Você está na página 1de 2

Taxidermia

Lapa 7426, 23 minutos. Metrô , 12 segundos de porta aberta, depois 6 minutos.


318 passos até o Instituto, 18 degraus até o corredor, 114 passos até a porta, 2
giros para a esquerda.
Luz fria acesa. Corujas no alto, os 2 jacarés, morcegos aqui e ali, primatas e
felinos e o belíssimo exemplar da Vulpes Corsac, ou raposa das estepes, presente
do antigo amigo do Alabama. Já estava ficando empoeirado, ele pensou olhando
para o exemplar. Pensou que já era hora de tirar o pó de todo mundo de novo,
enquanto depositava o molho com 6 chaves no gancho ao lado da porta.
O cheiro calmo do formol. Em cima da mesa um novo animal dentro da caixa.
As ferramentas, produtos químicos, vidros com ó rgã os, bichos das prateleiras
com suas penas, pelos, olhos de vidro, tudo ali reluzindo silenciosamente à sua
espera.
Abriu a caixa.
Pela primeira vez sem classificaçã o. Nem quando recebeu a cadela prenhe, ou
quando fizeram uma festa surpresa de 15 anos. Ali também sentiu o barulho
surdo, ali também as contraçõ es estranhas, mas havia em seguida um
entendimento.
Aqui nã o.
Ele nã o sabia como pensar.
Tentou respirar, como das outras vezes.
Tentou seguir o procedimento, como no começo.
Todas as medidas devem ser expressas em milímetros (mm), e devem ser feitas em
animais recentemente mortos e nunca sobre a pele já taxidermizada. As medidas
também devem ser tiradas, junto com a identificação da espécie e a sexagem do
animal.
Correu os olhos pelos produtos químicos, etiquetas, instrumentos. O tubo com
olhos de vidro olhava de volta. Encaravam-se, ele e os 826 olhos, todos
incrédulos.
Animal morto. Começar pela caixa torá cica.
Iniciar o escalpelamento com uma excisão a partir da extremidade do esterno até o
inicio do rabo, tendo o cuidado para não cortar os órgãos genitais.
Nã o conseguia escolher o bisturi.
O estô mago parecia o de um gato, só que. Um pouco mais inchado. Um pouco
maior. O corpo se ligava com o pescoço longo e sem pelos, parecia o de um
humano, só que. Um pouco menor. Ele percebeu que estava indo por
aproximaçõ es e comparaçõ es, e nã o iria funcionar daquele jeito.
Nã o era um gato e nã o era humano.
Mas saber o que nã o era nã o o ajudava em avançar na classificaçã o.
Olhou para a serragem como que a pedir orientaçõ es.
Voltou para a mesa: animal vertebrado, porte pequeno a médio,
aproximadamente 600 milímetros, provavelmente mamífero, a julgar pelas
glâ ndulas mamá rias, provavelmente carnívoro, a julgar pelo focinho comprido
com um buraco seco de sangue de um lado e um canino saindo para fora de
outro.
Olhou para o telefone como se nunca tivesse visto um.
Pensou no amigo do Alabama.
Voltou para a mesa.
Ele por trá s das lentes grossas. O animal, um olho aberto, outro fechado.
Contemplaram-se.
Depois de um tempo, decidiu colocar as luvas e com cuidado retirou-o, suas mã os
tremiam e faziam com que aquele corpo por um momento parecesse ainda estar
vivo.
Antes de dar início ao procedimento, aproximou a cabecinha do bicho e abaixou a
sua, um olho aberto e três fechados, e encostou seus lá bios em cima do focinho,
demorando-se ali um pouco, em alguma coisa que poderia ser classificada como
um beijo.

Você também pode gostar