Você está na página 1de 265

ANAIS - VI COLÓQUIO DE HISTÓRIA E IMAGENS

Corpo Editorial/ Organizadoras


Heloisa Selma Fernandes Capel
Anna Paula Teixeira Daher
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Realização
GEHIM – Grupo de Estudos de História e Imagens

Apoio
EMAC – Escola de Música e Artes Cênicas/UFG
LUPPA – Laboratório de Produção e Pesquisa Audiovisual/UEG
TECCER – Progr. de Pós-Graduação em Territ. e Expr. Culturais do Cerrado/UEG
PPGH – Programa de Pós-Graduação em História/UFG

Comissão Executiva
Ademir Luiz da Silva
Arnaldo Salustiano
Anna Paula Teixeira Daher
Gyovana de Castro Carneiro
Heloisa Selma Fernandes Capel
Jacqueline Siqueira Vigário
Othaniel Alcântara
Sílvia Zeferina de Faria

ISSN
2447-6676

Periodicidade
Anual
Idiomas
Português/Francês/ Italiano/ Espanhol

ANO
2016

Universidade Federal de Goiás


Campus II – Samambaia
Faculdade de História

1
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Caixa Postal 131


CEP 74001-970

TEXTOS COMPLETOS
ANA RITA VIDICA - TEMPORALIDADES CRUZADAS: UM OLHAR-ANDANTE
POR OBRAS DE INTERVENÇÃO URBANA COM O USO DA FOTOGRAFIA

ANA SOFIA ALENCAR LAMBERT - O MENOR EM SITUAÇÃO DE RUA E


VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: UM ESTUDO À LUZ DE GLAUCO E SEU
PERSONAGEM FAQUINHA
ANNA MARIA NUNES - IMAGENS EM DISPUTA: O DISCURSO TRADICIONAL
FRENTE AO AGRONEGÓCIO
ANNA PAULA TEIXEIRA DAHER - SENSIBILIDADES OITOCENTISTAS NAS
FIGURAS FEMININAS DE JOSÉ FERRAZ DE ALMEIDA JR.
CRISTINA SUSIGAN - MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA: A MONA LISA DO
NORTE DE JOHANNES VERMEER
DANIELA CRISTINA PACHECO - REPRESENTAÇÕES MITO-SIMBÓLICAS
DA DEUSA ÍSIS: A REDENÇÃO PELO SAGRADO FEMININO
GLAYCE ROCHA SANTOS COIMBRA - RITUAIS DE MORTE: ESTUDOS DOS
CEMITÉRIOS NA REGIÃO DE BARRO ALTO NO SERTÃO DA BAHIA
GIVALDO FERREIRA CORSINO JR. - OS EX-VOTOS PICTÓRICOS DO
SANTUÁRIO DE TRINDADE-GOIÁS: OBJETOS ESTÉTICOS DA MEMÓRIA,
ÍNDICES DO IMAGINÁRIO E TESTEMUNHOS DE FÉ
GYOVANA DE CASTRO CARNEIRO - A CHEGADA DA CORTE
PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO E A OBRA DE PE. JOSÉ MAURICIO
NUNES GARCIA: RECEPÇÃO, ADAPTAÇÃO E EXCLUSÃO
HELOISA SELMA FERNANDES CAPEL - REPRESENTAÇÕES MITO-
SIMBÓLICAS DA DEUSA ÍSIS: A REDENÇÃO PELO SAGRADO FEMININO
INGLAS FERREIRA NEIVA DOS SANTOS - A CENA CULTURAL EM
GOIÂNIA E A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS DA MÚSICA REGIONAL

2
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

JACQUELINE SIQUEIRA VIGÁRIO - ENTRE A ESTÉTICA E A PREGAÇÃO: O


SIGNIFICADO DA SOBREVIVÊNCIA DA FORMA SACRA EM CONFALONI
JOSÉ LOURES - CASAS MÍSTICAS: A ORIGEM DOS JOGOS DE TABULEIRO
MARIA CLARA CAPEL DE ATAÍDES - A MULHER SEM ROSTO: AUSÊNCIAS
NO DIREITO E A IDENTIDADE NEGADA EM A HORA DA ESTRELA
MARIANA BERNARDES - DE WALTER BENJAMIN AOS MANUSCRITOS
BARROCOS DE GOIÁS NO SÉCULO XVIII: O CONCEITO DE ESCRITA-
IMAGEM
MAURO ALVES PIRES - IMAGENS NA PRIMEIRA REPUBLICA: ESCOLA DE
APRENDIZES ARTÍFICES E O MODELO DE GRUPOS ESCOLARES
OTHANIEL PEREIRA DE ALCÂNTARA JR. - IMAGENS DA ORQUESTRA
FILARMÔNICA EM GOIÁS: UMA BREVE RETROSPECTIVA
RAQUEL MIRANDA BARBOSA - A CIDADE-COTIDIANO: MODOS DE VER AS
“ARTES DO FAZER” NA CIDADE DE GOIÁS NO SÉCULO XIX
ROBERTA DO CARMO RIBEIRO - UM INTELECTUAL JUDEU ENTRE A
CIDADE REAL E A CIDADE IDEAL: CINEMA E POLÍTICAS PÚBLICAS NA
CRIAÇÃO DA NOVA IORQUE DE WOODY ALLEN (1977-2009)
SILVIA ZEFERINA DE FARIA - TRADIÇÃO E PRESERVACIONISMO NA
PRODUÇÃO LITERÁRIA DE OCTO MARQUES (1915-1988)

3
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

TEMPORALIDADES CRUZADAS:
UM OLHAR-ANDANTE POR OBRAS DE INTERVENÇÃO
URBANA COM O USO DA FOTOGRAFIA

Ana Rita Vidica Fernandes1

Comecei esta pesquisa com um objetivo aparentemente claro e definido,


discutir sobre as intervenções urbanas com o uso da fotografia e sua relação com a arte
contemporânea. Parti, portanto, de um pensamento dado, em que estas intervenções
participavam de um fazer artístico contemporâneo. Por isso, o meu trabalho, caminhou,
em um primeiro momento, por um processo de recognição, percebendo nas obras,
“Imagens Posteriores” (2012-2013) de Patricia Gouvêa, “Giganto” (2009-2013) de
Raquel Brust e “Polaroides (in)visíveis” (2005-2011) de Tom Lisboa, os fundamentos
da fotografia contemporânea e seus desdobramentos no espaço urbano.
Entretanto, ao olhá-las, a seguinte questão surgiu: como se articulam os
cruzamentos de temporalidades (passado, presente e futuro) nas intervenções urbanas,
especificamente nestas três obras? Esta passa a ser a pergunta que motiva a pesquisa que
se insere na perspectiva de refletir sobre o tempo, tendo como foco de análise três
intervenções artísticas urbanas que se utilizam da fotografia.
Embora, em um primeiro momento, a minha busca estivesse pautada por
algo dado à priori, a medida que fui caminhando percebi sua gradativa perda de força,
com a emersão do cruzamento de temporalidades, ou seja, uma mistura de passado,
presente e futuro que saltava das obras sem que tivesse controle disso, o que me fez
lembrar da intervenção urbana com o uso da fotografia da minha aluna Brunna 2,
momento em que fiz os primeiros questionamentos sobre o tempo na intervenção
urbana.

1
Doutoranda do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Mestre em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG e Docente do Curso de Comunicação
Social da UFG.
2
A intervenção urbana “Lembrança e esquecimento: memórias de Goiânia”, de autoria de Brunna
Stéphane Pains Santos foi realizada no dia 28 de outubro de 2010. Ela foi desenvolvida como parte do
Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da
Universidade Federal de Goiás, de título “A (re)criação do espaço na metrópole: uma proposta de
intervenção no centro de Goiânia”, orientado por mim.

4
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Percebi que a pesquisa deixara de se configurar como pensamento, para


alçar o “ato de pensar”. Isso se alinha à proposta de Deleuze (1987), na qual o
pensamento pode se constituir em uma potência criadora realizada no ato de pensar. O
autor (2009) propõe uma diferenciação entre o pensamento e o ato de pensar. Enquanto
o primeiro se relaciona à imagem moral, ou ao pensamento representacional ou ao
modelo da representação, originado em Platão3, que propunha uma recognição ou
identificação, o segundo se constitui em uma nova imagem do pensamento, ou seja, um
pensamento sem imagem, destituído de pressupostos, relacionado à criação e gerado no
encontro com os “signos”.
Os signos, para Deleuze (1987), são portadores de mundos particulares que
serão vivenciados pelo sujeito, se constituem em “alguma coisa que provoca uma
violência”, geradora do ato de pensar, que se dá de modo inventivo. Embora o pensador
parta de uma “decisão premeditada” (1987, p. 88) não se atinge a verdade 4 de modo
voluntário pela recognição, mas por meio do objeto de um aprendizado, sempre
involuntário, atingindo o sujeito pensador independente da sua vontade.
O aprendizado é a interpretação dos signos que se encontram no caminho,
que se dá de modo parcial e criativo, uma vez que o ato de pensar está implicado em um
mundo ou mundos específicos dos quais o sujeito faz parte no momento do encontro e
se está imbuído no modo que se aprende.
A violência se deu em mim a partir do momento no qual estabeleci contato
com as fontes ligadas às três obras citadas. Para ser mais precisa, isso ocorreu no ato de
agrupar, relembrar como tive contato com cada uma das obras escolhidas e perceber
aquilo que começava a “saltar” das obras de modo involuntário, fazendo com que cada
documento se comportasse como signo, ou seja, violentando-me a cada olhar-andar5.

3
O platonismo está no domínio da representação, ligados às cópias e ícones, ou seja, uma relação
intrínseca a um modelo. A dialética platônica é fundada na rivalidade, pela distinção entre o verdadeiro e
o falso; essência e aparência; inteligível e sensível; original e cópia; modelo e simulacro (DELEUZE,
2009, p. 260). Para Platão, as cópias ou ícones seriam as boas imagens por serem dotadas de semelhança
enquanto os simulacros seriam más cópias, subersas na dessemelhança (ibid., p. 262).
4
A verdade para Deleuze é diferente de Platão. Para o primeiro, a verdade está fundamentada na
diferença e na parcialidade, ao segundo, vincula-se a uma identidade e universalidade.
5
Esse é o conceito-base desta pesquisa, criado por mim. O olhar-andar vincula-se a um olhar-andante.
Parto da observação das obras de intervenção urbana que, a meu ver, estão fundadas em um modo de
olhar que se dá com o corpo em movimento. Esse modo de olhar se remete à relação que se estabelece
com a obra de intervenção urbana, tanto do transeunte quanto do artista. Quanto a obra é colocada na rua,
ela passa a ser olhada com o corpo do transeunte em movimento e que foi criada, anteriormente, pelo
movimento do corpo do artista se movimentando pelas ruas da cidade.

5
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

As obras chegaram até mim por meios diversos. O contato com a obra
“Imagens Posteriores” se deu a partir de um email recebido do lançamento do livro da
mesma, em Brasília, em 2012. O “Giganto” chegou pelo comentário de uma amiga que
tinha visto uma matéria sobre o projeto em São Paulo, em 2013. E, as “Polaroides
(in)visíveis” de uma rememoração do contato que tive com a obra em 2006. A decisão
de trabalhar com as três se deu no encontro dos artistas na exposição “Geração 00: a
nova fotografia brasileira”6.
Percebi que a decisão pelo encontro dos artistas em uma exposição que se
propunha a pensar a fotografia contemporânea estava pautada por um pensamento
representacional, vez que pensava a identificação das obras com a contemporaneidade
fotográfica. Entretanto, ao percorrer os documentos por meios ligados à violência,
foram trazidas questões além do que eu buscava, o que possibilitou o surgimento de um
ato de pensar, um criar que se deu no aprendizado por meio de um olhar-andante.
Chamo de olhar-andante um modo de olhar que se dá no ato de percorrer, de
pensar, de criar a partir dos documentos ou das obras, ocorrendo não só em movimento,
como também no tempo múltiplo e plural que se desdobra a cada momento.
A variação do tempo, para Deleuze (1987), se relaciona com os signos. Ele
coloca que existem quatro signos; os “mundanos”, os “amorosos”, os “sensíveis” e os
“artísticos” que se coadunam, respectivamente, “ao tempo que se perde”, “tempo
perdido”, “tempo que se redescobre” e “tempo absoluto” (original ou complicado).
A correlação entre signo e tempo ocorre por relação de predominância, visto
que cada signo participa do significado de outros. Além da aproximação temporal, cada
signo mobiliza uma faculdade. Os signos mundanos se alinham à percepção, os
amorosos à memória voluntária, os sensíveis à memória involuntária e os artísticos ao
pensamento ativado pelo ato de pensar (ou criar) que envolve as outras três formas.
Percebo que esse olhar-andante ativa as quatro categorias de signo
apontadas por Deleuze (1987), se constintuindo em um fundamento para o meu modo
de acessar essas obras, através dos documentos, mas também faz parte do processo de

6
A exposição “Geração 00: a nova fotografia brasileira” foi organizada pelo curador Eder Chiodetto,
realizada de 16 de abril a 12 de junho de 2011, com o objetivo de mapear as linhas de força da
fotografia brasileira contemporânea da primeira década do século XXI, a partir de obras realizadas de
2001 a 2010. A identificação dessas “linhas de força” culminou na divisão em dois blocos “Limites,
Metalinguagem” e “Documental Imaginário”, apontando as potencialidades da fotografia contemporânea
que aponta às misturas de linguagem e mídias e o esfacelamento de entre ficcional e documental. Fonte:
CHIODETTO, Eder (org.). Geração 00: A nova fotografia brasileira. Edições Sesc São Paulo, 2013.

6
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

criação dos artistas e daqueles que têm contato com as obras, os “espectadores” ou
“espectadores-participadores”.
Os signos “mudanos” se dão no próprio percurso que faço pelas fontes,
pelos artistas e pelos transeuntes, respectivamente, através dos percursos feitos nas ruas
e nas obras expostas no espaço urbano como também nos espaços fechados. Eu poderia
fazer uma correlação com o tempo presente, o tempo que se perde, o próprio ato da ação
de andar, do contato com a obra ou com as fontes.
Os signos “amorosos” se vinculam às memórias voluntárias que surgem
durante o processo, ao rememorar, o próprio contato com as obras, as relações com
outras obras de arte, gerando um pensar anacrônico. Quando Patricia rememora viagens
que geraram as “Imagens Posteriores”, Raquel incita a memória dos seus retratados, ou,
ainda, Tom ao suscitar memórias de lugares da cidade nas “polaroides de interpretação”.
Dessas memórias voluntárias relaciono o passado a um tempo perdido.
Os signos “sensíveis” se alinham à memória involuntária, às sensações que
surgem de forma independente. É o delinear da pesquisa se formando a cada olhar-
andar. Para os artistas são sensações surgidas no processo de criação das obras. E, aos
transeuntes, são as sensações deflagradas ao andar-olhar pelas obras, possibilitando uma
redescoberta do tempo e da cidade, o que pode constituir inclusive em uma ação de
intervenção nas obras. Dessa maneira, o futuro se faz presente por um tempo que se
redescobre.
Por último, mas de modo a englobar, de certo modo, os outros três, os
signos “artísticos” que geram a multiplicidade temporal, a mistura entre os tempos, o
que ele chama de tempo “complicado”. Não se sabe ao certo onde começa um e termina
o outro.
Essa “complicação” temporal, imbuída pelas dimensões heterogêneas dos
tempos presente, passado e futuro, adensam essa mistura, a meu ver, no processo
constante de atualização e virtualização, exposto por Deleuze (2009). O atual se
constitui na presentificação de um ponto, na própria ideia de acontecimento 7 da

7
Considero que as intervenções urbanas são “acontecimentos”, tomando como base a noção de Foucault,
como a irrupção de uma singularidade única e aguda que se dá no momento de sua produção. Em uma
intervenção urbana, o acontecimento se dá no ato de colocação da obra na rua, em cada olhar de quem
passa pela obra e em desdobramentos de ações decorrentes da presença da obra na rua.

7
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

intervenção. É o virtual que não se opõe ao real, mas coloca as obras e fontes em
constante estado de “devir”8.
A percepção dessa multiplicidade temporal chegou a mim como uma
violência, operada por meio do olhar-andante pelas fontes. Considero, portanto, que elas
se constituem como “documentos-signo”.
Desse modo, penso as fontes não só como documentos, conforme
proposição de Paul Veyne (1971) e Le Goff (2003), mas também como signos, uma vez
que me possibilitam o ato de pensar trazendo à tona um processo de criação que se dá
de modo involuntário.
Veyne aponta a mudança trazida pela Escola dos Annales9, que abre à
possibilidade de buscar o “não-acontecimental”, ou seja, “os acontecimentos ainda não
saudados como tais” (1971, p. 30), abrangendo, por isso, o fato histórico como uma
construção que se daria por meio dos indícios, os documentos, que são também
construções humanas.
Le Goff (2003)10 colocará que os documentos são mais do que
construções, são monumentos, uma vez que há uma intenção por trás dos mesmos para
que se “conte uma determinada” história. Ele propõe uma crítica ao documento 11, ou
seja, à concepção do documento enquanto monumento, que é o resultado das relações
de poder existentes na sociedade, ou seja, sempre revestidos de intencionalidades, por
isso a necessidade do historiador desmontá-lo, problematizá-lo (LE GOFF, 2003, p.

8
Para Deleuze “devir” é a propriedade de esquivar-se do presente, uma vez que não distingue o antes do
depois, o passado do futuro (2009, p. 1), aquilo que está entre dois, que emerge em sua multiplicidade.
Platão fazia a distinção dessas duas dimensões. Já o “devir” deleuzeano é ilimitado, matéria do simulacro,
contestando tanto o modelo quanto a cópia (ibid., p. 2).
9
A Escola dos Annales foi inaugurada em 1929, no período entre-guerras, propiciando uma revisão da
teoria da história e da historiografia, contrapondo-se à Escola Positivista do fim do séc. XIX e início do
séc. XX em que o documento é sinônimo de texto (LE GOFF, 2003, p. 527). Além disso, combate uma
história narrativa e do acontecimento e exalta uma “historiografia do problema”.
10
No texto “Documento/Monumento”, Le Goff, historiador francês da ‘Escola dos Annales, analisa o
processo de institucionalização dos monumentos e dos documentos, como fontes pela historiografia e
discute a questão do próprio objeto da História. Inicialmente, ele recupera o conceito tradicional de
monumento e documento. Monumento em latim significa “fazer, “recordar, “avisar”, “iluminar”,
“instruir”, uma herança do passado. Enquanto a palavra “documento” tem um sentido de “prova”, de
“ensino”. Para a história positivista, o documento, fundamentalmente escrito, é o fundamento para o fato
histórico, mesmo que se associe à escolha do historiador. Com isso, o termo “monumento” usado para
grandes coleções de documentos”. No século XX, ao que ele chamou de “Revolução documental”, com a
História Nova há uma ampliação da concepção de documento que deixa de ser somente o oficial e escrito,
possibilitando uma nova unidade de informação, cujo dado leva a uma série e a uma história descontínua.
11
Essa crítica se dá desde a primeira geração da Escola dos Annales com Lucien Febvre e Marc Bloch,
alicerçado na ideia de que o historiador deve interrogar o documento. Nesse sentido, Bloch (2001, p. 67)
expõe que os problemas devem ser formulados de modo correto para que haja um entendimento do
passado, olhando-se no presente.

8
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

538). Este autor propõe, portanto, uma postura crítica diante dos
documentos/monumentos, o que pressupõe olhá-los com objetivos claros buscando-se
respostas às questões colocadas aos mesmos.
Assim como Le Goff, acredito que os documentos não sejam
“inocentes”, uma vez que são construções humanas e devem ser problematizados.
Contudo, fica subjacente na sua proposta a busca por um problema, algo dado a priori,
no qual busca-se a concordância ou discordância, ou seja, uma atividade contemplativa
ligada à recognição, um pensamento representacional.
Não perco de vista esta montagem feita pelo pesquisador ao aproximar
documentos a partir de um questionamento. Entretanto, penso que esta questão com o
qual se olha o documento não é um fim em si, mas se constitui em um pontapé inicial
para que esse de algum modo, também olhe de volta, trazendo outras questões que não
foram, a princípio, pensadas por mim, fazendo surgir algo, de modo involuntário, que
me atravessa e me violenta, como na acepção de signo de Deleuze (1987). Por isso,
proponho a denominação “documentos-signo”12 às fontes visuais, textuais e orais,
relativas às três obras já citadas, que constituem esta pesquisa.
Na verdade, a própria “escolha” das três obras, a meu ver, se deu pelo
princípio do signo, tendo chegado a mim de forma violenta, independente da minha
vontade, como se elas tivessem me escolhido. Como as obras não estão mais no espaço

12
Os documentos-signo que constituem esta pesquisa são: 1) Obra “Imagens Posteriores”: Site
www.patriciagouvea.com, Caderno de notas de Patricia Gouvêa, Fotografia da obra “Imagens
Posteriores”, Livro “Membranas de luz: os tempos na imagem contemporânea”, Livro “Imagens
Posteriores”, Fotografias dos locais das intervenções realizadas no Rio de Janeiro-RJ, Fortaleza-CE e
Brasília-DF, Álbum das Intervenções na página do facebook, Fotografias do Processo da Colagem,
Retratos Afetivos, Fotografias daqueles que passaram pelas fotografias, Fotografias dos participadores,
Vídeo “Imagens Posteriores – Intervenções urbanas”, Parte da palestra de Patricia Gouvêa no CLIF,
Entrevista realizada com Patricia Gouvêa, Entrevista realizada com Daniel Moskito, Entrevista realizada
com Joaquim Torquato Neto, Textos críticos, Clipping da imprensa. 2) Obra “Giganto”: Site
www.projetogiganto.com.br, Textos do Projeto Giganto escritos por Raquel Brust, Vídeo sobre o Projeto
Giganto, Alguns retratos do Giganto, Processo de colagem, Alguns retratos do Giganto nas ruas,
Catálogos, Página do facebook do Giganto, Fotografias daqueles que passaram pelos Gigantos,
Fotografias dos Gigantos se vendo como Gigantos, Postagens publicadas no facebook, Fotografias, vídeos
e jornais mostrando o uso da imagem no processo de produção dos retratos, Trechos do vídeo do
Programa TED, Entrevista realizada com Raquel Brust, Entrevista realizada com Fabiana Laurindo,
Clipping da imprensa. 3) Obra “Polaroides (in)visíveis: Site www.sintomnizado.com.br, Intervenções de
Maio, Um dos cadernos de anotação de Tom Lisboa, Tipologias textuais das Polaroides (in)visíveis,
Iconografia das Polaroides (in)visíveis, Fotografias das Polaroides (in)visíveis coladas na cidade,
Mapeamento e colagem das polaroides (in)visíveis, Convites, Desdobramentos das Polaroides
(in)visíveis, Guias de visitação, Fotografias feitas a partir das Polaroides (in)visíveis, E-mails e vídeos
ligados à recepção da obra, Fotografias das reações das pessoas com a recolocação de algumas Polaroides
(in)visíveis em Curitiba, Oficina Polaroides (in)visíveis, Questionário realizado por Camila Tedesco,
Entrevista realizada com Tom Lisboa, Parte da palestra de Tom Lisboa no CLIF, Clipping Imprensa.

9
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

público, passo a ir atrás dos indícios, dos documentos os quais percebo que também se
comportam como signos.
Vejo que o tempo é uma questão que perpassa as três obras que, se dá, por
um deslocamento, dos artistas, das obras e das pessoas que passam pelo espaço urbano
que, culmina em um deslocamento temporal. A percepção desse deslocamento temporal
só é perceptível a mim quando me ponho a olhar-andar pelos documentos-signo,
chegando de maneira involuntária.
A partir do momento que adentrei o primeiro documento-signo deles, o site
de cada uma das obras, adentrei mundos através dos links e me fizeram buscar os
artistas e me abriram também a outros documentos-signo, levando ao contato com
personagens das obras e espectadores-participadores.
Passo a olhar cada documento-signo buscando o seu “sentido”13. A medida
que vou adentrando os documentos-signo, descrevendo-os e buscando a relação entre
eles, eles se põem a falar, me coloco a escutá-los e pensar14 sobre eles, culminando na
minha interpretação dos documentos-signo das obras ou o “sentido” atribuído a eles,
que se dá na compreensão da história da arte em suas dimensões, conforme Didi-
Huberman (1998, p. 187), genitiva objetiva, o discurso histórico sobre os objetos de
arte, e genitiva subjetiva, o desenvolvimento dos objetos de arte.
Para isso, esse autor trabalha com três categorias do visual. O visível, a
dúvida da objetividade da visão; o legível, ligado a uma leitura anacrônica e o invisível,
vinculado ao conceito de virtualidade.
A primeira categoria se alinha ao método de Panofsky ligado à leitura pré-
iconográfica, no que tange à descrição da imagem. Contudo, diferente de Panofsky,
Didi-Huberman (2014) propõe uma descrição que coloca questões à imagem, uma vez
que o sujeito está diante dela, possibilitando um confronto entre objetividade e
subjetividade de forma complementar, ou seja, abrindo a uma dialética que, na
perspectiva do autor, seria a abertura da dialetização da imagem e do olhar.

13
Deleuze expõe que todo signo pressupõe um sentido, que precisa ser escavado, que se vincula a
associações subjetivas desenvolvidas pelo olhar do sujeito. Esse olhar não parte de um pressuposto, mas é
produzido no ato de pensar quando sofre violência dos signos, no caso, dos documentos-signo.
14
Na perspectiva de um “ato de pensar” conforme Deleuze (1987).

10
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Dessa forma, embora o visível de algum modo se volte à iconografia, há


uma crítica à separação sujeito-objeto15 e também à restrição desta metolodogia de ver a
imagem somente pela sua forma, o seu visível. Com isso, essa categoria, por Didi-
Huberman, se dá de modo a questionar o que se vê, deixando que essa também
questione o sujeito. Penso, portanto, que há uma contraposição ao pensamento
representacional, conforme exposto por Deleuze, fazendo surgir um pensamento
imanente.
A segunda categoria liga-se ao segundo nível da leitura iconológica, a
análise iconográfica, na busca de uma interpretação. Contudo, essa interpretação não
busca um “encaixe” dentro da história da arte, vista como uma grande narrativa. Mas,
Didi-Huberman (2015) abre a um modo de olhar anacrônico que se dá nessa dinâmica
do sujeito diante da imagem.
Esse olhar abre aos diversos tempos existentes na imagem que não se
colocam em sucessão, mas em simultaneidade, permitindo uma escrita da história da
arte como montagem, ou seja, feita em um tempo diferencial, de “momentos de
proximidades enfáticas, intempestivas e inverificáveis” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.
21), que parte da experiência do sujeito diante da imagem.
Essa metodologia anacrônica, proposta por Didi-Huberman (2014, 2015), do
conceito de história da arte como montagem de tempos anacrônicos, se dá através da
recuperação dos projetos de Abby Warburg (1924-1929)16 e Walter Benjamin (1927-
1929 e 1934-1940)17. Assim como Benjamin, Didi-Huberman não vê a imagem como
atemporal e absoluta, mas que sua temporalidade é um fator histórico e deve ser
dialetizada pelo anacronismo que, pela montagem, revela os seus “desencaixes”
temporais.

15
O distanciamento sujeito-objeto é uma postura epistemológica instaurada na História da arte por
Giorgio Vasari, reestruturado pelo caráter científico de J. Winckelman e fortalecido pelo método de
Erwin Panofsky.
16
O projeto Bilderatlas ou Atlas Mnemosyne é constituítdo por pranchas de cartão preto que se funda no
procedimento de associação de imagens. Warburg propôs a montagem de 3 séries de pranchas com 2000
reproduções de obras associadas por temas ligados à psicologia da criação e seus processos de produção.
17
O projeto Passagens fundamentado no conceito de montagem. Benjamin parte do conceito de colagem
cubista da década de 1910, da montage cinematográfica de Sergei Eisenstein (1898-1948) da década
seguinte e do conceito de fotomontagem de John Heartfield (1891-1968), dos anos 1930.

11
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Didi-Huberman (2015, p. 42-43) não vê o anacronismo como um ritmo no


tempo, mas como a condensação de uma plasticidade, a sobredeterminação 18 dos
objetos plásticos. Nesse sentido, contrapõe a leitura do anacronismo dada pela história
da Escola dos Annales19, vista como indesejável, como àquilo que não pertence ou
convém ao tempo que é situado, uma incoerência temporal.
Em contraponto, Didi-Huberman (2015, p. 39) não acredita em uma
sucessão temporal e que “o historiador deverá aprender a complexificar seus próprios
modelos de tempo, atravessar a espessura de memórias múltiplas, retecer as fibras de
tempos heterogêneos, recompor ritmos aos tempi disjuntos”. Este autor admite,
portanto, uma multiplicidade de linhas de temporalidades presentes em “um tempo” que
se configuraria em um “agir histórico”.
Esse pensamento se alinha ao de Rancière (2011). Para ele, “não existe o
anacronismo” (ibid., p. 49) na perspectiva da falta de cronologia, contudo há modos de
conexão que pode ser chamada “positivamente de anacronias” que são “acontecimentos,
noções, que tomam o tempo de frente para trás, que fazem circular sentido de uma
maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda identidade do tempo com ele
mesmo”.
Ambos partem da desconstrução do anacronismo, como indesejável,
liberando-o de sua racionalidade, do estatuto científico, mas abrindo a uma lógica
poética, “do verossímil ao inverossímil”, para Rancière (2011, p. 42) e do agenciamento
poético do saber histórico para Didi-Huberman, cuja resposta metodológica estaria na
poética da montagem.
Com isso, Didi-Huberman explora o anacronismo e propõe outra ordem do
discurso, derivando o trato arqueológico e antropológico do tempo na História da arte, a
partir do paradoxo da imagem, envolvendo o sujeito, por meio da montagem. Coloca-se
em marcha uma operação de elogio ao anacronismo, retirando a depreciação feita pelos
Annales, opondo o “artista de seu tempo” (eucrônico) ao “artista contra seu tempo”
(anacrônico) envolvendo uma visualidade de tempos complexos (DIDI-HUBERMAN,
2015, p. 19-20).
18
Está vinculadao ao conceito de sobredeterminação de Freud, no qual o olhar do sujeito-historiador é
sobredeterminado por imagens de diferentes temporalidades que residem, simultaneamente, em sua
memória, não como passados, mas presentes reminiscentes.
19
Isto está alicerçada à ideia de que o historiador deve investigar o passado com os olhos da época,
segundo Febvre. Bloch (2001, p. 52) avança nessa perspectiva ao considerar que o presente dá sentido ao
passado, mas esse retorno cronológico deve se dar de modo controlado, em que cada tempo teria o seu
“lugar” determinado.

12
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Enquanto as duas primeiras categorias vinculam-se à iconografia de


Panofsky, embora de modo a problematizar a imagem de um modo anacrônico, há uma
possibilidade de reconhecimento com relação a imagem e à história da arte. Já a
terceira, o invisível parte da relação do sujeito com a imagem pela abertura das
temporalidades da imagem que joga com a temporalidade complexa da memória do
próprio sujeito20.
Esse “invisível” dá abertura do sujeito em relação à imagem que projeta
outras imagens de sua memória para poder vê-las. Essa categoria se configura “naquilo
que nos olha quando vemos a imagem” (DIDI-HUBERMAN, 1998), a partir da imagem
e do olhar diante dela e indica que o estudo da imagem se refere aos valores humanistas
em detrimento dos formais.
Embora Didi-Huberman proponha olhar a imagem através destas três
categorias, elas não são colocadas de maneira separada. O primeiro passo seria se
colocar diante da imagem. A partir disso, as categorias passam a se misturar, deixando
entrever a descrição e os questionamentos emergentes (visível); a percepção dos
anacronismos e os vários tempos presentes na imagem (legível); as memórias que
surgem daquele que olha e da imagem que lhe devolve o olhar (invisível).
Ao olhar as obras “Imagens Posteriores”, “Giganto” e “Polaroides
(in)visíveis”, através dos documentos-signo, procedo dessa maneira, me coloco diante
das imagens, fazendo com que elas se abram de modo dialético e deixem entrever o
cruzamento de temporalidades ou seus tempos “complicados” (DELEUZE, 1987).
A intervenção da obra “Imagens Posteriores” ocorre pelo deslocamento
das fotografias de arquivo da artista Patricia Gouvêa. A obra nasce no espaço fechado
das galerias21, passa para o livro “Imagens Posteriores”22 em que coloca 70 imagens,

20
Didi-Huberman (1998) faz essa proposta a partir da psicanálise aberta por Lacan, em sua dimensão
estrutural, revendo a relação sujeito-objeto que valorize a relação transferencial, psicanálise pela via do
inconsciente, recolocando a questão do desejo.
21
A obra “Imagens Posteriores”, nos espaços fechados, era constituída de dípticos e trípticos (50x75cm) e
solos (100x150cm), impressos em papel algodão. A obra passou pelos locais: Encuentros Abiertos de
Fotografia de Buenos Aires, 2002 (prêmio melhor portfólio); Galeria Lana Botelho Artes Visuais, RJ,
curadoria João Wesley de Souza, 2003 (exposição individual); Fotofestival de Montecchio Emilia, Itália,
curadoria Massimo Mussini, 2003 (exposição individual); Centro Cultural Recoleta, Buenos Aires,
Argentina, curadoria Juan Travnik, 2004 (exposição individual); Galeria do Ateliê da Imagem, curadoria
Claudia Buzzetti, 2012 (exposição individual).
22
A série de imagens da obra foi publicada em 2012, no livro “Imagens Posteriores” da Ed. Réptil, Rio de
Janeiro.

13
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

das quais, posteriormente, cinco são escolhidas para ir às ruas do Rio de Janeiro-RJ
(2012), Fortaleza-CE (2012) e Brasília-DF (2013)23.
A questão do tempo é a preocupação central da obra da artista. Ela
concebe a obra, antes de ser intervenção, em torno da questão temporal 24, na qual
propõe discutir sobre “a popularizada noção de que a imagem fotográfica é a morte do
fluxo, congelamento do tempo, instante mumificado da vida” (GOUVÊA, 2011, p. 16).
Por isso, a visualidade apresentada é formada por fotografias borradas, feitas a partir de
registros realizados de percursos de carro, ônibus e barco em viagens em áreas naturais
do Brasil, Uruguai, Argentina e Bolívia, de 2000 a 2010 (Imagem 1).

Imagem 1 – Uma das cinco fotografias colocada na intervenção urbana – colocado no Rio de
Janeiro (2012)
Fonte: Acervo da artista Patricia Gouvêa

Patricia Gouvêa coloca que pelo fato das imagens terem sido feitas no
percurso, em momentos de espera dentro dos meios de transporte, elas são a aparição de
um “tempo quase morto”25. Esse tempo se estende ao adormecer das imagens no
arquivo, sendo reavivadas ao migrarem ao livro e, posteriormente, às ruas das cidades.
Com isso, a intervenção nasce com uma proposta de futuro em direção ao
passado das imagens de arquivo que se presentifica no estar na rua, no olhar de quem as
vê. Assim, o cruzamento de temporalidades se esboça.
Esse esboço se dá no andar à escolha dos lugares para a colagem, tornando
presente nas ruas, o passado do arquivo e possibilitando que o futuro da obra continue
23
A ideia da intervenção nas três cidades no ato de lançamento do livro foi proposta pelo curador Marco
Antônio Portela.
24
A artista faz uma discussão teórica sobre a obra “Imagens Posteriores” no livro “Membranas de Luz”,
resultado do Mestrado em Comunicação e Cultura na linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas da
Imagem com a orientação da Kátia Maciel e co-orientação do Antônio Fatorelli no Programa de Pós-
graduação de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
25
Fala concedida à pesquisadora no dia 12 de março de 2014, no Rio de Janeiro-RJ.

14
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

no olhar do outro que pode até propor a mudança do trajeto da obra, como ocorreu em
Fortaleza.
A obra “Giganto” parece estar pautada pela junção de presente e passado ou
futuro, uma vez que retratos de pessoas anônimas são colocadas de forma agigantada no
espaço urbano (Imagem 2), suscitando a imaginação ou rememoração de suas histórias
de vida. No ato de produção dos mesmos, pela artista Raquel Brust, os retratados
contam estas histórias. E, ao irem às ruas, não haveria a deflagração das origens e as
histórias daquelas pessoas, por quem as vê?

Imagem 2 - Retrato do Sr. Dárcio – colocado nos arredores do Sesc Belenzinho (2011)
Fonte: Acervo do Projeto Giganto

Esse processo, de fazer e ver as imagens, também se dá pelo andar,


respectivamente, da artista e dos transeuntes. Raquel Brust anda pelas ruas à procura de
seus personagens. Ao encontrá-los já começa a fotografar e conversar. O presente da
obra se instaura no contato entre fotógrafo e fotografado.
No entanto, o passado contorna o momento com as falas do retratado, a
exemplo da personagem Cristina, a Tininha, do Giganto em Paraty-RJ de 2011, que
rememora roubar cigarros do pai, desde os oito anos de idade. Ou Fabiana, personagem
do Giganto Sesc Santana em São Paulo-SP de 2012, que lembra o nascimento e a morte
precoce da filha ou quando fotografias deflagram as histórias como com o Sr. Rubens,
no Giganto 4a Mostra Samsung de Fotografia de São Paulo em 2013, que se recorda da
mãe, já falecida, ao mostrar sua fotografia.
Essas histórias nascem do encontro entre a artista e os retratados, durante o
processo de produção da obra, e têm continuidade com o olhar daqueles que passam
pelos retratos imponentes colocados nas paredes das construções do espaço urbano.
Desse modo, o futuro se presentifica no outro, nas fabulações. Essa presentificação do
futuro pode se dar também quando o retratado se vê de maneira agigantada.

15
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

“Polaroides (in)visíveis” é uma obra constituída de papéis de cor amarela,


no formato de uma polaroide (11X14cm) contendo um texto descritivo de um
fragmento do espaço urbano do qual faz parte, remetendo às imagens deste entorno
(Imagem 3). O artista Tom Lisboa cria estes textos por meio do andar e pelo andar as
pessoas que passam têm acesso às polaroides.

Imagem 3 - Uma das polaroides (in)visíveis - colocada em Curitiba-PR (2005)


Fonte: Acervo do artista Tom Lisboa

Nesse processo de caminhada pelo espaço urbano Tom cria os textos por
aquilo que vê no presente. A maioria das polaroides chama a ver o espaço urbano
naquele momento, como na polaroide cujo texto é: “Aqui ao lado, no prédio n o 39, no
quarto andar, à sua direita, uma das janelas está vedada com papelão.”
Mas também remete a uma ação feita no passado como na frase de uma das
polaroides, colocada na cidade de Curitiba em 2005: “atrás de você, do outro lado da
rua, na parte inferior do prédio bege, há o registro da silhueta de uma casa que foi
demolida ”, ou ao futuro, como na polaroide que só existirá com o posicionamento da
pessoa que a lê, por meio da frase “Para ver a imagem desta polaroid posicione-se
exatamente no vão que existe entre este ponto de ônibus e o próximo e olhe para cima.”
Desse modo, a obra das polaroides em si remete a um cruzamento de
temporalidades, perceptível pelo texto escrito nelas e pelas imagens que surgem, tanto
pela criação do artista quanto por aqueles que passam por elas.
No ato da leitura pode-se remeter também ao passado, presente ou futuro.
Ao ignorar a polaroide, invisibilizando-a no espaço, pode-se pensar em uma supressão
do próprio tempo. Ao levar a polaroide para casa ou a outro lugar, o tempo pode
continuar operando nos três tempos, desde que a imaginação seja acionada. Ou mesmo
16
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

quando as polaroides são recolocadas no espaço urbano, só que agora pelo transeunte 26,
as temporalidades parecem operar de maneira diversa da do artista.
Apesar destes apontamentos iniciais, que se constituem em hipóteses feitas a
partir de um primeiro olhar das três obras, como a mistura de temporalidades é
percebida nas obras? Esta é a pergunta que norteia essa pesquisa. O “como” parte de um
olhar-andante pelos documentos-signo que, pela percepção das categorias visível,
legível e invisível27, culmina em questões ligadas ao cruzamento de temporalidades na
relação com a história da arte e da fotografia.
As obras olhadas por Didi-Huberman são pinturas, filmes, fotografias, obras
que não deixam ver o seu processo de feitura. Já as obras que escolhi além de
apresentarem essa importância do processo, por isso o desdobramento das obras nos
documentos-signo, elas se propõem a se relacionar com o outro.
Com isso, vejo um limite da proposição do referido autor, diante das obras
que me coloco a olhar. Me proponho, portanto, a expandi-la, passando a perceber o
cruzamento de temporalidades, não só no interior das obras, mas no contato com os
olhos dos outros, o que me leva a pensar o cruzamento de temporalidades na relação das
obras com as ruas do espaço urbano.
Ao proceder por um olhar-andante deixando que as obras e os documentos-
signo pelos quais tive acesso também me olhassem e falassem, escrevo sobre elas,
deixando manifestar minhas impressões (suas invisibilidades), sem saber direito onde
iria chegar. Confesso que a angústia em muitos momentos tomou conta, mas continuei a
caminhada. Para mim, por vezes, ficava nítida a perda do controle, como se aquilo que
olhava tivesse, de fato, uma vida própria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.


_______________. Platão e o Simulacro. In: Lógica do sentido. São Paulo, Ed.
Perspectiva, 2009.
26
Isso é possível devido a um artíficio criado pelo artista Tom Lisboa chamado Guia de Visitação que
consiste na colocação das polaroides no espaço virtual, possibilitando que qualquer pessoa reimprima e
recoloque no espaço urbano. Esse procedimento será melhor detalhado na tese.
27
Essas categorias serão desenvolvidas ao longo da tese. Como o próprio Didi-Huberman procede, não há
uma marcação precisa com a nominação em qual momento lido com qual categoria, pois elas se mesclam
na escritura, embora marquem diferentes direcionamentos. O visual suscita a descrição e as perguntas, o
legível, a relação com outras temporalidades e o invisível, as minhas percepções, memórias e caminhos.

17
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

CHIODETTO, Eder. A desconstrução da fotografia e a construção de uma geração. In:


CHIODETO, Eder (org.). Geração 00: a nova fotografia brasileira. São Paulo : Sesc São
Paulo, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo : Ed. 34, 1998.
_______________________. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma
história da arte. São Paulo: Ed. 34, 2014.
_______________________. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das
imagnes. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2015.
GOUVÊA, Patricia. Imagens Posteriores. Rio de Janeiro : Réptil, 2012.
_______________. Membranas de luz: os tempos na imagem contemporânea. Rio de
Janeiro : Beco do Azougue, 2011.
LE GOFF, Jachques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas : SP.
Editora da Unicamp, 2003.
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In:
História, verdade e tempo. Marlon Salomon (org.). Chapecó, SC : Argos. 2011.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa, Portugal : Edições 70, 1971.

18
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O MENOR EM SITUAÇÃO DE RUA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS


HUMANOS: UM ESTUDO À LUZ DE GLAUCO E SEU
PERSONAGEM FAQUINHA

Ana Sofia Alencar Lambert28

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura 1 – Faquinha: perfil

A situação dos menores abandonados no país é tema que deve ser abordado
com delicada sensibilidade, em especial quanto às consequências dela decorrentes. A
questão da violência da criança e do adolescente é, muitas vezes, tratada de maneira
descontextualizada, sem a necessária análise do cenário em que vivem a maioria dos
jovens infratores.
É comum a estigmatização dos jovens abandonados pela mídia através da
perversa dicotomia carência/delinquência e de uma ideologia de correção e ordem que,
como se irá demonstrar, não encontra aplicação em um contexto de tamanhas
desigualdades como o brasileiro.
Diante desse quadro, cabe fazer uma análise social e legal do menor em
situação de rua na conjuntura da Constituição Cidadã de 1988. O atual texto
constitucional distancia-se da concepção individualista que entende o sujeito de direito
como ser econômico, desvalorizado se for incapaz de produzir e se engrenar no sistema
econômico. Ademais, cumpre discriminar o tratamento de direito e de fato reservados à
criança e ao adolescente em situação de desamparo.
A abordagem do tema será feita por meio do personagem Faquinha, do
cartunista Glauco, que personifica os jovens esquecidos pelo Estado. A série de

28
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: anasofialambert@gmail.com

19
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

quadrinhos que retrata a vida do personagem pretende demonstrar as relações sociais e


econômicas que permeiam a vida de crianças em situação de exclusão.
Nesse ponto, cabe reconhecer a importância dos quadrinhos como
instrumento de comunicação social, capazes de atingir grande número de leitores de
variados setores sociais. Através da interação entre linguagem verbal e icônica, são
aptos a divulgar questões culturais e sociais que demandam análise crítica. No presente
trabalho, as HQs serão discutidas como um produto artístico que desenvolve a
comunicação no nível estético, ao mesmo tempo em que sugerem questionamentos
dentro de uma realidade social.
Através da análise dos elementos imagéticos e linguísticos que permeiam as
tirinhas de Faquinha, será possível extrair os instrumentos utilizados por Glauco na
construção de sua crítica sobre a situação dos menores abandonados no país. O autor
aborda o tema de forma humanística, satirizando a ideologia dominante que defende a
“tolerância zero” frente à violência e esquece, contudo, que a raiz da criminalização dos
jovens infratores vai muito além da mera liberdade individual.

O menor em situação de rua na conjuntura da Constituição de 1988

Com a promulgação da Constituição de 1988, o campo dos direitos


humanos apresentou avanço expressivo. Nessa perspectiva, as inovações constitucionais
afetaram também a condição das crianças e dos adolescentes no mundo jurídico.
Antes protegidos legalmente somente quando se encontrassem em
“situações irregulares” (dentre elas o menor em situação de rua), a criança e o
adolescente passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos pela nova
Constituição. Ao lado dos direitos fundamentais elencados no decorrer do texto
constitucional, a atual Carta Magna impõe a defesa em caráter prioritário dos menores
de idade em seu art. 22729.
A Doutrina da Proteção integral consagrada pela Lei Maior substitui a antiga
Doutrina da Situação Irregular adotada pelo Código de Menores de 1979, reconhecendo,
de maneira expressa, que crianças e adolescentes possuem todos os direitos garantidos

29
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão.

20
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

em lei e estendendo-lhes prioritariamente a titularidade dos direitos fundamentais


contidos na Carta Magna (SARAIVA, 2009, p. 24).
Ainda referente às inovações no campo dos direitos humanos trazidas pela
Constituição de 1988, ressalta-se a atenção dada aos direitos fundamentais do cidadão,
sendo possível extrair, de seu art. 5º, alguns dos preceitos invioláveis a serem garantidos
pelo Estado. Para além dos direitos fundamentais elencados naquele dispositivo, cabe
pontuar o teor do art. 1º da Lei Maior, que elenca como fundamentos da República
Federativa do Brasil a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Por sua vez, o caput do supramencionado art. 5º dispõe que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos cidadãos
brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. Em seu parágrafo primeiro,
dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”.
Por conseguinte, os preceitos em epígrafe são prerrogativas abrangentes,
universais e exigíveis, de modo que os direitos fundamentais destinados a crianças e
adolescentes elencados no texto constitucional, sobretudo em seu art. 227, devem ser
observados em sua plenitude desde a publicação da Constituição.
O apartamento entre o texto legal e a realidade, não obstante, é nitidamente
observado ao se analisar o quadro dos menores de rua no país. Tratam-se de jovens que
se encontram em estado de vulnerabilidade por não ter acesso - nem condições para tê-
lo – à proteção integral e prioritária a que têm direito, sem que lhes sejam garantidos os
direitos à educação, à família, a casa, ao lazer e os demais direitos mínimos previstos na
Constituição30.
A gravidade situação em que se encontram os meninos e meninas de rua é
intensificada, principalmente, pela facilidade em dispor do menor abandonado por conta
de sua extrema vulnerabilidade. Nas ruas, estão sujeitos à exploração sexual, ao trabalho
forçado, ao trabalho por troca de esmolas e à violência. No crime, não ocupam lugares
privilegiados e, por isso, são descartáveis e também as principais vítimas.
Ao contrário de receber amparo prioritário do Estado, tais jovens
encontram-se em situação de completa marginalização social. O termo engloba a

30
Pesquisa divulgada pelo Governo Federal no ano de 2012 mostrou que o Brasil tem quase 24 mil
crianças e adolescentes vivendo nas ruas de 75 cidades com mais de 300 mil habitantes. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grandes-cidades-tem-23973-criancas-de-rua-diz-
censo,683929>

21
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

destituição de recursos não só materiais, mas também sociais, jurídicos e culturais,


incluindo direitos (ARZABE, 2012, s.p). Há de se reconhecer, além dos direitos
econômicos e políticos, aqueles relacionados ao próprio sentimento de inserção do
indivíduo no grupo:

Dentre os bens imprescindíveis à subsistência elencam-se não somente


aqueles necessários à própria existência física no mundo, mas também
os necessários a que o ser humano possa ser reconhecido como uma
pessoa, com direitos e com deveres face aos demais na comunidade,
que tenha a possibilidade de, sempre que quiser, participar ativamente
na conformação e confirmação das regras que governam a todos.
(ARZABE, 2012, s.p)

A fraca conexão existente entre o menor marginalizado e o Estado gera o


sentimento de não comprometimento com a sociedade e, consequentemente, a criança
não reconhece seu papel como cidadã sujeito de direitos e deveres:

[…] um jovem de um meio que não oferece tais perspectivas


[preservação das relações familiares e alternativas educacionais e
profissionalizantes] terá mais possibilidade de buscar o desvio para
uma identidade grupal negativa, que prevalece especialmente nas
grandes cidades, onde a marginalidade econômica, étnica e religiosa
proporcionam bases muito frágeis para identidades positivas.
(PEREIRA, 2008, p. 932)

Observa-se, ainda, a crescente estigmatização das crianças em situação de


desamparo, o que gera resistência às medidas voltadas à reinserção do menor na
sociedade. Os dispositivos legais destinados à proteção e recuperação do jovem à
sociedade são vistos, ao contrário, como prejudiciais à “ordem”, à medida em que
supostamente sedimentam a impunidade31. Partindo de tal concepção, entende-se que o
menor infrator não merece ser reincluído no convívio social, cabendo ao jovem
vitimizador somente as medidas apenadores retributivas32.

31
A impunidade é a principal causa de violência na opinião dos brasileiros, conforme dados revelados
pela Secretaria de Pesquisa de Opinião Pública – DataSenado – em levantamento sobre a violência no
Brasil em 2007. A impunidade aparece em primeiro lugar com 30% das citações, o tráfico e o consumo
de drogas em segundo com 26% e, na sequencia, desemprego (16%), falta de ensino (14%), ausência de
Estado (8%), acesso a armas (4%) e outros (1%). Pesquisa disponível em
<https://www.senado.gov.br/senado/dataSenado/pdf/Pesquisa%20Viol%C3%AAncia%20no%20Brasil%
20-%20comunicado%20%C3%A0%20imprensa.pdf>
32
O Instituto Datafolha realizou pesquisa em junho de 2015 para aferir a opinião da população quanto à
possibilidade da redução da maioridade penal, prevista em mais de 50 projetos em tramitação no
Congresso: 87% dos entrevistados mostraram-se favoráveis à responsabilização criminal de jovens a

22
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Tendo em vista que a marginalização constitui fenômeno sociológico e


estrutural, o menor abandonado em situação de rua não é capaz de criar por si próprio as
condições para sua inserção social, agravada pela carência de meios e informação e pela
estigmatização de grande parte da população.
Refletindo esse entendimento, o texto constitucional, em seu art. 3º, inclui
como objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e a
marginalização e a redução das desigualdades sociais. Naturalmente se infere, da
vigência da Constituição de 1988, que o Estado deve amparar aqueles que não
conseguem ter acesso a seus direitos básicos, em especial a criança e o adolescente, aos
quais são assegurados os direitos fundamentais mínimos em absoluta prioridade.
Não obstante, é patente a insuficiência da atuação estatal no que se refere à
reinserção do menor de rua à sociedade. Nesse ponto, importante aspecto do quadro de
violência em que vive o jovem abandonado é a repressão intensa por parte da polícia.
Acrescenta-se a ineficiência das instituições destinadas à reeducação e à
reinserção social da criança marginalizada, que utilizam, muitas vezes, da violência e do
abuso de poder, com a aplicação de tratamento dotado de caráter punitivo e não
reeducativo, fugindo ao que se apregoa na Constituição. É flagrante a ineficiência de um
sistema que, na prática, submete o menor à situação carcerária.
A violência com que os menores infratores são tratados pelo Poder Público
gera o afastamento ainda maior entre eles e o Estado, pois este passa a ser visto como
inimigo. A atitude repressora aprofunda, dessa maneira, o sentimento de desconexão
entre os jovens e o aparato estatal, que deveria, ao contrário, colocá-los sob proteção
prioritária.

As histórias em quadrinhos como meio de comunicação e a


representação do menor abandonado nas tirinhas de Faquinha

As histórias em quadrinhos são textos multimodais nos quais há a interação


entre diferentes recursos linguísticos, revelando grande potencial comunicativo e
possibilitando a construção de narrativas variadas. Nas HQs, os elementos verbais e os

partir dos 16 anos. Pesquisa disponível em


<http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2015/06/22/maioridade_penal.pdf> a

23
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

não verbais caminham lado a lado, interagindo de modo a expressar a mensagem


elaborada pelo autor e concebendo extenso rol de possibilidades criativas.

Fonte
: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL
Figura. 2 – Faquinha

O texto e a imagem devem possibilitar a transmissão da série de


informações necessárias à correta compreensão do enredo pelo interlocutor, de modo
que cada quadrinho traz diversos elementos que têm de estabelecer harmonia entre si.
Dentre eles, destacam-se os personagens principais e secundários, seu posicionamento
na cena, as expressões faciais e corporais, o cenário, a perspectiva, o enquadramento, o
jogo de sombra, luz e cores (OLIVEIRA, s/d).
É justamente a interação entre os diversos elementos linguísticos que torna
possível a transmissão da mensagem do autor ao leitor, sendo de suma importância,
pois, a análise dos recursos imagéticos e verbais utilizados na criação de cada
quadrinho.
Cumpre reconhecer, aqui, a relevância das HQs como instrumento de
comunicação, capaz de suscitar questões sociais sob uma perspectiva crítica. No Brasil,
é possível observar, historicamente, diversos autores que levaram ao público reflexões
críticas e satíricas sobre temas políticos, sociais e culturais, através de tiras publicadas,
em sua maioria, em jornais de grande circulação.
É o que se extrai da história do personagem Faquinha 33, do cartunista
Glauco, na qual é abordada a insuficiência do Estado quanto ao menor em situação de
rua, retratando a realidade de crianças brasileiras de pouca idade em condição de total
abandono material, afetivo e social.

33
Disponível em: <http://www2.uol.com.br/glauco/faquinha.shtml>

24
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A série de tirinhas faz parte de um extenso rol de obras do cartunista que


buscam retratar o espaço urbano e sua influência sobre o comportamento humano,
dentre eles os quadrinhos que retratam o popular “Geraldão” e o conturbado “Casal
Neuras”. Na história de Faquinha, contudo, a sátira aos aglomerados urbanos tem
enfoque na causa social que circunda o tema, abarcando tanto aspectos comportamentais
quanto políticos, econômicos, históricos e sociais.
Glauco busca ressaltar a dura rotina do personagem que, como grande parte
das crianças de rua, é cooptado pelo tráfico. Como menor abandonado, é criado por
Facão, perigoso traficante do “Jardim Perifa”, com quem tenta estabelecer vínculo
afetivo e familiar e vê nele toda referência para a vida adulta. Por meio do traficante fez
sua entrada no crime organizado, que passou a adotar como meio de sobrevivência.
Ademais, chefia sua própria gang de meninos de rua, denominada “o comando
bananinha”.
As tirinhas que retratam o personagem Faquinha evidenciam, através de um
humor crítico e sarcástico, as péssimas condições de vida dos menores em situação de
abandono, em especial a ausência de qualquer assistência por parte do Estado e da
sociedade em geral. Ao contrário, pontuam a violência com que são tratados os menores
de rua, sob uma perspectiva repressiva e de extermínio.

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura. 3 – Faquinha

Ao longo das tirinhas que revelam a vida do personagem, é possível extrair


diversos elementos linguísticos utilizados pelo autor para compor a dura rotina da
criança e o cenário de violência urbana e crime no qual esta se encontra inserida,
transmitindo ao leitor a crítica referente ao tratamento de fato oferecido às crianças em
situação de rua no país e suas implicações no meio social.

25
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Dentre os recursos imagéticos de maior relevo para a construção dos


quadrinhos sob análise, nota-se a simplicidade dos desenhos e a pouca exploração dos
detalhes, tanto em relação aos personagens quanto ao cenário. Faquinha, personagem
principal, é retratado em geral da mesma maneira: menino negro sem camisa, descalço e
de bermuda e, quando muito, munido de alguma arma ou droga. Nota-se, assim, a
completa ausência de elementos individualizadores do personagem.
É curioso notar a simplicidade da construção do cenário, tendo em vista que
a HQ visa a demonstrar o cotidiano de uma criança de rua, no qual a cidade e o espaço
público se configuram como palco principal das ações. Por essa razão, o ambiente
costuma ter, nesse tipo de quadrinho, grande importância.
Não obstante, verifica-se que a cidade em Faquinha apresenta valor
simbólico, uma vez que representa vários conceitos como contradições sociais, pobreza,
desigualdade e criminalidade, no geral enunciado pelos próprios personagens ou mesmo
sugerido em algumas atitudes, mas não detalhadamente representado na imagem.
Em raros momentos é possível vislumbrar alguns detalhes do interior da
cidade que, por esse motivo, não apresenta nenhuma característica que a singularize,
representando uma aglomeração urbana que poderia estar em qualquer lugar. No mesmo
sentido, verifica-se que o bairro em que vive Faquinha possui nome bastante genérico
(“Jardim Perifa”), capaz de representar as periferias de qualquer cidade do País.
A simplicidade na elaboração do cenário e dos personagens fundamenta-se,
por conseguinte, no objetivo de Glauco de manter a história impessoal, abrangendo a
realidade de crianças de rua de maneira genérica. Faquinha simboliza o cotidiano de
crianças em situação de rua; Facão representa o contexto de criminalidade no qual
grande parte desse jovens encontram-se inserido e o “Jardim Perifa” exprime o
ambiente urbano periférico, marcado por profundas desigualdades sociais e
marginalização.
Não é intenção do autor, nesse sentido, retratar o cotidiano de uma criança e
de uma cidade em especial e suas especificidades, mas explorar o tema do abandono e
da violência urbana a partir de situações genéricas simbolizadas pelo cotidiano de
Faquinha. Até mesmo o nome dos personagens apresenta grande carga de
impessoalidade, porquanto estão diretamente relacionados à violência urbana e aos atos
criminosos cometidos por Faquinha e Facão.

26
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Corroborando tal argumentação, observa-se a semelhança entre personagens


que compõem determinado grupo comum, tais quais os demais meninos de rua,
policiais, traficantes e moradores da cidade.

.
Fonte: Glauco - Repositório digital de tirinhas da UOL
Figura.4 – Faquinha

Os balões de fala, por sua vez, também ratificam a abordagem impessoal do


tema. Ao contrário das demais obras de Glauco, nas quais há a utilização de hipérboles
na elaboração das falas das personagens, inclusive com o uso de balões com formas
variadas e de distintos tamanhos e cores, todos os discursos das personagens de
Faquinha seguem o mesmo padrão de fala, distinguindo-se uns dos outros em relação à
intonação somente pela presença ou não do sinal exclamativo no texto.
Tal mecanismo de enunciação dos personagens, pelo qual se exprimem
poucas emoções ou, quando muito, emoções pouco variadas, denota o quadro de
indiferença e naturalização dos menores em situação de rua, em especial por exprimir a
maneira apática como o tema é percebido pela sociedade.
Por outro lado, nota-se a utilização de um mesmo ângulo de visão e do
mesmo plano de enquadramento no decorrer das tirinhas, predominando o uso do plano
total, no qual são evidenciados o personagem e as dimensões do espaço próximas a ele.
Explora-se pouco o plano geral de enquadramento, justamente em razão de a
caracterização da cidade não configurar elemento essencial na construção das tirinhas.
Da mesma forma, há predominância da utilização do ângulo de visão médio,
de modo que a história é desenvolvida como se a cena ocorresse à altura dos olhos do
observador. Não há close-ups ou enquadramentos que permitam ver o personagem ao

27
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

nível dos ombros, o que possibilitaria uma melhor visualização do seu rosto ou
pormenores da imagem.
O tom irônico que permeia as tirinhas é uma das características mais
marcantes dos quadrinhos de Faquinha. Para tanto, Glauco vale-se de instrumentos
linguísticos e imagéticos específicos, tais quais a constante presença do narrador, uso de
metáforas visuais e utilização de cores mais leves.
Com efeito, a presença da voz narrativa do autor é constantemente
observada no decorrer das tirinhas, como mecanismo de inserção da quebra de
expectativa e contraste entre narração e imagem para a criação do humor.

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura 5– Faquinha

As cores mais leves amenizam a taciturnidade do tema abordado, também


contribuindo para a geração da atmosfera de humor e ironia. É possível observar, ainda,
a existência de pouco contraste nos quadrinhos e a presença de cores mais neutras na
caracterização da cidade e de Faquinha, contribuindo para a impessoalidade da história.
Outro importante recurso visual utilizado por Glauco na elaboração da HQ
de Faquinha é a intensificação da vulnerabilidade do personagem através do contraste
entre o tamanho da criança e os demais personagens e objetos presentes nas cenas. Ao
assim proceder, o autor ressalta a pouca idade de Faquinha, inserido desde pequeno no
contexto de violência e marginalidade urbana, e realça, ao mesmo tempo, elementos
inerentes ao cotidiano da vida da criança, tais quais armamentos pesados, drogas e
objetos roubados.

28
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Fonte: Glauco – Repositório de tirinhas da UOL


Figura 6 – Faquinha.

Os elementos imagéticos e linguísticos acima descritos constituem alguns


dos principais mecanismos de montagem das tirinhas que, harmonicamente
considerados, são capazes de transmitir ao leitor o pensamento crítico de Glauco sobre a
situação dos menores em situação de rua no país.

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura 7 – Faquinha

Demonstrados os elementos formais dos quais o autor fez uso para a


construção da mensagem, cabe analisar o conteúdo da sequência de tirinhas e a crítica
transmitida, explicitando as contradições entre o tratamento legal aplicável aos menores
de rua e o tratamento de fato aos quais estão submetidos.
Nessa toada, observa-se o profundo quadro de marginalização no qual vive
Faquinha. Inexiste sentimento de pertencimento por parte do personagem no meio
social. Não houve e não há, em seu processo de desenvolvimento, referências que o
fizessem gerar vínculo com a coletividade. Facão cumpre mais o papel de chefe do
tráfico que de ente familiar, faltando ao jovem afeto, proteção e uma referência adulta
positiva necessários a seu crescimento físico e mental saudável.

29
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura 8 - Faquinha

Observa-se na história de Faquinha que sua participação no crime não


implica em proteção efetiva por parte dos traficantes, e continua a não ter acesso às
condições mínimas que lhes são legalmente asseguradas.
É notável sua impotência em exigir o cumprimento de seus direitos, tanto
por conta de sua pouca idade quanto por se encontrar às margens da sociedade. Sem
intervenção por parte desta, dificilmente será reinserido no convívio social. O
afastamento tende, ao contrário, se alargar, na medida em que o jovem cresce e
reconhece como sendo aquele o seu lugar dentro do espaço urbano.
Nesse ponto, o autor realça a indiferença e naturalização da situação dos
menores abandonados, que se tornam foco das grandes discussões somente quando
geram transtornos à rotina dos grandes centros urbanos, especialmente em decorrência
dos crimes e da violência cometidos por menores em situação de rua.
Ademais, ao longo das histórias retratadas, Glauco demonstra que a reação
repressiva e excludente por parte do Estado é plenamente aceita pela sociedade, uma
vez que Faquinha e as demais crianças que o acompanham são vistas como se
apresentassem, naturalmente, personalidade perversa.
O dia a dia de Faquinha é marcado por ações truculentas por parte da polícia
e por todo tipo de atos que o rebaixam em sua condição de pessoa humana. O Estado
aparece, na série de Glauco, apenas em sua forma de aparato policial repressor, não
sendo apresentado qualquer outro tratamento aos menores. A obra, longe de ser
totalmente fictícia, aproxima-se sobremaneira da realidade brasileira, em que se
considera mais acertado a correção repressiva da criminalidade infantojuvenil que sua
devida reversão ou prevenção.

30
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Tal ponto de vista remonta aos fundamentos da antiga Doutrina da Situação


Irregular, que não fazia distinção entre o jovem em situação de abandono e o autor de
atos infracionais. A lei considerava, àquela época, que crianças e adolescentes de rua já
nasciam “menores delinquentes” equiparados aos jovens infratores (SARAIVA, 2009, p.
41), aos quais eram reservados a internação e o afastamento do meio social.

Fonte: GLAUCO – Repositório digital de tirinhas da UOL


Figura 9 - Faquinha

Nessa linha de pensamento, observa-se que a Doutrina da Situação Irregular,


embora formalmente superada, ainda se encontra viva na cultura brasileira, em especial
quanto à forma de tratamento dos jovens infratores em situação de rua pelo próprio
Poder Público. Embora o país reconheça em sua legislação direitos mínimos, garantias
fundamentais e o dever de promover o bem-estar da criança e do adolescente, o que se
observa quanto à abordagem do Estado referente à marginalização vai fortemente de
encontro ao estabelecido no texto constitucional.

Considerações finais

O estudo das tirinhas que retrata a rotina de Faquinha apontam a completa


ausência de meios materiais e afetivos na vida do personagem, produzindo uma ruptura
profunda entre o previsto na Constituição de 1988 e a realidade vivida por ele, situado à
margem do Estado Democrático de Direito. Os quadrinhos de Glauco, mais que uma
obra de ficção, representa o cotidiano de milhares de crianças e adolescentes brasileiros
em situação de abandono.
Os elementos formais utilizados na composição da história são importantes
mecanismos de transmissão da mensagem elaborada pelo autor, que busca realçar e

31
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

reinterpretar certos aspectos relacionados à insuficiência da proteção da criança de rua


pelo aparato estatal e as consequências dela decorrentes.
Insta reconhecer, assim, a relevância dos quadrinhos como meio artístico e de
comunicação, em que as inúmeras possibilidades de combinações linguísticas permitem
uma inovação constante nos mecanismos de expressão gráfica, de forma a ampliar sua a
dimensão estética e informativa.
A mensagem que busca passar o autor, através da interação harmônica entre os
diversos elementos de texto e imagem, consiste na crítica à indiferença e à violência a
que são submetidos os menores abandonados, a despeito do tratamento legal e
constitucional a eles reservados.
Nesse sentido, a proteção prioritária a que têm direito a criança e o adolescente é
prerrogativa que apresenta aplicação debilitada no contexto em que vive Faquinha, em
situação similar a milhares de jovens no país. São necessárias, nesse sentido, políticas
públicas de proteção ao menor condizentes com o disposto na Constituição e no
Estatuto da Criança e do Adolescente, que atendam as crianças nas necessidades
próprias de seu desenvolvimento.
É importante, em primeiro lugar, assegurar o exercício pleno dos direitos
garantidos pela Constituição, uma vez que a legislação vigente, com sua abordagem
humanística, busca garantir a cidadania e a efetiva inclusão social. A segurança pública
alicerçada na ideologia de repressão é, na realidade, inoperante e entregue ao próprio
descaso, pois o Estado pouco se preocupa com ações de fato eficazes para diminuir o
quadro alarmante de marginalização e violência.
Por conseguinte, verifica-se uma dupla insuficiência do Poder Público: a
primeira relativa ao efetivo amparo das crianças e adolescentes em situação de
abandono como forma de garantir o exercício da cidadania e, a segunda, consistente na
reinserção social deficiente do jovem infrator.
O desafio, dessa forma, consiste na superação de fato da antiga Doutrina da
Situação Irregular ainda corrente no imaginário nacional e nas instituições públicas,
para aplicação real das prerrogativas legais elencadas na Constituição, de forma que não
constituam apenas conquista formal dos direitos humanos do menor.
Importante ressaltar, ainda, que tais políticas públicas devem constituir efetivo
comprometimento com a criança e o adolescente, para que se possa promover a
dignidade humana e o exercício pleno da cidadania assegurada na Lei Fundamental.

32
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

ARZABE, Patrícia Helena M. Pobreza, exclusão social e direitos humanos: o papel do


Estado. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/dhesc/phelena.html> Acesso:
27/03/2016.
BARBOSA, Alexandre. et al. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4
ed. São Paulo: Contexto, 2014.
BRANDÃO, E. P. Criminologia e subjetividade. In: I Congresso do Juizado da Infância
e Juventude. Rio de Janeiro, 2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979, Código de Menores. Brasília, DF,
1979.
BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente.
Brasília, DF, 1990.
BRASIL. Senado Federal. Pesquisa de opinião pública nacional. Violência no Brasil.
Brasília, 2007. Disponível em:
<https://www.senado.gov.br/senado/dataSenado/pdf/Pesquisa%20Viol%C3%Aancia%2
0no%20Brasil%20-%20comunicado%20%C3%A0%20imprensa.pdf>. Acesso:
12/03/2016.
DATAFOLHA. Maioridade Penal. Pesquisa de opinião. Datafolha, 2015. Disponível
em <http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2015/06/22/maioridade_penal.pdf> .
Acesso: 12/03/2016.
ESTADÃO. Grandes cidades têm 23.973 crianças de rua, diz censo. 2011. Disponível
em:<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grandes-cidades-tem-23973-criancas-de-
rua-diz-censo,683929>. Acesso: 20/03/2016.
GLAUCO. UOL. Disponível em: http://www2.uol.com.br/glauco/faquinha.shtml
GOMES, Paulo C. C; GÓIS, Marcos P. F. de. A cidade em quadrinhos: elementos para a
análise da espacialidade nas histórias em quadrinhos. In: Revista cidades, Presidente
Prudente, v. 5, n. 7, jul/dez 2008. Disponível em:
<https://petsociaisbh.files.wordpress.com/2012/10/2008-a-cidade-em-quadrinhos-
gomes-e-gois.pdf> Acesso: 20/03/2016.
OLIVEIRA, Maria Cristina X. de. Histórias em quadrinhos e suas múltiplas
linguagens. Disponível em <http://grupoplccj.webnode.com.br/quadrinhos>. Acesso:
17/03/2016.

33
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

PALHARES, Marjory Cristiane. História em quadrinhos: uma ferramenta pedagógica


para o ensino de história. Disponível em:
<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2262-8.pdf>. Acesso:
02/03/2016.
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: Uma proposta
interdisciplinar. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SANTOS, Roberto Elísio dos. HQs de humor no Brasil. 1 ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2014.
SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente com conflito com a lei: da indiferença à
proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 3 ed. rev.
atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
SILVA, Allyson E. V. N. Um estudo sociolinguístico das histórias em quadrinhos na
educação à distância. 2011. 210 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) -
Universidade Católica de Pernambuco, Recife. 2011
SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e cotidiano nas histórias em quadrinhos. 1 ed.
São Paulo: Annablume, 2002.
SILVÉRIO, Luciana B. R.; REZENDE, Lucinéia A. de. O valor pedagógico das
histórias em quadrinhos no percurso do docente de língua portuguesa. In: I jornada de
didática – o ensino como foco e I fórum de professores de didática do estado do Paraná,
2007, Londrina. Anais. Londrina: Universidade Estadual de Londrina.
TANINO, Sônia. Histórias em quadrinhos como recurso metodológico para os
processos de ensinar. 2011. 36 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Pedagogia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2011.

34
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

IMAGENS EM DISPUTA: O DISCURSO TRADICIONAL FRENTE


AO AGRONEGÓCIO

Anna Maria Nunes Machado34

Quando se pensa no cenário econômico brasileiro, tanto nos aspectos macro


quanto micro do panorama da estruturação político-social do país, vem à lume a
existência de dois modelos agrícolas antagônicos, quais sejam, o do agronegócio e o da
agricultura familiar. Com efeito, ao materializar-se a ideia do primeiro modelo, é certo
que ao tempo em que exsurgem questões e dimensões herdadas do modelos colonial das
plantation, destacam-se também aspectos modernos e tecnológicos advindos de uma
dominação do modelo ocidental sobre as práticas tradicionais de conhecimento.
Com efeito, assim como em diversos lugares do globo, no caso do Brasil
prevalece dominante o discurso neoliberal que justifica, em tese, a falácia da viabilidade
do agronegócio como única saída ou “mal necessário” para a sociedade. Inegáveis, no
entanto, são os custos sociais e ambientais que esse modelo implica, o que resta cada
vez mais evidenciado em face do gradual esclarecimento público acerca dos riscos dessa
opção econômica e da consequente busca por alternativas agroecológicas, bem como
pelos comedidos avanços na criação de normativas voltadas a uma tentativa de
limitação, ainda que indireta, dos preceitos liberais que autorizam tais discursos
legitimados pela racionalidade duvidosa da extração de lucro a curto prazo e a qualquer
custo.
Assim, o modelo do agronegócio, baseado na expansão da monocultura, e
marcados por sérias consequências como a erosão genética, o aumento da
vulnerabilidade dos organismos e a presença de agroecossistemas vulneráveis e
químico-dependentes, também faz sentir seus desdobramentos no campo social, com a
concentração fundiária, segregação social e territorial, violência, fome e desemprego.
Nesse sentido, percebe-se um indelével processo de ruptura das dinâmicas sociais que
envolvem a própria cultura dos povos tradicionais, gerando o desaparecimento de
práticas culturais populares, conquanto o agronegócio não se alimente de cultura, mas
de capital.

34
Mestranda em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás. Goiânia/GO, Brasil. E-mail:
annamaria93@hotmail.com.

35
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Feitas tais considerações, destaca-se também a presença marcante dos novos


ciclos energéticos que ganharam relevo nas últimas décadas no país, os quais se fundam
na tríade da monocultura, do latifúndio e dos biocombustíveis, provocadores do
aumento de preço dos alimentos e da exclusão e expulsão das populações rurais em
conjunto com a inegável destruição ambiental.
De registrar que, se numa mão o discurso neoliberal encarrega-se de
defender o agronegócio latifundiário como marco da modernidade, na contramão estão
os inegáveis efeitos mencionados, razão pela qual o presente artigo defende a adoção do
modelo de agricultura familiar como aquele que busca restabelecer uma relação de
equilíbrio com a natureza ao passo em que vê como prioritária a produção de alimentos,
isto é, enxerga na produção rural um modo de sobrevivência e não de lucratividade.
Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é demonstrar a
insustentabilidade social, política, ambiental, técnica, ecossistêmica e ética do
agronegócio e sua agricultura industrial e de seu paradigma tecnológico. Por outro lado,
pretende-se apontar como solução para essa problemática traçada, a agroecologia e sua
dialética.
Luiz Carlos Pinheiro Machado e Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho, na
obra “A dialética da agroecologia: contribuições para um mundo com alimentos sem
veneno” (2014. p.31), conceituam a Revolução Verde nos seguintes termos:

(...) o processo de interiorização do capitalismo no campo, a


partir de 1960, com introdução de monoculturas e destruição da
biodiversidade, para facilitar o uso de máquinas de grande porte
nos tratos culturais e pôr em prática a tríade capitalista: tempo,
custo e lucro.

Sabe-se que o Brasil, a partir dos anos de 1950, sofreu um processo de


incorporação gradual de utilização de maquinário agrícola na produção, juntamente com
um perceptível aumento das monoculturas, da pecuária intensiva e da manutenção da
estrutura fundiária de latifúndio pelo interior do Brasil. Nesse contexto, notadamente a
Revolução Verde surgiu com a pretensa bandeira de combate à fome diante da
fragilidade econômica planetária típica do contexto da Segunda Guerra Mundial.
O referido processo não passou, no entanto, de uma política do grande
capital para introduzir o capitalismo no campo. Nesse panorama, entrevê-se a presença
cada vez mais acentuada dos chamados “pacotes tecnológicos”, entendidos como

36
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

crédito agrícola para determinados cultivos e criações, disponibilizados pelo Estado,


mediante o uso de agrotóxicos, sementes certificadas e fertilizantes, o que corroborou
com o aumento da dívida externa. Como pontuam os autores, “com a revolução verde,
os monopólios internacionais passaram a controlar o mercado de insumos e máquinas
agrícolas” (MACHADO; MACHADO FILHO; 2014, p.36).
Nessa linha de raciocínio desenvolvida pelos autores, o paradigma da
Revolução Verde e da agricultura industrial poderia ser explicado sob a ótica de três
princípios: fertilizantes de síntese química, venenos contaminantes e monoculturas que
destroem os biomas. A agroecologia, ao contrário, negaria todos esses procedimentos
destrutivos, dando aos problemas criados pela Revolução Verde uma nova estratégia de
solução, valendo-se dos conhecimentos dos povos tradicionais, que além de se
constituirem em técnicas mais acessíveis, são voltadas à proteção ambiental.
Carlos Walter Porto Gonçalves, tendo desenvolvido o estudo intitulado
"Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual
modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais.” (2004, p.27), destaca que a
Revolução Verdade intentou desvincular-se do debate da fome, dando um caráter
técnico ao seu discurso de adesão, pregando que somente o desenvolvimento científico
seria capaz de findar esse problema.
Note-se que, ainda que tenha havido o desenvolvimento dos insumos
agrícolas em meio à logística própria da produção agrícola, acompanhada do aumento
da produtividade, houve destacado aumento da concentração da renda, com a redução
de postos de trabalho, entre outros custos sociais reiteradamente citados nos trabalhos
acadêmicos que versam sobre o tema. No contexto narrado, percebe-se que a
diminuição dos preços dos insumos agrícolas permitiu um aumento do poder de compra
de industrializados, fato que incrementou a marginalização de pequenos produtores
rurais, uma vez que excluídos dos já destacados pacotes tecnológicos.
Nesse sentido, Gonçalves também relaciona a concentração fundiária e a
incorporação de tecnologias à expulsão dos camponeses do campo, aliada a uma
crescente urbanização, a qual inclusive contribui para a expansão da agricultura, tendo
em vista a demanda por alimentos daqueles incapazes de produzir seu próprio sustento
nutricional, presente a pauperização crescente dos indivíduos envolvidos diante de
questões latentes como a homogeneização dos territórios, uso intensivo de insumos
agrícolas, desequilíbrio hídrico, uso intensivo de máquinas, herbicidas, pesticidas,

37
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

emprego da técnica de plantio direto e produtos transgênicos, entre outros fatores que
certamente levam ao que o autor chama de “agricultura sem agricultores”.
Portanto, necessário se faz tecer uma crítica sólida e contundente ao modelo
de ambientalismo divulgado como forma de minimizar impactos ambientais, uma vez
que este efetivamente não combate a injustiça social, pois justamente permite a
manutenção de instrumentos e da estrutura dominante, resultando de uma coalisão entre
“as grandes corporações financeiras internacionais, as grandes indústrias-laboratórios de
adubos e fertilizantes, de herbicidas e sementes, as grandes cadeias de comercialização
ligadas aos supermercados e farmácias e os grandes latifundiários exportadores de
grãos” (GONÇALVES, 2004, p.43).
Finalmente, ao tratar da proposta do desenvolvimento que emerge no
contexto do discurso da diminuição do uso de insumos e do impacto ecológico, o autor
pontua que outras tecnologias, talvez ainda mais perigosas, foram desenvolvidas, tais
como os transgênicos e as sementes terminator, sob o pretexto de um certo ganho de
independência dos agricultores com relação aos complexos agroquímicos. No entanto,
como bem destaca, o interesse por esses novos melhoramentos está escondida sob o
pleito já conhecido da lucratividade na forma de pretensas alternativas às velhas
roupagens.
Portanto, é patente a responsabilização por danos causados em terceiros no
caso da geografia desigual dos rejeitos e proveitos apresentada pelo autor, realidade em
muitos países europeus, onde empresas produtoras de transgênicos já abandonaram seu
comércio pela possibilidade de se verem responsabilidazadas pelos danos ocasionados
pelo uso de tais produtos. Diante dos fatos apresentados, faz-se imperioso o resgate dos
conhecimentos tradicionais das diferentes territorialidades por meio da relação com a
natureza, perseguindo-se uma verdadeira mudança na perspectiva convencional da
natureza como recurso para a perspectiva de riqueza, questão que precisa ser discutida e
incorporada pelo direito.
Não é outro o entendimento de Porto Gonçalves:

[...] esse modelo agrário-agrícola analisado, que se apresenta como o


que há de mais moderno, sobretudo por sua capacidade produtiva, na
verdade atualiza o que há de mais antigo e colonial em termos de
padrão de poder ao estabelecer uma forte oligárquica entre: (1) as
grandes corporações financeiras internacionais; (2) as grandes
indústrias-laboratórios de adubos e de fertilizantes, de herbicidas e de
sementes; (3) as grandes cadeias de comercialização ligadas aos

38
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

supermercados e farmácias; e (4) os grandes latifúndios exportadores


de grãos. Esses latifúndios produtivos são, mutatis mutandis, tão
modernos como o foram as grandes fazendas e seus engenhos de
produção da principal commodity dos séculos XVI e XVII: a cana-de-
açúcar, no Brasil e nas Antilhas. À época não havia nada de mais
moderno. A modernidade bem vale uma missa! (2004, p. 227).

A lógica do agronegócio repousa sobre a já contestada falácia capitalista,


demonstrando-se, portanto, bastante contraditória, tendo em vista que apesar de
determinar as relações de produção pela exploração do homem e da natureza, beneficia-
se da prerrogativa de produzir mais em menos tempo. Dessa forma, o discurso
ideológico maquiado por todas as supostas conquistas do conhecimento ocidental tem o
fito de maquiar seu real fundamento, isto é, a exploração do homem e da natureza.
Como bem destaca François Houtart na obra “El bien común de la
humanidad: un paradigma post-capitalista frente a la ruptura del equilibrio del
metabolismo entre la naturaleza y el genero humano” (2013), a organização capitalista
da economia, de fato, assenta-se sobre a lógica da ganância, ignorando deliberadamente
as externalidades sociais e ecológicas. Seguindo uma racionalidade estritamente guiada
pela troca, o capital é seu principal elemento, cujo papel é justamente o de organizar
toda uma coletividade que funciona ao seu redor.
Um olhar em retrospectiva permite a infeliz constatação de que com o
neoliberalismo, os ganhos advindos do período keynesiano no sentido de limitação e
proteção da questão social e ambiental foram novamente perdidos. No entanto, numa
conjuntura atual que parece não mais permitir as repetidas indagações, tenta-se hoje
solucionar a questão crítica dentro da perspectiva do capital. Nesse cenário, começam a
sobressair alternativas materializadas em novas práticas e modelos produtivos, como é o
caso do “capitalismo verde”.
Esse processo explica-se, inclusive, pela característica de adaptabilidade do
sistema, que diante dos riscos e danos tão abertamente expostos para a opinião pública,
preferem sujeitarem-se a incipientes regulamentações e a fazerem pequenas concessões.
Em contrapartida, o sistema segue derrubando os limites naturais planetários, visando
sempre à mesma lógica de ganho máximo num curto espaço de tempo, a custo do
capital humano cultural e social, desde que voltados à consecução de seus fins.
Assim é que os movimentos contra-hegemônicos devem orientar-se contra o
fundamento precípuo do capitalismo, sob pena de caírem nas armadilhas de alternativas
que se pretendem soluções, mas que, em verdade, não passam de meros tranvios

39
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sinuosos do sistema para sustentar o domínio de seus interesses. Portanto, o novo


paradigma precisa adotar um posicionamento de pensamento coletivo, traduzido pelo
autor como o conceito de “Bien Común de la Humanidad”, como um instrumento de
opção efetiva de mudança nas perspectivas de produção encampadas pelos países,
levando em conta a relação da natureza, a produção da base material da vida, a
organização coletiva social, política e cultural.
Nesses domínios, Houtart pontua que a relação social com a natureza deve
guiar-se pela regeneração da terra, por meio do uso racional dos recursos não
renováveis; processo que perpassa pela substituição da perspectiva de exploração
propagada pelo capitalismo, por aquela dos povos tradicionais, que se constrói no
respeito à terra como fonte primária da vida planetária. Outrossim, o autor destaca a
necessidade de que se entenda as relações de produção sem a concepção de exploração,
mas sim com base no princípio da solidariedade univesal.
Prosseguindo, registra-se também a importância da dimensão coletiva no
contexto da democracia participativa. A terceira dimensão é a dimensão coletiva,
havendo uma real intenção de integrar os indivíduos como sujeitos sociais participativos
no processo da mudança proposta. Por fim, o ponto central da tese apresentada reside no
interesse em integrar as culturas e saberes dos povos tradicionais, bem como de
recuperar sua visão holística de mundo e da natureza, de forma a aproveitá-la ao
conhecimento hoje consolidado, pondo-se um fim à hegemonia do saber ocidental.
O natural intercâmbio entre o homem e a natureza enfrentou uma histórica
ruptura em meio ao desenvolvimento do capitalismo e dos processos dele advindos, o
que proporcionou o desdobramento da lógica da divisão internacional do trabalho,
restando aos países em desenvolvimento, parca desenvoltura industrial ou mero papel
de provedores de matéria-prima. Disso decorrem diversos problemas, cujas
consequências são sistematizadas por Houtart.
Nesse ponto, destaca-se que o capitalismo, enquanto em contradição com os
objetivados meios de recuperação da relação com a natureza, vale-se de estratégias de
instrumentalização dos mecanismos sociais em função da concentração e do expurgo de
excedentes, por meio de políticas internacionais que versam no sentido de esgotamento
de recursos não renováveis e da degradação das fontes não renováveis.
Elencando os problemas decorrentes da lógica de dominação anteriormente
elucidada, o autor enumera algumas das principais questões, perpassando pelo
esgotamento dos recursos não renováveis e da destruição das fontes não renováveis, até

40
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

os efeitos ecológicos e sociais e o desafio ético que permeia toda a matéria. Nesse
campo, faz-se inevitável a crítica acerca da recuperação desse equilíbrio entre o homem
e a natureza, como novo paradigma de compreensão do funcionamento das dinâmicas
sociais.
Nesse aspecto, verifica-se que até o presente, abordou-se as principais
questões que envolvem o modelo de acumulação, marcado pelo predomínio da
concepção de valor de troca, em torno de uma organização coletiva que existe em razão
quase que exclusiva da prosperação do capital.
De fato, esses fatores que estão e sempre estiveram orientados por uma
racionalidade ocidental linear, fazem prevalecer uma visão de planeta como fonte
inesgotável de exploração a serviço daqueles que possuem condições de exercerem e
garantirem seus interesses. Por isso, consoante linha de raciocínio desenvolvida por
François Houtart, é imperioso que se conceba uma convergência entre as frentes de luta
social, bem como que se proceda à reestruturação das dinâmicas entre os agentes
internacionais.
Ainda sobre o assunto, em meio a todas as questões invocadas, Edgar
Morin, em “Terra Pátria”, trata do desenvolvimento da área técnica, advertindo que esse
processo acarreta a generalização do trabalho fragmentado sem iniciativa, faz
desaparecer a criatividade, a disponibilidade e o ritmo tranquilo de vida. Da mesma
forma, o desenvolvimento descontrolado e cego da técno-ciência invadiu todos os
tecidos das sociedades desenvolvidas, constituindo o núcleo motor da agonia planetária,
entendendo-se a tecno-ciência.
Há, por certo, uma invasão pela lógica da máquina artificial pelo humano,
processo que se vislumbra por meio do desenvolvendo de programas em detrimento de
estratégias, hiperespecialização em detrimento da competência geral, mecanicidade em
detrimento da complexidade organizacional. Nesse contexto, reina o pensamento
mecânico e parcelar, permitindo a consolidação de uma nova barbárie, que se reproduz
pela propagada incapacidade de criação de um pensamento complexoque exista fora da
concepção de progresso tida como aquela apta a justificar todos os meios adotados
ainda que eticamente questionáveis.
Diante das considerações esposadas, urge evidenciar que o agronegócio é
resquício do sistema de colonização europeu-ocidental que historicamente sustentou
suas pretensões meramente exploradoras no país, por meio do estabelecimento de

41
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

estruturas fundiárias que remetem aos diversos níveis de exploração, tanto do homem
quanto da natureza.
Na nova perspectiva que se estende aos olhos de todo o planeta, diante do
risco global que ameaça os limites da espécie humana, esse modelo não pode prosperar
como viável para a realidade brasileira, uma vez que o discurso falacioso e tendencioso
da elite produtora que se reproduz sob justificativas de produtividade e ganhos
econômicos, na realidade, acabam por excluir o meio ambiente e as relações dos povos
tradicionais que com ele sempre coexistiram, extinguindo seus saberes ou colocando-os
como hipótese surreal de meros sonhadores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente:


pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos
naturais. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis 1.1 (2004): 1-55.

HOUTART, François. El bien común de la humanidad: un paradigma post-capitalista


frente a la ruptura del equilibrio del metabolismo entre la naturaleza y el genero
humano. Disponível em:
http://www.alainet.org/active/64234#sthash.TeN3CXmF.dpuf”. Acesso em: 20 de mar
de 2016.

MACHADO, L. C. P e MACHADO FILHO, L. C. P. A dialética da agroecologia:


contribuições para um mundo com alimentos sem veneno. São Paulo: Expressão
Popular, 2014. p.29-65.

MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra-pátria. Piaget: 2001.


PORTO-GONÇALVES, C. W. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena
contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. In:
OLIVEIRA, A. U. de e MARQUES, M. I. M. (org.). O campo no século XXI: território
de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa amarela; Paz e Terra,
2004. p. 27-64.

42
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

SENSIBILIDADES OITOCENTISTAS NAS FIGURAS FEMININAS


DE JOSÉ FERRAZ DE ALMEIDA JR.

Anna Paula Teixeira Daher35

A experiência humana é parte fundamental da história e é por meio das


sensibilidades que melhor podemos traduzi-la. Nossas emoções e sentidos explicam as
experiências que nos moldam, nos constroem. O que vivemos faz o que somos, e o que
somos transparece na nossa visão de mundo, nas nossas ações e opiniões, nas questões
fundamentais que constroem nossa relação com o mundo e os acontecimentos que
fazem a história.
As sensibilidades capturam as razões e os sentimentos que qualificam a
realidade (PESAVENTO, 2007, p.10) apreendendo o conhecimento de uma maneira
que transcende o cientificismo e abre inúmeras possibilidades de leituras e
interpretações de uma época, tornando presentes ausências no tempo (VELLOSO, 2009,
p.01) por meio das observações do cotidiano, do sentir, do convívio.
As imagens são campo fértil para essa perspectiva; elas falam pelos seus
autores, falam por si e falam ao observador, que a partir da sua própria vivência e sua
própria experiência, fala dela de maneira pessoal. Todos esses horizontes são
possibilidades de análise de um determinado tempo histórico, de um determinado
acontecimento.
O estudo das imagens possibilita infindáveis leituras de uma gente e seu
tempo. A pluralidade de visualidades cria novos e surpreendentes significados de
ocasiões muitas vezes antes visitadas, lança nova luz sob um tempo que já pensamos
conhecer. As imagens tornam possível a tradução dessas subjetividades, materializam
sentimentos, exteriorizam experiências mas, de fato, as sensibilidades vão muito além
das subjetividades de cada indivíduo, tornando-as mais visíveis.

35
Membro do Grupo de Estudo de História e Imagem da Universidade Federal de Goiás. Mestranda no
Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES.

43
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Quem contempla deve considerar alguns elementos ao analisar as imagens,


questões muito mais que estéticas, muitas vezes políticas, expressadas pelo artista e pela
própria obra. A partir desses pontos, é possível identificar a relação do artista com o
mundo, por exemplo:

[...] toda a obra de arte pertence a uma época, a um povo, a um


meio, relaciona-se com certas representações e fins, históricos
ou não, obrigando o estudioso de arte possuir vastos
conhecimentos, simultaneamente históricos e muito
especializados, dado que a natureza individual da obra artística
contém pormenores particulares e especiais indispensáveis para
a sua compreensão e interpretação. (HEGEL, 1996, p. 62).

Se imagens são formas de expressão, representações, o que teriam as figuras


femininas de Almeida Jr. (1850-1899) tem para nos contar? Uma mulher voluptuosa, de
pele sedosa, uniformemente branca, mãos delicadas erguidas para o ar, segurando a
paleta e os pinceis, em uma apoteose. Seios à mostra, tronco envolto pelo cabelo longo,
um troféu da sua feminilidade. Parece surgir da névoa que encobre seus pés, ao longe
um caminho apenas insinuado. Vem de lugar algum e segue rumo ao nada, confiante,
linda, sedutora. É assim, para José Ferraz de Almeida Jr. (1850-1899), a pintura. Uma
deusa que evoca a Vênus36 e traz em si uma luz que tudo concentra, de onde tudo surge.
Se as sensibilidades nada mais são do que aquilo que nos damos a perceber
(PESAVENTO, p. 57, 2005) e a alegoria, segundo Walter Benjamin (apud
CANTINHO, p. 02, 1998), se apresenta como uma escrita imagética na qual podem ser
decifrados os sinais que nela são inscritos, cabe perguntar, o que essa pintura nos diz
sobre o fin du siècle, o qual o pintor ituano retratou das mais diversas formas?
Se o modo como enxergamos depende daquilo que somos, o que pretendia
Almeida Jr. (1850-1899) com sua alegoria da pintura? O que viu o pintor que o levou a
transportar, para a tela, aquela representação, aquela mulher?

36
O nascimento da Vênus (1486, Galleria Degli Uffizi) de Botticelli (1445-1510).

44
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Figura I
A Pintura (Alegoria) (1892)
José Ferraz de Almeida Jr. (1850-1899)
Óleo Sobre Tela 250 x 125 cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo

Como já destacado, a análise de imagens permite-nos múltiplas leituras,


resgatando as sensibilidades de outro tempo. Portanto, torna possível visualizar as
subjetividades que constroem a imagem das mulheres para os homens, especialmente se
consideramos que o pensamento alegórico implica em referir-se a algo e, na verdade,
apontar para um sentido mais além (PESAVENTO, p. 22, 1995)
O tema escolhido pelo artista é epítome da pintura acadêmica, mas a sua
visão da pintura não se enquadra dentro das normas da academia. Ripa (apud DINIZ,
2011, pg. 155) dava a fórmula da alegoria da pintura, uma senhora que usa cores
brilhantes, cordão de ouro e medalhão, com a paleta na mão esquerda e na direita um
pincel. Almeida Jr. fez da paleta uma consagração, da mulher uma explosão de força,
paixão, levando Maria Cecília França Lourenço (LOURENÇO, p 187, 2007) a apontar
que "a pintura, para o ituano, estaria talvez acima da moral vigente, das conveniências e
das convenções".
Mas poderiam as mulheres do dezenove viverem acima desses valores? A
própria história de vida do pintor demonstra que não. Ele teve sua vida ceifada, aos 49

45
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

anos de idade, em um crime passional que envolveu seu primo e amigo, José de
Almeida Sampaio (? - 1930), e a esposa deste, Maria Laura Sampaio, que também era
amante de Almeida Jr. (1850-1899).
Não se sabe a data exata de início da relação ilícita. Diva Pereira Mendes 37,
neta de Maria Laura, afirma que o romance entre sua avó e Almeida Jr. (1850-1899)
começou logo quando ele voltou da França, em 1882, quando passou a freqüentar a casa
dos Sampaio. Das cartas trocadas entre os amantes, pode-se afirmar que havia um
relacionamento entre eles desde 1892.
Guardadas pelo pintor, as cartas de Maria Laura foram o combustível para a
ira do marido traído que as encontrou e, diante da prova irrefutável de traição, lavou
com sangue a honra ferida, matando Almeida Jr. (1850-1899) e divorciando-se da
esposa.
Partindo do princípio que o historiador, ao trabalhar com as sensibilidades,
tem como ponto de partida a representação das pessoas em distintos momentos
históricos e a partir disso ele interpreta as conexões dessas representações em seu
universo (CORBIN apud SILVA, p. 6, 2012), verificando-se a distância da realidade de
Maria Laura para a dominante e forte figura de mulher pintada por Almeida Jr. (1850-
1899), fica a questão: quem é a mulher do final do oitocentos? É a mulher livre e
segura da obra ou a mulher dominada e massacrada pela ética patriarcal de então?
Para entender essa mulher, é importante lembrar que o período é símbolo de
intensas mudanças, de modernidade, de novos ares, novas ideias, novos valores. O
Brasil caminhava a passos largos para um mundo de intensas novidades que culminaria
com a Belle Époque e a Semana de Arte Moderna de 22, com mulheres pintoras e
transgressoras. Mas, por ser período de transição, fácil é encontrar a mulher como Maria
Laura, que casou pela vontade da família e, ao tentar se libertar, perdeu tudo, como é
possível encontrar mulheres pintoras, escritoras, atuantes, conquistando independência e
espaço.
Embora a nudez não seja comum nas pinturas alegóricas, a alegoria nua de
Almeida Júnior (1850-1899) responde, para alguns à “recuperação mitológica do corpo
e da corporeidade”, como um ato transgressor, relacionado ao desejo sobre a imagem.
Como argumenta Edoardo, esta é uma opção relacionada à cultura:

37
Revista Campo e Cidade. . Edição 67, agosto de 2010 – Almeida Júnior.

46
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

[...] a construção da imagem alegórica constitui-se na recuperação


mitológica da corporalidade no olhar estético, pois “o corpo, não
sendo uma entidade natural e sim um fato de cultura”, faz-se de
estético em erótico, por meio da proibição transgredida do desejo e do
olhar sobre ele. O olhar sobre a imagem, nesse sentido,transforma-se
também num desejo sobre a imagem, de modo que a construção das
imagens simbólicas, metafóricas e/ou alegóricas é uma incitação a um
desejo que é primordial e que não será satisfeito materialmente.
(EDOARDO, 2009).

Todavia, assim como na vida, na arte essa representação de mulher livre,


satisfeita e sedutora não é a regra, pois na maioria dos casos há a idealização romântica
da figura da mulher. O homem que imagina e muitas vezes chega a santificar a figura da
mulher acaba por contribuir para até mesmo a formação da auto imagem feminina
(KRÜGER e MAKOWIECKY, 2010).
Assim sendo, teria a inspiração do artista vindo das artes visuais do Antigo
Regime que, como lembra Jorge Coli (COLI, 2004), centrava na representação das
mulheres o caráter erótico? Ou pretendeu ele tão somente reproduzir a nova visão que
surgia em relação às mulheres no final do século dezenove?
Por outro lado, haveria na obra características da mulher romântica,
enigmática e misteriosa? Uma mulher que, embora livre de crueldade 38, gera temor e
erotismo, juntamente com o desejo?
O nu (inclusive o feminino) tem sido representado39 de várias formas
através dos tempos. Há esculturas primitivas de mulheres nuas, esculturas greco-
romanas e um período de desaparecimento quase total durante a Idade Média 40. A
representação do nu ressurge com o Renascimento41, prolifera nas academias42 mesmo
no final do século XIX, quando a arte já sofrera muitas influências e transformações.

38
Outra característica da mulher romântica também lembrada por Coli (COLI, 2004).
39
O corpo representado nunca é um corpo real, ao mesmo tempo, a representação se refere à nossa
experiência vivida; ademais, essa experiência não é apenas visual, já que pode ocupar todos os
sentidos.(BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo imaginário na
pintura acadêmica do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/obras/corpo_academia.htm).
40
O nu desapareceu quase totalmente da história da arte ocidental durante séculos. O corpo aparecia
sempre embaixo dos panos sem relevos, com pregas hirtas e volumes ausentes. Nus, e tampando-se
depois de comer a maçã, Adão e Eva era a única nudez concebível na Idade Média. Os corpos mal
esboçados encontravam-se representados em igrejas ou nas portas e na face dos túmulos (HAYEK, Thais
Fernanda Martins. Transformações do nu feminino no século XIX. Dissertação de mestrado apresentada
ao Programa Interunidades de Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, 2007, pg. 17).
41
A partir do século XIV, os nus começam a surgir na arte novamente através das representações de
banhos. Nus também apareceram os eleitos do Juízo Final, estes libertos do pecado, porque é esse corpo o
próprio vestuário do homem. (HAYEK, Thais Fernanda Martins. Transformações do nu feminino no

47
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Mas se o imaginário faz parte de um campo de representação e, como


expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma
definição da realidade. (MAKOWIECKY, 2003), o que pretendia Almeida Jr. (1850-
1899) com sua alegoria da pintura?
Assim como se sabe que Almeida Jr. (1850-1899) foi um pintor de
formação acadêmica, ou seja, sua formação passou pela feitura de cópias dos grandes
mestres (por exemplo a obra Tarquínio e Lucrécia, cópia de uma obra de Vitor
Meireles, de um quadro de Ticiano, de 1874, que hoje faz parte do acervo da Pinacoteca
do Estado de São Paulo), já ficou há muito estabelecido que ele transcendeu sua
formação acadêmica43. Portanto, embora seja impossível observar a alegoria da pintura
do ituano sem identificar a enorme influência de obras clássicas, especialmente o já
citado O nascimento da Vênus (1486, Galleria Degli Uffizi, Figura II) de Botticelli
(1445-1510) e o Nascimento de Vênus (c. 1863, Musée D´Orsay - Figura IV) de
Alexandre Cabanel (1825-1889), é importante também apontar que a obra não está
restrita aos limites acadêmicos do estilo.
De fato, a alegoria nos dá a nítida impressão de que Almeida Jr. (1850-
1899) pretendia uma nova significação para elementos e gêneros da tradição clássica. O
artista não se deixou influenciar pelo fato de que se trataria de tema ultrapassado,
desgastado. Pintou-a em um período no qual se questionava o academicismo, quando
ele já tinha deixado a escola há tempos e já era um pintor estabelecido e reconhecido.
Escolheu o nu, quando o gênero também passava por um momento de transformações e
questionamentos:

[...] o mito, longe de ser um símbolo para a transmissão de


significados morais e filosóficos, que permanecem apenas no segundo,
se torna o pretexto para representar uma imagem ideal da beleza
feminina moderna, individualista e sensual. (MIGLIACCIO, 2009, p.
66)

século XIX. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa Interunidades de Estética e História da


Arte da Universidade de São Paulo, 2007, pg. 17).
42
A nova concepção acadêmica trouxe técnicas exatas de como fazer, pensar e executar a arte. Os nus
deste período tinham proporções exatas e a cor nunca sobrepunha à obra, não havia a mão do artista, mas
o cálculo harmônico do homem. As academias eram as patronas do “bom gosto”26, e este estava a
serviço da razão. (HAYEK, Thais Fernanda Martins. Transformações do nu feminino no século XIX.
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa Interunidades de Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo, 2007, pg. 30).
43
“Almeida Júnior fez um esforço sincero para produzir uma pintura que se aproximasse mais da
realidade brasileira e deixasse de lado o universalismo vazio das fórmulas acadêmicas”. (NAVES.
Rodrigo, “O sol no meio do caminho” in Novos Estudos – 73/ nov. 2005, pg. 43)

48
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A obra de Almeida Jr. (1850-1899) também conta com outras mulheres em


tintas modernas; ele foi responsável por muitas cenas envolvendo a figura feminina. As
imagens falam de figuras que, embora sem nome, são representativas de uma época de
mudanças, quando as mulheres brasileiras davam os primeiros passos para a transição
da vida privada para a vida pública.

Figura II Figura III


O Nascimento da Vênus - detalhe A pintura (alegoria) - detalhe
1482 1892
Sandro Botticelli José Ferraz de Almeida Júnior
Têmpera sobre tela 172.5 x 278.5 cm Óleo Sobre Tela 250x225 cm
GalleriaDegliUffizi- Florença Pinacoteca do Estado de São Paulo

Figura IV
O nascimento de Vênus (c.1863)
Alexandre Cabanel
Óleo Sobre Tela 130 x 225 cm
Musée D´Orsay - Paris

49
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Considerando-se que a imagem é mais que a simples expressão de um


contexto, é preciso lembrar que essas figuras de mulher serão visualizadas a partir de
realidades específicas, levadas a diversos contextos culturais. Estilo e forma
transcendem a significação de uma época e assumem os mais diversos significados,
todos relevantes por expressarem, também, a sua própria época, criando novas
referências, novas respostas.
É relevante considerar a contextualização social, a dinâmica do período, o
papel da mulher em casa e na sociedade para entender como essas sensibilidades e o
papel das mulheres na sociedade refletem-se na representação delas nas artes. Seriam as
mulheres representadas nos extremos? Como santas, em motivos religiosos, ou como
sedutoras, nuas e envoltas em véus cuidadosamente posicionados, nunca como um meio
termo?
Herdeiras da tradição colonial de representação mariana, após uma maior
laicização da arte no séc. XVIII, as figuras de mulher passam a consagrar novos valores:

A figura feminina clássica é feita de formas: corpos generosos que se


exibem nos nus artísticos; e presenças majestosas representando
personagens imperiais e fulgurantes madonas. Mulheres ondulantes,
recobertas de tecidos e transparências, portando jóias e adornos
aparecem consagrando os valores aristocráticos de uma elite política e
econômica. Expressando uma sensualidade nova, mais terrena e
materialista, a figura feminina abandona os ideais ascéticos da Idade
Média (COSTA, p. 02, 2004)

Essas mulheres do séc. XIX são encontradas em cenas de costume, nus


artísticos e retratos (COSTA, p. 91, 2002). Eram essas as mulheres que ficavam em
casa, confinadas aos tratos com a família, e que vinham conquistando novos e públicos
espaços, demonstrando interesses próprios, como a leitura, mesmo que a sociedade
(urbana) brasileira caminhasse mais lentamente que as sociedades européias.
A produção de Almeida Jr. (1850-1899) contemplou várias mulheres
leitoras como nas telas Leitura (PESP, 1895, Figura V) e Moça com Livro (MASP, sem
data, Figura VI):

Almeida Júnior vai introduzir as mulheres com hábitos peculiares,


dotes intelectuais e costumes mais liberados das convenções, [...]. A
retratação das mais liberadas em pinturas lhe garante descrições
apaixonadas, referências elogiosas e uma imagem bem dotada entre os
homens daquele finessecular. Com a mesma provável intenção, as
telas carreiam certo acento orientalista, remetendo a um imaginário de

50
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

mil e uma noites e harém, muito caro para o provincianismo, em que a


mãe de família se contrapõe às mulheres do prazer, paradoxo
característico de uma parcela da sociedade, a quem o artista
certamente falava. Contrariando essa visão em que a mulher se revela
objeto e não sujeito, o ituano imortaliza as que lêem livros, hábito
inovador, revertendo-se o contexto vigente de total falta de autonomia
intelectual diante do estreito ambiente familiar. A própria literatura é
parcimoniosa no relato de mulheres leitoras e, quando estas aparecem,
não raro são estrangeiras ou portam títulos nobiliárquicos, indicadores
de que o hábito de leitura ainda se constitui em uma prática iniciante e
em um atributo raro (LOURENÇO, p. 191, 2007)

No caso das mulheres leitoras, o ato de ler ainda se confunde com situações
de intimidade. Em Leitura, (Figura V, 1895), uma das raras cenas urbanas do artista
(LOURENÇO, pg. 78, 2009), a jovem mulher lê em um balcão, local que embora seja,
de certa forma, público, é parte de seu espaço particular, do seu "universo burguês e
interiorano44". Na cena, vê-se a insinuação de outra pessoa, por meio da capa masculina
que pende precariamente de uma cadeira bem ao canto. Estaria esse homem a observá-
la, flagrando o prazer e a absorção da leitura? E o que leria a moça? Uma obra amena e
delicada, como era recomendada às boas moças de então (MORAIS, 1998)? Ou seria
ela uma transgressora, lendo romances proibidos?

Figura V
Leitura (1892)
José Ferraz de Almeida Júnior
Óleo sobre Tela, 95 x 141 cm.
Pinacoteca do Estado de São Paulo

44
DIAS, Elaine. "Almeida Junior" - 1ª ed - São Paulo: Folha de São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2013,
p.60.

51
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Em Moça com livro (Figura VI, sem data) temos uma moça destacada pela
luz, em um contraste com o fundo escuro de um jardim. Deitada na grama, ela marca a
folha do livro com os dedos, interrompendo a leitura e, com os olhos voltados para o
alto, parece ponderar. Mas pondera sobre o que leu? Talvez a cena lida tenha trazido
alguma lembrança, talvez ela pense em outra coisa, que a perturba, e a leitura seja uma
forma de distrair a mente.
Embora possua o moderno hábito de ler, a moça é sensual, com os lábios
avermelhados e as bochechas delicadamente pintadas, usando uma roupa que deixa
entrever o colo alvo e sensual, discretamente a vontade também uma situação de
intimidade, ainda que em um local externo.
A respeito dessa obra, reverbera Maria Cecília França Lourenço
(LOURENÇO, p. 193, 2007) que "as soluções estampadas com riqueza de detalhes por
Almeida Júnior concebem narrativas femininas, sonhos e mistérios, e dificilmente se
imaginaria que seja uma escolar com dificuldades nas lições."

Figura VI
Moça com livro (sem data)
José Ferraz de Almeida Júnior
Óleo sobre Tela, 50 x 61 cm.
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP)

Repouso (Figura VII, sem data) é um exemplo de grande sensualidade. Uma


mulher que parece ter caído no sono enquanto lia um livro, que se apresenta pronto
para chegar ao chão, dorme alheia ao observador que a retrata, envolta pela luz que
entra através do vidro da janela, acomodada entre almofadas, um dos braços levantado,

52
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

apoiando a cabeça, o vestido aberto mostrando as rendas de suas roupas de baixo. Uma
figura sensual e, também nesse caso, protegida por sua intimidade.
Coli (2004) lembra que na arte de Courbet a representação do feminino é
enigmática (mas não violenta), um mistério orgânico. A lição sobre o mestre do
realismo francês parece descrever a tela de Almeida Júnior (1850-1899), mesmo se
considerarmos a existência de um livro na obra:

Courbet nos mostra mulheres desprovidas de ação ou de


racionalidade. Inacessíveis, ele só pode apresentá-las nos momentos
em que a inteligência não se revela. As mulheres de Courbet nunca
pensam, nunca são ativas: dormem ou digerem e são sempre
opulentas, isto é, o organismo se dá um extraordinário explendor de
magníficas carnes. (COLI, pp. 2 e 3, 2004)

Figura VII
Repouso (sem data)
José Ferraz de Almeida Júnior
Óleo sobre Tela 85 x 115 cm
Coleção Particular, Rio de Janeiro

Por sua vez, Saudade (Figura VI, 1899) mostra um momento de


introspecção, ligado a pessoa que não esteja retratada, é a razão de ser da obra. Parece
ter uma influência neoclássica, também destacada por Coli (2004), quando lembra que o
pintor Jacques-Louis David (1748-1825), o principal ator desse movimento, determina
com clareza o papel feminino dentro da família, no gineceu, enquanto mães, irmãs, mas,
sobretudo, como mulheres passivas – no sentido etimológico do termo, de sofrer,
receber, não agir – já que a ação é reservada aos homens.

53
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Nesse caso, o sofrimento da mulher está no primeiro plano, ela é o grande


destaque. Em Saudade (Figura VI, 1899), a tragédia já foi anunciada, e o retrato já nos
fala das consequências do momento ruim. Uma mulher enlutada prepara sua partida,
cercada de sinais de uma pessoa que não retornou: a foto amassada na mão, o chapéu
pendurado perto da janela.
A mulher lamenta, de dentro do seu lar, afastada do local onde o infortúnio
se deu, longe do centro das decisões. Nela, o sentimento retratado se espalha,
impossível de se conter na tela. Monteiro Lobato (apud PHILLIPOV, 2007) descreve a
pintura como um poema inteiro de mágoas resignadas. De fato, não há na obra uma
explosão de dor, o sofrimento é privado, contido.
Com efeito, é dessa forma que se comportavam a maioria das mulheres do
fin du siècle, atadas a valores e ideais morais que determinavam seu comportamento,
tanto na intimidade quanto em público, sempre adotando uma postura respeitosa e
contida, fugindo de qualquer comportamento que pudesse ser considerado frívolo.

Figura VIII
Saudade (1899)
José Ferraz de Almeida Júnior
Óleo sobre Tela, 197x101cm.
Pinacoteca do Estado de São Paulo (PESP)

54
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Assim, teria Almeida Jr. (1850-1899) reproduzido, em sua visão de mundo,


o reflexo claro da sociedade patriarcal e machista do final do séc. XIX? De tudo o que
se vê, é possível afirmar que sua obra não apresenta uma visão estereotipada da mulher,
do sexo feminino.
Ele mostra o que vê, mas também mostra o que viu na Europa, mostra a
modernidade chegando e passando, vagarosamente, a fazer parte do cotidiano das
pessoas. A mulher vive na intimidade, chora a ausência do amado, mas ela empunha um
livro, ela é uma poderosa figura nua que representa o que para ele há de mais
fundamental: a arte.
A variedade das representações femininas na produção do artista. não só
resulta em uma coletânea de situações cotidianas, a substância viva do conhecimento
histórico, nas palavras de Walter Benjamin45, envolvendo sentimentos como o sonho, a
alegria, a saudade, que acabam sendo visualizadas e interpretadas tendo-se em conta a
nossa visão de mundo. Como lembra Berger46, o modo como enxergamos as coisas
depende do nosso lócus de enunciação.
Tratam-se de peças únicas e muito particulares que, observadas sozinhas e
no conjunto da obra do pintor ituano, mescladas com nossas percepções de mundo, com
as percepções de mundo do século dezenove, tornam possível tecer parte da
sensibilidade daquele tempo, e também como ela chegou até nós, moldando as nossas
próprias sensibilidades.
Dos incontáveis ângulos de leitura e discussão dos sentimentos
demonstrados em todas as telas aqui vistas, fica mais fácil entender porque as obras de
arte são instrumentos tão utilizados nessas análises, possibilitando a compreensão
daquilo que nos faz e dos antecedentes que nos constroem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo


imaginário na pintura acadêmica do século XIX. In 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1,

45
Apud PEREIRA, Marcelo de Andrade. "Saber do Tempo: tradição, experiência e narração em Walter
Benjamin." Revista Educação e Realidade jun./dez.
46
Apud COSTA, Cléria Botelho,.Resenha de ERTZOGUE, Marina Haizenreder & PARENTE, Temis
Gomes (Orgs.). História e sensibilidades. Brasília: Paralelo 15, 2000. In Rev. Mosaico, v.1, n.1, p.106-
108, jan./jun., 2008

55
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

jan./mar. 2011. Disponível em:


http://www.dezenovevinte.net/obras/corpo_academia.htm. Acessado em 01/06/13.

CANTINHO. Maria João, Anjo Melancólico: ensaio sobre o conceito de alegoria de


Walter Benjamin. Disponível em
http://www.academia.edu/1158878/O_Anjo_Melancolico_Ensaio_sobre_o_Conceito_d
e_Alegoria_de_Walter_Benjamin. Acessado em 30/05/13.

COLI, Jorge. A representação da mulher no século XIX: de David a Courbet. Ciclo de


Palestras Um olhar sobre o feminino promovido pelo Itaú Cultural para discutir e
aprofundar questões expostas na exposição O Preço da Sedução - do Espartilho ao
Silicone, que ocorreu de 18 de março a 30 de maio de 2004, com curadoria de Denise
Mattar. A palestra foi proferida em 22 de abril. Disponível em
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2132&cd_materia=645, Acesso
em 17/11/12.

COSTA, Maria Cristina Castilho. A imagem da mulher na arte brasileira – do


acadêmico ao moderno. Ciclo de Palestras Um olhar sobre o feminino promovido pelo
Itaú Cultural para discutir e aprofundar questões expostas na exposição O Preço da
Sedução - do Espartilho ao Silicone, que ocorreu de 18 de março a 30 de maio de 2004,
com curadoria de Denise Mattar. A palestra foi proferida em 06 de maio. Disponível em
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2132&cd_materia=645. Acesso
em 17/11/12.

COSTA, Maria Cristina Castilho. A imagem da mulher: um estudo de arte brasileira.


Senac, 2002.

DINIZ, Thais Flores Nogueira, SANTOS, Ariane Souza. Imagens em palavras: as cinco
formas ecfrásticas nos poemas de Shawna Lemayin. In Todas as Letras R., v. 13, n. 2,
2011.

EDOARDO, Laysmara Carneiro, Imagem e alegoria de mulheres, erotismo de


perspectiva In Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN:
2175-943X Páginas 737-751.

56
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

HAYEK, Thais Fernanda Martins. Transformações do nu feminino no século XIX.


Dissertação de mestrado apresentada ao Programa Interunidades de Estética e História
da Arte da Universidade de São Paulo, 2007.

HEGEL, W. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LOURENÇO, Maria Cecília França. Espaço para a vida moderna. In Almeida Júnior,
um criador de imaginários. Catálogo da exposição realizada na Pinacoteca do Estado de
São Paulo entre os dias 25 de janeiro e 15 de abril de 2007.

_____________________________. Mulheres Avançadas. In Almeida Júnior, um


criador de imaginários. Curadoria de Maria Cecília França Lourenço e Coordenação
Editorial de Ana Paula Nascimento. Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo,
fevereiro de 2007.

_______________________________. Leitores/leitura na pintura In Arte Brasileira na


Pinacoteca do Estado de São Paulo, do séc XIX aos anos 1940. Org. Taisa Helena P.
Palhares. São Paulo: Cosac Naify/Imprensa Oficial/Pinacoteca, 2009, pp.72/97).

MAKOWIECKY, Sandra, KRÜGER, Aline Carmes. A representação da mulher na


obra de Franklin Joaquim Cascaes – Possíveis Leituras. Comunicação apresentada no
evento Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 2010. Disponível
em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1297306999_ARQUIVO_artigo_K
ruger_Makowiecky_fev_2011.pdf. Acessado em 23/09/12.

MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. A leitura de romances no século XIX. Cad.
CEDES [online]. 1998, vol.19, n.45 [cited 2013-10-13], pp. 71-85 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32621998000200005&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 10/09/13.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o


imaginário. In Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 15, nº 29, pp 9-27, 1995.

57
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

_________________________. Sensibilidades no Tempo, Tempo das Sensibilidades. In


Journée d’étude, Représentations et sensibilités dans les Amériques et la Caraïbe
(XVIe-XXIe Siècles). Mémoires singulières et identités sociales, EHESS, jeudi 4 mars
2004, coord. Frédérique Langue (CNRS) e Sandra Pesavento (UFRGS). Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/index229.html. Acessado em 15/11/12.

PHILIPPOV, Karin. A Saudade de José Ferraz de Almeida Júnior, uma análise dos
aspectos iconográficos. Comunicação apresentada no III Encontro de História da Arte –
IFCH/UNICAMP, 2007. Disponível em:
http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2007/PHILIPPOV,%20Karin.pdf. Acessado em
23/11/12.

SILVA, Raniery Bezerra da. O tema das sensibilidades na produção historiográfica


contemporânea. Anais do VI Simpósio Nacional de História Cultural. Escritas da
História: ver, sentir e narrar. UFPI, 2012. ISBN: 978-85-98711-10-2.

VELLOSO, Mônica Pimenta. Sensibilidades Sociais e História de Vida. In Revista


Fênix. Vol 6, ano VI, nº 3, Jul/Ago/Set de 2009.

58
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA: A MONA LISA DO NORTE DE


JOHANNES VERMEER

Cristina Susigan 47

A Moça com Brinco de Pérola é universalmente reconhecida como uma das


obras primas absolutas de Johannes Vermeer. O tema deste quadro parece ser uma
extensão lógica dos evidentes interesses que o mestre de Delft tinha na presença
feminina e em suas atividades. O quadro, talvez seja, par do Retrato de uma Jovem, pois
ambos teem uma simplicidade na composição e estilo. Todas as três figuras de busto –
ou quatro, se a Moça com Flauta for tida em conta – olham para fora do quadro
diretamente para o observador. Estas pinturas podem ter sido uma tentativa para
explorar os mais íntimos aspectos da natureza feminina. Nas restantes composições, em
que as mulheres são vistas ocupadas em várias atividades, o artista parecia não estar
somente interessado nas mulheres em si, mas também nas suas relações com o contexto
social.
De todas as figuras de busto, talvez Moça com Brinco de Pérola seja o mais
cativante. Neste quadro parece que o tema central não é tão somente a mulher por nós
observada, mas a relação que ela tão vivamente provoca no observador. Esta pode ser a
razão para a imensa popularidade deste trabalho.
Entretanto, após mais de um século de estudos, a obra ainda coloca questões
significativas. Quem foi a modelo e seria a pintura um retrato? Por que permaneceu na
mais completa obscuridade até ser redescoberta em 1882 e vendida pelo preço de uma
reprodução? Seria par de um quadro semelhante? Teria Vermeer vendido o quadro
durante a sua vida? Por que o fundo original, de um profundo verde transparente foi
substituído pelo fundo preto que vemos hoje? A pérola era real? Que significado teria o
turbante? Que procedimento de pintura empregou? Que pigmentos usou?
O quadro pode ser considerado um “banquete” para os olhos. Representa o
processo de ver e ser visto e oferece uma metáfora visual pelos métodos e estilos

47
Cristina Susigan, Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura do Programa de Pós-Graduação
na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bolsista Capes. Em suas pesquisas, dedica-se às relações
interartes (ekphrasis), história, teoria e crítica de arte e literatura e cinema. Exerceu a docência no ensino
superior na ESMAE, Portugal. E-mail: csusigan@gmail.com

59
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

trabalhados pelo artista. A análise pictórica de Vermeer faz a união entre a imaginação e
a beleza, amor e poder, criação e mistério.
Datas e Afinidades
Os estudiosos contemporâneos, na sua generalidade, acreditam que Vermeer
pintou Moça com Brinco de Pérola entre 1665-1667, quando ele tinha cerca de 35 anos.
Este foi um período em que também produziu muitos trabalhos como em Senhora
Escrevendo, Moça com Chapéu Vermelho, Senhora e Empregada Doméstica e A Arte
da Pintura. As datas precisas em que as obras primas de Vermeer foram pintadas tem se
revelado de difícil verificação porque nenhum documento assinado comprova uma
ligação direta ao estúdio, e o mestre de Delft apenas datou três dos seus trabalhos,
enquanto assinou outros poucos. Vermeer assinou seu nome, da maneira habitual, no
canto superior esquerdo, de Moça com Brinco de Pérola.
Como não se reconhece a existência dos seus antecedentes, no entanto, e
porque a moça veste roupas cujo modelo não pode ser imputado a uma época em
particular, os estudiosos não têm evidências físicas ou culturais que possam precisar a
data do quadro. Consequentemente, para estabelecer o período acima compreendido,
eles teem se apoiado em uma comparação de técnicas e estilos com outras pinturas de
Vermeer.
Moça com Brinco de Pérola não revela o grosso empasto observado em
outros trabalhos feitos no início de 1660 – pinturas como A Leiteira (1658-1660), A
Ruela (1657-1658), e a Vista de Delft (1661). Mas também não tem a uniformidade, das
figuras relativamente não moduladas, característica padrão das pinturas feitas depois de
1669 – A Rendeira (1670), Mulher tocando Guitarra (1670), e Senhora escrevendo
carta com sua Criada (1670). De acordo com Wheelock, Jr.:

In none of his painting from the 1670s does Vermeer achieve the
softly diffused flesh tones evident here, which he created by layering a
thin, flesh-colored glaze over the flesh tones. The artist also diffused
the contour of [his model’s] check by extending this thin glaze over
the edge of the thicker under layer, a technique during the mid1660s
in painting such… (WHEELOCK, JR, 2000, p. 186).

Além disso, o quadro parece ser conceptualmente diferente dos gêneros de


cenas de interiores que Vermeer pintou durante aquele mesmo período. Somente A
Senhora e sua Criada (1667) representa figuras contra um relativo fundo negro (neste
caso, existe uma sugestão de cortina). No entanto, uma investigação mais detalhada

60
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

revela alguns paralelismos entre Senhora e Empregada doméstica e a Moça com Brinco
de Pérola. No primeiro quadro, a senhora sentada assume um registro visual rígido em
contraste com a criada em pé; ela brilha com a mesma luz difusa que caracteriza a
rapariga do último trabalho e alcança o mesmo sentido de profundidade do cenário meio
escuro.
Três outros trabalhos de Vermeer que são semelhantes e que chegaram até
nós, um deles aceita-se que Vermeer tenha começado mas não completado o
controverso Moça com Flauta. O outro, Moça com chapéu Vermelho é muito pequeno e
a modelo olha para além do observador, para a direção oposta; como característica
principal um invulgar tapete ao fundo. No entanto, a Retrato de uma Jovem (1665-1667)
é conceptualmente tão alinhado com a Moça com Brinco de Pérola que alguns
estudiosos acreditam que eles sejam um par, pintados para revelar contraste.
Os retratos que faziam par com outro semelhante48, eram uma convenção
comum entre os artistas do século XVII que faziam pares de quadros com maridos e
mulheres ou então, de irmãos. Os estudiosos questionam sobre qual dos quadros em
questão são “bustos”49 ou retratos. O primeiro era um termo que os artistas holandeses
deram para caracterizar estudos ou idealizar representações de pessoas para assim poder
divulgar suas qualidades técnicas. Ao demonstrar que podiam executar texturas e
misturas de cores nas pinturas de bustos, por exemplo, os artistas esperavam animar
seus negócios. Como Walter Liedtke, afirma, que os bustos tinham um “intagible our of
the studio”, e significativos “...essays to be appreciated primarily for their artistry and
imagination” (LIDTKE, 2000, p. 393). Os retratos, por outro lado, eram representações
cuidadosas de uma pessoa em particular, usualmente feito através de uma encomenda.
Indiferente a estes propósitos, Moça com Brinco de Pérola parece um quadro que
Vermeer pintou com uma modelo.
Tanto Retrato de uma Jovem como a Moça com Brinco de Pérola são quase
do mesmo tamanho e as modelos, estão sentadas contra o mesmo fundo negro, olhando
ambas por cima do ombro esquerdo e sorrindo levemente. Existem muitas outras
semelhanças, no entanto – o colar branco, os brincos de pérola, o turbante dourado. Mas
também existe pontos diferentes, como o cabelo coberto da moça do primeiro quadro,
fortemente puxado para trás, a sua pérola que é mais pequena, e o incômodo pedaço da
sua mão, que somente é visível na base do quadro, estranha sugestão do uso de um

48
Termo original pendant, do latim pendente.
49
Do original troine.

61
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

manequim. (Lidtke chama este quadro de Vermeer como “elisions of what is know [in
this case anatomy] in favour of what might be seen [depending upon the observer]”)
(LIDTKE, 2001, p. 390-391). Talvez o mais significativo, os lábios da jovem parecem
secos e permanecem fortemente apertados, enquanto que os da tela Moça com Brinco de
Pérola estão úmidos e abertos, expondo seus dentes. A modelo de Retrato de uma
Jovem está envolta em um pesado xaile cor de pérola, talvez para enfatizar sua absoluta
pureza em contraste com a evidente sedução natural da Moça com Brinco de Pérola:

The cascading folds of her raiment glister with Baroque flourishes and
soft decoration as they disappear into the void, complementing the
subdued shadows and muted highlights of the young woman’s face
(LIDTKE, 2001, p. 390-391).

Descrição pormenorizada do quadro a Moça com Brinco de Pérola


Vermeer é um personagem misterioso não somente porque seu trabalho é
extraordinário e raro, mas também, porque os temas de seus quadros, a princípio
facilmente identificados, exige posteriormente uma reflexão mais profunda devido a
complexidade de interpretação dos símbolos ali inseridos. Nos quadros de Vermeer, a
mulher, como já foi dito anteriormente, ocupa o tema central e, normalmente, são
mulheres ocupadas de uma tarefa diária, no entanto, isto é mais intrigante quando
observamos o quadro Moça com Brinco de Pérola.
Nesta tela, Vermeer abandona os fundos luminosos, a profundidade
mediante escalonamento de planos, a relação da personagem com o meio que a rodeia,
para concentrar-se unicamente neste rosto. Neste quadro, uma menina adornada com um
exótico turbante e usando um proeminente brinco de pérola, está de lado, olhando para
seu observador, por cima do ombro esquerdo – a forma sonhadora como olha e a cabeça
levemente inclinada, dá a impressão de estar perdida nos seus pensamentos; contudo,
fixa o olhar atentamente no observador, de uma maneira direta e íntima. Na opinião de
Leonard J. Slatkes:

The unusually direct contact between sitter and spectator, and the
slightly parted position of the lips, presents a sense of immediacy so
great as to imply strongly some specific act or identity – such as a
sybil uttering her prophecy or some biblical personage (SLATKES,
1981, p. 69).

62
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Tem os lábios úmidos, a boca levemente aberta, como se falasse conosco. O


momento captado pela pintura é sedutor – um misto de sensualidade com um inegável
toque de inocência. Sua expressão é enigmática, exatamente por esta razão, é quase
irresistível imaginar o que ela pretende transmitir. A jovem está vestida com um casaco
amarelo acastanhado, sem adornos, o que faz salientar o branco luminosos da gola. Um
outro contraste é formado pelo turbante azul, com uma ponta pendente amarelo limão,
como um véu sobre o ombro. Apesar de se figurar como exótico, o turbante era um
adereço popular na Europa já no século XV, exercendo um grande fascínio.
Vermeer usou cores quase puras neste quadro, limitando a escala de tons. A
jovem é vista contra um fundo escuro, estabelecendo um contraste muito plástico. Nas
palavras de Jan Veth, “More than with any other Vermeer one could say that it looks as
if it were blended from the dust of the crushed pearls” (WHEELOCK, JR., 1995,
p.168).

Quem Era Ela?


Embora a moça tenha estado olhando sob o seu ombro esquerdo por mais de
400 anos, a identidade da menina continua em aberto. Estudiosos e leigos tem
frequentemente especulado quem ela poderia ter sido. Wheelock, Jr., no seu estudo
sobre Vermeer, afirma:

Set against a dark, undefined background, and dressed it in an exotic


costume, this striking young woman cannot be placed in any specific
context. She holds no attributes that might, for example, identificy her
as an allegorical figure, perhaps a muse or a sybil (WHEELOCK, JR.,
1995, p.168).

Até mesmo a idade da moça não é certa, “Almost certainly, it is this very
look of a historic or iconographic framework that conveys such immediacy to all who
view her” (WHEELOCK, JR., 1995, p.168).
Das mais de quarenta representações que Vermeer fez de mulheres, a Moça
com brinco de Pérola é o que desperta maiores interpretações, no entanto pouca atenção
é dada para os incidentes biográficos que compõem a fisionomia, primeiro requisito
para um retrato formal naquele tempo.
De qualquer maneira, devido à natureza de intensa intimidade observada nos
quadros de Vermeer, seria natural supor que o mestre holandês representava membros
da sua própria família em suas composições, embora os investigadores defendam que a

63
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Moça com Brinco de Pérola não é concebido como um retrato do século XVII, segundo
o termo holandês usado na época. Gerard Terbroch, um artista holandês cujos temas e
técnicas refinadas acredita-se ter influenciado o jovem Vermeer, usava frequentemente
membros da sua própria família como modelos, em particular sua meia irmã Gesina.
Talvez este fato em particular adicione o sentimento de ternura das figuras femininas de
Terboch (VERGARA, 2003, p. 237).
De qualquer modo, a candidata apontada com maior frequência como
modelo de Moça com Brinco de Pérola, tem sido a filha mais velha de Vermeer, Maria,
que provavelmente nasceu em 1654. Por conseguinte, Maria teria por volta de doze anos
entre 1665-1667, a data que os investigadores atribuem ao quadro. Montias assinala
que: “only a father can paint such portraits” (MONTIAS, 1998, p. 311).50
Apesar da sugestão de ser a filha de Vermeer a modelo que teria pousado
para o quadro ser atraente, carece de fundamentação. Como não existe nenhuma
evidência que aparentemente comprove esta hipótese, as suposições que os críticos
fazem em torno desta interpretação é, talvez, não menos enigmática que a Mona Lisa de
Leonardo da Vinci.
Outra hipótese é ser a Magdalena, a única filha do principal cliente de
Vermeer, Pieter van Ruijven, a modelo do quadro. Esta suposição pode ser
indiretamente reforçada pela presença em um documento de um par de tronies (a Moça
com Brinco de Pérola é reconhecida pertencendo a esta categoria de pintura própria dos
Países Baixos) feitos por Vermeer e vendidos em 1696, no leilão das obras pertencentes
a Jacobs Dissius em Amesterdã. Está comprovado que Dissius adquiriu estes quadros
através de seu casamento com a filha de Van Ruijven, que provavelmente adquiriu estes
quadros diretamente do próprio Vermeer.
Magdalena era aproximadamente da mesma idade da filha de Vermeer,
Maria. As famílias de Van Ruijven e Vermeer viviam próximas uma da outra em Delft.
R. H. Fuchs, em Dutch Painting (The World of Art Library), frisa:

... no category in pictorial ar tis so conservative as portraiture. A


portrait is not just a likeness of an individual to be preserved for
posterity; it was also an image of pride, a projection of social position
(WHEELOCK, JR., 1995, p. 83).

50
André Malraux em Vermeer in Delft. Paris: 1952, p. 114, menciona Maria em um documento de 18 de
Junho de 1657 (Montias, 311, doc. 268).

64
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

É possível perceber estas diferenças quando comparamos os retratos formais


de Rembrandt com aqueles dos membros da sua família. Será que Van Ruijven, que
investiu parte dos seus recursos econômicos adquirindo os interiores burgueses de
Vermeer, de uma absoluta perfeição convencional, desejaria retratar sua própria filha
num traje original, com o olhar fixo e de boca ligeiramente aberta, dando a entender um
contexto fora da sua elevada posição social? Os habitantes de Delft possuíam hábitos
conservadores e não existe evidência que sugira que Van Ruijven fosse uma exceção a
esta regra.
Mesmo que a Moça com Brinco de Pérola tenha sido feito para o próprio
Van Ruijven, ele pode simplesmente ter adquirido-o para seu próprio prazer, indiferente
de quem tenha pousado para o quadro, afinal no século XVII havia um próspero
mercado para tronies.
Embora não possamos identificar qualquer das modelos pintadas por
Vermeer, os críticos acreditam que a mulher de Vermeer tenha pousado para vários
quadros e parece lógico que o artista que pintou a luz, objetos, tenha pintado talvez, as
pessoas que ele mais amava.
De fato, não há evidências históricas que falem diretamente sobre a natureza
do relacionamento de Vermeer com sua mulher, os documentos de arquivos que
chegaram até os nossos dias, sugerem que Vermeer e Bolnes, tiveram uma relação
razoavelmente boa, senão um admirável casal harmonioso. Eles tiveram quinze filhos,
um caso raro no século XVII na Holanda, onde muitos casais tinham apenas dois ou três
filhos.
Especialistas em Vermeer estão inclinados a acreditar que o casamento de
Vermeer com Catharina Bolnes era um bom casamento. Walter Liedtke, curador da
exposição Nothern European Painting no Metropolitan Museum of Art em Nova York
e organizador da exposição Vermeer and the Delft School, afirma que “Vermeer
evidently loved his slightly older wife, enough to give up his family religion (which was
asking for troubles from some quarters of Delft)” (LIDTKE, 2001, p.149).
Johan Michael Montias, autor do estudo seminal sobre a família alargada de
Vermeer, quando se questiona sobre a singularidade do casamento do mestre de Delft
com sua mulher Catharina, sugere que e relação foi baseada no amor, ao referir-se “...
‘romantic love? Was not unknown in mid-seventeenth century Holland. Indeed, it was
thought to be source of artist aspiration” (MONTIAS, 1998, p.100).

65
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A ligação mais aceitável quanto a identidade da modelo de Moça com


Brinco de Pérola pode ser estabelecida com a modelo não de outra obra prima de
Vermeer, A Arte da Pintura. Neste quadro, a modelo muito representa Clio:

... a jovem que enverga um manto de seda azul, uma saia amarela e
uma coroa de folhas, e que segura um trombone na mão direita e um
livro de capa amarela na esquerda, ... ela é – e nisso não há qualquer
dúvida – a Musa Clio, a Musa da História. O pintor esta a elogiar Clio
e, através dela, a História, ou, para ser mais preciso um acontecimento
histórico particular (SCHNEIDER, 2004, p. 81-82).

O feitio oval da cabeça, o rosto liso, o queixo pontiagudo, e o intervalo entre


o lábio superior e a parte inferior do nariz são tão similares quanto são o comprimento
do nariz. Os olhos castanhos são pouco percetivos, mas vislumbra semelhanças. Até
mesmo as poses não são tão diferentes como pode-se imaginar. Mas para além das
semelhanças faciais, as duas moças estão ligadas por outros elementos. A gola branca
que surge abaixo do vestido de cada modelo é quase idêntico em forma e função. Até o
caracol inferior do cabelo de Clio caí no mesmo lugar que a pérola da outra moça. A
banda enrolada que caí do turbante azul é muito similar com o que decora a natureza
morta da tela A Arte da Pintura. A harmonia cromática do livro amarelo de Clio e o azul
do seu trombone parece ser o contraponto do vestido e do turbante de Moça com Brinco
de Pérola.
Vermeer pode ter desejado refazer em detalhe a musa Clio que ele achou
particularmente sugestivo, como um trabalho independente. Ou talvez Moça com Brinco
de Pérola pretendia ser um estudo para A Arte da Pintura.
A identidade da moça permanece em aberto e afinal, talvez, esta seja uma
questão relevante. Até a sua identidade amplamente aceite como moça da pérola não é
tão óbvia como parece ser hoje. De fato, a palavra “pérola” surgiu no título do quadro
somente após a primeira metade do século XX. Até então, a pintura chamava-se Garota
com um Turbante ou Jovem Menina.

Materialidades: Turbante, Pérola, Traje Amarelo e a Gola Branca e o


Fundo Negro
Vermeer como muitos outros pintores europeus divertia-se introduzindo
uma nota exótica em seus quadros. O fato de aparecer uma moça com um turbante turco
dentro do contexto das obras do mestre holandês, segundo as aparências da

66
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

quintaessência holandesa, não pode ser considerada uma completa surpresa. Outros
objetos de origem turca podem ser associados com o pintor. Alguns tapetes que
aparecem cobrindo as mesas nas pinturas de interiores de Vermeer eram de origem
turca. Eles eram muito apreciados por seus motivos florais e pela grande extensão de
um vermelho quente que alegrava e, quando não, pelas simples formas geométricas.
Além disso, no inventário dos bens de Vermeer (29 de Fevereiro de 1676)
feitos logo após a morte do artista relacionava: “a Turkish mantle of the aforesaid Sr.
Vermeer”, “a pair of Turlish trouses” e “a black Turkish mantle”, tudo no “great
hallway” de sua casa. Alguns investigadores sugerem que os dois troines em “Turkish
dress” achados na cozinha possivelmente foram feitos por Vermeer (MONTIAS, 1998,
p. 339-340).
Embora os quadros do mestre de Delft claramente seguirem a tradição do
Norte dos tronies, a jovem de turbante pertence a uma longa linha de pinturas européias
em que extravagantes turbantes jogam como chave iconográfica ou função decorativa.
Uma das mais ilustres pinturas de turbante é o Homem com um Turbante (1422) de Jan
van Eyck, que se acredita ser um autorretrato.

In Italian art in the first half of the 17th century, Domenichino,


Guercino and Guido Reni, representatives of the highly influential
Bolognese School, painted highly-colored half-length figures wearing
turbans (though in most cases, female, and intended as prophetesses or
sibyls) (JANSON and SUTTON, 2003, p. 144).

Também nos Países Baixos, o estilo persa e turco conquistou a imaginação


de muitos artistas e uma variedade de turbantes apareceram regularmente em um grande
número de trabalhos, incluindo os de Rembrandt e Michael Sweerts, que parece ter tido
uma queda para este particular toucado.
Em especial, os investigadores teem recentemente chamado a atenção para o
quadro de Sweerts, Um Rapaz usando um Turbante e segurando um Ramo de Flores um
exemplo revelador da tradição de “tronie” holandês, como possível precedente direto de
Moça com brinco de Pérola. O quadro de Sweerts data provavelmente de 1655-1656,
ou seja, dez anos antes da tela de Vermeer ser pintada. A exótica vestimenta, o fundo
negro (típico de Sweerts) e o curioso turbante conjugados com a disposição das cores
azul/amarelo pode ter chamado a atenção de Vermeer. Os pintores da época
frequentemente inspiravam-se em motivos fora do vulgar e os estudiosos de Vermeer,
acreditam que o mestre de Delft sistematicamente “apropriou-se” gêneros de outros

67
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

pintores para seus temas e composições. Lawrence Gowing, o autor de um dos mais
interessantes estudos sobre o artista holandês, declara:

... it would be hard to find a theme of any boldness in his work which
is not based on a precedent; inquiry multiples the evidence that the
majority of his figures motifs were directly derivate (GOWING, 1997,
p. 22).

Parece que o pedaço de tecido utilizado por Vermeer no turbante pendente,


é provável que tenha sido também usado em outros quadros do artista. O material, de
uma luminosa cor amarela com uma borda azul, pode ser comparável com outro adorno
usado em A Arte da Pintura. É difícil fazer uma precisa idéia do material que foi
confeccionado. A mesma peça de roupa também pode ser vista pendurada na cadeira em
primeiro plano à direita em A Carta de Amor e sobre a mesa em Alegorai da Fé. E com
menos evidência, pode ser vista na mesa da Mulher de Azul lendo uma Carta.
Outro elemento usado, é a pérola em forma de lágrima da moça que fica
suspensa livremente e sem se mover, “caught within a pool of recessive space”.
(SNOW, 1994 p. 19) A forma e a substância são essencialmente definidas pela grossa
mancha branca de empasto51 que registra o mesmo efeito de luz que passa através do
rosto da moça e do turbante e pelo suave reflexo que salienta a zona de sombra do
pescoço através dos brilhos dourados. A forma ovoíde transmite a “experience of weight
and volume” (SNOW, 1994, p. 21), qualidades que são menos apreciáveis em uma
pérola de formato esférico. Provavelmente, uma pérola com aquela dimensão e forma
não existisse de fato e que o artista ou representou uma pérola artificial ou
deliberadamente exagerou sua dimensão. As pérolas eram extremamente importantes no
século XVII como um símbolo de status:

In 1660 Samuel Pepys (an English diarist) paid 4 ½ pounds for


a pearl necklace, and in 1666 he paid 80 pounds for another,
which at the time amounted to about 45 and 800 guilders
respectively (LIDTKE, 2001, p. 166).

As mulheres retratadas por Vermeer são frequentemente associadas com as


pérolas que usam. A gota, ou a pérola em forma de lágrima que aparece em a Moça com
Brinco de Pérola, foi retratada claramente em outras oito telas pintadas por Vermeer:

51
Textura produzida pela espessura do pigmento numa pintura pela aplicação de camadas espessas de
pasta. O empastamento tem por fim dar a pintura mais vigor, mas produz facilmente uma impressão de
peso, de opacidade.

68
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Mulher com cola de Pérolas, Mulher com Alaúde, O Concerto, Mulher Escrevendo,
Moça com Chapéu Vermelho, Retrato de uma Jovem, Senhora e a Empregada
Doméstica, e Senhora escrevendo carta com sua Criada. Todos estes quadros datam de
meados de 1660.

Pearls are linked with vanity nut also with virginity – a wide enough
iconographic spectrum. The most beautiful pearl in Vermeer’s work is
undoubtedly that worn by the Girl with a Pearl Earring – a massive
creation of highlights and shadows and obscures shadows. The largest
know pearls with a perfect skin or “orient” had a circumference of 4 ½
inches. Artificial pearls were invented by M. Jacquin in France around
this time, thin spheres of glass filled with l’essenced’orient, a
preparation made of white wox and silvery scales of a river fish called
ablette, or bleak, but cultured pearls were also coming in from Venice.
This girl of Vermeer’s seems to be wearing a glass “drop earring”
which has been varnished to look like an immense pearl; such earring
were currently fashionable in Holland, as cue see in paintings by Van
Mieris, Metsu and Terborch. But Vermeer’s pearl is probably could
artificial, having been enlarged to such a size by the painter’s
imagination and desire to adorn the girl with something spectacular
(BAILEY, 2002, p.123-124).

O traje amarelo vestido pela jovem é única na obra de Vermeer e é, do


ponto de vista técnico, provavelmente uma das mais generalistas representações do
pintor. As vigorosas pinceladas sugerem claramente a acentuada prega, definindo o que
parece ser uma capa curta sem mangas ou uma roupa folgada feita de um material
rústico de fabrico corrente.
Em 1950, P. T. A. Swillens, em Johannes Vermeer Painter of Delft: 1632-
1675, sugestivamente descreveu a roupa da jovem da seguinte maneira:

The blue-yellow head covering of the portrait in The Hague and


the yellow cape (?) round the shoulders are not usual wear for
those times. It is a special dress, which suits children and which
children delight in, just because it is unusual and different and
attractive in colour. Just with such a fancy-dress children betray
that they are still childish (GOWING, 1997, p. 23)

De um ponto de vista pictórico, a aparente tridimensionalidade sólida e


cromática da pesada roupa, todavia, ancorada a solidez da composição da base do busto,
proporciona uma base de excepcional luminosidade e delicadeza para a expressão
expectatante da jovem.

69
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Embora a perfeita gola branca, que presumivelmente representa algum tipo


de roupa interior, foi pintada com ousada simplicidade, sendo praticamente impossível
compreender de que material ela é feita ou como foi confeccionada, ela exerce um papel
fundamental no equilíbrio estético da composição do quadro e parece delimitar a parte
de cima e a de baixo: a mente e o corpo.
Quase idêntico em forma, posição e função encontramos este mesmo efeito
na gola da modelo de A Arte da Pintura. Em ambos os quadros serve como um tipo de
articulação que conecta a cabeça e o busto enquanto que, ao mesmo tempo, permite
independência e liberdade de movimento. O tom da pele de Moça com Brinco de
Pérola, cercado pelo fundo absolutamente preto e o branco puro da gola, vibra contra o
brilhante azul ultramarino do turbante. A pictórica e expressiva delicadeza do rosto da
jovem, puro em seu tom e modelagem, teria tido menos evidência se tivesse tido contato
direto com o forte tom de terra-cota da roupa.
Infelizmente, a gola branca da tela perdeu muito das suas características
originais. O grosso empasto que Vermeer originalmente aplicou tem sido aplanado
pelas técnicas de restauração em que uma nova tela adere a antiga deteriorada.
O fundo negro de Moça com Brinco de Pérola contribui para o expressivo
efeito da pintura. Em outros trabalhos onde Vermeer representou a modelo feminina que
vira-se para fitar o observador, o efeito tinha menos impacto porque os elaborados
fundos distraía a atenção do observador do rosto da modelo.
Os fundos negros eram largamente usados em retratos para isolar as figuras
de elementos distrativos e realçar o efeito tridimensional da figura. No excerto 232 do
Tratado de la Pintura de Leonardo da Vinci, ele anotou que um fundo negro faz um
objeto parecer mais luminoso e vive-versa. Da Vinci empregou este recurso em alguns
dos seus retratos. O fundo negro de Moça com brinco de Pérola traz a memória
trabalhos de artistas holandeses contemporâneos como Frans van Mieris, Rembrandt
van Rijn e acima de todos Michael Sweerts.
Presentemente, o fundo escuro de Moça com Brinco de Pérola aparece
irregular e manchado e pode ter uma diferente aparência da intenção original. Durante a
restauração de 1994/95, tornou-se claro que este defeito tinha sido causado pela
degradada composição da tinta usada por Vermeer. Foi descoberto que o fundo era
originalmente feito de um profundo tom esverdeado que pode não ter sido notado por
muito tempo.

70
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Vermeer tinha envernizado a tela com uma camada muito fina de anil
misturada com amarelo abaixo do escuro preto pintado. O azul e o amarelo eram ambos
pigmentos de origem orgânica. O anil é uma tinta de um azul profundo derivado de uma
planta denominada anileira, já o amarelo era uma tinta de uma cor natural obtida de
flores de uma planta do sul da Europa, conhecida como o lírio-dos-tintureiros. Parece
que Vermeer utilizou o anil apenas algumas vezes, como salienta o artigo Scientific
Examination of Vermeer’s Girl with a Pearl Earring: “originally, the background must
have been made with a smooth, glossy, hard, translucent green paint, which was made
to look darker and given depth by the underpaint” (GROEN, WERF, BERG and
BOON, 1998, p.175). A justaposição do tom verde provavelmente produzia um efeito
ótico que faz o tom da pele parecer muito mais vibrante do que é hoje.
A técnica e o estilo usado por Vermeer em Moça com Brinco de Pérola é
análogo com outros quadros de mulheres sozinhas do começo e meados de 1660. A
pintura foi composta com uma série de finas camadas e de acordo com um alto critério
ótico. Os contornos são mais esfumados. O tom e o efeito de claro e escuro criam um
sentido de impalpável luminosidade e tom quente. As áreas profundamente sombreadas
dos contornos são extremamente indefinidas quanto sugestivas. Nas palavras de Brian
Jay Wolf:

The key to the painting lies in the turn of the woman’s head. Nowhere
else in Vermeer’s oeuvre is a painting so forcefully organized around
a single axis. The woman’s head rotates around a vertical line, a
shadow, that runs from her left temple to her left shoulder and torso.
She turns her head against the direction of her body, toward the
viewer; her eyes complete a ninety degree pivot that the head by itself
cannot, or will not sustain. The Girl with a Pearl Earring encompasses
Vermeer’s deepest feelings about perception, reduced with
extraordinary brilliance to the spared of iconographies: the rotated
head of a costumed woman. Her turn to the viewer interrupts whatever
bodily narrative she might otherwise tell (WOLF, p. 2001, 138-139)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAILEY, Anthony. Vermeer: A View of Delft. New York: Out Books; 2nd Rep. edition,
2002.
GOWING, Lawrence. Vermeer. London: Farber and Farber, 1997.

71
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

GROEN, Karin M., Van Der Werf, Inez D., Van Der Berg, Klass Jan, Boon, Jaap J,,
“Scientific Examination of Vermeer’s Girl with a Pearl Earring”. Vermeer Studies in
the History of Art. Edited by Ivan Gaskell and Michiel Jonker. National gallery of Art,
Washington D.C., Yale University, New haven, London, 1998
JANSEN, Guido and SUTTON, Peter C. Michael Sweerts: 1618-1664. Netherlands:
Rijksmuseum, 2003.
LIDTKE, Walter. A View of Delft: Vermeer an his Contemporaries. Zwolle: Waander
Publishers, 2000.
______. Vermeer and the Delft School. With Michiel C. Plomp and Axel Rüger.. New
Haven and London: Metropolitan Museum of Art, 2001.
MONTIAS, John Michael. Vermeer and His Milieu: A Web of Social History.
Princeton, NJ: Princeton UP, 1998.
SCHNEIDER, Norbert. Vermeer, a Obra Completa. Trad. Carlos Sousa de Almeida.
Portugal: Taschen/Público, 2004.
SLATKES, Leonard J. Vermeer and His Contemporaries. New York: Abbeville Press,
1981.
SNOW, Edward. A Study of Vermeer. Revised and Enlarged Edition. Berkeley, Los
Angeles: University California Press, 1994.
VINCI, Leonardo da. Tratado de la Pintura. Madrid: Espassa-Calpe, 1ª edición, 2005.
VRIES, A. B. de. Jan Vermeer de Delft. Ediciones Holbein, Basileia, exclusivamente
para W.M. Jackson, INc., Nueva York, EE. UU. de A. Trad. Emilio Herrera. 1ª edición
en Espanõl, 1952.
WHEELOCK, Jr., Arthur K. “Vermeer’s Craft and Artistry.” Johannes Vermeer. Ed.
Arthur K. Wheelock, Jr. with contributions by Albert Blankert, Ben Bross and Jorgen
Wardun. New Haven and London: Yale University Press, 1995.
_______. The Public and the Private in the Age of Vermeer. Author/editor with
contributions by MIchiel C.Plomp, Danielle H. A. C. Lokin, Quint Gregory. London:
Phillip Wilson Publishers, 2000.
WOLF, Brian Jay. Vermeer and the Invention of Seeing. Chicago: University of
Chicago Press, 2001.

72
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

REPRESENTAÇÕES MITO-SIMBÓLICAS DA DEUSA ÍSIS: A


REDENÇÃO PELO SAGRADO FEMININO

Heloisa Selma Fernandes Capel52


Daniela Cristina Pacheco53

O texto pretende, por meio da leitura de O Asno de Ouro, de Lúcio Apuleio


(Séc II d.C.), identificar o papel pedagógico e formador da narrativa mítica. Nascido em
Madaura, por volta de 114 e 125 e tendo vivido entre os governos de Adriano (117-138
d.C.) e Marco Aurélio (161-138 d.C), Apuleio foi um representante da filosofia médio-
platônica do século II e sacerdote de Cartago. Sua narrativa contém o aspecto
da redenção pelo sagrado feminino, relacionada à romanização de cultos estrangeiros
em função da crise e aos sincretismos mágico-religiosos. Objetiva-se analisar sua
mitologia mágica e o papel das representações mito-simbólicas da deusa Ísis.
Sabe-se que a narrativa das Metamorfoses ou o Asno de Ouro54 do autor
romano Lúcio Apuleio (Século II d. C.) é um mosaico de histórias (historietas),
aparentemente sem nexo entre si, de difícil caracterização em um único gênero
literário55, mas que possui um tema recorrente: a prática da magia. Prática que
explorada em seu conteúdo e forma profana e sagrada se constituem em meio
pedagógico de aprendizado e redenção por meio do feminino.
O conteúdo da obra é bastante conhecido. Em seu romance, Apuleio conta a
história de um jovem culto, parente materno do filosofo Plutarco, que viaja a negócios

52
Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás.
53
Graduanda em História da Universidade Federal de Goiás, bolsista de Iniciação Científica do Programa
PROLICEN/UFG.
54
Apuleio intitulou a obra de Metamorfoses (Methamorphoseon Libri xi, também conhecida como
Asinus Aureus), mas alguns tradutores a nomeiam como O Asno de Ouro. Segundo a tradutora do livro
Ruth Guimarães (Apuleio. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d), o termo
“de ouro”refere-se a uma história extraordinária, fantástica.
O Asno seria o símbolo do mais baixo corporal e material, segundo Bakhtin, M. Cultura Popular na
Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1999, p.67.
55
Conforme Sérgio Motta, a obra Metamorfoses se caracteriza como uma sátira latina “que possui um
estilo confessional em moldes de uma narrativa de viagem”. Para o autor: a sátira latina utiliza o modelo
idealizante construído pelos os gregos no qual são descritas a sabedoria e a coragem do herói e os mitos
sagrados para contrapor uma representação anti-heróica caricatural dos tipos sociais e morais próximos
do mundo real. (Motta, 2006 p. 162). Entretanto, encontraremos autores que identificam conteúdos
trágicos na obra. A esse respeito ver: TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição
e/ou ruptura? Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada.
Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, 2001. Disponível em
http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm

73
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

para a cidade de Hípata, província de Tessália. Após ouvir histórias sobre feiticeiras e
prática miraculosas de magia que correra em algumas cidades e províncias Gregas,
enche-se de curiosidade e, pelo fato dessas cidades serem conhecidas pelas artes
mágicas, o protagonista Lúcio vai ao encontro com o fantástico, envolvendo-se com a
feitiçaria. Ao chegar a Hípata, hospeda-se na casa de Milão e Panfilia, uma mulher
conhecedora das artes mágicas. Na casa de seus hospedeiros, Apuleio envolve-se com a
escrava Fótis e por uma série de enganos, transforma-se em asno, e não em ave como
era seu plano original.
A curiosidade de Lúcio leva-o a praticar a magia de forma indevida, ou seja,
de forma não ritualizada, e, como um castigo, é transformado em asno, sofrendo
diversas penitências na sua jornada em busca de redenção. Depois de muito sofrimento,
Lúcio recorre à deusa Ísis que se compadece dele e, em um de seus festejos, devolve-o à
forma humana. Agradecido pelo ato bondoso da deusa, Lúcio torna-se seu sacerdote e,
dessa forma, inicia-se na ritualidade dos mistérios de Ísis e Osíris.
Para Nicole Fick (1985, p.133-134), a obra foi escrita antes de 197 d.C.,
bem depois do processo, por magia, a que sofreu o autor, por ter se casado com uma
viúva rica. Ainda, segundo outros autores, (Hidalgo de La Vega, 1986; Phillipe Ward,
1969), se analisadas em conjunto, as obras de Apuleio possuem um sentido único e
apontam para o ensinamento e uma distinção entre a boa e a má magia. Assim, o autor
estaria se justificando como alguém que, adepto das religiões de mistérios, por seu
interesse filosófico, envolveu-se em práticas mágicas.
Quando pensamos em conteúdos com fins pedagógicos, isso nos remete, de
imediato, ao tratamento do trágico na Antiguidade. Sentido, este, que, embora tratado
com diferentes estéticas, foi definido normativamente por Aristóteles na poética 56: na
construção da trama das figuras trágicas ideais, ocorre a mudança da fortuna (metabasis)
e a prática do erro, a ofensa à ordem estabelecida, a chamada hamartia. Assim, a figura
trágica precisava ter grande reputação e fortuna e apresentar traços de similaridade com
os homens comuns para que se permitisse a identificação do público com a personagem.
Sua queda deveria ser na proporção exata e possuir uma conexão causal, para induzir no
público o que ele chama de philantropon, o sentimento de justiça natural. Caso
houvesse um exagero, o conteúdo pedagógico se transformaria em “repulsa moral”, o
que impediria que os objetivos educativos do gênero fossem amplamente alcançados.

56
Poética. Aristóteles. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda.

74
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Na tragédia grega, a comunicabilidade entre deuses e homens, o desenvolvimento dos


preceitos e tramas, restringia-se ao plano humano. A reposição da justiça só poderia ser
realizada neste nível.
Nas historietas satíricas de Apuleio há conteúdos trágicos, mas, ocorrem
mudanças. Ocorre o erro, a identificação das personagens, mas a recompensa está no
nível do divino, identificado com os cultos isíacos. As personagens nem sempre
possuem nexos causais em relação à sua hamartia. São, por vezes, homens comuns a
que a tragédia se abateu. Entretanto, sua recompensa está na vida após a morte, como
nos cultos orientais e estará posteriormente nas religiões de salvação. Se as personagens
das grandes tragédias gregas ensinavam por seus erros a evitar, em Apuleio, por sua
perfeição, são modelos que podem favorecer o desejo de imitação. Por uma série de
mudanças estruturais no Império, pela instabilidade política e pelo sincretismo, haverá,
portanto, uma refiguração do sentido trágico em Apuleio. Vamos encontrar essa
mudança em algumas histórias, como na narrativa de Cárite e Tlepólemo 57. Todavia,
esse não será o sentido evocado quanto à prática da magia. A magia feminina em
Apuleio é uma magia profana e só pode ser redimida em suas conseqüências trágicas se
encarada de forma ritualística e sagrada.
Apuleio e seus contemporâneos acreditavam na magia, elemento que, por
sua crença coletiva, segundo Marcel Mauss58, pode se colocado no patamar das forças
coesivas de representação, como parte do imaginário social. A magia, entretanto,
precisava adequar-se ao patamar da religião romana, pois a religião romana é uma
religião mais de culto que de doutrina, em que o sacerdote é quase um técnico. Assim,
como um personagem que usou da magia indevidamente, Lúcio tornou-se um asno.
Lúcio é o anti-herói que em sua tragédia vai do mais baixo animal à redenção humana,
mas isso não ocorre com as personagens femininas: elas são mulheres inconsequentes,
usam a magia sem a prática ritual necessária, visando interesses próprios. Elas não são
punidas, pois a trama é realista, mas nosso personagem principal toma contato com suas
ações para que as observe e aprenda pelo que deve ser evitado. Observemos o contato
de Apuleio com a magia de Panfília. Como uma mulher casada, Panfília era rica e vivia
no ócio. Era uma mulher adúltera que dava autonomia à escrava e que profanava os
deveres do lar. Utilizava seu tempo praticando artes mágicas e isso afetava a cidade pelo
medo, princípio sobre o qual se funda a magia malévola, diferente da magia religiosa

57
Adaptação do mito de Ísis e Osíris em Apuleio.
58
Na obra MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. Lisboa: Edições 70, 2000.

75
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

inspirada pela piedade. A religião dos romanos foi politeísta e ritualista e não possuía
dogma ou autoridade espiritual, era estritamente ligada às estruturas sociais, ao Estado e
aos seus valores.
Cícero59 vinculou os romanos aos deuses deixando claro que a religião tinha
uma função cívica, sendo baseada na pietas e na religio60. Pietas era o cumprimento dos
deveres religiosos, além de significar, ainda os deveres com a família, e à pátria. A
religio era compreendida como a prática da religio, ou seja, o homem que realiza o
culto pela atenção diligente e serena e não pela superstição, elemento impulsionado pelo
medo, o temor aos deuses. O homem religioso não é o que teme, mas o que “considera
atentamente”. Isso só se faz com o cumprimento de práticas rituais, diligentemente
observadas, mas sem os excessos de escrúpulos temerosos próprios da superstição.
Dessa forma, o culto não deveria ser uma expressão somente privada, mas
uma obrigação da comunidade, dos magistrados que se tornaram membros das classes
sacerdotais. A prática correta do culto garantiria a subsistência do Estado romano. O
cidadão romano deveria participar dos ritos públicos como membro da urbs.
Panfília era uma mulher que manipulava as forças elementais e fazia temer a
cidade. A personagem Birrena adverte Lúcio: “guarda-te, guarda-te energicamente dos
perigosos artifícios e da criminosa sedução dessa Panfília”(Livro II, V). Suas práticas
eram de natureza individual e sem a ética da religio da urbs: Panfília utiliza-se de
práticas mágicas para seduzir amantes e transforma opositores em pedras, carneiros e
outros animais61.
Conforme explicou Durkhein, o aspecto individual da magia leva à prática
imoral, anti-social e desviante, rompendo assim com a função de coesão social e
solidariedade das religiões cívicas62. Mesmo que ocorram práticas mágicas na religião, a
magia laica tem recepção diferente nas sociedades em que é praticada. Diferente das
práticas religiosas em que é preciso um tradutor, um intermediário entre o transcendente
e o adepto, na magia laica, a manipulação das forças divinas é um aprendizado da

59
Marcus Tullius Cicero (106 a.C./43 a.C.), foi um filósofo, orador, escritor, advogado e político romano.
Escreveu De Natura Deorum, livro em que discute teologia.
60
Como nos explica Sanzi, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza:
Ed. UECE, 2006.
61
Apuleio. Livro II, IV.
62
Aspectos que foram trabalhados por Durkheim, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Lisboa:
Editorial Presença/Martins Fontes, 1977.

76
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

natureza. Elemento que prescinde, portanto, da intermediação do Estado e das


instituições a ele ligadas. Sabe-se, entretanto, que em Apuleio, a magia profana é o
elemento que o faz bestializar-se, pois a magia profana não interessava à religião
romana. Em Roma, Ísis não é mais a deusa egípcia da magia independente, mas a deusa
da magia tutelada, ritualizada e orientada pelo Estado. Dessa forma, Apuleio ensina,
pela sátira realista e pelos elementos trágicos nela contidos, que não se pode praticar
magia de forma aleatória. Em sua pedagogia a deusa é essa força filosófica e
transcendente que unifica na diversidade e que deve ser compreendida no bojo de
normas ritualistas da religião romana.
Portanto, aspectos bem diferentes da magia e mitologia egípcia serão
trabalhados na obra, a partir do feminino sagrado de Ísis em Apuleio. Nele, a deusa se
apresenta em todo seu esplendor e natureza unificadora:

Venho a ti Lúcio, comovida por tuas preces, eu mãe da natureza o


mundo inteiro me venera sob formas numerosas, com ritos diversos,
sob múltiplos nomes. Os frígios, primogênitos dos homens, me
chamam deusa-mater, e deusa do Pessinúncio; os atenienses
autóctones, Minerva Cecropiana; os cipriotas banhados pelas ondas,
Vênus Pafiana; os cretenses portadores de flechas, Diana Ditina; os
siclianos trilingues, Prosérpina Estigia; os habitantes da antiga Elêusis,
Ceres Acteana; uns Juno, outros Belona, estes Hecate, aqueles
Ramnúsia. Mas os que o Sol ilumina com seus raios nascentes,
quando se levanta e com seus últimos raios, quando se inclina para o
horizonte, os povos das duas Etiópias e os egípcios poderosos por seu
antigo saber honram-me com o culto que me é próprio chamando-me
pelo meu verdadeiro nome: Rainha Ísis (Metamorfoses XI, 5).

Segundo diversos autores, Isis conhece um sucesso excepcional no mundo


romano da fase helenística. Conquistará terras da Ásia Menor, da Grécia, Sicília e, em
Roma, será inserida nos calendários oficiais em 71 d.C. Comparece nas moedas de
Vespasiano (69-79) e Caracalla (211-217) a promove como divindade oficial do
Império. Sua personalidade e atributos serão ampliados. Plutarco63 que reconstrói a
história mítica de Isis.
Portanto, em Apuleio, a magia está ligada à teurgia (obra divina) e ao seu
caráter filosófico. Influenciado pelo sincretismo e pela necessidade de assimilação dos
cultos estrangeiros, refigurados, o sagrado feminino e a magia vão encontrar-se em Ísis,
personagem a partir da qual ocorre sua redenção. Nos cultos isíacos assimilados em

63
46-126 d. C . De Iside et Osiride.

77
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Roma, o ritual é revalorizado e a ética mágica acompanha um novo relacionamento com


os deuses, que se preparam para as religiões salvacionistas e das recompensas pos-
mortem dos Campos de Ialu Osiríacos. O sagrado feminino é evocado pela magia
teúrgica, ritual, em seu aspecto regenerador, de reunião e totalidade simbólica. Uma
volta às origens com novos contornos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APULEIO, L. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d.
ARISTÓTELES. Poética. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986.
BAKHTIN, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB,
1999.
DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Lisboa: Editorial
Presença/Martins Fontes, 1977.
MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. Lisboa: Edições 70, 2000.
MOTTA, Sérgio Vicente. O Engenho da Narrativa e sua Árvore Genealógica: das
origens a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Editora UNES, 2006.
SANZI, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza:
Ed. UECE, 2006.
SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos da Religiosidade em Apuleio: entre magia e
filosofia no II século D.C. Anais do II encontro Nacional do GT de História das
religiões e Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH –
Maringá/PR, v.1, n.3, 2009. p. 11.
TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição e/ou ruptura? Atas do
IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada.
Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, 2001. Disponível em
http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm

78
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

RITUAIS DE MORTE: ESTUDOS DOS CEMITÉRIOS NA REGIÃO


DE BARRO ALTO NO SERTÃO DA BAHIA

Glayce Rocha Santos Coimbra64

Apesar de ser um lugar evitado por muitos, o cemitério já faz parte do


roteiro turístico de alguns países, como é o caso do Père-Lachaise, na França, o da
Consolação, em São Paulo, o La Recoleta, na Argentina, onde estão guardados os restos
mortais de poderosos burgueses em túmulos monumentais, traduzindo sofisticação e
beleza em verdadeiros mausoléus dotados de valores artísticos. ]O cemitério torna-se
um local onde os familiares, parentes e amigos preservam a memória do morto,
utilizando elementos do imaginário popular e erudito, manifestados em um espaço
cultural que merece ser investigado, conhecido, divulgado e interpretado pelos
estudiosos da área. Borges (2005) justifica a importância do cemitério como uma
instituição cultural, que faz parte da invenção moderna, compartilhando da
reestruturação da sociedade. Assim, desde a época em que os cemitérios surgiram
(século XVIII), nota-se o confronto dialético de duas realidades conceituais de vida: a
cidade dos mortos e a cidade dos vivos.
Estudos cemiteriais têm contribuído para a pesquisa de temas relacionados à
morte e a seus rituais, favorecendo implicações nas diversas áreas do conhecimento,
dentro e fora do Brasil. Pedersen (2008) percebeu a importância das inscrições nos
túmulos e realizou um trabalho fotográfico nos cemitérios populares do Equador. No
silêncio dos cemitérios está o choro, o desespero, as orações de perdão e de gratidão,
amor e tristeza. São sentimentos expressados de várias maneiras por meio de epitáfios,
desenhos e mensagens que murmuram e choram em silêncio. A maioria dos cemitérios
visitados por Pedersen possui nichos que são pintados e cuidados pelos parentes dos
falecidos, que de acordo com as crenças levam suas mensagens.
Mesmo sendo a morada dos mortos na terra dos vivos, Ariès (1977) explica
que o túmulo designava o local necessariamente exato do culto funerário porque tinha
também, por fim, transmitir às gerações seguintes a recordação do defunto, e é
considerado um memorial, pois a sobrevivência do morto não deveria ser garantida

64
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás – UFG.
glaycerocha@gmail.com

79
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

apenas no plano escatológico por meio de oferendas ou sacrifícios, mas dependia da


fama que mantinha aqui na Terra.
Embora saibamos que enquanto mortos somos todos iguais, ainda existe
uma diferença social no culto funerário e na preservação da memória do morto. Essa
diferença social é lembrada por Kovács (2003), que relata que, com a interdição dos
enterros em igrejas determinado pelo Concílio de Braga no ano de 563, passou-se a
enterrar fora dela. Desde essa época existem as diferenças sociais nos locais de onde os
mortos eram enterrados: aos pobres eram destinados os ossários ou valas comuns, e aos
ricos, os locais privilegiados nos cemitérios.
Em relação a isso, na minha dissertação de mestrado intitulada A morte
severina em Cândido Portinari e em João Cabral de Melo Neto, evidenciei fatos
relacionados à morte no sertão através do poema Morte e vida Severina, de João Cabral
de Melo Neto, em um diálogo com a série Retirantes, do pintor Cândido Portinari. Essa
experiência me fez perceber algumas peculiaridades sobre a morte e o ato de morrer no
sertão nordestino.
Sobre essa morte no sertão, Chiavenato (1998) relata que os mortos são
levados para o cemitério numa rede, quando a família não tem condições de comprar
um caixão. O traslado é feito a pé, seguido por amigos e familiares até o local. No
sétimo dia após o enterro, reza-se a missa acompanhada da visita à cova, por ser uma
tradição que vem do judaísmo.
Buscam-se na religiosidade, histórias de fé e devoção de pessoas comuns,
que participam de rituais e os significam em suas vivências religiosas. Diante desse
cenário, Villa (2001) relata que muitos nordestinos não tiveram o privilégio de serem
enterrados, pois grande parte dos retirantes que morriam fugindo da seca eram
enterrados à beira das estradas, em valas coletivas, ou eram cremados.
No sertão nordestino, existe ainda hoje a presença marcante de uma
religiosidade inerente, expressa em rezas, benditos e inselências. São canções e orações
que fazem parte do cotidiano de comunidades rurais, que significam, atribuem sentidos
a terços, novenas e ritos domésticos, assumindo funções diversas. São em rezas que se
afastam os males do tempo e do corpo; em rezas que se faz a passagem de indivíduos do
mundo dos vivos para o mundo dos mortos.
Este estudo parte da ideia de que o cemitério é um lugar de patrimônio,
memória, espaço cultural, espaço reservado aos cultos funerários e destinado à
preservação do corpo do morto. Assim, busquei no Estado da Bahia, nos pequenos

80
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

povoados próximos ao município de Barro Alto, os cemitérios propostos para este


estudo.
Barro Alto está situada 497 Km acima de Salvador, com 14.172 habitantes,
de acordo com o dado do recenseamento de 2010, A principal atividade econômica do
município é a agricultura, alicerçada pelos plantios de feijão e mamona. Foi
desmembrado do município de Canarana em 1986, recebendo esse nome no dia 9 de
maio de 1985, pela Lei Estadual de nº 4.439, conforme dados do IBGE.
Na região citada, já fotografei dez cemitérios: Lagoa de Anjo, Lagoa
Queimada, Honorato, Salobro, Lagoa do Boi, Gameleira, Queimada de Claro, Volta do
Côco, Lagoa Nova e Ladeira Vermelha, que levam os nomes referentes à cidade ou
povoado a que pertencem. Diferem dos cemitérios convencionais secularizados das
grandes cidades porque estão localizados em estradas das zonas rurais e beneficiam
alguns povoados. Foram construídos nas proximidades dos mesmos por causa das
dificuldades de transportar o corpo até o cemitério da cidade tida como de porte médio.
Refletir sobre essa temática exige considerações e conceitos de outras áreas
do conhecimento além da história, como antropologia, sociologia, História da Arte e
outras. Requer do pesquisador uma nova postura para mudar as lentes e enxergar o que
cada gesto ou comportamento nos mostra sobre o sentimento do homem diante da
morte. Num outro momento requer um entendimento dos dados pesquisados, levando
em conta o contexto sociocultural do grupo pesquisado.
O estudo da cultura popular nordestina aqui abordada se limitou em
investigar as maneiras peculiares que os nordestinos têm para enterrar seus mortos. Os
dez cemitérios já levantados não dispõem de tantos recursos operacionais para os
sepultamentos como nas grandes cidades, porém não deixam de realizá-los de modo
bastante peculiar.
Pudemos verificar que apesar da pouca estrutura, também preservam rituais
funerários semelhantes aos demais cemitérios através dos cultos e devoção, preservação
da memória do morto, elementos religiosos e funerários e, em especial, a participação
da família na construção e zeladoria do túmulo. A Prefeitura Municipal não designa
funcionários para essas atividades, há uma integração da comunidade local que se reúne
e realiza tais serviços.
Evidenciamos que, independente da classe social do morto, os familiares
tem a necessidade de exercitar o luto. A participação em rituais funerários é uma forma
de melhor aceitação da perda do ente querido e também de perpetuar a lembrança.

81
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Nesses cemitérios, a maioria dos mortos em enterrada em valas comuns, a


sete palmos abaixo da terra. Não existem coveiros e as valas são feitas por pessoas que
já têm o costume de sepultar mortos. O registro do óbito é feito nos cartórios das
cidades próximas e a constatação do óbito por laudos médicos só é feita quando a morte
acontece em hospitais.
As famílias enlutadas recorrem à Prefeitura Municipal de Barro Alto para o
fornecimento gratuito do caixão e da mortalha, uma vestimenta apropriada para o
enterro. Muitos têm o costume de guardarem a mortalha para o dia de seu sepultamento.
A partir de 2003 surgiram na região empresas de serviços funerários que oferecem
planos funerários aos moradores, fazendo com que esses serviços, anteriormente feitos
pela família do morto, passassem a ser realizados por essas empresas: local de velório,
traslado, caixão, ornamentos, velas, coroa, crucifixo e preparação química do corpo,
quando necessário.
Para melhor compreensão da estrutura desses cemitérios rurais,
apresentaremos as características mais comuns, já que quase todos se assemelham em
vários aspectos. O Cemitério de Lagoa de Anjo é o menor entre os relacionados, tendo
uma área de aproximadamente 46 m², com três capelas, sendo duas conjugadas. Estas
capelas foram construídas por moradores para enterro de seus entes queridos com a
finalidade de devoção e realização de missas, principalmente no dia de finados. Possui
oito jazigos, mas não pertencentes a uma mesma família, várias covas rasas contendo
uma cruz e dados do morto, e outras que não contém nenhuma informação e estão
completamente estragadas pela ação do tempo.
Esse cemitério não é murado, mas cercado apenas com arame farpado, e não
possui nenhum tipo de planta. O terreno foi doado por um morador, porém com o
surgimento de outros cemitérios maiores próximos da região, quase não há mais
sepultamentos nesse local. O portão é de madeira, e não há cruzeiro na entrada. Os
pouquíssimos jazigos são formados de cabeceira e mureta, não possuindo epitáfios,
muito menos lápides, e estão distribuídos desordenadamente. Na entrada há túmulos
instalados verticalmente na primeira fileira, enquanto os demais que se encontram da
segunda fileira em diante estão no sentido horizontal.
Os cemitérios Lagoa Queimada, Honorato, Lagoa do Boi, Queimada de
Claro, Volta do Côco e Lagoa Nova comportam jazigos com características similares
aos de Lagoa de Anjo, porém com uma área maior.

82
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Os jazigos são pintados com cores de tonalidades fortes: verde, azul,


revestidos por azulejos em cores mais claras ou apenas revestidos de reboco. Também
foram encontrados jazigos feitos de grades de ferro. O túmulo mais simples é a cova
rasa coberta de terra e cruz em madeira e os mais sofisticados são os conjugados, feitos
em revestimento de azulejo, onde geralmente são enterrados membros de uma mesma
família, e ainda possuem epitáfios com homenagem da família. Há outros com estrutura
familiar que reúnem mais de três túmulos. Muitos possuem apenas cabeceira e mureta, e
no seu interior são cultivados plantas, rosas ou flores.
Além de esses cemitérios não possuírem nenhum tipo de planta, os espaços
são desordenados e os túmulos são construídos a esmo, porém todos voltados para a
entrada. Possuem mais de uma capela, sendo que elas ficam espalhadas pela área onde
estão enterrados corpos no interior. No cemitério de Queimada de Claro, por exemplo,
antes da construção da Igreja Católica local, as missas de finados eram celebradas
dentro dessas capelas. Normalmente são cercados com arame farpado, os portões são de
madeira, e os cruzeiros são instalados do lado de fora (Figura 01).

Figura 01 – Entrada do cemitério. Cemitério de Queimada de Claro, BA.


Foto da autora, 2011.

Outra característica bastante comum é que em quase todos eles encontramos


cruzes de variados modelos. Moreno (2004), que fez um estudo sobre os vários
significados da cruzes, aponta que é uma simbologia utilizada desde épocas antigas,

83
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

associada com o sagrado, o cosmos e com o homem. Porém, o seu maior significado
está no Cristianismo, baseado na ideia da morte e ressurreição de Cristo, que traz
esperança de redenção e vida eterna, porque a morte de Cristo representa a salvação.
Dessa forma, a cruz possui vários significados, tornando-se um importante elemento da
iconografia funerária na representação de morte.
Os cemitérios de Salobro, Gameleira e Ladeira Vermelha são os maiores,
possuindo uma arquitetura vernacular, com jazigos mais sofisticados e ornamentados
dentro do contexto da região estudada. Mesmo assim, não contam com nenhum tipo de
funcionário e os sepultamentos também são feitos pelos próprios moradores. Também
não possuem nenhuma planta, mas os túmulos são dispostos lado a lado, permitindo
vias de acesso entre eles.
Salobro e Ladeira Vermelha possuem entrada em alvenaria, portão de ferro
e são os únicos murados. Em todos eles os jazigos são semelhantes, desde os mais
simples, uma cova rasa com uma cruz fincada, até os mais adornados com vasos de
flores plásticas coloridas, epitáfios e lápides em bronze.
Nos jazigos mais trabalhados encontramos pequenos altares ou capelinhas,
denominados de nichos, que os familiares decoram e onde criam um espaço íntimo para
rezas e devoção. Nesses pequenos altares encontramos os mais variados objetos que
trazem a lembrança do morto: porta-retratos, terços, santinhos, mensagens bíblicas,
vasos de rosas etc.
A participação familiar na feitura do túmulo é uma das maneiras que se tem
de comprovar a necessidade de melhor elaborar a perda de um ente querido. As pessoas
necessitam de se acercar dos túmulos, criarem um ambiente íntimo e de recolhimento,
para que possam exercitar o ato de devoção, fazer-lhes visitas e embelezá-los com
flores. (BORGES, 2005, p.5)
Também observamos a existência de muitos epitáfios dentro e fora desses
altares, com dizeres bíblicos, frases de fé, esperança, sentimentos pela perda, e cujo
objetivo principal é de tornar viva a lembrança do morto.

84
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Fig. 02 – Jazigo de Márcio Glei Alves. Cemitério de Ladeira Vermelha, BA.


Foto da autora, 2011.

O cemitério de Ladeira Vermelha (Figura 02) possui dois itens que se


diferem dos demais. É o mais rico em arborização, com uma grande quantidade de
plantas arbustivas e herbáceas empregadas não só na ornamentação dos túmulos, mas
também espalhadas dentro do local. Este possui o maior número de imagens sagradas,
na maioria de pequeno porte, sendo que predominam as imagens de Cristo crucificado,
Nossa Senhora Aparecida, santa padroeira do Brasil, e algumas imagens de São
Sebastião, santo padroeiro dos povoados da região, entre outros, confirmando os valores
cristãos preservados na região.
Na região de Barro Alto ainda é possível encontrar velórios onde o defunto
é homenageado com canto de inselências, que são as chamadas cantorias que não
podiam ser interrompidas quando começadas porque, segundo os costumes, Nossa
Senhora se ajoelhava para ouvi-las. O canto é acompanhado apenas com as vozes, no
mesmo tom e em repetidas vezes.

O canto de inselências faz gritar, vibrar toda a matéria; é a


manifestação viva de uma harmonia indescritível, incitadora de uma
energia comunal, que faz da dor um pretexto e ao mesmo tempo um
eixo de ligação do homem com o homem e do homem com Deus.
Cantar inselências é cantar a dor, a morte, sentimentos e ecoar
palavras que livremente voam pelos abismos das fronteiras da “terra
de ninguém” (SOUZA; PAIVA; FREIRE, 2005, p. 76).

85
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O Canto Fúnebre, enquanto cultura oral faz parte de uma prática quase
universal e tem como finalidade reverenciar e lamentar os mortos. Evidencia-se como
expressão musical, considerado de cunho religioso, do catolicismo popular. Tem como
propósito reunir os parentes e amigos do morto, desde os primeiros momentos da
agonia, até a partida do corpo para o sepultamento. Faz parte do ofício Carpir. São
conhecidos como excelências, inselências ou inselenças.
Goya (2008) explica que inicialmente a função do canto fúnebre era de
despertar no moribundo o horror ao pecado, induzindo-o ao arrependimento, ou para
conduzir o morto ao céu. Ela ressalta que esse ritual faz parte do cotidiano rural e
urbano, sendo que na região Nordeste o morto é velado, geralmente, deitado na rede.
Esclarece que há casos em que as mulheres dividem o trabalho, sendo que uma fica à
porta para receber autoridades, como o padre, que vem para dar ao moribundo a extrema
unção. A recepção é feita pelas mulheres sempre cantando, enquanto outras
permanecem carpindo ao lado do corpo. O canto fúnebre reflete as dores, os
sentimentos, as crenças e a cultura de um grupo social. O ato de carpir busca evidenciar
ao morto o sofrimento dos vivos.
De acordo com Cascudo (2002), as excelências, muito comuns no Nordeste
brasileiro do século XIX, representavam inicialmente orações musicadas em versos que
eram entoadas exclusivamente por mulheres nas sentinelas. Posteriormente, o termo
passou a representar também a elas próprias. Como vemos, tais canções revelavam o
entendimento da morte, as atitudes dos vivos e o desejo de que, do mesmo modo que o
morto estava sendo velado e cortejado por muitos, elas também tivessem os rituais
mortuários, além de orarem almejando um lugar de descanso no paraíso. Elas
representavam uma herança das carpideiras (CASCUDO, 2002, p. 23-24).
Essas canções e orações expressam uma religiosidade popular, que faz parte
do cotidiano de comunidades tradicionais, que atribuem sentidos a terços, novenas e
ritos domésticos, assumindo diversas funções materializadas em rezas para afastar os
males do tempo e do corpo e fazer a passagem de indivíduos do mundo dos vivos para o
mundo dos mortos.
Na religiosidade, são buscadas histórias de fé e devoção de pessoas comuns,
que participam de rituais e os significam em suas vivências religiosas. Para investigar as
rezas e lamentos, é necessário priorizar as emoções e os sentimentos que emanam das
inselências, orações cantadas em forma de lamentos em uma melodia unívoca e
repetidamente em número de nove a doze. São lamentos que marcam o momento da

86
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

morte e têm a função de celebrar, encomendar a alma e velar o morto. Juntam-se às


inselências, os benditos e os ofícios, escolhas que vão depender do devoto-defunto ou
das pessoas que são encarregadas de “puxar a reza”. Geralmente, esses cantos são
entoados por mulheres conhecidas por carpideiras ou cantadeiras de excelências.
Ao entoarem seus cantos e orações, as carpideiras promoviam um grande
exagero perante o morto, aumentando a entonação da voz e demonstrando um agudo
sofrimento perante a perda do moribundo. Segundo Reis (1997), isso, além de revelar a
perda de um ente familiar através da expressão do corpo e da voz, que reclamava e
requeria atenção dos ouvintes, possui também uma profunda tradição marcada pelo
anúncio exagerado e pela demonstração social da morte, o que convocava a presença
dos vizinhos e demais familiares no recinto do padecido.
Elas, ao demonstrarem lágrimas facilmente derramadas e amiúdes
encenações do corpo, abraçavam compulsivamente os familiares do defunto e
clamavam em voz alta expressões trágicas, o que fazia atrair as atenções de quem
estivesse compartilhando o momento. Se em um momento agiam naturalmente,
posteriormente acabaram se tornando profissionais recompensadas com dinheiro.
Nos povoados próximos ao município de Barro Alto, ainda é possível
perceber o simbolismo da mortalha revelando a preocupação com a boa morte. A
passagem sugere a produção de uma roupa apropriada. “E um partia pra comprar pano
pra fazer a roupa pra vestir” (REIS, 1991, p. 100). Os trajes apropriados para a sentinela
e sepultamento do morto são providenciados com urgência, quando não tinham sido
produzidos com antecedência. É comum produzir a mortalha quando os familiares
percebem o estado grave do doente ou quando sentem a morte se aproximar. É elemento
considerado fundamental na preparação para a despedida do mundo terreno e para a
entrada de sua alma no mundo celestial, pois consideram que esta vestimenta tem o
poder de proteção na passagem.
A roupa funerária assumiu, na década de 1930, um importante papel, sendo
produzida com detalhes e assumindo a representação das vestes de santos. De acordo
com Reis (1991), no século XIX o tipo de mortalha usada variava bastante segundo o
sexo e a idade. Entre elas havia distinções significativas que de alguma forma
revelavam algo sobre o morto, como suas crenças e sua posição social.
As imitações das vestes dos santos também eram desejadas popularmente
com muita frequência, entre elas as franciscanas. Naquele contexto, usá-la demonstrava
a importância do ritual para o corpo e a incorporação de sua alma ao paraíso, além da

87
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

ressurreição. Representavam, assim, o desejo de obtenção da graça, especialmente as


vestes que simbolizavam as santidades, pois estas, além disso, protegeriam sua
passagem para o mundo celeste. Portanto, contribuía com a salvação.
Nesses e em outros casos, como lembra o folclorista Câmara Cascudo
(2004) em seus registros sobre a cultura funerária do Nordeste no século XIX e na
primeira metade do século XX, a humildade representada na mortalha simples também
era valorizada como preceito para a alma adentrar o paraíso. De igual modo, as
mortalhas podiam ainda indicar o estado de pureza espiritual do morto, ou melhor, a
falta do pecado da carne: a não vivência da sexualidade.
O traslado do corpo até o cemitério apresenta fatos interessantes. Prado
(1947) descreveu detalhes sobre os trabalhos fúnebres na roça registrando rituais
tradicionais como: agonia e morte, guardamento do defunto, canto de inselências, rezas
de benditos, transporte ao cemitério, novenas após sepultamento e recomendação das
almas.

Na hora que a rede parte da casa ou antes um pouco, vai um “próprio”


para ir à casa do zelador do cemitério para riscar a sepultura e tratar de
outras coisas relativas ao enterro, como recomendação do defunto se é
próximo de paróquia com padre, ou a chave da Igreja ou Capela,
dobres de sino, casa para ir o morto e esperar o caixão, conforme já
dissemos, enfim, tratar de todas as diligências relativas ao
enterramento do defunto (PRADO, 1947, p. 66).

Nas ritualidades para com o corpo morto prevaleciam significados que


tomavam sua partida ao céu como elemento preponderante e denunciavam também a
imagem memorável que os familiares do defunto procuravam construir: o corpo sereno
e sublime, visto que este também representava o último encontro com os vivos. Nesse
contexto, o banho e a limpeza do morto eram logo providenciados. Tais posturas
revelavam experiências sociais intimamente estabelecidas. Havia, assim, um conjunto
de comportamentos que correspondiam de algum modo aos limites humanos perante o
corpo, e a sua aura plena para inclusão no mundo celeste. O corpo deveria ficar limpo
das impurezas do mundo terreno como preceito para adentrar o etéreo. Assim sendo,
eram retiradas as impurezas das unhas, além de serem cortadas, como também eram os
cabelos e barbas. Nessa cerimônia, como elucida o registro de Cascudo:

Nem todos têm o direito de tocar o cadáver. Somente aqueles que


sabem vestir defuntos, pessoas de boa vida, especializadas, com a

88
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

seriedade e compostura de uma exposição do ofício religioso.


Trabalham depois de rezar e vão vestindo peça por peça de roupa
falando com o morto, chamando-o pelo nome: - dobre o braço,
Fulano, levante a perna, deixa ver o pé. (CASCUDO, 2002, p. 21)

De acordo com informações aqui descritas, esse projeto buscará dados para
compreender a experiência do homem nordestino diante de fatos relacionados à morte.
As inselências informam a preocupação com a morte e principalmente com o medo de
ser esquecido, de não ter assistência. Morrer sem esses ritos significa estar só e
abandonado.
As rezas possuem a função de ligar, e por sua vez reafirmam a teia de
solidariedade que informam a prática de piedade cristã entre a comunidade afetiva. A
busca por tradições e significações da vida religiosa se explica como uma forma de ler e
se relacionar com o tempo, tempo que passa de forma diferente para as pessoas, para os
lugares e para as tradições.
Além de conhecer, analisar, descrever as manifestações religiosas, a estudo
tem como proposta permitir que outras pessoas conheçam expressões culturais que
encantam comunidades inteiras e que experimentam formas de religiosidade e
espiritualidade diversas. É preciso que reconheçamos essas expressões culturais não
como elementos rústicos ou exóticos, mas como manifestações que são constituintes de
uma tradição religiosa e formadoras de identidades e dos sentimentos humanos.
Na sociedade ocidental, só o enterramento ritual confirma a morte. Eliade
(1999) relata que aquele que não é enterrado segundo o costume não está morto. Além
disso, a morte de uma pessoa só é reconhecida como válida depois das cerimônias
funerárias. A preocupação com cemitérios, preservação de cadáveres, honras fúnebres é
comum em nossa sociedade, e isso vem antes da Idade Média. Porém, mesmo que a
morte seja uma realidade para todos, existe uma desigualdade social na morte e no ato
de morrer.
Baseado neste contexto, a este estudo busca analisar os rituais fúnebres do
Nordeste, em especial na região citada anteriormente. Uma investigação sobre os
aspectos relacionados à morte e às características dos cemitérios rurais do povo dessa
região. Com isso, pretendo, através de uma pesquisa histórica, levantar fatos,
documentos, entrevistas para buscar a fundamentação necessária para as repostas desse
estudo.

89
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Para esta investigação será primordial o estudo de obras de Philip Ariès, tais
como O homem diante da morte (1977), que expressa o homem do Ocidente reagindo a
uma sensibilidade coletiva diante da vida e a morte, um sentimento pertencente a uma
história da cultura global. Ariès trata a morte como um elemento ou código carregado
pelo homem em suas tradições e experiências, que deve ser decifrado para uma
compressão.
Nessa obra, Ariès traz uma discussão importante para esse estudo que
pretendo realizar. O autor dialoga com sentidos e significados sobre a morte, o
sentimento de luto, a tipologia dos túmulos, o rezador, as cruzes sobre os túmulos, os
ex-voto e capelas e jazigos de família.
Outra obra também relevante para este estudo, também de Ariès, é a obra
Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média (1989), na qual este
historiador apresenta a passagem da morte familiar “domesticada” na Idade Média, para
a morte repelida, maldita e negada nos dias atuais. Ariès também aborda sobre a
mudança das atitudes diante da morte nas sociedades ocidentais, onde o moribundo é
privado de sua morte, e na qual se verifica uma recusa do luto e a invenção de novos
ritos funerários.
Para tratar sobre morte, representações, medo e atitudes, será utilizada a
obra de Maria Júlia Kovacs, Morte e desenvolvimento humano (2002), onde a autora
traz considerações sobre a representação, o medo e atitudes diante da morte, levando em
conta que desde todos os tempos o homem busca constantemente a imortalidade,
tentando desafiar e vencer a morte.
Para fundamentação desse trabalho, será essencial a pesquisa do site Arte
Funerária no Brasil, da professora e pesquisadora Maria Elizia Borges, bem como
publicações de sua autoria, como Expresiones artísticas de cuño popular en
cementerios brasileños (2005).
Baseado neste contexto, este projeto tem como proposta uma investigação
sobre os aspectos relacionados à morte e às características dos cemitérios rurais do povo
dessa região.
Trata-se também de um tema que Paul Ricoeur (2007) considera como um
ato social, pois não se limita ao ato de enterrar, por não se tratar de um gesto pontual,
mas estende-se além do enterro porque o gesto permanece e a sepultura se transforma
no lugar da marca duradoura do luto.

90
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Estudos sobre a morte e sobre os mortos têm despertado o interesse de vários


estudiosos em diversas perspectivas, tanto no Brasil como em outros países.
Todavia, existem poucos estudos que abordam os simples rituais funerários e a
maneira como as pessoas que vivem em regiões distantes encaram o ato de morrer.
Sendo assim, esse estudo torna-se relevante se levarmos em consideração que existe
uma vasta área a ser investigada, e que de acordo com a ABEC – Associação Brasileira
de Estudos Cemiteriais, há uma carência de estudos sobre a representação da morte e de
cemitérios rurais imbuídos de valores elaborados pelo imaginário popular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Aracy A. Arte para Que? A preocupação Social na Arte Brasileira 1930-
1970. Nobel. 1 ed. São Paulo, 2003.

ARIÈS, P. O homem diante da morte. Publicações Europa-América, Lisboa, 1977.

_____. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema,
1989a.

_____. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989b.

BORGES, Deborah Rodrigues. Retratos de Anjinhos: fotografia mortuária de crianças


em Bela Vista de Goiás. III Simpósio Internacional Cultura e Identidade. Goiânia, 2007.

BORGES, M. E. ; Alcineia Rodrigues dos Santos ; GOMES, L. T. S. . Estudos


Cemiteriais no Brasil: catálogo de livros, teses, dissertações e artigos. 01. ed. Goiânia:
Cegraf, UFG, 2010.

BORGES, Maria Elizia. Revisão e Contribuição da História da Arte para com o


Movimento Funerário. 19° Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em
Artes Plásticas (ANPAP). Cachoeira: Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
2010.

91
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

___________. A Fotografia Como Ornamento e Objeto de Memória em Túmulos


Brasileiros. IV Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC).
Piracicaba: UFG, 2010.

___________. Las memorias de la ABEC y los memorables cementerios del Estado de


São Paulo. X Encontro Iberoamericano, 2009.

__________. Cemitério de Santa Isabel de Mucugê: uma arquitetura peculiar que visa
preservar a memória dos entes queridos (BA). XXVII Colóquio CBHA, 2008.

__________. Os Riscadores de Pedra: produtores de uma alegoria funerária cristã.


Goiânia. III ABEC, 2008.

__________. Olhar e contraolhar as narrativas da estética popular, da memória e do


afeto nas gavetas funerárias no Brasil. ANPAP, 2008.

__________. Cemitérios brasileiros: local de pesquisa artística, comunicação e


interação. XXV Colóquio - CBHA, 2006.

__________. Manifestações artísticas contemporâneas em espaços convencionais


(cemitérios secularizados). XXIV Colóquio CBHA, 2005.

__________. Expresiones artisticas de cuño popular em cementerios brasileños. Arte


latinoamericano del siglo XX: Otras historias de la Historia. Rodrigo Gutiérrez
Vinñuales (diretor) - Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2005.

__________. Cemitérios convencionais: Espaço de Popularização da Arte Erudita no


Brasil (1890-1930) In.: XXIV Reunião Brasileira de Antropologia Nação e Cidadania,
2004, Olinda. Anais, Olinda: ABA, 2004.

__________. Arte Funerária no Brasil: Possibilidades de interagir nos programas de


ensino, de pesquisa e de extensão na Universidade. In: 13º Encontro Nacional da
ANPAP, 1; Brasília-DF. Universidade de Brasília, 2004.

92
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

__________. A estatuária funerária no Brasil: representação iconográfica da morte


burguesa. São Luís. VII Abanne: G´t Antropologia da Emoção, Edições do GREM, 8,
2004.

__________. Arte Funerária no Brasil: contribuições para a historiografia da arte


brasileira. In: XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, Rio Grande do Sul: Anais.
Rio Grande do Sul: PUCRS. 2003.

__________. Arte Funerária no Brasil: contribuições para a historiografia da arte


brasileira. In: XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, Rio Grande do Sul: Anais.
Rio Grande do Sul: PUCRS. 2003.

__________. Arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas italianos em


Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.

CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 13ª. ed. São Paulo: Global,
2004.

______. Superstição no Brasil. 5ª. ed. São Paulo: Global, 2002.

______. Literatura oral no Brasil. 3ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1984.

______. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.

CHIAVENATO, Júlio José. A morte: uma abordagem sociocultural. Moderna. São


Paulo, 1998.

COIMBRA, Glayce Rocha Santos. A morte severina em Cândido Portinari e em João


Cabral de Melo Neto. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Artes Visuais – UFG.
Goiânia, 2012.

ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiosa. São Paulo: Martins


Fontes, 1999.

93
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

GOYA, Edna de Jesus. NASCIMENTO, Fernanda Albernaz. Cantos fúnebres de Goiás.


In: III Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais; Goiânia. Goiânia,
FAV – UFG. 2008.

HEBERTS, Ana Lúcia. CASTRO, Elisina Trilha. Cemitérios no caminho – o


patrimônio funerário ao longo do caminho das tropas nos Campos de Lages.
Blumenau: Nova Letra, 2011.

KOVACS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do


Psicólogo, 2002.

________, Maria Júlia. Educação para a morte: temas e reflexões. São Paulo: Casa do
Psicólogo, Fapesg. 2003.
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. Brasiliense: São Paulo, 1992.

MORENO, Ethel Herrera. El Panteón Francés da la Piedad y las cruces de sus


monumentos funerários, In: V Encontro Iberoamericano de Cementerios, Sucre,
Bolivia, 2004.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. 2ª. ed. Portugal: Publicações Europa-América, LDA,
1976.

PEDERSEN, Birte. Entrada al cielo: arte funerário popular de Ecuador. Nerea: San
Sebástian, 2008.

PRADO, José Nascimento de Almeida. Trabalhos fúnebres na roça. São Paulo:


Departamento de Cultura, 1947.

REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz
Felipe (Org.). História da vida privada no Brasil. vol II. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 96-141.

94
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

______________. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do


século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Editora Unicamp, Campinas,


São Paulo, 2007.

SOUZA, Ana Cecília Araújo Soares de. et al. Canto das almas: carpideiras e
cantadeiras de inselênias no interior do Ceará. In: MARTINS, Clerton (org.).
Antropologia das coisas do povo. São Paulo: Roca, 2005.

VILLA, Marco Antônio. Vida e morte no sertão. História das secas no Nordeste nos
séculos XIX e XX. São Paulo. Editora Ática, 2001.

Sites consultados:
www.artefunerariabrasil.com.br
www.ibge.gov.br

95
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A CHEGADA DA CORTE PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO E


A OBRA DE PE. JOSÉ MAURICIO NUNES GARCIA: RECEPÇÃO,
ADAPTAÇÃO E EXCLUSÃO

Gyovana de Castro Carneiro65


carneiro.gyovana@gmail.com

Quando a Família Real Portuguesa adentrou a Baia de Guanabara, o Rio de


Janeiro era uma acanhada cidade colonial de população diversificada, ruas estreitas e
vida cultural escassa. Embora o Rei e sua comitiva tenham sido recebidos com grande
festa, a cidade não estava preparada para atender toda a estrutura da corte e Dom João
VI precisou implementar medidas muito além das administrativas para tornar a urbe
mais apropriada para a Casa de Bragança e seu séquito. O grupo que acompanhou o Rei
nesse trajeto era bem diverso e nele também estavam compositores e intérpretes
portugueses que já serviam à corte em Portugal e passaram a influenciar o estilo e as
práticas de músicos coloniais residentes no Rio de Janeiro, construindo uma nova
percepção do gosto e uma nova maneira de observar o mundo das artes.

Figura 166
D. João VI ouvindo o padre José Maurício ao cravo.
Henrique Bernardelli
Óleo sobre tela (esboço),
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

65
Gyovana de Castro Carneiro é professora da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e doutoranda
em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa – Portugal.
66
Disponível em: http://www.josemauricio.com.br/JM_Q_Por.htm Acesso em 26/10/2015

96
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Para compreendermos a recepção musical na corte de Dom João VI


precisaremos conhecer os seus três músicos mais importantes: Marcos Portugal (1762-
1830), Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) e Sigismund Neukomm (1778-
1858).
Como podemos pensar a recepção das práticas musicais do período joanino?
A chegada da corte em 1808 deu novo sentido à vida cultural do Rio de Janeiro. Padre
José Maurício Nunes Garcia, por exemplo, passou a frequentar a corte e conviver com a
família real. Houve, sem dúvida, mudanças e cruzamentos entre as diversas maneiras de
interpretar e ouvir os sons do mundo, "quando se pensa na prática da música é
importante observar as transformações estilísticas relacionadas com as técnicas de
interpretação, de composição e da recepção da obra musical". (MONTEIRO, 2008)
Compositor predileto de Dom João VI, Marcos António Portugal, nasceu
em uma família de músicos67, a 24 de Março de 1762 na freguesia de Santa Isabel em
Lisboa, e estudou música na Escola Patriarcal68, fundada por D. João V em 1713. Seu
reconhecimento como músico data de 1783 quando, já autor de várias composições
conhecidas e executadas, aproxima-se da família real portuguesa. Em 1792 parte para
Itália e lá, conhecido como Marcos Portogallo, estreou grande número de óperas nas
cidades de Florença, Parma, Veneza, Milão, Nápoles, Ferrara e Verona. Em 1800
retorna a Lisboa já gozando de fama e assume importantes cargos musicais no Reino:
Mestre de Solfa no Seminário Patriarcal e Maestro do Real Teatro de São Carlos: “estas
nomeações atestam a confiança e elevada admiração que o Príncipe Regente Dom João
tinha por Marcos Portugal e pela sua obra” (MARQUES, 2012, p. 13-14). Todavia,
embora considerado o músico mais querido do Príncipe Regente, Portugal não
embarcou para o Brasil com a Família Real em 1807:

Marcos Portugal foi pura e simplesmente esquecido: na realidade, na


caótica confusão do genial, mas improvisado ‘Estado Português’ para
o Brasil (muito mediado e nada preparado, como é costume), com
todos os grandes personagens, os altos e baixos funcionários, os
criados e familiares, milhares de pessoas acotovelando-se de mistura
com móveis, pratas, quadros e bibliotecas, numa ânsia de terror

67
Seu pai, Manuel Antônio da Assumpção, foi músico da Santa Igreja Patriarcal, segundo informa o
Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal - Marcos Portugal (1762-1830) 250 anos de Nascimento
(2012):13. O seu bisavô, Joaquim Mendes Ferreira, músico no lugar do Freixial (MARQUES, 2012, p.
13).
68
De onde saíram quase todos os melhores músicos portugueses do século XVIII e do primeiro terço do
século XIX (MARQUES, 2012, p.13).

97
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

motivada pela perigosa vingança das tropas de Junot, quem iria


lembrar do maestro-diretor do teatro São Carlos, reservando-lhe lugar
na homérica caravana? (CARDOSO, 2008, p. 95- 96).

Figura 269
FRANCISCO, C. S. MARCOS ANTONIO PORTUGAL - Comendador da Ordem de Cristo Mestre de Capela de S.M.
o Imperador do Brasil, etc., etc..
Litografia
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Cabe apontar outra hipótese levantada para a ausência de Marcos Portugal


na comitiva Real rumo à colônia: o fato de que a permanência da corte no Rio de
Janeiro era considerada provisória. Pensava-se em permanecer no Brasil apenas o tempo
necessário para expulsar as tropas francesas de Portugal. Mas, por fim, Marcos
Portugal, que há muito era ligado a Família Real Portuguesa (recebeu a sua primeira
encomenda real em 1782) e junto à corte sempre gozou de prestígio, logo foi chamado
pelo Príncipe Regente para o Rio de Janeiro:

Marcos Portugal não acompanhou a Corte no dia 29 de Novembro de


1807, por ocasião da partida motivada pela eminente chegada a Lisboa
das tropas de Junot. “No entanto, correspondendo à chamada com
carácter de urgência do Príncipe Regente ordenou-lhe que ‘o fosse
servir naquela corte’, chegou ao Rio de Janeiro a 11 de Junho de
1811”. (MARQUES, 2012, p. 17).

69
Disponível em: http://www.josemauricio.com.br/JM_Q_Por.htm

98
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Portugal chega ao Rio de Janeiro em 1811 e lá permanece até sua morte em


1830, exercendo grande influência musical e política na Corte. Assim que desembarcou
na capital carioca foi imediatamente nomeado Mestre da Capela Real, cargo que
anteriormente pertencia ao Padre José Mauricio Nunes Garcia (1767-1830).

Em 1811, desembarca no Rio de Janeiro Marcos Portugal, principal


compositor português de sua época, autor de um número imenso de
óperas ao estilo italiano, consagrado pela historiografia como rival e
antagonista de padre Mauricio. (CARDOSO, 2008, p. 112).

Antônio Marques, David Cranmer, André Cardoso, Lino Cardoso, Alberto


Pacheco e Mario Trilha são alguns dos musicólogos e historiadores que vem publicando
trabalhos no sentido de recontar a história da música luso-brasileira buscando fazer
justiça ao compositor Marcos Portugal.

Marcos Portugal despertou muito pouca simpatia da historiografia e


da musicologia positivista por ele não ter sido um artista contestatório
e burguês, mas, sim, um fiel servidor do Antigo Regime ao longo de
quase cinco décadas, sendo talvez o último grande compositor a
desempenhar esse papel na história, que teve o seu canto do cisne na
corte tropical. (TRILHA70, 2013, p. 87).

Para compreensão da recepção da música de Pe. José Nunes Garcia é


preciso ressaltar a grande influência que Marcos Portugal e sua obra tiveram na corte de
Dom João VI no Rio de Janeiro, a qual permitia que suas obras fossem sempre
executadas nas atividades da corte além de ser o professor oficial da família Real
colocando-o em vantagem sobre os outros compositores que viveram no Rio de Janeiro
no mesmo período histórico, principalmente os já citados Padre José Mauricio e
Neukomm.
A música profana de Marcos Portugal inclui (CRANMER, 2012, p. 39)
música dramática para o Teatro Salitre (c. 1784 a 1792), as modinhas (na década de
1790), a música ocasional (hinos e obras teatrais), e, no que tange o repertório para
piano a quatro mãos, a música didática, composta a partir de 1811, no Brasil, para Suas
Altezas Reais, filhos do Príncipe Regente, o futuro rei D. João VI, e de sua consorte, D.
Carlota Joaquina:

70
Disponível: http://www.insightinteligencia.com.br/60/PDFs/pdf6.pdf

99
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

No momento que chegou ao Brasil, Marcos Portugal passou a ser


oficialmente o Mestre de Música de Suas Altezas, e é possível que
ainda a bordo da Fragata Carlota Joaquina tenha começado a compor
o material didático que seria utilizado pelos infantes, isto é, pelos
príncipes Maria Isabel (1797-1818), Pedro, (1798-1834), Maria
Francisca (1800-1834) e Isabel Maria (1801-1876). (TRILHA, 2013,
p. 90).

Antecedendo a vinda da família real, a atividade musical no Brasil era


responsabilidade dos padres. A figura do mestre-de-capela se impunha como autoridade
máxima e neste período inúmeras ordens terceiras e irmandades congregavam, além de
padres, representantes da classe média liberal; serviam-se de músicos, mulatos livres, na
maioria treinados para compor novas músicas destinadas às diversas festas religiosas.
Cardoso destaca alguns importantes padres mestres-de-capela, como o Padre José
Maurício Nunes Garcia (1767-1830) no Rio de Janeiro, e os Padres João de Deus Castro
Lobo (1797-1832) e José Maria Xavier (1819 -1887) em Minas Gerais (CARDOSO,
2008, p. 37).
Ao chegar ao Brasil, o compositor Marcos Portugal, com sua sólida
formação musical, nacionalidade portuguesa e mantendo ótima relação com o Príncipe
Regente, encontrou como figura máxima da música da corte e mestre da capela real um
padre mulato, brasileiro, pobre e com formação musical local. Nada mais natural para a
Corte que ele fosse imediatamente nomeado mestre da Capela Real no lugar do Pe. José
Maurício, excluído então este do importante papel que ocupara.
José Mauricio Nunes Garcia, neto de escravos, nasceu no Rio de Janeiro, em
22 de setembro de 1767, filho do Tenente Apolinário Nunes Garcia e de Victória Maria
da Cruz, sendo batizado em 20 de outubro na Sé do Rio de Janeiro. Ficou órfão de pai
aos seis anos e foi criado pela mãe e pela tia.
Segundo André Cardoso (2008, 71), a formação musical de José Mauricio
Nunes Garcia foi responsabilidade do professor Salvador José de Almeida Faria (c.
1732-1799), mineiro de Cachoeira do Campo, conterrâneo da mãe de José Maurício.
Para a musicóloga Cleofe Person de Mattos, Salvador José, além de professor de José
Mauricio, foi ‘músico familiarizado com as tradições musicais no período áureo da
criação setecentista em Minas Gerais, cujas bases teóricas transferiu para o aluno bem
dotado’ (MATTOS apud CARDOSO, 2008, p. 72).
A decisão de abraçar a vida sacerdotal foi mais uma necessidade do que
vocação. Além do “defeito de cor” como eram tratados negros e mulatos de então, José

100
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Mauricio não tinha posses. Desta forma, o seminário foi a forma utilizada para
continuar os estudos. Em 1792 é nomeado padre e, em 1798, mestre-de-capela da Sé no
Rio de Janeiro. Ordenado padre71, consegue a almejada nomeação de mestre-de-capela
do Rio de Janeiro, produzindo enorme quantidade de obras que se caracterizavam, em
um primeiro momento, por um estilo despojado com limitados recursos instrumentais.
Após 1808, quando a vida musical ganha impulso com a chegada da corte
portuguesa trazendo novos músicos e cantores, a música de José Mauricio adapta-se ao
gosto dos nobres portugueses, ganha dramaticidade e colorido com a incorporação de
um efetivo maior de instrumentos (CARDOSO, 2000, Prefácio).
Paralelamente às atividades de compositor, organista e regente, José
Maurício dedicou-se intensamente à atividade didática, tendo mantido durante muitos
anos em sua residência um curso de música na qual ministrava aulas para jovens alunos
gratuitamente. (CARDOSO, 2000, Prefácio). O método de pianoforte do Padre José
Mauricio Nunes Garcia, descritos nas publicações de Draghi (2000) e Fagerlande 72
(1996), é a constatação de sua vocação pedagógica. Por exemplo, o caso do primeiro
método para ensino de instrumento de tecla escrito no Brasil.

Figura 373
Método de Pianoforte (1821) composto por José Maurício Nunes Garcia, Jr
Irmãos Vitale CPM236 (2000)

71
“Sua opção pela vida sacerdotal pode ter sido menos por vocação que por afirmação social e
profissional. Seria este o único caminho que poderia leva-lo ao posto de mestre-de-capela da catedral”
(CARDOSO, 2008, 74)
72
Incluindo a reprodução fac-similar do método original.
73
Disponível em: http://chevalierdesaintgeorges.homestead.com/nunes.html

101
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A chegada do compositor Sigismund Neukomm (1778-1858) em 1816 foi


muito produtiva para Padre José Mauricio. Os dois músicos tornaram-se grande
amigos.“Tocarei a minha marcha ao lado do Padre José Maurício, que em mim desperta
os melhores sentimentos de amizade e admiração” (LANZELOTTE, 2009, p. 54).

Figura 474
Sigismund Ritter Neukomm

Sigismund Ritter Neukomm nasceu em Salzburg em 10 de julho de 1778.


Em sua terra natal foi aluno de Michael Haydn (1737-1806) e ao completar dezesseis
anos transferiu-se para Viena, onde estudou com o irmão mais célebre de seu antigo
professor, Joseph Haydn (1732-1809) durante sete anos. Após 1804, Neukomm assumiu
as funções de kapellmeister no Teatro de São Petersburgo, Rússia e em 1809 passou a
ocupar o cargo de músico na casa do príncipe Charles Talleyrand (1754-1838),
iniciando ali a trajetória que o levaria ao Brasil.
Presente nas conversações do Congresso de Viena, Talleyrand, junto a
representantes do corte portuguesa, adotou a ideia de elevar o Brasil à condição de
Reino Unido a Portugal. Nesse momento nasce um reino dividido entre dois
continentes, separados pelo Oceano Atlântico - Neukomm foi o compositor enviado

74
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sigismund_von_Neukomm_(1).jg

102
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

logo após a Missão Francesa para ajudar a reatar as relações entre Brasil/França e
Áustria.
Talleyrand foi um dos mais controvertidos e poderosos políticos de seu
tempo, colocando-se contra o apoio de potencias europeias ao processo de
independência de colônias americanas, entre elas o Brasil. A movimentação em relação
a aproximação de Portugal da França orquestrada por Talleyrand era interessante a
Portugal na medida em que colocava a nação portuguesa menos dependente da poderosa
influência inglesa.
A saída da corte portuguesa para o Brasil em 1808 deixou Portugal
fortemente dependente de um único pais, a Inglaterra, para a consecução de seus
objetivos estratégicos. Essa situação de dependência desagradava politicamente a Dom
João, na medida em que colocava o monarca português sem outras opções de apoio
politico em qualquer mesa de negociação, vendo-se sempre a mercê dos interesses
ingleses.
Para escapar desse dilema político, Dom João resolve movimentar as peças
do xadrez europeu, convidando para uma visita de reconhecimento ao Brasil artistas e
personalidades de reconhecido gabarito intelectual para compor a então chamada
Missão Francesa.
Idealizada por Antônio de Araújo Azevedo, o Conde da Barca, a pedido de
Dom João VI, desembarca no Rio de Janeiro em 1816, com a missão de fundar a Real
Escola de Belas Artes, a referida missão artística, composta por personalidades de
reconhecido talento, os pintores Jean Debret (1768 - 1848) e Nicolas Antoine Taunay
(1755 - 1830), escultores como Auguste Taunay (1768 - 1824), arquitetos como
Grandjean de Montigny (1777 - 1850), entre outros.
Passados poucos meses do desembarque no Rio de Janeiro da missão
artística francesa, aporta em terras brasileiras outra comitiva francesa, a do Duque de
Luxemburgo, que tinha como um de seus objetivos o restabelecimento das relações
franco-portuguesas. Junto com os diplomatas ligados ao Duque de Luxemburgo vieram
também, compondo a referida comitiva, o naturalista Auguste de Saint Hilaire (1779 -
1853) e o compositor Sigmund Neukomm. Teve início, dessa forma, a importante
contribuição de Neukomm para o enriquecimento do panorama musical da corte
lusitana instalada no Brasil.
Sigsmund Neukomm chega ao Brasil em 1816 permanecendo no Rio de
Janeiro até 1820. Ministrava aulas de música para a Família Real e para membros da

103
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sociedade carioca. Admirava e ajudava talentos brasileiros como Padre José Mauricio e
Francisco Manuel da Silva. O envolvimento de Neukomm com as práticas musicais
brasileiras exerceu também grande influência sobre a vida e a literatura no Rio de
Janeiro. Nômade e talentoso, mantinha uma relação muito próxima com seus mecenas e
patrocinadores, principalmente Charles Maurice de Talleyrand. Várias foram as
suposições acerca da influência política desse compositor75. (Monteiro, 2010, p. 99).
Dados revelados pelos pesquisadores Cardoso (2012) e Cranmer (2012b)
apontam informações sobre a suposta inveja de Marcos Portugal em relação a
Neukomm: o austríaco pretendia abrir um curso de contraponto e harmonia, mas
limitou-se, devido ao ciúme e intrigas de Marcos Portugal, a ensinar os futuros
imperadores e a alguns particulares. Neukomm produziu no Rio de Janeiro obras
musicais com diferentes utilidades e significados: para entretenimento da Família Real,
para saraus da aristocracia e outras com fins didáticos (Cardoso, 2008, 211-212). A
preferência pela música de Marcos Portugal na Capela Real era grande; dessa forma,
Neukomm passou a compor obras para piano e apresentar arranjos para piano a quatro
mãos com o intuito de ver suas obras executadas:

Percebi, então, que não haveria lugar para minha música religiosa e
abandonei o projeto de continuar a Missa de São João. Passaria a
escrever música para piano, música de câmara e sinfonias, gênero para
os quais o meu querido Papa Haydn tão zelozamente me preparou e
que, na Corte do Rio, não se tinha o hábito de praticar.
(LANZELOTTE, 2009, p. 51).

Em razão da influência do Conde da Barca, Neukomm é nomeado por Dom


João VI para o cargo de “professor público de música”, com obrigações de ministrar
aulas para os membros da família real e, ainda, compor quando lhe fosse requerido.
Meyer (2005) afirma que Neukomm possuía outros alunos além do círculo real e um de
seus alunos teria sido Francisco Manuel da Silva 76(1795 -1865).

75
“Na verdade, os problemas surgidos entre Talleyrand,Metternich e a polícia austríaca acabaram por
envolver Neukomm. Um estudo sobre as obras para flauta de SigismundNeukomm, publicado pela revista
francesa Traversier, traz no título os epítetos de ‘pianista, flautista e espião’. Jean Orieux, um dos
biógrafos de Neukomm, acrescenta que durante o Congresso de Viena, era comum ver Talleryand e seus
supostos ‘espiões’ reunirem-se durante a noite para ouvir as execuções de Neukomm ao piano. O que
poderia ser um simples passatempo ou mais uma prática cortesã, foi interpretado como uma espécie de
complô contra Metternich e a Áustria”. (Monteiro, 2010, p. 99).
76
Francisco Manuel da Silva (1795 -1865) Fundou o Conservatório do Rio de Janeiro, atual Escola de
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro e compositor da melodia do Hino Nacional Brasileiro,
além decompor arranjos para piano a quatro mãos de suas próprias obras.

104
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Verifica-se então que no Rio de Janeiro oitocentista o classicismo musical


conviveu com o italianismo e com o colonialismo sendo que os músicos mais
importantes da corte de Dom João VI foram os agentes desta resultante:

(...) os referenciais europeus, que constroem, descontroem ou


reconstroem um determinado tipo de gosto, chegaram, no seu tempo e
devidamente redimensionados, ao Brasil colonial através da instalação
da corte, de seu costume e de sua observação da música. O
classicismo, com Haydn (através das relações Brasil-Áustria e da
vinda de Sigismund Neukomm), Mozart e Beethoven, e o italianismo
operístico, com as obras de Piccino, Cimarosa, David Perez, Salieri,
Scarlatti, Rossini e a transferência de Marcos Portugal, estiveram na
colônia absorvidos por José Maurício. (MONTEIRO, 2008, p. 60).

O Rio de Janeiro antes da chegada da corte tinha uma vida cultural quase
inexistente. Padre José Maurício Nunes Garcia viveu nesta época conturbada, mas sua
música se beneficiou dos músicos e da vida da corte. Houve no Rio de Janeiro
oitocentista uma irradiação de novas estéticas, nomeadamente o neoclassicismo, com o
abandono da tradição barroca. O padre pôde então incluir em suas composições recursos
técnicos e humanos, já que o momento colocava a sua disposição novas ideias e novos
instrumentistas. Conhecido e reconhecido como grande compositor, instrumentista,
educador e improvisador, não teve uma vida fácil. Enfrentou como padre, mulato, pobre
e brasileiro, em seu tempo histórico, a vida em uma sociedade escravocrata e
preconceituosa.
A exclusão de Padre José Maurício Nunes Garcia se acentuou com a partida
de Dom João VI em 1821 e com o vazio que este fato produziu na cena musical carioca.
Dom Pedro I, apesar de amante da música e simpático ao padre, não pôde manter a
pensão do compositor e ele teve que encerrar as atividades de sua escola na Rua das
Marrecas no Rio de Janeiro. Frustrado, envelheceu precocemente e morreu em 1830 aos
62 anos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, André. A música na corte de D. João VI: 1808 – 1821. São Paulo: Martins
Fontes. 2008.

105
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

________. Prefácio. In DRAGHI, Giulio Edoardo. Método de Pianoforte. Irmãos


Vitale. São Paulo. p. 7-8, 1999.

CARDOSO, A., CRAMNER, D. Marcos Portugal: o mito e a realidade. Palestra.


Universidade Federal Fluminense. Solar do Jambeiro, Niterói – RJ, 2015.

DRAGHI, Giulio Edoardo. Método de Pianoforte. Irmãos Vitale. São Paulo. 1999;

FAGERLANDE, Marcelo. Padre José Maurício: o método de pianoforte do Padre José


Maurício Nunes Garcia. Relume-Dumará: RioArte. Rio de Janeiro, 1996.

FERNANDES, Cristina. 2010. O sistema produtivo da Música Sacra em Portugal nos


finais do Antigo Regime: entre a capela e o patriarcal 1750-1807. Tese de
doutoramento apresentada à Universidade de Évora. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/10174/11077>. Acesso em 01 mai 2015.

LANZELOTE, Rosana. Sigismund Neukomm: Música Secreta - Minha Viagem ao


Brasil 1816 -1821. Editora Arteensaio, Rio de Janeiro. 2009.

MARQUES, Antônio Jorge. Marcos Portugal (1762-1830). 250 anos do Nascimento.


Catálogo de Exposição. Biblioteca Nacional de Portugal – Sala de Exposições. De 25 de
outubro de 2012 a 31 de janeiro de 2013. Universidade Nova de Lisboa – CESEM.
Acervo da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

MONTEIRO, Maurício. A Construção do Gosto: Música e Sociedade na Corte do Rio


de Janeiro1808-1821. Ateliê Editorial, São Paulo, 2008.

TRILHA, Mário.Os solfejos para uso de Suas Altezas. In CRANMER, David (Coord.)
Marcos Portugal: uma reavaliação. Lisboa: Edições Colibri/ CESEM, 2013.
Disponível em <http://www.insightinteligencia.com.br/60/PDFs/pdf6.pdf >. Acesso em
02 jul 2014.

106
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A CENA CULTURAL EM GOIÂNIA E A CONSTRUÇÃO DAS


IMAGENS DA MÚSICA REGIONAL

Inglas Ferreira Neiva dos Santos77

O experimento musical, independente do tempo e lugar, assume uma


dimensão intrincada, agregando sensibilidades, sociabilidades e emoções, tanto em
nível individual quanto coletivo. São experiências proporcionadas pela música por
diferentes formas, através do envolvimento na composição, canto, da dança, memória,
audição, relações afetivas, influenciando, pois, comportamentos e ideias. É sob essa
concepção da música enquanto elemento aglutinador de sentimentos e ações, capaz de
contribuir com as experiências culturais de um grupo, que esse artigo se projeta.
Interessa-nos compreender a cena cultural, especialmente musical em Goiânia,
caminhando pela obra de Francisco Ricardo de Souza (Marrequinho). Em tais saberes e
práticas (musicais) que permearam a musicalidade da cidade é possível inferir
elementos histórico-sociais relevantes que nos possibilitam intuir como aconteceu a
circulação dos bens culturais simbólicos na capital que fora fundada sob a construção da
ideia do progresso e da modernidade.

1.1. Imagens das canções sertanejas em Goiás

Goiás é conhecido nacionalmente como principal “provedor” de duplas e


músicas sertanejas. Advém da capital e interiores esse gosto e tendência pelo gênero
constituindo-se em uma habilidade – pelo menos no senso comum - quase que imanente
ao lugar, o que ao longo do tempo, o caracterizou como Estado marcado pela “música
sertaneja”. Na contemporaneidade a chancela de lugar destinado à música “caipira” ou
“sertaneja” ainda é latente, conduzindo em alguns momentos às análises unilaterais
acerca das atividades culturais desenvolvidas na região. Tal estigma de lugar no qual se
produz apenas música sertaneja tem induzido a visões de que em pleno século XXI o
Estado, apesar do tempo, ainda vivencia o atraso de outrora. São visões hipoteticamente
atreladas à ideia disseminada no passado, na qual o interior do território brasileiro era
por natureza atrasado e rude, pouco propenso às artes e às habilidades cognitivas, assim,
77
Mestre em História pela UFG. Professora da Rede Pública do Estado de Goiás. Integrante do GEHIM –
Grupo de Estudos de História e Imagens/ CNPq

107
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

as representações da acepção de sertão ainda são resquícios de um período em que o


trabalho firmava-se fundamentalmente no campo, vinculado às atividades rurais.
Se pensarmos no conceito de representação enquanto possibilidade de
reconhecimento e identificação, no caso em questão entre o lugar e suas atividades
culturais (a música sertaneja), parece-nos, que em Goiás/Goiânia, em certa medida, há
por parte de um segmento da população clara identificação. Este contexto permite
inferir que essa identificação, que foi se firmando de forma gradativa admite efetivar
vínculos entre o lugar (as pessoas) e as imagens ao longo do tempo erigidas e
(re)significadas. É por meio dessas memórias constantemente desdobradas as tais
identidades foram sendo forjadas e validadas por inúmeros mecanismos de
comunicação, aproximando do que Michel Pollak identificou como “memórias
enquadradas”. Observa-se que tal identidade (de um estado caracterizado pela produção
de música sertaneja), foi edificada à sombra de suas peculiaridades históricas, de tal
modo que a leitura que se faz acerca do Estado tende a orientar-se pelos resquícios do
passado, no qual o lugar se viu atrelado à ideia de ruralidade e atraso. Daí, o panorama
construído – e em construção, filiar-se à concepção de um lugar ainda marcado pela
afinidade aos negócios relacionados ao campo, o que, supostamente teria favorecido a
disposição e o gosto pela música sertaneja.
Compreensão controversa por duas questões: a primeira pelo fato de
Goiânia ter sido fundada sob o signo do moderno e do progresso78, o que nos permite
questionar se tal propósito teria sido alcançado somente no âmbito local, evidenciando
uma leitura externa contrária, portanto de atraso; a outra se relaciona ao fato de que, nos
últimos vinte anos, as canções que despontaram no Estado e nacionalmente, pouco
trataram de demandas relacionadas ao campo, possuindo em grande parte, temáticas
voltadas às questões urbanas e amorosas. Ponderando a análise do capítulo I, no qual
acentuamos a posição marginal da música sertaneja na esteira da música popular
brasileira, não seria estranho deduzir que para uma região que se firmara numa condição
marginal (geográfica e economicamente) por longo período, não seria de se estranhar o
apreço pelo mau gosto, pela a arte musical marcada por pleonasmos nas letras e
melodias pouco elaboradas. Por certo, esse tipo de análise pautada no conservadorismo,
seria facilmente confirmado pelo pensamento adorniano e por seus seguidores. Vincular
o gosto por canções caracterizadas como bregas e chulas ao aspecto político-econômico

78
Sobre o tema, ver CHAUL, Nasr Fayad. A construção de Goiânia e a Transferência da capital.
Goiânia: Ed. UFG, 1999.

108
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

(tímido), foi bastante comum na história da nação, apontando uma leitura dualista da
arte, na qual o erudito e o popular se encontravam em campos opostos, desconsiderando
assim as intersecções.
Evidenciados alguns elementos que favoreceram Goiás ser considerado
(local e nacionalmente) como o Estado que mais promove e exporta cantores sertanejos,
vale entender como se deu a constituição do gênero na localidade, bem como a alcunha
de “celeiro da música sertaneja”.79 Faz-se interessante levantar a discussão já pontuada
sobre a contraditória relação música caipira e música sertaneja, para melhor facilitar o
entendimento do gênero em Goiás.
Parece-nos evidente a essa altura do trabalho, que não é indicado apreender
as duas fases do gênero considerando-as em lugares opostos, como se separadas por um
enorme fosso. Entre as duas fases , ao contrário, o que se percebe são diálogos e
justaposições, elementos que, de algum modo, acompanharam o caminhar da música
sertaneja. Para Marta Ulhôa “o estilo vocal se manteve relativamente estável, enquanto
a instrumentação, ritmos e contorno melódico gradualmente incorporaram elementos
estilísticos de gêneros disseminados pela indústria musical” (ULHÔA, 1993, p.1).
À luz dessa percepção de que a música caipira já começa “híbrida” e que
suas variações são composições que coadunam experiências díspares, é que
analisaremos o gênero em Goiás. Para tanto, utilizarei o conceito de “Música Sertaneja
Tronco” para tratar da música sertaneja desenvolvida no Estado, entre os anos 50/80,
termo este batizado por Francisco Ricardo de Souza em sua autobiografia (2010), na
qual o autor elabora uma árvore genealógica para explicar a expansão do gênero,
segundo sua concepção. A ilustração abaixo (imagem 5), chama a atenção pelo fato de
que, para Francisco Ricardo, há uma distinção entre a música caipira e música sertaneja
raiz; alguns autores estabelecem essa diferenciação.
Segundo Marrequinho, Goiás não vivenciou as duas primeiras fases do
gênero, principiando, portanto, na fase por ele definida como Tronco, fato corroborado
pelos registros das primeiras gravações que se deram no final da década de 1950.
Interessante perceber na imagem explicativa do autor, por meio da representação das
diversas setas, os variados caminhos da música sertaneja, sobretudo se atentarmos para

79
A expressão “celeiro de música sertaneja” direcionada a Goiás enquanto “exportador” do gênero foi
utilizada por Francisco Ricardo de Souza Júnior em seu Trabalho de Conclusão de Curso - A música
sertaneja em Goiás (1950-70): História de um ajuntador de versos (2010). Trabalho apresentado no curso
de História da Universidade Federal de Goiás. Além do autor, a mídia local tende a enfatizar a ideia de
que Goiás constitui-se em “exportador” e “fomentador” de artistas relacionados ao gênero.

109
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

os últimos quinze anos. A partir daí, observa-se que o gênero tem se mostrado aberto às
novas influências, levando-nos a conjecturar que, devido à música inscrever-se no
campo social e cultural, se mostra móvel e cambiante. Vale atentar, contudo, para o fato
de que na concepção exemplificada por Marrequinho, a fase por ele definida como
“tronco” sugere caracterizar-se por seu caráter relativamente “puro” e livre de
interferências. Sob tal perspectiva, o compositor desconsidera o fato de que, em certa
medida, as origens da música caipira já foram híbridas.

Imagem 05: Árvore Genealógica da Música Sertaneja

Fonte: http://blogdomarrequinho.blogspot.com.br

Em nível nacional, a música sertaneja se consolidou no final da década de


1950, momento em que os temas românticos vão compondo as canções e as
representações das moças interioranas, que gradativamente vão sendo substituídas por
moças urbanas e “modernas”. Segundo Francisco Ricardo de Souza Júnior:

Foi nesse período que surgiu um personagem de grande


importância para a música sertaneja de raiz goiana, Palmeira,
codinome de Diogo Mulero (1918-19670). Começou fazendo
dupla com Piracicabano (depois Piraci) em 1941, depois com
Luisinho e por fim com Biá, formando uma dupla Palmeira e
Biá, a qual teve o maior reconhecimento, principalmente depois
da gravação de “Boneca Cobiçada” (de Biá e Bolinha) sucesso
de 1956. Mas importância de Palmeira para a música goiana é
que, devido ao seu sucesso, nos anos 50 ele iria ocupar o cargo
de diretor artístico na gravadora Chantecler. Esta foi a
responsável pelo lançamento, ainda na década de 50, de muitas

110
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

duplas goianas, dentre elas a dupla Marreco e Marrequinho


(SOUZA JÚNIOR, 2010, p. 23)

A década de 50 foi marcada por oportunidades para os cantores sertanejos


que pleiteavam sucesso em nível local e nacional. Duplas surgiam constantemente,
fundadas sob a amizade ou vínculo de parentesco (em geral, irmãos), agitando o
movimento de migração rumo às oportunidades que São Paulo representava. Grande
representante desse período foi Tião Carreiro e o Pardinho, cantando o estilo pagode
caipira, que, sobremaneira, abordou as epopeias sertanejas com temas sociais e épicos
sobre o sertão (SOUZA JÚNIOR, 2010, p. 27). Apesar do sertão em meados do século
XX já não mais constituir-se em território ignorado, parte da concepção sobre o lugar
ainda guardava certo mistério e exotismo. Goiás nesse contexto, passa a ser muito
citado em composições que mencionam viagem de estradeiros ao sertão, como na
música Chico Mineiro, no qual o personagem principal da canção estava em viagem
com destino a Goiás quando é assassinado no caminho (SOUZA JÚNIOR, 2010, p. 27).

Chico Mineiro80
(Tinoco e Francisco Ribeiro – composição: 1946)
Cada vez que eu me alembro do amigo
Chico Mineiro, das viagen que nói fazia era
ele meu companheiro. Sinto uma tristeza,
uma vontade de chorar, alembrando
daqueles tempo que não mais hái de vortar.
Apesar de eu ser patrão, eu tinha no
coração o amigo Chico Mineiro, caboclo
bom, decidido, na viola era delorido e era o
peão dos boiadeiro. Hoje porém com
tristeza recordando das proeza da nossa
viagem motim, viajemo mais de dez ano,
vendendo boiada e comprano, por esse
rincão sem-fim. Caboclo de nada temia mas
porém, chegou um dia, que Chico apartou-
se de mim.

80
http://www.vagalume.com.br/tonico-e-tinoco/chico-mineiro.html. Acesso em: 12/10/2015. Álbum:
Warner 25 anos: Tonico e Tinoco - 2001. Faixa 03 do CD Ilustrativo.

111
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Fizemo a úrtima viage


Foi lá pro sertão de Goiais.
Foi eu e o Chico Mineiro
também foi o capataz.
Viajemo muitos dia
pra chegar em Ouro Fino
aonde nós passemo a noite
numa festa do Divino.

A festa tava tão boa


mas antes não tivesse ido
o Chico foi baleado
por um homem desconhecido.
Larguei de comprar boiada.
Mataram meu companheiro.
Acabou o som da viola,
acabou seu Chico Mineiro.

Despoi daquela tragédia


fiquei mais aborrecido.
Não sabia da nossa amizade
porque nós dois era unido.
Quando vi seus documento
me cortou meu coração
vim sabê que o Chico Mineiro
era meu legítimo irmão

A letra de Chico Mineiro apresenta um panorama das canções ditas caipiras.


Elementos como a temática rural; a proximidade entre o gênero e a religião católica
(reminiscências das práticas religiosas em geral vivenciadas nas colheitas e festas
experienciadas no campo), percebida no verso, “numa festa do Divino”; a postura
nostálgica em relação ao passado; a narração linear e a linguagem “caipira”,

112
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

apresentando erros ortográficos e dificuldades com o tempo verbal, são características


que contribuem para a “demarcação” de tal fase. A narrativa falada que antecede a
música, igualmente se constitui em um elemento indicativo de uma época, prática que
vem das primeiras gravações, desenvolvida por João Pacífico 81, funcionando como uma
espécie de anunciação da música a ser cantada.
No que se refere à musicalidade da canção, a parte declamada é
desenvolvida tendo como pano de fundo um solo de viola acompanhada pelo violão.
Com melodia simples, a música apresenta suaves subidas em seu andamento. A junção
da letra e melodia expressam a dor e o sofrimento de quem interpreta, confirmada pela
expressão delorido, verbete bastante comum às canções caipiras, referindo-se a dor, ao
sentimento de quem canta. Na gravação apresentada, observa-se a participação do
público, o qual se percebe envolvido com a canção; tal participação nos remete aos
programas de auditório, comuns ao gênero.
A referência a Goiás se fez através do verso Foi lá pro sertão de Goiás,
confirmando a discussão feita no capítulo anterior, na qual o sertão se configura em
lugar do estranhamento exercendo ao mesmo tempo medo e atração. A referência à
distância é percebida no verso Viajemo muitos dia, exemplificando que, em relação ao
Sudeste, o centro do território brasileiro no período da composição, ainda constituía-se
em região longínqua, permeada por desafios. Em síntese, criava-se, por intermédio dos
relatos citados, uma ideia de isolamento, de amargura, de tristeza atávica, de letargia
social, de marasmo econômico, de dias iguais a todos os dias (CHAUL, 1997, p. 55). A
imagem desenvolvida na canção sobre tais rincões explicita a economia goiana à época,
voltada à pecuária, atividade referenciada na literatura, a exemplo de Tropas e Boiadas
(1917) de Hugo de Carvalho Ramos. O trecho abaixo revela um pouco desta
experiência, nos pousos dos tropeiros no “sertão” goiano, através das longas viagens,
nas quais o gado era campeado pelas estradas empoeiradas à procura de novos pastos
ou, depois de vendidos, entregues ao seu destino.

À noite, repasto feito, descansava o pessoal recostado sobre as


retrancas e pelegos dos arreios. Pelos cantos, trilavam grilos; e,
de fora, vinha o grito dolente dos caburés e noitibós, agourando
a solidão. Um tropeiro sacou do piquá que trouxera a tiracolo, o
pinho companheiro dessas caminhadas no sertão; apertou a

81
João Baptista da Silva, mais conhecido pelo apelido João Pacífico, foi um compositor de música
caipira, autor dentre outras, da conhecida canção Cabocla Tereza.

113
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

chave da prima e pigarreou pelo cordame um lundu, todo


repassado de ais e suspiros (RAMOS, 1917, p. 3).

A historiografia goiana também abordou a expansão da pecuária em Goiás.


Segundo Nasr Chaul, o cerrado com sua carência de sais minerais condicionou, a seu
modo, o desenvolvimento da pecuária extensiva; já que o gado se auto locomovia e se
duplicava rapidamente (CHAUL, 1997, p. 89). Assim, o território se constituíra em
lugar propício à multiplicação do rebanho, devido à amplitude da região, rompendo a
estagnação econômica que o Estado se encontrava, após o fim da mineração. Ainda
segundo Chaul:

É preciso ressaltar que apesar do isolamento de Goiás, a


economia regional, em seu todo, buscava uma organização no
contexto das leis de mercado, inteirando-se e fazendo parte da
lógica e das necessidades da produção nacional. O gado foi,
sem dúvida, a moeda goiana capaz de estimular, embora
relativamente, a economia goiana (CHAUL, 1997, p. 90).

As referências de autores que abordaram o tema da pecuária em Goiás,


confirmam a ideia posta na música analisada, na qual as longas caminhadas com o gado
eram frequentes. De algum modo, tais andanças contribuíram para a memória do lugar,
daí a referência aos “bois”, às “boiadas”, em várias músicas sertanejas, sobretudo na
fase caipira, relacionando a atividade ao Centro-Oeste.
Outra canção que faz menção a Goiás é “Pagode em Brasília” de Lorival
dos Santos e Teddy Vieira, música gravada por vários intérpretes ao longo do tempo,
ficando conhecida na voz de Tião Carreiro e Pardinho em 1959:

Pagode em Brasília82
Compositores: Teddy Vieira, Lourival Santos

Bahia deu rui Barbosa


Rio grande deu Getúlio
Em Minas deu Juscelino
De São Paulo eu me orgulho

82
http://www.vagalume.com.br/tiao-carreiro-e-pardinho/pagode-em-brasilia.html. Acesso em:
12/10/2015. Álbum: Sucessos de Tião Carreiro e Pardinho - 2002. Faixa 04 do CD Ilustrativo.

114
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Baiano não nasce burro e gaucho é o rei das cochilhas


Paulista ninguém contesta é um brasileiro que brilha
Quero ver cabra de peito pra fazer outra Brasília

No estado de Goiás meu pagode está mandando


No bazar do Vardomiro em Brasília é o soberano
No repique da viola balancei o chão goiano
Vou fazer a retirada e despedir dos paulistano
Adeus que eu já vou me embora que Goiás tá me chamando

O trecho da canção acima permite perceber certa ligação entre Goiás e São
Paulo, no que se refere à música sertaneja. Sob olhares curiosos são construídas leituras
e intersecções acerca da indústria fonográfica paulista, bem como dos mitos do sertão
goiano (SOUZA JÚNIOR, 2010, p. 28). Compositores paulistas, Teddy Vieira e
Lourival dos Santos fazem referências a alguns estados brasileiros, sobretudo a Goiás e
a capital do País Brasília, enaltecendo a figura de Juscelino Kubitschek pela construção
da capital. A referência ao Bazar Paulistinha83 faz-se no verso: No Bazar do Vardomiro
em Brasília é o soberano, utilizando o nome do proprietário Valdomiro Bariani
Ortêncio como referência. Tal estratégia, segundo o próprio Bariani Ortêncio em
entrevista84, teve como proposta homenagear o Bazar, todavia não era indicado
configurar-se em propaganda. Embora o Bazar tenha sido fundado em Goiânia em 1945,
posteriormente foi ampliado com uma filial em Brasília, constituindo-se no primeiro
revendedor de artigos relacionados à música, discos e instrumentos. O verso evidencia a
popularidade do Bazar Paulistinha no meio artístico local, mas igualmente, em São
Paulo, ponto de referência para a música sertaneja. Musicalmente Pagode em Brasília
se constitui no conhecido ritmo inaugurado por Tião Carreiro o pagode caipira.
Violeiro que gostava de samba, Tião inventara um jeito diferente de tocá-lo na viola, o

83
O Bazar Paulistinha foi fundado pelo paulista radicado em Goiânia, Waldomiro Bariani Ortêncio em
1945 em Campinas, posteriormente em Goiânia com filial em Brasília. No período da fundação o Bazar
curiosamente comercializava aviamentos (a mãe e irmã de Bariani possuíam um Ateliê de costura, tendo
dificuldade para adquirir os respectivos produtos, sendo comprados em Uberlândia e São Paulo). Devido
a constatação da escassez de tais produtos, Bariani resolveu então abrir o negócio. A mudança dos artigos
comercializados (de aviamentos para musicais) se deu devido à constante procura de discos, já que Goiás
não contava com nenhuma loja de revenda de tais produtos.
84
Todos os depoimentos, salvo indicação específica, foram retirados de entrevista realizada pela autora
em 13/10/2014, na casa do folclorista.

115
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

estilo ficou conhecido por várias gerações (NEPOMUCENO, 1999, p. 342). A música
se desenvolve sob os solos de viola com acompanhamento do violão, sofrendo poucas
variações em seu andamento.
Confirmando os distintos olhares direcionados a Goiás e elucidados nas
letras de canções, faz-se imprescindível mencionar o olhar do compositor Goiá. Gerson
Coutinho da Silva, mineiro de Coromandel, chegou a Goiás em 1953 (com o
pseudônimo de Rouxinol) com o propósito de aproximar da “confraria” dos cantores
sertanejos goianos. Segundo Marrequinho, “além de ser bom cantador, tinha ótima
aparência, era muito comunicativo e escrevia versos metrificados e rimados, com
extrema facilidade” (SOUZA, 2010, p.26). Recém-chegado compôs o Trio da Amizade
(Zé Micuim, Zé Geraldo e Rouxinol), posteriormente na segunda formação do trio (Zé
Micuim, Goiá, Goiazinho), Gerson Coutinho deixa o apelido de Rouxinol e em
homenagem ao Estado assume o nome artístico de Goiá (SOUZA, 2010, p.26). O artista
ficou em Goiás por dois anos, em seguida seguiu para São Paulo em busca de
reconhecimento nacional, objetivo alcançado, já que suas canções foram gravadas
sucessivas vezes por cantores de renome nacional, especialmente a canção Saudades da
minha terra (1967). Embora distante, não perdeu o vínculo com Goiás, sobretudo com
os amigos de cantoria, dentre eles, o cantor Marrequinho. O primeiro disco (78 rpm) 85
da dupla Marreco e Marrequinho foi gravado em São Paulo, na RCA VICTOR por
mediação do Goiá que a essa altura adquirira conhecimento e prestígio junto às
gravadoras de São Paulo. Segundo Marrequinho, mesmo distante, Goiá nunca se
esquecera das experiências e dos amigos de Goiás, postura facilmente verificada em
letras de suas canções, dentre elas uma em homenagem ao compositor Marrequinho.
Sobre tal homenagem, Marrequinho em 2000 compõe a música Saudade e nada mais,
suposta resposta e homenagem à composição de Goiá. Dentre as canções de Goiá que
fazem referência a Goiás vejamos: Visita a Goiás e Saudade de Goiás.

Visita a Goiás86
Compositores: Goiá e Sidon Barbosa

85
O Disco 78 rpm (rotações por minuto) comportava uma ou no máximo duas músicas de cada lado (lado
“A” e lado “B”)
86
http://www.vagalume.com.br/belmonte-e-amarai/visita-a-goias.html. Acesso em 24/10/2015. Álbum:
Porque fui te conhecer – 2002. Faixa 05 do CD Ilustrativo.

116
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Qualquer dia destes pego um avião


E vou pra Goiás matar uma saudade
Descer em Goiânia que felicidade
Rever a cidade que amo demais
Quero visitar a sede dos artistas
Rever meus colegas artistas goianos
Voltar aos tempos dos meus vinte anos
Que a mente saudosa não esquece mais

Faço uma entrevista com o Morais César


Depois o Claudino quero conhecer
Aqui distante sempre ouvi dizer
Dos belos programas que esta gente faz
Naquela terra vivi muitos anos
E com orgulho aqui eu confesso
Se os meus discos fizeram sucesso
Uma grande parte eu devo a Goiás

Quero visitar o bazar Paulistinha


Ver o Waldomiro velho companheiro
E convidá-lo para meu parceiro
Numa pescaria no rio Araguaia
Depois pretendo rever as fazendas
E revivendo um tempo saudoso
Ouvir o pio do jaó manhoso
Nas matas goianas quando o sol desmaia

Saudade de Goiás87
Compositores: Goiá e Amaraí

87
http://www.vagalume.com.br/belmonte-e-amarai/saudade-de-goias.html Acesso em: 24/10/2015.
Álbum: Relembrados por Amaraí e Francis Jr. - 2005. Faixa 06 do CD Ilustrativo.

117
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Goiás é saudade em tudo que falo


Às vezes me calo por esta razão

Mas o Valdomiro, Bariano e Hortêncio


Rompeu o silêncio do meu coração
Porque em seu livro "Sertão Sem Fim"
Mandou para mim recordação

Em seus personagens eu vi os goianos


Que a quase dez anos não posso mais ver
A grande saudade bateu em meu peito
Não tive outro jeito senão escrever
Humilde mensagem à terra querida
Que nunca na vida irei esquecer

Goiás encantado dos meus quinze anos


De sonhos e planos que longe deixei
Recordo saudoso fiéis amizades
Das belas cidades por onde passei
Será que em Goiânia reside ainda
A moça mais linda que tanto amei

Quisera expressar-me com todo o carinho


Mas neste disquinho não pode caber
É apenas amostra da mágoa sentida
Que faz nesta vida a gente sofrer
Goiás eu espero que a deusa da sorte
Não mande-me a morte sem antes te ver

Quando me lembro a doce poesia


No lago das rosas, das minhas campinas
Das noites formosas, de certos carinhos
Que foram só meus

Tempos felizes que os anos levaram


Deixando saudade dos dias sublimes

118
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

De felicidades que foram por certo


Presente de Deus

As letras das duas músicas fazem referência a Goiás, enfatizando a saudade


das pessoas e dos lugares (zona rural explicita nos versos: Depois pretendo rever as
fazendas
/Ouvir o pio do jaó manhoso/Nas matas goianas quando o sol desmaia) e (zona urbana
nos versos: No lago das rosas, das minhas campinas). Nas duas canções outra vez
vemos a menção ao Bazar Paulistinha como ponto de convergência dos artistas da
cidade. Ademais os versos: Quero visitar a sede dos artistas e Depois o Claudino quero
conhecer, deixa subentendido uma relativa profissionalização do gênero na cidade,
fazendo referência a União dos Artistas Sertanejos de Goiás88; o segundo verso, à
programação do rádio goiano através da citação do nome do locutor Claudino. O
aspecto supostamente profissional do gênero em Goiás/Goiânia nas décadas de 50/60 e
70, mencionado em tais canções é destacado pelo maestro Jose Eduardo Morais em
entrevista89:

Essa questão da música sertaneja em Goiás, é uma história que vem


sendo construída a partir da década de 40, a gente tem muito uma
idealização dela de achar que é uma coisa espontânea do povo, de ser
quase uma música folclórica, ela não é. Isso aí coincide com a
indústria do disco, indústria da gravação, e que você vai ter no
primeiro grande expoente disso que é o Tonico e Tinoco - por isso que
eu falo que é a partir da década de 40 por aí - aí houve naturalmente a
imitação disso aí. Quer dizer, aqui em Goiás, que todo mundo queria
que... Aí a gente pula para a década de 50, e que eles começaram a
gravar discos e construíram uma história muito bonita deste pessoal da
música sertaneja em Goiás, que vai desaguar no Leandro e Leonardo,
década de 80. Isso aí não foi assim espontâneo não, foi uma
construção. Eu mesmo pessoalmente eu devo ter uns 300 LP’s da
década de 60 e 70 de música sertaneja goiana. Então quer dizer, era
um mercado muito grande, que a gente não observava, mas ele
acontecia e à margem da mídia, eles não precisavam ou a mídia não se
interessava por eles, mas eles foram criando isso aí. Quer dizer, foi
uma construção muito bonita da música sertaneja.
[...]
[...] eu acho que o material que a gente tinha aqui, - na década de 60 -,
era melhor do que você tinha em São Paulo. Esse pessoal de São
Paulo estava em volta da rádio lá, da Rádio Nacional de São Paulo,

88
A U.A.S.G (União dos Artistas Sertanejos de Goiás) foi a primeira “Associação de artistas sertanejos”
fundada no Brasil (07/01/1958), demonstrando certo pioneirismo do Estado no que diz respeito a música
sertaneja, a segunda foi criada em São Paulo em 1965 (UASP88 – União dos Artistas Sertanejos de São
Paulo).
89
Entrevista concedida a autora em 07 de janeiro de 2016, no Centro Cultural Oscar Niemeyer.

119
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

mas a gente passava meio ao largo disso aí, esse pessoal ia lá em São
Paulo e gravava naquele Selo Califórnia, eles enchiam o caminhão de
LP’s e saiam vendendo, assim, eles não estavam preocupados com a
Capital...

Do ponto de vista musical, observa-se que a canção Visita a Goiás caminha


em direção ao ritmo de guarânia90, apresentando arranjos de acordeom e violão, além de
pequenos solos que remete ao som da guitarra havaiana. Formada por estrofes, a música
apresenta melodias simples sem muitas oscilações na característica melódica. A
segunda canção Saudade de Goiás o destaque também é para o solo de acordeom,
embora o instrumento harmônico que sustenta a música seja o violão. A letra de
nenhuma das duas canções possui refrão, sendo formadas por estrofes que intercalam a
variação da melodia.
Para além dos elementos musicais é importante, entretanto a observância de
outros aspectos como o contexto de produção e execução, chamando a atenção para os
interesses e conexões entre os artistas sertanejos de São Paulo e Goiás, ambos trocando
experiências, ponderado o que cada lugar poderia oferecer. Goiás, certamente
acrescentaria com a vivência de seu passado, no qual as experiências culturais e sociais
ambientadas no campo muito contribuiriam e inspirariam as composições; somado a
esse quadro, a experiência de cantar em duplas, resquícios dos festejos do campo, são
levadas para a cidade.
São Paulo por sua vez, contribuiria como polo industrial e cultural, sede dos
principais selos responsáveis pelas gravações e circulação das duplas sertanejas a partir
da década de 30. Nessa relação de contribuições à música sertaneja, sem dúvida São
Paulo se firmou como grande centro responsável e legítimo do gênero, todavia Goiás
como outros estados do interior do país experimentaram o intenso processo de migração
de modo peculiar. Assim, a ideologia de modernizar o país, bem como o crescimento
das cidades e a suposta proposta de emprego que elas representavam contribuíram para
mudar a dinâmica da população que de maneira intensa migrou para as cidades.
À luz desse contexto, a música sertaneja em Goiás se efetivou
“profissionalmente”91 na segunda metade da década de 50, através das primeiras

90
Ritmo de origem paraguaia, em andamento lento, introduzidas no Brasil a partir do final da década de
1930 e início da década de 40.
91
Apesar das primeiras gravações de música sertaneja em Goiás registrarem-se na segunda metade da
década de 50, cantores e duplas sertanejas já socializavam modas e causos, nos interiores e zona rural,
sendo comum tal experiência musical. Além das experiências “amadoras”, existiam ainda “duplas que se
apresentavam dentro dos padrões estéticos da época, condizentes com o profissionalismo que se esperava
de um músico sertanejo, tais como Campeão e Rouxinol” (SOUZA JÚNIOR, 2010, p. 36). Campeão foi o

120
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

gravações com o Trio da Amizade – Zé Micuim (Jorge Batista Ribeiro), Goiá (Gerson
Coutinho da Silva) e Goiazinho, sendo os primeiros artistas sertanejos de Goiás a
gravarem disco em São Paulo (SOUZA, 2010, p. 20). Antes do Trio da Amizade,
entretanto, Zé Micuim, Tiburtino, Jujú e o Chico Onça foram os primeiros artistas
sertanejos que empunharam violas e (violões) e “enfrentaram” um microfone de rádio
(Rádio Clube92) em Goiânia (SOUZA, 2010, p. 20). Segundo Francisco Ricardo de
Souza, a formação de duplas, ou trios era instável, mas isso não impediu a organização
de uma associação dos artistas de música sertaneja:

Qualquer um cantava com qualquer outro. Isso, na década de 50. Zé


Micuim era um idealista extremado. Foi o idealizador da fundação de
uma entidade de classe que foi denominada União dos Artistas
Sertanejos de Goiás (U.A.S.G.). Foi fundada no dia 07/01/58. A
primeira no Brasil (Fui sócio fundador e presidente dessa entidade,
por dois mandatos 1960/1961) (SOUZA, 2010, p. 25)

Figura 06 – Carteira de Francisco Ricardo


de Souza, expedida pela UASG a todos
associados.
Fonte:
http://blogdomarrequinho.blogspot.com.br

A associação tinha como objetivo a união dos artistas sertanejos, bem como
fomentar incentivos e facilitar o trânsito dos artistas nas atividades culturais da capital.
Sobre a operacionalização das gravações no período, Bariani Ortêncio esclarece que as
gravações feitas em São Paulo se efetivavam por intermédio do Bazar Paulistinha, já
que para enviar algum artista para gravar em São Paulo fazia-se necessário um custo

autor de grandes sucessos, dentre eles Canoa de Jacarandá, canção de grande sucesso à época (SOUZA,
2010, p. 20).
92
A Rádio Clube foi fundada em Goiânia em 05 de julho de 1942, na gestão do prefeito Venerando de
Freitas Borges.

121
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

inicial referente a uma remessa de mil discos, a exemplo da gravação em São Paulo de
Lindomar Castilho93.
Com base no contexto de obstáculos estruturais às gravações em Goiás, o
intento de gravar um disco esteve irremediavelmente condicionado a São Paulo, fator
embaraçoso, visto que à época, grande parte dos artistas (quase todos iniciantes)
encontravam-se em situação econômica precária, com renda incerta. Considerando tal
conjuntura, levar mais de uma dupla a São Paulo se configurava em tarefa difícil e
onerosa. Como Bariani pretendia gravar sete duplas goianas de uma única vez, o
processo se tornaria mais dispendioso ainda. Dessa maneira, por intermédio do
comerciante Bariani Ortêncio, a solução encontrada foi pedir auxílio à gravadora
Chantecler para efetivar a gravação de um LP (Long Play) em Goiás, especificamente
em Anápolis, local que, segundo Bariani teria estrutura para tal projeto. Bariani
esclarece sobre tal dificuldade:

[...]comecei com Lindomar Castilho e Eli Camargo e Trio da Vitória


esse outro que eu te falei que é o Trio da Amizade que era o Micuim
com Goiá. E vem por aí afora e no final das contas eu passei a gravar
até aqui em Anápolis porque eu tinha sete duplas pra ir gravar em São
Paulo, tava meio difícil e aí a gravadora me falou (RGE): se vocês
tiverem aparelhagem lá na rádio nós mandamos o técnico,
aparelhagem boa, a altura. Então nós conseguimos em Anápolis.
Tinha a rádio dos padres “Americana”, rádio São Francisco e nessa
então Marrequinho - Francisco Ricardo de Souza, trabalhava comigo,
era compositor cantava, cantava assim fazendo a primeira nas folias
tirando a primeira voz nas folias, Folia de Reis, Folia de Santo, Folia
do Divino. Gravamos as primeiras aqui, aí ele trabalhava comigo era
meu secretário e ele pegava a kombi do Bazar Paulistinha e levava
esse povo pra Anápolis. Então nós chegamos a fazer uma gravação a
única gravação gravada fora do eixo, foi em São Paulo que nós
fizemos (Entrevista com Bariani Ortêncio, concedida à autora em
13/10/2014).

Ao afirmar que a referida gravação na emissora de Anápolis foi a primeira


fora de São Paulo, Bariani evidencia o caráter precursor do Estado no âmbito da música
sertaneja. Os artistas que foram destacados para essa gravação foram selecionados por
Marrequinho que à época trabalhava no Bazar Paulistinha. Observa-se que Bariani

93
Lindomar Castilho, goiano de Santa Helena de Goiás, foi inserido no meio artístico através de Bariani
Ortêncio por intermédio do Bazar Paulistinha. Marrequinho ajudou na preparação da gravação do
primeiro disco do cantor, cuja a gravação do LP oficial (Canções que não se esquecem) se deu em 1962,
com o repertório de Vicente Celestino; sob a coordenação do Diretor da Gravadora Continental Diogo
Mulero “Palmeira” (na ocasião, em visita a Goiânia). (Informações obtidas através de entrevistas com
Bariani Ortêncio em 13/10/2014 e Francisco Ricardo de Souza – Marrequinho – em 13/09/2014).

122
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Ortêncio se constituiu em uma espécie de empresário (agenciador) dos artistas em


Goiás. Seu contato com as emissoras de São Paulo e sua familiaridade com o mercado
musical (discos e instrumentos) contribuiu com o embrionário cenário musical em
Goiás. O teste anterior à gravação oficial de Lindomar Castilho em São Paulo foi feito
pelo Bazar Paulistinha em Goiânia, sob a coordenação do compositor Marrequinho,
utilizando um aparelho “Philips, de rolo, com microfone cara de gato” de propriedade
do Bariani Ortêncio (SOUZA, 2010, p. 11).

Figura 07: Gravador de rolo (Philips)


Fonte: Instituto Cultural e Educacional
Bariani Ortêncio

Figura 08: Teste de gravação feito por Marrequinho (Francisco


Ricardo de Souza) com Lindomar Castilho, anterior à gravação
oficial em São Paulo.
Fonte: Instituto Cultural e Educacional Bariani Ortêncio.

123
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUL, Nasr Fayad. A construção de Goiânia e a transferência da capital – 2 ed. –


Goiânia: Ed da UFG, 1999.
NEPUMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34,
1999.
SOUZA, Francisco Ricardo de. Uma Vida, Uma História. Goiânia: Ed. Talento, 2005.
SOUZA JÚNIOR, Francisco Ricardo. A música sertaneja em Goiás (1950-70): História
de um ajuntador de versos. Monografia (Graduação em História) Universidade Federal
de Goiás, 2010.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Da moda-de-viola à balada – a estética da música
sertaneja. Universidade Federal de Uberlândia, 1997.

124
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

ENTRE A ESTÉTICA E A PREGAÇÃO: O SIGNIFICADO DA


SOBREVIVÊNCIA DA FORMA SACRA EM CONFALONI

Jacqueline Siqueira Vigário94

O presente texto apresenta algumas inquietações e hipóteses que envolvem


os estudos e os exercícios de análises das obras do pintor moderno italiano Frei
Nazareno Confaloni, meu sujeito de pesquisa no doutorado. Atualmente parte da
pesquisa encontra-se no momento de análise de documentos coletados no doutorado
sanduiche na Itália, dentre os quais o acervo de imagens pintadas pelo artista antes de se
mudar definitivamente para o Brasil na década de 1950.
Antecipo que minha proposta é antes, intuir, pensar nas conexões e inter-
relações existentes entre obras produzidas em períodos e culturas distintas. O exercício
de unir o objeto de arte ao cultural, no dizer de Jorge Coli, exige, antes de tudo, uma
"cultural visual, que depende da memória, e capacidade analítica e comparativa das
obras em uma dimensão empírica” (COLI, 2010, p.13).
É no âmbito do que os historiadores denominam como história das
visualidades que se entende: o passado apresentado no conteúdo e na forma dos objetos
artísticos não é um tempo concluído, mas emerge de forma recorrente no presente em
outras obras. É nesse sentido que a obra de Confaloni ocupará um lugar de relevo nesse
texto.
A análise foi pensada em dois momentos: no primeiro momento, trago um
exame da obra de Confaloni destacando elementos identitários da cultura local em
confronto com o imaginário moderno que compõe a cultura artística da época. No
segundo, o texto assume ideias pertinentes à identificação e elucidação do caráter
intercultural presente na obra de Confaloni a partir do exercício de interpretação pelo
princípio de semelhanças, comparações e diálogos de ordem simbólica com a obra
prima clássica de Michelangelo de Buonarroti, a escultura em Mármore, Pietà
Palestrina, (s/d) localizada na Galeria dell'Accademia de Firenze. É importante ressaltar
que tais obras foram produzidas em momentos históricos e contextos socioculturais
diferentes, que poderão revelar mutuamente sensibilidades ambivalentes, divergências e
semelhanças na concepção de gestos de dor e do caráter humanizante que as aproxima.
94
Jacqueline Siqueira Vigário é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFG. É
membro do GEHIM – Grupo de Estudos de História e Imagem – CNPq/UFG.

125
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O objetivo maior é extrair o caráter de historicidade das obras, ressaltando a formação


artística, as escolas e os movimentos que influenciaram o artista italiano Nazareno
Confaloni.
Inspirada pelo conceito de Pathosformeln utilizado por Aby Warburg, que
entendia que elementos da emoção na iconografia antiga eram reapropriados em outros
momentos históricos com significados opostos, pretendo analisar o quadro de pintura
intitulado Madona Negra, do artista moderno Giuseppe Nazareno Confaloni.
A noção de Pathosformeln consiste em uma prática de análise dos objetos
artísticos baseada no conhecimento vasto de imagens, que consiste em fazer uso do
formalismo por um viés cultural. Ou seja, os estudiosos do campo das artes que
trabalham com análises de objetos artísticos, de um modo geral, baseados em um
conhecimento prévio de imagens, articulam experiências individuais e práticas
simbólicas no tempo, perseguindo a continuidade de expressões de figuras artísticas e
suas transformações em tempos e culturas históricas distintas. A associação de
memória, tempo e plasticidade constitui um saber-movimento das imagens e para que se
efetive, é preciso um conhecimento vasto de culturas e imagens, construindo relações,
comparações, fricções, desmontando-as e remontando-as. Trata-se de uma noção que só
pode ser apreendida pelo exemplo, experiência que pode ser mais significativa do que o
conceito.
Nessa mesma linha de raciocínio, cabe indagar: O que está por trás da obra
de Confaloni? Quais os elementos nuançados envoltos na imagem de Confaloni que
entrelaçam a escultura Pietà Palestrina de Michelangelo?
Antes de iniciar a análise da pintura da Madona Negra de Confaloni, farei
um breve histórico de sua trajetória cultural artística, antes de chegar ao Brasil,
enfatizando sua formação europeia clássica. Quando veio para o Brasil, em 1950, além
de sua formação filosófica e teológica, o Frei já havia passado pelos grandes centros de
arte na Itália como Escola de Belas Artes de Firenze e Academia de Belas Artes de
Brera em Milão, além do Instituto All'Michelangelo em Roma. Foi em um ambiente
religioso e artístico, humanamente falando, que Confaloni se construiu e se
ressignificou em diversos momentos e muito deve à vida de missionário que exigiu por
meio do seu olhar, o silêncio e humildade própria dos dominicanos. Tal fato fez de
Confaloni um artista sensível e voltado às causas sociais.
Nesse sentido, quando chegou ao Brasil, o religioso passou a desenvolver
suas sensibilidades estéticas com motivos voltados para uma realidade regional local na

126
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

qual passou a viver. Essa mudança de atitude pode ser percebida em seus primeiros
trabalhos, como a série de pinturas de afrescos realizados dentro da Igreja Nossa
Senhora do Rosário na cidade de Goiás e em suas pinturas de cavaletes. Em uma
entrevista ao crítico de arte Miguel Jorge, Confaloni rememorou o começo de sua vida
em Goiás, dizendo: "[..] Assim que cheguei em Goiás, procurei retratar aquelas
paisagens: os rios, as lavadeiras, os burrinhos carregando lenha. Foi uma época muito
feliz! Minha pintura tinha cores muito vivas". Assim, Confaloni já havia se afastado do
modelo acadêmico clássico para imprimir a marca singular do humano enfatizado por
meio de figuras contorcidas, pequenas deformações utilizando-se de aspectos pictóricos
(nuances, cores, sombras, traços, pinceladas mais soltas), gerando uma atmosfera
inquieta nas figuras esboçadas em uma espécie de denúncia social. Confaloni buscava
nessas experimentações algo que o ajudasse a construir seu percurso pelo moderno,
usando como pano de fundo essencial o elemento sacro. É neste sentido que as madonas
de Frei Confaloni tornaram-se negras, muitas delas envoltas por tipos sertanejos. Siron
Franco (1982) destacou o amor de Confaloni à negritude e o quanto o artista executava
Nossas Senhoras mulatas. Segundo Siron, o Frei havia contado a ele sobre a experiência
de ter visto um negro pela primeira vez com 16 anos, e encantado ter perseguido a
figura.
Outra atitude muito comentada por pessoas próximas ao Frei era seu
costume de pintar e presentear alunos, amigos, pessoas ligadas a ele, e no período de
construção da Igreja São Judas Tadeu. Idealizada e construída por ele, o artista vendia
seus quadros para angariar fundos para a obra do templo.
Sobre a história que envolve a pintura da Madona negra sabe-se que a obra
foi presenteada à professora Saída Cunha, ex-aluna muito próxima ao Frei. Segundo
Saída Cunha, no ano de 1969 ela havia concluído a construção de sua casa e, encantado
com a ousadia do projeto, Confaloni presenteou-lhe com o quadro de pintura da
Madona, que segundo ele, tinha o mesmo arrojo. Atualmente a obra encontra-se na casa
da artista e sobre o ano em que a obra foi feita, Saída estima que sua datação seja por
volta do ano de 1969, momento em que estava de mudança para casa que idealizara.
Mas o que estaria por trás dessa obra, considerada pelo próprio autor uma
obra feita com espírito de ousadia? Retomo o olhar para pintura da Madona Negra.
Nela vejo claramente a perspectiva espiritual na cosmovisão do frei artista que dá à obra
histórica o conteúdo simbólico inserido nos objetivos da Teologia da Libertação Latino-

127
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Americana. A imagem da madona negra que ampara o filho é uma mulher de aparência
comum, negra, e contém, ainda, fortes feições indígenas.

Figura 1 - Nazareno Confaloni, (S/d). Óleo sobre tela, Madona Negra, (s/d).
Fonte: Acervo Saída Cunha.

No que se refere à expressão da figura da Madona negra com a criança,


Confaloni utilizou o mínimo possível de traços e as linhas apresentam-se definidas com
pouca ou nenhuma gradação. São personagens de composição simples, despojadas nas
formas, com o mínimo ou quase nada de detalhes, o que pode ser considerado uma
característica muito particular do artista. Segundo a professora Saída Cunha “somente
grandes artistas conseguem com tão poucos traços no desenho, transmitir a ideia de
afeto e atenção”. Esse era o caso do dominicano.
Encontramo-nos diante da cena que acontece dentro de um âmbito
circunstancial sagrado, que, em última instância, realça a condição humana e
humanizante da personagem feminina. Cheia de gestos de ternura e de olhos cerrados, a
mãe amorosa ampara o filho nos braços, este último, com a cabeça levemente inclinada
e, em sentido oposto a ela, parece entregar-se com a confiança do cuidado da parte da
mãe. Ao que tudo indica a cena acontece em uma janela; de frente para o expectador e
a criança parece olhar para um único ponto fixo. Pode-se considerar, de fato, que há um
sentimento de apatia da parte da mesma. Quanto à roupa das personagens, estas de
aparência simples como a dos homens do povo na época de Maria e no contexto

128
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

confaloniano. Vale ressaltar o brilho da cor branca das vestes da Madona e da Criança,
detalhes que revelam um pintor esforçado em representar um retrato essencial que, com
poucos traços e linhas e, apenas o destaque para as cores da paleta consegue jogar com a
forma e o desenho simples, destacando a posição do corpo. A forma como os corpos são
exibidos diz muito, pois expressam sentimentos. São detalhes representados na forma
que caracterizam o movimento conhecido como Novecento Italiano.
O principal efeito expressivo de Confaloni esteve na habilidade artística em
provocar uma terna humanidade nas figuras de suas pinturas, cujos gestos são
cuidadosamente trabalhados. Confaloni trouxe para sua cena pictórica sacra uma Maria
humanizada, de mãos calosas, gigantes, que denotam a grandeza de sua humanidade
histórica como a mãe que acolhe o filho com gestos de proteção. É um gesto de doação,
mas aparenta também um gesto de entrega ao filho, este, por sua vez, de olhos
excessivamente abertos e com o corpo virado para o espectador apresenta o caráter
passivo diante da circunstância que o envolve.
A imagem da Madona revela a grandeza histórica da figura de Maria. Além
das referências dos traços de Maria como figura da Igreja futura da Maria Peregrina, há
ainda a concepção de Maria que congrega a comunidade. Como Mulher e como Ser
Divino, Maria exerce, ao mesmo tempo, um ato de entrega e cuidado e de suplício.
Segundo o Dicionário de Mariologia, continua aberto o discurso sobre a tradução em
termos culturais da nova imagem da Virgem Maria que diz o seguinte:

[...] O cap. VIII da Lumen gentium (1964) do Vaticano II, que


apresenta Maria inserida na História da Salvação e modelo na
peregrinação da fé, sob o critério antropológico. Na reflexão
teológica contemporânea, este critério enfatiza o valor da
pessoa humana na realização da história da salvação e diante da
vontade de Deus, bem como faz que o homem não seja
considerado por Deus simples objeto de salvação, mas também
sujeito que, embora mantendo-se dentro dos limites de criatura -
que é - , coopera com ele. Aplicado a Maria, com o apoio dos
textos bíblicos de Lucas, Mateus e João, este critério permitiu
dar maior evidência tanto aos valores pessoais expressos pela
Virgem na sua vida histórica, como à riqueza da sua experiência
cristã, o testemunho da sua fé vivida na obscuridade dos
acontecimentos e das dores, da sua obediência à vontade do
senhor e da sua esperança e caridade, quanto a generosa
cooperação, livre, consciente e responsável, expressa como
serviço prestado à pessoa e à obra de Cristo. Mais do que
privilégios e a singularidade de Maria, elementos que a
mariologia pré-conciliar acentuava, o concílio quis sublinhar o
elemento humano, próprio da sua condição criatural, o qual a

129
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

torna modelo de todas as criaturas e expressão de cooperação


humano no plano de Deus e na obra do Salvador. Este critério
antropológico, aplicado com equilíbrio, permite apresentação
mais real e aceitável da personalidade feminina e religiosa da
serva do Senhor, fá-la sentir-se membro, expressão eminente,
figura e modelo da igreja histórica e imagem perfeita da igreja
escatológica. (FIORES E MEO, 1995, p.300)

Com efeito, Maria torna-se humana nas mãos de Frei Confaloni, a


sacralização do humano se apresenta entre elementos expressivos das formas cristãs
clássicas próprias do Renascimento ressignificados em gestos de figuras humanas
humildes inseridas em um contexto sociocultural latino-americano.
Mas, teriam os gestos da Maria Negra de Confaloni, alguma semelhança
expressiva de emoção com a escultura de Michelangelo, a Pietà Palestrina?

Figura 2 - Michelangelo di Buonarroti, Escultura em Marmore, 253cm. Academia Dell'Accademia di


Firenze.

Esculpida em um bloco de Mármore e conservada atualmente na Galeria


Dell'Academia di Firenze, a Pietà Palestrina compõe um acervo de obras inconclusas
de Michelangelo e é também uma das únicas que não consta documento da época,
portanto, não se pode afirmar a autoria de Michelangelo na obra. Diz também que a

130
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

obra levou esse nome por ter permanecido por um tempo adornando o túmulo do
Cardeal Barberini, na Igreja Santa Rosália, na Palestrina, próximo a Roma.
A primeira crítica sobre a obra surgiu por volta de 1907 no Diário Des
Beaux Arts que supôs que a obra teria sido concluída por volta de 1550. Em 1939 a obra
foi adquirida para o Museu em Firenze onde já comportava a escultura do Davi e outras
inacabadas do artista. No que tange à produção da obra, pode-se perguntar: qual escultor
teria começado a talhar a Pietà Palestrina que, mesmo inconclusa transmitia tanta
comoção? O fato é que, alguns historiadores que examinam a autoria da obra de
Michelangelo, afirmam que o artista recebeu ajuda durante seu processo de feitura.
Outros afirmam que Michelangelo teria começado a obra e outro artista desconhecido
terminado.
A estrutura da modelagem da obra se concentra no torço do tórax e nas
pernas, especificamente no fêmur e nos joelhos do Cristo morto que é amparado por
duas personagens: Maria Madalena e Maria. Tudo converge e exprime a emoção que
domina o artista e imediatamente é visível na forma, cujo conhecimento anatômico
humano se põe a serviço da arte e da ciência da época. Michelangelo exprime com
muita intensidade a forma e o momento, pois, o corpo atlético de Cristo deixa a vida,
dando sinais de luta, mas ao mesmo tempo de serenidade. Sustentado fisicamente e na
dor visivelmente estampada nas faces e nos gestos das duas figuras femininas e com a
cabeça totalmente inclinada para trás, não há presença de vida, Cristo não é mais que
seu peso morto.
Há um longo caminho histórico transcorrido entre a Pietà Palestrina de
Michelangelo e a Madona Negra de Confaloni. Mas quais poderiam ser as conexões
entre essas duas imagens?

131
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Figura 1 - Nazareno Confaloni, (S/d). Óleo sobre Figura 2 - Michelangelo di Buonarroti, Escultura
tela, Madona Negra, (s/d). em Marmore, 253cm. Academia Dell'Accademia
Fonte: Acervo Saída Cunha. di Firenze.

A imagem de Confaloni justaposta à imagem da Escultura Pietà Palestrina


de Michelangelo, traz em si, gestos de dor que precisam ser interpretados. Há uma
repetição de gestos que retomam a ideia do pensamento de Warburg esboçada no século
XIX, aqui no caso como adverte o historiador Carlo Guinzburg "desrespeitando
hierarquias e territórios entre elas"(2014). Se justapostas, a Madona de Confaloni e a
Pietà Palestrina de Michelangelo trazem em si gestos de dor com significados opostos.
A repetição dos gestos de uma deposição de Cristo do seicentto florentino se repete na
Madona Negra no século XX, mas assumindo uma significação política e cultural em
um contexto latino-americano.
Se há semelhança na forma entre os gestos de dor da Madona de Confaloni
e da Escultura Pietà Palestrina de Michelangelo, pode-se admitir que mesmo
apresentando de um modo geral um aspecto que diverge da forma clássica de
representação de Madona com Cristo criança, a Madona de Confaloni pode ser tão sacra
ao apresentar o Cristo Criança repetindo os mesmos gestos de deposição de Cristo da
Escultura Pietà Palestrina de Michelangelo. Enquanto a imagem de Michelangelo ilustra
idealmente a dor de Maria por meio da transfiguração do corpo do Cristo morto, a
Madona Negra de Confaloni é uma mulher que vive a dor do social, da pobreza e da

132
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

exclusão. É uma imagem que traz o tom de denúncia social. Confaloni inseriu temas e
elementos regionais nessa universalidade.
Em seus constantes refúgios e deslocamentos pode se dar a conhecer o
pensamento de Confaloni por meio do Concílio do Vaticano II, desde a sua inspiração
para pensar a vida e a missão da igreja inserida em um contexto sociocultural político e
econômico de modernidade, penetrando nas preocupações históricas do mundo. A
comparação das duas imagens as aproxima nas linguagens inspiradas na repetição das
formas do modelo clássico, tantas vezes considerados por Waburg que via nos rituais
religiosos e na cultura pagã os gestos dos "impulsos elementares" (pathosformeln)
ressurgirem.
Foi na Renascença que os artistas souberam, de forma impressionante,
trabalhar tais gestos ressignificando-os. Em qualquer situação, e, em especial, nos
estudos de teologia da arte, o espectador é capturado para refletir e sentir a cena do
drama humano e divino da mãe que gerou aquele que veio para encarnar a palavra de
Deus e é oferecido ao sacrifício como um cordeiro humano. Seu gesto na iconografia
cristã clássica, não é de desespero, mas daquela que se coloca sempre de pé, assente
diante de sua provação, pois quando foi escolhida, tudo aquilo faria parte do que ela
teria que viver em sua trajetória de vida, sofrimento e redenção. A Pietà nos dá a prova
de que Maria, na arte Renascentista assume forma divinal, por entender que ela viveu
plenamente a mais humana e terrível das situações de dor como um processo
prospectivo, a revelar o plano divino ao mundo.
Neste sentido, cabe indagar: poderíamos interpretar o gesto da criança
sustentada pelos braços da mãe na imagem de Confaloni e o gesto do Cristo morto na
Pietà Palestrina de Michelangelo, como gestos de dor contendo o mesmo sentido e
significado?
Ao que parece, as escolhas e atitudes artísticas de Confaloni que implicaram
na forma da Madona Negra com a criança tem uma significação sacra que assume um
sentido social. Confaloni reafirma nesse quadro o compromisso sociológico latino-
americano em uma reinterpretação dos gestos da Pietà Palestrina de Michelangelo.
José PX Silveira, fez uma interessante análise sobre as Madonas
Confalonianas em seu relato biográfico sobre o artista. Silveira ressalta o apreço que o
Frei tinha por esse tema e o quanto gostava de pintá-lo. O autor chega a mencionar que,
"era tanta a vida que delas irradia" que quando concluía suas Madonas, muitas vezes, o

133
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Frei ajoelhava-se e rezava diante delas. Perguntado certa vez por que fazia as madonas
dessa forma, o frei respondeu:

[...] meu caro não tente somente enxergar, tente sentir também.
Nossos olhos só podem ver realmente quando também sentimos. Está
aqui o fundamental, para os olhos que sabem ver e sentir. Porque da
mesma maneira que eu não posso te fazer ver Deus, não posso
também te fazer ver este quadro." (SILVEIRA, 1991, p.84).

Entre o sacro e o profano, a estética e a pregação Confaloni assume um


compromisso que tinha os artistas modernos de permitir a invasão da conjuntura
histórica na tela. A ênfase dada às Madonas negras demonstra a sensibilidade especial
do artista pelas mulheres, sobretudo as negras, pobres e desprezadas. Se mulheres
comuns tornaram-se Madonas nas mãos do Frei artista moderno, pode se afirmar com
Candiotto que, "[...]em um abordagem teológica inspirada na interpretação da
Magnificat (Lucas 1,46-53), feita pela própria teologia da libertação, apresenta um
retrato de Maria que a vincula diretamente a maioria das mulheres do continente (2011,
p.205). Ainda nessa mesma discussão e tomando como referência a abordagem de
teólogos da libertação, Cadiotto afirma que: "[...] Maria é vista pelos mesmos a partir da
condição central de mãe estendida para além da interpretação da teologia tradicional.
Nas Comunidades Eclesiais de Base, a mãe Maria designa uma mulher que se identifica
com todas as lutas do cotidiano da mulher."(2011, p.205). Nesse sentido, a vida humana
em sua concretude (experiência e subjetividade) tornara-se fonte de interpretação da
palavra de Deus que assume um ponto de vista eminentemente hermenêutico.
A imagem da Pietà Palestrina de Michelangelo e a imagem da Madona
negra de Confaloni articulam uma mensagem entre si, na repetição dos gestos
apresentados na forma. Apesar de apresentarem uma narrativa iconográfica Sacra, o
espírito da época Renascimental nuançado nos gestos de dor da Madona Negra de
Confaloni traz um significado invertido do pretendido por Michelangelo em sua Pietà
Palestrina, pois responde a inquietações e situações históricas de tempos e contextos
diferentes. Como homem de dentro da igreja e inserido no contexto latino-americano,
Confaloni captou por meio de novas experiências culturais, uma realidade diferente da
qual estava imerso Michelangelo. O que não se pode esquecer é que ele teve uma
formação seguramente italiana, europeia, clássica e fiorentina e provavelmente viu
todas as correntes artísticas e movimentos ligados as artes, além de ter pintado em
conformidade com seu tempo. São realidades que se confrontam e, desse ponto de vista,

134
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

concluo que Confaloni é um artista que esforça em fazer a arte de seu tempo, mas está
marcado pela tradição pictórica italiana que o antecede, aqui expressa na arte do grande
mestre do Renascimento Michelangelo di Buonarroti.

REFERÊNCIAS BBIBLIOGRÁFICAS:

COLI, Jorge. O Corpo da liberdade - Reflexões sobre a Pintura do século XIX. São
Paulo: Ed. CosacNaify, 2010.

FIORES, Stefano e MEO, Salvatore. Dicionário de Mariologia. Tradutores: [Álvaro A.


Cunha, Honório Dalbosco, Isabel F. L. Ferreira]. São Paulo: Ed. Paulus, 1995.

FRANCO, Siron. Confaloni por Siron Franco. Revista Goiana de Artes, Goiânia-Go,
V.3, nº1, p.81-86, Jan/Jun. 1982.

GUINZBURG, Carlo. Medo, Reverência, Terror - Quatro Ensaios da Iconografia


Política. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2014.

JORGE, Miguel. Páginas Literárias. Entrevista Concedida ao Crítico de arte Miguel


Jorge. Jornal O Popular. 25 de Novembro de 1973.

SILVEIRA, PX. Conhecer Confaloni. Goiânia: Ed. PUC, 1991.

135
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

CASAS MÍSTICAS: A ORIGEM DOS JOGOS DE TABULEIRO


José Loures95

Quando pensamos em jogos, a primeira coisa que vem à mente é a indústria


bilionária dos games digitais, essa que se tornou a mídia de entretenimento mais
lucrativa da história, até mesmo mais que o cinema, considerado a sétima arte.
Entretanto, os jogos são uma atividade milenar e presentes no cotidiano:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de


certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um
fim em si mesmo, acompanhado de um de um sentimento de tensão e
de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.
(HUIZINGA, 2012, p.33)

Acabamos por esquecer dos clássicos jogos de tabuleiro, aqueles jogados na


sala de casa, com a família e amigos, ou mesmo o “jogo da velha”, usado como
passatempo durante aquela aula chata na escola. A indústria de jogos de tabuleiro
continua firme no mercado, conciliando jogos tradicionais e experimentais, e se
depender da criatividade dos jogadores, será um passatempo que persistirá por muitos
anos. Práticas como o crowdfunding96 estimulam o desenvolvimento de novos jogos,
assim como a tecnologia de impressão 3D. Segue uma notícia sobre a aplicação de
novas tecnologias nos jogos de tabuleiro:

Novas ferramentas alimentam a criação de jogos de tabuleiro, da ideia


original à produção final. Sites de "crowdfunding", nos quais usuários
podem prometer dinheiro para financiar projetos, fornecem o capital
básico. Máquinas como impressoras 3D podem criar rapidamente
peças, dados e outros protótipos de componentes. E a Amazon, a
gigante do varejo eletrônico, se encarrega de vendas e distribuição.
Como resultado, as vendas de jogos de tabuleiro nas lojas de
brinquedos e jogos dos EUA cresceram de 15% a 20% ao ano nos
últimos três anos, de acordo com a "ICv2", revista especializada do
setor. A Amazon informa que as vendas de jogos de tabuleiro
cresceram em dois dígitos entre 2012 e 2013.

95
Mestrando e bolsista do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual – UFG
jloures-arte@hotmail.com
96
O Crowdfunding (ou financiamento pela multidão, em tradução literal) é uma modalidade de
investimento onde várias pessoas podem investir pequenas quantias de dinheiro no seu negócio,
geralmente via internet, a fim de dar vida à sua idéia. É o chamado financiamento colaborativo, algo que
está revolucionando o lançamento de Startups mundo afora. Fonte:
http://www.sobreadministracao.com/crowdfunding-o-que-e-e-como-funciona/

136
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

No Kickstarter, o maior site de "crowdfunding", o montante arrecadado no


ano passado para jogos de tabuleiro excedeu o arrecadado para videogames -
-US$ 52,1 milhões ante US$ 45,3 milhões. (WINGFIELD, 2014)

É uma situação curiosa, o fato de uma mídia analógica, como o jogo de


tabuleiro, ter recuperado a atenção do público graças ao digital. Para adentrar de forma
definitiva nos jogos de tabuleiro na contemporaneidade, é necessário visitar as suas
origens históricas e míticas, pois o jogo foi e ainda é um elemento cotidiano da história
humana.

1.1 Origens & Misticismo

Um dos ancestrais dos jogos de tabuleiro contemporâneos é o “jogo real de


Ur” (fig.2), estima-se que era jogado por volta de 2.500 a.C., originário da cidade
Suméria de Ur, atualmente Iraque.

Figura 1 – Peças e tabuleiro do “jogo real de Ur”. Fonte:


http://www.bbc.co.uk/schools/primaryhistory/worldhistory/royal_game_of_ur/

O jogo foi descoberto entre 1922 e 1934, durante as escavações lideradas


pelo arqueólogo inglês Sir Leonard Woolley. Em meio a tumbas, Leonard encontrou
joias, armas, e também vários tabuleiros, esses trabalhados em madeira e adornados
com madrepérola e lápis-lazúli. Tal cuidado e esmero na construção do tabuleiro
mostrava a importância do “jogo real de Ur”:

137
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Os jogos eram uma companhia indispensável após a morte, já que se


acreditava que fossem parte integrante do divertimento no outro
mundo. Diante do tamanho da eternidade, era bom que os jogos
fossem interessantes; de outro modo, o resultado seria um tédio
infinito. (MONTE NETO, 2014)

As regras do “jogo Real de Ur” perderam-se, mas os objetos usados no


tabuleiro nos dizem muito sobre a sua jogabilidade. Cada tabuleiro consistia em sete
peças arredondadas para cada jogador, seis dados tetraédricos com marcações em dois
vértices e 21 bolas brancas. Existem várias interpretações de como o jogo funcionava,
sendo esse similar aos jogos de percurso, que consiste em chegar ao fim de um
caminho, atravessando as casas do tabuleiro de acordo com o número obtido no
lançamento de dados.
Os antigos egípcios também se divertiam com os jogos de tabuleiro, um
deles era o Senat, ou Senet, também conhecido como “Jogo de passagem da alma para
outro mundo” (fig.3), fragmentos e hieróglifos encontrados em escavações, indicam que
o “jogo de Senat” teria por volta de 5.500 anos.

Figura 2 - Jogo de Senat. Fonte: http://pipocaenanquim.com.br/games-2/uma-breve-historia-dos-jogos-


de-tabuleiro-parte-1

138
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Na tumba do faraó Tutankâmon (1333 a 1323 a.C.) foram encontrados


quatro tabuleiros, um deles constituído de ébano e marfim, com peças em ouro. O “jogo
de Senat” tinha profunda ligação com a mitologia egípcia, sendo citado no “Livro dos
Mortos”97 e outros textos religiosos. Quando havia apenas um jogador, entendia-se que
ele enfrentava o seu próprio destino, representado pela imagem do deus dos mortos,
Osíris. Se vitorioso, o jogador receberia a benção da vida eterna. Vencer o “jogo de
Senat” significa triunfar sobre o mal e renascer com sucesso na vida após a morte.
O tabuleiro era formado por três colunas, possuindo cada 10 a 11 casas,
chamadas pelos egípcios de peru. O objetivo do jogo era mover as peças através das
casas, cada uma com suas respectivas marcações e significados. De acordo com a
egiptóloga brasileira Margaret Marchiori Bakos:

Se um jogador chegasse a uma casa cujo símbolo significava beleza


ou poder, era premiado. Não era desejado cair com as peças a quatro
quadrados do final, pois aterrissar na "casa das águas", ou na "casa do
azar", significava se "afogar" e talvez voltar para o começo. O
quadrado anterior era chamado de "bom" ou de "casa boa". Os
quadrados subsequentes tinham os numerais três e dois
respectivamente, referindo-se ao número de casas até o final.
(BAKOS, 2014, p.168)

Figura 3 - Printscreen da página: http://pt.boardgamearena.com/#!gamepanel?game=senet

O “jogo de Senat” assim como o “jogo real de Ur”, sofre com a falta de
informações claras sobre a sua mecânica e regras usadas no antigo Egito. Atualmente
existem diversos modos de jogo, inclusive, versões digitais, em que partidas são

97
O “Livro dos Mortos” faz parte da categoria de textos pertencente à Literatura Funerária. Estes textos,
cujo uso é conhecido apenas entre os egípcios antigos, eram de uso exclusivo do morto e serviam para
auxiliá-lo na sua passagem para o outro mundo, com o que o mesmo podia tornar-se um espírito
glorificado ao final de sua jornada. As fórmulas e encantamentos necessários para ultrapassar as
dificuldades dessa viagem encontravam-se inscritos nas paredes das câmaras funerárias, nos caixões, nas
bandagens e nos papiros colocados junto à múmia. Assim o morto teria fácil acesso a estes e poderia
utilizá-los no momento adequado. (BRANCAGLION, 2004, p.48-49 apud BIELESCH, 2010, p.2005).

139
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

disputadas online (fig.4), mas ambas as plataformas são interpretações de elementos


sobreviventes do “jogo de Senat”. Outro exemplo de jogo de tabuleiro milenar, é a
Mancala (fig.5), não especificamente um jogo em si, mas um gênero, conhecido como
semear e colher. Originário da África do Sul, estima-se que teria surgido por volta de
2.000 a.C, outros pesquisadores supõem uma origem ainda mais antiga, cerca de 7.000
a.C.

Figura 4 - Tabuleiro de Mancala. Fonte:


https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brooklyn_Museum_22.213_Mancala_Game_Board.jpg

As peças são sementes ou pedras e o tabuleiro pode ser qualquer suporte


com buracos côncavos. Até mesmo buracos no chão tornam-se suporte para uma
partida, em que a posição social e econômica determina o material das peças:

Podem ser muito simples, escavados na terra ou areia; podem ser de


madeira toscamente esculpida; mas podem ser verdadeiros trabalhos
de escultura e ourivesaria. Alguns potentados encomendavam os
tabuleiros aos melhores artesões da região. A madeira mais tara e
perfumada era escolhida e trabalhada durante vários meses até que o
tabuleiro ficasse digno dos aristocratas. Os marajás da Índia,
chegavam a jogar os Mancalas utilizando rubis e safiras em lugar de
sementes. (OS MELHORES JOGOS DO MUNDO, 1978, p.124)

Na Mancala não existe o fator sorte, toda a sua jogabilidade depende


exclusivamente do raciocínio dos jogadores. No início de uma partida, cada jogador
recebe um determinado número de peças, em que são “semeadas”, tanto nas suas
próprias casas, quanto nas adversárias. Os jogadores são obrigados a “colher” as peças,
o jogo alterna entre o sentido horário, e anti-horário, e termina quando houver poucas
sementes no tabuleiro, ou quando resta apenas uma semente de cada lado. O vencedor

140
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

será aquele que obtiver o maior número de sementes. Essa é uma forma de se jogar a
Mancala, já que existem centenas de variações do jogo, atualmente voltadas para o
passatempo, outras como ritual. Na Costa do Marfim, o povo Alladians ainda relaciona
a Mancala aos rituais místicos:

O hábito de jogar awelê, jogo da família Mancala, é restrito apenas à


luz do sol, ou seja, só pode ser jogado durante o dia. À noite, os
Alladians deixam os tabuleiros nas portas das suas casas para os
deuses poderem jogar. E ninguém se atreve a tocar nos tabuleiros,
temendo o castigo divino. (OS MELHORES JOGOS DO MUNDO,
1978, p.125)

No Suriname, região norte da América do Sul, uma das variações da


Mancala é conhecida como Awari. Jogado as vésperas de um enterro, como meio de
distrair o morto, após o enterro, é comum se desfazer do tabuleiro. O Oware, como é
conhecido em Gana, se encontra disponível para partidas online, principalmente via
aplicativos (fig.6) para dispositivos móveis, como tablets e celulares.

Figura 5 - Printscreen da loja de aplicativos “Google Play”. Fonte:


https://play.google.com/store/apps/details?id=com.boes.oware

A Mancala também encontrou o seu espaço no ensino, devido ao seu caráter


lógico e divertido. Rinaldo Pereira defendeu a utilização dos jogos de Mancala como
recurso metodológico de ensino em matemática, junto a bagagem cultural vinda desse
jogo. Segue um trecho da dissertação de mestrado de Rinaldo Pereira, em que o autor
narra o começo de sua pesquisa:

Os alunos aprenderam a praticar o jogo em tabuleiros improvisados


em caixa de ovos e sementes de feijão como peças. Gostaram da
atividade, e a interação com a cultura africana nas aulas de matemática
no primeiro ano do jogo na escola se deu apenas por intermédio de
uma árvore africana chamada baobá, pois é com os grãos dessa árvore
que se pratica o jogo em muitas partes da África. No entanto, fui
percebendo com a prática do jogo seu potencial pedagógico. No
campo da motivação, o jogo teve papel fundamental, as minhas aulas

141
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

de matemática, até então chatas, passaram a ser mais interessantes e


consequentemente melhorou consideravelmente o meu
relacionamento com os alunos. No campo da matemática, os
movimentos do jogo apresentavam uma matemática ali implícita que
era sistematizada pela escola. No campo do ensino de história e
cultura afro-brasileira, os movimentos do jogo apresentavam também
aspectos culturais e filosóficos da cultura africana, até então por mim
pouco conhecido. Porém, senti-me motivado para investigar melhor o
potencial pedagógico do jogo, tendo em vista a possibilidade de
trabalhar de fato a matemática por intermédio do jogo e ainda interagir
com o projeto institucional na implantação da Lei 10.639/03 nesse
campo do conhecimento. (PEREIRA, 2011, p.21)

1.2 Matriz Mítica

A origem de muitos jogos de tabuleiro possui também relação com os


padrões usados na construção de antigos templos e cidades. O estudioso Nigel Pennick
denomina esses sistemas de layout. No hinduísmo esse layout tem como base o
Paramasayiaka, um quadrado formado por 81 quadrados menores. Cada área do
quadrado corresponde a uma divindade específica, com a função de proteger lugares e
direções. Tamanha a importância de Paramasayiaka, que a posição de imagens dentro
de templos, aldeias e casas são determinadas pelo posicionamento dos deuses presentes
nesse layout. No centro do quadrado maior encontra-se o Quadrado de Brahma, o deus
criador que domina nove quadrados menores. De acordo Pennick (1992, p. 150): “Esse
quadrado formado de nove outros quadrados menores é considerado a quintessência da
existência, o núcleo centro através do qual todo espaço e tempo podem ser alcançados”.
Coloca-se a grade Paramasayika sobre Purusha (fig.7), mítico gigante
primordial, a área correspondente à área do umbigo, local conhecido nas artes marciais
japonesas como hara, centro em que flui a energia corporal. Nas cidades hindus que
foram construídas tendo como base esse layout, o Quadrado de Brahma situa-se no
complexo central do templo. Pennick aponta a relação entre a Paramasayika e outras
grades ao redor do mundo:

Toda grade de 81 quadrados é idêntica ao tabuleiro do jogo de Tablut,


originário do norte da Europa, assim como do jogo de Saturankam, de
Sri Lanka. Em ambos os jogos o lugar de maior importância é o
quadrado central. (PENNICK, 1992, p. 150)

142
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Figura 6 – Grade Paramasayika sobre Purusha. Fonte: http://londonmandir.baps.org/the-mandir/mandir-


architecture-history/

As feiras europeias também seguiam essa formatação, onde o ponto central


recebia destaque, era lá que a cerimônia de fundação acontecia. A Vashtuvidya, técnica
indiana de harmonização com a Terra, mantem os ritos dessa cerimônia:

Um buraco aberto no centro do local representa o umbigo de Purusha


[...] Seus membros são simbolizados pelas quatro linhas que partem
do umbigo para os quatro pontos cardeais. Quando o buraco atinge o
tamanho correto, no lugar certo e no momento apropriado, realiza-se a
cerimônia de fundação. (PENNICK, 1992, p.151)

1.3 O Poder do 9

143
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O conhecido “jogo da velha” é herdeiro da grade de nove quadrados. O


layout de nove quadrados foi utilizado tanto na Europa quanto na Índia, nas divisões de
terra. Mas, esse padrão possui uma origem muito mais antiga.
Na China feudal, os nove quadrados representavam oito famílias de
camponeses que cultivavam a terra em volta de um quadrado central, que significava o
poço comunitário. Essa divisão era chamada de “campo do poço”, e adequava-se aos
espaços reais de cada área. O padrão chinês de nove aposentos também segue o formato
de nove quadrados, seu nome era Ming-Tang, Salão da Luz ou Salão da Lua, que
simbolizava os ciclos do ano. A grade de nove quadrados é encontrada no centro dos
diagramas sagrados do Tibete. Na Escócia o padrão de nove quadrados era usado no
Festival de Beltane. Os povos nórdicos também faziam uso desse layout, como aponta
Pennick:

Nas terras nórdicas, o xamanismo fazia imenso uso da grade de nove


quadrados e de seus derivados. A [...] plataforma da vidente, sobre a
qual se sentava a xamã feminina ou vólva para conseguir as visões
proféticas, era considerada o centro do mundo. Era quadrada, feita de
madeira e dividida em nove quadrados menores, e no seu centro ficava
a vidente voltada para o Norte. (PENNICK, 1992, p.152)

Johan Huizinga nos traz outro exemplo dos povos germânicos, em que a
origem dos jogos de tabuleiro está ligada à rica mitologia nórdica:

Também a mitologia germânica faz referência a um jogo jogado pelos


deuses em seu tabuleiro: quando o mundo foi ordenado, os deuses
reuniram-se para jogar os dados, e quando ele renascer de novo após
sua destruição, os Ases rejuvenescidos voltarão a encontrar os
tabuleiros de jogo em ouro que originalmente possuíam. (HUIZINGA,
2012, p.65)

144
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

1.4 Grade Divina

A tradicional grade quadriculada encontra suas raízes nos oráculos e


videntes da antiguidade. Certos humanos são abençoados pelos deuses com o poder
divinatório, como uma ponte entre o mundano e divino. Os xamãs por exemplo, são
irmãos espirituais dos oráculos, pois utilizam-se os mesmos caminhos para se alcançar
uma experiência visionária. De acordo Pennick (1992, p.23): “todo tipo de adivinhação
tem como base a crença implícita de que poderes transcendentais controlam tudo o que
é importante, e que nada acontece por acaso”.
O símbolo que representava esses adivinhos divinos, como denomina
Pennick, era a grade quadriculada, que pode ser encontrada em representações de deuses
e santos. Os deuses antigos da Mesopotâmia, Ásia central e Europa descendem do
xamanismo primitivo, ambos associados à grade, demonstrando seu poder ao persistir
ao tempo. Uma escultura do deus celta Cernunnos, situada no santuário de
Roqueperteuse, na França, possui a grade. Vários santos representados no Livro de
Durrow98 (fig.8) apresentam a mesma grade quadriculada.

Figura 7 – São Mateus no Livro de Darrow. Fonte: https://www.studyblue.com/notes/note/n/econ-1010f-


study-guide-2011-12-ck/deck/9732274

1.5 Dados

98
“O Livro de Durrow” de acordo Eliézer Mikosz: Os monges irlandeses do século 7, inspirados nos
motivos celtas e também no movimento do oceano, criaram páginas ornamentadas com motivos em
espirais no livro de Durrow. A finalidade dessas páginas ornamentais era de favorecer a meditação e a
preparação para o evangelho que se seguiria. (PURCE, 2006, p.85 apud MIKOSZ, 2009, p.194).

145
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Outro elemento presente em vários jogos de tabuleiro é o dado, uma forma


de desafiar o destino e a sorte. O homem já utilizou vários objetos, que lançados
revelariam algum presságio, como conchas, ossos e galhos. Qualquer objeto servia
como oráculo.

Segundo uma lenda grega, os dados teriam sido inventados pelo herói
Palamede, para distrair suas tropas durante o sítio de Tróia. Também
na Odisseia de Homero – uma das maiores obras literárias da Grécia
Antiga – há uma passagem em que os pretendentes ao casamento com
a rainha Penélope jogam dados sobre peles de boi, em frente ao
palácio real de Ítaca. (OS MELHORES JOGOS DO MUNDO, 1978,
p.5)

Nota-se que o interesse em lançar dados é milenar, porém a sua origem é


incerta. Os egípcios, hindus, astecas, esquimós, e povos de diversos pontos do planeta
que jogavam dados, determinavam suas devidas marcações e formatos. No Oriente,
acredita-se que os dados surgiram como objeto usado em rituais mágicos e práticas
divinatórias. O Rig Veda99, faz referência aos malefícios do vício em jogar-se dados.
Outra vez surge a figura do arqueólogo inglês Sir Leonard Woolley, pois os
dados mais antigos já encontrados, foram descobertos por ele numa escavação em 1920,
nas tumbas reais de Ur. Com formato piramidal, eram utilizados no jogo Real de Ur,
este citado anteriormente. Em Akhor, na tumba do faraó Tutankâmon, também foram
encontrados dados em formato de hastes, com quatro faces marcadas, que simbolizam
os números de um à quatro, provavelmente utilizados no jogo de Senat. Na Roma
antiga, existia um dado bastante popular entre os soldados, com 14 faces e feito de
chumbo.
Os dados contemporâneos mais utilizados são feitos de plástico, em formato
cúbico, com seis faces, numeradas de um à seis. Tal dado é padronizado, e a soma dos
números dos lados opostos é sempre sete. O dado pode ser jogado individualmente, mas
quando unido ao tabuleiro, acaba por gerar inúmeras variáveis, inserindo no jogo uma
dose de aleatoriedade.

1.6 Jogos Eternos

99
Os Vedas (que em sânscrito significa “conhecimento”) são os mais antigos escritos da Índia, básicos
para o Brahmanismo e posteriormente, séculos depois, para o Hinduísmo. Foi em torno dos Vedas que se
formou a primitiva literatura religiosa e filosófica da Índia. (LOPES, 2012, p.21-22)

146
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Independentemente do continente, ou período histórico, os elementos que


compõem o jogo de tabuleiro estão ali presentes, como fragmentos de culturas já
esquecidas, ritos já abandonados, e agora transformados em mero passatempo. Como
bem conclui Johan Huizinga (2012, p.177): “Na história, na arte e na literatura, tudo
aquilo que vemos sob a forma de um belo e nobre jogo começou por ser um jogo
sagrado”.
Os jogos de tabuleiro da antiguidade foram reinterpretados, reimaginados, e
principalmente eternizados. Vários deles foram adotados pelo digital, com versões
online, que podem ser jogadas entre pessoas dos mais variados locais e culturas.
Concluo aqui esse brevíssimo panorama da história dos jogos de tabuleiro
na antiguidade. O objetivo foi demonstrar as origens divinas e mundanas do jogo de
tabuleiro, e assim entender que os jogos antigos não eram apenas vistos como diversão,
mas como uma peça cultural, que avançou as casas da história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRIL, Editora. Os melhores jogos do mundo. São Paulo: Abril, 1978.

BAKOS, Margaret. O lazer no Egito antigo, em Fatos e mitos no antigo Egito, Margaret
Bakos, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.

BIELESCH, Simone. Em busca de auxílio para o renascimento: estátuas funerárias de


osíris e ptah-sokar-osíris. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.

HUINZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2008.

LANDIM, Wikerson. O tamanho da indústria dos vídeo games [infográfico].


Disponível em: <http://www.tecmundo.com.br/infografico/9708-o-tamanho-da-
industria-dos-video-games-infografico-.htm>. Acesso em 09 de dez. 2014.

147
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

LOPES, Ricardo. A contemplação estética como ideal do nirvana búdico. Dissertação


apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista. São Paulo: UNESP, 2012.

MIKOSZ, José. A Arte Visionária e a Ayahuasca: Representações visuais de espirais e


vórtices inspiradas nos estados não ordinários de consciência (ENOC). Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 2009.

MONTE NETO, Luiz. O Jogo Real de Ur. Disponível em:


<http://super.abril.com.br/cotidiano/jogo-real-ur-439685.shtml>. Acesso em 22 de dez.
2014.

PENNICK, Nigel. Jogos dos Deuses: A origem dos jogos de tabuleiro segundo a magia
e a arte divinatória. São Paulo: Editora Mercuryo, 1992.

PEREIRA, Rinaldo. O jogo africano Mancala e o ensino de Matemática em face da Lei


10.639/03. Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza – CE, 2011.

WINGFIELD, Nick. Impressão 3D e financiamento coletivo renovam jogos de


tabuleiro. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/05/1460380-
impressao-3d-e-financiamento-coletivo-renovam-jogos-de-tabuleiro.shtml>. Acesso em 09 de
dez. 2014.

148
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A MULHER SEM ROSTO: AUSÊNCIAS NO DIREITO E A


IDENTIDADE NEGADA EM A HORA DA ESTRELA

Maria Clara Capel de Ataídes100

Figura 8 Pablo Picasso Tête d'une Femme Lisant (1906)

Que cada um a reconheça em si mesmo porque


todos nós somos um e quem não tem pobreza de
dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe
faltar coisa mais preciosa que ouro.
A Hora da Estrela

Ao atentar-nos à epígrafe acima, verificamos o reconhecimento da literatura


não só na realidade do que somos, mas no próprio Direito. O autor pede para que nos
reconheçamos na personagem, para que entendamos completamente sua situação e sua
posição perante a sociedade e ela mesma. Essa relação da literatura com o Direito vem
romper com a ideia e tradição do positivismo jurídico. A partir desse paradigma,
enxergamos uma nova maneira de tratar o Direito e a própria realidade social, já que os
dois campos estão fortemente relacionados. Estudos que correlacionam direito e
literatura pressupõem uma visão ampla da questão, uma perspectiva em que não está

100
Maria Clara Capel é co-autora do livro Direito e Arte (Ed. PUC-GO/2012). É mestranda no
programa de pós-graduação de Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás.

149
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

fechada na pura análise da lei e dos procedimentos jurídicos. A literatura aparece para
que o Direito seja visto de maneira diferenciada, para que o jurista compreenda e esteja
a par do que está ao seu redor, conferindo-lhe aptidão para, dessa maneira, interpretar a
realidade.
Foi nesse sentido que François Ost se manifestou ao declarar que: “A obra
de arte, como a narrativa de ficção, testemunha, ao contrário, que o próprio real não é,
senão uma modalidade do possível.” (OST, 2009, p. 32). A arte, tal como a narrativa
ficcional, nos mostra, portanto, uma variedade imensurável de realidades que estão ao
nosso redor. Realidades perfeitamente possíveis e passíveis de análise, discussão e
tratamento jurídico. A literatura abre os olhos e amplia os horizontes daquele que estuda
o Direito e deseja se aprofundar em questões de difícil resposta, já que abrangem não só
o Direito em si, mas estudos como os da sociologia, da filosofia, da antropologia e da
história.
A relação da literatura com o Direito no Brasil se torna mais clara quando
percebemos o vasto número de escritores brasileiros que estudaram direito, dentre eles:
Oswald de Andrade, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos, Lygia
Fagundes Telles e Clarice Lispector. A lei, por si só, não nos leva a entender as questões
essenciais geradas pelo próprio Direito e a interpretação subjetivada pelo tempo e pela
cultura. Para isso, é necessário que se passe pela sensibilidade dos estudos literários.
Os estudos do Direito e da literatura ramificaram-se em diversos âmbitos.
Um deles é o da natureza ontológico-literária do Direito, da literatura no próprio
Direito. Essa ramificação consiste no estudo dos textos jurídicos como literatura, o
estudo da literatura intrínseca às doutrinas, peças jurídicas e petições. O Direito se
manifesta a partir da técnica discursiva, o que nos leva ao encontro dessa percepção
literária dentro da própria lei. Um de seus fundadores foi Benjamin Nathan Cardozo
(1870), nascido nos Estados Unidos e juiz da Suprema Corte, em Washington. Cardozo
fugiu do papel tradicionalmente definido por Montesquieu como “a boca da lei”. Suas
decisões judiciais eram compostas de persuasão, retórica, estilo e até uma vertente
literária que indicam a vertente educativa e hermeneuta de seus textos.
Por outro lado, o que se tem em vista no presente artigo é o estudo que se
fez do Direito na literatura, pesquisa em que se buscam aspectos jurídicos dentro de
narrativas ficcionais. Esses estudos foram iniciados por John Henry Wigmore (1863),
nascido do estado da Califórnia. Um de seus livros publicados, A List of One Hundred

150
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Legal Judgments, propõe a leitura de cem romances jurídicos. Wigmore estabeleceu


uma divisão para os romances que teriam fundo jurídico:
a) Romances que têm uma cena de julgamento, incluindo-se uma bem
engendrada passagem de interrogatório;
b) Romances que descrevem atividades profissionais de advogados, juízes
ou promotores;
c) Romances que descrevem métodos referentes ao processamento e à
punição de crimes;
d) Romances nos quais o enredo seria marcado por algum assunto jurídico,
afetando direitos e condutas de personagens.
É na quarta categoria que o presente estudo se enquadra, na investigação do
romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (1920). O artigo tem como foco sua
personagem principal, Macabéa, e os direitos que, a partir da narrativa, percebemos
faltar à personagem. Da leitura inicial do romance sob a perspectiva jurídica, tornam-se
claras as questões do direito à identidade cultural e a necessidade de contribuir para a
construção de discussões que possam nortear as políticas públicas e a garantia de
direitos culturais fundamentais.
Clarice Lispector nasceu no dia 10 de dezembro, em Tchetchelnik, na
Ucrânia. Em 1926, mudou-se para o Brasil, instalando-se em Recife, Pernambuco. Seu
primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, foi publicado em 1944 e foi vencedor
do prêmio Graça Aranha. A partir daí, Lispector escreveu diversos romances e viveu em
várias cidades. A Hora da Estrela foi publicado em 1977 no mesmo ano em que a
escritora viria a falecer, no dia 9 de dezembro.
A Hora da Estrela é o último romance publicado em vida por Clarice. A
história é narrada por Rodrigo S.M., escritor que conta a história de uma moça que diz
ter visto na rua. O narrador diz ter captado sua essência em seu rosto, ao vê-la, e por
isso conta sua história. A moça não tem “direito ao grito” e, por isso, Rodrigo exerce
esse direito por ela, ao relatar sobre sua vida. Seu nome é Macabéa, e veio do Alagoas
para o Rio de Janeiro. É virgem, tem dezenove anos, seus pais morreram quando tinha
dois anos e foi criada pela tia, que também morreu quando Macabéa já era mais velha.
O nome Macabéa vem de Macabeus, povo da antiguidade judaica que
resiste à proibição do culto judeu iniciada por Antíoco Epifâneo, no Templo de
Jerusalém. Como os macabeus que lhe inspiram o nome, Macabéa resiste à realidade,
vivendo uma vida interior e permanecendo quase totalmente desvinculada do mundo

151
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

exterior e do que está ao seu redor. Por isso, a protagonista existe no mundo sem se
indagar, sem pensar ou perguntar-se sobre sua própria vida, sobre sua própria felicidade.
A personagem apenas existe. Sua história também se compara à história judaica, na
medida em que Macabéa é nordestina, povo que migrou para o sudeste como os judeus
migraram de sua terra. Uma das ausências perceptíveis na personagem é sua falta de
identidade, característica tão buscada pelos judeus espalhados pelo mundo, que após a
migração buscam a união e o reconhecimento de seu povo assim como de seu território.
Macabéa é uma mulher sem rosto.
A própria Clarice era de origem judaica e a questão da origem e do
pertencimento faz parte não só de A Hora da Estrela, como de toda sua obra. Carlos
Mendes de Souza (2000) relata sobre a questão da origem nas obras de Clarice: “é tão
obsessiva que em torno dela pode dizer-se que se enreda toda a prosa da autora".
Benjamin Moser (2009), autor de uma das biografias da autora, começa um de seus
parágrafos com a frase Fun vonen is a yid?, pergunta que a irmã de Clarice fizera a ela,
e que indaga sobre a origem do outro. Não obtivemos uma resposta de Clarice à
pergunta feita pela irmã, mas sim toda sua obra, que trata profundamente da questão.
Macabéa tem saudades de um futuro que nunca poderia ter, tem nostalgia
desse futuro quando vê os navios no cais. Para ela, porém, olhar para o relógio causa
espanto. Isso porque a personagem não se apropria do tempo, não lhe dá sentido. É a
apropriação do tempo que gera sentido às coisas, e Macabéa vive mecanicamente a
eternidade do tempo que a carrega sem que ela perceba. Vive um eterno presente sem
significado, um existir mecânico e sem possibilidades de contestação. As únicas pessoas
que eventualmente a conectam com o mundo são Olímpico, seu namorado, Glória,
estenógrafa que trabalha com ela e seu chefe, Seu Raimundo.
Por mais que essas pessoas a conectem com a vida ao seu redor, a
personagem não se adapta à lógica da cidade do Rio de Janeiro, cidade grande, dotada
de competitividade e de malícia. Também não entende a ambição de Olímpico em
querer ser conhecido, em preferir Glória, loira oxigenada e de quadris de parideira, a
ela. Outra questão que não pode deixar de ser discutida dentro dessa esfera é a questão
da migração nordestina, já mencionada acima. Para isso, temos como referência obra
clássica de João Batista de Andrade, O Homem que Virou Suco, filme de 1891.
Enquanto em A Hora da Estrela nos deparamos com sentimentos e uma
perspectiva interior da personagem, O Homem que Virou Suco traz uma perspectiva
externa do que rodeia Deraldo José da Silva, homem que vem da Paraíba para São Paulo

152
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

e encontra imensas dificuldades em se manter ali. Deraldo procura por emprego


diversas vezes durante o filme, encontra subempregos como carregador de sacos e
mordomo, e é demitido mais de uma vez por não se adaptar à lógica industrial e
capitalista, tal como Macabéa. Tenta vender poesia na rua, mas a polícia não o deixa.
Constatamos a exploração do trabalhador e as péssimas condições de trabalho não só no
filme, como em A Hora da Estrela, já que Macabéa trabalha por menos de um salário
mínimo e é maltratada por seu chefe. Nos dois casos, é possível um questionamento
sobre os direitos assegurados a grupos étnicos que migram por melhores condições de
sobrevivência e sua negação no contato com outras lógicas identitárias.
O protagonista do filme escuta frase que traduz o preconceito contra o
imigrante nordestino: “Isso aqui é São Paulo, isso aqui não é o Nordeste!”. Deraldo,
contudo, diferente de Macabéa, tem consciência de quem é e não aceita as imposições
que a cidade grande lhe coloca, essa consciência é a mesma que causa sua própria
marginalização. Durante o emprego, o paraibano assiste a um filme que o ensina a se
adaptar, a ser um operário obediente e trabalhador. O vídeo também traz uma ameaça:
Quem não se comporta é marginalizado, é exposto ao ridículo e expulso da cidade. Não
há espaço para quem não segue as regras da grande capital, não há espaço para a cultura
de fora, para a poesia.
A cultura nordestina é ignorada, senão marginalizada e alvo de preconceito.
A cultura do nordeste não tem espaço na grande São Paulo. Deraldo escuta: “ponha-se
no seu lugar”, é rebaixado e vive na pobreza. Sua amiga é obrigada a se prostituir para
se manter. É perseguido por um crime que não cometeu, realizado por um homem
parecido com ele, José Severino da Silva, que ficou louco com a opressão e o
desemprego e esfaqueou seu patrão. A história não é de Deraldo, mas poderia ser.
Deraldo enxerga um futuro que pode ser o seu e é aí que chega à conclusão de que o
nordestino em São Paulo “vira suco de laranja”. A identidade negada reconstrói a
consciência do migrante subjugado por outras lógicas.
O Homem que Virou Suco foi realizado em 1979, quando a ditadura já se
abria à democracia e já se identificavam algumas mudanças. Já se percebem diversas
transformações hoje no Brasil, mas ainda restam sentimentos dessa época, o filme
continua atual. O preconceito contra o nordestino ainda é tema de discussões. Em 2010
ficou famoso o caso de uma estudante de Direito que declarou na internet “Nordestino

153
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”101. A migração do


nordestino se iniciou na metade do século XIX e se intensificou a partir de 1940, com o
crescimento industrial. A situação que já era insustentável no Nordeste (miséria, fome,
exploração, secas), torna-se ainda pior no Sudeste, que os trata como subprodutos de
trabalhadores. A situação gerou desemprego, baixa escolaridade e dificuldade de
ascensão social. A música que toca ao final do filme, Mourão Voltado, de Vital Farias,
resume bem o destino de Macabéa e Deraldo:

Pra que serve o Nordeste?


Pra exportar nordestino
E qual é o seu destino?
é de cabra da peste
De Norte, Sul, Leste, Oeste
Na indústria ou construção
O diabo amassou o pão
E ficou bem amassado
Isso é que é mourão voltado
Isso é que é voltar mourão

Pra que serve a cidade?


Pra viver no corre-corre
E depois que a gente morre
Se acaba toda a vaidade (...102)

Além do problema social, encontramos tanto em Deraldo quanto em


Macabéa um não pertencimento ao Sudeste, uma identidade negada. Deraldo sonha que
é Lampião, que se veste como cangaceiro e se mostra para os paulistas. Macabéa, de
acordo com Rodrigo S.M., é uma dentre muitas, vivia em uma sociedade na qual era
“parafuso dispensável” e em uma “cidade toda feita contra ela”. Sua história precisa ser
contada por outro, já que nem ela mesma consegue assumir qualquer singularidade que
a constitua. Segundo Baptista:

O migrante nordestino em São Paulo, por sair do mundo rural para o


urbano, passa também pelo processo de desterritorialização. Assim

101
http://valdecyalves.blogspot.com.br/2010/11/discriminacao-contra-nordestino-mayara.html
102
Mourão Voltado. Autor da canção: Vital Farias.

154
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sendo, além de estar desenraizado do seu habitat, necessita passar pelo


processo de re-inclusão e/ou territorialização, que se processa de
forma perversa no urbano e na economia, sofrendo dupla agressão. É
desarraigado das suas origens e não se integra facilmente ao urbano,
devido ao mercado de trabalho que não está aberto a recebê-lo
(BAPTISTA, 1998:268).

O preconceito contra o nordestino ainda é parte do imaginário histórico


brasileiro, da configuração histórico-social de suas regionalidades culturais. Por esse
motivo, é importante que se foque na problemática da identidade cultural. A identidade
cultural reúne um conjunto de características comuns entre um grupo de indivíduos, tal
como a língua, a cultura e as tradições. A identidade, portanto, é construída, histórica.
Para Stuart Hall (1932), contudo, a globalização e a pós-modernidade geraram uma
crise dentro desse conceito de identidade. A identidade cultural é fluida, fragmentária e
plural. Com o final do século XX, para Hall, a noção de identidade passou por uma
mudança estrutural, o que levou a essa fragmentação.

Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,


sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.
Esta perda de um “sentido em si” estável é chamada, algumas vezes,
de deslocamento ou descentralização do sujeito. (HALL,Stuart,2005,
p. 9)

A fragmentação é o fenômeno que ocorre com os imigrantes nordestinos, tal


como Macabéa e Deraldo, oprimidos por uma cidade que rejeita e discrimina sua
cultura, sua arte, sua religião e suas ideias. A crise de identidade está clara, e a
inadequação dos dois personagens ao clima da cidade em que vivem é evidente. O
próprio Hall atesta que, com essa série de mudanças geradas pela globalização, a
identidade de cada um não é mais una, mas variada. Essas identidades diversas, para ele,
podem tornar-se contraditórias e problemáticas. É o que vemos em Deraldo, ao revoltar-
se contra seus patrões, ao não aceitar o vídeo que lhe diz como agir no trabalho. A
lógica de um cenário industrial, competitivo e dinâmico da cidade de São Paulo gerava
um conflito de identidades em Deraldo, que não conseguia adaptar a noção que tinha de
sua própria identidade à identidade que lhe impunham e que fragilizavam seu “eu
identitário”.
Esta passagem da identidade à identificação é vista, de um lado, como
indício de um processo de fragilização do eu identitário e, no limite,

155
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

de um processo de desmontagem, alienação e reificação do sujeito,


perdido num fluxo e refluxo de orientações e interpelações que até ele
chegam de diferentes fontes – a publicidade, o cinema, a TV, as
revistas de comportamento - e que dele exigem um contínuo
amalgamento às necessidades do mercado. (COELHO, 2004, p. 202)

É dentro dessa perspectiva que tratamos o conceito de anomia, o estado da


falta de identidade. O conceito foi utilizado originalmente por Émile Durkheim em seu
livro O Suicídio (Durkheim, 1912) e significa o estado de conflito que se dá em função
de uma ausência de regras que estabelecem a solidariedade dentro de determinado grupo
de indivíduos. Durkheim cunhou o conceito no sentido de que o desenvolvimento das
grandes indústrias, a intensificação do ritmo de trabalho e a influência das grandes
aglomerações geraram transformações muito rápidas. Não permitiram, desse modo, que
os trabalhadores tivessem tempo de estabelecer seus interesses, de chegar a um
equilíbrio. É o que acontece com os imigrantes, jogados em uma cidade de
transformações muito rápidas. Essa mudança repentina não os permite o
desenvolvimento de uma identidade própria e os leva à anomia.
É importante também que façamos uma reflexão acerca da identidade de
Macabéa. A situação da moça nordestina vai além da crise da identidade cultural. Ela
nasceu no Alagoas e perdeu os pais aos dois anos de idade. Foi criada pela tia e tratada
como “mais uma boca para comer”. Foi uma criança, portanto, que não recebeu o
cuidado que se é devido a cada criança. No Rio de Janeiro, seu destino poderia ser como
o de muitas, vendendo o próprio corpo, mas nem isso Macabéa tinha para vender.
Nunca se fazia perguntas, e a pergunta “Quem sou eu?” nunca se passava por sua
cabeça, já que a resposta estava tão longe de ser alcançada. Rodrigo S.M. a descreve
como uma “cadela vadia”, referência ao apagamento de Macabéa do mundo ao seu
redor. A invisibilidade de Macabéa provoca sua dificuldade de (auto) reconhecimento e
conhecimento de si e do mundo.
A personagem não só é privada de um pensar próprio, como de sua voz
perante a sociedade. É demitida e aceita com subserviência. Passa a vida em obediência
ao que lhe dizem e aceita as palavras duras que escuta. Acreditava-se como uma pessoa
feliz e vivia sem a consciência de que era explorada no trabalho. Residia em uma
moradia degradante, não tomava banho, passava fome e contraiu tuberculose. Não é
vista sequer como mulher. Rodrigo S.M. destaca que, se Macabéa fosse capaz de se
expressar pela escrita, diria: “o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim.”.

156
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A cena em que mais evidencia a falta de reconhecimento por parte da


personagem é a cena em que ela se olha no espelho. Olha para o espelho e tem a
impressão de não ver imagem alguma, de não possuir existência física. A personagem
busca constantemente por palavras que a definam. Identifica-se como datilógrafa,
emprego em que não era bem sucedida e até mal tratada. Já havia sido despedida, mas
insistia na referência para identificar-se em algum lugar no mundo. Admira Olímpico
que, mesmo ladrão e assassino, possuía valores pelos quais definia quem era. Era um
homem que entendia a lógica da sociedade, mesmo que obscura e desonesta. Olímpico
era operário e Macabéa tinha orgulho disso.
Descreve-se também como virgem, já que o que lhe resta é utilizar-se do
fato de que ninguém a enxerga no mundo para que ela mesma possa se enxergar como
alguém. Define-se também por seu gosto por coca-cola, já que por não conseguir
construir sua própria identidade, absorve valores de massa e ideologias norte-
americanas, como anúncios de produtos, modelos de atrizes famosas e coca-cola. A
personagem de Clarice, perdida no mundo e sem consciência do que é, responde a
Olímpico: Desculpe mas não acho que sou muito gente. (A Hora da Estrela, p. 59).
Macabéa procura dar-se algum sentido a partir das palavras, mas para a própria moça as
palavras estão vazias de sentido, a vida está vazia de significado.
A Hora da Estrela, escrito em 1977, desenvolve-se em torno de uma
imigrante nordestina. Mas hoje, em uma sociedade na qual transformações acontecem
em curtíssimos períodos de tempo, na era das redes e de ágeis informações que nos são
jogadas por todos os lados, a quantas pessoas podemos atribuir a história de Rodrigo
S.M.? Aos que nas notícias não enxergam mais um significado, cegos de sentidos? Aos
que na violência não enxergam mais seres humanos, seres comuns a eles? Aos que na
desigualdade enxergam a vida ordinária? Aos que trabalham desenfreadamente sem
perguntar-se por quê? Aos próprios afundados na pobreza econômica, de sentido, de
alma? Macabéa está em todos nós, atestando ausências em diferentes âmbitos. Como o
direito e as políticas públicas atendem a esse estado de ausência, do direito de
identificar-se e de dar voz à sua cultura?
É importante, dessa forma, que se fale sobre o panorama dos direitos
humanos e do constitucionalismo no Brasil. A Constituição é o instrumento que confere
ao povo a possibilidade de que sejam questionadas as desigualdades e injustiças
existentes no país. É a lei máxima do Estado e o conjunto de regras que delimita os
princípios políticos a serem seguidos, os poderes, os direitos e a estrutura de um

157
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

governo. O Brasil tem um histórico constitucional que variou desde o liberalismo


político e econômico até o autoritarismo. A Constituição de 1988, nossa atual
Constituição, é referência mundial em sua extensa proteção aos direitos humanos. É
considerada uma reação ao histórico da Ditadura Militar que, alguns anos antes,
produziu a Constituição de 1967 e entrou na história como um período de enorme
desrespeito aos direitos humanos.
A Constituição de 88 é, até hoje, a carta que protege o maior número de
direitos humanos na história do país. Os Direitos Individuais e Coletivos estão previstos
no art.5º, como o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à livre manifestação do
pensamento, o direito de petição aos poderes públicos e a vedação ao racismo. Nossa
Constituição não apenas nos garante direitos como se define também por seu caráter
dirigente. Isso significa a introdução de diretrizes a serem seguidas por um Estado que
anseia pelo bem-estar de seu povo, por uma melhora social.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do


Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

É protegido, além do que já foi enunciado, o direito à cultura, aludido no

art.. 215.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração
plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração
das ações do poder público que conduzem à:
I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II - produção, promoção e difusão de bens culturais;
III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas
múltiplas dimensões;
IV - democratização do acesso aos bens de cultura;
V - valorização da diversidade étnica e regional.

158
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O livro de Clarice foi publicado em 1978, antes da própria Constituição de


1988. O que nos dispomos a perguntar é: se Macabéa estivesse entre nós, hoje, seus
direitos estariam assegurados por nossa Constituição? Sua pobreza, seus direitos
trabalhistas, sua cultura sufocada e sua falta de voz seriam amparados? Os artigos
mencionados, tal como artigos que protegem os direitos trabalhistas, como o art. 7º e o
8º da Constituição, seriam meios suficientes para que a protagonista de A Hora da
Estrela tivesse uma vida digna?
Nossa Constituição assegura a igualdade, mas sua eficácia é desigual para
diferentes grupos de nossa sociedade. Buscar a justiça implica em pagar um preço que
muitos não podem pagar. As promessas da Constituição de 88 são muitas, mas nossa
máquina estatal não está pronta para cumpri-las. Nossas defensorias não conseguem
sustentar o número de pessoas que dela precisam, nossa segurança ainda é mantida por
policiais no âmbito militar (resquícios da Ditadura no país) e nosso judiciário ainda
exige um custo muito alto. Quem se beneficia desse conjunto de direitos sociais e
políticos são apenas os que possuem os meios financeiros para acionar a justiça. É com
decepção que constatamos que Macabéa não é apenas um personagem ficcional, mas
um ícone que vive entre nós. Como Rodrigo S.M., podemos nos deparar com a
personagem ao andarmos nas ruas, ao visitarmos casas de prisões, hospitais e escolas
estaduais.
Macabéa aparenta ser personagem ficcional típica de Clarice, que nunca se
materializaria na vida real. Mas quantas Macabéas não estão ao nosso redor, perdidas
em seus próprios direitos, com sua dignidade humana aviltada e declarada apenas no
papel da Lei Maior do Estado brasileiro? A literatura nos auxilia a interpretar
metaforicamente Macabéa em um Brasil desigual. Que assim encontremos o caminho
para assegurar o direito à identidade e à diversidade cultural, além de uma Constituição
acessível e eficaz a todos. Com alcance social, mas não apenas nele, a literatura que nos
apresenta Macabéa acorda a personagem anômica que vive em todos nós, em nossa
busca por referenciais, em nossa falta de discurso, em nosso caos e em nosso vazio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Ed Iluminuras,


2004.

159
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura. Ensaio de Síntese


Teórica. São Paulo: Livraria do Advogado Editora, 2008.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2005.
LISPECTOR, Clarice. Seleção de textos, notas, estudos biográficos. São Paulo: Abril
Educação, 1981.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1978.
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
RODRIGUES, José Albertino (Org.). Durkheim. São Paulo: Editora Ática, 1984.
TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti
(Orgs.). Direito & Literatura. Ensaios Críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008.
TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti
(Orgs.). Direito & Literatura. Reflexões Teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF, Senado, 1998.

160
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

DE WALTER BENJAMIN AOS MANUSCRITOS BARROCOS DE


GOIÁS NO SÉCULO XVIII: O CONCEITO DE ESCRITA-IMAGEM

Mariana de Sousa Bernardes103

Da constelação de pensamentos de Walter Benjamin - como preferem


denominar sua obra os dedicados à leitura - um termo solar para a compreensão desta é
Alegoria. Ao seu redor gravita a escrita-imagem, cuja apresentação se desenvolve em
dois subtópicos, um sobre o contato de Benjamin com os hieróglifos e caligrafia
oriental. Ambos complementaram reflexões sobre a escrita não apenas em relação aos
significados, mas também aos significantes. É peculiar aos seus textos a forma de
utilizar das palavras para evocar imagens à medida que elas reforçam e ampliam as
potencias conceituais das primeiras. Michael Löwy aponta em Aviso de Incêndio que
esta escritura alegórica lhe proporciona inesgotável interpretação, principalmente das
Teses sobre o conceito de História. Igualmente Jeanne Marie Gagnebin afirma ainda
não ter explorado toda densidade da Origem do Drama Barroco Alemão. E, é nesse
livro que se encontra exposta a relação entre escrita-imagem e Barroco, no contexto da
literatura alemã.
A escrita-imagem abrange a concepção de texto, no qual seu conteúdo seja o
portador de imagens mentais e pensamentos alegóricos. Entretanto, a própria
materialidade da escrita pode conter essa ligação entre texto e imagem, como no caso da
caligrafia pertinente ao Barroco, onde novos pensamentos são apreendidos pelas
visualidades latentes na ordem escritural. Assim, no segundo subtópico, se apresenta o
seu deslocamento ao contexto do Barroco brasileiro, precisamente em Goiás. O objetivo
é utilizar desta categoria benjaminiana para analisar os documentos adornados que
manifestam essas sensibilidades no exercício da materialidade da escrita como potência
visual da tensão entre texto e imagem. Enquanto território colonial inóspito, cuja
produção de manuscritos estava distante no espaço-temporal do ponto aqui traçado
como origem, as ilustrações utilizadas como paralelo entre as caligrafias barrocas
produzidas no contexto alemão e goiano levam questões a serem trabalhadas no
decorrer do projeto e não se esgotam nesse artigo.
103
Especialista em História Cultural pela UFG, mestranda no programa de pós-graduação Territórios e
Expressões Culturais no Cerrado, TECCER-UEG. Bolsista Capes. bernardes.dg@gmail.com

161
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

As bases da escrita-imagem em Benjamin

Alegoria

No Drama Barroco, Benjamin desenvolveu sua concepção de alegoria


inicialmente como proposta de uma categoria que, fundada em tempos outros (XVII e
XVIII) e relegada nas criticas da arte ao segundo plano meramente ilustrativo, se
configuraria na contemporaneidade dele como única a dar conta das novas
manifestações da modernidade. Concentrando a abordagem no período histórico do
Barroco na qualidade de conjunto de representações sociais e artísticas, alegoria compõe
uma forma dialética de expressão, a qual acompanha o fluxo temporal. Portanto,
manifesta as progressivas mudanças históricas humanas e revela uma alteridade de
significados, quando seu referencial é precisamente mundano e sua apoteose é sensorial.
Visto que não possui a carga autossuficiente do símbolo, como revelação material do
invisível, a alegoria traz consigo a união da natureza com a história. A primeira
enquanto fornecedora de significantes e a segunda de significados. Destarte, um signo
dessa fusão, mas como a história é acumulo de fatos e ruinas esse signo sempre está a se
modificar. Naturalmente a morte de um dá inicio ao outro. Nisso há um aspecto lutuoso
na alegoria, apontada por Benjamin, da maneira de uma consciência do fracasso, pois a
natureza é implacável em seu objetivo final e limitante que é a morte enquanto a história
conspira no esforço de lhe superar, ou melhor, esconder numa marcha crente de triunfo
e possibilidades futuras.

Está aqui o cerne da contemplação de tipo alegórico, da exposição


barroca e mundana da historia como via crucis do mundo:
significativa, ela é apenas nas estações de sua decadência. Quanto
maior a significação, maior a sujeição à morte, porque é a morte que
cava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a
phýsis e a significação. Mas a natureza, se desde sempre está sujeita à
morte, é também desde sempre alegórica. (BENJAMIN, 2013, p.177).

A este homem inserido no contexto da Contrarreforma e ascensão do


Iluminismo e arrastado pelas sensações terrenas que, no entanto, sabe que vai morrer e
decaído da salvação da alma quando perdeu os dogmas medievais da fé e
transcendência. Benjamin lhe indica como saída uma centelha da salvação na própria
alegoria, pois ao mesmo instante em que mergulha no profano em busca de significação

162
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

extrai o sagrado naquilo que o símbolo mantém como enigma. A expressão dialética
entre o espiritual e o material faz parte do cenário barroco e que marcou todas as
linguagens humanas inclusive a Escrita, da qual o filosofo alemão se utilizou para
exemplificar sua teoria alegórica, está presente na sua analise sobre os hieróglifos. Outra
fonte utilizada foram os livros de emblema populares no século XVI e XVII, a partir
dos quais Benjamin analisa o exagero ornamental aplicado às imagens e também aos
elementos tipográficos que compõem unicidade da página.

A função da escrita figurativa do Barroco não é tanto o desvelamento


das coisas sensíveis, mas mais o seu desnudamento. O autor de
emblemas não dá a essência “por detrás da imagem”. Ele arrasta a
essência dessa imagem e coloca-a diante dela sob a forma de escrita,
como assinatura escrita-por-baixo (Unterschrift), legenda que, nos
livros de emblemas, forma uma unidade com o objeto representado.
(BENJAMIN, 2013, p. 197).

Figura 1-livro de emblemas, Zsámboki, János-Antuérpia, 1564²


²Fonte disponível em: https://www.wdl.org/pt/item/14211/ Acesso em maio de 2016.

163
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A circulação de livros neste período implica aos letrados na sociedade de


corte e seus próximos o anseio de formação de bibliotecas particulares e públicas, estas
patrocinadas por monarcas e marca de seus reinados. Como bem indica Benjamin, a
alegoria do saber é a acumulação de livros como se fixar estes signos do conhecimento
já fosse digno em si mesmo, o que anima mais a vaidade de exibir como objetos do que
usufrui-los: “o ideal barroco do saber, o armazenamento, cujo monumento eram as
gigantescas bibliotecas, realiza-se na imagem gráfica da escrita” (2013, p.196).

Hieróglifos

Na derivação por extensão de sentido em Houaiss, hieróglifo significa tudo


que é difícil de decifrar ou enigmático. O primeiro a denominar o sistema de escrita
egípcia de “hierogluphiká” foi o grego Clemente de Alexandria, cuja tradução
estabelece a ideia de “esculturas sagradas” e segundo Fischer, “poucos sistemas de
escrita no mundo foram tão belos e cativantes. Nenhum teve um efeito tão amplo sobre
a humanidade”. (2009, p.35). Esse fascínio exerceu sobre Benjamin um papel
importante para pensar uma escrita que conjugasse a dialética entre texto e imagem,
uma vez que suas interpretações sobre o drama barroco alemão condensava na escrita a
força conceitual da Alegoria e da História. Portanto, o hieróglifo surge como um ponto
de estudo a partir do qual os desdobramentos permitiram chegar ao conceito de escrita-
imagem.
O primeiro plano interpretativo dos hieróglifos na História da Escrita se
refere ao sagrado como uma protoescritura que expressaria a linguagem de Deus
presente in totum. Neste chamado “livro da natureza”, cada fenômeno seria passível de
observação e entendimento dos ciclos naturais pelos homens tal como ciclos de ordem
mística.
Um plano variante deste sagrado seria a restrição do acesso à linguagem
divina apenas aos iniciados, a fim de constituir um mistério cujas revelações estariam
em poder de poucos pela tradição de compreender os signos ocultos entre tantas
imagens. Os próprios egípcios designavam a escrita como “palavras de deus”, pois na
origem mítica descrita por Fischer, Thoth - o deus com cabeça de pássaro, senhor da
sabedoria e patrono dos escribas – teria presenteado o imperador Tamus com a escrita
como remédio para a memória.

164
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Figura 2-fragmento de hieróglifo-Museu do Louvre³


³Fonte disponível em: http://www.louvre.fr// Acesso em maio de 2016.

Na versão platônica em Fedro, ela seria exatamente o oposto: veneno. Isso


porque ao escrever modifica-se a forma da rememorar, anteriormente contemplada pela
tradição mnemônica dos antigos narradores gregos. Ou seja, entende-se a escrita como
esquecimento. Coloca-se a seguinte ideia: quando se escreve não se exige rememoração
do conteúdo, basta reler o que se escreveu se este estiver ao alcance das mãos. É mais
importante lembrar o local onde se guardou o documento do que a clareza do conteúdo
escrito. Para Giordano Bruno, na leitura do mito egípcio, a escrita é memória sim.
Contudo, o alfabeto ocidental desencadeia o esquecimento por ter perdido o plano
sagrado dos hieróglifos e se tornado profano. Essa queda, do ponto de vista histórico,
trata-se do processo de vulgarização da escrita e sua modificação rumo ao desenho mais
simples e suportes móveis e maleáveis. O que ocorreu aos demais povos da região além
dos egípcios e de maneira simultânea ao desenvolvimento da escrita monumental. Não
há cronologicamente uma transição evolutiva linear, as escritas se desenvolveram nas
interações humanas em diversas linhas. Leon Battista Alberti também concorda quanto
à falência do alfabeto ocidental diante os hieróglifos visto que o primeiro estaria
atrelado às limitações de seu tempo e espaço, no sentido de material prosaico. E, o
segundo conservaria sua carga universal, pela sacralidade e perenidade conservada em
monumento e unicidade de significado.

165
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

De acordo com Silva, Benjamin extrai desses autores supracitados sua


própria análise dos hieróglifos, na qual aponta uma ambiguidade. Apesar do caráter da
divindade, de sua fixidez simbólica, a própria condição de ser ruína, ou seja,
temporalidade aprisionada no espaço tal como a história encapsulada na escrita coloca
por terra a sua transcendência. Ainda que tenha almejado a totalidade do sagrado sendo
um símbolo enigmático não escapa ao profano por fazer parte da catástrofe humana, do
seu passado a demandar dos homens sua compreensão. Portanto, no estudo do drama
barroco, o hieróglifo assemelha-se ao símbolo, o qual condensa num momento o mundo
visível (significante) ao mundo invisível (significado). Benjamin esquematizou em seus
manuscritos preparatórios da tese de livre-docência, um exemplo da percepção correta
de símbolo dentro da linguagem religiosa: “1) Símbolo: a cruz de Cristo; 2)
simbolizante: uma cruz; 3) simbolizado: um objeto imaginário”. (2013, p.275).
Entretanto, o uso da escrita imagética dos egípcios interessa às reflexões da
escrita barroca pelo viés profano de apreensão de uma escrita oculta, da qual por utilizar
da profusão de visualidades configura-se no campo da transitoriedade da alegoria. Ou
seja, o valor da temporalidade histórica que não comporta mais um significado
universalista, mas uma torrente de significados cambiantes, pois “no barroco o peso
recai, no entanto, não no elemento universal-simbólico, mas sim sobre seu ser
imagético-enigmático”. (SILVA, 2005, p.128). Assim, os usos dos elementos da
natureza representados pelos hieróglifos são retomados no barroco, porém, ausentes da
acepção simbólica e fragmentados em suas aduções. Posteriormente, aos trabalhos do
Drama Barroco, Benjamim encontrou na Biblioteca Nacional de Paris uma exposição
referente aos calígrafos chineses que lhe provocou atenção ante o contraditório da frase
de J.P. Dubosc: “Esses pintores são letrados. No entanto, a pintura deles é o oposto de
toda literatura”. (BENJAMIN apud SILVA, 2005, p. 129). Segundo Silva, fascinado ele
buscou equacionar o paradoxo através das categorias elaboradas na escrita barroca.

Caligrafia chinesa

Embora, no ocidente se tenha uma percepção da escrita asiática como


ideogramas em geral, Fischer afirma que este pensamento é incorreto quanto à natureza
da escrita chinesa. Ela parte majoritariamente do sistema logográfico, o qual incorpora
morfemas monossilábicos em blocos ou unidades de caracteres. Além desse aspecto
funcional combinatório para formar uma “palavra-total”, é inerente à escrita chinesa a

166
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sensibilidade estética. Culturalmente, há uma distinção ocidental entre escrita dotada de


legibilidade e escrita sofisticada. A chamada caligrafia, prática abolida dos currículos
escolares no meado do século passado, permanece como manifestação comercial em
nichos de mercado.
Todavia, aos chineses exercer a arte da escrita é a escrita. Cada caractere
deve conter a mensagem, a habilidade e o estilo artístico do caligrafo, conforme adágio
de escriba chinês “que a palavra chuva caia como chuva”. Observa Fischer que dizer a
um caligrafo oriental que sua escrita é legível pode configurar insulto como se o mesmo
não tivesse sofisticação e beleza em seu trabalho. “Em séculos passados, a caligrafia
igualava em importância a música, a pintura e a poesia. De fato, grandes calígrafos com
frequência tinham maior prestígio na sociedade chinesa do que os melhores pintores e
poetas do país”. (2009, p.161).
O que Benjamin identificou na frase de J.P. Dubosc foi capacidade da
caligrafia chinesa de esvair as fronteiras entre texto e imagem. A forma dos caracteres
mais a disposição predominantemente vertical agrega um forte apelo visual aos olhos
ocidentais. O calígrafo chinês pinta palavras em semelhança ao pensamento que deseja
escrever para contemplação duma imagem cuja fluidez de ideias parta da totalidade dos
caracteres compostos por traços e manchas. A redundância de termos aparentemente
opostos na sentença anterior configura um intento de expor a tênue divisão. O pensador
alemão refletiu que diferente dos hieróglifos teorizados como portadores duma
eternidade e paralisia de morte quanto ao significado, os logogramas chineses eram
fluidos, pois condensavam a eterna travessia do pensamento-imagem pelos olhos e
mentes dos admiradores. Assim como a linguagem das alegorias que ele buscou na
própria escritura, por entender talvez como via mais sensível ao leitor. As semelhanças
ou imagens associativas abrem para o campo das experiências compartilhadas.

Poderíamos dizer que a caligrafia chinesa corresponderia a uma


concretização em termos visuais daquilo que Walter Benjamin
procurou realizar, a partir da margem do conceito que se torna
imagético, nos seus Denkbilder, imagens do pensamento – bem como
nas inúmeras metáforas e imagens que povoam seus textos. Por sua
vez, no Barroco com livros de emblema que conjugavam pictura,
inscriptio e subscriptio (imagem, letras e explicação da imagem)
estabeleceu-se uma modalidade de pintura de ideia que combinava
escritura e desenho – sem a fusão caligráfica com sua dinâmica visual
que cativara Benjamin. (SILVA, 2005, p.130-131)

167
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Figura 3-Imagem de caligrafia chinesa4


4
Fonte disponível em: http://www.chinesecalligraphyexpo.com Acesso em maio de 2016.

Por conseguinte, avalia-se desse anseio de Benjamin de uma escrita-imagem


que as delimitações entre arte, filosofia, história, texto acadêmico e poesia, que se
seguem especializando desde o Iluminismo, findam-se. Como autor sempre no limiar
das fronteiras do pensamento e na multiplicidade dos assuntos, Benjamin abre portas
“na medida em que essa teoria da escritura é também, antes de mais nada, uma
revitalização do principio analógico do saber, pode-se afirmar que Benjamin é também
um dos arautos do fim da era Gutemberg. Ele participou da reativação da cultura
imagética que tem o seu triunfo na pós-modernidade”. (SILVA, 2005, p.132).

A Escrita-imagem alemã e goiana.

Embora, Benjamin não tenha abordado os manuscritos produzidos no


período barroco alemão, os trabalhos de caligrafia ocidental encontravam-se de certo
modo influenciados pelo estilo chancelleresco desenvolvidos na Itália no Pós-
Renascimento e expandidos pela Europa. A Alemanha incorporou essa escola a sua
forte tradição gótica e incluiu em manuais de caligrafia que se popularizavam graças ao
advento da impressa, que através das técnicas de gravura em metal, conseguia
reproduzir a delicadeza dos traços manuais em chapas de cobre.
Essa escrita ornamental, que traz consigo a exploração da visualidade
também se fez presente no virtuosismo de calígrafos alemães como pode ser visto nas

168
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

imagens a seguir extraídas do manual Modelos de Escritas Caligráficas de Johann


Hering (Kalligraphische Schriftvorlagen von Johann Hering).

Figura 4-Manual caligráfico-Hering, J. Kulmbach, 1623-1634 (p.16)


Fonte disponível em: http://digital.bib-bvb.de Acesso em maio de 2016.

Figura 5-Manual caligráfico-Hering, J. Kulmbach, 1623-1634 (p.38)


*
Fonte disponível em: http://digital.bib-bvb.de Acesso em maio de 2016.

Em Goiás, sob todos os fatores adversos ao projeto de civilização da


sociedade colonial no século XVIII, a Cultura Escrita encontrou um território muito
além de sua origem europeia quanto à caligrafia ornamental. Os manuscritos adornados,
precisamente os Termos de Compromisso das Irmandades, entidades religiosas criadas

169
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

nos pequenos arraiais e na sede administrativa da Vila Boa que prestavam naquele
período um serviço próximo ao de assistência social aos irmãos participantes. O
objetivo era prover, através de taxas de adesão e pagamentos mensais, serviços de
sepultamento e missas em prol do falecido além de outras demandas de natureza
religiosa, como celebrações e festas ao santo padroeiro da irmandade. Os livros de
regimento eram bastante elaborados visto que eram encaminhados à Lisboa para
aprovação do rei, pois o monarca português continha pelas leis do padroado concedido
pela Igreja Católica a regência das ordens religiosas e militares de Cristo, de São Bento
e S. Thiago da Espada e mais a relação da Coroa portuguesa ao Sagrado Coração de
Jesus cuja representação era presente nas medalhas concedidas aos militares das ordens
citadas.
Portanto, na união dos poderes profanos e sagrados ao regente que aprovaria a

Figura 6-Irmandade das Santas Almas, Vila Boa,1732 criação oficial da irmandade
cabia aos executores dos livros
zelo e refinamento para serem
bem recebidos na representação
do livro aos olhos do rei.
Contudo, esses manuscritos
goianos são indiciários do
contexto histórico de
precariedade e isolamento em que
habitavam essas comunidades
religiosas e mais precisamente os
anônimos artífices das letras. Os
termos de compromisso
apresentam uma rusticidade na
execução caligráfica e ruídos de
uma parca cultura intelectual. Por
exemplo, registros de lápis nas
letras capitulares indicam que
podem ter sido copiadas de um
modelo e não desenhadas
diretamente. Como também a
irregularidade nos traços e nos acabamentos ornamentais. Algumas hipóteses que

170
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

complementam os motivos dessa caligrafia barroca mais simples em sua proposta além
das já citadas encontram apoio também nos impedimentos da Metrópole na
circularidade de livros e ausência de escola nos primeiros 60 anos da capitania, que
posteriormente a sua instalação pela escassez de recursos materiais e humanos também
não estabeleceu ensino de qualidade. As respectivas imagens dos termos de
compromisso da Irmandade de Vila Boa, 1732 e de São Joaquim do Cocal, 1772 - em
detalhe único na pesquisa com iluminura em ouro em algumas páginas, registradas no
acervo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central – corroboram
para a pesquisa sobre esses manuscritos como fontes de compreensão da história
colonial e da imersão da cultura escrita entre os goianos.

Figura 7-Irmandade de S. Joaquim do Cocal, 1772

171
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Considerações Finais

As comparações entre as duas últimas caligrafias expostas, longe de


constituir um mero exercício estético entre as práticas alemãs e goianas, servem muito
mais a uma reflexão das circunstancias culturais em que cada uma fora produzida em
diferentes relações de espaço-tempo, porém sob a égide do Barroco. A materialidade da
escrita-imagem, que fazia parte daquele contexto e hoje ainda atraem os olhares de
encanto por configurar uma técnica quase restrita ao passado, são “despojos de cultura”,
conforme Benjamin, pouco estudados em Goiás. De forma que ao seguimento deste e de
outros estudos porvir se dá voz a essa parte oculta e detalhista dos manuscritos barrocos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Belo Horizonte: Ed.


Autêntica, 2013.

FISCHER, Steven R. História da Escrita. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

PEREIRA, Marcelo de Andrade. Barroco, símbolo e Alegoria em Benjamin. Analecta,


Guarapuava/Paraná, v.8, p.47-54, jul/dez, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre a memória, arte,


literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005.

172
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

IMAGENS NA PRIMEIRA REPÚBLICA: ESCOLA DE


APRENDIZES ARTÍFICES E O MODELO DE GRUPOS
ESCOLARES
Mauro Alves Pires104

Nos discursos proferidos pelas autoridades, na solenidade de instalação da


antiga Escola de Aprendizes Artífices, origem do atual Instituto Federal de Educação de
Goiás105, em 1910, na cidade de Goiás, manifestavam-se as expectativas e as promessas
da classe política, em torno do que seria o futuro funcionamento daquela instituição.
Isso é o que podemos deduzir da leitura de uma notícia veiculada no jornal do dia 8 de
janeiro de 1910, “A sessão foi presidida por sua Excelência o Sr. Presidente do Estado
(...)” (O GOYAZ, 8 de janeiro de 1910). No mesmo texto o redator chama a atenção
para um novo aspecto daquela escola que se instalava. Pois, aquela não era uma
instituição de ensino comum, ela trazia explicitado no decreto que a criou, a sua singular
finalidade: esta era a oferta de ensino profissional.
A solenidade de instalação, a que nos referimos, deu-se em prédio cedido
pelo governo do Estado. Naquela ocasião a escola ainda não contava com um prédio
próprio. Fato que talvez incomodasse os governantes locais, pois era um tempo em que
o governo federal instalava as escolas republicanas em prédios modelares. Mas mesmo
com essa limitação a sua concepção atendia à mesma racionalidade que permeou a
criação dos Grupos Escolares no início do século XX. A finalidade expressa nos
discursos seria “civilizar as massas”, assim pretendia-se com essas Escolas, mais que
conter os filhos das classes pobres, considerados como portadores de uma conduta
irracional. As intenções do governo Republicano, com a criação das dezenove Escolas
de Aprendizes Artífices, ficavam claras nos documentos oficiais (Decreto N º
7.566/1909), mas também movimentava as representações sobre as crianças pobres.
Pretendia-se, ao mesmo tempo disciplinar os filhos da classe operária, vistos como
potencialmente perigosos à ordem social e prepará-los para o exercício de uma
profissão.
A vinculação da criação das Escolas de Aprendizes com a mesma
racionalidade que orientou a criação dos Grupos Escolares fica bem marcada no Decreto

104
Mestre em História pela UFG, membro do GEHIM.
105
Os Institutos Federais formam a atual rede federal de educação profissional.

173
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Nº 7.566, de 23 de setembro de 1909. No texto do decreto, está marcada a preocupação


com uma proposta pedagógica em consonância com o modelo de escola republicana.
Isso fica claro no seu artigo 3º, e também com uma racionalização administrativa
expressa no seu artigo 4º. Manfredi (2002) refere-se a:

[…] Nilo Peçanha, já como presidente da República, instaurou uma


rede de 19 escolas de aprendizes artífices, dando início à rede federal,
que culminou nas escolas técnicas e, posteriormente, nos Cefets
(MANFREDI, 2002, p. 85).

O documento inicia deixando bem marcado que se trata de um ato


abrangente do chefe de Estado. Assim “O Presidente da Republica dos Estados Unidos
do Brazil, em execução da lei n. 1.606, de 29 de dezembro de 1906:[...]”. A medida
estendia-se a todo centro urbano importante do país, naquele momento. Queluz (2000)
cita o Decreto 7.566de 19/12/1909:

O decreto de criação dialogava com o contexto sócio-econômico


descrito, considerando: Que o aumento da população das cidades
exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as
dificuldades, sempre crescentes da luta pela existência; que para isso
se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da
sorte com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los
adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade,
escola do vício e do crime; que é um dos primeiros deveres do
governo da República formar cidadãos úteis à nação (Decreto n° 7.566
apud QUELUZ, 2000, p. 29).

A adoção do modelo do Grupo Escolar como padrão para a criação das


Escolas de Aprendizes e Artífices ocorreu concomitantemente à sua fundação, pois o
regulamento de criação definia essas como de nível primário. Por esse motivo é o Grupo
Escolar adotado como referência para a criação das Escolas de Aprendizes Artífices.
Esse era o modelo republicano de educação popular, conhecido também como escola
graduada. Já contava com ampla disseminação e prestígio, ao passo que as Escolas de
Aprendizes e Artífices ainda figuravam como novidade e careciam legitimar-se. Nesse
sentido é no modelo do grupo escolar que se encontravam os elementos para a
materialização do projeto de educação que se pretendia para essas Escolas.
Para Pandini (2006) os Grupos Escolares representavam, além dos ideais
políticos da República, um projeto de expansão da educação popular pelo interior do
país. Havia na adoção do modelo de escolas graduadas uma pretensão de renovar o
ensino, aliada a uma racionalidade econômica. Pelo fato de as escolas graduadas

174
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

agruparem centenas de crianças em um mesmo espaço, isso representava uma vantagem


significativa em termos de custos em relação às escolas isoladas. Por outro lado havia
também vantagens do ponto de vista do controle do trabalho dos professores e alunos.
Dessa forma era possível manter “o controle sobre o tempo e a aplicação dos princípios
da divisão do trabalho e dos critérios da administração científica” (PANDINI, 2006, p.
56).
No entanto, os Grupos Escolares foram delineados, em sua concepção
pedagógica e na sua comunicação visual, para a população em geral. Já a Escola de
Aprendizes Artífices tinha, como principal foco para sua atuação, as camadas mais
pobres da população. Na visão de seus idealizadores as crianças, filhas das classes
pobres, precisavam ser controladas, vez que “Eram suas práticas de apropriação do
espaço urbano, sua suposta irracionalidade e falta de autocontrole que preocupavam as
autoridades republicanas” (VEIGA & FARIA FILHO, 1997, p. 215).
Por isso mesmo é que o modelo do grupo escolar foi adotado para as
Escolas de Aprendizes e Artífices, principalmente no que se refere aos contornos
arquitetônicos, à seriação, ao uso do método intuitivo. Porém as escolas de aprendizes
não eram uma imagem especular desse modelo de educação. Mas foi a lógica de criação
do Grupo Escolar que serviu de parâmetro para a formatação do funcionamento das
Escolas de Aprendizes Artífices, pois “[...], a imponência e localização estratégica dos
edifícios-escola no espaço urbano pretendiam dar notoriedade ao Novo Regime e às
suas propostas de difusão da instrução popular como estratégia de civilidade e
cidadania” (PANDINI, 2006, p. 56).
No discurso de civilizar a população percebe-se que os profissionais que
defendiam a escola, naquele momento, viam os costumes das camadas populares como
ruins e era preciso educar, civilizar, impor novos hábitos: “os sujeitos populares como
um todo precisavam ser regenerados pelo trabalho salvacionista, quase celestial, das
instituições escolares”(VEIGA & FARIA FILHO, 1997, p. 219). Assim as Escolas de
Aprendizes Artífices diferenciavam-se do Grupo Escolar quanto à sua especificidade,
que era a de também ofertar, o ensino profissional. Isso para Cunha (2005) se
materializou em:

Cada estado da Federação recebeu uma dessas escolas, salvo o Rio


Grande do Sul. Em Porto Alegre já funcionava o Instituto Técnico
Profissional da Escola de Engenharia de Porto Alegre, mais tarde
denominado Instituto Parobé. O Decreto n.7.763 de 23 de dezembro

175
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

de 1909 dizia que "uma vez que em um estado da República exista um


estabelecimento do tipo dos de que trata o presente decreto (escolas de
aprendizes artífices), custeado ou subvencionado pelo respectivo
estado, o Governo Federal poderá deixar de instalar aí a escola de
aprendizes artífices, auxiliando o estabelecimento estadual com urna
subvenção igual a cota destinada a instalação e custeio de cada escola
(CUNHA, 2005, p. 67).

“A finalidade dessas escolas era a formação de operários e contramestres,


mediante ensino prático e conhecimentos técnicos necessários aos menores que
pretendessem aprender um ofício[...]”(CUNHA, 2005, p. 63). Essas possibilidades
formativas presentes na concepção das Escolas de Aprendizes Artífices, retiradas da
mesma fonte de onde beberam os idealizadores da escola graduada, apontadas por
Cunha (2005), foram fundamentais para a sua consolidação. O modelo das Escolas de
Aprendizes Artífices, além de formar crianças e adolescentes, futuros cidadãos
republicanos, para o trabalho por meio do aprendizado de ofícios e do curso de desenho,
oferecia também o curso primário.
Sobre essa modalidade de ensino, Kunze (2005) esclarece que ela também
passou a ser vista como ferramenta para o combate ao analfabetismo. A Escola de
Aprendizes Artífices passaria a atender uma parcela da população com idade que
variava entre dez e treze anos. Entendia-se que as crianças nessa faixa etária já
concorriam para aumentar os índices de analfabetismo.
Como o analfabetismo era muito alto em todo o Brasil, segundo Ribeiro
(2003) “em 1920, 65% da população de quinze anos e mais era analfabeta” (RIBEIRO,
2003, p. 81). Inferimos que, no estado de Goiás, também era alta a incidência de
analfabetos. Pois seria muito difícil para o estado apresentar números, proporcionais,
menores de analfabetos que o resto do país. Esse índice permaneceu muito alto até a
segunda metade do século XX. É de supor que uma parte muito grande da população
não teve acesso à escola em geral e também à Escola de Aprendizes Artífices.
Sobre a alta taxa de analfabetismo no Estado de Goiás, a revista “A
Informação Goiana”, no volume 1, nº 4, de 15 de novembro de 1917, publica em artigo
assinado por Victor de Carvalho Ramos, que “Goiás se destaca como o Estado com o
maior índice de analfabetismo do país”. Embora a informação não seja precisa e nem se
fundamente em dados comprovados, ela evidencia uma representação sobre o
analfabetismo em Goiás, no início do século XX. A fotografia a seguir, onde estão

176
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

representados os alunos, professores, auxiliares e o diretor da Escola de Aprendizes


Artífices de Goiás no ano de 1910, nos aponta algumas novas leituras sobre esse tema.

Imagem 4 - Professores, alunos, diretor e servidores administrativos da primeira turma


da Escola de Aprendizes Artífices na Cidade de Goiás
Fotógrafo: Sem Identificação
Ano: Aproximadamente 1910
Fonte: Acervo IFG

Podemos ver que os retratados estão em pose para o fotógrafo, pois,


certamente, essa era uma ocasião importante. No entanto, percebe-se que os alunos não
formam um grupo homogêneo, nem do ponto de vista social e nem pelo aspecto étnico.
No grupo de alunos podemos identificar uma parcela pequena de meninos negros. A
maioria dos alunos tinha a pele clara. Dos que estão sentados ao chão, todos se
apresentam com roupas em desalinho, cortadas sem muito esmero. Nesse grupo não se
identifica nenhum aluno usando sapatos. No grupo de alunos que estão em pé, alguns
usam paletó e até gravata. Outros usam um uniforme de aparência militar, Nesse
segundo grupo os cabelos dos alunos estão bem cortados e penteados. São alunos mais
velhos, na maioria.
Para Kossoy (1998), entre a fotografia e a memória existe uma relação
muito estreita. O autor chega a dizer que “fotografia é memória e com ela se confunde”.
Boris Kossoy (1998) entende que as fotografias de nossas experiências de vida se
prendem às nossas memórias: elas são “imagens-relicário que preservam cristalizadas
nossas memórias” (KOSSOY, 1998, p. 42). A fotografia funcionaria como instantes de

177
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

nossas vidas, reavivando em nossas mentes uma espécie de passado preservado, formam
uma lembrança imutável de um certo momento e situação, de uma “certa luz”, de um
determinado tema, “instante congelado” que não desaparece com o passar do tempo,
mas da mesma forma que os fósseis preservados em pedras elas não espelham o real,
apenas o representa.
No grupo sentado em cadeiras, que está em destaque ao posar para a
fotografia, deixando clara a intenção do fotógrafo de conferir-lhes maior importância,
encontra-se o primeiro diretor, Virgílio José de Barros. Ele forma o centro da narrativa;
veste-se com traje mais elaborado que os demais e mantém uma altivez que o destaca no
grupo. O diretor está sentado entre dois personagens também vestidos em ternos, que
estão entre duas mulheres. Pela posição deles ao lado do diretor, devem ser assessores
próximos.
As duas mulheres são minoria no grupo, ou são as professoras, pois, com a
criação dos grupos escolares havia uma preferência por professoras na escola primária
republicana, “A quase totalidade do corpo docente do Grupo Escolar Paula Rocha foi
constituída, [...], por mulheres. Na inauguração do Grupo, em 1907, o corpo docente era
composto por sete mulheres e dois homens, um deles o Professor Francisco Antunes de
Siqueira, que era o diretor [...]” (ROCHA, 2008, p. 96).
As duas mulheres retratadas tinham pele negra, o que não era comum, caso
fossem professoras. Quanto às vestimentas, elas se apresentam com vestidos que
remetem ainda ao século XIX, principalmente a da esquerda. Uma delas não
permaneceu por muito tempo na escola, pois o diretor que assumiu em 1918, em seu
relatório refere-se à professora Maria Henriqueta Peclát. Essa professora não era negra,
pois existem documentos que a descrevem como uma mulher branca, filha de pais
franceses. A outra professora que consta do referido relatório era Obdulia d’Avila,
professora de desenho, da qual não temos a descrição.
Outro ponto que nos chama a atenção, na narrativa expressa na fotografia, é
a pequena presença de alunos negros. Como a população pobre se confundia com a
negra, essa cena nos aponta uma conclusão diferente, pois, se levamos em conta o rol de
critérios exigidos para o ingresso, fica claro que a instituição atenderia aos “[...] filhos
dos desfavorecidos da fortuna[...]”,(DECRETO Nº 7.566/1909). No entanto, a
fotografia do grupo aponta para uma outra prática, pois não é possível identificar, aí,
muitos negros. O que nos faz perguntar: por que de no grupo de alunos só uma minoria
ser negra? Em qual outra escola estariam esses alunos negros? Além do analfabetismo,

178
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

também levantamos aqui a questão do preconceito racial, que pode ser salientada pela
narrativa presente na fotografia.

As escolas continuavam a ser destinadas aos menores de 10 a 16 anos


de idade, ‘preferidos os desfavorecidos da fortuna’, exigindo-se dos
candidatos, como condição para a matrícula, os requisitos adicionais
de não sofrerem de moléstia infectocontagiosa e não terem defeitos
físicos que os inabilitassem para o aprendizado do oficio pretendido
(CUNHA, 2000, p. 75, grifo do autor).

Devemos lembrar que a abolição da escravatura não conseguiu eliminar o


preconceito arraigado em muitos brasileiros em relação ao trabalho e ao negro, também
não possibilitou que os “novos homens livres” pudessem ter uma ascensão social por
meio da prática de um ofício, o que nos permite inferir a força desse preconceito.
Naquele período, ele provavelmente afastava os negros da escola. Estariam então os
negros fora da escola? Seriam eles a maioria dos analfabetos? Para Faria Filho (1996),
havia muita discriminação em relação às crianças oriundas das camadas pobres da
população. Havia discriminação em relação ao seu acesso na escola em geral.
As Escolas de Aprendizes Artífices foram criadas para disciplinar, por meio
da profissionalização, da escolarização e da contenção dos meninos pobres. Assim o
espaço destinado ao prédio da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás situava-se em
local pobre na Rua de Abadia, um canto esquecido da cidade, esquina com Rua Hugo
Ramos. Trata-se de um espaço próximo ao cemitério, que no início dos anos novecentos
era habitado por famílias pobres. A construção seguia o modelo dos grupos escolares,
com quatro salas e dependências administrativas, isso podemos observar na fotografia
da sede da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás, imagem 6. Porém, esse prédio foi
adaptado,não fora construído para abrigar a escola. Tratava-se de um prédio alugado,
que foi adquirido, posteriormente, pelo governo estadual, (BRETAS, 1991, p. 533). A
escola assim se expressa na primeira imagem: um prédio fechado ao mundo, guardado e
que quer guardar, manifestando claramente um caráter de disciplina, nas suas formas.

179
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Imagem 6 - Prédio da Escola de Aprendizes Artífices na Cidade de Goiás


Fotógrafo: Sem Identificação
Ano: Aproximadamente 1920
Fonte: Acervo IFG

Diante desta foto da sede da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás,


imagem 6, percebemos simbologias que foram detectadas, de forma consciente ou
inconsciente, pelo fotógrafo. Esse fato está ligado a um contexto de suas representações
sobre a escola na época. O autor da fotografia buscou uma monumentalidade inexistente
no edifício escolar, pois o prédio é modesto.
A imagem da fachada é tomada de baixo para cima, aponta para o céu,
aumenta a sensação de altura. Já as janelas são apresentadas como se rumassem ao
infinito ordenadamente, expressa a ordem, a racionalidade. Mas, ao mesmo tempo, o
fotógrafo enquadra a imagem como se o prédio tivesse sua continuidade no espaço da
cidade, confundindo sua imagem com a vizinhança. Não há molduras. Na cena não
houve a intenção de focalizar pessoas, exceto um vulto ao longe, não aparecem árvores,
nada que possa ser comparado à altura da edificação. Esta simbologia nos remete a um
conceito de modernidade retirado do positivismo, que buscava a monumentalidade para
o prédio escolar. Por outro lado o prédio fechado expressa uma imagem de instituição
disciplinadora.
Esse caráter de instituição disciplinadora não estava explícito nos
documentos oficiais. Ao contrário, os seus textos procuravam escondê-lo. E o faziam
como estratégia para convencer aos pais, acenando a eles com a promessa de que as
crianças não cairiam na ociosidade. A elas seria oferecida uma oportunidade de
formação profissional, ou uma possibilidade de trabalho. Mas de fato encobria-se o
receio de que as crianças na rua colocariam em perigo as instituições sociais. Por isso

180
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

era preciso isolá-las enquanto recebiam o disciplinamento. No documento extraído dos


anais da Imprensa Official do Estado de Minas Geraes (1913), manifesta-se esse caráter
de encobrir o aspecto disciplinador da escola, como se a escola só ofertasse benefícios
ao aluno, pois no texto fica claro a oferta de trabalho após a conclusão da formação:

Havendo estes de se dedicar, como é natural, às profissões manuaes, é


lógico que o seu aprendizado tenha esse necessário complemento;
porquanto, logo que tenham terminado seus estudos primários, dirigir-
se-ão impreterivelmente a uma officina qualquer, onde terão de
empregar a sua actividade no exercício de uma determinada profissão
que lhes proporcione meios de subsistência para si e seus progenitores
(MINAS GERAIS, 1913a).

Imagem 7 - Sala de aulas da Escola de Aprendizes Artífices na Cidade de Goiás


Fotógrafo: Sem Identificação
Ano: Aproximadamente 1920
Fonte: Acervo IFG

O disciplinamento é perceptível na fotografia retratando um momento de


uma sala de aula da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás. Foi produzida
aproximadamente entre 1922 e 1930. Um dos aspectos que se destaca é o da ordem na
sala de aula. Alguns elementos são instigadores, como o fato de estarem presentes duas
professoras, o que nos dá a impressão de que, enquanto uma ministra a aula, a outra

181
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

observa o comportamento da turma. É a estratégia disciplinar do olhar, segundo


Foucault (1986). Esse detalhe também pode estar relacionado ao momento da
fotografia. A segunda professora pode ter sido convidada apenas para compor o cenário
ou a intenção do fotógrafo de retratar as duas únicas professoras que atuavam na escola,
naquele momento.
Nas paredes da sala percebemos desenhos de formas geométricas, esboço de
um mobiliário e a simbologia expressa na bandeira, o que nos remete à teoria
foucaultiana. A exposição aos desenhos, a ordem nas fileiras de aluno, a posição da(s)
professora(s) indicam repetição, tanto de exercícios quanto de gestos, o que
possibilitaria a concreta capitalização do tempo dos alunos, ou melhor“[...] relação entre
um objeto e a atitude global do corpo que é uma condição de eficácia e
rapidez”(FOUCAULT, 1986, p. 138). Portanto, o que fica claro é uma estratégia
disciplinar que uniformiza as atitudes. Essas estratégias vão estabelecendo um lugar de
respeitabilidade e de hábitos civilizados no espaço escolar. Aqui, percebemos como a
escola e o sujeito escolar vão se apropriando e estabelecendo relações de inclusão no
espaço da escola, para se colocarem posteriormente no espaço da cidade,
materializando, assim, os ideais republicanos de ordem e progresso, (re)produzidos pela
escola, é o chamado “espaço disciplinar”, segundo Foucault (1991), em ‘Vigiar e Punir’.
Como já apontamos, em 1910 foi inaugurada a "Escola de Aprendizes e
Artífices", na cidade de Goiás. Retomamos esse ponto pelo fato desta data estar
registrada pelo seu diretor em 1923, Leão Di Ramos Caiado, em relatório apresentado
ao Diretor Geral de Indústria e Comércio, à época. A evocação desta data, aqui, torna-se
importante para relacionarmos cronologicamente, o nascimento das Escolas de
Aprendizes Artífices, com a criação dos Grupos Escolares, que acontece em período
semelhante. Da mesma forma que os grupos escolares essa escola era criada com a
finalidade de divulgar a imagem da República, de formar o cidadão republicano,
principalmente pelo controle, pois para esses republicanos deveria nascer um novo
cidadão, era preciso conformar as mentes e os corpos segundo Foucault (1991).
Em referência a essa vinculação das Escolas de Aprendizes ao modelo de
Grupo Escolar, Pandini(2006) relata que “A Escola de Aprendizes Artífices do Paraná
seguia a perspectiva dos grupos escolares, implantados a partir da última década do
século XIX pioneiramente em São Paulo e depois instalados no Paraná e em outros
estados do país” (PANDINI, 2006, p. 56). No momento em que o Regime Republicano

182
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

buscava reconhecimento, a escola graduada significava a possibilidade de ampliar o


alcance da influência das políticas republicanas.
É importante salientar que não só os documentos oficiais, mas também o
currículo, as práticas educativas indicavam essa similaridade entre o modelo das Escolas
de Aprendizes Artífices. Assim como já apontamos, ela aparece também na arquitetura
dos prédios que abrigaram essa escola, construídos aos moldes do Grupo Escolar.
Mesmo que a fachada do prédio não reflita uma arquitetura típica do modelo de escola
padrão republicana, como é o caso do prédio da Escola de Aprendizes Artífices em
Goiás, é a forma de distribuição das turmas em salas separadas, uma sala para cada
série, a professora primária ministrando conteúdos científicos que também é padrão para
as escolas profissionalizantes da Primeira República, que a torna similar ao Grupo
Escolar.
A Escola de Aprendizes Artífices de Goiás, como não podia deixar de ser,
estava inserida em um contexto político e cultural que a identificava a uma concepção
de escola naquele período. Assim até a “distribuição das matérias por séries
constituindo verdadeira e fácil gradação do ensino entre os aprendizes, facilitando a
criação de um bem organizado grupo escolar”(PANDINI, 2006, p. 57), coincidia com a
opção pedagógica da Escola Graduada. O discurso oficial do governo republicano
tratava essa escola profissional como um espaço novo, ascético, lugar “de trabalhos
profícuos” que “afastará” as crianças “da ociosidade ignorante”, dotado de um novo
saber, é assim no texto do Decreto n.º 7.566, de 23/09/1909.

A adoção do modelo do grupo escolar pela EAAPR ocorreu


concomitantemente a sua fundação, pois o regulamento de criação
definia as Escolas de Aprendizes Artífices como de nível primário. Por
ser o modelo republicano de educação popular, a escola graduada
contava com ampla disseminação e prestígio ao passo que as EAA
ainda figuravam como novidade e careciam legitimar-se (PANDINI,
2006, p. 57).

Como podemos ver, há vinculação estreita entre os modelos das Escolas de


Aprendizes Artífices e os Grupos Escolares nos documentos oficiais da chamada
República Velha, onde se pode identificar a influência da lógica que criou os Grupos
Escolares, explícita também na arquitetura do seu prédio. A arquitetura geralmente era
inspirada no estilo neoclássico e às vezes neocolonial, dependendo do estado da
federação. Essa escolha prestou-se muito bem ao seu papel disciplinador. Por sua
simetria, ela facilitou a separação dos meninos do mundo exterior e do contato com as
183
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

meninas, atendendo a um valor cultural de então. No entanto, não era esse o único
controle a que essas construções se prestavam, vez que, dotados de uma só entrada e
saída, era possível manter o controle sobre a movimentação das crianças. Pelos motivos
até agora apresentados associamos a criação e a arquitetura das Escolas de Aprendizes
Artífices a outras escolas do mesmo período espalhadas pelo Brasil.
Para Pandini (2006) as Escolas de Aprendizes Artífices foram criadas
seguindo o modelo do grupo escolar, mas não era só isso. Essa vinculação percebia-se
também pelo fato de ser o governo do Estado o responsável pelo pagamento da
professora. Ela era uma normalista, responsável pela instrução primária. Seu salário era
mantido pelo Governo Estadual. Além da atuação e do vínculo da professora outros
elementos ligam a Escola de Aprendizes de Goiás ao modelo de escola republicana, tais
como móveis, formato da sala de aula, horários definidos para as disciplinas escolares e
o tempo de aulas rigidamente controlado.
Enfim, é importante dizer que mobiliário e utensílios escolares, mesas,
carteiras, cadeiras, piano, escrivaninhas, quadros, mapas, fotografias de diretores,
escarradeiras de louça, lousa etc., ou mesmo os documentos produzidos pelo corpo
docente, como livros de registro da vida escolar dos alunos, fotografias das solenidades
de início e encerramento de cada ano letivo; livro de assinatura de ponto de professores,
estagiários e funcionários; livro de registro de visitas; livro de registro de atividades
escolares; livro de atas de exames, livros de matrículas de alunos etc., tudo isso
aproximava as Escolas de Aprendizes Artífices do modelo de grupo escolar, além, é
claro, dos prédios escolares, a distribuição de seus espaços, o lugar dos alunos e
professores, as turmas seriadas, a repetição das rotinas ano após ano, as cores nas
paredes, os rabiscos, as pichações, o zelo com o prédio ou a falta dele, tudo isso e muito
mais, pode ser objeto de estudo para buscar aproximações entre essas instituições e o
imaginário acerca deles. Pandini (2006) assim se expressa

As reclamações acerca das condições do edifício sede da escola


iniciam-se já no ano de 1913 e se estenderão até meados de 1930,
quando finalmente é construído um amplo e espaçoso edifício, embora
este também não tenha saído isento das queixas do diretor Rubens
Klier d’ Assumpção, que reclamava a ausência de banheiros em espaço
coberto. Pedidos de verbas ou descrições em torno da necessidade de
melhorias e benfeitorias na Escola eram freqüentes (RELATÓRIOS
1913, apud PANDINI, 2006, p. 29).

184
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Desse modo, o prédio escolar e tudo que compunha seu acervo físico,
inclusive o mobiliário escolar, ganhavam uma importância até então secundarizada, pois
esses itens determinavam as formas de estudar, de ler, de sentar-se, de escrever, de
exercitar-se, de se mover, de estar no espaço da sala de aula (cf. Imagem 7). Porém
outros espaços da escola, tais como pátios, refeitórios, seu entorno, áreas de circulação,
laboratórios etc., isso tudo, sem esquecermos o próprio método de ensino, que
prescrevia a “lição de coisas”, também determinavam a forma de exercitação dos
sentidos dos alunos: tato, olfato, paladar, visão e audição e compunham aspectos do
disciplinamento dos corpos.
No final dos anos 30 do século XX a Escola de Aprendizes é desativada na
cidade de Goiás, mas não é transferida para Goiânia, pois seria inaugurado na capital
um novo prédio para uma nova escola, a Escola Técnica de Goiânia. Ele foi construído
no final da década de 30 e início dos anos 40 do mesmo século. Isto aconteceu em razão
de que a Lei Orgânica do ensino extingue também os Liceus Industriais, que seriam os
substitutos das Escolas de Aprendizes Artífices. Assim, antes de serem criados de fato,
eles viram lei morta. Enquanto isso o antigo prédio na cidade de Goiás, com sua fachada
eclética, mista de Neoclássica e Neocolonial, mesmo que modesta, voltada diretamente
para a rua e totalmente isolada do espaço em volta, torna-se obsoleto e esquecido.
Pouco se falou daquela que já fora um símbolo da escola Republicana em
Goiás. Nasceu como se seus criadores quisessem impermeabilizá-la da contaminação do
mundo incivilizado. No entanto, naquele final dos anos 30, começa a ser descartada,
junto com seu prédio, pois nascia o discurso da modernização, uma nova vertente do
mesmo positivismo que planejou os grupos escolares no passado. A escola novamente é
convocada a exercer o seu papel de mobilizadora de um novo imaginário instituinte,
dirigido agora para outra representação, sobre a modernidade. Para Souza (1998) esse
imaginário sempre é convocado no “projeto de controle da ordem social, a civilização
vista da perspectiva da suavização das maneiras, da polidez, da civilidade e da
dulcificação dos costumes” (p. 27).
Enquanto o imaginário instituinte sobre o papel da escola alimenta novas
representações, seu espaço continua sendo utilizado como instrumento da disciplina.
Para Foucault (1987), a escola é vista como uma instituição de seqüestro, assim como
os presídios, os hospícios e os quartéis. É criada para controlar não só o tempo dos
indivíduos, mas também os seus corpos, para que possa extrair deles o máximo de
produção e de forças. Para o autor isso não é feito claramente e nem instantaneamente,

185
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

mas de maneira gradativa e permanente, por meio da organização espacial, dos regimes
disciplinares, do controle de movimentos e de horários, por meio de rituais de higiene,
de regularização da alimentação, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de
higienizar o corpo, isto é, formá-lo, corrigi-lo, qualificá-lo, fazendo dele um ente capaz
de trabalhar.
Pelo que apresentamos até aqui é possível perceber que a criação da rede de
Escolas de Aprendizes Artífices como representação de uma nova forma escolar,
agrupando e produzindo um rol de imaginários em torno da instituição escolar, buscou
criar uma nova maneira de perceber o trabalho. A escolarização para o trabalho, em sua
fase de legitimação social, buscava produzir e legitimar uma nova escola
profissionalizante no país, com novas idéias e novas práticas, visando, com o processo
de escolarização, à disciplinarização e à legitimação do trabalhador. No entanto essas
escolas são transformadas em Liceus Industriais, em todos os estados. Porém esses
liceus não chegam a ser materializados. No caso do Estado de Goiás, o mais instigante é
o apagamento da memória da Escola de Aprendizes Artífices de Goiás, que sucedeu
após a criação do Liceu Industrial de Goiás.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A INFORMAÇÃO GOYANA, vol. 1, nº 4, de 15 de novembro de 1917. Arquivo


Histórico Estadual de Goiás.

BRETAS, Geanesco Ferreira. História da Instrução Pública em Goiás. Goiás: Editora


da UFG,1991.

BRASIL. Decreto nº. 7.566 de 23 de setembro de 1909. Cria nas Capitais dos Estados
da República Escolas de Aprendizes Artífices para o ensino profissional primário e
gratuito. Coleções de Leis do Brasil. Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 31 dez. 1909.
Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2014.

BUFFA, E.; NOSELLA, P. Educação negada: introdução ao estudo da educação


brasileira contemporânea. São Paulo: Cortez, 1991.

186
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

CUNHA, Luiz Antônio. O ensino profissional na irradiação do industrialismo. São


Paulo: UNESP;/Brasília/Flacso, 2000.

______. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: UNESP,


2005.

______. A universidade crítica: o ensino superior na República Populista. Rio de


Janeiro: Francisco Alves, 1989.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios. Passo Fundo:
EUFPF, 2000.

______. (Org.). A infância e sua educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

______. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na
primeira republica. Passo Fundo: UPF, 1996.

______. Dos pardieiros aos palácios: forma e culturas escolares em Belo Horizonte
(1906/1918). Belo Horizonte, 1996. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Minas Gerais.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VAGO, Tarcísio Mauro. João Pinheiro e a
Modernidade pedagógica. In: Lições de Minas: 70 anos da Secretaria de Educação,
2000.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os


espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil.
Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 14, p. 19-34, maio/ago., 2000.

FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. Infância no sótão. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

187
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2005.

JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET,


Denise (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: Uerj, 2001.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática,1989.

KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. São


Paulo: Hucitec, 1998.
KUNZE, Nádia Cuiabano. A Escola de Aprendizes Artífices de Mato Grosso (1909-
1942). 2005. Dissertação (Mestrado em Educação)-Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, 2005.

MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

MINAS GERAIS. Leis Mineiras. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de


Minas Geraes, 1906/1916.

O GOYAZ - Orgão Democrata, Goyaz, Anno XXV, 08/ 01/ 1910, nº. 1097, p. 01.

PANDINI, Silvia. A Escola de Aprendizes Artífices do Paraná: “viveiro de homens


aptos e úteis” (1910-1928). Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, Linha de Pesquisa: História e Historiografia da Educação, Universidade
Federal do Paraná. 2006.

QUELUZ, Gilson Leandro. Concepções de ensino técnico na República Velha (1909-


1930). Curitiba, 2000.

RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar.


Campinas: Autores Associados, 2003.

188
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

ROCHA, Fernanda Cristina Campos da. A Reforma João Pinheiro nas práticas
escolares do Grupo Escolar Paula Rocha/Sabará (1907-1916). Belo Horizonte, 2008.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas
Gerais.

SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária


graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.

VEIGA, Cynthia Greive; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Belo Horizonte: a escola
e os processos educativos no movimento da cidade. Belo Horizonte, Varia Historia, n.
18, set. de 1997.

189
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

IMAGENS DA ORQUESTRA FILARMÔNICA EM GOIÁS: UMA


BREVE RETROSPECTIVA

Othaniel Pereira de Alcântara Júnior

A motivação para este estudo, mesclado de história e memória, teve origem


durante a leitura de um texto publicado no dia 25 de dezembro de 2015, na página do
“Guia Folha”, hospedado no site da UOL, conhecido provedor de internet. Lá, foi
divulgada a relação dos melhores concertos nacionais daquele ano, como uma das
categorias da enquete “Melhores do Ano”, organizada pelo Jornal “Folha de São Paulo”.
O resultado da votação do público e jurados especializados indicou a apresentação da
Orquestra Filarmônica de Goiás (OFG), realizada sob a regência do inglês Neil
Thomson, no mês de julho, na Sala São Paulo, na cidade de São Paulo, como um dos
destaques da temporada. Ao justificar seu voto na referida enquete, o jornalista Manuel
da Costa Pinto, um dos jurados, afirmou que a OFG, após a sua segunda turnê nacional
“credenciou-se como uma das melhores orquestras brasileiras”.
Trata-se, sem dúvida, do ápice da trajetória da Orquestra Filarmônica de
Goiás. É verdade, que esse passo foi bem planejado. Para tanto, foi necessária uma
profunda reestruturação em 2012, que incluiu, entre outros feitos, a renovação e
ampliação do quadro de músicos diante da oferta de salários mais atraentes, melhorias
na infraestrutura, além da implementação de um calendário fixo de apresentações
musicais. Não obstante, uma preocupação vem à baila: até quando a atual estrutura da
OFG será mantida? Esse questionamento justifica-se por dois motivos. O primeiro é que
sabemos que um grupo instrumental com essas características depende do apoio
governamental para sua sobrevivência. E o segundo é decorrente do próprio histórico
dessa Orquestra, que nasceu em 1980, a partir dos esforços do maestro Braz Wilson
Pompeu de Pina Filho (1946-1994) com o apoio oficial do Governo do Estado de Goiás.
É relevante dizer que essa orquestra, de 1980, não nasceu apenas do esforço
de Braz de Pina e da vontade política do Governador do Estado de Goiás daquela época,
Sr. Ary Ribeiro Valadão. Na verdade, ela representou a concretização de um antigo


Othaniel P. de Alcântara Jr. Mestre em Musicologia pela Universidade Federal de Goiás. Professor da
Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e Conselheiro Estadual de Cultura. Correio eletrônico:
othaniel.alcantara@gmail.com

190
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sonho que remonta a meados da década de 1930, quando chegaram os primeiros


músicos à recém-nascida Goiânia.
Assim, inicialmente, será apresentado neste trabalho, um histórico das
primeiras manifestações musicais na Capital para, sequencialmente, serem registradas
as várias e sucessivas tentativas, nas décadas de 1930 a 1970, de dotar Goiânia de uma
grande orquestra profissional. Ainda, na parte final do texto, há um relato, muitas vezes
tendenciosa a uma opinião pessoal, sobre a tão esperada criação de uma orquestra, fosse
ela sinfônica ou filarmônica106. Procurou-se evidenciar também, sua tumultuada
caminhada até seu reconhecimento pela crítica nacional, fato já mencionado na
Introdução.
A redação que se segue tem como fontes, inicialmente, alguns livros, um
trabalho acadêmico e documentos constantes do acervo da família do meu ex-professor
na Universidade Federal de Goiás, o violinista Crundwald Costa (1916-2002). Tais
fontes contemplam a história da música orquestral goiana, até meados da década de
1980. A partir de então, entram em cena as apontamentos do autor, este que foi
violinista da Orquestra Sinfônica de Goiás (OSG) entre os anos de 1981 e 1991, bem
como as informações contidas em recortes de jornais e programas de concertos
pertencentes ao seu arquivo pessoal. Também foram explorados documentos e relatos
dos colegas Marshal Gaioso Pinto e Ana Elisa Santos Cardoso, que têm dado
prosseguimento à luta pela manutenção e busca pela excelência das orquestras
profissionais da cidade.

1. A prática musical em Goiânia na década de 1930

Os responsáveis pelas primeiras apresentações musicais na região


destinada à construção de Goiânia foram músicos de diversas cidades do interior
goiano. Segundo relato de Iúri Rincon GODINHO (2013, p.80), a primeira missa
realizada por aqui, em 27 de maio de 1933, foi musicada pelas professoras e alunas do

106
No passado, dizia-se que uma orquestra sinfônica era composta por músicos remunerados enquanto a
orquestra filarmônica era formada por músicos amadores. Também dizem que a diferença está na maneira
como são mantidas. A primeira, pelo poder público, enquanto a segunda, pela iniciativa privada. Esta
definição justifica-se pelo fato de que, no início do Século XIX, comerciantes de algumas cidades da
Europa organizaram sociedades culturais que mantinham orquestras. Atualmente, não existem diferenças,
exceto o nome. Na prática, parte das filarmônicas de hoje não sobreviveriam sem financiamento público.
As orquestras sinfônicas e as filarmônicas possuem uma estrutura definida: naipe das cordas, naipe das
madeiras, naipe dos metais etc. Sua formação pode comportar entre 60 e 120 músicos.

191
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

tradicional Colégio Santa Clara107, instituição sediada na cidade vizinha de Campinas,


também conhecida por Campininha das Flores, hoje bairro de Goiânia. Para essa missa,
acrescenta Márcia Regina (2010, p.63), as alunas do colégio participaram, inclusive, da
roçagem do local onde seria construída a futura capital.
GODINHO (2013, p.88) relata, também, que uma segunda missa campal foi
celebrada em 24 de outubro do mesmo ano, no local onde hoje se encontra a Praça
Cívica. Data do lançamento da pedra fundamental da cidade que apenas em 1935
recebeu o nome de Goiânia.
Nesse dia, segue o autor, tão logo o sol saiu no horizonte, a região acordou
com muita música. Tratava-se de sons de bandas variadas de cidades do interior tocando
marchinhas populares. Mais tarde, terminada a parte religiosa, uma Banda de Música de
Campinas, regida por José Ferreira de Araújo, conhecido como Zé do Ó 108, executou o
Hino Nacional Brasileiro.
Após a instalação do Município, em 20/11/1933, vários outros músicos,
oriundos principalmente de Vila Boa, chegaram à região visando explorar o novo
mercado. Assim, mesmo antes de Pedro Ludovico Teixeira assinar o decreto de
transferência do Governo Estadual para Goiânia (23/03/1937), bandas de música
popular ou jazz já abrilhantavam eventos sociais e cerimônias de inauguração de
importantes construções na cidade.
Quanto à implantação da música clássica na nova capital, o marco
importante foi a transferência do Lyceu de Goyaz, em 1937. A instituição criada em
1847, de acordo com a pesquisadora Maria Augusta Calado de Saloma RODRIGUES
(1982, p.36), já no ano de 1848, passou a contar com a disciplina “Música” em seu
currículo. Sobre o assunto, Belkiss Spencière Carneiro de MENDONÇA (1981, p.48)
afirma que, em 1938, Joaquim Edison de Camargo transferiu-se para Goiânia, onde
trabalhou com orquestras e corais eruditos. Ele, inclusive, lecionou
durante quarenta anos no respeitado e já mencionado Lyceu de Goyaz.

107
Instituição fundada na cidade de Campinas/GO, pelas irmãs Franciscanas vindas da Alemanha, em
1921 a pedido dos padres Redentoristas. Elas iniciaram seu trabalho de instrução, educação e
evangelização em janeiro de 1922. Inicialmente, o espaço funcionou como internato para moças e, a partir
de 1926, também como Escola Normal para formação de professoras. Desde a fundação, além das aulas
de canto, ofereceram-se aulas de instrumentos musicais como, por exemplo: piano, órgão e violino.
(ORTENCIO, 2011, p. 215 a 217).
108
Zé do Ó (José Ferreira de Araújo) é considerado o músico mais antigo da região. Transferiu-se de
Pirenópolis para a Cidade de Campinas/GO (atual bairro de Goiânia) no final do século XIX. Naquela
cidade histórica, foi instrumentista da Banda de Música “Euterpe”, dirigida pelo ilustre maestro Antônio
da Costa Nascimento (Tonico do Padre). (PINA FILHO, 2002, p.12)

192
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Os cursos de canto e instrumentos musicais (piano, violino, bandolim,


violão, acordeon, harmônio e harpa), ministrados pelas Irmãs do Colégio Santa Clara
(PINA FILHO, 2002, p.147), também contribuíram muito para o desenvolvimento da
música clássica na região. Outro acontecimento importante foi a criação do Curso de
Música e do Coral na Escola Técnica Federal de Goiás, dirigidos por Nair de Moraes
(1945) e Edméa Camargo, a partir de 1945. Destacaram-se, ainda, iniciativas como as
apresentações musicais “ao vivo” na primeira emissora de rádio de Goiânia, a “Rádio
Clube”, fundada em 05/07/1942 (atual Rádio 730) e outras como a “Brasil Central”, a
partir de 1950. A década de 1940 viu surgir, igualmente, vários cursos particulares de
música erudita oferecidos por nomes como: Maria Angélica da Costa Brandão (1880-
1945), a “Nhanhá do Couto”, pela sua neta Belkiss Spencière de Carneiro de Mendonça
(1928-2005), por Crundwald Costa (1916-2012) e por Érico Pieper109.

2. As orquestras amadoras de Goiânia

A luta pela implantação de uma orquestra erudita profissional em Goiânia


data do final da década de 1930. Várias tentativas foram feitas nesse sentido. Entretanto,
a falta de mão de obra especializada e as dificuldades financeiras das instituições
musicais e do poder público adiaram esse sonho por quatro décadas.

2.1 Os primeiros conjuntos musicais eruditos em Goiânia (1938)


Logo após chegar a Goiânia com o Lyceu, o violinista e compositor
Joaquim Edison de Camargo (1900-1966) organizou, a partir de 1938, uma pequena
orquestra e um coral na instituição. Na verdade, de acordo com Braz Wilson Pompeu de
PINA FILHO (2002, p.20), foi uma continuação do seu trabalho realizado em Vila Boa,
inclusive utilizando vários músicos oriundos daquela cidade. Os conjuntos musicais e
corais organizados pelo professor Joaquim Edison no Lyceu e no Instituto Federal
tiveram destaque no cenário musical goianiense nos anos seguintes.

109
Ao que tudo indica, o trabalho de Érico Pieper em Goiânia era bastante conhecido e respeitado.
Todavia, não existem muitas informações sobre esse músico. Sabe-se que era um estrangeiro (alemão,
talvez), residente em Goiânia desde 1943 e que por aqui criou conjuntos musicais populares no estilo
orquestra de salão, além de outros semieruditos. Segundo BELKISS (2006, p.31-34), foi proprietário do
Restaurante Bambo, local de importante presença musical em Goiânia naquela época. Na década de 1950,
transferiu-se para Brasília, onde fundou e dirigiu a Orquestra Brasiliense de Salão.

193
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

2.2 A Orquestra da Sociedade Pró-Arte e o sonho de criação de uma


Sinfônica (1945)
Uma nova etapa na vida cultural de Goiânia iniciou-se em 1945, com a
fundação da Sociedade Pró-Arte de Goiás pelo arquiteto, escultor, pintor e músico
paulista José Amaral Neddermeyer (1894-1951), que trabalhava nas obras de construção
da nova cidade.
O escolhido para dirigir o Departamento de Música da entidade, segundo
Maria Helena Jayme BORGES (1998, p.84) foi o professor e compositor Érico Pieper
que, desde 1943 regia e coordenava uma orquestra de salão em Goiânia.
Desta forma, surgiu a Orquestra da Pró-Arte que envolveu profissionais de
seu conjunto musical e músicos da orquestra do professor Joaquim Edison de Camargo,
vinculada ao Liceu de Goiânia. Para ocupar a função de solista foi convidado o
violinista Crundwald Costa (1916-2002), da Orquestra de Franca/SP. Ele chegou a
Goiânia em 08 de setembro de 1945 e ficou mais conhecido por aqui como Professor
“Costinha”.
PINA FILHO (2002, p.35) esclarece que a Orquestra da Pró-Arte, de fato,
era um pequeno conjunto composto, inicialmente, por dez elementos e dirigido pelo
piano-guia de Érico Pieper. O grupo possuía um caráter também didático. Havia nele
uma preocupação com a informação ao público a respeito das artes, bem como com a
formação de novos artistas.
Contudo, percebe-se nas informações disponibilizadas por PINA FILHO
(2002, p.37) que, naquele momento, já existia a ideia da criação de uma grande

194
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

orquestra em Goiânia. Registra ainda esse musicólogo, que várias das apresentações
promovidas pela entidade “tiveram por finalidade angariar fundos para a aquisição de
instrumentos musicais para a criação da orquestra sinfônica”.
No entanto, o projeto acabou sendo adiado, visto ter a Sociedade Pró-Arte
encerrado suas atividades em 1948. Coube, então, ao violinista Crundwald Costa a
tarefa de manter os músicos em atividade. Em 1948 ou 1949, seu conjunto adotou o
nome “Orquestra de Amadores”. É importante ressaltar que o “Professor Costinha”,
além de violinista na Sociedade Pró-Arte, já havia criado, juntamente com o pianista
Érico Pieper, um curso de música (particular), com sede no Museu de Goiânia, em
1945. Assim, vários de seus alunos, ao longo do tempo, foram sendo integrados ao
grupo remanescente.
No final de 1949 e início de 1950, o grupo do Professor “Costinha”
mostrava-se bem desiquilibrado na sua formação instrumental. Contava, à época, com
21 violinos, um violoncelo, um contrabaixo, uma flauta, uma clarineta, um saxofone,
um trompete, dois trombones e um piano.

2.3 A Orquestra da Associação Goiana de Música - AGM (1950)

O ano de 1950 marca o início de uma nova etapa da música orquestral em


Goiânia: o ano de criação da Associação Goiana de Música (AGM). O estatuto dessa
sociedade civil assinado pelo seu Diretor-Presidente, Alaor Braga, na reunião do dia 5
de junho de 1950, foi publicado no Diário Oficial nº 6.459 de 23 de junho de 1951. A
frase abaixo, extraída desse estatuto, clarificava a principal finalidade da iniciativa:

195
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

“desenvolver na sociedade de Goiânia o gosto pela música, através de uma orquestra


sinfônica”.
Nesse diapasão, uma das primeiras medidas tomadas pela diretoria da
AGM, acerca disso, foi incorporar a “Orquestra de Amadores” regida pelo sócio
fundador Crundwald Costa à Entidade. A ideia de criação de uma orquestra profissional
erudita passou pela tentativa da AGM de sensibilizar o Poder Público Estadual para a
necessidade de apoiar a criação de uma Sinfônica no Estado de Goiás, oferecendo um
concerto ao Governador do Estado, Sr. Jerônimo Coimbra Bueno. Ao que tudo indica a
referida tentativa não obteve sucesso.
O grupo da Associação Goiana de Música esteve sob a regência de
Crundwald Costa até 1952, quando, conforme depoimento do próprio à pesquisadora
Maria Helena Jayme Borges, “devido a problema de saúde, teve que se afastar da
direção da orquestra” (BORGES, 1998, p.88). Como consequência de seu afastamento,
o “movimento” Orquestra Sinfônica foi interrompido mais uma vez.
Mas, o Professor “Costinha” voltaria, tempos depois, a reger. Alguns anos
mais tarde, ele passou a lecionar no Conservatório de Música da UFG 110,
transformando-se na mais importante referência do ensino de violino no Estado, até
janeiro de 1991, ano de sua aposentadoria compulsória na Universidade Federal de
Goiás. No ano seguinte, alguns músicos daquele grupo vinculado à AGM retomaram os
trabalhos da orquestra. Em 1954, a regência do grupo foi entregue a Jean François
Douliez, que havia chegado a Goiânia naquele ano. Douliez foi convidado a participar
da formação e fundação do Instituto de Música da Escola Goiana de Belas Artes
(EGBA), que passou a funcionar a partir de 1955. Era um respeitado músico, educador,
compositor, violinista, violoncelista e maestro belga. Sobre sua decisão de aceitar a
empreitada na terra dos Goyazes111, diria seu colega Heitor Villa-Lobos: “Meu bom
amigo Douliez: o que você vai fazer no distante oeste brasileiro, no meio dos índios? É

110
O Conservatório de Música da UFG nasceu como um departamento da Escola Goiana de Belas Artes
(E.G.B.A), em 1955, a partir da iniciativa de seu diretor, prof. Luiz Curado e dos professores de música
Jean Douliez e Belkiss Spencièri. Esse departamento tornou-se autônomo em 1956. Teve seu nome
alterado para Conservatório Goiano de Música e transferiu-se do Museu de Goiânia para o prédio da
antiga Fac. de Direito, na Rua 20, Centro. Em 1957, mudou-se para uma casa alugada na Av. Tocantins.
(PINA FILHO, 2002, p.54). Em 1960, foi anexado à Universidade Federal com o nome de Conservatório
de Música da UFG. Posteriormente, trocou de nome mais três vezes: Instituto de Artes da UFG, em 1971
e Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC/UFG), em 1996. (Site da EMAC/UFG).
111
Goyazes é o nome usado para designar os índios homenageados pelos portugueses ao fundar a cidade
de Vila Boa de Goyaz, conhecida atualmente como Goiás Velho, em 1736.

196
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

melhor você me dar seus dois violinos que eu te dou dois revólveres no lugar” (In:
BITTENCOURT, 2008, p.18).

2.4 A Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de Goiás (1956)


Jean Douliez, além de lecionar no Instituto de Música, trabalhou
intensamente no sentido de tornar realidade o sonho de criação de uma orquestra, com
caráter sinfônico, na cidade de Goiânia. Assim, em 04 de setembro de 1955, o Jornal “O
Popular” noticiou que o maestro, então Diretor do Instituto de Música da EGBA,
solicitava ao Prefeito de Goiânia, Sr. João de Paula Teixeira, cooperação para a criação
de uma Orquestra Sinfônica na Capital (BITTENCOURT, 2008, p.37). Pleito não
atendido.
Longe de desistir, resolveu trilhar outro caminho. Então, ainda no mesmo
ano, em 29 de setembro, criou, em parceria com Jacy Siqueira, a Sociedade de
Concertos Sinfônicos de Goiás. A entidade tratava-se de uma sociedade civil com
personalidade jurídica, cujo estatuto, publicado no Diário Oficial de 12/02/1956, previa
a criação da tão sonhada orquestra, que seria chamada, equivocadamente, de Sinfônica
de Goiás. Justifica-se o equívoco porque, de fato, essa nunca passou de um grupo
menor, de câmara.
Deste modo, em 1956, o movimento “Orquestra Sinfônica” foi reiniciado.
Mais uma vez, um grupo de músicos amadores se reunia, dando continuidade ao
trabalho implantado por Joaquim Edison de Camargo, Érico Pieper e Crundwald Costa,
em anos anteriores.

197
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Os ensaios, sob a direção do maestro Jean Douliez, eram realizados no


prédio da antiga Faculdade de Direito (Rua 20), sede do Conservatório Goiano de
Música (CGM), instituição particular que nasceu por ocasião do desmembramento do
Instituto de Música da Escola Goiana de Belas Artes, em 1956.
Deve-se ressaltar que o CGM foi federalizado, através da Lei nº 3.843 de
14/12/1960, publicada no Diário Oficial da União de 20/12/1960 (PINA FILHO, 2002,
p.86). Ao se transformar em uma nova unidade da Universidade Federal de Goiás, o
então CGM teve seu nome modificado para Conservatório de Música da UFG. A
Instituição continuou a abrigar a Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de
Goiás, em sua nova sede situada na Avenida Goiás.

2.5 A Orquestra Feminina do Conservatório de Música da UFG (1959)


Certa vez, durante uma reunião do Corpo Docente do CGM, confidenciou
Belkiss Spencière, naquela época diretora da instituição, que “O professor Jean Douliez
apresentou-se desanimado, triste, queixando-se da impossibilidade de conseguir um
bom rendimento nos ensaios da Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de
Goiás: pela carência de músicos, sua frequência irregular e pontualidade não
observada”. (MENDONÇA, 2006, p.58). Para a professora Belkiss, tal situação
apresentava-se de difícil solução. Ora, os instrumentistas não recebiam remuneração
pelo trabalho na orquestra. Além disso, eram músicos amadores da cidade que tocavam
pelo simples prazer de tocar.

198
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Percebendo que o maestro estava vencido e desalentado, a então diretora


sugeriu um novo desafio: fundar uma orquestra feminina, formada apenas por alunas
matriculadas no CGM. Esse conjunto coexistiria com a Orquestra da Sociedade de
Concertos Sinfônicos de Goiás. Cabe dizer que àquela época, a grande maioria dos
matriculados na instituição constituía-se de pessoas do sexo feminino. O desafio foi
aceito e logo foram providenciados os recursos para montar toda a estrutura. As alunas,
quase todas pianistas, foram incentivadas a estudar um segundo instrumento, adquirido
pela Instituição. A iniciativa partiu das próprias professoras. A diretora do CGM, por
exemplo, escolheu estudar violoncelo. Nascia, assim, a Orquestra Sinfônica Feminina
(OSF).
Os primeiros ensaios da OSF foram sofríveis! Por outo lado, lembra
MENDONÇA (2006, p.59), “A alegria estava estampada em todos os rostos” e o
entusiasmo do maestro Jean Douliez era visível. Em 07 de dezembro de 1959,
aconteceu o primeiro concerto, que contou com 49 moças, no auditório da Escola
Técnica Federal de Goiás. Por se tratar de uma novidade, a Orquestra Feminina foi
notícia em jornais e revistas de quase todo o Brasil e, também, em alguns países da
Europa. A partir disso, os convites para apresentações tornaram-se constantes. Uma das
importantes apresentações aconteceu em Belo Horizonte, durante uma homenagem
prestada ao Sr. Juscelino Kubitschek, então Presidente da República.
Para MENDONÇA (2006, p.59), “foi um bom sonho, enquanto durou”. A
autora justifica-se: “os namorados e noivos de suas integrantes começaram a não ver
com bons olhos aquele conjunto musical que, além de lhes roubar a atenção das eleitas
em todas as noites da semana, até já os separava para as viagens”. Em consequência
disso, o grupo não tardou a perecer.
Outra versão para o fim precoce da Orquestra Feminina e também da
Sinfônica de Goiás, em 1961, foi contada pelo professor Braz Wilson Pompeu de Pina
Filho:

O fato principal que determinou seu encerramento [Orquestra Sinfônica de


Goiás], assim como o da Orquestra Sinfônica Feminina, logo no ano de 1961
deveu-se a um concerto em que o maestro [Douliez] apresentava as suas
duas orquestras, por ocasião de um seminário que reunia pessoas de várias
partes do Brasil. Naquele concerto, a Orquestra Feminina, que ainda não
havia conseguido um nível razoável de aptidão, e que despertava curiosidade
mais pelo seu caráter inovador e plástico, a reação foi de “choque” contra os
ouvidos de um público que não entendeu aquele tipo de trabalho. Assim,
inúmeras frases desairosas foram rabiscadas nos guardanapos da sala de

199
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

jantar, acompanhadas de muitas outras manifestações de desapreço por parte


do público. Os componentes da Orquestra Sinfônica de Goiás [grifo nosso]
decidiram, a partir desse incidente, não participar mais da Sociedade de
Concertos Sinfônicos. (PINA FILHO, 2002, p.71)

De fato, apenas a Orquestra Feminina encerrou suas atividades naquele dia.


Já em relação ao movimento “Orquestra Sinfônica”, poderíamos dizer que sofreu apenas
um enfraquecimento. Entre 1961 e 1962, o maestro Levino de Alcântara, um músico
pernambucano que trabalhava em Anápolis desde 1957, tentou reativar a extinta
Sinfônica de Goiás, aquela vinculada à Sociedade de Concertos Sinfônicos de Goiás.
Entretanto, Levino de Alcântara não obteve êxito. Assim, devido à falta de
recursos e diante de um quadro pouco animador no campo artístico, resolveu transferir-
se para Brasília. Lá, ele se tornou o responsável pela criação da Escola de Música e da
primeira Orquestra Sinfônica do Distrito Federal.
Com o fim da Sociedade de Concertos Sinfônicos de Goiás, o Conservatório
de Música da Universidade Federal de Goiás absorveu a Sinfônica. Essa se reuniu mais
algumas vezes sob o comando de Jean Douliez, já com o nome de Orquestra Sinfônica
da UFG.
Em Goiânia, Jean Douliez foi responsável também pela criação, em 1955,
de um quarteto de cordas, no qual tocou violoncelo; foi diretor do movimento
“Juventude Musical Brasileira - Setor de Goiás”, a partir de 1957. Fundou ainda, em
1957, uma orquestra chamada “Alvorada”, que prestou muitos serviços à cultura goiana,
com a apresentação semanal em um programa na Rádio Anhanguera. No entanto, as
atividades do maestro na cidade foram encerradas, definitivamente, com seu retorno à
Bélgica, em 1965.

2.6 A Orquestra Sinfônica da UFG


Após o retorno do professor Jean Douliez para a sua terra natal, o
Conservatório de Música fez várias tentativas, mal sucedidas, visando reorganizar a
chamada “Orquestra Sinfônica da UFG”. Ainda em 1965, segundo BORGES (1998,
p.90), a referida orquestra foi novamente dirigida pelo maestro Crundwald Costa.
Naquela época, os músicos começaram a receber uma espécie de bolsa, no valor de um
salário mínimo por mês. Em 1968, sob a supervisão da Professora Maria Lucy da Veiga
Teixeira, o grupo chegou a ser regido pelo Professor Estércio Marquez Cunha (PINA
FILHO, 2002, p.94). A estreia desse maestro aconteceu no dia 20 de agosto. O Conjunto

200
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

instrumental contou, naquela data, com 23 instrumentistas. Por motivos até agora
desconhecidos, o grupo não reiniciou seus trabalhos no ano de 1969.
O Conservatório de Música, de acordo com PINA FILHO (2002, p.94), nos
oito anos seguintes, contou apenas com o trabalho contínuo do Professor “Costinha” no
ensino de instrumentos de cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), além de
seus ensaios do conjunto estudantil. Com esse grupo de alunos é que provavelmente ele
iniciou mais uma vez, em 1973, um trabalho em prol da Sinfônica. Crundwald Costa
teria convidado o Professor Braz Wilson Pompeu de Pina Filho, segundo seu próprio
relato no livro de sua autoria “Memória Musical de Goiânia”, a assumir a regência da
orquestra de estudantes por ele criada na instituição, esta que, a partir de 1971, passou a
chamar-se Instituto de Artes (IA/UFG).

2.7 A Orquestra Sinfônica de Goiânia (1973-1974)


A partir do convite do Professor “Costinha” e do apoio de Belkiss
Spencière, Braz de Pina iniciou um trabalho intenso que acabou permitindo a formação
e continuidade de uma grande orquestra. Dessa forma, o mencionado convidado
transformou-se em mais um nome a investir no campo da música sinfônica. Naquela
época, era apenas um aluno do Instituto de Artes, Instituição nascida por meio da fusão
do Conservatório de Música com a área de artes plásticas. Mesmo assim, arregimentou
professores e alunos de instrumentos de sopro da Escola, além dos músicos de sopro
(madeiras e metais) da Banda de Música da Prefeitura de Goiânia, da qual era diretor e
regente desde 1972.
O resultado foi uma pequena orquestra que chegou, segundo relato do
próprio maestro ao Jornal “O Popular” de 08/08/1988, “aos trancos e barrancos, a
executar a Sinfonia nº 6 de J. Haydn, algumas canções orquestradas de Fritz Kreisler, a
Abertura Egmont de Beethoven e a Marcha Militar de Schubert.” A primeira
apresentação do grupo sob a regência de Braz de Pina, ocorreu em 22 de outubro de
1973 nas dependências do Instituto de Artes da UFG, em comemoração ao 40º
aniversário da cidade de Goiânia.
Porém, a Orquestra Sinfônica de Goiânia, como ficou conhecida, teve vida
curta. Em meados de 1974, o próprio maestro dispensou o grupo de sopros oriundo da
Banda Municipal, sob a alegação de falta de condições técnicas e de apoio material.
Mesmo com o fim da parceria entre a Universidade Federal de Goiás e a Prefeitura de

201
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Goiânia, a seção de cordas do Instituto de Artes continuou funcionando com o nome de


Orquestra de Cordas da UFG.

Nos restante da década de 1970 e nos anos 1980, estiveram à frente desse
grupo de cordas do IA/UFG, coordenando ou regendo-o, os professores Crundwald
Costa, Braz Wilson Pompeu de Pina Filho, Heloisa Barra Jardim, Maria Lucy da Veiga
Teixeira, Luiz Graciliano Sales e Jorge Armando Nogueira Nunes. Outros grupos foram
formados nas décadas seguintes. Um deles foi organizado no início da década 1990
pelos professores Othaniel Pereira de Alcântara Jr. e Fernanda Albernaz do Nascimento,
com a regência do promissor aluno da Instituição, o clarinetista Marshal Gaioso Pinto.
Apesar do desmanche, Braz de Pina não desistiu de seu objetivo. Apoiado
por Belkiss Spencière, então Diretora do IA/UFG, procurou uma solução para o
problema técnico-financeiro da orquestra. Braz de Pina sabia que Sociedades
particulares não tinham condições de manter um trabalho com essas características.
Com base nisso, passou a antever que a solução para o problema seria um convênio
entre Universidade Federal, Município e Estado. A proposta foi bem aceita. Entretanto,
logo num primeiro momento, esbarrou-se nos entraves burocráticos. Por essa razão, a
realização do sonho foi adiada para o início da década seguinte.
O passo subsequente foi fortalecer o trabalho realizado no Instituto de Artes,
na área de música de conjunto. Nos anos de 1977 e 1978 foram realizados recitais de

202
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

grupos menores de sopros e de cordas. Um desses conjuntos foi a Orquestra de Câmara


Oitocentista, criado em fevereiro de 1979 e regido por Braz de Pina até 31 de março de
1980. Esse grupo de músicos, praticamente formado por alunos e professores da
Instituição, constituiu-se no embrião da Sinfônica de Goiás, a primeira Orquestra
profissional finalmente criada no Estado.

3. A era do profissionalismo

Após mais de trinta anos de luta de grupos ligados à música erudita e à


cultura de Goiás, finalmente, o poder público passou a investir, de forma considerável,
na música sinfônica. Todavia, o desafio nas décadas seguintes passou a ser a luta pela
continuidade desse sonho.

3.1 A Orquestra Sinfônica de Goiás (1980-1987)


No decorrer do primeiro semestre de 1980, a montagem da Orquestra
Sinfônica profissional foi intensificada. PINA FILHO (2002, p.111) revela que, no mês
de junho, a Orquestra da UFG, acrescida de alguns músicos amadores da cidade, passou
a realizar ensaios regulares no segundo andar do Museu Zoroastro Artiaga, na Praça
Cívica.
Paralelo a isso, os cargos de músico da Fundação Cultural foram criados
pelo despacho governamental nº 555, de 10 de junho de 1980. Enquanto aguardava a
contratação dos instrumentistas, o Presidente dessa Fundação, o poeta e músico Jacy
Siqueira (1935-2010), providenciava a aquisição de instrumentos que faltavam à
orquestra.
O grupo chegou a fazer algumas apresentações nos meses seguintes, mas
apenas em 11 de novembro, via Portaria nº 147, de 24 de novembro, o Governador Ary
Valadão autorizou a contratação dos 47 heroicos músicos, além de seu maestro titular,
Braz de Pina. Estava criada, finalmente, a Orquestra Sinfônica de Goiás (OSG), depois
de várias e frustradas tentativas.
O primeiro concerto oficial da recém-criada orquestra aconteceu na manhã
do dia 19 de outubro de 1980, no Centro de Tradições Goianas, localizado no Edifício
Parthenon Center, Goiânia, para uma plateia de aproximadamente 200 pessoas.
Em agosto de 1981, fui convidado pelo maestro Braz de Pina a integrar a
OSG. Eu tinha 13 anos de idade e fazia o Curso Técnico de Violino, oferecido pelo

203
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Instituto de Artes (atual EMAC/UFG) que, naquela época, ocupava parte das instalações
do prédio da Faculdade de Engenharia, na Praça Universitária. O convite foi feito nas
dependências daquela instituição. Não me lembro o dia da semana ou do mês. Certo é
que, na segunda-feira seguinte, já passei a ensaiar com o grupo no Museu Zoroastro
Artiaga. Alguns dias depois, mais precisamente na noite do dia 16 de outubro, no
Centro de Tradições Goianas (Ed. Parthenon Center), participei de um concerto com a
Sinfônica. Aquela foi a primeira de centenas de apresentações das quais participei até
1991, quando pedi demissão para assumir o cargo de professor na Escola de Música e
Artes Cênicas da UFG (antigo Instituto de Artes).
Com a incorporação de mais alguns músicos, no ano de 1981, a OSG
tornou-se a primeira orquestra, criada em Goiânia, capaz de executar um repertório
verdadeiramente sinfônico.
Contudo, em dezembro de 1985, na Praça Cívica, foi realizado o último
concerto da Orquestra Sinfônica de Goiás, sob a direção de Braz de Pina. Em março do
ano seguinte, o regente divulgou uma carta aberta ao povo goiano e, no final desse
documento, o maestro comunicava que havia solicitado seu afastamento da OSG, a
partir do dia 02 de março. No final desta carta explicitou os motivos: por estar

(...) instado pelo cansaço de tentar conseguir alguma coisa de útil de


uma administração cultural cega aos seus propósitos naturais (...).
Vejo meu trabalho impedido pela obtusidade desses dirigentes (...).
Talvez, com a minha retirada, deem à Orquestra o que negaram
durante minha gestão: dignidade. Deixo a Sinfônica, mas não
abandono o direito de lutar pelo que acredito. (PINA FILHO, 2002,
p.121).

Desde o ano de 1983, a OSG havia sido absorvida pela Secretaria da Cultura
e Desporto, órgão administrado, à época, pelo Sr. Iron Jayme do Nascimento, indicado
pelo governador Iris Resende Machado. Na referida carta, Braz de Pina apontaria alguns
graves problemas na orquestra originados, principalmente, a partir da extinção da
Fundação Cultural de Goiás. Entre eles estavam a repentina proibição de cumulação de
cargos, a proibição de novas contratações e a defasagem salarial, sendo este, a causa da
visível desmotivação e do afastamento de importantes instrumentistas da orquestra. O
assunto foi abordado com destaque no Caderno 2 do Jornal “O Popular”, edição do dia
16 de março de 1986.

204
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O titular da Secretaria da Cultura e Desporto optou, então, por aceitar o


pedido do maestro Braz de Pina. Para ocupar o seu lugar foi convidado, então, o
maestro Levino Alcântara, à época, com 63 anos de idade e residente em Brasília.

3.2 A frustrada reestruturação de 1986

Levino Alcântara chegou a Goiânia disposto a fazer uma total reformulação


na OSG. Encontrou um grupo com apenas 35 músicos que recebiam um salário mínimo
pela obrigação de ensaiar duas horas por dia. Levino contava com o aumento salarial,
além da realização de um concurso público nacional para o preenchimento de vagas do
quadro profissional da orquestra. Previa, também, a montagem de uma escola para a
formação e especialização de músicos para a orquestra. O Jornal “O Popular”, do dia 27
de abril de 1986, intitulava a principal matéria de seu Caderno 2 como um “Novo fôlego
na busca da performance ideal”. O início do texto da jornalista Lucyleide Rodovalho
dizia:

Mais uma vez a Orquestra Sinfônica tenta nova reestruturação, o que


não chega a ser novidade diante do quadro histórico que atravessou,
marcado por períodos férteis, crises, troca de regentes e desativações
esporádicas. Em 86 veio à tona uma nova fase crítica, consequência de
inúmeros problemas administrativos e de desencontros (...). Rubens
Chaer [Um dos Secretários de Cultura do primeiro governo de Iris
Resende] acredita no potencial regional e acha que, antes de mais
nada, é preciso levar a serio a formação profissional dos jovens
músicos (...). (Jornal “O Popular”, 27 abril 1986).

O primeiro concerto de Levino Alcântara, em 30 de junho de 1986, no


Teatro Goiânia, foi inesquecível! Contou com a participação de um solista convidado, o
violinista francês Nicolas Merat, que interpretou o famoso Concerto em mi menor do
compositor alemão Félix Mendelssohn (1809-1847). Mas não passou disso.
Decepcionado com as falsas promessas, o maestro abandonou o barco e retornou a
Brasília.

205
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O grupo não contava mais com um maestro. Consequentemente, não havia


ensaios. Por parte do governo, faltava uma definição quanto ao destino dos músicos,
estes que permaneciam com seus contratos. Por quase dois anos, nós, músicos, apenas
assinávamos o ponto.

3.3 A Orquestra Filarmônica de Goiás (1988)

No início de 1988, a prometida reestruturação, enfim, chegou. A nova


empreitada foi liderada por Joaquim Thomaz Jayme (maestro e professor aposentado do
IA/UFG), durante a administração de Kleber Adorno à frente da Secretaria de Cultura

206
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

do Estado. A primeira providência foi alterar o nome da orquestra. No entendimento do


novo Diretor Artístico, em entrevista ao Jornal “O Popular”, edição de 09/08/1988, o
novo nome, “Filarmônica” (ver nota de rodapé nº 1), facilitaria a cooptação de fundos
da iniciativa privada, com base na Lei Sarney, aliviando, dessa forma, os cofres do
Estado.
Na teoria, a ideia era estabelecer uma espécie de parceria entre o setor
privado e o Governo Estadual. Para tanto, seria criada a Sociedade Filarmônica de
Goiás. Na prática, a “sociedade” não saiu do papel. Assim, o poder público estadual
acabou sendo o único responsável pela manutenção da orquestra.
Quanto aos recursos humanos da nova orquestra, o projeto previa que todos
os 64 cargos de músico fossem preenchidos mediante concurso público, o que obrigaria
os antigos instrumentistas da antiga Sinfônica a participarem do pleito. As audições
públicas foram realizadas no mês de fevereiro. A banca examinadora foi composta pelo
maestro Joaquim Jayme, pelo violinista Frederico Barreto e pelo maestro Benito Juarez;
os dois últimos, respectivamente, spalla e regente titular, da Orquestra Sinfônica
Municipal de Campinas/SP. O salário atraente atraiu cerca de 160 candidatos de todas
as regiões do Brasil e até do exterior. Foram aprovados 49 músicos, 15 deles goianos.
No entanto, apenas 37 tomaram posse no mês de junho.
A sede da orquestra foi transferida do Museu Zoroastro Artiaga, Praça
Cívica, para o Centro Cultural Gustav Ritter, no Setor Campinas. Um concerto chamado
de pré-estreia foi realizado na cidade de Caldas Novas/GO. E, finalmente, em 25 de
julho de 1988, aconteceu a estreia no Palácio Conde dos Arcos, na Cidade de Goiás
(antiga Vila Boa). Nesse dia, o Governador Henrique Santillo anunciou para o público
presente, incluindo a imprensa, a “criação” da Orquestra Filarmônica de Goiás (OFG).

207
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Na média, o grupo reunido na “era” Joaquim Jayme, tinha o melhor nível


técnico-artístico de uma sinfônica (ou filarmônica), montada até então no Estado de
Goiás. A OFG realizou, entre outras apresentações, dois concertos mensais no Teatro
Goiânia, a maioria deles com a participação de maestros e solistas convidados de alto
nível. Contudo, logo alguns dos velhos e conhecidos problemas voltaram a assombrar a
orquestra. O conteúdo da primeira página do Caderno 2 do Jornal “O Popular”, que
circulou no dia 28 de junho de 1991, conjeturou bem o que aconteceria a seguir.

Algumas frases de efeito foram usadas na reportagem como, por exemplo:


“Ironicamente, o mesmo governo que criou a Orquestra, em 1988, determinou seu fim,
através de decreto [Decreto 3525, de 24 de setembro de 1990], deixando vários músicos
a ver navios”.
Foram extintos 58 cargos comissionados, de acordo com a informação do
jornalista Antônio Lisboa, que assinou a matéria supramencionada. Dezesseis (16)
músicos “sobreviventes” concursados, mais uma vez ficaram meses parados, recebendo
cerca de um salário mínimo.
Joaquim Jayme partiria para um novo desafio: a criação, em 1993, da
Orquestra Sinfônica Municipal. Esse maestro, inicialmente, esteve à frente desse
organismo, como Regente Titular e Presidente da Fundação Orquestra Sinfônica de
Goiânia até o final do ano 2000, durante os mandatos de Darci Accorsi (1945-2014) e
Nion Albernaz (1930), como prefeitos da Capital. Entre 2001 e 2004, durante a gestão

208
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

do Prefeito Pedro Wilson, as temporadas foram dirigidas por Marshal Gaioso Pinto (de
março de 2001 a julho de 2003) e, depois, por Emílio De Cesar (2003/2004). Após esse
período, Joaquim Jayme retomou seu trabalho à frente da Sinfônica Municipal, cargo
que ainda ocupa atualmente.

3.4 Mais uma reestruturação da OFG (1992)


Em 1991, para as comemorações do aniversário da Capital, o Governador
Iris Resende trouxe a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília para a
realização de um concerto de gala no Teatro Goiânia. Ao final, o Governador foi ao
palco para cumprimentar o maestro Emílio De Cesar.
Durante as homenagens, uma pessoa da plateia gritou “cadê a orquestra de
Goiás governador?”. Na sequência, grande parte do público também se manifestou,
repetindo a mesma frase por vários minutos. Algum tempo depois, o Governador
chamou o Presidente da Fundação Cultural Pedro Ludovico Geraldo Coelho Vaz ao
palco. Os dois conversaram em particular por alguns minutos. Em seguida, Geraldo Vaz
fez uso do microfone para anunciar ao público presente que já estava em andamento a
elaboração de um plano para reativar a Orquestra Filarmônica de Goiás.
Meses depois, uma proposta foi feita ao regente da Orquestra do Teatro
Nacional de Brasília. Em cerimônia realizada em junho de 1992 foi apresentada pelo Sr.
Geraldo Coelho Vaz a nova equipe responsável por mais uma reestrurturação da
orquestra: o carioca radicado em Brasília, Emílio De César, como maestro e as
musicistas goianas Dalva Albernaz do Nascimento e Belkiss Spencière, professoras
aposentadas da UFG, respectivamente, gerente e supervisora musical do Centro Cultural
Gustav Ritter, dirigido, naquela época por Tânia Cruz.
O Governador Iris Resende teria dito, na matéria jornalística supracitada,
segundo o maestro Emílio De Cesar, que a “criação” da orquestra era apenas o começo
de uma política cultural que abrangeria também a formação de outros três organismos:
coro, balé e ópera.

209
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Os músicos remanescentes do concurso de 1988 foram todos convocados. E


uma nova audição pública foi realizada para o preenchimento das vagas restantes da
primeira fase da reestruturação. O programa do primeiro concerto dessa nova orquestra
data de 31 de agosto de 1992. Neste dia, no Teatro Goiânia, apresentaram-se quase
setenta músicos, vários deles contratados apenas para aquela apresentação (cachê). O
maestro Emilio De Cesar fez duas boas temporadas à frente do grupo.
Porém, depois das eleições de 1994, muita coisa mudou e, como de
costume, os gestores da política cultural não conseguiram dar sequência a mais um
projeto relacionado à Orquestra Filarmônica de Goiás. Por falta de condições de
trabalho, o Regente Titular e seu Assistente, o goiano Marshal Gaioso Pinto, pediram
demissão. Antendendo ao pedido de Emílio De Cesar, Marshal ficaria por alguns meses
liderando o grupo até a contratação de seus sucessores. Em entrevista à jornalista
Marluce Zacariotti, do Jornal “O Popular” de 03/09/1994, o maestro justificou-se
dizendo que desistiu de insistir diante do “desinteresse do Governo”.
Na mesma matéria, Emílio De Cesar afirmou que há meses vinha lutando
junto ao Governo do Estado para a melhoria de condições de trabalho. O primeiro
problema a ser resolvido seriam os salários, à época, muito abaixo do piso de qualquer
orquestra brasileira. Na opinião de Emílio De Cesar, emitida em setembro de 1994, os
baixos salários tornavam impossível atrair músicos de outros Estados e que os goianos
não eram suficientes para a formação de uma orquestra.
Após o pedido de demissão de Emílio De Cesar, o Presidente da Fundação
Cultural de Goiás, Doracino Naves, segundo a matéria supramencionada, teria

210
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

conseguido um aumento salarial de 25% para os músicos da OFG. Ressalta-se que,


mesmo assim, os vencimentos continuaram bem inferiores à média nacional. Em
consequência disso, alguns músicos abandonaram a orquestra. Cerca de 45
instrumentistas se empenharam a batalhar pela continuidade da Filarmônica.
Indicado por alguns músicos brasilieses pertencentes ao grupo formado por
Emílio De Cesar foi contratado, então, o maestro Sérgio Kuhlmann, que dirigiu a OFG,
mesmo com muitas dificuldades, até o final do mandato do Governador Maguíto Vilela,
mandato que foi concluído pelo seu vice, Naphtali Alves de Souza, em dezembro de
1998.

3.5 A OFG é reduzida a uma Orquestra de Câmara (1999)

Na primeira passagem de Marconi Perillo pelo Palácio das Esmeraldas


(1999 a 2003) a OFG foi reduzida e transformada na Orquestra de Câmara Goyazes. A
iniciativa dessa medida partiu do Sr. Eduardo José Morais, Diretor de Ação Cultural da
Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira (AGEPEL), órgão estadual
responsável pela administração da orquestra naquela época, presidido por Nars Chaul.
Para o maestro Zé Eduardo, como é mais conhecido na cidade, seria melhor
o Estado manter uma orquestra menor com melhores salários, do que uma grande
Filarmônica com os já conhecidos e crônicos problemas salariais. Deste modo,
oficialmente, em agosto de 1999, foi criada a Orquestra de Câmara Goyazes.
Incoerentemente, representantes do Poder Público Estadual admitiram à
jornalista Viviane Maia, em matéria publicada no Jornal O Popular, em 17/01/2001, a

211
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

possibilidade de organizar uma terceira orquestra em Goiânia. Seria, segundo o texto, o


maior grupo musical já reunido na Capital (80 a 100 instrumentistas). Tratava-se, na
verdade, de um projeto ambicioso de Joaquim Jayme 112, ex-regente da OFG (1988-
1991). A proposta enviada ao Governador Marconi Perillo, não foi adiante.
Voltando à Orquestra Goyazes, para o preenchimento das 24 vagas
definidas para o novo conjunto instrumental, foi realizada uma audição dos músicos
ainda vinculados ao Estado. Para ocupar os cargos de “Regente Titular” e “Diretor
Artístico” foi contratado o ex-assistente do maestro Sérgio Kuhlmann, o goiano Eliseu
Ferreira.
A orquestra permaneceria com o quadro de músicos reduzido durante o
segundo mandato de Marconi Perillo (2002 a 2006), bem como durante o mandato de
Alcides Rodrigues (de 2006 a 2011), como governadores do Estado de Goiás.
Eliseu Ferreira esteve à frente da Orquestra de Câmara em dois períodos: de
1999 a 2003 e, depois, de 2008 a 2011. O grupo contou também com a direção de
Alessandro Borgomanero em dois momentos: de 2003 a 2007 e a partir de 2011, ano em
que a Goyazes foi desativada para dar origem à atual Filarmônica de Goiás.

3.6 A “nova” Orquestra Filarmônica de Goiás (2012)

No início do terceiro mandato de Marconi Perillo, em 2011, a coordenação


da Orquestra de Câmara Goyazes foi entregue à musicista Ana Elisa dos Santos

112
Um pouco antes, no início de 2000, o maestro Joaquim Jayme havia sido demitido da Sinfônica de
Goiânia, Orquestra criada por ele em 1993. A decisão pela demissão foi tomada pelo Superintendente da
Fundação Orquestra Sinfônica, Júnior César Bueno, durante a gestão de Pedro Wilson como Prefeito
Municipal.

212
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Cardoso, que, meses depois, enviou ao Governador uma proposta emergencial com
vistas a ressuscitar a Filarmônica.
Segundo as palavras da própria Ana Elisa, em entrevista para a conclusão
desse trabalho, a proposta previa, entre outros itens, a aquisição de recursos humanos
por meio de um concurso, um novo plano de cargos e salários, além da criação de uma
programação completa, de forma antecipada, para as futuras temporadas de concertos.
Após o período de audições para a contratação dos novos músicos, a nova
orquestra foi apresentada aos goianos em cerimônia realizada no mês de janeiro de
2012, no Palácio das Esmeraldas. Foram realizados aproximadamente 20 concertos na
primeira temporada, todos dirigidos pelos maestros Alessandro Borgomanero e Eliseu
Ferreira, com destaque para a participação de renomados solistas e regentes convidados.
O sucesso do trabalho realizado por Ana Elisa e sua equipe permitiu que
uma nova proposta fosse aprovada pelo Governador Marconi Perillo. Nela constava,
além da expansão do corpo sinfônico, a criação de uma Superintendência da OFG,
sediada no Centro Cultural Oscar Niemeyer. Tratava-se de uma unidade básica com 65
cargos de músicos, maestros (titular e assistentes), equipes técnicas e de apoio à
Orquestra. Em 2014, foi contratado o inglês Neil Thonsom para o cargo de Regente
Titular, escolhido para o projeto de inserção do grupo no cenário internacional da
música erudita.

Desde então, a orquestra tem recebido elogios por parte da imprensa


especializada do país, culminando com o reconhecimento de críticos musicais na seção
“Melhores do Ano”, do Jornal “Folha de São Paulo”, no final da temporada 2015.

213
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Maria Terezinha Brunatto. A presença de Jean François Douliez na


música em Goiás. Goiânia, 2008. 101 p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Música e
Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás.

BORGES, Maria Helena Jayme. A Música e o piano na sociedade goiana (1805-1972).


Goiânia: FUNAPE, 1998. 167 p.

CALDAS, Margareth. Nome novo, vida nova. Jornal O Popular - Caderno 2. Goiânia,
09 de ago. 1988.

DAMÁSIO, Lailson. Trajetória Tumultuada. Jornal O Popular - Caderno 2. Goiânia,


09 de ago. 1988.

GODINHO, Iúri Rincon. A Construção: cimento, ciúme e o caos nos primeiros anos de
Goiânia. Goiânia: Contato Comunicação, 428 p.

GOIÁS. Estatutos da Associação Goiana de Música. Diário Oficial do Estado de Goiás


nº 6.459. Goiânia, 23 de junho de 1951. p.6.

LISBOA, Antônio. Crepúsculo musical da Orquestra Filarmônica. Jornal O Popular -


Caderno 2. Goiânia, 28 jun. 1991.

MAIA, Viviane. Criação de mais uma orquestra gera polêmica. Jornal O Popular -
Caderno 2. Goiânia, 17 jan. 2001.

MELHORES concertos nacionais de 2015 são eleitos pelo júri e pelo público. Guia
Folha (Site da UOL) - Folha de São Paulo. São Paulo 25/12/2015. Disponível em
<http://guia.folha.uol.com.br/concertos/2015/12/1722365-melhores-concertos-
nacionais-de-2015-sao-eleitos-pelo-juri-e-pelo-publico.shtml>

MENDONÇA, Belkiss Spencière Carneiro de. A Música em Goiás. 2 ed. Goiânia:


Editora da Universidade Federal de Goiás, 1981. 385 p.

214
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

______, Belkiss Spencière Carneiro de. Andanças no tempo. 2 ed. Goiânia: Agepel,
2006, 310 p.

ORTENCIO, Bariani. História documentada e atualizada de Campinas (1810-2010).


Goiânia: Kelps, 2011. 464 p.

PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. Memória Musical de Goiânia. Goiânia: Kelps,
2002. 318 p.

PINHEIRO, José S. Os sons que não estão nas partituras. Jornal O Popular - Caderno
2. Goiânia, 16 mar. 1988.

REGINA, Márcia. Colégio Santa Clara Patrimônio Cultural. In: SILVA, Antônio M.;
GALLI Ubirajara (Org.). Goiânia: Instituto Cultural José Mendonça Teles, Scala
Editora, 2010. p. 63-65.

RODOVALHO, Lucyleide. Novo fôlego na busca da performance ideal. Jornal O


Popular. Goiânia, 27 abril 1986.

RODRIGUES, Maria Augusta Calado de Saloma. A Modinha em Vila Boa de Goiás.


Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1982. 342 p.

ZACARIOTTI, Marluce. Desarmonia na Filarmônica. Jornal O Popular - Caderno 2.


Goiânia, 03 set. 1994.

215
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A CIDADE-COTIDIANO: MODOS DE VER AS “ARTES DO


FAZER” NA CIDADE DE GOIÁS NO SÉCULO XIX

Raquel Miranda Barbosa113

Os jogos dos passos moldam os espaços. Tecem os lugares


Michel de Certeau

Os múltiplos sentidos que damos ao mundo são partes constitutivas do ver,


seguido do interpretar. Indubitavelmente, as hipóteses desta pesquisa dependem de um
ajuste complexo, porém viável, quando tratamos as criações humanas como
representações dadas ao mundo, especialmente, aquelas que buscaram retratar o mundo
novecentista pela paisagem urbana da Cidade de Goiás nesse período. A transição e a
adaptação, identidades do mundo novecentista, parecem-nos refletir no aquarelado de
W. Bruchell, em princípios do século XIX. Destarte, se tratamos a cidade como um
espaço intercultural, cremos que seja possível mostrar, no conjunto dessas análises, as
artes do fazer concebidas dentro e de fora para dentro por essas visualidades que, no
presente oblíquo, ampliam os horizontes de expectativas sobre rupturas e permanências
socioeconômicas na Cidade de Goiás neste mesmo período.
O tom semântico/social a ser empregado na análise dessas imagens perpassa
pelo episódio de instalação da sede do império português em solo brasileiro
desencadeou várias ações politico-culturais e, dentre elas, a elevação da Capitania de
Goyaz para a condição de Província do Reino Unido Brasil, Portugal e Algarves, em
1818. O documento transcrito abaixo certifica o fato ocorrido, bem como algumas das
razões que aparentemente motivaram o feito:

Hei por bem e Me Praz, que a sobredita Vila Boa de Goiás do dia da
publicação desta em diante fique erecta em cidade; que por tal seja
que por tal seja havida e reconhecida com a denominação de Cidade
de Goiás e haja todos os Foros e Prerrogativas de outras Cidades dos
Meus Reinos; concorredo [ilegível] ella em todos os atos publicos; e
gozando os Cidadão e moradores della de todas as distinções,
franquezas, privilégios e liberdades, de que gozão os cidadãos de
outras Cidades sem diferença alguma porque assim he Minha Vontade

113
Raquel Miranda Barbosa é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Goiás e professora da Universidade Estadual de Goiás.

216
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

de Mercê. Pelo que mando a Meza do Meu Desembargo de Paço e da


Consciencia e Ordens, Presidente do Meu Real Erário, Conselho da
Minha Real Fazenda; Regedor da Casa de Publicação; Governador e
Capitão Geral da Província de Goiás; e a todos os mais Governadores,
Tribunaes, Ministros de Justiça e quaesquer outras pessoas, a quem o
conhecimento desta Minha Carta haja de pertencer, a cumprão e
guardem, e fação cumprir e guardar (...) (JORNAL CORREIO
OFICIAL, 1918, p. 01 e 02)114.

As implicações e os desdobramentos dessa alteração político-administrativa


geraram discórdias e enfrentamentos nacionais e locais que não serão discutidos, de
modo específico, nesse estudo115. Todavia, salientamos que a mudança de status
engendrou, mesmo que embrionariamente, a formação das oligarquias em Goiás que,
mais tarde, utilizaram-se desse marco para reconstruir discursos que serviram aos
intentos da legitimidade ideológica do poder republicano, no processo de formação da
identidade nacional durante a República Velha. Tais argumentos entrelaçam-se à
chegada da família real ao Brasil, em 1808, fato que tomamos como paradigma para
explicar as concepções que norteiam a definição do termo: cidade-cotidiano.

Flagrantes de um Cotidiano em Transição


Pensar os caminhos da instalação da Corte Portuguesa, na cidade do Rio de
Janeiro, traz à tona as medidas que difundiram as ciências e as artes no Brasil 116.

114
MUBAN – Museu das Bandeiras na Cidade de Goiás. CORREIO OFICIAL. Anno LXI – 30° da
República – N° 187. Capital de Goyaz – Terça-feira, 17 de setembro de 1918 (p. 01 e 02).
115
“A vinda da Corte, se tem por onde afagar a vaidade brasileira, põe a descoberto, de outro lado, com
imenso séquito de funcionários, fâmulos e parasitas que a acompanharam, a debilidade de um domínio
que a simples distância aureolara, na colônia, de formidável prestígio. Além disso, a presença agora, e
naturalmente o convívio e trato forçado, de numerosos estrangeiros, nos ramos mais diversos de
ocupação, há de ajudar os naturais, mesmo quando procedam das classes ínfimas, a julgar os seus
dominadores com melhor senso de realidade. A classe média da colônia, formada praticamente de pés-
de-chumbo, principia agora a enriquecer-se de elementos por ventura mais ativos, ou passa a acolher
ofícios antes desconhecidos, numa espécie de cosmopolismo de que, mesmo em épocas mais tardias, não
se conhecerão muitos exemplos. O fato acha em si mesmo a explicação. De modo que a curiosidade tão
longamente sofreada pode agora expandir-se sem estorvo e, não poucas vezes com o solicito amparo das
autoridades. Nesses poucos anos foi como se o Brasil tivesse amanhecido de novo aos olhos dos
forasteiros, cheio de graça milagrosa e das soberbas promessas com que se exibira ao seus mais antigos
visitantes. Num intervalo de cerca de dois séculos, a terra parecera ter pedido, para portugueses e luso-
brasileiro, muito de sua primeira graça e gentiliza, que agora lhe vinha restituída. Pois é bem certo que
uma familiaridade demasiada nos faz muitas vezes cegos ao que há de insólito em cada coisa, mormente
nessas coisas naturalmente complexas como o são uma paisagem, uma sociedade, uma cultura”
(BARRETO, 2004, p. 11 e 12).
116
Cf. FREITAS, Maria Helena. Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros. Ci.
Inf., Brasília, v. 35, n. 3, p. 54-66, set./dez. 2006. In: http://www.scielo.br/pdf/ci/v35n3/v35n3a06
Acessado em: 01-07- 2015.

217
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Parafraseando Martins (2001), os portos e as portas das regiões brasileiras foram,


oficialmente, abertos para os europeus produzirem imagens e linguagens próprias nesse
circuito científico-cultural, em ebulição no século XIX117. Não obstante, após o marco
da Independência em 1822, a Cidade de Goiás aparece inclusa na rota desses itinerários
e a experiência desses viajantes legou-nos um vasto acervo documental (escrito e
iconográfico) através do qual evidenciamos os modos de ver desses estrangeiros,
durante suas viagens científicas pela variada paisagem natural e cultural do Brasil
Central daqueles tempos.
Os relatos escritos desses viajantes europeus são/foram fontes importantes para a
historiografia cultural goiana que se utilizou dos juízos de valor desses forasteiros,
arraigados de preconceito, para desconstruí-los e dar lugar às representações histórico-
culturais que refutaram os estigmas da pobreza, da apatia e da insalubridade como
elementos constitutivos do habitus118 goiano novecentista. Esses discursos tendenciosos
se amalgamaram, de alguma forma, à historiografia clássica goiana que, ao
supervalorizar os aspectos econômicos, decorrentes dos estudos do ciclo do ouro,
associaram a imagem do estado de Goiás à decadência e ao isolamento, após a crise
aurífera, conceitos que reforçaram a ideia das fronteiras socioculturais entre o sertão e o
litoral do Brasil.
Sobre as fontes visuais, produzidas no mesmo contexto, percebemos que essas
subjetividades europeias aparecem mais tênues em comparação com as fontes escritas.

117
“Do barulho incessante vindo das ruas, entre os olhares dos viajantes, entre negros de ganho, mulheres
ambulantes vendedores de frutas e legumes escravos acorrentados carregando cargas, escravos recém-
desembarcados, esquálidos, doentes, seminus; entre homens da elite ilustrada, políticos, militares, clérigos
e nobres (...) em meio a toda essa mistura, o Rio de Janeiro tornava-se uma cidade cosmopolita, dinâmica,
palco de contrastes e eventos importantes para a vida que se formava. Os ventos que trouxeram tantas
transformações à cidade, dificilmente mudariam a direção. Insatisfeitos com os rumos do novo império
Luso-Brasileiro, os portugueses que permaneceram em Portugal exigiram que a antiga ordem se
reestabelecesse. A Revolução do Porto, em 1820, conseguiu levar de volta D. João VI e sua comitiva, que
daqui partiram em 1821. Emancipação, cisão e independência passaram a ser palavras de ordem da elite
brasileira. Para o regente Pedro, mais valia ser Pedro I no Brasil que Pedro IV em Portugal (SANTOS,
2008, p. 41)
118
“Sistema aberto de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas
experiências sociais (tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica, cultural, entre outras).
O habitus vai, no entanto, além do indivíduo, diz respeito às estruturas relacionais nas quais está inserido,
possibilitando a compreensão tanto de sua posição num campo quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu
pretende, assim, superar a antinomia entre objetivismo (no caso, preponderância da estruturas sociais
sobre as ações do sujeito) e subjetivismo (primazia da ação do sujeito em relação às determinações
sociais) nas ciências humanas (ver estratégia). Segundo Maria Drosila Vasconcelos, trata-se de “uma
matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas
situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é
também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.” Cf.
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pequeno-glossario-da-teoria-de-bourdieu/Acessado em: 07-
04-2015.

218
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Segundo Freitas (2004), a imagem tem a peculiaridade de ser “cada vez mais sedutora
em seu processo de estetização do cotidiano e acabam por estimular os debates acerca
do estatuto e da função da arte” (p. 05) que serão, sensivelmente, observadas a partir
deste pensamento do autor. Pensando em dilatar esses horizontes acrescentamos que:

Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitadas,


organizadoras de suas instituições normativas, e de outras práticas,
sem número, que ficaram “menores”, sempre no entanto presentes,
embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias
ou os restos de hipóteses ( institucionais, científicas), diferentes para
esta sociedade ou para outras. É nesta múltipla e silenciosa “reserva”
de procedimentos que as práticas “consumidoras” deveriam ser
procuradas, coma dupla característica, detectada por Foucault, de
poder, segundo modos ora minúsculos, ora majoritários, organizar ao
mesmo tempo espaços e linguagens (CERTEAU, 1994, p.115).

As conclusões do autor advêm do diálogo com teorias de Foucault sobre


poder e controle pela experiência da vida no cárcere. A estruturação do método
foucaltiano foi apropriado por Certeau (1994), que apresentou uma teoria de que as
artes do fazer geraram no homem táticas para subverter os discursos simplistas de
organização do homem no espaço/paisagem. A transição econômica da mineração para
a agropecuária em Goiás foi capturado pelo olhar do botânico/naturalista inglês, W.
Burchell, dentro dessa sistemática, ou seja, de (re) invenção do cotidiano vilaboense, no
século XIX. Ademais, Martins (2001) acrescenta outra explicação à estética de W.
Burchell, fator que pode ter sido determinante para enxergarmos as artes do fazer em
suas aquarelas que nos instigam (re) imaginar o passado novecentista na Cidade de
Goiás. Portanto, convém destacá-la:

O olhar naturalista para a paisagem, não pode ser dissociado, assim do


mapeamento da paisagem que estava em andamento nas primeiras
décadas do XIX, seja por terra ou por mar. O que confere
particularidade ao olhar britânico é a associação do impulso com os
discursos sobre a paisagem, tais como a estética associacionista e a
poesia da natureza. O surgimento do naturalismo, no contexto
discursivo, pode ser entendido parcialmente, como uma crítica à
categoria do pitoresco, uma crítica articulada através tanto da teoria
como da prática (MARTINS, 2001, p. 55).

A relação vivência/experiência no espaço representado gerou no naturalista


um efeito que não condiz com a réplica do espaço/natureza. Para a autora, o que
acontece é a seleção mediante a composição dos elementos da paisagem razão que,

219
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

provavelmente, justifica os rastros sociais nos aquarelados que representaram as


paisagens vilaboense construídas sob o olhar, meticulosamente, exuberante de William
Burchell.
Ressaltamos ainda, que ao escrever a obra O Rio de Janeiro dos Viajantes:
o olhar britânico, Martins (2001) concentrou suas análises na paisagem carioca do
século XIX, o que não nos impediu ou impede de mediá-las à apreciação
semântico/social nas produções artístico-científicas de Willian Burchell, durante o
tempo de permanência na capital da Província de Goyaz, por volta de 1828. Salientamos
ainda, que a técnica empregada na elaboração das aquarelas, antecede dissolver os
pigmentos de tinta em água, aspecto que comprometeu, parcialmente, a qualidade da
imagem no tempo. Mesmo assim, não fomos confundidos pelas ausências que
constituíram a cidade-ideal, visivelmente aparentes na paisagem bucólica de W.
Burchell, que explicita-nos rastros e os vultos das práticas e das artes do fazer na
cidade-cotidiano, no século XIX.
Abrimos, portanto, a primeira aquarela do botânico que registrou a Cidade
de Goiás, do sul para o norte, a partir do elevado onde se localiza o Largo do
Chafariz119.

Figura 01: Vista Geral de Goiás, W. Burchell, 27-6-1828.


Fonte: Giovana Emos da Luz, 2012.

A vista panorâmica evoca uma cidade acanhada entre a farta natureza que
mescla-se ao casario urbano. O colosso, ao fundo na figura 01, completa a vista que, por

119
Ponto turístico onde encontra-se um suntuoso monumento em estilo barroco, mais conhecido como
Chafariz de Cauda, construído no século XVIII.

220
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

outros ângulos, demonstraria o conjunto das cercanias naturais que protegem a


paisagem urbana em foco, tal qual o morro Canta Galo propôs-se a fazer. A nitidez
pode tentar nos confundir, em virtude de anos passados desde a produção desta imagem,
que registrou a presença humana superando os revezes dos tempos dourados. A
contemplação dessa vista não privilegiou casas ou monumentos demarcados. Essa
paisagem contrasta, tão somente, com as colorações do claro com o escuro. O que
precisa fazer-se evidente são particularidades que foram enfatizadas com olhar no
minoritário, ou seja, naquilo que foi considerado desimportante pela visão que
privilegiou as oficialidades da paisagem urbana da Cidade de Goiás.
Sobre este modo crítico de ler a imagem, nos valemos das palavras de
Freitas (2004) para explicar que essa narrativa está “disposta a compreender a
visualidade moderna pela aproximação histórica entre arte, cultura de massas e
sociedade” (p.5). Nessa direção, fitos na imagem de W. Burchell, exatamente no canto
direito da figura 01, identificamos, por meio da forma e da função, que as habitações
representadas são rústicas e simples. Percebe-se que do lado de fora, repousa um objeto
que muito se parece com as ferramentas de trabalho utilizadas para revolver o cascalho
que evidenciou inúmeras vezes, no passado recente à imagem, o brilho amarelo vindo à
sua extremidade. O arrefecimento dos tempos de opulência da mineração ressignificou
sua utilidade. Conforme vemos, suas funções ainda estavam voltadas à lida com a terra,
porém com a finalidade de retirar dela o alimento que nesses primeiros anos do século
XIX, foram produzidos em escala de subsistência.
A imagem (figura 01) indica-nos, ainda, que nos casebres à direita, uma das
portas ficou entreaberta. A fresta dá-nos a impressão de que existe um vulto, sentado de
costas para W. Burchell, observando a vida acontecer na Cidade de Goiás sem perceber
que estava sendo observado. A contemplação do vulto parece estar regida pelas
singularidades de um cotidiano simples, instalado na Cidade de Goiás do século XIX,
em substituição aos tempos frenéticos da corrida pelo ouro no século XVIII. Certeau
(1994) denomina a essa reconfiguração das práticas cotidianas de “estratégia”. Em
outras palavras, o autor quer dizer: “um lugar capaz de ser circunscrito como próprio e,
portanto, capaz de servir de base a uma gestão própria de suas relações com a
exterioridade distinta” (p.46). De fato, foi isso que aconteceu. A filiação da sociedade
goiana a uma vida simples, resultado das práticas do artesanato, do comércio interno, da
vida agrária e, sobretudo, da harmonização dessas artes do fazer com a paisagem urbana

221
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

do provincial ou não, gerou incompreensão dos diversos segmentos alheios a essa


realidade.
Os relatórios dos governadores de província podem ser considerados um
bom exemplo dessa intolerância, pois nas devolutivas dadas ao Império, as
sensibilidades desses documentos emanam a representação do estado de caos instalado
em Goiás diante da pobreza, do abandono e do isolamento. Nem de longe passou pelo
entendimento dos discursos oficiais e, tampouco pelos relatos dos viajantes
estrangeiros, a exemplo de Saint- Hilaire (1779-1853), que a realidade ora vivida era
inerente ao processo de reordenamento cultural, visto pela historiografia cultural e pelos
flagrantes de W. Burchell, como sinas de superação dos dias de abruptas intervenções
na paisagem como consequência da ganância desenfreada pela ocupação e posse da
cidade de Goiás no período colonial.
Equivocadamente, as impressões do viajante francês se fincaram num ponto
de vista estreito ao atribuir vicissitude à paisagem urbana da Cidade de Goiás à presença
portuguesa, temporariamente, instalada por razões que mencionamos anteriormente.
Mesmo assim, gostaríamos de destacar um fragmento que introduz as notas do
forasteiro, logo na sua chegada/estadia em Vila Boa, durante Viagem a Província de
Goiás:

Unicamente a presença do ouro em suas terras determinou a fundação


de Vila Boa. Afastada de todos os rios navegáveis dificilmente
estabelece comunicação com outras partes do império brasileiro. Não
tem mesmo muita salubridade, e não tardaria a ser abandonada se nela
não ficasse localizada a residência de todo o corpo administrativo da
província. As ruas da cidade são largas e bastante retas, sendo quase
todas calçadas, mas sua pavimentação não é bem feita. A cidade,
construída numa baixada, onde o ar não circula como nas montanhas e
nas planícies; onde a água parece pouco salubre e o calor é quase
sempre sufocante durante a seca; onde, enfim, a umidade deve ser
muito grande na estação das chuvas, essa cidade, repito, não pode ser
propícia aos homens de nossa raça (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 50 e
51).

O intuito de Saint-Hilaire era de enaltecer as ações dos portugueses que,


segundo ele, enfrentaram maiores dificuldades para transformar a paisagem vista por ele
como lugar urbanizado. A distância de aproximadamente trezentas léguas do litoral, as
oscilações climáticas dos tempos de seca entre as estações chuvosas caracterizaram
problemas de salubridade da Cidade de Goiás, tidas, segundo suas palavras, como lugar
impróprio “aos homens de sua raça”. Percebe-se que a razão eurocêntrica promoveu um

222
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

juízo de valor pejorativo ao depreciar o lugar, a cultura e os moradores locais expondo o


fosso da diferença entre o eu e o outro, na construção dos sentidos de alteridade.
Todavia, esse relato, na contramão de seus intentos, informa-nos, na
verdade, o descaso e o abandono do poder português em relação à Província de Goiás, a
partir do instante que a paisagem dava sinais de esgotamento do metal precioso. As
cifras arrecadadas na transição do século XVIII para o século XIX, não condiziam com
os resultados que justificassem a fixação do português nessas terras. Se a pobreza, o
abandono e o isolamento passaram a ser parte do cotidiano da Província de Goiás e de
sua sede, conforme se lê nos relatórios provinciais, nos jornais, nas impressões do outro
e na literatura de um modo geral, certamente, foi resultado do desinteresse português e,
por isso, virou as costas no momento em que a paisagem não mais correspondia aos
objetivos iniciais do século XVIII. Infelizmente, popularizou-se no litoral uma imagem
pejorativa da Cidade de Goiás na envergadura de cidade-cotidiano, instalada no século
XIX, como forma de resistir o interesse sazonal do poder português por essas terras. A
resistência da sociedade goiana nesses tempos incertos foi estimulada por vínculos
muito mais consistentes do que as artes do fazer para sobrevivência. Segundo Moraes
(2012), os elos subjetivos da fé e da religiosidade amalgamaram-se aos modos de ver e
sentir da população local, com relação ao seu lugar de origem e que, visivelmente,
permaneceram nas concepções dos remanescentes do século XIX. A fundamentação da
autora encaminha-se na categoria de densidade ontológica que, segundo ela, “faz
aparecer e desaparecer nos lugares diferentes e espaços privilegiados” (p.53)
evidenciados, visualmente, nas conjecturas da cidade-esboço e trincados, mais
nitidamente, nas permanências que nos ajudam a construir as concepções da cidade-
cotidiano.
Temos, portanto, uma explicação plausível para o teor apelativo dos
relatórios dos governadores de província que, ao clamarem por assistência do governo
central, se utilizaram-se de uma linguagem depreciativa como parte da estratégia para
atingir êxito nas reivindicações político-administrativas e assistência financeira do
poder central imperial como forma tática de manutenção da “ordem” e do controle
social, ora reconstruído autonomamente. Antes de aprofundarmos nessa direção,
apresentamos outra imagem de W. Burchell que evidencia as práticas do cotidiano
acontecendo livremente das amarras com a oficialidade urbana em detrimento à
mineração.

223
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

O cenário, comparado à primeira imagem que expusemos do botânico, na


figura 01, mudou. A imagem gravada no tempo recorreu, novamente, aos flagrantes
rotineiros na cidade-cotidiano para ratificar essa face urbana da Cidade de Goiás no
século XIX. Vemos, nas imediações da antiga Casa da Real Fazenda, atual Museu Casa
de Cora Coralina120, dois vultos que evidenciamos na figura 02:

Figura 02: Ponte do Rosário, W. Burchell, 30-7-1828.


Fonte: Giovana Emos da Luz, 2012.

Quando paramos para ver a imagem da figura 02 é possível identificar o


primeiro vulto, ao centro, inclinado e parcialmente imerso nas águas do rio Vermelho.
Certamente, para desfrutar dos mais variados recursos que esse manancial tinha na vida
cotidiana da população da Cidade de Goiás, naquela época. Percebe-se que os quintais
das casas localizadas no canto direito da imagem, possuem pequenas passagens em seus
muros, local por onde os escravos domésticos transitavam durante os afazeres diários da
rotina das casas onde moravam. Os muros demarcavam o acesso exclusivo dos donos
dessas casas às utilidades que o rio Vermelho proporcionava. Porém, no lado esquerdo,

120
“Após a morte da poetisa, amigos e parentes se reuniram e criaram a Associação Casa de Cora
Coralina. Em 27 de setembro de 1985, entidade mantenedora do Museu Casa de Cora Coralina. É uma
entidade de direito privado, sem fins lucrativos, com objetivo imediato de lutar pela preservação da vida e
da obra de Cora Coralina. O Museu foi inaugurado no dia 20 de agosto de 1989, data comemorativa do
nascimento da escritora. Nos estatutos aprovados constam como finalidade: projetar, executar, colaborar e
incentivar atividades culturais, artísticas, educacionais e filantrópicas visando, sobretudo, à valorização da
identidade sociocultural do povo goiano, bem como preservar a memória e divulgar a obra de Cora
Coralina”. Cf. FOLDER COMEMORATIVO DOS 120 ANOS DE CORA CORALINA E 20 ANOS DE
FUNDAÇÃO DO MUSEU, Cidade de Goiás: 2009. Fonte: Museu Casa de Cora Coralina (distribuição
gratuita).

224
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

avistamos uma passagem semelhante a uma rua, demarcada por quintais do lado direto e
uma residência de esquina, no lado esquerdo. Ali, recostado à parede daquela casa,
encontramos o segundo vulto. Ele parece, despretensiosamente, observar a ação daquele
que pratica interação com o rio que se adequou, intencionalmente, à paisagem urbana da
Cidade de Goiás desde os tempos de sua fundação, conforme vimos anteriormente. A
ação de observar sem pressa não foi uma prerrogativa do segundo vulto. Burchell, de
igual modo, apropriou-se desse habitus local para narrar, visualmente, a poética desse
instante.
Ora, se as ligaduras entre as práticas do sagrado e as artes do fazer foram
suficientes para manter o homem goiano “preso” à sua paisagem, quais razões
justificam o teor escrito nos relatórios dos governadores da Província de Goiás no
século XIX? E os discursos da impressa novecentista? Por que eles reacendem os
debates sobre fronteira e identidade no Brasil Imperial? Os estudos de Rabelo (2010),
Luz (2012) e Magalhães (2004) podem nos ajudar na construção destas respostas.
Antes mesmo da instalação do Império e do advento da Independência, em
1822, a relação entre os poderes central e municipal já era tensa na Cidade de Goiás.
Segundo Rabelo (2010), o século XIX narra um capítulo à parte no que diz respeito à
estruturação e as intervenções políticas no espaço urbano das províncias do império. Na
Cidade de Goiás não foi diferente. Em harmonia com o autor, o caos urbano instalado
no século XIX adveio das medidas punitivas para preservar os interesses que
demandaram a construção da paisagem urbana da antiga Vila Boa de Goyaz. A
explicação, segundo o autor, começa no século XVIII, quando os interesses coloniais,
delegaram às Câmaras Municipais121 a função de administrar e mediar os conflitos
locais visando celeridade às demandas inerentes à vida urbana e, sobretudo, aos
interesses da mineração que não podiam parar. O longo tempo de contato/resposta da
Corte, sobre os assuntos do cotidiano local, certamente, faria diminuir o ritmo da vida e
do trabalho nas minas e pelas minas em Vila Boa de Goyaz. Portanto, estes
entrecruzamentos nos colocam diante das necessidades humanas em relação ao espaço
que, neste caso, consistiram em alteração, legado, resistência, que por sua vez nos

121
“O poder local na colônia era exercido pelas câmaras municipais, que logo se estruturavam onde se
erigia uma vila e, além de desempenhar funções administrativas, também atuavam em defesa dos
interesses locais. A participação politica, a seleção e a legitimação dos membros das câmaras eram
organizadas de modo a assegurar vantagens aos senhores de terra. Desse modo, não obstante, as
Ordenações do Reino procuraram uniformizar a organização das câmaras municipais, aquelas leis eram
bastante flexíveis no tocante aos usos e costumes da terra que poderiam solucionar as questões suscitadas
e que iam, aos poucos, sendo reconhecidas pela corte e pelos governadores” (RABELO, 2010, p.23 e 24).

225
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

favorecem para a percepção das continuidades e das descontinuidades existentes nas


visualidades do passado vilaboense.
Nas palavras de Palacin e Moraes (2008), houve uma defasagem
sociocultural devido à crise aurífera em Goiás no século XIX. Concordamos que o fim
da mineração trouxe impactos à vida urbana vilaboense, porém nada que viesse
sucumbir à reação local direcionada à resistência e a superação, conforme viemos
discutindo até aqui. Todavia, antes disso, os autores argumentaram que a chegada de D.
João VI, em 1808, marcou as tentativas dos locais em subverter a ordem colonial,
considerada por eles como insuficientes para prosseguir na administração local. Eis que
as ideias nacionalistas, emanadas no bojo dessas duas crises, pairaram tanto sobre a
capitania quanto sobre a província, dando sinais de que a economia e a política não
estavam mais em acordo com o estilo de vida dos remanescentes de Vila Boa, logo
Cidade de Goiás.

Em Goiás, a população rural permaneceu alheia a essas crises, mas


elementos ligados à administração, ao exército, ao clero e algumas
famílias ricas e poderosas, insatisfeitos com a administração, fizeram
germinar no rincão goiano o reflexo das crises nacionais. A atuação
dos generais-capitães, às vezes prepotentes e arbitrários, fez nascer na
capitania ojeriza pelos administradores. A causa maior dos
descontentamentos encontrava-se na estrutura da administração
colonial e os empregados públicos eram os mais descontentes; a
receita não saldava as despesas e os seus vencimentos estavam em
atraso. Encontravam-se também descontentes alguns elementos do
clero, os mais intelectualizados da capitania (PALACIN E MORAES,
2008, p. 79).

Pelo o que parece, os relatórios dos governadores de província, além de


maximizarem as problemáticas relacionadas ao desenvolvimento econômico da Cidade
de Goiás, apresentam outra problemática que chamava a atenção das autoridades
centrais para dois aspectos elementares. Em primeiro lugar, a autonomia econômica
diante da invenção do cotidiano, que se estabeleceu entre as variadas artes do fazer,
antes paralelas e primordiais às práticas urbanas novecentistas, mas não tão lucrativas
aos cofres públicos. Em segundo lugar, o resultado que essa reinvenção cultural
enunciava do ponto de vista político em relação às lideranças locais, representadas pelos
nascidos da terra, que aglutinavam o apoio da maioria. Como as sublevações urbanas
entre os anos de 1808 a 1822 estavam se tornando comuns no Brasil e em Goiás, logo,
as medidas coercitivas vieram, rapidamente, após o ato da Independência.

226
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Sendo assim, costumeiramente, fundamentados no direito positivo, ou seja,


nas competências do Estado, as estratégias governamentais de controle recorreram às
normativas da provisão de D. João V, as quais versaram sobre a criação de Vila Boa, em
1736, para as intervenções e adequações do espaço urbano, na sede provincial; que tinha
a finalidade de conter o avanço das forças internas cada vez mais independentes do
Estado constituinte na Independência de 1822 como podemos observar:

(...) concerve a mesma formatura da terra, e a mesma Largura das


ruas, e junto da Villa fique bastante terreno para logradouro publico, e
para nelle se poderem edificar novas Cazas que serão feitas com a
mesma Ordem, e Concerto com que se mandão fazer as primeiras, e
deste terreno se não poderá em nenhum tempo dar de Sesmaria, ou
aforamento parte alguma Sem ordem Minha o que derrogo esta e os
Governadores poderão repartir em Sesmarias toda a ma-is terra com as
clauzulas, e Condiçoens com que se dão as mais do Brazil, exep-to via
extensão de terra que se costuma dar a cada Morador, porque nos
contornos da dita Villa dentro em seis legoas de distancia della, se não
poderá dar a cada Morador mais do que meya Legoa de terra em
quadro, porem á mesma Villa sedará huma datta de quatro legoasde
terra em quadro fora do Logradouro publico, a qual datta de quatro
legoas administrarão os Officiaes da Camara que do Seu rendimento
se fazerem as obras, e despezas do Concelho, e desta terra pode-rão
aforar para o mesmo effeito aquellas partes que lhes possuir,
observando o que dis-põem a Ordem para estes aforamentos,122.

Nas análises de Rabelo (2010) compreendemos que a fundamentação na


legislação pública mais antiga, alinhada ao discurso médico-higienista instituído no
Brasil do século XIX, tinha a finalidade de exercer controle do público sobre o público e
com implicações silenciosas, porém diretas no controle do espaço privado, como
estratégia de sistematizar meios para desarticular as forças locais que, além de
reinventar o cotidiano provincial passou a se chocar com administração portuguesa que
impôs as regras de convivência entre governo, sociedade e paisagem desde os tempos
coloniais. Ainda segundo o autor, com o intuito de enfraquecer a autonomia política
das Câmaras Municipais e, por consequência, da elite local a “normalização higiênica
inseriu-se no próprio discurso da lei” (p.29). Desse modo, as práticas do cotidiano, que
se apropriaram da paisagem urbana, para a manutenção das experiências e

122
Manuscritos avulsos da Capitania de Goiás existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa-
Portugal. Coord. José Mendonça Teles et` al. Goiânia: Sociedade Goiana de Cultura/IPEHBC, 2001.Doc.
nº 26, 11 de Fevereiro de 1736, Provisão Régia de D. João V, dispondo sobre a criação de uma Villa para
sede da Capitania de Goyaz. Transcrição: Milena Bastos Tavares, historiadora, documentalista e
arquivista do Museu das Bandeiras.

227
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

sobrevivências aos dias menos opulentes, foram severamente atingidas pela autoridade
imperial representada na figura dos governadores da província.
Segundo Luz (2012), a noção de paisagem sofre uma mudança significativa
no campo dos sentidos sociais dados a ela, em virtude da ressignificação do espaço e da
função que ele exercia nesse contexto adaptativo do século XIX. Suas análises trazem a
reflexão de que a forma espacial tem dimensão histórica-material quando ela é
“empiricizada”, ou seja, funcionalizada. Sendo assim, concluímos que as práticas
desenvolvidas entre/pela paisagem urbana da Cidade de Goiás, no século XIX, foram
tão contundentes que as medidas adotadas pelo governo imperial, a fim de impor regras
às práticas do fazer, foram tão evidentes que ora nos condiciona a teorizar sobre essa
paisagem pelo jogo da apropriação do espaço em confronto com o poder e as normas.
Tais implicações caminham em direção ao que buscamos confirmar sobre a identidade
da cidade-cotidiano: que seu significado mostrou-se volátil e, portanto, o elo entre a
cidade-esboço e a cidade-ideal.
As disputas e confrontos resultaram num travamento de forças que,
consoante Magalhães (2004), colocou o discurso da salubridade em face das
responsabilidades governamentais que engendrando novos contornos ao campo de
disputas de poder na/pela paisagem urbana da Cidade de Goiás no século XIX:

Somente com a Lei das atribuições das câmaras de 1828 e as Posturas


Municipais de Goiás de 1830 que os administradores procuraram
organizar o confuso espaço urbano da capital por meio de medidas
preventivas que viessem torná-la mais saudável, tais como arborização
das praças, canalização das águas dos chafarizes, proibição de
circulação de porcos, cabras e outros animais que pastavam livremente
pelas ruas “como se tratasse de uma fazenda de criar”
(MAGALHÃES, 2004, p. 98).

Nas palavras de Certeau (1994), encontramos explicações para as


perspicazes medidas tomadas para minimizar os efeitos que as práticas estavam
causando no cotidiano dos moradores da Cidade de Goiás, naquela época. Concordamos
com as orientações do teórico francês quando diz que: “o caminhar de uma análise
inscreve seus passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há
muito tempo” (p.35). A demonstração da força estatal fica evidente no momento em que
as “maneiras do fazer”, circunstanciadas pela reinvenção das funções dadas à paisagem,
foram colocadas no foco do restabelecimento do poder português sobre os espaços da
paisagem urbana vilaboense, simbólica e efetivamente.

228
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Nesse ziguezague da paisagem urbana vilaboense, saímos das adjacências


ao rio Vermelho para verificarmos a praça central da Cidade de Goiás, atual Praça do
Coreto. W. Burchell nos mostra que a vida segue no trânsito peculiar da vida
novecentista da cidade-cotidiano. O logradouro público da figura 03 aparece gravado,
entre lugares, pessoas e animais.

Figura 03: Igreja da Boa Morte e Palácio, W. Burchell, 12-05-1828.


Fonte: Giovana Emos da Luz, 2012.

Destacamos na figura 03 o guarda em seu posto no palácio do governo, os


transeuntes circulando em suas direções indefinidas e a carroça velada pelo seu animal
de carga ratifica a presença deles, já relatada na cidade-cotidiano entre espaços
privilegiados ou não, indistintamente. A vida precisava acontecer. Portanto, a cena nos
comprova que tal prática não era considerada absurda aos moradores, tanto que, a
carroça parada à frente da sede do governo não gera reações por parte deles, e muito
menos, sucumbe à postura ereta do Dragão que faz seu papel ao zelar pela segurança e
pela ordem no espaço ao seu alcance. A carroça, diante de tanta monumentalidade,
protagoniza, na imagem, papel central. Suas cores em escuro vibrante se contrastam
com os tons claros e sombreamentos escuros dos outros atores da cena. O objeto rústico,
deixado ali naquele instante, foi ressaltado, dentre tantas outras visões fractais, como
algo importante e constitutivo da paisagem urbana que se vê através do tempo
congelado pelo botânico/naturalista (figura 03).
Peter Burke (1992) reforça que as disputas em torno do espaço refletem
conflitos sociais vastos e mais profundos; tais demandas são exemplos correntes sobre a
importância da história feita “a partir de baixo”. Nas palavras do autor: “As

229
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

recordações oficiais e não oficiais do passado podem diferir grandemente e as


recordações não oficiais, que têm sido relativamente pouco estudadas, constituem por
vezes forças históricas de pleno direito” (BURKE, 1992, p. 248).
O controle das atividades que deram sentido de existência à população
colonial reitera, ainda mais, seu espaço de experiência na mesma proporção em que as
medidas de controle se expandiam sobre a envergadura do discurso de preservação,
conservação e funcionalidade da paisagem urbana vilaboense. A “formosura da terra”
ideia trazida no documento da Provisão Régia de 1736, citada no trecho anterior,
camuflou o ideal de manutenção das formas e normas, não somente do patrimônio
edificado, mas sim, do controle proveniente dessas ações desencadeadas sob o
fundamento do discurso jurídico, da normalização dos comportamentos e da
formalização do discurso médico conforme expuseram as pesquisas de Rabelo (2010) e
Luz (2012).
O interesse recíproco desses pesquisadores pelo século XIX mostrou-nos
que, mesmo por olhares distintos, as confluências entre eles deixam a cidade-cotidiano
cada vez mais tangível. O diálogo entre as fontes, olhares e as lentes teóricas mostra-nos
uma Cidade de Goiás integrada com os interesses minoritários evidenciados nos fins
práticos, vinculados ao utilitarismo que até então, focaram-se na relevância dos
interesses portugueses nessas terras. Para Luz (2012), a Cidade de Goiás novecentista,
mais uma vez confrontada pela soberania do poder português, oferece-nos sedimentos
necessários para a construção dessa narrativa. Vincula a paisagem urbana vilaboense às
suas formas culturais, físicas e simbólicas, para repensarmos a utilização e reutilização
da paisagem tradicional como meio de reinterpretação dos discursos para mantê-lo sob
roupagem das idealizações imaginadas para a cidade-esboço. Na verdade, o que está
atrás dessas estratégias, tem implicações com o controle da forma e da função que esses
lugares eleitos passam a ter, em relação aos seus ocupantes.
Para ampliarmos o campo de visão às disputas pela paisagem urbana da
Cidade de Goiás, no século XIX, entre governo imperial, moradores locais e as artes do
fazer caracterizadoras da cidade-cotidiano, gostaríamos de trazer à baila, as impressões
de um estrangeiro, por destoar da maioria dos discursos conferidos a esses alheios à
realidade vilaboense, na transição do século XVIII para o XIX.

A falta de experiência, a ambição do Governo e, em parte, o


desconhecimento do país, mas organizado e quase despovoado deram

230
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

lugar a muitas leis inadequadas, que provocaram a ruína rápida desse


notável ramo de atividade, importante fonte de renda para o Estado.
De nenhuma dessas leis numerosas que têm aparecido até hoje, se
pode dizer propriamente que tivesse por finalidade a proteção do ouro.
Ao contrário, todas elas apenas visavam ao aumento a todo custo da
produção, com o estabelecimento de medidas que assegurassem a
parte devida à Coroa. Quase 30 anos decorreram então, sem que se
modificassem os velhos processos rotineiros de exploração
(ESCHEWEGE, apud PALACIN, GARCIA E AMADO, 1995, p. 103
e 104).

O depoimento do engenheiro austríaco exala sua íntima inconformidade


com a aviltante e irrestrita ganância portuguesa. A experiência adquirida com a
exploração colonial iniciada pelo litoral brasileiro, tampouco serviu para redefinir o
modelo implantado no Centro-Oeste do país, há quase dois séculos. As consequências
históricas se reelaboraram em torno do espaço, não em função do ouro. O século XIX
demonstra-nos que a afirmação do poder havia se dilatado para o âmbito do controle
imprescindível para a imagem de um império que nasceu sob a falácia do heroísmo em
prol da coletividade.
A construção da nação nos moldes do Império brasileiro, após a
emancipação, era buscar a estabilidade econômica a partir do controle social e das
práticas culturais de suas províncias que, por ventura, representassem ameaça a tais
intentos que foram legados a Pedro II (período em que as medidas mais severas foram
aplicadas na Cidade de Goiás, particularmente). Magalhães (2004) explicita tais
normativas que, em diálogo com as imagens oitocentistas da paisagem vilaboense, os
sentidos fazem-se cada vez mais visíveis e indivisíveis pela razão hipotética que nos
movimentou até aqui.

1°) remoção do cemitério para fora da cidade; 2°) canalização da água


para o abastecimento público; 3o) proibição da circulação de animais
dentro da cidade; 4°) estabelecimento de redes de esgotos nas casas e
nas ruas desembocando em um coletor até o rio Vermelho; 5°)
remoção da enfermaria militar e do hospital São Pedro de Alcântara
para fora da cidade; 6°) limpeza do córrego Manoel Gomes; 7°)
drenagem e limpeza do Largo Municipal; 8°) maior rigor por parte da
Câmara Municipal no cumprimento de suas posturas referentes a
higiene pública; 9°) maior rigor na limpeza dos edifícios públicos
(MAGALHÃES, 2004, p. 98).

A higienização da Cidade de Goiás e da sociedade com promessa de


aumento da saúde, da qualidade de vida que, com a qual traria maiores riquezas para a

231
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

população, graças a essas normativas, foi, aos poucos, conquistando a sujeição das
famílias locais (RABELO, 2010, p. 29). Tais determinações imputam, ainda, ao poder
provincial atribuições que cabiam à municipalidade que, por sua vez, afirmava não ter
recursos financeiros para custear a normalização da paisagem urbana da Cidade de
Goiás nos rigores estabelecidos pelo discurso médico inserido nas demandas das
políticas públicas nacionais naquele período. Esse fato ampliou o poder, a atuação e
visibilidade dos presidentes de província na capital, Cidade de Goiás, na mesma
proporção que a população resistia às estratégias de higienização e ao governo
provincial à frente desse processo, inclusive, com violência e enfrentamentos de
natureza diversa por parte dos moradores locais incomodados com as medidas que
tinham, para eles, a conotação de uso e abuso de poder:

A resistência contra as práticas sanitaristas praticadas na antiga capital


de Goiás é testificada também na violência de alguns atos da
população contra certas medidas administrativas. No governo de
Augusto Ferreira França (1865-1867), tendo em vista higienizar a
cidade, ele mandou plantar árvores em todas as praças e ruas de Vila
Boa, mas dos dendrófobos, ou dendroclastas (inimigos das árvores),
destruíram várias vezes as plantas. O plantio das árvores representava
tanto uma estratégia de higienização, por acreditar-se que elas
purificariam o ar, eliminando os miasmas, quanto um esforço de
embelezar a cidade. Aos olhos de parte da população vila-boense, o
plantio de árvores pela administração pública poderia, como se vê,
representar desperdício do erário público em causas supérfluas
(RABELO, 2010, p. 53 e 54).

A reação popular lembra muito o episódio da Revolta da Vacina123, no Rio


de Janeiro (1902-1906), pois para os moradores locais, as imposições e intervenções na

123
“A revolta eclodiu durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), sendo Pereira Passos o prefeito
do Rio. Era uma fase fundamental de transformação da sociedade brasileira, que ainda mantinha
profundas características do período colonial, na sua passagem para uma sociedade burguesa moderna.
Tal transformação não se fez sem elevado custo social. A principal exportação do Brasil era o café,
principalmente o dos fazendeiros paulistas. Eles constituíam a base de sustentação de Rodrigues Alves,
que adotou a política anti-industrialista do antecessor, o presidente Campos Sales (1898-1902),
garantindo assim o funcionamento e até o reforço do modelo agrário-exportador. Tanto a revolta da
população contra uma lei que se destinava a protegê-la quanto os meios violentos que as autoridades
empregaram para impor a medida hoje parecem surpreendentes. A polêmica apaixonou a imprensa da
época (...). Afinal, a varíola, a febre amarela e a peste bubônica dizimavam a população carioca. Mas a
campanha do médico sanitarista Oswaldo Cruz, visando a erradicar o primeiro desses males, foi veemente
mente rechaçada. Confundiu-se com a revolta contra a demolição das habitações populares causada pelas
obras de reurbanização da cidade, a exploração nas fábricas e a prepotência das autoridades. E mesmo
intelectuais, como Rui Barbosa, engajaram-se contra a obrigatoriedade da vacinação. O episódio não
pode, entretanto, ser reduzido a uma reação ao progresso, como pretenderam alguns intelectuais e uma
parte da imprensa da época. A Revolta da Vacina também tem sido interpretada como fruto de
manipulações políticas de segmentos da elite brasileira descontentes com o governo liderado por
Rodrigues Alves. Entre eles, militares ligados a Floriano Peixoto, intelectuais positivistas, republicanos

232
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

paisagem urbana da antiga capital tinham um único propósito: desarticular as artes do


fazer engendradas para a sobrevivência na cidade-cotidiano; logo que a crise na
mineração redesenhou um “novo” quadro para a reorganização cultural no/do espaço
urbano da Cidade de Goiás pelos remanescentes. Para Certeau (1994), reconhecer a
autoridade das regras, nesse período, não quer dizer que haja, por parte dos praticantes,
a confirmação de aplicá-las (p.123). Indiscutivelmente, as condições sanitárias da
Cidade de Goiás, no século XIX e as condições alimentares, devido à dieta restrita
consumida pela população124 - herança intercultural incorporada aos costumes locais -,
eram, de fato, um risco iminente à saúde pública dos vilaboenses e goianos, de um
modo geral. Tais hábitos culturais aumentaram o número de óbitos e enfermidades na
antiga capital e na província como um todo. A fundação do Hospital de Caridade São
Pedro de Alcântara, em 1825, pode ser pinçada como uma inciativa do poder público
em relação às necessidades sociais, inerente ao papel do Estado, em contê-las ou saná-
las, em prol da do bem estar social125. Porém, à espreita dessas questões vislumbramos
ações que visavam rearranjar a paisagem, tendo em voga, objetivos claros de dominação
e elitização dos espaços memoráveis da cidade-esboço afetada pela sistematização da
paisagem; organizada de acordo com o habitus da população que vivia na cidade-
cotidiano, reelaborada em favor da sublimação dos dias de menor opulência e abandono
por parte das autoridades portuguesas, entre a virada do século ao advento do I Reinado.
Segundo Luz (2012), a manipulação governamental do espaço urbano de Vila
Boa, tem correlação com a elevação da vila à categoria de cidade, em 1818. Portanto,

radicais, monarquistas e a população atingida pela reorganização do espaço urbano empreendida pelo
prefeito Pereira Passos” (CADERNOS DE COMUNICAÇÃO, Série Memória, p. 11-13).
Cf. http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101424/memoria16.pdf Acessado em: 07-04-2016.
124
“O Comandante das Armas Cunha Mattos distingue a alimentação do goiano a partir de dois
universos: o do campo e o da cidade. Os camponeses comiam carne seca, feijão, verduras, milho na forma
de farinhas ou de canjica, cultivados ou criados nos quintais de suas moradas. O passadio urbano, mais
variado por causa da diversidade de produtos negociados nos comércios estabelecidos e ambulantes,
compunha-se de carne seca ou verde (fresca), aves, feijão, farinha de milho ou mandioca, café, hortaliças,
arroz e pouco vinho. Raramente consumia-se farinha de trigo, produto caro adquirido nos mercados de
São Paulo e da Europa, ingerida na forma de pães, peculiarmente. Ainda que se produzisse trigo nas
localidades de Cavalcante e Meia Ponte, como referido no capítulo anterior, não se supriam as
necessidades daqueles que podiam adquiri-lo. Na primeira metade do século XIX, o comércio da capital
era abastecido de mercadorias básicas. Além dos gêneros de produção local e regional, que atendiam à
demanda dos consumidores mais pobres, comercializava-se nas vendas e lojas, artigos sofisticados
provenientes principalmente da praça do Rio de Janeiro. Desse modo, esses estabelecimentos – que
vendiam mantimentos, cachaça, miudezas e variados tipos de tecidos – também proviam os mais
endinheirados de produtos requintados. O escravo e o livre pobre sustentavam-se com os produtos
cultivados localmente, como o milho, o feijão, o arroz e a mandioca, esta ingerida in natura ou na forma
de farinhas” (MAGALHÃES, 2004, p. 85 -89).
125
Cf. BÉGUIN, François. 1992 [1979]. “As maquinarias inglesas do conforto”. Espaço & Debates, São
Paulo, Neru, n°. 34.

233
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

segundo a pesquisadora, o século XIX, é um espaço temporal fértil para discutirmos as


interferências governamentais126 no espaço urbano, pois esse período é atrelado a um
conjunto de mudanças culturais europeias que impactaram o Brasil. Isso ocorre diante
do estabelecimento de um governo que reafirma a cultura colonizadora nesse processo,
sendo assegurado, pelo volume de documentação que formalizou o pensamento de
preservação e conservação da paisagem urbana colonial da Cidade de Goiás. Contudo, o
debate que visa aprofundar-se nestes documentos aguarda a proposição de outro estudo.

Vislumbrando Resistência Através das Imagens

A construção dessa narrativa mostrou e analisou a Cidade de Goiás como


um espaço de especificidades culturais que se avolumaram por meio das formas de agir,
das feituras no tempo e, principalmente, no modo como o presente se comporta por
meio das manifestações artísticas e culturais ao representar o passado que privilegia a
oficialidade e omite a complexidade histórico-cultural, que é inerente a essa
estruturação na Cidade de Goiás. O lugar dos invisíveis está mais que visível nas
visualidades de W. Burchell que, por sua vez, derrubaram o já decaído discurso da
decadência e isolamento da Cidade de Goiás quando revelou-nos a existência de uma
cidade-cotidiano que, ao subverter a força do poder oficial, reinventou-se a partir dos
esboços, das formas, das normas e das posturas constituindo não a cidade-ideal, mas
uma realidade cultural que não escapou ao interesse dos produtores de imagens que
passaram pela Cidade de Goiás entre os séculos XIX e XX.
Orientados pelas aberturas visuais flagradas por W. Burchell vislumbramos
horizontes para este estudo a partir das visualidades produzidas no século XX através da
fotografia que, de igual modo, validaram a permanência da maioria das práticas
cotidianas novecentista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Célia de Barros [et`al]. O Brasil monárquico, tomo II: o processo de


emancipação. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

126
A Cidade de Goiás, capital da província de Goiás, sofreu, nesse contexto de estabilização do Império,
as influências culturais, urbanísticas e restauradoras do Rio de Janeiro, capital país nessa época, o qual
possuía uma inclinação elitista.

234
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

BÉGUIN, François. 1992 [1979]. “As maquinarias inglesas do conforto”. Espaço &
Debates, São Paulo, Neru, n°. 34.

BURKE, P. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Lisboa: Difel,


1992.

CADERNOS DE COMUNICAÇÃO, Série Memória. In:


http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101424/memoria16.pdf Acessado em:
07-04-2016.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução Ephraim


Ferreira Alves. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.

FREITAS, Artur. História e Imagem Artística: por uma abordagem tríplice. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n° 34, julho-dezembro de 2004, p. 3·21.

FREITAS, Maria Helena. Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos


brasileiros. Ci. Inf., Brasília, v. 35, n. 3, p. 54-66, set./dez. 2006. In:
http://www.scielo.br/pdf/ci/v35n3/v35n3a06 Acessado em: 01-04-2016.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes (o olhar britânico 1800-
1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e


confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: FUNAPE, 2012.

PALACÍN, Luis; MORAES, Maria Augusta de S. História de Goiás. 7° edição


revidada, Goiânia: Ed. da UCG/ Ed. Vieira, 2008.

235
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

SAINT HILAIRE, Auguste de, 1779-1853. Viagem à Província de Goiás. Trad. Regina
Regis Junqueira; Apresentação de Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.

SANTOS, Renata. A imagem gravada: a gravura no Rio de Janeiro entre 1808-1853.


Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

RABELO, Danilo. A normatização dos comportamentos na Cidade de Goiás (1922 -


1889). Goiânia: Editora da UFG, 2010.

LUZ, Giovana Emos. GOYAZ, ENTRE A FORMA E A FUNÇÃO URBANA: um


estudo sobre a imagem da cidade de Goiás no século XIX (1845-1880). Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Goiás. Goiânia, 2012.

MAGALHAES, Sônia Maria. ALIMENTAÇÃO, SAÚDE E DOENÇAS EM GOIÁS


NO SÉCULO XIX. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da
Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Franca - SP: 2004.

FONTES

Manuscritos avulsos da Capitania de Goiás existentes no Arquivo Histórico


Ultramarino, Lisboa-Portugal. Coord. José Mendonça Teles et` al. Goiânia: Sociedade
Goiana de Cultura/IPEHBC, 2001.Doc. nº 26, 11 de Fevereiro de 1736, Provisão Régia
de D. João V, dispondo sobre a criação de uma Villa para sede da Capitania de Goyaz.
Transcrição: Milena Bastos Tavares, historiadora, documentalista e arquivista do Museu
das Bandeiras.

FOLDER COMEMORATIVO DOS 120 ANOS DE CORA CORALINA E 20 ANOS


DE FUNDAÇÃO DO MUSEU, Cidade de Goiás: 2009. Fonte: Museu Casa de Cora
Coralina (distribuição gratuita).

236
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

CORREIO OFICIAL. Anno LXI – 30° da República – N° 187. Capital de Goyaz –


Terça-feira, 17 de setembro de 1918

237
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

UM INTELECTUAL JUDEU ENTRE A CIDADE REAL E A


CIDADE IDEAL: CINEMA E POLÍTICAS PÚBLICAS NA
CRIAÇÃO DA NOVA IORQUE DE WOODY ALLEN (1977-2009)

Roberta do Carmo Ribeiro 127

O cineasta norte-americano Woody Allen costuma ser apresentado, na


imprensa e pelo marketing da indústria cinematográfica, como um símbolo da cidade de
Nova Iorque. Nascido no bairro do Brooklyn, desde seus primeiros filmes ele procurou
mostrar cenas que se passassem em sua cidade natal. Porém, a partir da segunda metade
da década de 1970, Woody Allen começou um ciclo de produção em que procurou
personalizar a cidade de Nova Iorque, transformando-a em um tipo de personagem dos
filmes. O marco inicial desse período foi o filme Annie Hall, de 1977, vencedor do
Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor. Em Manhattan, de 1979, essa relação tornou-
se explícita, figurando inclusive no título da obra, uma vez que ali “Nova Iorque é uma
personagem do filme” (Björkman, s/d, p. 114). Algo que, posteriormente, se repetiria
em Broadway Danny Rose (1984), Misterioso Assassinato em Manhattan (1993) e Tiros
na Broadway (1994).
Retratando e, ao mesmo tempo, registrando a Nova Iorque de seu tempo,
Woody Allen pode ser definido tanto quanto um cronista da cidade quanto, pensando a
partir das perspectivas de Robert A. Rosenstone, ou mesmo como um historiador da
cidade, na medida em que seus filmes podem ser interpretados como documentos sobre
Nova Iorque e as tipologias de relações sociais travadas por certos estratos sociais de
seus moradores. De acordo com Rosenstone,

Raros são os diretores que quiseram ganhar esse título (de cineasta-
historiador). Entre os americanos, temos que voltar a D. W. Griffith

127
Doutoranda em História na Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRGS). Mestre em História
pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Correio eletrônico:
robertahistoriaueg@gmail.com

238
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

para achar alguém que tenha feito tal reinvindicação – e, para ele, a
questão não era apenas pessoal, mas fazia parte de uma teoria mais
ampla que via, no futuro, os filmes como substitutos dos livros como
mídia primária para a transmissão de conhecimento sobre o passado
(...) Um cineasta que chegou a considerar a si mesmo um historiador
foi Roberto Rosselini (...) fez mais de uma dúzia de filmes históricos
(a maioria para televisão). Acreditava que “o filme deveria ser uma
mídia como qualquer outra, talvez mais valiosa do que qualquer outra,
para escrever a história” (2010, p. 169).

É importante estabelecer que os cineastas com potencial de serem


categorizados dentro desse modelo não cumprem a função tradicional de historiador,
mas sim que eles também produzem representações do passado, ou registram a “história
do presente”, utilizando-se de elementos reconhecíveis das narrativas históricas, por
meio da linguagem historiográfica.
Woody Allen realizou essa empreitada de modo a deixar muito claro na tela
sua visão acerca da cidade, sobretudo quando filmou Manhattan. Afirmou: “eu queria
mostrar a cidade do jeito que a sinto” (Lax, 2009, p. 60). As primeiras cenas do filme,
numa narração em off, o personagem interpretado por Allen descreve suas percepções
da cidade:

Capítulo um. Ele adorava a cidade de Nova York. Ele idolatrava tudo
fora de proporção. "Não, quero dizer "Ele romantizava tudo fora de
proporção”. Agora... “com ele não importa o que a temporada foi, isso
ainda era uma cidade que existiu em preto e branco e pulsava ao sim
das grandes músicas de George Gershwin”. Ahhh, agora deixe-me
começar de novo. "Capítulo Um. Ele era romântico sobre Manhattan
como era sobre tudo o resto. Ele prosperou na azáfama das multidões
e do tráfego. Capítulo um. “Ele adorava a cidade de Nova York. Para
ele, era um metáfora para a decadência da cultura contemporânea. A
mesma ausência de integridade individual de modo a causar muitas
pessoas a tomar o caminho mais fácil foi rapidamente transformando a
cidade dos seus sonhos em...". Não, vai ser muito enfadonho. Quero
dizer, você sabe... vamos enfrentá-lo, eu quero vender livros aqui
(Allen, 1981).

A ironia latente nesses “rascunhos” de texto e a transformação da cidade, ou


da imagem da cidade, em produto cultural presentes nessas tentativas de iniciar o livro
que o personagem estaria escrevendo, não impedem que os sentimentos do artista acerca
da cidade sejam legítimos. Essa busca pela frase perfeita é a busca pela descrição
perfeita de uma cidade que o narrador admira. Essa cidade que Allen busca descrever e
definir é uma metrópole quase imaginária. “O processo do imaginário constitui-se da
relação entre o sujeito e o objeto que percorre desde o real que aparece ao sujeito

239
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

figurado em imagens, até a representação possível desse real” (LAPLANTINE;


TRINDADE, 1996, p. 27). Em outras palavras, a Nova Iorque de Woody Allen parece
ser uma cidade mágica, bela e, sobretudo, limpa, nitidamente uma idealização do lugar.
Uma utopia.
A palavra utopia significa, em grego, “lugar que não existe” e foi
popularizada no século XVI, pelo filósofo inglês Thomas Morus, que a utilizou para
batizar uma ilha imaginária onde criou as bases teóricas do que seria um Estado
perfeito. Um lugar de paz, harmonia, bonança, livre dos males da guerra e, sobretudo,
da intolerância religiosa. O tempo passou e o termo utopia ganhou muitos outros
significados. Porém, nunca a imagem da terra paradisíaca descrita por Thomas Morus
foi esquecida. Boa parte da humanidade passou os últimos séculos acreditando poder
chegar, em um futuro próximo ou distante, a este lugar inexistente. Muitas vezes o
adaptando para sua própria realidade. É o que fazem muitos artistas. Giolio Carlo Argan
lembra que a “ideia de cidade ideal está profundamente arraigada em todos os períodos
históricos” (2005, p. 73).
A “utopia, segundo François Laplantine, é a construção matemática da
cidade perfeita, uma construção submissa aos imperativos de uma planificação absoluta
que tudo prevê e tudo controla” (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p. 36), ainda que
apenas no plano da fantasia, não no plano da realidade, uma vez que as utopias
mostraram-se impraticáveis por definição ao longo da história. De fato, como mostrou
Gilbert Durant, “isto equivale a destacar o caráter integralmente ‘simbólico’ do
imaginário humano, uma vez que o ‘pensamento simbólico’ é o modelo de um
pensamento indireto, isto é, onde existe sempre um hiato de significação entre
significante dado e significado chamado ao sentido” (1998, p. 1455).
Woody Allen, acreditamos, pode ser descrito como um exemplo nesse
sentido. Allen fez de Nova Iorque um ideal romântico, da mesma forma que Paris, outra
de suas cidades preferidas. Sobre o filme Manhattan, o crítico de cinema Roger Ebert
observou que

É um emocionante hino para a ideia de estar apaixonado em


Manhattan, cidade que Allen ama. A imagem de abertura é atordoante,
em direção do oeste sobre o Central Park, durante o amanhecer,
enquanto ao fundo se ouve a melodia “Rhapsody in Blue”, de
Gershwin, que tem o efeito de sempre – nos leva a sentimo-nos
transcendentes. As locações mais parecem uma antologia dos

240
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

santuários de Manhattan; os personagens visitam o Guggenheim, o


Elaine’s, a delicatéssen Zabar (2004, p. 315 – 316).

Por esse clima meticulosamente planejado, a Nova Iorque de Allen se insere


na tradição de elaborações intelectuais de utopias urbanas, como a República de Platão e
a Utopia de Thomas Morus. Segundo Nelson Motta, após ver o filme, “saindo do
cinema e caminhando de volta para casa me dei conta de que a ‘Nova Iorque de Woody
Allen’ era uma criação tão poderosa que, no meu imaginário, e até de espectadores
nova-iorquinos de Woody Allen, nunca pode ser alcançada pela Nova Iorque real”
(2009, p. 50).
Inegavelmente, a idealização de Nova Iorque realizada por Allen ajudou a
cristalizar no imaginário popular certa imagem da cidade. Chrisanne Beckner observe
que

A mística de Nova Iorque fez dela a metrópole comercial mais


conhecida do mundo e um centro de cultura, da liberdade e da
intelectualidade do país. É impossível resumir a turbulenta
personalidade da cidade, evidenciada por gigantescos arranha-céus,
ruas superlotadas, incessante vida noturna e por sua população
formada, entre outros, por artistas pop, milionários e intelectuais
(2003, p. 164).

Após essa descrição idílica, Beckner não se furta em lembrar que “por volta
de 1960, no entanto, altos impostos e um acentuado índice de criminalidade mancharam
sua imagem, o que desencadeou a fuga da maior parte das empresas com sede na
cidade” (2003, p. 164).
Essa realidade não passou despercebida pelo cinema. Diversos cineastas,
com destaque para Martin Scorsese, conterrâneo e contemporâneo de Allen, sempre
procuraram retratar uma Nova Iorque para além do cartão postal. Toda cidade, por mais
bela e rica que seja, de Paris a Londres, de Berlim a Buenos Aires, certamente passando
por Nova Iorque, possui seu submundo, sempre potencialmente perigoso e violento, não
completamente domado pelas autoridades constituídas. Nesse sentido, essa Nova Iorque
idílica mostrada por Allen contrasta com a visão que Scorsese retratou em filmes como
Taxi Driver (1976), New Iorque, New Iorque (1977) e Gangues de Nova Iorque (2002),
em que relações violentas estabelecem o tom e o clima da narrativa, tendo, da mesma
forma, Nova Iorque como um tipo de personagem simbólico.

241
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Em seu livro entrevista com Scorsese, o jornalista Richard Schickel lhe


pergunta:

Schickel: Bom, até que ponto Taxi Driver realmente brota daquele
período de Nova Iorque, em que muitos de nós que amamos a cidade e
adoramos morar aqui estávamos realmente anojados com a cidade...
Scorsese: Ah, isso foi horrível.
Schickel: Quer dizer, havia uma sensação de que a cidade estava
simplesmente descendo em espiral para ao inferno naquele momento.
Scorsese: Aquilo foi só o começo. Mas sou de Nova Iorque então
quando a cidade começa a cair, parece parte do ciclo. (...) Em Taxi
Driver, não gostei de filmar naquelas áreas de categoria X. A sensação
de chafurdar naquilo era, para mim, sempre cheia de uma tensão e de
uma extraordinária depressão (2010, p. 165 – 166).

Nesse sentido, convém comparar as obras de Woody Allen e Martin


Scorsese quanto a representação da cidade de Nova Iorque. Com destaque para os
episódios que cada um deles dirigiu no filme Contos de Nova Iorque (1989). Fazendo
isso, acreditamos que seja possível estabelecer proximidades e distanciamentos nas
respectivas visões sobre a cidade de cada um dos realizadores, problematizando as
possibilidades de suas respectivas formações pessoais (judaica e católica) terem
influenciado nas mesmas. No episódio de Allen observamos uma forte influência da
família na vida do protagonista, estabelecendo um sentimento de pertencimento a um
núcleo comunitário, como é comum Allen apresentar os judeus da América. Scorsese
apresenta um desejo de martírio causado pela busca e repressão do prazer pessoal, algo
condizente com sua visão de questionamento aos princípios católicos nos quais foi
criado, algo que impregna sua obra.
Com a política denominada de “Tolerância Zero” de combate ao crime,
implementada por Rudolph Giuliani, prefeito de Nova Iorque entre janeiro de 1994 a
dezembro de 2002, houve uma espécie de “limpeza” das ruas da cidade, quando
podemos notar uma aproximação da estética anteriormente apresentada por Woody
Allen com elementos da política para cidade, que transformaram Nova Iorque em um
espaço preparado para receber turistas. Segundo essa política de “Tolerância Zero”, que
ganhou fama mundial e passou a ser imitada por diversas cidades do mundo, apesar de
receber inúmeras críticas, por ser considerada demasiadamente dura e intolerante, o que
deveria ser feito seria a implementação enquanto elemento legal do provérbio popular
de que “quem rouba um ovo, rouba um boi”. Nesse sentido, os pequenos delitos tinham
que ser combatidos de forma rigorosa, para evitar a formação de futuros marginais

242
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

profissionais que promovessem uma onda de crimes ainda maior. Inegavelmente, apesar
da controvérsia, a “Tolerância Zero” foi um sucesso, atingindo suas metas. Os índices
de criminalidade despencaram. Um exemplo disso é que o metrô de Nova York, antes
considerado inseguro e um foco de violência, tendo sido assim retratado no filme
Bananas (1971), em que curiosamente Allen é agredido por um Sylvester Stallone em
início de carreira, transformou-se no símbolo da política de segurança da cidade.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 representaram uma catástrofe nesse
ambiente urbano que Woody Allen tanto festejou. A cidade de Nova Iorque jamais seria
a mesma.
Na cerimônia do Oscar de 2002, Woody Allen surpreendeu a todos quando
apareceu para falar sobre o assunto, assumindo seu status de ícone da cidade. Entrou no
palco inesperadamente, sem ninguém saber, a não ser a produtora da cerimônia Laura
Ziskin. O segredo foi uma das condições de Allen para aceitar o convite. Tanto que ele
não passou pelo tapete vermelho, chegou apenas meia hora antes de sua apresentação e
foi embora do Teatro Kodak assim que a terminou. Anunciado pela apresentadora,
Whoopi Goldberg, recebeu uma grande ovação de pé de todos os presentes. Muitos ali
ganharam ou foram indicados ao Oscar trabalhando sob seu comando. O registro em
vídeo de sua fala está disponível na internet. Nele Woody Allen, assumindo sua imagem
pública ao mesmo tempo tímida e espirituosa, conta que

há quatro semanas, estava no meu apartamento, o telefone tocou e a


voz do outro lado disse “aqui é a Academia”... Entrei em pânico
porque, afinal, o mercado pornô está falido há algum tempo. Pensei
que queriam os meus Óscares de volta. Depois achei que me queriam
pedir desculpa por não estar nomeado esse ano com O escorpião de
Jade. Não. Pensei que eles iam me homenagear, pois mais de um terço
da minha vida já passou. Não, eles só queriam que eu mostrasse o
apoio deles a Nova York. Iriam fazem um “bonito tributo” à minha
cidade. Por Nova Iorque faço tudo. Peço aos produtores e atores que,
após os atentados que destruíram o World Trade Center, voltem para
Manhattan.

Em seguida Woody Allen anuncia um clipe mostrando cenas de filmes


realizados em Nova Iorque, como Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), Shaft (1971,
Gordon Parks), Quero ser grande (1988, de Penny Marshal), Bonequinha de Luxo
(1961, Blake Edwards) e Harry & Sally (1989, Rob Reiner) e muitos outros. Filmes que
mostram versões de Nova Iorque muito diferentes da sua, como Taxi Driver, que
escapam de seu escopo de observação da cidade, como Shaft, um filme centrado na

243
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

comunidade negra da cidade, ou filmes que emulam sua visão da cidade, como Harry &
Sally, que foi chamado pela crítica de um filme de Woody Allen que não foi feito por
Woody Allen.
Porém, embora tenha participado dessa homenagem a Nova Iorque, como
explica Neusa Barbosa, “Woody não é patriota nem nacionalista de forma assimilável à
primeira vista e isso gera desconfiança em muitos americanos, especialmente em
momentos de autoestima nacional sensível, como o pós-atentado de 11 de setembro de
2001” (2002, p. 188). E é possível que sua resistência em produzir um filme que tratasse
especificamente do tema tenha reforçado essa imagem.
De fato, na concepção idealizada de Nova Iorque de Woody Allen, e em
função de sua visão de mundo fundamentalmente centrada nos problemas individuais e
nos pequenos incidentes domésticos, num contraponto às grandes tragédias, o tema do
11 de setembro escapou de sua zona de interesse artístico. Woody Allen, mesmo diante
de um tema potencialmente épico e desafiador, optou por continuar com sua estética
baseada em cenas cinematograficamente simples, embora repletas de camadas
interpretativas, idealizando Nova Iorque, vendo-a não como uma cidade eminentemente
trágica, mas como uma cidade que passou por uma tragédia e que a superou ou deve
superar.
Gilbert Durante afirmou que “qualquer método de investigação científica
justifica-se de duas maneiras. – pela sua ‘oportunidade’ histórica / - pela sua adequatio
(a sua pertinência) relativamente ao seu objetivo (o seu ‘objecto’)” (1996, p. 146).
Acreditamos que estudar a visão acerca da cidade de Nova Iorque presente na obra no
cineasta norte-americano Woody Allen contempla os dois casos. Primeiro porque Allen
é comumente visto como um dos mais importantes artistas que possuem o nome ligado
a cidade. Sua fama deve-se em grande parte a Nova Iorque. Em segundo lugar porque
foi justamente nessa cidade que ocorreu os principais desdobramentos de um dos mais
socialmente impactantes eventos do século XXI: os atentados de 11 de setembro de
2001. Temos aqui a “oportunidade” de analisar a interpretação desse cineasta para tais
eventos, o que nos parece de extrema “pertinência”, dado seu grau de relação com a
cidade. Sobretudo se levarmos em conta que Allen criou, sobretudo em seus filmes das
décadas de 1970 e 1980, um imaginário bucólico sobre Nova Iorque.
De acordo com Rosenstone, o cineasta-historiador é um artista que “faz” um
discurso sobre a história, visando seu consumo por grandes públicos, normalmente
públicos consideravelmente mais vastos do que os que têm acesso a um texto de história

244
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

tradicional, no formato escrito. Nesse sentido, os cineastas-historiadores podem adotar


diferentes perspectivas acerca da representação histórica via filme, que podem pretender
“visualizar” a história, “contestar” a história ou “revisar” o passado. Para Rosenstone,
esses artistas

criam obras que visualizam, contestam e revisam a história. Visualizar


a história é pôr carne e osso no passado; mostra-nos indivíduos em
situações que parecem reais, dramatizar acontecimentos (...).
Contestar a história é fornecer interpretações que contradizem o
conhecimento tradicional (...). Revisar a história é nos mostrar o
passado de uma maneira nova e inesperada, utilizar uma estética que
viola os modos realistas e tradicionais de contar o passado, que não
segue uma estrutura dramática normal ou que mistura gêneros e
modos (2010, p. 174).

Certamente, Woody Allen não pretende falsear ou recontar a história do 11


de setembro. Pelo menos sua obra até o momento não demonstra nada nesse sentido.
Mas, de modo consciente e discreto, pode ter realizado esse debate a partir das
entrelinhas de seus filmes, mediante o interesse que o cineasta sempre demonstrou
como sendo sua prioridade: as pessoas, as personagens. Nesses casos, muitas vezes,
esses “personagens não se apresentam no contexto histórico; são concebidos como
pessoas aistóricas, tal como se mostram nas histórias dos heróis dos desenhos animados
da televisão” (BITTENCOURT, 2004, p. 196). Mas, ao mesmo tempo, não estão
separadas do contexto histórico no qual foram criados.
Por exemplo, a mensagem geral do filme Igual a tudo na vida (2003), que
se passa numa Nova Iorque que convive com a memória recente do 11 de Setembro,
parece ser que as tragédias, grandes ou pequenas, pessoais ou coletivas, são inevitáveis.
Restaria aos indivíduos se adaptarem as novas situações trazidas por elas. Em alguns
casos a reação pode ser a de fuga, como acontece com o tipo interpretado por Woody
Allen no filme. Na verdade, via de regra, seus personagens não se comprometem ou se
posicionam politicamente.
Obviamente esse desinteresse por política possui seus revezes para os
personagens de Allen, sendo que seu cinema

apresenta indivíduos que sofrem de “neurose urbana”, um conjunto de


personagens asfixiados pelo ego hipertrofiado. Os filmes tratam do
impasse do narcisismo e evidenciam a tensão inerente às democracias:
quando o indivíduo é sobrenado pode acabar perdendo o interesse em
política a assim precipitar a própria destituição. Entronizados,

245
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

excessivamente cheios de si, ele se entorpece e se afasta da vida


pública, o que mais tarde pode prejudicá-lo e provocar sua queda
(Vartzbed, 2012, p. 54 – 55)

A idealização de Nova Iorque perpetrada por Woody Allen acaba se


revelando, nesse sentido, um adorno para essas existências autocentradas. Numa cidade
turbulenta tais vivências não seriam possíveis ou, por outra, estariam constantemente
ameaçadas. Pois, como afirmou José de Sousa Martins, “em relação à realidade
anônima da rua e das situações sociais externas à casa, o temor é substituído pelo terror.
Nesse caso, o que o medo propõe é a fuga e não a obediência” (1996, p. 29). Ou seja: os
personagens estando constantemente ameaçados não poderiam se ocupar de seus dramas
pessoais, fossem eles reais ou imaginários. De fato tais desdobramentos de enredo não
parecem interessar Allen, que optou por alijar seus personagens de problemas
mundanos tais como a violência, a pobreza, doenças etc.
O historiador da arte Giolio Carlo Argan escreveu que “a pesquisa histórica
nunca é circunscrita à coisa em si. Mesmo quando, como ocorre com frequência, se
propõe como objetivo uma única obra, logo ultrapassa os seus limites para remontar a
toda uma situação cultural” (2005, p. 15). A partir dessa percepção é possível
estabelecer relações mais complexas acerca das perspectivas de Woody Allen acerca de
Nova Iorque enquanto uma utopia, a despeito de seus evidentes problemas urbanos e
mesmo diante de uma catástrofe do tamanho da ocorrida em 11 de setembro de 2001.
Nesse cenário é possível observar dois paradoxos.
O primeiro é evidente, embora raramente lembrado: pouco depois de fazer
seu apelo aos cineastas para que voltem a filmar em Nova Iorque, Woody Allen começa
seu autoexílio na Europa. O final de Dirigindo no escuro (2002) é um indicativo. Nesse
filme, Woody Allen interpreta um cineasta que, ao assumir um novo trabalho, sofre um
colapso psicológico que o faz perder a visão. Mesmo assim não abandona o projeto e
termina o filme. A crítica norte-americana detesta, mas, incrivelmente, os franceses
adoram. O respectivo filme, mesmo sendo incompreensível, ou, talvez, ironicamente,
justamente por ser incompreensível, faz muito sucesso na França. O diretor, que ao final
do filme já recuperou a visão, embarca para a Europa dizendo que “ainda bem que
existem os franceses”.
O segundo paradoxo se dá pela ausência. Após fazer sua única aparição na
festa do Oscar em função dos atentados de 11 de setembro, Woody Allen, em nenhum

246
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

momento de sua obra até aqui, cita de maneira explícita os atentados em seus filmes.
Numa perspectiva simplista, é como se não tivessem ocorrido.
Pode-se perguntar: mas qual a relevância de citá-los? É tão importante
assim? Talvez a resposta para essa pergunta deva ser dada pela tradição cinematográfica
norte-americana. O cinema americano, do qual Woody Allen jamais tentou se afastar,
considerando-se um cineasta da tradição americana que dialoga com modelos estéticos
europeus, sempre retratou os episódios de crise de sua história. A Guerra de Secessão
está nas origens do nascimento da linguagem cinematográfica, sendo o tema do filme O
nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith, reaparecendo em diversas
produções menores e depois no épico ...E o vento levou (1939), assinado por Victor
Fleming. A conquista do oeste, com tudo que teve de “heroico” e sangrento, tornou-se
um gênero cinematográfico por si só, que gerou desde filmes de matinê até obras-
primas, como O homem que matou o facínora (1962), de John Ford, e Rio Vermelho
(1948), de Howard Hawks.
O mesmo aconteceu com a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã.
Conveniente notar que praticamente todo grande cineasta realizou pelo menos um filme
sobre esses temas. Francis Ford Coppola, por exemplo, fez Apocalipse Now (1978) e
Stanley Kubrick realizou Nascido Para Matar (1987) para discutir esses grandes temas
de seu tempo. Considerando ainda que a verdadeira natureza humana surge nos
momentos extremos, esses cineastas transformaram tais catástrofes em matéria-prima
para suas reflexões artísticas acerca da sociedade.
Nesse sentido, é sim, relevante, perguntar-se acerca dessa negação de
Woody Allen em tratar explicitamente da Nova Iorque do submundo, bem como dos
impactos de um atentado terrorista de grande porte.
Diversos filmes trataram desse segundo tema. Alguns deles foram
explícitos, como o documentário 11/9, dos irmãos Jules e Gedeon Naudet e James
Hanlon, que registrou a única imagem conhecida do primeiro avião atingindo a primeira
torre. Também se fez ficção como os dramas WTC – por trás do 11 de setembro, de
Antonia Bird, Voo 93 (2006), de Paul Greengrass, e As Torres Gêmeas (2006), de
Oliver Stone. Outros filmes usaram os atentados como pano de fundo para melodramas,
como Tão forte, tão perto (2011), de Stephen Daldry.
Sobre o 11 de setembro, o criador do “Tolerância Zero”, Rudolph Giuliani
afirmou que: “A cidade vai sobreviver, nós vamos passar por isso, e será muito, muito
difícil. Eu não acho que saibamos a dor que vamos sentir quando descobrirmos o que

247
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

perdemos, mas a única coisa que temos que focar agora é fazer essa cidade passar por
128
isso, e sobrevivermos e sermos mais fortes por ela” . Podemos interpretar que
“tornar-se mais forte” significa aqui fortalecer ainda mais a política do “Tolerância
Zero”, uma vez que “as épocas de crise de um poder serem também aquelas em que se
identifica a produção de imaginários sociais concorrentes e antagônicos, e em que as
representações de uma nova legitimidade e de um futuro diferente proliferam e ganham
difusão e agressividade” (BACZÓ, 1995, p. 310), sendo que essa nova realidade pode
ser usada para justificar posturas repressivas e, ao mesmo tempo, “culmina na
fabricação do carisma do grande chefe” (p. 350), como se verificou com a ampliação da
fama de Rudolph Giuliani após o 11 de setembro.
Durante o lançamento do filme Melinda e Melinda (2004), que narra a
mesma história pelo ponto de vista da comédia e da tragédia, um site português
chamado “P”, noticiou no dia 01/07/2005 que “Realizador desvaloriza acontecimento:
11 de Setembro não interessa a Woody Allen”. Lemos na nota que

Woody Allen não parece querer perder tempo com o ataque do dia 11
de Setembro de 2001. O realizador de “Melinda e Melinda” vê o
ataque da Al-Qaeda como um desastre menor comparado com outros
acontecimentos históricos.
“Como realizador, não estou interessado no 9/11. É demasiado
pequeno. A história do mundo é do tipo: ele mata-me, eu mato-o, mas
com diferente maquilhagem e com diferentes 'castings'. Em 2001, uns
fanáticos mataram uns americanos, e agora uns americanos estão a
matar uns iraquianos. E na minha infância, uns nazis mataram judeus.
E agora, alguns judeus e alguns palestinianos estão a matar-se.
Questões políticas, se recuarmos milhares de anos, são efémeras, não
importantes. A história repete-se uma e outra vez”, concluiu Allen.129

A expressão usada por Allen para definir os eventos, “é demasiado


pequeno”, é polêmica por si só. Não se pode esquecer que os judeus são um povo
marcado pelas tragédias. Desde as guerras na Antiguidade, passando pela diáspora até o
Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial. Geralmente, a obra de Woody Allen é
estudada a partir da problemática do humor judaico. Segundo Minois, “há um domínio
que parece estar no centro do humor judaico: a religião. (...) A base do humor judaico é
justamente o ceticismo, a crítica da religião, que foi um pesado fardo” (2003, p. 565). É
inegável, e o escritor e pesquisador brasileiro Ivan Sant’Anna comprovou isso em seu

128
http://www.quemdisse.com.br/frase.asp?frase=95651. Acesso dia 19 de agosto de 2014).
129
(http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/11-de-setembro-nao-interessa-a-woody-allen-1227179.
Acessado em 12 de agosto de 2014)

248
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

livro sobre os atentados, Plano de Ataque. Para Sant’ Anna, embora a principal
motivação do 11 de setembro tenha sido religiosa, o fundamentalismo islâmico contra a
civilização judaica-cristã ocidental, sem dúvida os desdobramentos políticos do evento
foram igualmente fundamentais enquanto perspectiva explicativa.
Contudo, no “universo de Woody Allen, a política é deixada em segundo
plano: o ponto de vista é psicológico ou existencial” (Vartzbed, 2012, p. 54).
Aparentemente, essa minimização do 11 de setembro parece trazer em si muito mais
uma perspectiva pessoal do cineasta, que de fato pouco se mostrou interessado em
problematizar a questão da guerra em sua obra pregressa, do que necessariamente um
desprezo ou desinteresse pelo acontecimento em si, uma vez que ele se mostrou crucial
para o desenvolvimento das relações sociais na cidade de Nova Iorque.
A questão das consequências urbanas pós-11 de setembro estão muito bem
trabalhadas no filme Nova Iorque eu te amo (2008), uma coletânea de curtas que
retratam as tensões e aproximações entre as diversas comunidades nova-iorquinas,
desde judeus, árabes até os WASPS tradicionais. Em Nova Iorque eu te amo fica
evidenciado que tudo mudou após o 11 de setembro. Por que não para a Nova Iorque de
Woody Allen? Ou o contrário: para Woody Allen realmente não mudou? Ou essa
mudança é implícita, está nas entrelinhas? Será que o título de filmes como Tudo Pode
dar Certo (2009), com o qual Woody Allen marcou seu retorno a Nova Iorque após sua
primeira passagem pela Europa, contêm referências tanto quanto aos personagens
retratados quanto sobre a cidade como um todo?
As respostas podem estar nas entrelinhas das obras de Allen, no sentido de
que suas perspectivas acerca dos eventos que moldaram a urbanidade de Nova Iorque
passarão diretamente por sua subjetividade enquanto artista e, sobretudo, enquanto
cineasta-historiador. Ubiratan Paiva de Oliveira observa que no citado trecho de
abertura de Manhattan (1979) não existe apenas apologia, mas uma sutil crítica.

Se as imagens deixam uma visão quase paradisíaca da cidade, há um


contraponto introduzido pela voz do protagonista Isaac (Woody Allen)
em sua tentativa de escrever um romance sobre a mesma (...). Ao
mesmo tempo em que declara sua paixão pela cidade, Isaac também
expressa sua preocupação com os problemas que ela apresenta,
causados pela vida moderna e por pessoas que revelam-se indignas
dela. Afirma Allen: “em Manhattan, não é Nova Iorque que ataco, é a
raiz do mal. Não é um filme que se satisfaça em dizer: ‘cuidem do
Central Park’. É um filme que diz: ‘Cuidem de sua vida emocional,
sem a qual não serão jamais capazes de cuidar de um Central Park’”
(2009, p. 52)

249
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

A opção filosófica pelo individualismo de Allen é evidente nesse trecho. Ele


não se interessa por questões estruturais, as relações sociais, mediadas talvez pela
psicanálise, que sempre esteve presente em sua obra, lhe parece ser o modo correto para
se abordar tais questões. Sendo a linguagem imagética uma das características do
mundo moderno, o cinema pode ser visto não apenas como um divulgador de grandes
imagens e cenas, imagens explícitas de catástrofes, que gerem catarse diante de seu
apuro técnico, o cinema pode ser também o veículo condutor do conhecimento
histórico, partindo do “micro para o macro”. (PINSKY; PINSKY, 2004, p. 34).
Das muitas possibilidades teóricas para se estudar a história urbana, uma das
mais tradicionais baseia-se nas relações entre o campo e a cidade, tendo Raymond
Willians como um de seus maiores expoentes. Porém, pesquisadores como Richard
Senett, autor de Carne e Pedra (1997), e Michel de Certeau, em A Invenção do
Cotidiano (1994), direcionam suas reflexões no sentido de pensar a cidade de modo
fundamentalmente independente do campo. Independente não de modo irrestrito, uma
vez que as relações comerciais e de trocas sociais e de populações são evidentes e
incessantes, mas no campo simbólico. Para esses autores o individuo urbano, ou
urbanizado, ou ainda colocado forçosamente num situação de convívio urbano,
desenvolve práticas sociais próprias. Na obra fílmica de Woody Allen essa fórmula é
constantemente usada. Seus personagens são figuras urbanas, sentem-se desconfortáveis
em ambientes não urbanos. A natureza higienizada de lugares como o Central Park são
seus limites de contato com o campestre.
Nas condições de criaturas eminentemente urbanas esses personagens são
colocados por Woody Allen em cenários que procuram criar um ideal imaginário de
cidade. De acordo com Giolio Carlo Argan, não por acaso no artigo “Cidade Real e
Cidade Ideal”, é notável que

ainda que algumas amostras de cidade ideal tenham sido


realizadas (...) a chamada cidade ideal nada mais é que um ponto
de referência em relação ao qual se medem os problemas da
cidade real, a qual, pode, sem dúvida, ser concebida como uma
obra de arte que, no decorrer da sua existência, sofreu
modificações, alterações, acréscimos, diminuições,
deformações, às vezes verdadeiras crises destrutivas (2005, p.
73)

250
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Argan acrescenta ainda que “a hipótese da cidade ideal implica o conceito


de que a cidade é representativa ou visualizadora de conceitos ou de valores” (ARGAN,
2005, p. 74), que podem representar expectativas advindas de discursos normatizados,
como os aplicados forçosamente pelo Estado no caso da política repressiva do
“Tolerância Zero”, mas que também deixam margem para a atuação de resistência do
individuo, uma vez que “a linguagem do poder ‘se urbaniza’, mas a cidade se vê
entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder
panóptico” (DE CERTEAU, 2007, p. 174), ou seja, a vida e a ação humana cotidiana
que, pela constância e quantidade, não pode ser controlada. Aquilo que Michel de
Certeau chamou de “artes do fazer”. Em suas palavras “essas ‘maneiras de fazer’
constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado
pelas técnicas da produção sócio-cultural” (2007, p. 41). Tais “maneiras de fazer”
garantiriam certa possibilidade ao “homem ordinário”, o individuo comum, de vivenciar
certa liberdade no ambiente urbano, apesar de suas regras de conduta controladas pelo
Estado.
Em Woody Allen esse “homem ordinário” costuma ser representado a partir
do encontro e das relações travadas entre o judeu americano e o típico WASP (White,
anglo-saxon and protestent ou Branco, anglo-saxão e protestante) de classe média alta.
É interessante perceber que embora muitas dessas figuras sejam artistas ou escritores,
não costumam ser apresentados como figuras de grande fama ou importância social.
Apesar de serem economicamente privilegiados não são, necessariamente, socialmente
influentes, constituindo-se em homens ordinários que vivem vidas ordinárias na cidade
grande. Seus dramas cotidianos, por opção estética de Allen, muitas vezes costumam ser
representadas a partir da comédia. Portanto, essa cidade ideal é habitada por seres
humanos falhos. A cidade real caminhando, vivendo e respirando dentro da cidade
ideal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giolio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

BACZÓ, B. A. A imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Porto: Casa da Moeda


– Imprensa Nacional, 1995.

251
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

BARBOSA, Neusa. Gente de cinema: Woody Allen. São Paulo: Editora Papagaio,
2002.

BECKNER, Chrisanne. 100 cidades. São Paulo: Ediouro, 2003.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e


métodos. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção Docência em Formação)

BJÖRKMAN, Stig. Woody Allen por Woody Allen. Rio de Janeiro: Nordica, s/d.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2006.

CASTRO, Ruy. Um filme é para sempre: 60 artigos sobre cinema. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

COSTA, Antônio. Compreender o Cinema. São Paulo: Globo, 1989.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.

DEFANTI, Angelo; MENEZES, Ines (Org.). A elegância de Woody Allen. Rio de


Janeiro: Sobretudo produções, 2009.

DURANT, Gilbert. O Imaginário. Rio de Janeiro: Difel, 1998.

EBERT, Roger. A magia do cinema. São Paulo: Ediouro, 2004.

FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

252
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

GRAY, Thomas E; OWENS, Susan P. New York – History, Geograph & Government.
Nova Iorque / EUA: Glencoe, s/d.

HOWARD, David; MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. 3° Ed. São Paulo:
Globo, 2002.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

KARNAL, Leandro (org). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 2.


ed. São Paulo, Contexto, 2004.

LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. São Paulo: Cosac Nayf, 2009.

MARTINS, José de Sousa. A peleja da vida cotidiana. In: MARTINS, J. S. (Orgs).


(Des) figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole. São Paulo:
Hucitec, 1996.

MELLO, Gláucia Boratto R. de. Contribuições para o estudo do imaginário. In: Em


aberto. Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar. 1994.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma “História Visual”. In: MARTINS, José
de Souza; ECKERT, Cornélia; NOVAES, Sylvia Caiuby. (Orgs). O imaginário e o
poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: Edusc, 2005. p. 33-53.

MOTTA, Nelson. O homem e a cidade, uma história de amor. In: DEFANTI, Angelo;
MENEZES, Ines (Org.). A elegância de Woody Allen. Rio de Janeiro: Sobretudo
produções, 2009. p. 50 – 51.

NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São
Paulo: Globo, 2005.

253
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

OLIVEIRA, Ubiratan Paiva. Woody Allen e sua cidade. In: DEFANTI, Angelo;
MENEZES, Ines (Org.). A elegância de Woody Allen. Rio de Janeiro: Sobretudo
produções, 2009. p. 52 – 56.

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo:


Brasiliense, 1996.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.

NÓVOA, J; FRESSATO, S. B; FEIGELSON, K. (Orgs). Cinematógrafo: um olhar


sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. Da UNESP, 2009.

OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Estética da catástrofe. Goiânia: editora da UCG,


2008.

SANT’ANNA, Ivan. Plano de ataque – a história dos voos de 11 de setembro. São


Paulo: Objetiva, 2006.

SCHICKEL, Richard. Conversas com Scorsese. São Paulo: Cosac Nayf, 2011.

VARTZBED, Éric. Como Woody Allen pode mudar sua vida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.

WHITE, Hayden. Meta História: A Imaginação Histórica do século XIX.

254
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

TRADIÇÃO E PRESERVACIONISMO NA PRODUÇÃO


LITERÁRIA DE OCTO MARQUES (1915-1988)

Sílvia Zeferina de Faria130

O presente texto faz parte de um esforço inicial para problematizar o


pensamento, expresso em obra literária, do pintor goiano Octo Marques (1915-1988).
Contém, nesse sentido, um esboço de sua trajetória literária, investigando a
possibilidade de levantar hipóteses em torno da interpretação que o artista realiza sobre
a Cidade de Goiás, cidade expressa em seus elementos preservacionistas. O pensamento
de Octo Marques expresso em sua literatura pode ser meio para se discutir a cidade de
Goiás, em sua preservação patrimonial. Essa escrita literária pode ser uma invenção da
tradição da arquitetura colonial e da herança africana, simbolizada na congada.
As representações da paisagem literária da Cidade de Goiás expressas nas
obras de Octo Marques compreendem o período de sua própria existência: a origem do
seu nascimento, em 1915 e de sua morte em 1988. Essa representação urbana foi
ilustrada em folclore e lendas: na dança dos tapuios, em tradições apresentadas no
programa religioso, nas festas de junho em louvor do Divino Espirito Santo; na
representação da atividade mineradora e na Casa de Fundição e mapa do tesouro do
personagem Dom João de Almeida131 e nos seus artigos de opinião. Paisagens
construídas em vários estilos de narrações: folclóricas, lendas, casos, contos, crônicas e
artigos, memórias a serem preservadas.
A sua escrita pictórica, por sua vez, esteve relacionada aos seus artigos de
opinião e evidenciou sua predileção pelo regional, para enfatizar sua cidade “mãe”,
antiga Vila Boa, que havia perdido o status de capital com a transferência da Capital
para Goiânia. Octo Marques enfatizou traços construtivos na descrição de sua

130
Mestranda da Universidade Estadual de Goiás – TECCER - Anápolis. Integrante do GEHIM – Grupo
de Estudos de História e Imagem. CNPq/UFG. Orientador: Dr. Ademir Luiz da Silva.
131
Em sua crônica O tesouro do Morro Canta Galo narra o mapa do tesouro do reinol rico e militar D.
João de Almeida, enviado pela S. Majestade Imperial para abrir inquérito sobre agressão ao Padre
Perestelo, que foi libertado pela Ordem dos Bufantes do julgado de Catalão. Esse reinol passou a residir
em Vila Boa e deixou um mapa sobre o seu tesouro (MARQUES, 1977:236).

255
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

arquitetura e elementos relacionados às festas populares, dados que contribuiriam para


se pensar uma “tradição” para a cidade.
Na invenção de uma tradição como tema central desse texto, analisarei o
problema a ser investigado: é possível que por meio de sua produção literária, Octo
Marques tenha, ao lado de intelectuais e instituições de cultura, defendido a volta às
tradições? Traços que enfatiza e reelabora em sua produção literária?
Para isso, tomarei como documento duas de suas produções literárias
veiculadas no Jornal Cidade de Goiás no ano de 1938 e nas seguintes obras publicadas:
Casos e lendas de Vila Boa (1977), editado pela gráfica O Popular; além da obra
Cidade Mãe: casos e contos (1985), divulgados pela fundação das Legionárias do Bem-
Estar Social. Colcha de retalhos: casos e crônicas (1994), editado pela UFG.
Essa seleção documental parece conter o tema preservacionista expresso de
maneira explícita ou implícita em narrativas ficcionais, sob a ótica da construção de
características que, reunidas, podem ser consideradas fundamentais para se elaborar
uma tradição. Segundo Eric Hobsbawn (2008) a “tradição inventada” tem um sentido
amplo e indefinido, é uma tradição construída por instituições ou indivíduos e grupos
para atender a reclames identitários ou de legitimação de projetos de poder. Essa
invenção pode ser uma prática regulada por regras em comum acordo, que se utilize de
um ritual ou símbolo que pode ser repetido no seu valor ou norma, que represente uma
continuação do passado apropriado e histórico.
Essa tradição de um passado histórico remete a uma repetição, como foi a
Congada narrada pelo artista Octo Marques ou uma ação nova, o que neste caso
representou a forma de escrever sobre a preservação da arquitetura colonial da Cidade
de Goiás, que passou a ser um referencial literário em sua beleza patrimonial e
necessidade de ser preservada. A exemplo, na crônica da E a morte vence a História?
Cito:
Aqui estarei, no momento, focalizando através das minhas pobres
palavras a enorme perda que sofremos ante a ausência, no nosso
habitat tradicional, de uns certos monumentos e pontos existentes no
antanho em Vila Boa. E agora desaparecidos completamente da
geração atual, e apenas retratados, na presente época, por aqueles, que,
como eu, ainda os conservam na memória. (MARQUES, 1994:75)

Em sua produção literária encontra-se a preocupação com o fim dos


monumentos e a defesa de uma preservação patrimonial. Ao mesmo tempo, naquilo que
não foi possível defender em palavras, o pintor expressou-se por meio do grafite para

256
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

traçar os contornos das linhas compondo uma “invenção” do que foi perdido na
destruição da edificação de uma arquitetura e preservado em sua literatura.
A “tradição” foi uma característica em seu cotidiano no transitar nas ruas de
sua cidade “mãe”, em seus casarios coloniais, que foi comentada pelo jornalista
Alexandre Konder (1949). O jornalista descreveu o seu primeiro encontro com Octo
Marques na Cidade de Goiás, a “terra do Anhanguera”, pintada e escrita pelo seu
sentimento apaixonado ao ver a paisagem da natureza, como a Serra Dourada, copiando
para suas pinturas essas belas paisagens, velhas ruas, edifícios das velhas igrejas e da
Cruz de Bartolomeu Bueno, que somente sua cidade podia oferecer. Classificou o
escritor como pintor em toda “extensão da palavra”, que, como dizia não se preocupava
com bens materiais e era de uma alma pura: “sem ambições do materialismo, que
durante minha jornada nessa terra pátria já encontrei”(KONDER, 1949:1).
A estudiosa Aline Figueiredo (1979) também enfatiza esse traço no pintor.
Segundo ela “uma presença solitária do escritor em meados dos anos cinquenta,
realizando uma pintura realista e ingênua, que retratou sua antiga capital e com cenas
ainda estão presentes na Cidade de Goiás” (FIGUEIREDO, 1979:96). O escritor
Bernardo Élis (1987), por sua vez, enfatizou os paineis da reconstituição da rua Moretti
Foggia de 1915, para a churrascaria “Pito Aceso”, pintando a Cruz do Anhanguera, o
Palácio do Conde dos Arcos132 e o Largo do Chafariz.
Elder Rocha Lima (2009) diferenciou a pintura e a literatura de Octo
Marques, mas enfatizou que ambas estiveram centradas na Cidade de Goiás. O mesmo
ocorreu com a análise de Miguel Jorge (1998), que considerou que sua vida e produção
se misturaram com sua cidade natal, enquanto Sá Peixoto (1998) destacou ainda que em
sua pintura ingênua, a arquitetura prevalecia associada aos moradores da cidade.
A manutenção patrimonial da Cidade de Goiás foi classificada pela autora
Rosi Meire Corrêa (2003) nos três artistas renomados: Veiga Valle, Octo Marques e
Goiandira do Couto. Corrêa destacou três correntes das artes plásticas, classificando a
primeira linha como “preservacionista”. A que envolveu a pintora Goiandira do Couto e
outros, que se destacaram na pintura arquitetônica. A segunda como expressão popular
de Octo Marques e outros representantes que captaram “sombras e gente simples”. A
terceira vertente, que a autora considerou como de “Outros olhares” são daqueles que
estão na margem e expressam uma preocupação social e estética.

132
Tombado em 1951, inscrição no Livro do Tombo das Belas Artes, volume I, folhas 77.

257
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

No site do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)


Goiás, publicado em 2011, é possível identificar a preservação da cultura material e
imaterial da Cidade de Goiás, tombada em 2001. Em sua redação, o site cita Octo
Marques em sua importância literária para o processo de patrimonialização.
Esses intelectuais, artistas e instituição que versaram sobre o escritor Octo
Marques tiveram semelhanças na ênfase das representações do pintor e escritor sobre a
Cidade de Goiás. A partir destas pistas, elaborei quadros, apresentados ao final do texto,
para mostrar em quais obras literárias, Octo Marques se refere aos monumentos da
Cidade de Goiás e ainda, em quais delas destaca traços de tradição imaterial colocando
em relevo festas populares que poderiam expressar elementos de tradição.
“Nossa Terra” (Quadro I), foi o título de um texto em que o artista insere
uma preocupação preservacionista a partir de 1938. Foi publicada no Jornal Cidade de
Goiás. Octo Marques escreveu sobre sua cidade antiga, legado de Bueno da Silva, com
seus monumentos históricos de lutas e de um patrimônio perdido, restando cuidado da
exaltação dos costumes “bugres” românticos e poéticos e da beleza natural, sem uma
roupagem urbanística artística e uma intelectualidade em busca de instrução. A igreja de
Santa Bárbara ficou como sentinela memorial da cidade.
O termo “patrimônio perdido” se insere no momento da transferência da
capital, é um sentimento de perda da antiga Capital Vila Boa, ficando a beleza da
paisagem natural e da arquitetura da Igreja de Santa Bárbara. Na falta da “roupagem
urbanística artística” prevalece o monumento da Igreja de Santa Bárbara “como
sentinela memorial da cidade”.
Além da arquitetura como preservação da continuidade de sua cidade
“mãe”, buscou o incentivo de uma integração cultural e social, isso foi comentado em
1946, quando foi publicado no jornal Cidade de Goiás o texto “Notícias teatrais”, como
se pode visualizar no Quadro II. Nele, encontramos a notícia que houve uma
preocupação de um grupo de jovens, dentre eles, Octo Marques, que fundou em 1944, O
“Grêmio Teatral 26 de Julho” com finalidade de acabar com o desânimo cultural da
cidade, conferindo a ela o acesso cultural que supriria a falta de apoio municipal ou
estadual. Uma proposta arrojada dos “jovens” na perpetuação de sua tradição cultural da
antiga Vila Boa.
Além das encenações no palco da cidade, entrou em cena o meio de
comunicações. Octo Marques e Cezar Ferreira fundam o quinzenário “Goiás” (Quadro
III) em 1945, a primeira publicação foi noticiada, no jornal Cidade de Goiás, a sua

258
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

relevância para a cidade. Além do teatro ou da imprensa escrita, o escritor iniciou seu
primeiro inventário histórico “Antigas ruas da Cidade” (Quadro IV), publicado em seu
livro Casos de Vila Boa (1977). Octo Marques analisou uma planta do Arraial de
Sant’Ana, feita pelo Capitão-General Dom Luís da Cunha Menezes. Nessa planta
relacionou os nomes das ruas antigas e os seus nomes atuais. Citou as primeiras
chácaras e seus moradores antigos e os atuais, além de alguns prédios públicos.
Ao inventariar as antigas denominações das avenidas, observa a mudança
dos nomes dos logradouros que não rompem com a tradição, como exemplo a “Rua dos
Médicos”, a primeira denominação, depois ficou conhecida como a “Rua do Horto” e
hoje, Félix de Bulhões (Quadro IX). Nessa rua fica o monumento do Museu e a Igreja
da Boa Morte. Essa relação do inventário das antigas denominações dos logradouros da
antiga Vila Boa relaciona-se com a invenção da tradição, um novo nome e o destaque do
prédio tombado.
Ainda nessa obra, com o título “Vila Boa numa gravura de Pohl”,
destacado no Quadro V, Octo Marques interpretou uma gravura do viajante João
Emanuel Pohl (1817-1821), que desenhou Vila Boa de Goiás, em 23 de janeiro de 1819.
O escritor Octo Marques enfatizou vários monumentos: Palácio do Governo, as Igrejas
da Boa Morte, da Abadia, Santa Bárbara, do Rosário e a Cruz do Anhanguera.
Em referência à publicação anterior, em sua crônica “A Serra da carioca e
os Mirantes da Cidade-Mãe”, no Quadro IV, o escritor destacou a importância do
turismo e o monumento da Igreja de Santa Bárbara. Enquanto na segunda produção
literária “Cidade-mãe: casos e contos” (Quadro V), publicada em 1985, Octo Marques
discorreu sobre o “Vandalismo hereditário” (Quadro VI). O escritor criticou a falta do
cuidado patrimonial pelos órgãos públicos e da sociedade. Referiu-se à construção, no
século XIX, do caminho para chegar a Igreja Santa Bárbara e a destruição da Pedra
Goiana, em meados dos anos sessenta.
As suas crônicas e contos ilustraram a função de um pesquisador que
averiguava a importância de sua cidade, seja no patrimônio edificado e na continuação
de uma cidade viva ao transitar pelo acervo arquitetônico.
Essa representação preservacionista compreende, ainda, a arte imaterial.
Octo Marques escreveu a crônica “Um dançador da Congada”, como se pode observar
no Quadro VII. Nela narrou à história de uma descendente africana, Leocádia, e de seu
neto, Lípidio. Leocádia se lembrava do seu esposo “Nhonhô” que foi monarca de tais
festas africanas e de suas músicas:

259
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

“Que sino é este, “Moça goiana


Que tá tocando? chega à janela,
É a Virge do Rosário Moça goiana
que tá nos chamando, chega à janela,
é a Virge do Rosário vem ver a lua,
que tá nos chamando...” que a noite é bela,
(MARQUES, 1985:107) vem ver a lua,
que a noite é bela;
moça goiana
chega a janela,
vem ver o Congo
que vai pra guerra;
vem ver o Congo.
que vai pra guerra...”
(MARQUES, 1985:107)

A velha Leocádia ouvia a cantoria para a “Virge do Rosário” e sua interação


com a comunidade, na qual o seu neto seguia a tradição da Congada, ele encenava o
personagem de Embaixador do Rei, usava diadema prateado e colar de diamantes de
vidro. Trajando cetim azul celeste bordado com missangas douradas, sua capa era
comprida e adornada de arminho.
Essa era uma representação que ele, o neto Lípidio, considerava livre, como
foi o seu avô ao ser monarca da Congada, agora, ele exercia uma função de importância
no ritual , enquanto na sociedade era “servente de segunda classe” e “lia, escrevia e
contava mais ou menos” (MARQUES, 1985:108).
Octo Marques destacou essa tradição, ao mesmo tempo em que narrou a
tragédia do neto Lípidio, que foi influenciado pelo seu amigo comerciante João Rosa,
que proseava o seu assunto preferido: curandeirismo. Orientando Lípidio como ter
acesso à riqueza, deveria entregar uma carta e sua alma para o Demônio Lúcifer. Ambos
morreram: Lipídio de tuberculose e João Rosa de insuficiência renal.
Entre a “Congada” e o “curandeirismo”, o “reinado” e a riqueza, o antigo
avô dançador “Nhonhô” para o jovem neto Lípidio, a “tradição” do dançador da
Congada foi quebrada, perdeu o sentido de uma tradição dos seus ancestrais para ser

260
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

substituída pela ganância e riqueza, compondo traços de uma sociedade que se


modificava pouco a pouco.
Octo Marques relata a transformação da tradição da Congada, contexto que
insere a transferência para a nova Capital, Goiânia. Para ser perpetuada, a dança da
Congada transformou-se em crônica, como um meio para preservar sua performance
religiosa e seu significado social.
Na badalada do sino da igreja mantinha a lembrança da antiga Capital,
destacando a importância dos monumentos edificados, enquanto outros foram
destruídos, como relata em sua última obra Colcha de Retalhos; casos e crônicas (1994),
publicado pela UFG. Em seu conto “E a morte vence a História?” (Quadro VIII) Octo
Marques criticou a falta de cuidado municipal na conservação dos monumentos: das
biquinhas da Água Férrea, do Chapéu de Padre, do Del-Rei; do Poço da Mari’Alves e
da Casa da Pólvora, patrimônios que foram destruídos em prol de uma cidade
“ultramoderna”, não respeitando sua cidade “mãe”.
Entre a preservação da cultural material e imaterial expressa em suas
crônicas e em artigos publicados nos jornais ou nos seus livros, o escritor Octo Marques
atuou como guardião patrimonial da arquitetura colonial e das tradições imateriais,
consubstanciadas em sua defesa das festas populares.
Assim, tudo indica que se faz necessário rever a classificação feita pela
crítica a respeito do artista, pois existem muitos indícios de valorização da tradição e do
preservacionismo na obra literária e visual de Octo Marques. Esse traço parece ter
relação com sua perspectiva antimudancista e a necessidade de associá-la a
características sociais e humanas. Sendo assim, é instigante pensar sobre sua ausência
nas principais instituições preservacionistas da Cidade de Goiás, como a Organização
Vilaboense de Artes e Tradições - OVAT, ou mesmo nos inventários críticos que avaliam
sua contribuição para a produção artística regional.

261
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Quadro I
Publicação: Jornal Cidade de Goiás Ano: 1946 Local: Vila Boa

Jornal : Cidade de Goiás Título: Notícias teatrais

Patrimônio:

- 1944 - Grêmio Teatral 26 de Julho.

Quadro II
Publicação: Jornal Cidade de Goiás Ano: 1948 Local: Vila Boa
Jornal : Cidade de Goiás. Título: “Goiás”
Patrimônio:

- quinzenário “Goiás”

Quadro III
Publicação: Gráfica O Popular Ano: 1977 Local: Vila Boa

Livro: Casos e Lendas de Vila Boa. Título da crônica: Antigas ruas da cidade
Patrimônio: 1782 – planta do “Arraial de Sant’Ana mandada pelo Capitão-General Dom Luis da Cunha Menezes,
governador da Capitania de Goiás e depois copiada pelo soldado Manoel Ribeiro Guimarães, da guarnição dos Dragões’.
Vias públicas com denominações familiares:
Rua do Marinho – hoje Rua Doutor Couto de Magalhães;
Rua Nova do Sertão – ponte do Carmo até findar-se na rua da Boa Vista em direção do morro das Lages;
Rua Nova dos Barros - hoje Rua da Abadia e depois Rua do Ouvidor e também das Relações;
Rua do Bessa iniciava acima do Largo da Cadeia da metade da atual Rua Hermógenes Coelho;
Rua dos Médicos passou para Rua do Horto e hoje, Félix de Bulhões;
Rua Última - hoje, Rua 15 de Novembro ou rua da Estrada ou rua Doutor Cruz Machado;
Rua do Pintor - hoje, no final do Beco da Cachoeira Grande, nas imediações do cemitério local;
Rua 13 de Maio -hoje Coronel Joaquim de Bastos ou Rua dos Mercadores, rente à Igreja de Nossa Senhora da Lapa;
Rua do Jogo da Bola depois Rua d’Água ou Rua Professor Ferreira;
O prédio do Hospital de Caridade São Pedro D’Alcântara era o Açougue ou Mercado da sede da Capitania.
Chácara de Joaquim Apolinário;
Chácara do cirurgião-mor Lourenço da Neiva – cultivo da uva e fabrico do vinho;
Chácara do José Moreira - hoje, Largo do Moreira ou atual Praça Coronel Manoel Alves;
Chácara Anlonica hoje residência do senhor Levídio Berquó, esquina da Praça Tiradentes;

Quadro IV
Publicação: Gráfica O Popular Ano: 1977 Local: Vila Boa

Livro: Casos e Lendas de Vila Boa Título da crônica: Vila Boa numa gravura de Pohl

Patrimônio:

- O Palácio do Governo, Casa da Fundição, onde agora funciona o Goiás Clube;

- As Igrejas da Abadia, Santa Bárbara, do Rosário Boa Morte (1779) e inclusive a ora extinta Capela de Nossa Senhora da
Lapa, hoje a Cruz do Anhanguera.

Quadro V
Publicação: Gráfica O Popular Ano: 1977 Local: Vila Boa
Livro: Casos e Lendas de Vila Boa. Título da crônica: A Serra da Carioca e os Mirantes da Cidade-Mãe
Patrimônio:
- Igreja de Santa Bárbara;
- Casa da Fundição.

Quadro VI
Publicação: CERNE e Fundação Legionárias do Bem-Estar Social Ano: 1985 Local: Vila Boa
Livro : Cidade-mãe: casos e contos Título da crônica: Vandalismo hereditário
262
Patrimônio:

- o caminho para a igreja Santa Bárbara;

- o vandalismo da Pedra Goiânia.


ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

Quadro XI

Fonte http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista_Bens_Tombados_marco_2016.pdf Acesso 22 abril 2016

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORRÊA, Rosi Meire Aparecida Fulanette. Um olhar sobre a arte pictórica vilaboense.
In: SIQUEIRA, Ebe Maria de Lima (orgs). Leitura: teorias e práticas [s.l. : s.n.], 2003.

ÉLIS, Bernardo. Obras reunidas – Volume 4. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1987.

FIGUEIREDO, Aline. Artes plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: UFMT/MACP, 1979.

FREXINHA. Notícias teatrais. Jornal Cidade de Goiás, Ano IX, n. 309, p.4, 18 Ago.,
1946.

HOSBAWN, Eric & RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2008.

263
ANAIS – VI Colóquio de História e Imagens – ISSN 2447 -6676

IPHAN. Cidade de Goiás comemora 10 anos do título de Patrimônio Mundial. 13 dez


2011. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/1226 Acesso 21 abril
2016.

JORGE, Miguel. Octo Marques. In: MENEZES, Amaury. Da caverna ao museu:


dicionário das artes plásticas em Goiás. Goiânia: Agepel, 2002.

KONDER, Alexandre. Quatro grandes valores humanos. Cidade de Goiás: Goiás, Ano
XI, n. 426, p.1, 8 Mai., 1949.

LIMA, Elder Rocha. Octo Marques: trajetória de um artista. Goiânia: Superintendência


do Iphan em Goiás, 2009.

MARQUES, Octo. Nossa Terra. Jornal Cidade de Goiaz. Cidade de Goiaz, Ano I, n. III,
p. 3, 6 Jul., 1938.

__________. "Vamos descobrir as minas de ouro de Goiás". In O Estado de


Minas. Belo Horizonte, 20 de jul de 1973. Disponível em:
http://www.jangadabrasil.com.br/revista/outubro141/im14110.asp. Acesso em 30 de
Agosto de 2014.

__________. Casos e lendas de Vila Boa. Goiânia: Of. Graf. O Popular, 1977.

__________. Cidade mãe: casos e contos. Goiânia: Gráfica de Goiás – CERNE,


Fundação Legionárias do Bem-Estar Social, 1985.

__________. Colcha de retalhos: casos e crônicas. Goiânia: UFG, 1994.

MENEZES, Amaury. Da caverna ao museu: dicionário das artes plásticas em Goiás.


Goiânia: Agepel, 2002.

SÁ PEIXOTO, Aloísio Saiol de. Octo Marques. In: MENEZES, Amaury. Da caverna
ao museu: dicionário das artes plásticas em Goiás. Goiânia: Agepel, 2002.

264

Você também pode gostar