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ano 20 - n.

230 PUBLICAÇÃO MENSAL


Abril - 2020 ISSN 1678-8648

DOUTRINA FÓRUM ADMINISTRATIVO


DIREITO PÚBLICO
JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA
LEGISLAÇÃO COMENTADA

DIREITO ADMINISTRATIVO
CONTROLE
PARCERIAS VOLUNTÁRIAS
PROCESSO
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – PAD
REGULAÇÃO
SERVIDOR PÚBLICO

CONSTITUCIONAL - PREVIDENCIÁRIO
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DOUTRINA
ARTIGOS

Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro


Bruno Dantas
Ministro do Tribunal de Contas da União – TCU. Pós-Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Visiting
Research Scholar na Benjamin N. Cardozo School of Law de N.Y. e no Max Planck Institute Luxembourg for Regulatory Precedural
Law. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor da FGV-Rio
e da UNINOVE.

André Luiz de Matos Gonçalves


Graduado no Curso de Comunicações pela Academia Militar das Agulhas Negras (1999). Graduado em Direito pela Universidade
de Fortaleza (2005). Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB. Mestre pela Universidade Federal do
Tocantins, em parceria com a Escola Superior da Magistratura Tocantinense – ESMAT – e a Escola Paulista de Magistratura – EPM.
Foi Reitor da Universidade do Tocantins – UNITINS e Professor Universitário de Direito Constitucional. Foi Procurador efetivo do
Estado do Tocantins. Atualmente é Conselheiro Titular da Segunda Relatoria do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. Sócio
fundador do Instituto de Direito Aplicado ao Setor Público – IDASP.

Júlio Edstron S. Santos


Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB. Mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB/DF. Diretor
Geral do Instituto de Contas 5 de Outubro do TCE-TO. Professor e Coordenador Acadêmico do IDASP/Palmas. Membro dos grupos
de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor – NEPATS – da UCB/DF, Políticas Públicas e Juspositivis-
mo, Jusmoralismo e Justiça Política do UNICEUB. Editor Executivo da REPATS. E-mail: edstron@yahoo.com.br

Paulo Henrique Perna Cordeiro


Mestre em Direito pelo IDP/DF. Advogado. Professor Universitário.

Uma política de engajamento moral não é apenas Introdução


um ideal mais inspirador do que uma política de
esquiva do debate. Ela é também uma base mais O momento atual é histórico e grave. Há
promissora para uma sociedade justa. (SANDEL, uma pandemia de escala mundial, causada pela
2012, p. 330) COVID-19 – novo coronavírus –, que se espraia
por todo o globo terrestre. Essa moléstia se alas-
trou por, praticamente, todos os países em pouco
Resumo: Por meio do método hipotético-dedutivo e a utilização mais de três meses, provocando milhões de infec-
da revisão bibliográfica este artigo acadêmico demonstra as tados e levando a óbito mais de quinhentas mil
relações entre a pandemia mundial de COVID-19 que impõe
desafios a execução do Orçamento Público brasileiro de for-
pessoas em todo o mundo até março de 2020.
ma eficiente e democrática. Assim, por se tratar de recursos Como resultado da COVID-19, há um movi-
públicos para garantir uma escorreita utilização do erário, tam-
mento de isolamento da sociedade internacional,
bém demonstrou-se a necessidade de atuação dos órgãos de
controle externo, principalmente o Ministério Público e os Tri- buscando evitar o alastramento dessa pandemia.
bunais de Contas. Como será demonstrado, essa situação vem tra-
Palavras-chave: Crise. Coronavírus. Orçamento Público. Con- zendo problemas para a economia de praticamente
trole Externo.
todos os Estados, como um reflexo dos movimen-
Sumário: Introdução – 1 Crise mundial causada pela COVID-19
e a decretação de estado de calamidade no Brasil em 2020 –
tos de globalização.
2 Estado de calamidade e utilização dos recursos públicos – Assim, tanto por causa da pandemia de
3 O controle externo e a execução orçamentária em momento
COVID-19 quanto pela diminuição de recursos pú-
de calamidade por causa da Covid-19 – Considerações finais –
Referências blicos devido à contração do comércio e, conse-
quentemente, da retração da tributação da cadeia

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produtiva, tem-se no ano de 2020 uma forte crise das modificações na Lei de Introdução às Normas
instaurada. do Direito Brasileiro (LINDB). No entanto, esses
O Brasil, com uma larga história de ocorrên- agentes públicos devem agir sem perder o foco
cia de tragédias causadas por ações humanas ou nos princípios constitucionais da solidariedade e
naturais, já possui um refinado sistema de pro- responsabilidade para com o erário.
teção constitucional contra as crises e um movi-
mento interdisciplinar denominado “Direito dos 1 Crise mundial causada pela COVID-19
Desastres”. e a decretação de estado de
Quanto à decretação do estado de calami- calamidade no Brasil em 2020
dade que, juridicamente, é uma aguda crise mar-
O ano de 2020 começou com particularida-
cada pela gravidade e transitoriedade além das
des iguais às do século passado, que foi marcado
previsões constitucionais, foram positivadas di-
versas leis sobre o assunto, destacando-se a Lei por uma pandemia mundial. Naquele momento
nº 13.979 de fevereiro de 2020 que “Dispõe histórico, foi a gripe espanhola1 que ceifou apro-
sobre as medidas para enfrentamento da emer- ximadamente quinhentos milhões de vidas. Hoje,
gência de saúde pública de importância interna- a COVID-19 assola o mundo e já é contada na
cional decorrente do coronavírus responsável pelo casa das centenas de milhares e progride em con-
surto de 2019” (BRASIL, 2020) e também espe- dições geométricas. Constata-se, que “a dinâmica
cíficas para a atual pandemia mundial como o da evolução da pandemia vai evidenciando a ob-
Decreto Legislativo nº 6 de 2020, estabelecendo solescência das normas do direito administrativo
o reconhecimento da Calamidade Pública Nacional ‘tradicional’” (JUSTEN FILHO, 2020, p. 01), tendo
e, ainda, a Medida Provisória nº 921 de 2020, por fio que o Direito deve ofertar respostas preci-
proporcionando a concessão de “Créditos para en- sas em um ambiente de larga ambivalência.
frentamento do Coronavírus”. “A Organização Mundial de Saúde (OMS) de-
Toda essa legislação busca resguardar a clarou em onze de março de 2020 a pandemia
efetivação das políticas públicas e dos direitos do Covid-19, a infecção causada pelo coronavírus”
fundamentais, principalmente, neste momento, o (LEITE; COSTA, 2020, p. 2). E, como consequência,
direito e o acesso à saúde. a sociedade internacional, neste ano, está mar-
Para tanto, será demonstrado que o Direito cada por um processo de isolamento que impõe
Administrativo do século XXI deve se afinar aos fortes tensões com a população e sobretudo com
problemas que estão assolando a sociedade e a economia, que se tornou intrinsecamente ligada
concretizar a democracia e os demais direitos fun- a fatores globais, principalmente pela dependên-
damentais com velocidade e precisão. Sob esse cia econômica da China, dos Estados Unidos da
paradigma, o orçamento público deve ser utilizado América e da União Europeia.
para saneamento da crise caudada pela COVID-19, Tal situação pode comprometer o comércio
tendo-se como parâmetro que, em tempos de nor- internacional, as receitas estatais e, consequen-
malidade, há um rito de execução orçamentária e, temente, a concretização de direitos fundamen-
por previsão constitucional e legal, ocorre um outro tais, tais como o acesso à saúde. A dimensão
modelo em situação de calamidade pública. global da crise, causada pela COVID-19, pode ser
Com isso, busca-se elucidar que, durante o visualizada no gráfico abaixo que demonstra di-
estado de calamidade pública, a própria Lei Com­ daticamente quais os países que convivem com
plementar nº 101/2000, conhecida como Lei de essa pandemia em março de 2020 e o reflexo em
Res­ ponsabilidade Fiscal, determina um proce­ di­ seus produtos internos brutos (PIB), ou seja, na
mento próprio para utilização dos recursos públi- soma de tudo que é produzido naqueles Estados.
cos, fato que é reforçado pela legislação específica
editada para o combate à COVID-19.
Também será objeto desta pesquisa a atua­
ção dos órgãos de Controle Externo, principalmente
o Ministério Público e os Tribunais de Contas que, 1
Entre os anos de 1918 e 1920 o mundo foi assolado por um
vírus que ficou conhecido como Gripe Espanhola, porque foi
para além das suas clássicas atuações, devem a imprensa da Espanha a primeira a registrar tal fenômeno
adotar uma performance propositiva, agindo de natural, como demonstra o documento do CEPDOC, disponível
em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
maneira a se superar a crise, sobretudo por causa republica/GRIPE%20ESPANHOLA.pdf

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Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro

A sensação acadêmica é que “na realidade, Essa situação comina à população, princi-
essa crise é caracterizada pela combinação de palmente à classe social mais humilde e vulnerá-
uma aposta econômica no âmbito internacional vel, o sentimento de que “quando a crise acaba,
(as causas), e as medidas tomadas para lidar com outra que nesse interim chegou roendo nossos
isso (os efeitos)”, nas lições de Bauman (2016, p. calcanhares, entra em cena e toma seu lugar”,
11). Isto porque, em pouco mais de três meses, tal como pontuou Zygmunt Bauman (2016, p. 15).
a COVID-19 se espalhou pelo mundo, trazendo Portanto, há um descontentamento geral com as
nefastos efeitos sociais, econômicos e, principal- instituições e com os poderes constituídos, que
mente, sanitários. não conseguem resolver os atuais desafios, até
mesmo porque eles extrapolam os controles con-
Ainda assim, a hipervalorização da riqueza, o quistados pelo Estado nacional.
materialismo desenfreado, a sede por inovação
tecnológica, a distração provocada por inúmeros
fatores próprios da sociedade da informação, vão
se tornando experiências que se acumulam para
gerar uma relativização em campos estratégicos
e necessários para a vida social. (BITTAR, 2010,
p. 500)

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O nível de disseminação do coronavírus no apresentado em publicação do Banco Central do


plano internacional é bem visualizado no gráfico Brasil, da seguinte forma:

Fonte: Banco Central do Brasil, 2020.

Como resultado da análise do gráfico acima, medidas preventivas devem ser incorporadas aos
pode-se inferir que nenhum país do mundo está eventos futuros. (CARVALHO, 2019, p. 3)
imune a essa pandemia, toda economia global
Neste diapasão, o “Direito dos Desastres”
vem sentindo seus efeitos e, sobretudo, o nú-
pode ser uma ferramenta importante na preven-
mero de contágio segue em alta velocidade até o
presente momento, tornando-se um desafio para ção e criação de protocolos que evitem ou minimi-
a concretização de direitos essenciais como à zem os efeitos dos sinistros que vêm ocorrendo
saúde e ao seu acesso. em todo o mundo, cada vez com menores interva-
Ainda devido à crise causada pela COVID-19, los de ocorrência, tendo como exemplo a seguinte
foram aprofundados os problemas do constitucio- constatação: “devido à facilidade de dissemina-
nalismo e do Estado nacional que já não detém ção e transmissão, doenças como a dengue, zika,
todos os instrumentos de regulamentação jurídica chikungunya, febre amarela e sarampo, essa úl-
e de produção econômica, tendo em vista que tima tida como erradicada no Brasil, correm o risco
ambos se deslocaram para cadeias globais que se de tornarem-se epidêmicas em 2020, alertam o
interligam e principalmente autolimitam as compe- Ministério da Saúde e a OMS” (COUTINHO, 2019,
tências estatais, como, por exemplo, ocorre com p. 1).
os tratados internacionais. Um dos pontos que devem ser percebidos
O momento atual é tão complexo que se é que o “Direito dos Desastres” pode ter refle-
torna necessário que haja um maior detalhamento xos em diversas áreas jurídicas, perpassando
do novo movimento jurídico interdisciplinar denomi- sistemas públicos e privados e vinculando ações
nado “Direito dos Desastres”, que envolve ações da Administração Pública e a regulamentação de
públicas e privadas e pode ser utilizado a partir da ações populares como a abertura ou fechamento
seguinte compreensão da: do comércio.
Seguindo, a COVID-19 impõe ao Estado o
(...) ocorrência de um desastre deve iniciar um dever de aprimorar o direito fundamental à saúde,
novo ciclo de aprendizagem e de adoção de medi-
criando ranhuras no próprio constitucionalismo
das para evitar os próximos e eventuais desastres.
que conviveu com intensas dificuldades ao longo
Para tanto, deve haver uma avaliação sistêmica de
quais foram os pontos de falhas (estruturais, regu- do século XX, como demonstrou Francisco B.
latórias, terceiros, fatores físicos etc.) e quais as Callejón (2018), registrando que, aparentemente,

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Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro

os problemas de convivência do constituciona- prejuízos para o funcionamento de políticas pú-


lismo, soberania e efetividade dos direitos funda- blicas e a efetivação de direitos fundamentais,
mentais continuam a se agravar, como apontam constatando-se:
as filas de desamparados em hospitais públicos
É importante destacar que ainda há muita incerte-
e privados.
za acerca da magnitude dos choques à frente, e
Ressalta-se que o liame adotado neste paper da inclusão de novos choques como o financeiro.
é que a crise mundial propiciou condições para a É necessário aguardar a evolução dos dados para
decretação, nos termos legais e constitucionais, que possamos assimilar com maior precisão os
do estado de calamidade pública em todo Estado impactos da epidemia. Ainda assim, acreditamos
brasileiro e, por consequência, haverá no Brasil que a maioria dos choques terá apenas efeitos
transitórios sobre a economia. Isso significa que,
a utilização de maneira excepcional dos recursos
após a estabilização da situação, haverá uma re-
do erário, cabendo aos operadores do Direito uma tomada acelerada no ritmo de atividade, puxada
atenção mais intensa e, principalmente, a utiliza- pelo movimento de reposição de estoques, me-
ção da cautela e proporcionalidade nas conduções lhora nos termos de troca e aumento na produtivi-
da Administração Pública. dade. (BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2020,
p. 5)
Nesta esteira de pensamento, a pandemia
da COVID-19 incitou a criação de uma legisla-
Portanto, a seguir, demonstra-se que o atual
ção específica, positivada na Lei nº 13.979 de
arcabouço jurídico exige a utilização de recursos
fevereiro de 2020, que “Dispõe sobre as medi-
públicos e, ao mesmo tempo, a utilização proposi-
das para enfrentamento da emergência de saúde
tiva dos órgãos de controle, em prol da superação
pública de importância internacional decorrente
da crise e otimização dos expedientes ligados ao
do coronavírus responsável pelo surto de 2019”
erário.
(BRASIL, 2020, p. 1). Assim também a aprovação
do Decreto Legislativo de nº 6 de 2020, estabele-
2 Estado de calamidade e utilização dos
cendo o reconhecimento da Calamidade Pública
recursos públicos
Nacional e, ainda, da Medida Provisória nº 921 de
2020, proporcionando a concessão de “Créditos “No Brasil, com mais razão, é necessária
para enfrentamento do Coronavírus”. a presença do Estado [!]”, conforme lecionou
Ainda sob os olhos da lição consagrada de Paulo Bonavides (2016, p. 191) e, sob essa
que os direitos não nascem em árvores, tal como égide, deve-se constatar que dentro do condomí-
ensinaram Galdino (2005) e Holmes e Sunstein nio jurídico,2 que forma o federalismo brasileiro,
(2015), busca-se a clareza de que, em casos de há um dever de solidariedade entre os entes fe-
calamidades públicas, existirão custos e inves- derados, ou seja, os Estados-membros devem
timentos sociais que precisam ser realizados, apoiar seus municípios e a União deverá auxiliar
porém, tanto o “Direito dos Desastres” quanto de maneira complementar os governos regionais,
seu espraiamento para o Direito Administrativo e propiciando condições para o cumprimento da
o Controle Externo, devem considerar que os re- Constituição de 1988, principalmente de disposi-
cursos são escassos e devem ser otimizados pelo tivos como o artigo 3º, inciso III, que assim pre-
bem da coletividade. ceitua: “Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: (...) III – erradicar a
Crises econômicas poderão se apresentar, bem
como desastres naturais ou humanos, os gru-
pobreza e a marginalização e reduzir as desigual-
pos políticos no poder se alteram, e também as dades sociais e regionais; (...)” (BRASIL, 1988).
percepções sociais. Tudo isso terá repercussões Sendo que, para se propiciar essas condições,
sobre a ação estatal relacionada com o respeito,
proteção e promoção dos direitos. (BARCELLOS,
2020, p. 40)
“(...) a Lei de Responsabilidade Fiscal desenha um sistema
2

integrado aos três níveis de governo, individualizando respon-


Também há de se notar que o Governo sabilidades de cada poder e de seus titulares, ou substitutos
no exercício da administração dos vários organismos auxiliares,
Federal já faz projeções, por meio de uma Nota tanto da administração pública direta como indireta. O desenho
Informativa do Ministério da Economia, sobre os inclui mecanismos implícitos de disciplina e implementação
das medidas de Transparência da Gestão Fiscal e de atendi-
efeitos da pandemia causada pela COVID-19, mento aos dispositivos de responsabilidade e integração. Toda
sendo que esta situação possui relevância por- a integração é desenhada como forma de alavancagem para um
sistema responsável de gestão fiscal e administrativa” (UFSC,
que a escassez de recursos pode trazer sérios 2020, p. 4).

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foi promulgado o Decreto nº 7.257 de 2010, pre- Até mesmo a Lei Complementar nº 101/2000,
vendo o seguinte instituto: conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal,
em seu artigo primeiro, parágrafo único é clara ao
Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
definir os parâmetros para a utilização do orça-
(...) IV – estado de calamidade pública: situação
anormal, provocada por desastres, causando da- mento público com fulcro no planejamento, trans-
nos e prejuízos que impliquem o comprometimento parência e redistribuição de recursos, como se
substancial da capacidade de resposta do poder verifica no excerto abaixo.
público do ente atingido; (...). (BRASIL, 2010)
§1º A responsabilidade na gestão fiscal pressu-
Da interpretação do instituto jurídico acima, põe a ação planejada e transparente, em que se
percebe-se que, para a realização de políticas pú- previnem riscos e corrigem desvios capazes de
afetar o equilíbrio das contas públicas, median-
blicas e a concretização de direitos fundamentais, te o cumprimento de metas de resultados entre
o Estado brasileiro tem um orçamento de apro- receitas e despesas e a obediência a limites e
ximadamente um trilhão de reais, alocando cada condições no que tange a renúncia de receita, ge-
recurso público para funções específicas que são ração de despesas com pessoal, da seguridade
vinculadas ou discricionárias. Sendo a regra um social e outras, dívidas consolidada e mobiliária,
operações de crédito, inclusive por antecipação
controle maior em situações de normalidade e
de receita, concessão de garantia e inscrição em
uma vinculação a solução do problema em situa- Restos a Pagar. (BRASIL, 2000)
ções de urgência ou de calamidade.
A partir do texto constitucional, há todo um Por este viés, o orçamento público e a sua uti-
exercício – político e jurídico –, em prol da exe- lização têm fundamental relevância para o acesso a
cução do orçamento público. Sendo reconheci- direitos essenciais, como por exemplo, à saúde, que
damente louvável da Constituição descentralizar exige constantes investimentos e financiamentos
recursos e instituir uma distribuição horizontal para que, no Estado brasileiro, seja mantido um pa-
de competências que podem ser exercidas, inclu- tamar mínimo. Esta construção teórica torna-se fac-
sive em conjunto,3 como ocorre com a saúde e tual quando se observa os recursos destinados ao
educação. Ministério da Saúde entre os anos de 2015 a 2020.

Fonte: Siga Brasil, 2020.

Duas observações3são necessárias: a pri- pandemia mundial. Em suma, temos um “cober-


meira é que o valor anteriormente apresentado tor” pequeno para grandes necessidades.
refere-se ao orçamento apenas da União, que é Avançando, “nos casos de quebra da norma-
suplementado pelos estaduais e municipais; e a lidade democrática ou de gravíssimas perturba-
segunda ponderação é que, apesar do alto valor ções à ordem pública, as constituições costumam
nominal, há um déficit na prestação dos direitos prever no seu articulado os denominados regimes
fundamentais, sobretudo na área da saúde, sendo de exceção” (FACHIN; ALARCÓN, 2014, p. 944).
que o problema ainda é amplificado por uma Salienta-se que a história brasileira e a evolução
jurídica nacional demonstram que há uma cons-
tante tensão entre a democracia e o autoritarismo,
Refere-se à competência comum, ou seja, aquela que pode ser
3

exercida por todos os entes federados simultaneamente.


tendo como reflexo a criação e desenvolvimento

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Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro

de um refinado sistema de proteção do Estado as faixas etárias que têm proteção específica, por
democrático e da proteção humana, atualmente exemplo, a Lei nº 10.741 de 2003, conhecida
denominado Sistema Constitucional de Crises, como Estatuto do Idoso.4
tal como lecionou o clássico José Afonso da Silva Como consequência direta da crise atual, o
(2019) e, também, contextualizado à luz da atua­ Governo Federal já anunciou5 a redistribuição de
li­
dade e do pragmatismo jurídico descrito por mais de seiscentos milhões de reais, a compra
Humberto Alves de Campos (2011). de mais de dez milhões de kits de testes con-
Em síntese, o estado de calamidade é uma tra o coronavírus e a utilização do artigo 65 da
situação jurídica excepcional que causa proble- Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que assim
mas de ordem social, econômica e, até mesmo, determina:
política exigindo o compromisso republicano da
Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública re-
Administração Pública para sanar condições que
conhecida pelo Congresso Nacional, no caso da
são trágicas, provisórias e graves. União, ou pelas Assembleias Legislativas, na
hipótese dos Estados e Municípios, enquanto
Interessante observar que a decretação de esta- perdurar a situação: I – serão suspensas a con-
do de emergência ou calamidade é um ato com- tagem dos prazos e as disposições estabelecidas
plexo, na medida em que, somente será validado nos arts. 23, 31 e 70; II – serão dispensados o
após a homologação de pedido pelo Ministério da atingimento dos resultados fiscais e a limitação
Integração Social – ou seja, por órgão diverso da- de empenho prevista no art. 9º. Parágrafo único.
quele que editou o decreto. (MATEUS, 2020, p. 4) Aplica-se o disposto no caput no caso de esta-
do de defesa ou de sítio, decretado na forma da
Ainda do ponto de vista iminentemente jurí- Constituição. (BRASIL, 2000)
dico, há de se notar que ocorreu, à luz da história
e da legislação brasileira, toda uma construção Reforça-se que, a responsabilidade fiscal é
doutrinária e jurisprudencial sobre o estado de ca- uma decorrência do estado de normalidade. Em
lamidade, tal como demonstra a lição a seguir: situações comprovadamente emergenciais, a pró-
pria legislação proporciona condições para que
A propósito destes fatos (calamidade pública e seja superada a dificuldade. Logo, nos termos da
emergência), algumas reflexões aqui se impõem.
LR, ao se decretar o estado de calamidade, há
Primeiramente, há que se entender o que é cala-
midade pública. É pública, porque o próprio con-
flexibilizações de prazos, metas e do comprome-
ceito seu não se particulariza. É geral o alcance timento de recursos que devem ser canalizados
do fato ensejador. Calamidade é uma desgraça, para a supressão da crise ou, ainda, como se po-
flagelo, catástrofe. Alguns exemplos: chuvas tor­ siciona a doutrina:
renciais, provocando inundações, trombas d’água,
destruindo casas, estradas, pontes, tempestades Especificamente, o legislador invocou a emer-
de granizo, nevascas, geadas, ciclones, tufão, res- gência e a calamidade pública, como casos de
sacas marítimas, secas terríveis e prolongadas, dispensabilidade de licitação, sem se aprofundar
falta de água, perda total ou parcial de safras agrí- nos conceitos de cada um deles, mesmo porque
colas, etc., como fatos decorrentes da natureza. E esse não é seu objetivo nem sua missão, deixan-
como fatos decorrentes da vontade humana, têm-­ do para a doutrina a valorização meritória de cada
se guerra, insurreição, sublevação, revolta civil elemento. Destarte, a calamidade pública é uma
(que podem levar ao estado de defesa nacional), situação de (in)suportabilidade ameaçada segun-
danificações, explosões voluntárias de postos do o direito escrito, que exige medidas interven-
comunitários, institucionais, habitacionais, com tivas de urgência e de necessidades imediatas,
con­sequência gravosa para a comunidade, greve sob pena de prejuízos a pessoas, bens e serviços
incontrolável em serviços essenciais e paralisação da comunidade. É o mais alto grau de situação de
de atividades de empresas com ameaça ao abas-
tecimento da população. (CASTRO, 2010, p. 1) 4
“Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os
direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a
Bem como, em termos específicos do atual 60 (sessenta) anos. Art. 2º O idoso goza de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da pro-
problema, a decretação do estado de calamidade teção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei
pelo Congresso Nacional por causa da COVID-19 ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para
preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
é um momento em que deverá ocorrer a redis- moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade
e dignidade” (BRASIL, 2003).
tribuição de recursos públicos para se evitar a 5
Notícia descrita no sítio eletrônico da Agência Nacional. Disponível
disseminação dessa doença, que tem um com- em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-03/
covid-19-bolsonaro-atualiza-governadores-sobre-medidas-de-
provado grau de mortalidade, principalmente entre prevencao

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020 ARTIGOS 15
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perigo e de dano efetivos, podendo-se afirmar que governamentais devem buscar atingir os melhores
a calamidade pública (pode haver calamidade que resultados com os recursos que possuem e não
não seja pública também) constitui fato catastró-
são poucos, como já demonstrado.
fico, de dimensões previamente incalculáveis e
de consequências ruinosas maiores. (CASTRO, “Os arquitetos de escolhas precisam saber
2011, p. 5) como encorajar outros comportamentos social-
mente benéficos em ao mesmo tempo” (THALER;
Assim, percebe-se que há na normalidade SUSTEIN, 2019, p. 66). Portanto, tanto o Direito
um tipo de execução orçamentária e, em momen- Administrativo quanto o Controle Externo devem
tos de crises institucionais, tal como a decretação direcionar-se para o paradigma do Estado Demo­
de calamidade pública, uma outra condição de uti- crático de Direito, que é um modelo ainda em
lização dos recursos. Porém, em comum, é que construção.
cada ato deve ser praticado em conformidade com
a legalidade e buscar a realização das políticas pú- Em síntese e como conclusão dessas considera-
ções, no Estado Democrático de Direito não basta
blicas e concretização dos direitos fundamentais, a existência de uma Administração Pública legali-
refletindo, inclusive, sobre as contratações públi- zada – ou seja, a que se submeta apenas às leis
cas que deverão observar que: editadas pelo Estado –, sendo igualmente neces-
sário que sua ação esteja sempre legitimada pela
(...) em relação às contratações emergenciais mo- submissão ao Direito, vale dizer, sucessivamen-
tivadas pelo COVID-19, por dispensa de licitação, te: pela titulação democrática de seu agente, pelo
as empresas contratadas deverão certificar-se de exercício democrático de suas respetivas funções
que o ente contratante está tomando todas as me- e, sobretudo, pelo resultado democrático de sua
didas legais exigidas para a correta formalização ação – que deverá ser nada menos que o legitima-
de processo de dispensa de licitação, sob pena damente esperado pelos donos e destinatários do
de eventual futura corresponsabilização das con- poder. (MOREIRA NETO, 2018, p. 148)
tratadas pelos órgãos de controle (e.g. Ministério
Público, Tribunal de Contas).
Um exemplo jurisprudencial de ação demo-
crática da ação estatal é percebido na Ação Cível
Portanto, no atual momento de calamidade
por causa da pandemia da COVID-19, percebe-se Originária nº 2.981 do Distrito Federal, em que o
que há uma prioridade de execução de recursos Estado do Rio de Janeiro buscou amparo no Poder
na área da saúde, fato que não elide o exercício Judiciário para que, mesmo descumprindo um
dos órgãos de controle, ao contrário, eles devem acordo firmado com a União, Banco do Brasil S/A
tomar uma posição propositiva, como será deta- e Caixa Econômica Federal, não fossem bloquea-
lhado a seguir. dos recursos da administração fluminense.
A decisão em sede de tutela provisória do
3 O controle externo e a execução Ministro Luiz Fux foi no sentido de sopesar os di-
orçamentária em momento de reitos fundamentais, atendendo parcialmente a
calamidade por causa da Covid-19 ambos os lados, sem que isso significasse a in-
terrupção das relações institucionais ou dos servi-
Uma lição secular, mas que se mantém atual,
ços essenciais que são prestados pela União e/ou
mesmo no presente momento de calamidade por
pelo Estado-membro em questão.
causa da COVID-19, é que cabe à Administração
Ainda com o viés democrático da Constituição
Pública o “pensamento, a discussão e execução”
de 1988, o controle externo recebeu novas com-
das políticas públicas tal como demonstrou José
petências, sobretudo o Ministério Público e os Tri­
Rubino de Ribeiro (1884, p. 72), ou seja, deve
bunais de Contas, sendo este último, inclusive o
ocorrer todo o ciclo de criação, execução e avalia-
guardião do princípio constitucional sensível, que é
ção de ações estatais em todos os níveis, incre-
o dever de prestar contas, instituído vetustamente,
mentando-se a harmonia e solidariedade que são
desde a Declaração dos Direitos do Homem e do
exigidos em momentos de crises agudas.
Cidadão de 1789 em seu artigo quinze. Devendo-se
Alinhavada a essa concepção de efetividade
reconhecer:
dos direitos fundamentais há de se notar que a
Administração Pública ultrapassou os paradigmas É em suma e generalizado: essa expansão do con-
patrimoniais, burocráticos, gerenciais e, atual- trole, assim ampliado para se tornar também pros-
mente, deve se concentrar em seu viés democrá- pectivo, tanto em sede política, quanto em sede
tico e concretizador ou, ainda, todos os órgãos jurídica, registra-se empenho e aprofundamento

16 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020
Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro

cada vez mais intenso dos aparelhos administra- (dever ser) e seu respectivo sistema de normas.
tivos e judiciários do Estado, voltados ao controle (SANTANA, 2018, p. 26)
de políticas públicas, neles destacadas as preocu-
pações com a eficiência e economicidade, tanto O ponto central deste trabalho acadêmico é
para a sua formulação e execução, como, sobre- que o paradigma constitucional democrático não
tudo quanto a seus resultados. (MOREIRA NETO,
permite comportamentos extremados da Admi­nis­
2018, p. 148)
tração Pública, nem pode ficar ao arbítrio pessoal,
A lição democrática é que o Controle Externo tão pouco se escudar em questões hermenêuti-
do século XXI não é uma barreira para a Admi­ cas de caráter geral, por exemplo, a visão estreita
nistração Pública e, sim, uma instância proposi- da prevalência a priori da supremacia do interesse
tiva para a Administração Pública, sobretudo, os público.
Tribunais de Contas, instância especializada na Ainda, buscando uma compreensão da ma­
execução do orçamento público. neira mais democrática de atuação da Admi­ nis­
Relembra-se que o momento é de calami- tração Pública percebe-se que doutrinariamente,
dade e a execução orçamentária está voltada para no Brasil, vem-se discutindo as diferenças entre os
a superação da grave crise na área da saúde, casos simples e complexos. O ponto nodal é que
sendo que “a relevância das dificuldades enfren- os chamados hard cases, são, sinteticamente,
tadas e a dimensão dos riscos de saúde pública aqueles que comportam mais de uma interpreta-
(que) exigem providências imediatas a evitar a di- ção, tendo em vista que há um choque de direi-
fusão da doença e a reduzir o ritmo das contami- tos fundamentais, devendo os órgãos de controle
nações” (JUSTEN FILHO, 2020, p. 1). atuar de modo a privilegiar “(...) a proporcionali-
Essa nova perspectiva é amparada pela Lei dade das medidas em relação aos efeitos, inclu-
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro sive em relação a outros direitos fundamentais
(LINDB) que, em seu artigo 21, assim determina: (...)” (NOHARA, 2018, p. 24).
“A decisão que, nas esferas administrativa, con- Outro exemplo de atuação democrática do
troladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, Controle Externo e, sobretudo, dos Tribunais de
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa Contas é encontrado nas possibilidades concre-
deverá indicar de modo expresso suas consequên- tas de realização de termos de convênio interins-
cias jurídicas e administrativas” (BRASIL, 2018). titucionais, como Cortes de Contas e Ministério
Por esse viés, a LINDB consagra a atuação do Público, para que sejam verificadas as execuções
controle externo propositivo ao determinar que, ao orçamentárias antes da sua concretização.
se tomar uma decisão em esfera administrativa, Essa possibilidade é viável quando está es-
cudada pela Constituição e também pela previsão
sejam demonstradas as possíveis consequên­cias
da LINDB que foi exposta, uma vez que as conse-
jurídicas, buscando-se reconhecer que “a previsão
quências da execução orçamentária durante uma
dos efeitos práticos da decisão é indispensável
crise podem gerar desvios de recursos que são
para determinar a compatibilidade da escolha rea­
imprescindíveis para a superação do momento de
lizada com o valor abstrato invocado” (JUSTEN
instabilidade.
FILHO, 2018, p. 29).
Também, não há dúvidas que a atuação a priori
O que se busca é que o Controle Externo pro-
deve ser executada com grande cuidado e alta ve-
picie condições jurídicas para o desenvolvimento de
locidade para que, em sinergia democrática, sejam
políticas públicas, dentro da legalidade e, principal-
cumpridos os objetivos da Administração Pública,
mente, da constitucionalidade que redimensiona
atendendo-se os preceitos legais e constitucionais,
a atuação estatal, que não pode ficar vinculada a
economizando tempo e recursos em ações futuras,
concepções pessoais ou abstratas que não concre-
que têm efeitos meramente paliativos.
tizem os direitos fundamentais, por meio da execu-
ção orçamentária, recordando-se, ainda, que:
Considerações finais
Sabidamente a tarefa de interpretar normas no O mundo presencia uma crise causada pela
âmbito do Direito Administrativo não é coisa sim-
COVID-19, porém há de se notar que, infelizmente,
ples. No entanto, meu antigo desconforto sempre
se evidenciou em relação à desmedida super- essa não foi a maior pandemia que atingiu a hu-
posição de uma vontade pessoal às possibilida- manidade. O que causa perplexidade foi a veloci-
des (concretas) permitidas pelo modal deôntico dade de propagação do coronavírus pelo planeta

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020 ARTIGOS 17
Bruno Dantas, André Luiz de Matos Gonçalves, Júlio Edstron S. Santos, Paulo Henrique Perna Cordeiro

Terra e o abalo que ele causou na economia mun- estabelecendo o reconhecimento da Calamidade
dial, que é cada vez mais globalizada e, conse- Pública Nacional e, ainda, a Medida Provisória
quentemente, interligada. nº 921 de 2020, proporcionando a concessão de
Assim, por meio da utilização do método “Créditos para enfrentamento do Coronavírus”.
hipotético-dedutivo e a aplicação da técnica de Verificou-se que, por meio da legislação exis-
revisão bibliográfica foram demonstrados os prin- tente, há a possibilidade jurídica de uma resposta
cipais liames entre a crise, a decretação do es- dos agentes estatais, frente à atual pandemia de
tado de calamidade no Brasil e as dificuldades de COVID-19 que impõe vultosos recursos na área da
execução orçamentária pelo Estado brasileiro. saúde.
No primeiro momento, foi apontado que há Essas legislações são importantes para que,
uma comoção internacional causada pela COVID-19, em casos graves, sejam utilizados os dispositivos
criando condições para que a sociedade internacio- específicos da Lei de Responsabilidade Fiscal,
nal se isole tentando evitar a evolução da pandemia principalmente, aqueles que prescrevem a suspen-
por todos os países e, principalmente, na população são de prazos e o alargamento da possibilidade de
que sente que há um permanente estado de anor- utilização dos recursos públicos, tal como aponta
malidade conforme demonstrou Zigmunt Bauman o artigo 65 da Lei Complementar nº 101/2000.
(2016), analisado anteriormente. Ponderou-se, porém, que, com a utilização
Ainda, como consequência da sucessão de solidária de recursos da União, Estados, Muni­
crises que são presenciadas, o próprio constitu- cípios e do Distrito Federal, há a necessidade de
cionalismo é colocado em dificuldades, principal- atuação dos órgãos de Controle Externo, princi-
mente porque os instrumentos clássicos como a palmente do Ministério Público e dos Tribunais de
soberania já não conseguem atender a todas as Contas que, para além das suas clássicas compe-
demandas necessárias. tências, devem atuar de forma propositiva.
Em seguida, foram particularizados os ele- Esta atual vertente de pensamento tem
mentos jurídicos que levam à decretação do estado fulcro, inclusive, nas novas previsões da Lei de
de calamidade no Brasil, apontando-se que (infe- Interpretação às Normas do Direito Brasileiro que
lizmente), há pesquisas, jurisprudência e a convi- dispõe sobre a forma de atuação dos órgãos de
vência com desastres naturais ou humanos que controle, sendo que pelo artigo 21 daquela legisla-
possibilitam a aplicação dessa medida no Estado ção se torna imperativo que, ao anular um ato pú-
brasileiro. blico, o órgão administrativo aponte qual caminho
Ainda, em decorrência da sucessão de fatos deverá ser percorrido, apresentando até mesmo
históricos negativos, há uma corrente interdisci- as possíveis consequências do ato.
plinar denominada “Direito dos Desastres” que Indo além de críticas e dúvidas, foi demons-
busca considerar os meios de prevenção de sinis- trado que a execução orçamentária segue dois
tros, os elementos de crise e a forma de supera- caminhos, um em ambiente de normalidade e o
ção desses momentos de dificuldades. segundo em situações de calamidade e, principal-
Desta maneira, constata-se que há legis- mente, que os órgãos de controle devem manter a
lações no plano nacional que possibilitam a de- vigilância para que o orçamento público seja otimi-
cretação democrática de estado de calamidade zado, realizando políticas públicas e concretizando
pública, frisando-se que tem-se a consideração do direitos fundamentais
elemento de união pública, uma vez que se trata
de ato complexo que necessita da participação do
Poder Executivo e também do Legislativo. Crisis and implementation of the public budget in the current
Foram, ainda, descritas as legislações es- Brazilian context

pecíficas para a decretação do estado de calami- Abstract: Through the hypothetical deductive method and
the use of the bibliographic review, this academic paper
dade por meio da Lei nº 13.979 de fevereiro de demonstrated the relationships between the world pandemic
2020, que “Dispõe sobre as medidas para enfren- of COVID-19 which imposes challenges to the execution of the
Brazilian Public Budget in an efficient and democratic way. Thus,
tamento da emergência de saúde pública de im- as these are public resources to guarantee the correct use of
portância internacional decorrente do coronavírus the treasury, the need for action by external control bodies,
especially the Public Ministry and the Courts of Accounts, has
responsável pelo surto de 2019” (BRASIL, 2020) also been demonstrated.
e, também, as específicas para atual pandemia
Keywords: Crisis. Coronavirus. Public Budget. External Control.
mundial como o Decreto Legislativo nº 6 de 2020,

18 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020
Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro

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Revista dos Tribunais, 2014. abr. 2020.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020 ARTIGOS 19
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