). Possibilitam, ainda, compreender como o saber (em sua direção e seu
► Assim, trabalhar com o arquivo exige que se vá em busca de conhecer o/um sentido), se constrói e se funda em questões e compreensões disponíveis em um
documento e entender sua composição, o que é interessante, pois se de minha dado horizonte de retrospecção, que não só sustenta como também atua na
posição teórica, considero que o arquivo nunca é dado, então “ele não se mostra. É legitimação deste saber. O horizonte de retrospecção é, pois, o que nos abre
preciso montá-lo” (FILHO, 2018, p.31). Destarte, o que penso ser importante campos, horizontes, possibilidades. Assim, este arquivo do conhecimento
ressaltar das reflexões teóricas empreendidas na discussão dos textos de M. Pêcheux gramatical, que proponho, é, portanto, a busca da construção discursiva, em
e de Guillamou e Maldidier, é que, ao realizar a montagem de um arquivo, esse ato autores distintos, em diferentes épocas, a partir de filiações teóricas outras, desse
não ocorre fora de certas condições. É um ato ímpar do analista que, ao montá-lo, conhecimento. Em suma, o gesto de montar um arquivo permite compreender
estipulará um determinado número de critérios que vão seguir certas orientações em filiações e configurações, memória e atualidade.
detrimento de outras. É o que permite as possibilidades múltiplas para Guillamou e
Maldidier (2014 [1986]) ou a pluralidade dos gestos de leitura para Pêcheux
(2014[1982]). É o que faz que, de um mesmo arquivo, diferentes leituras surjam. REFERÊNCIAS
AUROUX, Sylvain. [1992] A revolução tecnológica da gramatização, Campinas, São Paulo: Unicamp, 2014.
FILHO, Fábio Ramos Barbosa. O discurso antiafricanismo na Bahia do século XIX. São Carlos : Pedro & João Editores, 2018.
GUILHAUMOU, Jacques; MALDIDIER, Denise. [1994] Discurso e arquivo. A análise do discurso no lado da História. In: ORLANDI,
Eni P. (Org). Gestos de Leitura : da história no discurso. Campinas: ed. da UNICAMP, 2014.
ORLANDI, E. P. (Org.). Para uma enciclopédia da cidade. Campinas: Pontes/Labeurb-Unicamp, 2003.
ORLANDI, Eni P. [1999] Análise de Discurso : Princípios e Procedimentos, SP Campinas: Pontes, 2013.
_____. [1990] Novos gestos de leitura ou o ponto de vista da Análise de Discurso sobre o sentido. In: GUILHAUMOU, Jacques;
MALDIDIER, Denise; ROBIN, Régine. Discurso e arquivo : Experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora Unicamp,
2016.
______. [1994] Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni P. (Org). Gestos de Leitura : da história no discurso. Campinas: ed. da
UNICAMP, 2014.
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