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José O'Callaghan

ORGANIZADOR

e:
Um dos temas fundamentais no panorama atual
dos estudos do Novo Testamento é o da formação
dos textos que o compõem. Em A formação do Novo
Testamento o leitor irá encontrar a história da reda-
ção dos Evangelhos sinóticos; a escola joanina -
Evangelho, Cartas e Apocalipse; os escritos paulinos
e pós-paulinos. O livro traz ainda uma leitura sobre
Mt 19,1-12, em que trata do divórcio, com nova pro-
posta para a relação entre os sexos.
Hoje em dia já não se aborda esses temas como
há algum tempo. De acordo com o progresso da
ciência, é preciso, também no âmbito do Novo Tes-
tamento, assumir uma nova atitude.

José Q'Callaghan é professor emérito do Pontifício Ins-


tituto Bíblico de Roma, tendo atuado como professor de
Papirologia e Paleografia Grega na Universidade de Barce-
lona, no Instituto Bíblico de Roma e na Universidade de
Urbino (Itália). Também foi professor de Crítica Textual do
Novo Testamento no Instituto Bíblico de Roma, onde foi de-
cano da Faculdade Bíblica entre 1983 e 1986. É fundador e
diretor da revista Studia Papyrologica (1962-1983). Publicou
mais de duzentos artigos em revistas científicas da Espanha
e do exterior.

ISBN 85-356-0347-6

«. · 9 788535 603477
José O'Callaghan
ORGANIZADOR

-
AFORMAÇAO
DO NOVO
TESTAMENTO

(i;nas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A formação do Novo Testamento / José O'Callaghan (organizador); [Tra-


dução: José Afonso Beraldin da Silva]. - São Paulo: Paulinas, 2000.
- (Coleção: Resenha Bíblica).

Vários autores.
Título original: La formación deI Nuevo Testamento.
Bibliografia.
ISBN 85-356-0347-6

1. Bíblia. N.T. - Crítica e interpretação 2. Bíblia. N.T. - Estudo 3.


Bíblia. N.T. - História 4. Bíblia. N.T. - Introduções I. O'Callaghan, José.
11. Série.

00-2916 CDD-225.61

Índice para catálogo sistemático:

1. Novo Testamento: Formação dos textos 225.61

Título original da obra: LA FORMACIÓN DEL NUEVO TESTAMENTO


© Editorial Verbo Divino, Navarra, 1993.

Tradução: José Afonso Beraldin da Silva


Direção geral: Maria Bernadete Boff
Coordenação editorial: Noemi Dariva
Revisão de texto: Rosa Maria Aires da Cunha
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Direção de arte: Irma Cipriani
Capa: Adriana Chiquetto

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por


qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, in-
cluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
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© Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2000


SUMÁRIO

Apresentação.... 7

PARTE I

1. O enigma dos sinóticos


Rafael Aguirre Monasterio 11

2. História das Formas


Antonio Rodríguez Carmona . 27

3. A História da Redação dos evangelhos sinóticos


Federico Pastor Ramos 41

4. A escola joanina: Evangelho, Cartas e Apocalipse


Josep Oriol Tuiíí 55

5. Escritos paulinos e pós-paulinos


Jordi Sánchez Bosch 69

6. O Novo Testamento como Palavra de Deus


Antonio María Artola Arbiza 81

PARTE 11

1. Leitura de um texto bíblico: Mateus 19,1-12


Carmem Bernabé Ubieta 95
5
PARTEIll

1. Teste de auto-avaliação...
Juan Carlos García Domene 103

2. Canções com Deus ao fundo


Antonio Lopez Baeza 107

Bibliografia
José Fernández Lago 109

6
APRESENTAÇÃO ~.

Um dos temas fundamentais a propósito do estudo do


Novo Testamento é a formação dos textos que o compõem.
Hoje em dia já não se aborda esse tema como há algum tempo.
Em concomitância com o progresso da ciência, também no
âmbito do Novo Testamento é preciso aceitar uma nova
atitude ao tratar-se dele.
O núcleo que apresenta maior dificuldade e que foi
estudado de modo particular é o grupo dos três evangelhos
sinóticos. Qualquer introdução ao Novo Testamento assinala
três formas de aproximação ao texto para explicar a compli-
cada unidade/diversidade de tais textos. Elas correspondem
ao trabalho da crítica literária, das chamadas História das
Formas e História da Redação. A primeira, que se preocupa
particularmente com a contextualização do texto evangélico,
recorre à hipótese das duas fontes literárias, que fornecem
uma explicação apropriada às inter-relações entre Marcos,
Mateus e Lucas. Partindo desta posição, chega-se a deduções
muito importantes sobre a vitalidade das primeiras comuni-
dades, sobre a natureza dos evangelhos e sobre a forma de
acesso a sua leitura. A História das Formas tem sua origem no
princípio de que "a forma literária" de uma determinada
unidade corresponde a uma situação histórica concreta, com
o objetivo de oferecer aos destinatários uma melhor compre-
ensão do que está sendo proposto. Aplicado aos evangelhos,
este princípio ajuda a conhecer a obra de Jesus e a transmissão
feita pela Igreja primitiva. A História da Redação interessa-se
pelas peculiaridades literárias e teológicas dos hagiógrafos,

* Texto originalmente publicado como n. 13 da revista trimestral Resena


Bíblica, da Asociación Bíblica Espafiola, Verbo Divino, Primavera, 1997.
7
que se refletem em sua redação final em uma perspectiva de
narração histórica.
A propósito do estudo dos evangelhos, resta a escola
joanina, à qual devemos o quarto evangelho, as três Cartas e
o Apocalipse. Atualmente predomina a convicção de que
diversos autores colaboraram na composição do Evangelho
de João, escrito em diferentes etapas. Em outro momento -
e provavelmente em outro lugar - , seguiu-se a redação das
cartas joaninas, com a particularidade de que tanto a compo-
sição do Evangelho como a das cartas deve ser situada
cronologicamente no final do século I. A propósito do
Apocalipse, é inegável sua especificidade dentro do conjunto
de todo o Novo Testamento, por mais que este gênero
apocalíptico não represente uma exceção aos costumes lite-
rários da época.
Depois de considerarmos os quatro evangelhos, passa-
mos ao estilo epistolar de Paulo e dos outros autores das
Cartas. Os escritos paulinos, ao contrário dos evangelhos,
não representam uma recopilação; eles são, isto sim, a expres-
são de uma vontade de comunicar algo a determinadas
pessoas. A composição de cada um destes escritos pode ter
durado de uma semana a três meses. Por conseguinte, é
conveniente ler cada carta como uma unidade, o que não
impede que se possam descobrir processos anteriores a sua
redação, como também desenvolvimentos posteriores.
Além destas epístolas, o Novo Testamento contém
outras cartas relacionadas a Paulo mas que não são de sua
autoria. A mais importante delas é a Carta aos Hebreus, até
bem pouco tempo atribuída a Paulo, mas que parece proceder
de uma escola especialmente especulativa do judeu-cristianis-
mo helenístico, como poderá ser comprovado no artigo sobre
o tema. As duas cartas de Pedro também estão relacionadas
com Paulo: a primeira, em razão do valor salvífico da morte
de Cristo; e a segunda, porque nela Paulo é mencionado. A
Carta de Judas expressa a preocupação com o exoterismo que
os pagãos trouxeram para o interior das tradições judaicas. A
8
Carta de são Tiago recorda que o homem é justificado não
somente pela fé mas também pelas obras.
No final da exposição das diferentes reflexões sobre a
formação do Novo Testamento, acrescenta-se a doutrina
oficial da Igreja como conclusão das considerações a propó-
sito da natureza e da formação do Novo Testamento. Como
será dito no capítulo correspondente, a situação da Igreja no
período anterior à convocação do Concílio Vaticano 11 apre-
sentava-se com tensões doutrinais e incompreensão declarada
de determinadas posturas. É preciso lembrar, a título de
exemplo, o monitum do Santo Ofício sobre a historicidade
dos evangelhos e a conhecida polêmica romana dos anos
1960-1962. Sem dúvida, o Vaticano 11 - contra todo tipo de
presságios - conseguiu serenar os ânimos e, depois de
prolongadas e frutuosas discussões, pôde concretizar o pensa-
mento do seu magistério, a respeito do Novo Testamento, no
lúcido e denso capítulo V da Constituição Dei Verbum.

9
Parte I

O ENIGMA
DOS SINÓTICOS
Os evangelhos sinóticos propõem um enigma: que tipo
de relações literárias existem entre estes três evangelhos, de tal
forma que possam ser explicadas as grandes semelhanças e, ao
mesmo tempo, as grandes diferenças existentes entre eles?
Todavia, como pano de fundo desta questão, encontra-se
toda uma forma de entender a evolução da tradição evangé-
lica e o próprio desenvolvimento do movimento cristão.
Neste livro, são apresentadas algumas das teorias mais
importantes com as quais se tentou responder ao enigma
sinótico. De modo especial, é apresentada a teoria das fontes,
que é a que melhor explica as relações entre Marcos, Mateus
e Lucas. O estudo deste tema proporciona muitos ensinamen-
tos sobre a vida das comunidades primitivas, sobre a natureza
dos evangelhos e sobre a forma de lê-los.
A formação dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas,
chamados de Evangelhos Sinóticos (ES), suscita um problema
muito particular: que relação existe entre eles? Está claro que
não são absolutamente independentes entre si, mas também é
verdade que não são mera cópia um do outro. Qual é sua
origem e sua ordem de procedência? Há dois séculos este
problema desafia e entusiasma os pesquisadores. Sem sombra
de dúvida, a solução deste problema é indispensável para uma
boa leitura dos ES. Todavia, há mais do que isso: o estudo das
relações entre os textos leva-nos às comunidades que os
produziram, a suas características, evolução e relacionamen-
tos, isto é, introduz-nos em algo tão empolgante quanto a vida
do cristianismo primitivo.

1. O fato sinótico

Antes de mais nada, é necessário mostrar em que ponto


se situa o problema. Trata-se da concordância discorde entre
os ES, ou seja, da coexistência de grandes semelhanças e de
notáveis diferenças entre eles. Por esta razão, já em 1776,
Johann Griesbach publicou uma sinopse dos três primeiros
evangelhos, um livro no qual ele dispôs o texto de cada um em
colunas paralelas, de tal forma que pudessem ser colhidas
facilmente as concordâncias e as discordâncias. Em primeiro
lugar, constatemos os dados.

A. Concordâncias

a. Versículos

330 versículos de Mc encontram-se em Mt e em Lc


(estes dois últimos são bem mais extensos do que Me); estes
versículos levam o nome técnico de tripla tradição. 278
versículos de Me podem ser encontrados em Mt; no entanto,
em Lc, 230 versículos são comuns a Mt e a Me (dupla
tradição). O número dos versículos próprios de cada evange-
lho é o seguinte: Me, 53; Mt, 330; e Lc, 500.
13
b. Estrutura e disposição

Os três possuem uma estrutura comum:

Mt Me Le
a. Preparação do ministério 3,1-41 1,1-13 3,1-4,13
b. Ministério na Galiléia 4,12-18,35 1,14-9,50 4,14-9,50
e. Viagem a Jerusalém 19,1-20,34 10,1-56 9,51-18,43
d. Paixão e ressurreição 21-28 11-16 19-24

No interior desta estrutura comum, descobrem-se nos


três os mesmos moldes literários, embora Mt, às vezes,
modifique a ordem de colocação; veja-se, por exemplo: Me
2,1-3,6 = Lc 5,1-6,11 = Mt 9,11-17; 12,1-14.
Lucas conserva fielmente a ordem de Me, embora
interrompa sua narração para inserir materiais que lhe são
próprios. As únicas alterações da ordem de Me são as seguin-
tes: a visita a Nazaré é antecipada (4,16-30; diferente de Me
6,1-6); o chamado dos discípulos é colocado depois da
jornada de Cafarnaum (Lc 5,1-11), não antes, como Me o faz
(1,16-20); a escolha dos Doze é seguida por um discurso de
Jesus à multidão (6,12-16 e 6,17-20), enquanto em Mc estes
dois episódios estão na ordem inversa (3,7-12 e 3,13-19).
Mateus modifica profundamente a ordem de Me até Me
6,14/Mt 14,1; todavia, a partir deste momento, ele o segue
fielmente, embora introduzindo normalmente material próprio.
Freqüentemente as coincidências de estilo e linguagem
são assombrosas (Me 1,40-44 =Mt 8,1-4 = Lc 5,12-14). Por
vezes encontramos uma total coincidência verbal (Mt 3,7b-l O
e Lc 3, 7b-9). Há citações do AT idênticas nos ES, mas que não
correspondem nem ao texto hebraico, nem ao dos LXX
(Mc 11,3 = Mt 3,2 = Lc 3,4).

Os Setenta (LXX) representam o resultado da tradução


grega dos livros da Bíblia hebraica, com a incorporação
dos livros denominados Deuterocanônicos, realizada nos
três séculos anteriores ao séc. I da era cristã.

14
l TIBÉRIO' CALíGULA CLÁUDIO DOMICIANO NERVA TRAJANO
141 \ 371 41 6 ; 117
Judéia PROCURADORES
Samaria Pôncio Pilalos 41
Iduméia

Galiléia
Peréia

.11
I T
1TsO FIOICIO OTt e1Jo'
I I

2TSQ 1CorO, Ef?O , ELe ~Joe2J9


I 2CorO\ OFIn AtE eJd e3Jb
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RmOI 02;rm?
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JESUS ;- - - -;- - - -' - - - j - - _9t
T ',
___
e)-tb J~1Pd 2 L F J _

~Itm~nte Rqmano
Inácio
-j - -
B. Discordâncias

Em narrações que possuem idêntica estrutura e parecem


dependentes de uma mesma tradição, encontram-se palavras
e idéias muito diferentes. É o caso da parábola dos talentos,
em Mt 25,14-30 e a das moedas, em Lc 19,11-23.
As discordâncias atingem até os textos de uso litúrgico
e catequético, nos quais se poderia almejar a maior semelhan-
ça: o pai-nosso tem sete petições em Mt 6,9-13 e cinco em Lc
11,2-4; as bem-aventuranças são nove em Mt 5,3-11 e quatro
em Lc 6,20b-22. Mc 5,1-20 e Lc 8,26-39 falam de um só
endemoninhado geraseno, enquanto Mt 8,28-34 fala de dois.

2. Teorias sinóticas

Surgiram muitas teorias para explicar este complexo


fenômeno literário, que denominamos fato sinótico. Os ES
nasceram no seio da tradição oral. No entanto, sozinha, tal
tradição não consegue explicar, por um lado, as grandes
coincidências que existem entre eles, e muito menos, por
outro lado, a extensa estrutura de narração que lhes é comum.
Parece ser inevitável pensar na existência de algum tipo de
relações literárias entre os ES. Todavia, que relações? Pode ser
útil conhecer algumas das teorias sinóticas mais importantes.

a. A opinião de santo Agostinho

Por muito tempo a opinião de santo Agostinho, exposta


em sua obra De consensu evangelistarum, foi unanimemente
aceita. Ele admitia a ordem canônica, considerava Mt o
evangelho mais antigo, que Mc o abreviou, e que Lc realizou
uma síntese de ambos.

16
b. Evangelho fundamental

É a proposta de E.G. Lessing, feita no séc. XVIII, mais


tarde reapresentada em outras versões. De acordo com este
autor, houve um antigo escrito apostólico, cujo original estava
escrito em aramaico, que tinha como título Evangelho dos
Nazarenos; dele dependem os três sinóticos. Eis o esquema:

Evangelho Fundamental

/+~
Mateus Marcos Lucas

Trata-se de uma explicação cômoda; todavia, já que a


ordem de Mt e Lc coincide fundamentalmente com a de Mc
quando estes apresentam o material que possuem em comum
com Me, por que Mt e Lc diferem na ordem, exatamente
quando apresentam um material que Mc não recolheu?

c. Dependência mútua

A teoria de Griesbach, também pertencente ao séc.


XVIII, merece ser conhecida porque tem inúmeros defensores
na atualidade, sobretudo no mundo anglo-saxão. Na opinião
destes, o primeiro evangelho é o de Mt, do qual Lc depende;
Me é uma síntese posterior de ambos.

Mt - - - - - - - - - -... Lc

~
Mc

Esta teoria explica comodamente alguns textos nos


quais Mc dá a impressão de fazer uma síntese de Mt e Lc
(p. ex., Mc 1,34, que parece fazer um resumo de Mt 8,16 e
17
Lc 4,40). Esta teoria foi aceita pela escola de Tübingen porque
apoiava a sua visão de cristianismo primitivo: entre a tradição
petrina judeu-cristã, representada por Mt, e o cristianismo
pagão paulino de Lc, encontrou-se uma solução "católica" de
síntese, realizada por Mc. No entanto, a defesa do caráter
secundário de Mc apresenta dificuldades insuperáveis, como
veremos a seguir.

d. Teoria das duas fontes

Esta teoria foi proposta de forma independente, em


meados do séc. XIX, por CG. Wilke e C H. Weisse, tendo
sido reelaborada posteriormente por muitos outros pesquisa-
dores, tanto que se transformou na teoria mais aceita. Em
alguns ambientes exegéticos, sobretudo alemães, representa
quase um dogma indiscutível. Em palavras simples, afirma
que Me é o evangelho mais antigo e a fonte dos outros dois,
os quais o conheceram. Mas Mt e Lc possuem muito material
em comum, que não se encontra em Me, e que é atribuído a
uma fonte, à qual ambos tiveram acesso, denominada fonte Q
(inicial da palavra alemã Quelle, que quer dizer "fonte").
Obviamente, tanto Me quanto Lc obtiveram outras informa-
ções próprias, como é o caso dos primeiros capítulos sobre a
infância de Jesus, nos quais eles diferem profundamente. Este
é o esquema:

Mc Q

""~ Lc
~/
Mt

18
Em que se baseia esta teoria?
Na defesa do primado de Me, apresentam-se três argu-
mentos:

1) O estilo de Me, muito mais vivo e popular, dificilmente


pode ser explicado, caso seja uma reelaboração posterior.
É mais lógico admitir que Mt e Lc melhoram o estilo de Mc.
2) É impossível que Mc tenha conhecido o texto de Mt ou o
de Lc, pois não se poderia explicar a razão pela qual ele
teria deixado de lado os importantes ensinamentos de
Jesus, transmitidos por aqueles.
3) A ordem que Mt e Lc coincide, quando se estabelece um
paralelo no Evangelho de Mc. Quando isto não ocorre, sua
ordem é muito diferente.

Podemos concluir, portanto, não somente que Me é o


mais primitivo dos evangelhos, como também que ele é o
criador do gênero literário "evangelho", proporcionando
assim a estrutura narrativa à qual se ajustam posteriormente
Mt e Lc.
A existência da fonte Q é defendida pela análise da
crítica literária dos ES. Consistia essencialmente em uma
coleção de palavras de Jesus sem uma delimitação narrativa.
Os únicos fatos presentes na fonte Q seriam as tentações de
Jesus (Mt 4,1-11 = Lc 4,1-13) e a cura do servo do centurião
(Mt 8,5-13 = Lc 7,1-10).
O material comum está em lugares diferentes do relato
de Mt e de Lc; em geral, pensa-se que a partir de Lc pode ser
melhor reconstruída a ordem da fonte Q (pois Lc parece
respeitar melhor do que Mt a ordem de suas fontes, a julgar
pelo modo com que ambos tratam Me), enquanto para
reconstruir o teor primitivo do texto devem-se comparar as
duas versões. No entanto, com freqüência, Mt é mais confiá-
vel, por ser semitizante.
19
Semitizante:
Uso de léxico e sintaxe próprios das línguas semitas.

A teoria das duas fontes possui grandes vantagens, e seu


êxito é bem compreensível. Antes de mais nada, ela explica
com simplicidade todos os problemas. Além disso, oferece um
instrumento de trabalho muito fácil de ser executado: é
necessário fazer a comparação entre o texto de Mt ou o de Lc,
com o seu paralelo em Mc, considerado o mais primitivo e a
fonte dos outros, recolhendo cuidadosamente as diferenças.
Se explicarmos estas diferenças - tanto as omissões quanto
as transformações operadas - , penetraremos na teologia
própria de ambos os evangelhos.
Foram apresentadas muitas versões da teoria das duas
fontes. O gráfico que segue apresenta esta teoria de uma
forma mais adequada à complexidade da vida real das comu-
nidades cristãs primitivas.

Q Mc

r:><!
Mt

A tradição evangélica foi transmitida, em primeiro


lugar, oralmente. Em um segundo momento, ela foi colocada
por escrito, fragmentariamente, com base em perícopes isola-
das e em coleções de perícopes paralelas (coleções de milagres,
de parábolas, de ditos de Jesus; logo depois foi composto um
20
relato escrito da paixão). Durante muito tempo coexistiram a
tradição oral e os textos escritos. É nesta situação que surge
Me, um projeto literário de caráter narrativo, baseado em
tradições orais e escritas. Surge também a fonte Q, um projeto
literário de caráter discursivo (somente palavras de Jesus, sem
uma concatenação narrativa), este também baseado em tradi-
ções orais e escritas. Mc e Q, enquanto projetos literários, são
independentes e distintos; no entanto, isto não quer dizer
absolutamente que a comunidade na qual nasceu a fonte Q
não conhecesse também as lembranças de fatos da vida de
Jesus.
Mateus e Lc não conhecem Mc e Q, mas possuem, da
mesma forma, o acesso direto às tradições escritas e orais que
estes usaram. Esta razão explica por que há textos da tripla
tradição (paralelos de Me, Mt e Lc) nos quais Mt e Lc
coincidem, contra Mc: eles podem estar dependendo não de
Me, mas de uma tradição anterior.
A teoria das duas fontes parece acertada em seus
elementos fundamentais: a primazia de Me e a existência da
fonte Q. Quando esta teoria é situada com realismo no seio da
vida da Igreja primitiva, descobre-se um processo complexo
de intercâmbio de tradições, de influências mútuas e de
reelaborações de textos.

e. A fonte Q em destaque

o Evangelho de Tomé (ET), o qual já era conhecido


parcialmente através de fragmentos de papiros e de citações
por parte de alguns autores, foi descoberto em N ag Hammadi,
no deserto do Egito, em 1948. Esta descoberta foi vista como
uma confirmação da hipótese da fonte Q, pois o gênero
literário deste evangelho coincide com o que normalmente se
atribui a esta fonte: uma coleção de ditos ou logia de Jesus.
Além disso, há um numeroso grupo de estudiosos, quase
todos norte-americanos, que defendem ser o ET independente
dos evangelhos canônicos e que transmite versões das pala-
21
vras de Jesus que são mais antigas do que as que se encontram
nos ES. Todavia, a maioria dos autores crêem, motivados por
razões consistentes, que o ET quase sempre apresenta uma
tradição evangélica mais manipulada do que os ES, a partir de
uma perspectiva gnóstica. Na Bibliografia (ao final deste
livro) são fornecidas algumas referências a estas questões,
para quem busca um aprofundamento.
A verdade é que hoje a fonte Q encontra-se em grande
destaque, e os estudos sobre ela se multiplicam. Pretende-se
reconstruir seu conteúdo, as fases de seu desenvolvimento,
sua teologia e as características da comunidade que a produ-
ziu. Tudo isto não passa de hipótese. Por isso surge a pergun-
ta: por que tanto interesse pela fonte Q? Porque se pretende
provar que esta fonte retrata a teologia mais arcaica do Novo
Testamento. Alguns autores sustentam, até, que por trás da
fonte Q encontra-se uma comunidade que considera Jesus
como um mero mestre, não se importando com sua pessoa e
com sua vida, sem dar a menor importância salvífica a sua
morte. Muitos dos estudos históricos sobre Jesus que estão
mais em voga atualmente baseiam-se, quase exclusivamente,
na fonte Q, considerada por eles a única fonte histórica
confiável, a qual refletiria a mentalidade de uma comunidade
galiléia dos anos 40 e 50.
a fato de que uma comunidade faça uma coleção de
palavras de Jesus - e não há nada mais lógico - quereria
dizer que desconhece as tradições sobre sua vida, que não se
preocupa com sua pessoa ou que não dá valor a sua morte? Já
afirmei anteriormente que não há nenhum argumento para
responder afirmativamente a esta pergunta; pelo contrário!
Estas breves anotações podem servir para revelar que por trás
do problema sinótico, aparentemente acadêmico e distante da
vida, estão em jogo questões muito delicadas sobre Jesus e
sobre a fé das primeiras comunidades cristãs.

22
3. Os evangelhos sinóticos na vida da Igreja primitiva

O fato tão singular que os evangelhos sinóticos repre-


sentam, textos genealogicamente semelhantes em evidente
clima de família, sugere alguns ensinamentos que vou propor
na seqüência.

a. Tradição não é simples repetição

Está claro que havia um grande esforço para conservar


a tradição de Jesus. Por esta razão, foram elaborados alguns
textos escritos, os quais circulavam pelas comunidades. To-
davia, também está claro que não se limitavam a transmitir
estes textos mas os complementavam com outras informações
e reelaborações, feitas em função das necessidades do presen-
te. A fidelidade não é mera repetição do que foi recebido;
implica também a transformação deste material em algo
significativo para as novas circunstâncias históricas.

b. Leitura comparada dos evangelhos sinóticos

Um método muito proveitoso de leitura dos ESconsiste


em comparar as várias versões que eles apresentam para um
mesmo texto. Para isto, é muito conveniente usar uma Sinopse
dos evangelhos, na qual o texto dos evangelhos é disposto em
colunas paralelas. Esta leitura deve ser realizada observando-
se com muita atenção as diferenças do contexto como também
do conteúdo deles. Trata-se de um sistema de leitura que nos
apresenta diferentes e complementares perspectivas de Jesus
e da vida cristã.
Na realização desta leitura, pode ser aceita como hipó-
tese de trabalho a teoria das duas fontes, considerando-se Me
como fonte de Mt e Lc e, conseqüentemente, como ponto de
referência na descoberta das modificações operadas por eles.

23
c. Pluralidade dos evangelhos como elemento positivo

Mateus não se conformou nem com o evangelho de Mc


nem com a fonte Q, escrevendo sua própria versão da vida e
do ensinamento de Jesus. O mesmo foi feito por Lc. Anterior
aos dois, Me não se satisfez com as coleções que recebeu,
escrevendo uma obra nova. A Igreja posterior respeitou o
pluralismo dos evangelhos e o considerou um fator muito
positivo. Todavia, surgiram também anseios de uniformida-
de, a fim de unir-se tudo num só evangelho. Taciano, no
século lI, elaborou o Diatessaron, uma síntese dos quatro
evangelhos através da mistura de textos de todos eles, a qual
obteve uma boa receptividade. Marcião (excomungado pela
Igreja), também no século lI, defendeu a validade exclusiva de
Lc. A Igreja, no entanto, não aprovou estas tentativas, pois
tinha consciência da riqueza representada pelas diferentes
visões da vida e do ensinamento de Jesus.
A partir destas considerações, chega-se necessariamen-
te a uma conseqüência: é preciso colher as diferenças existen-
tes entre os evangelhos e captar o ponto de vista próprio de
cada ES. Neste ponto, como em outros, fica-se na dependên-
cia de uma tarefa a ser exercida pela Igreja: a aceitação da
pluralidade que, opondo-se à uniformidade, se inscreve no
âmbito de uma unidade mais profunda.

d. Os evangelhos como visão sintética


e equilibrada da tradição de Jesus

Cada uma das coleções escritas antes dos evangelhos


apresentava Jesus a partir de uma determinada perspectiva: as
coleções de milagres do filho do Deus poderoso, as dos ditos
do mestre de sabedoria, a da paixão do Servo sofredor de Javé
etc. Existia, no entanto, o perigo de desenvolver somente uma
destas linhas e chegar a perspectivas muito unilaterais de
Jesus, fato acontecido em alguns apócrifos. Os evangelhos
canônicos não se contentam simplesmente em recopiar dife-
24
rentes coleções, como também as harmonizam em uma visão
equilibrada a partir da ótica de uma vida que desabrocha na
cruz e na ressurreição.

e. A formação dos evangelhos sinóticos


e a vida do cristianismo primitivo

o fenômeno literário do NT só pode ser entendido se


colocado no contexto da vida do cristianismo primitivo. As
relações literárias descobertas pelas teorias sinóticas corres-
pondem à evolução do movimento cristão.
Me, Mt e Lc vão surgindo sucessivamente como expres-
sões de comunidades que possuem diferentes visões teológicas
e distintas situações sociais e geográficas. Para Me, o Filho de
Deus revela-se através da cruz, a qual é a chave para o
entendimento de todas as tradições de Jesus. Mt desenvolve o
relato de Me e afirma que a cruz é conseqüência do ensina-
mento de Jesus (fonte Q), formulada a partir de uma perspec-
tiva judeu-cristã. Lc também, por sua vez, amplia o relato de
Mc servindo-se da fonte Q e relaeionando-a com os Atos dos
Apóstolos, no qual se apresenta o desenvolvimento posterior
da fé, explicando-se assim o surgimento das comunidades
cristãs entre os pagãos, das quais o autor das duas partes da
obra lucana considera-se porta-voz.

25
HISTÓRIA
DAS FORMAS
o método da História das Formas baseia-se no princípio
de que a forma literária de uma unidade literária corresponde
a uma situação histórica determinada. Aplicado aos evange-
lhos, este princípio auxilia no conhecimento da obra de Jesus
e da criatividade da Igreja primitiva na transmissão desta obra.
O ceticismo dos resultados sobre Jesus de Nazaré, ao qual
chegaram os primeiros promotores deste método, são devidos
não ao método em si mesmo mas aos seus preconceitos.
1. Um beco sem saída

No início do nosso século, os estudos feitos sobre a


figura histórica de Jesus haviam chegado a um beco sem saída.
A procura pelo documento mais antigo sobre Jesus havia
levantado, no século XVIII, o problema sinótico. Durante
todo o século XIX, buscou-se uma explicação satisfatória
para este problema. Tratava-se de explicar a razão das coin-
cidências e das divergências entre os três evangelhos sinóticos:
Mateus, Marcos e Lucas. Não se chegou a uma explicação
definitiva, mas a hipótese das duas fontes acabou sendo muito
divulgada. Segundo esta hipótese, Me e uma coleção de
sentenças de Jesus (denominada Q, primeira letra da palavra
alemã Quelle, "fonte") seriam os dois documentos mais
antigos; deles dependem os escritos posteriores: Mt e, mais
tarde, Lc. O evangelho de Me, portanto, de acordo com esta
opinião, seria o mais antigo dos três evangelhos sinóticos. Por
conseqüência, é nele que se deveria buscar a imagem mais
próxima à da história de Jesus de Nazaré. Neste contexto,
alguns autores lançaram-se à tarefa de escrever a vida de Jesus,
inspirando-se em Me. No começo deste século, todavia,
surgiram novos estudos de W. Wrede e W. Bousset; atualizan-
do uma obra de D. F. Strauss, escrita em 1835, eles afirmam
que Mc, embora seja o texto mais antigo, não representa um
trabalho histórico mas sim um mito, que pretende justificar o
messianismo aparente de Jesus. A conclusão era evidente: não
se pode chegar a conhecer a figura histórica de Jesus. O
documento mais antigo que possuímos, Me, não tem caráter
histórico, e sim mítico. Tinha-se chegado a um beco sem saída.

Mito: narração fictícia, na qual são explicados fatos da


natureza e da cultura, recorrendo-se a intervenções de
deuses e heróis divinizados.

29
2. Abrir novos caminhos

Era necessário superar este impasse, buscando uma


solução. E ela foi encontrada no estudo das formas. Estudan-
do Me, a fonte mais antiga, alguns exegetas descobrem que
não se trata de uma unidade monolítica mas de uma recopi-
lação de unidades escritas ou orais já existentes. Ora, se as
coisas estão deste modo, assim como Me havia "composto"
um conjunto unitário, agrupando e justapondo unidades
inicialmente independentes, agora deveria ser possível "des-
compor" o conjunto, isolando cada unidade, classificando-as
por seu conteúdo, com o objetivo de estudá-las. Desta forma,
podem-se obter novas informações sobre a pré-história dos
evangelhos, e conseqüentemente uma proximidade maior da
figura histórica de Jesus, preocupação que continua inspiran-
do todos estes estudos.

3. O método

O método da História das Formas (os alemães que o


criaram chamam-no de Formgeschichte) ou Análise dos Gêne-
ros procura aplicar ao material evangélico a teoria dos gêneros
literários com seu pano de fundo histórico, teoria que já havia
sido aplicada por H. Gunkel ao AT, concretamente a Gênesis
e Salmos. Trata-se de determinar o gênero literário ou a forma
de uma unidade e, com base nos resultados alcançados,
determinar a situação histórica na qual o texto surgiu (tecni-
camente fala-se do Sitz im Leben, "situação vital").
Gênero literário ou forma é o revestimento literário dado
a uma idéia (por vezes empregam-se indistintamente as expres-
sões "gênero literário" e "forma"; outros autores, por outro
lado, costumam usar o primeiro para designar unidades maio-
res e o segundo para unidades menores). Toda idéia precisa de
uma forma ou gênero. Às vezes se pergunta se este ou aquele
relato "é um gênero literário" ou "possui um gênero literário".
Ao se fazer esta pergunta, entende-se gênero literário como
30
uma narração sem fundamento histórico ou lógico. Quem faz
este tipo de pergunta pensa, de forma enganosa, que os relatos
bíblicos dividem-se em históricos e em "gêneros literários",
isto é, não-históricos. Mas não é este o sentido do gênero
literário. Gênero ou forma é a veste literária que necessaria-
mente toda idéia deve ter. Podemos conceber em nossa mente
uma idéia; para manifestá-la aos outros, no entanto, é preciso
que lhe demos uma veste ou uma forma literária. Quem tem
uma idéia e quer expressá-la, possui muitas alternativas: pode
revesti-la de uma linguagem poética ou prosaica, narrativa ou
doutrinal, infantil ou adulta; pode adotar a forma mais adequa-
da em função dos destinatários. Isto acontece com todo tipo de
linguagem. Se eu quiser comunicar o conceito de céu, por
exemplo, posso servir-me de várias linguagens. Posso dizer:
"visão beatífica de Deus" (linguagem filosófica), "estar sempre
com o Senhor" (linguagem paulina), "lugar onde ficamos com
nosso pai Deus, onde há muitos jogos e doces" (linguagem
infantil). A escolha do tipo de linguagem será feita em função
do destinatário. Usar o primeiro dos exemplos acima citados
para falar às crianças seria uma aberração: elas nada entende-
riam. Neste caso, seria aconselhável usar o terceiro exemplo ou
algo semelhante. O primeiro seria apropriado para falar a um
destinatário adulto e culto.
Analisando a forma escolhida pelo autor, portanto,
pode-se chegar a algumas conclusões sobre os destinatários e
sua situação vital - do mesmo modo que se podem tirar
conclusões sobre a vida de uma pessoa depois de abservar-se
seu guarda-roupa. Se nele encontrarmos roupas de etiqueta,
equipamento usado para esquiar, trajes de banho ou de
trabalho, poderemos obter dados sobre o estilo de vida do
usuário: pratica esportes, participa de eventos sociais que
exigem trajes elegantes...
Os exegetas que adotam este método descompõem o
conteúdo dos evangelhos, classificando as unidades e compa-
rando-as. Ao compará-las, descobrem que algumas possuem o
mesmo conteúdo, mas que existem divergências entre elas.
Então, colocam-se o problema: qual delas é a mais antiga ou
31
primitiva e quais as secundárias ou posteriores? Ou seja, qual
é a história destas formas? Contemporaneamente, pergunta-se:
a que se deve esta evolução? Para responder a estas questões,
por um lado, é muito útil o estudo das várias formas existentes
nas literaturas nas quais nasce e se desenvolve a tradição
evangélica, sobretudo a literatura hebraica e helenista; por
outro lado, é importante também determinar algumas "leis"
ou constantes que se verificam quando se analisa como Mt e Lc
elaboram os materiais que recolheram de Mc e Q. A resposta
a estas perguntas irá auxiliar na obtenção de dados muito
importantes sobre a Igreja primitiva e o modo como foram
recebidas e transmitidas as palavras de Jesus, bem como, numa
visão mais global, sobre a formação dos evangelhos.

4. Criadores da História das Formas

Foram especialmente três os pesquisadores desta ques-


tão, os quais publicaram as suas obras mais ou menos na
mesma época, em torno de 1920. Em 1919, surgiram as obras
de K. L. Schmidt e M. Dibelius, ambos alemães. A obra do
primeiro intitula-se El marco de la historia de Jesús; seu
objetivo é demonstrar que Mc é uma coleção de narrações de
origem independente, ligadas umas às outras pelo evangelista,
que para tanto criou um marco geográfico e cronológico
adequado (em língua espanhola pode-se encontrar a tradução
de um capítulo deste escrito em La investigación de los
evangelios sinópticos y Hechos de los Apóstoles en el sigla
XX, recém-editado por R. Aguirre Monasterio e A. Rodríguez
Carmona, Verbo Divino, pp. 17-35). A obra de M. Dibelius
teve uma grande repercussão; foi traduzida para o espanhol
com o título La historia de las formas evangélicas (Valencia,
Edicep, 1984). Nela estuda-se todo o material evangélico,
sobretudo o material narrativo, classificado por formas, do
qual são fornecidas indicações sobre cada grupo, sua evolu-
ção e seu valor histórico. Enfim, em 1921, R. Bultmann
escreveu em alemão a sua Historia de la tradición sinóptica,
32
obra semelhante à anterior, mas que dá maior atenção ao
material discursivo, razão pela qual pode ser considerada uma
complementação do trabalho de Dibelius (no livro de R. A.
Monasterio e A. R. Carmona, acima citada, o leitor pode
encontrar a tradução de um capítulo para o espanhol nas
páginas 47-64). Não se pode esq uecer que está presente, como
pano de fundo destas obras, a preocupação pelo conhecimen-
to de Jesus de Nazaré. Com relação a este problema, eles
concluem que o material contido nos evangelhos, à luz de suas
formas, provém da comunidade cristã primitiva, que o desen-
volveu a partir de sua fé pascal e para a sua fé. Trata-se de um
material de tipo popular, semelhante aos relatos populares
daqueles ambientes, sobretudo helenistas. Conseqüentemen-
te, o Jesus refletido nos evangelhos não é o Jesus da história
mas o que foi criado pela fé dos primeiros cristãos.
Os três livros acima citados trouxeram elementos ino-
vadores para seu tempo e provocaram uma forte discussão
científica, que serviu para separar o joio do trigo. Vistas
depois de 80 anos, podem-se distinguir nelas elementos posi-
tivos, com valor atual, bem como outros devidos a aprioris-
mos próprios dos autores e de sua época. Em geral, o balanço
é positivo pelo fato de que estes estudos, sobretudo os de
Dibelius e Bultmann, continuam sendo instrumentos de con-
sulta úteis para quem quiser conhecer profundamente a
origem dos evangelhos.

5. Elementos positivos

O método, em si mesmo, é válido; hoje em dia, normal-


mente, costuma-se usá-lo em todo estudo diacrônico ou histó-
rico-crítico dos evangelhos e demais textos do NT, pois ajuda
a conhecer a história de determinada forma, desde sua origem
até o momento em que se integra ao conjunto de um dos
evangelhos ou de outro textos do NT. Além disso, este método
pôs em relevo o papel da Igreja primitiva na transmissão da
mensagem de Jesus. Jesus não escreveu nada. A Igreja primi-
33
tiva acolhe sua palavra e a transmite, primeiro oralmente e
depois por escrito. Nesta tarefa de transmissão, foram empre-
gados dois tipos de linguagem - o doutrinaI e o narrativo -,
em virtude das diversas necessidades pastorais que surgiram,
tais como a proclamação querigmática da obra de Jesus, a
catequese, o culto, a missão e a apologética. Todas estas
necessidades determinaram a criação de uma série de formas
literárias, nas quais podem ser descobertas a situação vital
pastoral que determinou sua existência. No final do processo,
muitas destas unidades foram incorporadas aos diversos escri-
tos do NT. Um estudo atento do NT permite detectar a
presença delas, isolá-las, estudá-las e determinar a que neces-
sidade eclesial respondem. Vejamos o seguinte exemplo.
Um leitor atento do começo de LCor 15 descobrirá nos
versículos 3-5 a presença de uma forma especial, um credo.
Paulo relembra aos seus leitores o que pregou, o que transmi-
tiu, que é o mesmo que ele recebeu ("transmitir", "receber"
são palavras técnicas empregadas ao se tratar da tradição
oficial, que deve ser ensinada fielmente). Na seqüência, apa-
rece o conteúdo. Muda o vocabulário e o ritmo da frase. Paulo
está citando um credo que ele aprendeu e depois transmitiu
aos coríntios:

"Cristo morreu por nossos pecados, conforme as


Escrituras; ele foi sepultado, ressuscitou ao terceiro
dia, conforme as Escrituras; apareceu a Pedro e depois
aos Doze".

Provavelmente trata-se do texto literário mais antigo


recolhido pelo NT, um credo composto pela comunidade
primitiva. Podemos deduzir, deste fato, que a Igreja primitiva
preocupava-se em ensinar sua fé e que, em função desta
necessidade, compôs credos que facilitassem esta tarefa. O
estudo de outras formas leva à conclusão de que também
foram compostas fórmulas de fé para ensiná-la, bem como
outras formas adequadas para celebrá-la, tais como jaculató-
rias (doxologias, homologias) e hinos.
34
Paralelamente, em função de suas necessidades, a co-
munidade foi transmitindo a tradição narrativa, que havia
sido recebida e formada pelos fatos e ditos de Jesus, moldan-
do-a, dando-lhe também a forma requerida pela situação. O
estudo de cada uma delas ajudará também a descobrir a
situação vital na qual elas surgiram. Dois exemplos - um
com material narrativo e outro com material discursivo -
podem ser esclarecedores. Lc 22,14-20 apresenta o relato da
instituição da eucaristia da seguinte forma:

chegada dos comensais;


palavras de Jesus;
- Jesus oferece a todos a primeira taça;
Jesus reparte o pão e o dá a todos, afirmando ser seu
corpo e ordenando seja repetido esse ato como seu
memorial;
depois de ter ceado, oferece outra taça, afirmando
ser a nova aliança em seu sangue;
- palavras de Jesus.

Por sua vez, o relato paralelo de Me 14,17-25 apresenta


esta forma:

chegada dos comensais;


palavras de Jesus;
- enquanto comem, Jesus reparte o pão e o dá a todos,
afirmando ser seu corpo;
depois oferece uma taça, afirmando ser o sangue da
aliança;
palavras de Jesus.

Das duas narrações, a de Lc supõe que tenham sido


bebidas duas taças, uma no começo e outra no final da ceia,
que é a que foi consagrada por Jesus. Este fato reflete uma
situação histórica, na qual a comunidade primitiva celebra,
35
juntamente com a eucaristia, uma refeição fraternal. Isto pode
ser notado também em lCor 11,17-34. Neste texto, Paulo
repreende a comunidade pelos abusos que acontecem neste
tipo de celebração. Paulo lembra aos seus leitores a tradição
da eucaristia, que remonta a Jesus, em um relato cuja forma
é muito parecida com a de Lc. Realmente Jesus instituiu a
eucaristia durante uma ceia pascal, que incluía várias taças de
vinho e uma refeição. A Igreja primitiva começou celebrando
a eucaristia em um contexto semelhante, incluindo também
uma ceia fraterna; mas, como revela o texto de Paulo acima
citado, este tipo de celebração tornou-se pouco prático e deu
ocasião a abusos, em virtude do aumento do número dos
membros da comunidade. Por esta razão, pouco a pouco,
caminhou-se para a separação entre o momento da refeição
fraternal e o da eucaristia. O texto de Me demonstra que isto
já havia sido alcançado. De fato, sua narração trata das duas
consagrações seguidas, omitindo a menção da primeira taça
e a alusão de que a consagração da taça teve lugar depois da
ceia. É um reflexo do modo como esta comunidade celebra a
eucaristia, consagrando sucessivamente o pão e o vinho.
Do mesmo modo podem ser comparadas as duas for-
mas nas quais aparece, na tradição evangélica, um dito de
Jesus sobre o pedido do pão: Mt 6,11 e Lc 11,3. Mt escreve:
"Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia" (em grego é usado aqui
o imperativo aoristo, cujo significado é dar uma só vez),
enquanto Lc diz: "Dá-nos a cada dia (em grego é usado aqui
o imperativo presente, cujo significado é uma ação continua-
da) o pão de amanhã". As diferenças de formulação supõem
dois tipos de atitude do orante: o de Mt pede a partir de uma
situação de necessidade o que ele precisa para hoje, como um
mendigo que nada tem; o de Lc pede, com uma abrangência
maior, o que ele precisa para cada dia. A situação do orante
de Mt pode ser explicada a partir da perspectiva da situação
histórica dos seguidores de Jesus, os quais deixaram tudo para
segui-lo, vivendo, juntamente com Jesus, abandonados à
providência do Pai; o orante de Lc é um cristão que possui
meios para viver, mas reconhece que o Reino está em primeiro
36
lugar e que, a partir desta concepção, todos os bens humanos
são inseguros; por isso, ele implora a ajuda da providência do
Pai. A primeira forma nos conduz a uma situação vital do
ministério de Jesus; já a segunda, conduz-nos à realidade de
uma das igrejas gregas às quais Lc se dirige.
Em função de suas necessidades, portanto, a Igreja
primitiva criou uma série de formas narrativas, tais como
relatos de milagres, paradigmas (ambientação narrativa ne-
cessária para entender uma frase de Jesus, como, por exem-
plo, Me 2,15-17), narração de vocação, cristofanias etc., e de
outra série de formas discursivas para transmitir as frases de
Jesus (os autores não concordam na determinação concreta
das diferentes formas narrativas e discursivas). O estudo
destas permite-nos descobrir vestígios que sugerem a situação
primitiva na qual nasceu a forma, bem como as diferentes
situações nas quais ela foi usada pela comunidade primitiva e,
no final do processo, pelo evangelista. Trata-se de um estudo
que deve ser feito com toda cautela, pois o texto final que
chegou até nós pode conter traços que conduzem a diferentes
situações vitais. Um exemplo interessante de um estudo deste
tipo é a obra deJ.Jeremias, As parábolas deJesus, ,< que aplica
às parábolas de Jesus este método, juntamente com outros
métodos, mostrando sua trajetória desde Jesus até os diversos
evangelistas, à luz das diferentes situações pastorais às quais
o material foi submetido no interior das várias comunidades
cristãs primitivas, ou seja, à luz da situação vital da Igreja da
Palestina, da situação vital dos gentios e finalmente da situa-
ção vital de cada evangelho, que a seleciona e emprega em
função de sua mensagem unitária.
Desta perspectiva, pode-se afirmar com certeza que a
comunidade primitiva é criadora, não porque inventa o con-
teúdo dos fatos e ditos de Jesus, mas porque os transmite a
partir de sua própria fé e para sua fé, e que, para alcançar este
objetivo, dá uma forma a este material, acrescentando, tirando,
evidenciando os elementos que ajudavam a cumprir esta tarefa.

* JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus, São Paulo, Paulus.


37
A Igreja primitiva não inventa a tradição de Jesus mas a molda
em função de suas necessidades. Os evangelhos, portanto, são
realmente livros da Igreja, nascidos da fé e para a fé. De tudo
isto que acabamos de afirmar, pode-se deduzir que os evange-
lhos não foram escritos de um só fôlego por seus autores, tendo
como referência única suas recordações; eles empregaram, isto
sim, materiais já existentes, redigidos em aramaico e em grego.
Antes da redação dos evangelhos, houve uma pré-história que
deu uma configuração aos materiais que ele contém.

6. Apriorismos ou preconceitos

Os inventores da História das Formas, sobretudo


Bultmann, foram condicionados por sua formulação filosófi-
ca e teológica. Isto é inevitável a qualquer um. Por esta razão,
algumas conclusões não se devem ao método da História das
Formas como tal, mas a uma série de apriorismos fundamen-
tados em sua formação. Esta é a razão do ceticismo demons-
trado por eles com relação ao conhecimento de Jesus, bem
como ao papel excessivamente criador que eles atribuem à
Igreja primitiva. Com relação a Jesus de Nazaré, por um lado
eles não estão interessados em seu conhecimento; por outro
lado, na sua opinião, não é possível conhecê-lo partindo das
informações de que dispomos atualmente. Nestas posições,
tem seu peso uma visão religiosa luterana, segundo a qual a
salvação repousa exclusivamente sobre a fé pura, sem ne-
nhum tipo de provação. Portanto, não há interesse em conhe-
cer o Jesus da história, visto que este conhecimento poderia
fundamentar a fé. Além disso, segundo estes estudiosos, tal
conhecimento não é possível se tivermos por base os dados
que possuímos. A luz da história das religiões, são muitos os
paralelismos existentes entre as formas evangélicas e as da
cultura helenista. Este fato demonstra que os relatos do
Evangelho (milagres, cristofanias etc.) são criações da comu-
nidade primitiva, realizadas para justificar sua fé em umJesus
Messias e Filho de Deus, o que na realidade Jesus não foi.
38
Este é o ponto fraco da obra dos grandes mestres da
História das Formas. Estes pontos de vista atualmente são
negados ou pelo menos amenizados pelos próprios discípulos
de Bultmann. A investigação atual evidenciou que as informa-
ções contidas nos evangelhos permitem descobrir também
uma situação vital na vida de Jesus. Na realidade, não é fácil
aceitar que, depois da morte de Jesus, seus seguidores foram
acometidos por uma amnésia geral que os fez esquecerem
absolutamente todas as lembranças, sobretudo as que justifi-
cavam sua postura de seguidores e propagandistas de Jesus,
tais como sua vocação e envio em missão, as lembranças dos
sinais que ele realizou e especialmente a lembrança da cruci-
ficação. A Escola Escandinava colocou em destaque a impor-
tância da tradição oral para aquela época e como ela pode
explicar o fato de a tradição de Jesus ter chegado até os
primeiros cristãos, os quais a transmitiram aos outros. Por
outro lado, a Igreja primitiva sempre se interessou pelo
conhecimento de Jesus de Nazaré como o fundamento de sua
fé. Como vimos, a Igreja primitiva transmite de forma criativa
a tradição de Jesus; todavia, ela não a inventa aleatoriamente.
Outra afirmação dos propagadores da História das
Formas, atualmente questionada, refere-se ao caráter de
compilação atribuído aos evangelhos que, no seu entender,
não formam uma unidade literário-teológica mas uma com-
posição de unidades de origem independente. De acordo com
esta posição, os evangelistas não seriam verdadeiros autores
mas simples compiladores. Outro movimento exegético, a
História da Redação, surgida nos anos 50 em reação a esta
postura, defendeu que cada evangelho forma uma unidade
literário-teológica, elaborada como resposta a determinados
problemas, e que, portanto, os evangelistas são seus verdadei-
ros autores. Em sua obra, eles lançaram mão de material já
existente (as unidades literárias elaboradas pela Igreja primi-
tiva), mas não se limitaram a expô-lo, fundindo-o em uma
nova unidade. Isto não representa a negação do princípio
básico da História das Formas - decompor o conjunto e
analisar cada uma das suas unidades - porque, mesmo
39
partindo da unidade atual, ainda é possível isolar as unidades
de que os evangelistas se serviram, estudar sua forma e obter
informações sobre elas.
Hoje em dia, o método da História das Formas é
considerado uma conquista positiva da exegese, um auxílio
que, aplicado adequadamente, permite que se conheça me-
lhor a pré-história dos evangelhos e ao mesmo tempo a
história de Jesus e da Igreja primitiva.

40
A HISTÓRIA DA REDENÇÃO
DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

rde~;eo Pacfto~ RaJf(Ocf


Os evangelistas não são meros compiladores de dados
e de informações, orais ou escritas, que a Igreja nascente lhes
apresenta. Ao dinamismo da transmissão da fé e à difusão das
tradições sobre Jesus nas primeiras comunidades, acrescente-
se a marca pessoal de cada um dos autores dos evangelhos.
Este artigo apresenta os aspectos literários e teológicos
característicos dos autores dos evangelhos sinóticos e nos dá
uma idéia das diferentes concepções sobre Jesus e sobre a
Igreja, presentes na configuração e estruturação definitiva
dos dados das tradições evangélicas por parte de cada um dos
redatores finais dos evangelhos.
Introdução

Até não muitas décadas atrás, concordava-se unanime-


mente em que os evangelhos sinóticos tinham sido escritos
simplesmente pelos seus autores: Mateus, Marcos e Lucas,
respectivamente. Ainda hoje alguns defendem esta posição.
Na opinião deles, estes autores, inspirados por Deus, tinham
colocado por escrito suas próprias recordações - no caso de
Mateus, as próprias, e as de Pedro no caso de Marcos,
companheiro de Simão Pedro, e, no caso de Lucas, as informa-
ções recebidas de testemunhas da vida e das ações de Jesus,
dentre as quais destaca-se a própria Maria. Segundo esta
forma de conceber a formação dos evangelhos, praticamente
todo este processo formativo reduz-se ao trabalho redacional
dos autores.
Como veremos, não se pode declarar completamente
inaceitável esta visão. Todavia, com base nos estudos críticos
sobre o texto sinótico realizados sobretudo nos últimos cem
anos (usando-se uma cifra um tanto arredondada, tema
abordado em outros artigos deste livro), a situação mudou
consideravelmente.
A descoberta de que estes livros tiveram fontes orais e
escritas, como as tradições pré-sinóticas - isto é, anteriores
aos próprios evangelhos - , que foram transmitidas em
formas literárias como também orais, ainda que em menor
número, ampliou e deu novo enfoque à concepção anterior.
Basta haver uma mínima informação a esse respeito, e
já não se pode pensar de uma forma tão simples assim. Esse
fato não se dá porque a nova concepção "está na moda", mas
porque atualmente sabemos muito mais do que antes sobre o
processo de surgimento dos evangelhos - processo indubita-
velmente complexo.
Resumindo os dados e seguindo aproximadamente a
ordem na qual foram surgindo os estudos que os tornaram
manifestos, pode-se dizer o seguinte:
43
a) os evangelhos sinóticos de Mt e Lc possuem fontes
escritas que são, pelo menos, o evangelho de Me e a
chamada fonte Q (de certa forma este dado é muito
antigo e nos situa na realidade histórica);
b) por sua vez, estas fontes são compostas de formas
literárias preexistentes, orais ou escritas. Trata-se de
pequenas unidades literárias estruturadas, com as
quais os primeiros pregadores e as comunidades
cristãs transmitiam os fatos, ditos e demais tradições
sobre Jesus.

Posto isto, é oportuno questionar-se: as fontes dos


sinóticos - e de modo especial os próprios evangelhos -
seriam reproduções destas formas literárias? Ou seja: trata-se
de coleções de unidades simplesmente semelhantes? De fato,
tamanha é a importância e a certeza a propósito de que as
formas literárias, consideradas por sua vez em sua própria
história, constituem grande parte do material evangélico, que
houve quem se tornasse partidário da resposta afirmativa a
estas questões, usando-as para explicarem toda a formação
dos evangelhos sinóticos. Os sinóticos, neste caso, seriam
livros semelhantes a antologias, formados por fragmentos de
tradições anteriores, dispostas em uma ordem quase aleató-
ria. O trabalho dos evangelistas teria sido muito pequeno,
considerados como meros compiladores das unidades de que
dispunham.
Mas as coisas não parecem ser nem parecem ter sido
deste modo. Esta é a posição para a qual nos conduz a Historia
de la Redacción, fruto de estudos mais modernos, levados a
cabo por pesquisadores, dentre os quais destacam-se Hans
Conzelmann, Willi Marxsen, Wolfgang Trilling etc.
As obras básicas destes autores, traduzidas para o
espanhol, são:

Hans Conzelmann, EI centro dei tiempo. La teología de


Lucas (Madrid, FAX, 1974). A edição original é
alemã.
44
Willi Marxsen, El evangelista Marcos. Estudios sobre
la redacción dei evangelio (Salamanca, Sígueme,
1981). A edição original alemã é de 1959.
Wolfgang Trilling, El verdadero Israel. La teología de
Mateo (Barcelona, Herder, 1974). A terceira edição
original alemã é de 1964.

Na realidade, a Historia de la Redacción é um método


que não vai contra os métodos da Crítica das Fontes e da
História das Formas; pelo contrário, ela os completa, colo-
cando em destaque aspectos importantes não suficientemente
evidenciados por eles.

1. Redação dos evangelhos sinóticos

A idéia fundamental desta teoria encontra-se, de certa


forma, a meio caminho entre a concepção tradicional e a da
História das Formas.
De acordo com ela, os evangelistas, últimos redatores
de suas obras - tais como os entendemos normalmente,
independentemente do fato de terem sido as pessoas concretas
conhecidas como Mateus, Marcos e Lucas - não se limita-
ram simplesmente a compilar, um tanto aleatoriamente, os
materiais orais ou escritos anteriores, mas são autênticos
autores que utilizam este material com idéias e visões teológi-
cas próprias e pessoais, as quais influenciam a composição de
toda a sua obra.
Eles dispõem este material com critérios elaborados,
tendo em conta suas respectivas finalidades e seus destinatá-
rios. Escrevem suas obras de acordo com o que querem
transmitir. Cada um deles, como veremos mais adiante,
possui uma intenção, ou mesmo várias intenções, ao escrever
seu livro. Em função dela, selecionam, ordenam, retocam,
organizam... o que receberam da tradição; em algumas oca-
siões, também suprimem e/ou acrescentam dados, informa-
ções etc. Em suma, eles se comportam como autores que
escrevem uma obra determinada.
45
Freqüentemente a "matéria-prima" utilizada é a mes-
ma, total ou parcialmente, mas a reelaboração à qual a
submetem é de grande envergadura, tanto que o resultado, o
evangelho de cada um, é em grande medida diferente, ainda
que possua uma estrutura comum aos outros dois. Portanto,
este resultado final transforma-se em uma obra original, da
qual cada autor é responsável, fazendo com que circule uma
teologia bastante original e, em alguns aspectos, totalmente
diferente da outra.
A redação dos evangelhos sinóticos não se limita a
detalhes formais, mais ou menos estilísticos. Neste sentido
pode ser um tanto arriscado falar em "redação", que muitas
vezes comporta uma concepção externa ou superficial. Em
nosso contexto, "redação" refere-se mais a todo o trabalho de
composição e a todo o esforço e labor criativo de cada
evangelista.
Esta intenção concreta e este trabalho pessoal aparecem
claramente quando se comparam as seções da "tripla tradi-
ção" , isto é, daquelas passagens transmitidas pelos três evan-
gelistas. Fica evidente como cada um deles colocou a mesma
"perícope" ou parágrafo em lugares diferentes, ou uniu vários
textos que se encontravam separados em sua fonte. Esta tarefa
foi feita com o objetivo de apresentar o que a cada um deles
interessava pôr em relevo, que é uma determinada apresenta-
ção de Jesus, sua pessoa, sua mensagem, sua obra, seu
significado.
Por esta razão, há quem fale hoje em dia em" história da
redação teológica", para indicar que não se trata somente de
um trabalho, por assim dizer, de fiação literária de materiais
dispersos, mas de algo mais profundo.
Todavia, um dos aspectos nos quais mais se aprecia o
trabalho pessoal é o especificamente literário. A crítica literá-
ria evidencia, em grande parte, a tarefa pessoal e literária do
autor quanto ao sentido em português e não quando traduz de
forma enganosa o alemão Literarkritik (que na realidade é
crítica de fontes literárias).
46
Falar de "história da redação" implica, dentre outras
coisas, os seguintes aspectos:

• a composição de cada evangelho foi um processo


longo, mesmo no que se refere ao trabalho de cada
autor;
• como acontece com as formas literárias, é possível
perceber detalhes e acontecimentos neste processo
que deixaram suas marcas no texto final redigido:
quem o escreveu, onde, para quem, em que ambien-
te, como era o autor, qual seu nível cultural, suas
preocupações, como eram os destinatários etc. Pode-
se conhecer muito da situação vital dos evangelhos
sinóticos estudando-se a História da Redação.

Situação vital (em alemão, Sitz im Leben): é um termo


inventado por Gunkel, muito freqüente na exegese; apli-
ca-se às circunstâncias sócio-religiosas típicas nas quais o
gênero literário tem origem e é empregado.

2. Marcos

Nesta breve apresentação, vamos limitar-nos aos aspec-


tos mais característicos da redação de Marcos - bem como
dos demais sinóticos, posteriormente - , prescindindo de
muitos dos problemas que um estudo global de um texto
como este comporta. Não se pode dizer que haja tantas
opiniões quanto o número de autores que estudaram o
evangelho de Marcos; no entanto, as diferenças concretas são
muito grandes. Nesta parte, vamos ater-nos aos resultados
mais garantidos e aceitos, que tenham importância para nosso
propósito de apresentar a redação do evangelho.
Seu autor, Marcos, é o criador do gênero literário
"evangelho escrito". Neste sentido, sua obra redacional abre
47
a trilha que será seguida depois por "Mateus" (redator final)
e Lucas. É nisto que se fundamenta, dentre outras razões, a
importância de sua pessoa e de sua obra.
Marcos reúne e organiza o material tradicional de que
dispõe. Certamente trata-se de formas literárias anteriores a
ele, transmitidas oralmente ou, em alguns casos, eventual-
mente colocadas por escritos em "folhas soltas" para uso de
pregadores e reunidas (ou não) em coleções. Ele também pode
ter utilizado relatos de Pedro ou suas próprias recordações,
bem como alguma narração da Paixão, provavelmente já
elaborada por escrito. Muitos destes materiais, ou quem sabe
todos, encontravam-se dispersos e desorganizados. Pode ser
que existissem algumas coletâneas por temas, mas disto não
temos certeza. Um de seus méritos fundamentais está no fato
de ele ter conseguido organizar todo este material em um
conjunto coerente e lógico. Ele constrói um "marco", no qual
podem ser inseridos os dados a sua disposição.
Uma das indicações mais claras desta organização é a
perspectiva geográfica. Trata-se de um elemento relativamen-
te evidente. O evangelho de Marcos está dividido em duas
grandes partes fundamentais: a dedicada à Galiléia (1,14-8,27)
e a que possui seu centro em Jerusalém, precedida por uma
narração não muito extensa do caminho até esta cidade (8,28-
13,37); a estas duas partes, são acrescentados os relatos da
paixão e ressurreição (14,1-16,8). Nestas grandes seções, vão
aparecendo as diversas narrações sobre Jesus ou propriamen-
te dele.
Não parece que os acontecimentos se desenrolaram de
forma tão simples e sistemática. Temos a impressão - confir-
mada pela comparação com os outros evangelhos - de que
nos encontramos diante de um artifício literário de Marcos,
usado para organizar seu material, tal como já afirmamos.
Na presente abordagem, não se faz necessário detalhar
mais esta estrutura - o que pode ser feito com facilidade ou
mesmo ser encontrado nos comentários - e sim perceber a
tarefa organizadora de Marcos, pois o importante é o signifi-
cadoteológico desta dimensão geográfica: Marcos quereviden-
48
ciar que o Jesus terreno e o que foi Exaltado é o mesmo que
agora está presente na proclamação do Evangelho. A Galiléia
é o pretexto para recordar o aspecto humano e terreno de
Jesus visto que neste lugar ele passou a maior parte de sua
história. Jerusalém, por sua vez, é o símbolo da Morte e
Exaltação de Jesus como Filho.
Dentro deste esquema teológico geral, Marcos não
modifica muito os relatos tradicionais que utiliza. Nem mes-
mo modifica os blocos de materiais já existentes em seu
trabalho. Ele respeita muito o que recebeu, articulando-o
conforme suas finalidades.
Portanto, encontramo-nos diante de um autêntico au-
tor decididamente original, e com fundamental ca pacidade no
momento de escrever uma obra.

3. Mateus

Ao falar em "Mateus", referimo-nos ao último redator


que deu a forma atual e definitiva a este evangelho, prescin-
dindo de tudo o que aconteceu antes e que não constitui o
propósito deste texto. Trata-se, portanto, de uma denomina-
ção convencional, usada para as finalidades que nos propo-
mos atingir neste contexto.
Mateus utiliza claramente Marcos, que conhece muito
bem a chamada fonte Q, como também materiais próprios.
Tudo isto tem sua respectiva pré-história, na qual desempe-
nham um papel importante as formas literárias e sua história,
como afirmávamos anteriormente. Mas deixaremos estes
temas de lado, para sermos mais claros e para restringirmo-
nos ao ponto que nos interessa.
Como Marcos, também Mateus reorganiza todo este
material de acordo com seus próprios interesses e intenções.
Há muitas discussões no momento de determinar exatamente
a estrutura concreta do evangelho de Mateus. No entanto, é
indubitável o grande trabalho realizado pelo próprio evange-
49
lista em sua obra "redacional", como já tivemos a oportuni-
dade de afirmar.
Uma destas divisões, já muito antiga, é a do modelo em
cinco livros: entre a introdução (cap. 1-2) e a conclusão (cap.
26-28), o livro estaria articulado em cinco seções (cap. 3-7, 8-
10; 11,1-13,52; 13,53-18,35 e 19-25).
Outra divisão proposta é a inspirada na estrutura de
Marcos. Sem falar do início e do fim do livro, idênticos aos do
esquema anterior, encontraríamos uma grande parte dedica-
da à atividade de Jesus na Galiléia, juntamente com o caminho
para Jerusalém (4,12-20,34) e outra próxima aos aconteci-
mentos de Jerusalém (21,1-25,46). Estas grandes partes são
precedidas pelas narrações sobre a infância de Jesus e sobre a
preparação do seu ministério na Galiléia (1,1-4,11), seguidas
pelos relatos da paixão, morte e ressurreição (26,1-28,20).
Também neste caso, como no do evangelho de Marcos, não
é tão importante ater-se aos detalhes da estrutura quanto dar-
se conta do trabalho redacional do último "Mateus".
A idéia principal que Mateus quer transmitir e em
torno da qual organiza todo o material que se encontra a sua
disposição, é a de que o verdadeiro Israel realiza-se na Igreja.
Toda a sua reflexão cristológica e eclesial gira em torno
desta idéia.
Mateus retoca um pouco mais do que Marcos o mate-
rial que ele recebe da tradição. Esta afirmação vale tanto para
os relatos concretos, em que se pode notar uma atitude mais
doutrinal e de enfoque notadamente veterotestamentário,
como na distribuição interna das informações. Mateus reúne,
por exemplo, os ditos de Jesus nestes grandes discursos que
citei acima; sua intenção é construir unidades que apresentem
melhor os ensinamentos do Mestre.
Em Mateus, no entanto, podem ser notadas mais do que
em Marcos as intervenções do autor quanto ao estilo, às
divisões, às unificações etc. Tudo isto a serviço de suas
intenções teológicas.
50
4. Lucas

A propósito de Lucas como autor/redator, todavia,


podemos falar mais concretamente. Trata-se de uma pessoa
que pode ser mais conhecida diretamente por meio dos
inúmeros dados que o Novo Testamento fornece, e sobretudo
porque sua obra é a mais extensa.
Sabe-se que Lucas, assim como Mateus, utiliza como
suas fontes Marcos, Q, e outra documentação própria. Ele
também as reelabora e reorganiza, no intuito de produzir seu
evangelho. Não é necessário insistir neste ponto.
Um esquema geral do evangelho de Lucas, suficiente-
mente aceito, é o seguinte: depois do prólogo, dos relatos da
infância de Jesus e preparação de seu ministério público (1-
4), temos uma primeira grande parte com o ministério de
Jesus na Galiléia (3-9,50), uma segunda parte conhecida
como "o Caminho", sobre o ministério de Jesus na Samaria
(9,51-19,46), e uma terceira parte dedicada a Jerusalém
(19,28-21,38); além disso, temos o relato da paixão (22,1-
23,56) e os da ressurreição (23,54-24,53). Formalmente,
pode-se dizer que Lucas coincide em muitos aspectos com os
sinóticos que o antecederam. No entanto, nele podem ser
encontradas modificações substanciosas, detectadas com
uma simples leitura.
A idéia principal que subjaz ao pensamento evangélico
lucano é a de transformar a perspectiva inicial dos primeiros
cristãos em um enfoque histórico-salvífico. Trata-se de uma
concepção bastante inovadora da figura, pregação e obra de
Jesus. O tempo de Jesus e o da Igreja são duas épocas um tanto
diferentes, ainda que integradas em um único plano de
salvação. Lucas, evidentemente, escreve a partir desta segun-
da etapa; por esta razão, ele apresenta a ação de Jesus no
passado, embora atualizando-a para o tempo da Igreja.
Para alcançar este objetivo, Lucas leva a efeito um
trabalho redacional considerável. Por vezes ele melhora o
material recebido quanto ao estilo (a este respeito, trata-se do
51
melhor escritor dentre os evangelistas); outras vezes suprime
episódios inteiros que considera uma repetição, eliminando
deliberadamente o que não se ajusta a seu intento principal.
Por outro lado, acrescenta novos dados não somente no que
se refere à infância como também a pontos importantes da
pregação de Jesus, tais como as parábolas. Por último, sua
própria sensibilidade leva-o a omitir o que há de mais
violento na apresentação de Jesus e de sua atividade, desta-
cando o que se refere à misericórdia e compaixão, ao trato
com as mulheres etc.
Para compreender adequadamente a obra lucana, é
preciso ter presente sua segunda parte: os Atos dos Apóstolos.
Não é possível saber se o autor já tinha a intenção de continuar
a obra com Atos no momento em que escreveu o primeiro
volume mas, no estado atual do conjunto, suas finalidades e
intenções aparecem de modo mais explícito a partir de uma
visão global do produto final.

Conclusão

o método da História da Redação trouxe importantes


contribuições para que se pudesse saber não somente como
foram escritos os evangelhos sinóticos mas também conhecer
o próprio conteúdo dos mesmos. De fato, todos os comentá-
rios modernos confiáveis utilizam seus resultados, o que pode
ser observado até mesmo numa leitura ou consulta rápida
destas obras.
Na fase atual de conhecimentos a respeito dos evange-
lhos sinóticos, estamos em condições de afirmar que se trata
de obras que combinam dados e interpretações sobre Jesus,
que eram patrimônio das primeiras gerações cristãs, com a
visão pessoal e inspirada dos autores definitivos destes livros.
Não estamos diante de obras que apresentam unicamente
dados históricos ou visões pessoais de determinadas pessoas,
mas sim, mais do que isto, diante de trabalhos que nos
52
oferecem o testemunho rico e complexo sobre a pessoa, a obra
e a mensagem de Jesus, de sua fé confessada nele por parte das
comunidades e de cristãos pioneiros, através da perspectiva
dos respectivos autores.
Os métodos modernos de exegese e interpretação, na
realidade, longe de serem um atentado contra a fé em Jesus
Cristo, trouxeram um grande enriquecimento na forma de se
lerem, compreenderem e interpretarem os evangelhos, e no
conhecimento e vivência do Senhor. Evidentemente eles com-
plicaram um pouco, à primeira vista, aquela leitura ingênua;
os frutos, no entanto, valeram e valem a pena.

53
A ESCOLA ]OANINA:
EVANGELHO,
CARTAS E APOCALIPSE
Falar da escola joanina significa pura e simplesmente
aceitar a profunda convicção dos exegetas de que o evangelho
de João (Jo) foi escrito em uma série de etapas, nas quais
colaboraram vários autores.
A essas etapas seguiu-se, em outro momento e provavel-
mente em outro lugar, a redação das chamadas cartas joaninas.
Em um meio cultural sensivelmente diferente, mas
provavelmente próximo ao de Jo e ao das cartas, foi redigido
o Apocalipse.
A seguir apresentaremos as razões principais destes
pontos de vista.
Os manuais de introdução ao estudo do NT apresentam
em pormenores os passos que sinalizam e justificam a existên-
cia de uma escola joanina (cf., por exemplo: J. O. Tufií, X.
Alegre, Escritos joánicos y cartas católicas, Verbo Divino,
Estella, 1995). Nas páginas que seguem, apresentamos uma
versão menos técnica, mais acessível e, esperamos, mais clara
para nossos leitores.

1. A redação progressiva do Evangelho segundo João

Uma leitura tranqüila e meditada de João deixa-nos


uma impressão ambígua: por um lado, reconhecemos nele a
vida social, política e religiosa da Palestina do século I. Os
lugares geográficos são conhecidos, os costumes descritos nos
são familiares. As personagens são patrimônio da tradição
cristã primitiva. No entanto, em claro contraste com esta
harmonia, uma marca profunda de alteridade, autoridade e
poder rodeia a apresentação joanina. Jesus, sobretudo em Jo,
fala como um arauto que vem de outro mundo. Tanto suas
ações como suas palavras possuem ressonâncias majestosas:
parece um personagem de importância extraordinária, com
uma autoridade que o coloca acima de todos os que o
rodeiam, não só dos seus amigos e seguidores como também
dos seus inimigos e opositores.
Esta ambigüidade ou contraste entre elementos terre-
nos concretos e alteridade celestial deve-se - não exclusiva-
mente, mas sobretudo - ao fato de que Jo foi o produto de
uma elaboração extensa e altamente meditada, que pode ser
percebida até nas vacilações do texto e na ausência de uma
revisão final que teria as discordâncias e as incongruências
que o caracterizam. Portanto, é preciso levar em conta vários
fatores que influenciaram na elaboração de Jo.
Vamos tentar descrever o processo que levou à redação
desta obra. Faremos referência a quatro momentos ou etapas.
O que segue é, sobretudo, uma tentativa de tornar compreen-
sível a inegável complexidade deste texto.
57
1.1. Uma tradição peculiar

Em Jo, tanto as narrações quanto os limites de seus


diálogos e discussões ou o relato da exaltação de Jesus deixam
antever um acervo tradicional notável. Muitos dados deste
tipo coincidem com os que temos nos sinóticos: o mar da
Galiléia, o rio Jordão, a Transjordânia, Cafarnaum, Betsaida,
Jerusalém, Betânia. Todavia, além desses dados comuns aos
demais evangelhos, Jo possui uma informação topográfica
própria: trata-se, de modo especial, de dados e lugares ou
aldeias que se situam em sua maioria no sul da Palestina
(Efraim, perto do deserto), no vale do Jordão (Betânia, do
outro lado do Jordão; Enon, perto de Salim) e, sobretudo,
informações sobre Jerusalém (a piscina de Betesda; a piscina
de Siloé; o riacho do Cedron, o pórtico de Salomão, no
templo; a sala do tesouro, no templo; o lugar denominado" de
pedra", Litóstroto).
Este conjunto de dados é surpreendente e constitui por si
mesmo uma tradição que tem como base a Judéia (e não a
Galiléia) e, mais precisamente, os arredores deJerusalém. Tudo
isso possui um reflexo evidente em Jo, em tríplice sentido:

a) A atividade pública de Jesus, segundo Jo, teve lugar


principalmente na Judéia e particularmente na cida-
de de Jerusalém. E, para sermos mais exatos, no
Templo (2,14; 5,14; 7,14. 28; 8,20.59; 10,23). Este
elemento está em evidente contraste com a tradição
sinótica (e, mais especificamente, com a tradição
marciana), que apresenta Jesus atuando principal-
mente na Galiléia (e saindo pouco deste território).
Somente no final do seu ministério Jesus sobe a
Jerusalém. Em Jo, pelo contrário, Jesus passa a
maior parte do tempo em Jerusalém. Este elemento
é ainda mais surpreendente pelo fato de que em Jo a
atividade pública de Jesus estende-se por mais de
dois anos (em contraste com o período da atuação
pública relatado em Me e ainda mais em Lc, no qual
58
a atividade evangelizadora de Jesus durará um ano:
cf. Lc 4,18-30);
b) Mas há um outro elemento ainda mais significativo:
em jo, Jesus possui um grupo de discípulos em
jerusalém (e presumivelmente de jerusalém). Seus
familiares insistem com ele para que não fique na
Galiléia mas suba à judéia, "para que também teus
discípulos possam ver as obras que fazes" (7,3). Esta
frase é confirmada quando se diz, no relato da
paixão, que um dos discípulos de Jesus é conhecido
do sumo sacerdote (18,15-16);
c) Quando os sinóticos falam da pátria de Jesus (Me
6,4 e par.), referem-se inequivocamente a Nazaré e,
portanto, à Galiléia. Em jo, a pátria de Jesus é a
judéia. É o que afirma claramente o texto em 4,44,
quando Jesus diz (referindo-se judéia, que ele havia
à

deixado pouco antes: cf. 4,3) que um profeta não é


bem recebido em sua pátria.

A partir do que afirmamos até aqui, pode-se deduzir que


jo surgiu provavelmente nos círculos próximos a Jerusalém,
mantendo uma ligação estreita com os discípulos de João
Batista (em Jo diz-se explicitamente que Jesus batizava como
João Batista e reunia mais prosélitos do que ele: 3,22-25; 4,2)
e tendo prováveis influxos de grupos judaicos que estavam em
oposição ao judaísmo oficial de Jerusalém (é muito provável
que haja uma relação do círculo joanino com Qumran). Este
núcleo tradicional está na base da elaboração de jo.

1.2. Aprofundamento da tradição

A guerra judaica contra Roma (68-70) marca uma nova


etapa. A comunidade joanina é obrigada a emigrar. E, obvia-
mente, leva consigo a tradição que esboçamos. juntamente
com ela, leva também uma experiência religiosa que tem como
59
ponto fundamental de referência a fé no Jesus presente e
atuante na comunidade. Esta característica será decisiva na
elaboração posterior da tradição.
A nova situação na qual a comunidade se encontra
requer a necessidade de aprofundamento da tradição pelo
menos em duas direções. Uma primeira direção consiste em
explicar o sentido da vida e dos sacramentos. Estes temas
ocupam lugares centrais em Jo (11,1-44; 3,1-21; 6,22-59) e
são tratados à luz da atuação de Jesus e dos seus ensinamen-
tos. Porém eles vão além de tudo isso (Jesus é o centro do seu
ensinamento em jo, em claro e marcante contraste com os
sinóticos, nos quais o centro de sua pregação é o Reino de
Deus), tornando-se parte da interpretação da comunidade,
baseada em catequeses-homilias. Estas homilias são elabora-
das em diversos ambientes, tanto assim que em Jo podem ser
notadas, às vezes, algumas repetições (6,35-47; 6,51-58;
13,33-14,31; 16,4b-33). Com este esforço, a tradição é apro-
fundada, ao mesmo tempo em que são incorporados novos
pontos de vista, próprios de outros círculos da tradição
judaica (tanaíta ) e samaritana. Nos fragmentos catequéticos,
tanto o estilo argumentativo como os temas (preferencial-
mente os da tradição judeu-samaritana) estão sempre relacio-
nados com Jesus.
Outro aprofundamento da tradição consiste no fato de
que os cristãos joaninos são olhados com desconfiança pelos
membros da ortodoxia judaica (em sua maioria ligados aos
fariseus). A oposição cresce e se concretiza, finalmente, na não
admissão dos cristãos joaninos ao culto sinagogal (9,22;
12,42-43; 16,2). Esta exclusão produz um trauma teológico
de grandes proporções, que força os cristãos joaninos a
aperfeiçoarem sua confissão cristã em face das tradições que
dão uma importância extraordinária a Moisés e aos persona-
gens da tradição judeu-samaritana ("o profeta que há de vir",
Abraão, Jacó, Elias e Isaías). O inevitável confronto destas
figuras com Jesus, núcleo da experiência religiosa da comuni-
dade, aj uda a valorizar o ATem sua justa dimensão: trata-se
de um testemunho de Jesus (5,39; cf. 1,45).
60
1.3. A redação do Evangelho

A comunidade joanina não era composta por um grupo


de pessoas simples e ignorantes. Pelo contrário! Tratava-se de
um grupo com certas pretensões culturais. Isto fez com que
eles penetrassem no núcleo fundamental de sua fé, isto é,
Jesus. De fato, o estabelecimento da comunidade (Síria?)
conduziu-a a um aprofundamento cristológico ser.i preceden-
tes: "Tu és apenas um homem, e te fazes passar por Deus"
(10,33; cf. 5,18).
A comunidade joanina tem um ponto de referência
central muito claro: a interpretação que ela faz dos gestos de
Jesus (sinais da glória e da presença de Deus) e a amplitude
dada à aplicação de seus ensinamentos são percebidos como
um dom de Deus através do próprio Jesus. O Advogado
conduziu a comunidade à fé e à compreensão do mistério da
presença de Deus em Jesus (14,26; cf. 16,13). Esta profunda
experiência de ser objeto da ação de Deus em Jesus possui um
ponto de referência fundamental: a morte de Jesus como dom
da vida marca o começo da existência da comunidade joani-
na. Este momento culminante da vida de Jesus abriu os olhos
da fé (19,35-38; cf. 9,34-35).
Este é o núcleo definitivo que transparece na redação de
Jo. A comunidade experimentou de alguma forma (o martírio
de alguns de seus membros?) que é possível viver como Jesus
porque certamente é possível morrer como ele: dando a vida.
A partir deste dado, todo o material recolhido e elaborado
pela comunidade é apresentado na forma de um relato mar-
cado intrinsecamente pela morte de Jesus como dom da vida
(cf. 15,13; 10,17-18). A morte de Jesus constitui o pólo de
atração de todo o relato da vida de Jesus. Tudo o que havia
sido recolhido e elaborado nas duas etapas anteriores é
estruturado em torno da morte de Jesus como glorificação
suprema, como exaltação, como passagem para o Pai, como
autodoação.
Evidenciemos aqui duas coisas: o momento culminante
da morte de Jesus é o centro da confissão cristológica. E isto
61
porque somente assim é possível compreender o sentido de
uma vida que é, acima de tudo, autodoação (enquanto ele não
deu a si mesmo não foi possível captar seu sentido completo:
tudo se cumpriu -19,30): somente quando Jesus foi levan-
tado na cruz foi possível compreender o sentido de sua vida
como vida para os demais (3,14-15; 8,28; 12,32-34). Porém,
além disso, a morte de Jesus marcou o começo da existência
da comunidade (a mãe e o filho, cf. 19,25-27). É um ponto de
referência fundamental porque, morrendo, Jesus pôde enviar
o Advogado (16,7).
Esta terceira etapa é mais intuitiva do que discursiva.
Trata-se de um momento determinante, mas não realiza uma
reelaboração plena de todos os materiais que já configuravam
o Evangelho segundo João. É uma etapa de plenitude, na qual
a confissão cristológica alcança uma nitidez sem paralelos
(20,28). Introduz aspectos altamente inspirados para refletir
a fé da comunidade (prólogo). Desenvolve com certos deta-
lhes a extensa despedida de Jesus como preparação do relato
da exaltação. Nesta etapa, sublinham-se alguns pontos culmi-
nantes: nenhum sucesso marcante da vida de Jesus pode ser
entendido sem o apelo à exaltação do próprio Jesus (2,22;
7,39; 12,16; 20,9).
Todos os dados importantes são apresentados em for-
ma de defesa da legitimidade da confissão e fé joanina. Deste
modo, o Evangelho de João é estruturado como um grande
juízo contra Jesus, um juízo que se transforma paradoxalmen-
te em juízo contra o mundo que não aceita Jesus, que persegue
os membros da comunidade e que considera que venceu. O
outro lado da medalha é a vitória de Jesus: "Eu venci o
mundo" (16,33).

1.4. A edição definitiva da obra

É possível que a comunidade joanina (ou alguns de seus


membros ou presbíteros =anciãos) tivesse mudado de cidade.
Em todo caso, o capítulo 21 é uma clara demonstração de que
62
nos encontramos diante de uma nova situação, na qual já não
é mais indispensável evidenciar a identidade cristã do grupo,
nem mesmo aprofundar a própria confissão cristológica. Por
outro lado, torna-se um dado importante situar a comunidade
ante outras comunidades que concedem a Pedro uma impor-
tância e um papel que a comunidade joanina não tinha
explicitado. Evidentemente a figura de quem deu origem à
comunidade (o discípulo amado, que pode muito bem ter sido
um dos discípulos de Jesus que faziam parte do núcleo inicial
de Jerusalém) deve confrontar-se com uma tradição mais
ampla e extensa, que concede a Pedro um papel de coordena-
ção que não somente não deve ser colocado em discussão,
como também deve ser aceito e apoiado. Tudo isto, sem
deixar de reafirmar o papel fundacional de um discípulo de
Jesus, cuja contribuição (a centralidade de Jesus) à comunida-
de continua sendo aquilo que lhe confere sua própria identi-
dade cristã.
Com muita probabilidade alguns fragmentos de Jo
receberam, nesta etapa, uma forma que antes não possuíam.
Todavia, estas contribuições foram realizadas em questões de
menor importância. Algumas glosas - como também alguns
acréscimos - podem ser creditadas a esta última etapa.
Contudo, a etapa verdadeiramente decisiva é a terceira, a que
alcança a maturidade em termos de formulação cristológica.
É o que se convencionou chamar, há algum tempo, coração da
teologia joanina.

2. As chamadas cartas joaninas

Com estes textos, situamo-nos na etapa seguinte do


desenvolvimento doutrinaI da comunidade. Desapareceu com-
pletamente o conflito com a sinagoga, e toda a agressividade
que ]o direcionava contra os judeus (a sinagoga que expulsou
os cristãos joaninos) volta-se agora contra um grupo que
abandonou a comunidade: "Esses anticristos saíram do meio
de nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos,
63
teriam permanecido conosco. Mas era preciso que ficasse
claro que nem todos eram dos nossos" (lJo 2,19). Nesta nova
etapa, há uma característica: discute-se a correta interpreta-
ção da tradição joanina.
De fato, os que abandonaram a comunidade interpre-
tam a tradição joanina apoiando-se nos elementos gloriosos
e transcendentes da confissão cristológica e de modo especial
sobre seus efeitos salvíficos; eles afirmam que possuem conhe-
cimento de Deus, união com Deus, amor a Deus... Todavia,
não dão importância ao fato de Jesus ter-se encarnado. Não
negam que Jesus nos tenha trazido a salvação, mas não
consideram a humanidade de Jesus como um meio para
trazer-nos a salvação. Preferem crer que Jesus revelou o amor
de Deus, sem ter passado verdadeiramente pela condição
humana. Jesus, para eles, é um enviado celestial que se fez
mensageiro da salvação. Nada mais.
A reação do autor de I]o (e também de 2Jo, que nada
mais é do que um resumo de I]o) é violenta. Aplica aos judeus
os mesmos termos usados em Jo para qualificá-los (assassi-
nos, filhos do diabo, os que cometem o pecado escatológico).
Além disso, usando as mesmas fórmulas de confissão de fé
presentes no Evangelho ("Jesus é o Messias", "Jesus é o filho
de Deus"), deixa bem claro que o acento destas confissões
encontra-se na declaração de que precisamente Jesus é o
Messias e o Filho de Deus. E ao falar de Jesus sublinha, sem
titubear, sua condição carnal ("Jesus, aquele que veio na
condição humana", "Jesus, o que veio não somente pela água,
mas pela água e pelo sangue", "Jesus, o que veio na realidade
humana"), evidenciando o valor salvífico do dom da vida.
O argumento de 1]0 (2Jo) vai mais longe: é a própria
condição humana deJesus que tornou real, isto é, palpável, o
mandamento do amor aos irmãos. Exatamente porque Jesus
deu sua vida humana é que nós podemos viver dando a nossa
vida, isto é, cumprindo a vontade de Deus (1Jo 3,16). Os
adversários "pregam" o amor; mas eles têm a pretensão de
amar a Deus sem se preocuparem com a vida dos irmãos. Eis
64
aqui a conseqüência visível do erro que nega a encarnação do
filho de Deus, Jesus (lJo 3,17).
É muito interessante notar, nesta etapa da comunida-
de, a insistência em voltar às origens (a expressão "desde o
princípio" aparece dez vezes em 1Jo-2Jo, das quais nove são
colocadas em um contexto cristológico): o começo é Jesus, a
manifestação de Jesus, a pregação de Jesus, o mandamento
de Jesus. Numa palavra, a comunidade encontra sua origem
aos pés do exaltado, que concede o Espírito (cf. Jo 19,30-37;
1Jo 5,5-6).
A Terceira Carta de João é um escrito muito diferente
mas que deve ser atribuído, sem dúvidas, ao mesmo autor de
2Jo. A situação refletida pela carta é muito diferente da que
encontramos em 1Jo-2Jo: o autor, que se autodenomina
Ancião, parece ser o responsável de uma comunidade e teve
dificuldades com Diótrefes, o qual atuou de forma internpe-
rante com os missionários que foram enviados pelo Ancião.
Gaio, ao contrário, os acolheu. Na carta ele agradece o
tratamento dispensado a eles e pede a Gaio que volte a acolher
os que forem enviados e se encarregue das provisões que eles
precisam para a viagem. Entre estes enviados encontra-se
provavelmente Demétrio, recomendado a Gaio pelo Ancião.
Apesar da brevidade, a carta nos informa sobre vários
aspectos interessantes: as comunidades joaninas viviam em
diversas cidades, relativamente distantes umas das outras (a
carta, por si mesma, já é uma demonstração deste fato; além
disso, todavia, podemos deduzi-lo do fato de que se peça a
Gaio que providencie o que for necessário para a viagem dos
missionários). Havia missionários itinerantes que, segundo a
formulação joanina, "cooperaram com a verdade". Seus
nomes greco-romanos parecem indicar que o cristianismo
joanino tinha ultrapassado os limites do judaísmo.
Estes breves parágrafos dedicados às comunidades joa-
ninas podem ilustrar a razão pela qual se fala em escola
joanina. As etapas que podem ser encontradas em Jo e nas
cartas evidenciam não somente uma trajetória muito extensa,
65
como também representam o eco de um processo de aprofun-
damento cristológico sem paralelos no Novo Testamento.
Trata-se de uma demonstração da dinâmica que estava pre-
sente na evolução progressiva do cristianismo. Porque, mes-
mo afirmando que a tradição joanina começa com a morte de
Jesus, tanto a redação do Evangelho como a das cartas são
obras que devem ser datadas do final do século I.

3. A formação do Apocalipse

o Apocalipse (Ap) é uma obra verdadeiramente peculiar


entre os livros do Novo Testamento. Surge em uma época em
que este tipo de literatura estava na moda - um dos motivos
pelo qual demorou muitos anos para ser introduzido no
Cânon (norma) dos livros inspirados. Desde o começo havia
resistências a aceitá-lo porque não estava claro que pudesse ser
atribuído ao mesmo autor de Jo e das cartas joaninas, além de
representar um gênero muito próprio da literatura judaica.
Contudo, sem falar na diferença marcante quanto ao estilo e
à gramática (correta em Jo e muito incorreta em Ap), o
interesse fundamental do Ap reside no aprofundamento do
sentido teológico e cristão da história. A realidade da história
humana está nas mãos de Jesus, o cordeiro imolado que se
mantém de pé (ressuscitado). Por outro lado, este elemento
(visão teológica da história) não recebe nenhum papel de
destaque em Jo, nem nas cartas. Portanto, a não ser certos
pontos de contato que podem ser identificados, o contexto
cultural e tradicional que se reflete no Ap dá a impressão de ser
muito diferente daquele que encontramos em Jo e nas cartas.
No entanto, o Ap é uma obra de notável impacto e de
uma profunda e fundamentada esperança. Trata-se de um
livro de resistência em uma situação de opressão e de perse-
guição que parece impossível deter. Os exegetas encontram-
se bastante concordes ao fixar a época e a perseguição de
Domiciano (final do séc. I) como contexto histórico do Ap.
Alguns acreditam que a obra começou a surgir durante a
66
perseguição de Nero e foi concluída no tempo de Domiciano.
A razão principal desta afirmação é que encontramos muitas
repetições no Ap (várias descrições da besta; duas descrições
da queda de Babilônia; duas referências à queda de satanás no
abismo). Por esta razão, há quem identifique no Ap fontes
literárias mais antigas. Não se pode dizer que estas propostas
sejam aceitas com muita convicção; isto porque, de qualquer
forma, a redação final da obra demonstra uma forte unidade
que conseguiu integrar as possíveis etapas anteriores. Tanto
o uso consistente do Antigo Testamento (que segue preferen-
cialmente o texto hebraico) quanto o enfoque litúrgico
presente no livro reforçam e celebram a vitória final do
Senhor, usando a linguagem cifrada das imagens e dos
símbolos bíblicos.
Encontramos aqui um exemplo formidável da forma
pela qual, no cristianismo nascente, as circunstâncias foram
modelando o surgimento de uma literatura tão diversificada,
rica e com perspectivas tão distintas. Tal diversidade não
impede que se encontre um claro núcleo comum, raiz de todo
o Novo Testamento: "Jesus, de Nazaré, o filho de José"
(lo 1,45).

67
ESCRITOS PAULINOS
E PÓS-PAULINOS
As cartas paulinas como tais, ao contrário dos evange-
lhos, não são fruto de uma recopilação e sim de uma vontade
de comunicar algo a pessoas concretas, em um momento
concreto. Sua composição, provavelmente, foi um processo
linear, que podia durar de uma semana a três meses, a contar
do momento em que o apóstolo ditava a saudação inicial até
o momento em que colocava a sua assinatura.
Esse fato nos convida a ler cada carta como um todo
único; todavia, isto não nos impede de descobrirmos os
processos anteriores à saudação inicial, bem como de investi-
garmos a respeito da evolução das cartas depois de elas terem
sido enviadas por Paulo.
1. Materiais preliminares

Não é difícil imaginar que, ao redigir suas cartas, Paulo


utilizou, textos "canônicos" (confissões de fé), litúrgicos ou
catequéticos conhecidos por suas comunidades, como tam-
bém lançou mão de anotações que ele mesmo havia escrito
como roteiros de sua pregação. Não seria fácil reconstruir
cada uma destas "peças" seria difícil, mas poderá ser útil
contar com sua possível existência quando o texto paulino
não tiver a fluidez e a uniformidade de um texto criado por
completo no momento de sua redação.
É costume atribuir-se a categoria de texto "pré-pauli-
no" às várias confissões de fé, sobretudo. A mais célebre é a
que encontramos em 1Cor 15,3-7, apresentada explicitamen-
te como uma tradição (v. 1s). Também costuma-se reconhecer
como tais Rm 1,3s; 3,25-26a; 4,25; 10,9; 1Cor 8,6; 1Ts 1,9s;
Ef 4,5s, bem como algumas das que aparecem nas Cartas
Pastorais intituladas "palavra segura" (pistos ou logos: 1Tm
1,15; 4,9s; Tt 3,5-8); o mesmo diga-se de 2Tm 2,8, identifica-
da como tradição.
Destaque especial merecem os chamados "hinos", uma
série de composições não atribuíveis a Paulo, elaborações
especialmente trabalhadas a partir de um ponto de vista
literário (ritmo, paralelismos, distribuição organizada de
estrofes) e conceptual. Os mais reconhecidos universalmente
como tais são: Fí 2,6-11; Cl1,15-20; 1Tm 3,16.
Todavia, como já acenávamos anteriormente, a análise
crítica não termina aqui: supõe-se que todo o restante seja
fruto do trabalho pessoal de Paulo (ou do autor correspon-
dente). De qualquer forma, o olho e o ouvido acostumados
com este tipo de crítica sentir-se-ão tentados a dar prossegui-
mento à análise e continuarão encontrando algo do tipo
"peças independentes" no interior das cartas. É o caso do
"hino ao amor", de 1Cor 13.
Fatos deste tipo levaram alguns autores a falar em
"escola de Paulo". Quer dizer: o apóstolo, acompanhado por
71
seus discípulos, teria elaborado pequenos trechos como resu-
mos de sua pregação, que posteriormente teriam sido inseri-
dos por ele em suas cartas.
Pessoalmente, mais do que para a idéia de "escola",
tendemos para a idéia de "pasta" do apóstolo: ele próprio
tinha de falar para públicos diferentes em diferentes ocasiões,
e, em determinado momento, havia inserido em suas cartas o
que havia preparado como pauta de sua pregação.

2. Composição das cartas

Os estudiosos aceitam unanimemente as sete cartas de


Paulo como autênticas. Trata-se da Carta aos Romanos, as
duas aos Coríntios, as cartas aos Gálatas e aos Filipenses, a
Primeira Carta aos Tessalonicenses e a pequena Carta a
Filemon.
É praticamente unânime também a opinião de que as
sete cartas foram colocadas na década de cinqüenta; no
mínimo, isso foi feito em uma fase concreta da biografia do
apóstolo.
Em primeiro lugar, afirma-se que a Primeira Carta aos
Tessalonicenses é a primeira das cartas de Paulo. Pertence à
primeira grande missão do apóstolo, que conhecemos como
"segunda viagem" apostólica. A viagem vai de Tessalônica a
Atenas e Corinto, e a carta coloca-se, no mais tardar, nesta
última fase.
Afirma-se também que a Primeira Carta aos Coríntios é
anterior à segunda do mesmo nome. Foi escrita em Éfeso (v.
16,8), e a única visita anterior que menciona (2,1-4) é a da
evangelização. A Segunda Carta aos Coríntios, por outro lado,
em todas as suas partes, pressupõe uma segunda visita à
comunidade constituída (cf. 12,14;13,1) e outra série de acon-
tecimentos. A Carta aos Gálatas provavelmente é posterior à
Primeira Carta aos Coríntios e certamente anterior à Carta aos
Romanos. A referência a uma coleta que se pede às "Igrejas da
72
Galácia", em 1Cor 16,1 pode ser melhor compreendida se
ainda não tiver sido desencadeada a crise que provocou a Carta
aos Gálatas. Portanto, sem excluir totalmente outras hipóteses,
nós a consideramos anterior. Por outro lado, sua colocação
anterior à Carta aos Romanos pode ser considerada como
certa: Romanos desenvolve e amplia uma série de temas
simplesmente esboçados na Carta aos Gálatas.
A Carta aos Romanos é posterior à correspondência
com os coríntios. Em 2Cor 10, 15s, sugere-se que o que impede
o apóstolo de evangelizar "para além das fronteiras" é preci-
samente a crise existente em Corinto (não mais a da Galácia),
a qual motiva a carta. Por outro lado, em Rm 15,23, Paulo
afirma que já não tem mais tanto campo de ação naquelas
regiões: ele considera resolvido o problema de Corinto. Por
conseguinte, Romanos é posterior.
Discute-se a respeito do "cativeiro", no qual foram
escritas a Carta aos Filipenses e a Carta a Filemon. Não consta
que as duas sejam simultâneas, pois em Filipenses (FI4,22) são
enviadas saudações somente "aos da casa de César", enquan-
to em Filemon (v. 23s) há uma série de pessoas que mandam
saudações. Em comum, estas cartas possuem o tema das
"correntes", mas estas "correntes" podiam ter sido colocadas
em Paulo seja em Éfeso, como em Cesaréia ou em Roma. Se
alguma das duas cartas foi escrita de Éfeso, ela seria anterior
à (alguma parte da) Segunda aos Coríntios. Particularmente,
considero que Filipenses foi escrita em Éfeso, e Filemon em
Cesaréia.

3. Formação do epistolário

Mais difícil é reconstruir o processo que vai desde a


carta ocasional ao "livro" do Novo Testamento; tratou-se,
então, de recopiar as cartas, transformando-as em coleção
destinada a um público mais vasto. A primeira pergunta que
se pode fazer, neste caso, é se os compiladores não tomaram
a liberdade de acrescentar comentários próprios ou, por
73
exemplo, se não acabaram juntando várias cartas em um só
documento.
Ambas as possibilidades sempre foram levadas em
consideração; todavia, quanto à primeira, há uma maioria (ou
minoria consistente) de autores que consideram acrescentado
um texto concreto. Obteve algum sucesso a possibilidade de
duas pequenas interpolações: 1Ts 2,15s e 1Cor 14,33b-36. Se
de fato se tratam de interpolações, isto significaria que o
apóstolo pode não ter falado tão mal dos judeus e pode não
ter dito que as mulheres se calassem nas assembléias. Porém,
sem falar em razões de contexto e de crítica textual, há
também quem suspeite que a opinião que nega a autenticidade
desses textos seja feita simplesmente por interesse.
Por outro lado, a procura por cartas diferentes em uma
obra apresentada de forma unitária (ou duas, como é o caso
de Tessalonicenses) alcançou um grande número de seguido-
res nos últimos cem anos. No entanto, quanto aos resultados,
obteve bem poucos consensos. A teoria que mais teve unani-
midade é a que divide a Segunda Carta aos Coríntios em um
conjunto de cartas; chega-se a esta posição considerando-se
sobretudo o capo 9 (a respeito da coleta) como uma repetição
do capítulo anterior e considerando-se que os caps. 10-13,
fortemente polêmicos, não correspondem ao ambiente de
reconciliação que se observa nos capítulos anteriores. Em
outros casos, pode-se continuar mantendo a suspeita de que
foram reunidas diferentes cartas; o item problemático será
sempre a afirmação de que conhecemos os limites exatos de
cada uma delas.

4. Colecionadas durante o século I

Temos algum indício de que a recopilação das cartas


paulinas foi iniciada pela mesma "equipe" do apóstolo; em
outras palavras, afirma-se que Paulo guardava cópia das
cartas que enviava, facilitando assim o trabalho dos seus
"herdeiros" .
74
o primeiro indício a este respeito seria a Carta aos
Romanos, a qual representaria uma síntese do que o próprio
apóstolo havia escrito aos Gálatas e aos Coríntios. De fato, Rm
pode ser entendida muito mais facilmente se for lida à luz das
anteriores. O segundo indício seria a pequena Carta a Filemon,
escrito tão circunstancial que nada diz a quem não estiver
diretamente envolvido com o caso. Além disso, pode-se perce-
ber que ela foi dirigida a um cristão de Colossos, cidade
destruída por um terremoto no ano 61. Quer dizer: podemos
concluir que a carta somente chegou até nós porque uma cópia
dela encontrava-se arquivada no "escritório" de Paulo.

5. A fronteira da paulinidade

Nem mesmo se pode excluir que os "herdeiros oficiais"


de Paulo pudessem acrescentar algum escrito aos que o após-
tolo lhes havia deixado. Este seria o caso, a nosso ver, da Carta
a Timóteo e da carta a Tito (as chamadas Cartas Pastorais).
Como discípulos imbuídos da doutrina de seu mestre, podiam
sentir-se inspirados a dar a resposta que o apóstolo teria dado
a problemas que surgiram depois de sua morte.
Para outros autores, este é também o caso de outras três
cartas encabeçadas pelo nome de Paulo: a Segunda aos
Tessalonicenses, a Carta aos Colossenses e a Carta aos
Efésios. Nas duas últimas, insiste-se em encontrar um estilo
mais barroco, bem como uma visão demasiadamente cósmica
de Cristo e da Igreja. Na Segunda aos Tessalonicenses, preten-
de-se ver uma imitação da Primeira, bem como a interposição
de "prazos" para a segunda vinda do Senhor.
Autores de respeito continuam pondo em discussão a
paulinidade das seis; de fato, não é conveniente pronunciar-se
sobre o tema sem se levar em consideração a grande quantida-
de de paralelismos destas seis com as sete cartas declaradamen-
te paulinas (mencionadas anteriormente) e sem se considerar
quanto seria difícil para um imitador alcançar um tão alto
nível de semelhança com o modelo seguido. É um fato,
75
todavia, que antes mesmo de se concluir o séc. I, Clemente,
bispo de Roma, já tinha uma idéia clara de toda a herança
paulina, deixando-se influenciar pelas Cartas Pastorais.

6. Introduzidas no Cânon durante o século fi

o próprio vasto conhecimento dos escritos paulinos e o


apreço por eles são demonstrados, entre outros, por autores
da primeira metade do século 11: Policarpo de Esmirna e Inácio
de Antioquia (situados, é importante observar, na parte
oriental do Mediterrâneo). Quanto a Inácio, é evidente que ele
utilizou a Carta aos Colossenses e a Carta aos Efésios; quanto
a Policarpo, fica claro que ele utiliza até as Cartas Pastorais,
a ponto de existirem estudiosos que o consideram autor delas.
Ainda que não faltem problemas a propósito da leitura
eclesial de Paulo ao longo dos primeiros séculos, os três
"pilares" citados (Clemente, Inácio e Policarpo) são suficien-
tes para compreender-se o projeto de Marcião, que se apre-
sentou em Roma em meados do século 11.
Marcião quis dotar a Igreja de roteiros únicos para sua
pregação e para seu desenvolvimento teológico: um só Evan-
gelho (o de Lucas) e as cartas de Paulo (todas, menos as
Pastorais) seriam a Carta Magna do cristianismo gentio. E
parece que, em um determinado momento (julho de 144), ele
acreditou que sua doutrina seria "canonizada" pela Igreja de
Roma, embora tenha acontecido o contrário.
Ele não teria proposto a "canonização" das cartas de
Paulo se não acreditasse que a Igreja de Roma estivesse
preparada para fazê-lo. A reação eclesial não consistiu em
rechaçar Paulo, mas sim em demonstrar que o apóstolo havia-
se posicionado totalmente contra a doutrina marcionita sobre
a incompatibilidade entre o Deus de Jesus Cristo e o Deus do
Antigo Testamento.
E foi a luta antimarcionita que trouxe a verdadeira
canonização às cartas paulinas. Em primeiro lugar, Irineu,
76
que apresenta, com grande ênfase, a lista dos quatro evange-
lhos (Contra las Herejias IlI, 11,7-9); e mesmo sem fornecer
uma lista das cartas paulinas, ele utiliza todas, concedendo-
lhes igual importância, sem excluir nenhuma, nem as Pasto-
rais, nem as do Cativeiro.
Além disso, ele as considera "Escritura". Deste modo,
em seu primeiro livro Contra las Herejias (8,2), depois de
dizer "eis aqui os argumentos tomados das Escrituras... ", cita
mais textos de Paulo do que dos evangelhos. E quanto a
Marcião, o fato de ter mutilado o Evangelho e as cartas do
apóstolo valeu-lhe a acusação de ter mutilado "as Escrituras"
(id.27,3s).
Na linha da "canonização", entra também Tertuliano,
sobretudo em seus livros Contra Marción. Ele também não
fornece uma lista com caráter de proclamação oficial; toda-
via, no Livro Quinto daquela obra, beirando a polêmica com
o adversário, ele repassa detalhadamente todas as cartas
paulinas (incluindo, certamente, todas as cartas do Cativei-
ro), demonstrando com isto a autoridade que elas merecem.
A respeito da Carta a Filemon, ele cita as Pastorais, ironizando
Marcião e sua recusa em aceitá-las.
Por fim, apresentamos uma lista conhecida, não pro-
mulgada por um bispo ou por um sínodo, mas que reflete a
prática - e a crença - da igreja de Roma: trata-se do chamado
Cânon de Muratori, escrito pouco depois (refere-se a ele como
nuperrime, temporibus nostris) do pontificado de Pio I, o que
quer dizer que estamos na última terça parte do séc. lI.
Deste Cânon, conservam-se somente fragmentos; ele
começa pelo Evangelho de Lucas, afirmando porém ser ele o
terceiro. Fornece uma lista taxativa das cartas de Paulo: Aos
coríntios, a primeira; aos efésios, a segunda; aos filipenses, a
terceira; aos colossenses, a quarta; aos gálatas, a quinta; aos
tessalonicenses, a sexta; aos romanos, a sétima; por mais que
dos coríntios e dos tessalonicenses repitam (a carta) para sua
correção. .. Também uma a Filemon, uma a Tito e duas a
Timóteo, (escritas) por afeto e amor, mas santificadas pela
77
honra da Igreja católica e para o ordenamento da disciplina
eclesiástica (linh. 50-55.59-63).
Deste modo, ele nos apresenta, paralelamente, uma
certa definição a propósito de sua canonicidade: elas foram
"reconhecidas como santas" (sanctificatae sunt), o que se
transformou em honra para a Igreja e em uma certa integração
(leia-se: leitura pública) no ordenamento eclesiástico.

7. Outras cartas do Novo Testamento

Além dos evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e dos


escritos joaninos e paulinos que acabamos de mencionar, o
Novo Testamento contém uma série de cartas que não levam
o nome de Paulo mas têm algo a ver com ele.
A mais importante delas é a Carta aos Hebreus que, até
a última reforma litúrgica, figurava como carta de são Paulo.
Certamente ela deve ser datada do séc. I, pois Clemente de
Roma inspira-se nela. Pode ter chegado a Roma pelas mãos
dos que fugiram diante da iminente destruição de Jerusalém,
pois fala do culto do Templo como de algo que estava sendo
praticado hoje. O estilo é semelhante ao de Paulo enquanto
compara as duas Alianças e as duas Leis (pensemos em GI 3
e 2Cor 3), mas parece proceder de uma escola especialmente
especulativa do judeu-cristianismo helenístico.
A Primeira Carta de Pedro, que cita dois personagens
(Marcos e Silvano-Silas) relacionados com o apóstolo, não
pode deixar de nos lembrar Paulo. O fio condutor deste escrito
é o valor salvífico da morte de Cristo; não contém polêmica
antijudaica, exatamente porque entende que a maioria dos que
fazem parte da Igreja pertence aos demais povos. Ao dar aos
gentios uma categoria sacerdotal (lPd 2,10), coloca-os acima
do que era considerado comum para os israelitas, os quais não
podiam entrar nos mesmos locais nem comer a mesma comida
dos sacerdotes. Da Segunda Carta de Pedro devemos dizer, no
mínimo, que procede de um ambiente diferente do da Primei-
78
ra: trata-se de um ambiente judeu-cristão, mas não próximo a
Paulo, visto que faz uma alusão direta ao apóstolo: " ... confor-
me escreveu para vocês O nosso amado irmão Paulo, segundo
a sabedoria que lhe foi dada. Em todas as suas cartas ele fala
disso. É verdade que nelas há alguns pontos difíceis de enten-
der, que os ignorantes e vacilantes distorcem, como fazem com
as demais Escrituras" (2Pd 3,15).
A assimilação das cartas de Paulo às "demais Escritu-
ras" é algo que não será repetido até Marcião e a luta contra
os marcionitas. Os "pontos difíceis de entender" devem ser os
mesmos que serão encontrados pela Carta de Tiago: tudo o
que se pareça com um menosprezo da Lei. Fica bem claro,
todavia, que a incompreensão não se deve a Paulo mas aos
"ignorantes e vacilantes", que pervertem o sentido original
entendido pelo apóstolo.
Em virtude de ter um "parentesco" com a Segunda
Carta de Pedro, podemos citar a Carta de Judas, que está
totalmente imersa nas tradições judaicas, sem no entanto
preocupar-se com as práticas específicas enquanto tais, ou
seja, a circuncisão, o sábado e as regras alimentícias.
A Segunda Carta de Pedro supõe, diríamos, que os
gentios começaram a fazer parte da comunidade e conseqüen-
temente se preocupa com o paganismo que eles podem trazer
consigo. O autor fala disto com uma ênfase impressionante:
"De fato, depois de escapar às imundícies do mundo mediante
o conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, se eles de novo
são seduzidos e se deixam vencer por elas, seu último estado
se torna pior do que o primeiro. Assim, melhor seria que não
tivessem conhecido o caminho da justiça do que, depois de tê-
lo conhecido, desviarem-se do santo mandamento que lhes
fora confiado. Aconteceu com eles o que diz o provérbio: 'O
cão volta ao seu próprio vômito'; e ainda: 'A porca lavada
torna a revolver-se na lama'" (2,20-22).
A comparação dos gentios com "cães" e com "porcos"
(cf. Mt 7,6; 15,26s) encontrava-se, nos tempos de Cristo,
dentro da normalidade (assim como soava mal a comparação
79
dos judeus com estes animais). De qualquer forma, para o
autor da carta, o problema não reside no fato de que tenham
entrado na Igreja sem passar pela circuncisão, nem que
convivam com os antigos crentes, mas no fato de que queiram
ensinar aos demais (2Pd 2,18). É possível que façam referên-
cia a Paulo ao falarem de "liberdade" (v. 19), mesmo sem as
restrições por ele estabelecidas (cf. GI 5,13).
E chegamos, por fim, à Carta de Tiago, que reage
frontalmente à idéia, indiscutivelmente paulina, de que o
homem "se torna justo mediante a fé, independentemente da
observância da Lei" (Rm 3,28; cf. vv. 20.24.30; 4,2.5; 5,1; GI
2,16s; 3,8.11.24; 5,4). Diz a carta: "Quando nosso pai
Abraão ofereceu o filho Isaac sobre o altar, não foi pelas obras
que ele se tornou justo?... Como vocês estão vendo, o homem
é justificado pelas obras, e não somente pela fé... De fato, do
mesmo modo que o corpo sem o espírito é cadáver, assim
também a fé: sem as obras ela é cadáver" (2,21.24.26).
A carta se preocupa com o fato de a fé ter de "cooperar"
com as obras e "se tornar perfeita" através delas (v. 22); isto
Paulo também exige de suas comunidades: "a fé que age por
meio da caridade" (GI5,1; cf. vv. 13.22). Em outras palavras:
"Tiago" tem medo da popularização da fórmula de Rm 3,28,
prescindindo do sentido que Paulo lhe dava.
Por outro lado, o Tiago da carta, diferentemente do da
história, não demonstra a menor preocupação com as práticas
judaicas: nem com a circuncisão, nem com o sábado, nem com
as normas alimentares. Ele também não é da opinião que o
homem pertença ao povo de Deus por descendência carnal;
considera, isto sim, que ele nasce com a Palavra da verdade,
para ser primícias de suas criaturas (1,18; cf. v. 21). Isto
significa que ele se coloca na perspectiva cósmica, e nela o
decisivo é a Palavra do Evangelho.

80
o NOVO TESTAMENTO
COMO PALAVRA DE DEUS
o Concílio Vaticano II tornou-se um eco dos grandes
problemas bíblicos no âmbito católico de meados do século
XX. No capítulo quinto da Constituição Dei Yerburn, 17-20,
encontra-se a apresentação, a compreensão e a avaliação do
Novo Testamento como testemunho perene da Palavra de
Deus. O testemunho é a categoria teológica da Dei Verbum
quando apresenta a relação entre Jesus Cristo e os evangelhos,
entre a Palavra que se fez homem e a Palavra que se fez livro.
Neste artigo, temos um novo comentário ao documento
conciliar que nos permite conhecer e aprofundar alguns temas
candentes do Novo Testamento, seu processo de formação e
a historicidade dos evangelhos, a partir do Magistério da
Igreja católica.
Quando o Concílio Vaticano II foi anunciado no dia 25
de janeiro de 1959, os problemas bíblicos mais candentes para
o mundo católico estavam concentrados no NT. Mais preci-
samente, nos evangelhos. O Documento do Santo Ofício,
datado de 20 de junho de 1961, sobre a historicidade dos
evangelhos, a condenação da Vie de ]ésus de J. Steinmann
(26.6.1961) e a famosa polêmica romana dos anos 1960-
1962, tinham como ponto nevrálgico os evangelhos. O Con-
cílio foi aberto neste contexto de tensão e pessimismo. Naque-
las circunstâncias, era impossível imaginar que os ânimos
serenassem e que os conceitos, ficassem claros, o que resultou
no atual capítulo V da Dei Verbum. Elaborado por uma
equipe de especialistas que trabalhou como grupo autônomo
no interior da Comissão Doutrina], este capítulo transfor-
mou-se em uma perfeita miniatura do que deveria ser uma
introdução crítico-teológica do NT. O relator do capítulo foi
o belga B. Rigaux, OFM. Colaboraram como peritos: C.
Moeller, A. Prignon, K. Rahner, S. Ramírez e Ratzinger, e
Philipps como coordenador do grupo.

1. O Novo Testamento como Aliança

A dinâmica interior de toda a DV alcança seu clímax


nos números 17-20, dedicados ao NT. O capo VI já se
encaminha para os temas práticos da Palavra de Deus na
Igreja. Todo o capo V está magnificamente centrado na
expressão inicial"A Palavra de Deus", que repete o próprio
início da Constituição, com uma pequena alteração na colo-
cação do genitivo Dei, o que aumenta o efeito da inclusão
circular: Dei Verbum- Verbum Dei. Esta repetição retoma a
idéia central da Constituição com o objetivo de evidenciar o
centro e o ponto alto da Palavra de Deus em Cristo. A técnica
das repetições reaparece para marcar de novo as obras e
palavras (n. 2) como os meios de locução reveladora por
excelência (n. 17).
83
A idéia totalizadora do n. 17 é a Aliança (Testamento).
Em vez de começar pelo NT como texto, a exposição situa-se
no âmbito mais abrangente da Aliança, que serve de ponte
lógica muito feliz entre o capoIV (AT) e o capo V (NT). O nexo
entre ambos os Testamentos não é buscado entre os textos e sim
entre os respectivos fundamentos de salvação, nos quais inte-
gra-se imediatamente a Palavra de Deus. A referência tácita de
fundo é a profecia de Jr 31,31, em que se falou pela primeira vez
em Nova Aliança. Este ponto de partida do n. 17 da DV foi
muito bem sublinhado pelo biblista italiano Mons. E. Galbiati:
"A expressão Novo Testamento, antes de significar uma parte
da Bíblia, indica a nova ordem das coisas, realizada por Cristo,
com a nova e definitiva Revelação". Este é o sentido da frase
com a qual se inicia o parágrafo 17: "A palavra de Deus (...)
encontra-se no N ovo Testamento e nele manifesta toda a sua
força de modo privilegiado". O marco da Palavra é a Aliança.
Nela "se encontra" a Palavra de Deus, como parte integrante
dessa mesma aliança. E nessa estrutura de aliança, o NT ocupa
um lugar de destaque, por ser a realidade definitiva na qual a
Antiga culmina. Isto aparece claro na série de realidades
mencionadas em seqüência, todas elas pertencentes à ordem de
realidades e não de textos: a plenitude dos tempos, a Encarna-
ção, o estabelecimento do Reino etc.
Fixado o marco teológico da exposição, são enumera-
das as realidades que compõem esta Nova Aliança: "Quando,
porém, chegou a plenitude do tempo (cf. GI4,4) a Palavra se
fez homem e habitou entre nós cheia de graça e de verdade (cf.
Jo 1,14). Cristo estabeleceu na terra o reino de Deus, manifes-
tou-se a si mesmo e a seu Pai com obras e palavras, e concluiu
sua obra morrendo, ressuscitando e enviando o Espírito
Santo". Como prova bíblica, não é mencionado o texto de Hb
1,1-2, mas cita-se, a este propósito, Ef 3,4-6: "Deus não
manifestou esse mistério para as gerações passadas da mesma
forma com que o revelou agora, pelo Espírito, aos seus santos
apóstolos e profetas". O mistério ao qual a DV alude,
acomodando as palavras de Paulo, consiste na plenitude que
o NT traz à Antiga Aliança: realidade à qual logicamente não
84
se pode chegar com uma simples leitura do AT, e que só pode
ser conhecida através da manifestação do Espírito Santo.
A verdadeira realidade da Palavra - dentro da Aliança
- é definida em três direções: sua concretização, como força
de Deus para a salvação do que crê; seu conteúdo, a auto-
manifestação do Verbo e a revelação do Pai; e seu dinamismo,
pois atua impulsionando os apóstolos e Profetas "a fim de que
preguem o Evangelho, suscitem a fé em Jesus Messias e Senhor
e congreguem a Igreja".
O primeiro parágrafo fecha-se com um enunciado
sintético sobre o NT em conjunto; mas, desta vez, enquanto
texto: "Disto dão testemunho divino e perene os escritos do
Novo Testamento". Nós conhecemos a realidade da Nova
Aliança através dos textos inspirados, que dela dão testemu-
nho. Deste modo, contextualiza-se o NT na totalidade de seus
componentes: realidade salvífica e palavra testemunhal. O
efeito teológico obtido com esta concentração de temas
fundamentais é impressionante. O n. 17 é como a abertura do
capítulo sobre o NT. O padre Grelot disse que este capítulo,
evidencia "o estilo teológico que se espera seja imitado por
todos os teólogos de profissão". Acrescentemos que um texto
tão elucidativo não entrou na DV senão no momento delicado
do esquema m.

2. O cristianismo não é uma religião proveniente do livro

O n. 17 coloca em grande destaque a peculiaridade


cristã em matéria de revelação. Todas as religiões oferecem
uma mensagem presumivelmente revelada. Todavia nunca
são identificados nelas o mediador e a mensagem. Os rsi dos
Vedas transmitem uma revelação entendida como uma ema-
nação divina. Buda, Zaratustra, Mani e Maomé transmitem
um novo ensinamento. No cristianismo, a revelação é uma
realidade diferente. Nele, mensagem revelada e revelador
identificam-se na pessoa do Verbo Encarnado. Todas as
religiões de revelações são também religiões do livro (oral ou
85
escrito). O cristianismo é a religião em cujo centro não está um
texto mas a palavra divina encarnada em um ser humano:
Cristo Jesus.
Uma vez afirmada esta unicidade fundacional, recebem
novo sentido a variedade de circunstâncias nas quais esta
palavra pessoal é comunicada. Também Cristo proferiu mui-
tas vezes e de muitos modos sua única e pessoal palavra. Falou
com obras e palavras, falou estabelecendo o Reino, concluin-
do sua obra, morrendo, ressuscitando, enviando seu Espírito.
O que disse o Prólogo da Carta aos Hebreus acerca da
diversidade de tempos e modos do falar divino repete-se
também na revelação de Cristo. O Verbo Encarnado não
falou uma só vez nem de um só modo. A unicidade de sua
palavra conjuga-se perfeitamente com o aspecto trinitário de
sua expressão: pessoa-palavra-livro.
O falar de Cristo não terminou com as palavras a
respeito de sua existência histórica: «Levantado da terra atrai
todos para si" (n. 17). Como palavra única e total, Cristo
transcende sua própria palavra escrita sem se deixar aprisio-
nar pela condição fechada e enclausurada do texto. Cristo é
uma palavra sempre aberta. Ele falou antes que fossem
escritos os evangelhos; continua falando depois de ter sido
concluído o NT. Esta palavra que fala atraindo todos para si
depois de seu desaparecimento histórico é a locução interior
pelo Espírito, que sugere tudo o que Jesus ensinou em sua
pregação histórica. É a palavra nova e interior, própria da
Nova Aliança, que Jeremias havia profetizado (Jr 31,34).

3. O cristianismo produz seu próprio livro sagrado

A Palavra total, representada pelo Verbo Encarnado,


conheceu uma ulterior encarnação. Trata-se da formação dos
evangelhos. Pois bem, se o NT (como aliança) ocupa um lugar
privilegiado diante da Antiga, no interior do conjunto de
"livros do NT" (enquanto expressão textual) os evangelhos
"sobressaem entre todos os demais escritos do NT" (n. 19).
86
Há duas implicações neste fato. Primeiro, a palavra proclama-
da por Cristo fez-se livro nos evangelhos; segundo, este livro
forma o Cânon dentro do Cãnon do NT. Este é o modo pelo
qual a DV enfoca a natureza do Verbo Encarnado como
Palavra, bem como a origem dos evangelhos.
Da palavra histórica de Cristo a sua fixação por escrito
nos evangelhos há um salto qualitativo. Se a Palavra se fez
carne, e a carne se fez livro, como entender a continuidade
entre a palavra pessoal do Verbo Encarnado e sua concretiza-
ção por escrito? Em outras palavras: como estabelecer o nexo
entre o Verbum-caro e o Verbum-liber? A DV recorre à
categoria teológica do testemunho. Os evangelhos são o
"testemunho principal da vida e da doutrina da Palavra feita
carne" (n. 18). Deste modo, introduz-se a mediação como
chave do ministério apostólico na formação dos evangelhos.
A descontinuidade é salva pela mediação apostólica: "A
Igreja, sempre e em toda parte, sustentou e sustenta que os
quatro evangelhos são de origem apostólica" (n. 18). Neste
ponto, a DV retoma tudo o que a Pontifícia Comissão Bíblica
havia dito nos anos 1911-1912 a respeito da origem e dos
autores dos evangelhos. Agora, as preocupações são diferen-
tes. O que interessa à DV é sublinhar a importância essencial
do ministério apostólico na origem dos evangelhos. Nesta
atividade apostólica, tudo está condicionado pelo mandato
de Cristo: "Os Apóstolos pregaram por ordem de Cristo" (n.
18), e esta ordem teve uma dupla forma de realização: a
pregação oral e a fixação por escrito. Explica-se a intervenção
apostólica na redação dos evangelhos em sentido amplo:
"Eles mesmos (os Apóstolos), juntamente com outros varões
apostólicos, escreveram sob a inspiração do Espírito Santo".
O conceito de varão apostólico foi sendo diluído na tradução,
que prefere a expressão "outros de sua geração". O texto da
DV requer muito mais do que a contemporaneidade apostó-
lica para ser o autor inspirado dos evangelhos. Marcos e Lucas
não somente são autores da época apostólica, como também
são colaboradores apostólicos. Eles gozaram de uma partici-
pação do mesmo carisma apostólico. Isto é o que a Constitui-
ção quer dar a entender com a expressão latina apostolici viri.
87
A mediação do testemunho apostólico possui uma
grande importância neste número 18 da DV. Visto ser a
palavra de Deus uma força, esta força é transmitida através da
pregação, assim como nos sacramentos o rito transmite a
graça. O que começou sendo uma ação salvífica por meio da
locução do Verbo, continua mantendo sua estrutura básica do
"boca a boca" na pregação apostólica.

4. A Inspiração

A palavra apostólica encarna-se em textos através de


uma atuação singular do Espírito Santo que recebe o nome de
Inspiração. Aprimeira vista, este elemento possui uma dimen-
são concreta cujo alcance afeta somente o ato redacional dos
evangelhos. Na realidade, a menção do Espírito tem uma
amplitude muito maior. A encarnação pela qual a Palavra se
fez carne foi obra do Espírito Santo. A pregação do Verbo
Encarnado que revelou os mistérios do Pai foi uma ação na
qual estava presente o Espírito Santo. Os apóstolos receberam
a ordem de pregar, juntamente com o Dom do Espírito. Assim,
o Espírito aparece num contexto trinitário que o vincula
inseparavelmente ao Pai, ao Verbo Encarnado. Cristo promete
o Espírito aos apóstolos para que dêem testemunho dele, sem
limitação alguma. Daí a necessária presença do Espírito para
anunciar a mensagem e para pô-la por escrito. Esta presença
tem um relevo particular pelo fato de que a encarnação da
Palavra em livro confere-lhe novos valores de realização
concreta, inalterabilidade, como também de ilimitada releitu-
ra para o futuro. É o que se realiza no milagre da Inspiração.

5. A historicidade da Palavra Evangélica

A Palavra Encarnada inclui necessariamente uma exi-


gência de concretização histórica. Toda encarnação supõe a
passagem de uma ordem de realidades para outra, em uma
união real e inseparável. Deus faz-se homem; o eterno faz-se
88
temporal; o criador une-se à sua criatura; o infinito assume a
finitude. A encarnação ulterior da Palavra na pregação e no
texto estava submetida à própria lei da concretização históri-
ca. O que na Encarnação era o mistério de diferentes ordens
unificadas em uma misteriosa realidade pessoal, na Palavra
falada e escrita é a verdade histórica de tal concretização.
Este problema da historicidade da palavra evangélica
encontrava-se num clima de forte discussão na época do
Concílio. Desde a Divino afflante Spiritu havia sido oficiali-
zada uma interpretação dos relatos históricos do AT com base
em gêneros literários. Não poucos teólogos e biblistas haviam
feito uma leitura daquela encíclica que limitava sua aplicabi-
lidade, praticamente, aos problemas do AT. Eles acreditavam
que nunca seria possível utilizar tais recursos na exegese do
NT; isto significaria a destruição de seu sentido literal. No
entanto, Pio XII não havia definido limite algum para a
hermenêutica crítica da Bíblia, e alguns pioneiros católicos
atreveram-se a aplicar aos evangelhos a História Crítica das
Formas. Este fato provocou a dolorosa polêmica romana, à
qual aludimos no início deste livro. A Santa Sé interveio no
primeiro semestre do ano letivo de 1961-1962, retirando o
ensinamento de alguns professores do Pontifício Instituto
Bíblico de Roma (E. Lyonnet eM. Zerwick).
Retornando à situação daqueles anos e contemplando-
os a partir do "lado de cá" da DV, podemos compreender o
pânico que, naquela ocasião, suscitava a aplicação dos méto-
dos histórico-críticos ao NT. Explicar Lc 1,26-38 com base
nos gêneros literários significava pôr em dúvida o valor
teológico da Anunciação. Tratar com os mesmos métodos o
relato dos Reis Magos seria como negar a historicidade do
Evangelho da Infância segundo são Mateus. Submeter os
milagres do NT à crítica comportava um grave risco para a
prova apologética do messianismo de Jesus. O mesmo pode
ser dito dos relatos das aparições pascais e da verdade da
ressurreição. O problema era grave porque afetava todos os
dogmas fundamentais: a infalibilidade da escritura e a histo-
ricidade dos evangelhos.
89
6. Os retoques aplicados ao texto conciliar

A historicidade dos evangelhos era um tema inevitável


para o Concílio. Ele foi abordado na DV desde o primeiro
esquema de 1962. Depois que a comissão mista redigiu seu
texto (11), que nunca foi posto em votação, sentiu-se a neces-
sidade de que uma equipe de técnicos se ocupasse seriamente
deste problema. Foi a Pontifícia Comissão Bíblica que colo-
cou à disposição toda a sua competência na matéria, publi-
cando em 21 de abril de 1964 um elucidativo documento
centrado na historicidade dos evangelhos. Este documento
serviu para abrir horizontes e facilitar a discussão conciliar.
Mesmo assim, não foi fácil chegar a um consenso
conciliar sobre o tema. Nas discussões de 22 de setembro de
1964, houve inúmeros pedidos de emenda para o ponto
referente à historicidade dos evangelhos. Examinadas as
propostas, a doutrina conciliar foi formulada da seguinte
forma: "De tal modo que sempre nos comunicaram - os
autores dos evangelhos - coisas verdadeiras e sinceras sobre
Jesus". Essa expressão não satisfez alguns padres, e o papa
interveio pessoalmente, convocando uma reunião especial da
Comissão Doutrinai para o dia 19 de outubro. Nessa reunião,
foram estudadas as retificações pessoais propostas por Paulo
VI. Uma delas dizia respeito exatamente à historicidade dos
evangelhos. As deliberações resultaram na modificação das
citadas palavras por outras que reforçavam mais a verdade
histórica: "Os evangelhos, cuja historicidade afirma sem
duvidar". Esta foi a redação definitiva, promulgada na sessão
de 18 de novembro de 1965.

7. O gênero evangélico

o n. 19 da DV recolheu todo o conteúdo essencial do


documento da Comissão Bíblica. Os problemas concretos a
respeito da historicidade são resolvidos recorrendo-se a um
procedimento que podemos chamar de esclarecimento do
90
gênero literário evangelho. Para tanto, lança-se mão de um
meio tão simples qual seja a distinção de uma dupla etapa -
oral e escrita - na atividade apostólica relacionada com a
composição dos evangelhos. A primeira delas é entendida da
seguinte forma: "Depois desse dia (a Ascensão), os apóstolos
comunicaram a seus ouvintes estas palavras e estes fatos (de
Jesus) com uma maior compreensão, que eles receberam da
ressurreição gloriosa de Cristo e do ensinamento do Espírito
da verdade" (n. 19). De acordo com este princípio, os após-
tolos não pregavam o Evangelho seguindo uma ordem se-
qüencial que salvaguardasse rigorosamente as etapas da his-
tória; o Batismo do Jordão, por exemplo, eles o viam, na
perspectiva da ressurreição, como uma manifestação da ver-
dadeira identidade de Jesus tal como ele se lhes revelara na
Páscoa. Quanto às relações de Jesus com o Pai, eles as
expressavam não como haviam descoberto paulatinamente, e
sim à luz da celebração pascal e a partir da iluminação interna
do Espírito Santo. Toda a pregação era, portanto, retrospec-
tiva, enriquecida pela compreensão profunda do mistério do
passado histórico de Jesus à luz de Pentecostes e pelo amadu-
recimento da experiência própria do Salvador.
A etapa redacional é considerada também pela DV de
forma fortemente matizada: "Os autores sagrados compuse-
ram os quatro evangelhos escolhendo dados da tradição oral
ou escrita, reduzindo-os a sínteses, adaptando-os à situação
das diversas igrejas". Deste modo, fica estabelecida uma
primeira lei a propósito da redação dos evangelhos: a seleção
do material. Quem escolhe, seleciona os dados que interessam
à finalidade pretendida por seu escrito, silenciando sobre o
que não entra em seu esquema. Assim, Lucas, que escreve para
um público pagão-cristão, escolhe todos aqueles episódios e
palavras da vida de Jesus que mais convêm a seu plano
teológico e insiste nos episódios favoráveis à universalidade
do Evangelho, à abertura aos gentios. Sua preferência pelos
temas da misericórdia, pelo amor aos pobres, seu interesse
pelo mundo feminino, a oração, o louvor, o Espírito Santo,
são temas que o fazem valorizar muitos dados que os outros
91
evangelistas não levam em conta. Mateus, por sua vez,
seleciona o que diz respeito ao cumprimento das predições
dos profetas, à continuidade com o antigo Israel, à tipologia
de Moisés etc. João prefere falar do mistério pessoal da
Palavra. Por esta razão, por vezes, eles reduzem a uma síntese
determinados temas. Marcos, por exemplo, silencia sobre os
discursos de Jesus (até o sermão da montanha); Lucas abrevia
o sermão da montanha e o pai-nosso; omite detalhes desagra-
dáveis para um médico, como as referências à hemorragia
(Me 5,25-26). A seleção afeta o método da exposição e o
gênero literário das unidades que passam a formar a trama do
respectivo evangelho, criando um texto original e novo.

"Ipsissima verba": As mesmas palavras pronunciadas


pelo Jesus histórico.

8. O problema das alterações de palavras

Para algumas pessoas, um problema mais sério é o das


diferenças de palavras que podem ser notadas em inúmeros
fatos que aconteceram uma só vez. As palavras da instituição
da eucaristia, por exemplo, foram pronunciadas uma só vez.
Como explicar as alterações que os atuais evangelhos apre-
sentam, se comparados com a tradição de Paulo em 1Cor
11,25? Como entender o começo do pai-nosso em Mateus
(plural nosso) e em Lucas (somente Pai)? A DV enfrenta este
problema com um equilíbrio pleno de sentido comum. O
trabalho redacional supõe que, por vezes, se "reduziram
(palavras e fatos de Jesus) a sínteses, adaptadas à situação das
diversas igrejas". "Reduzir à síntese" quer dizer expressar
com palavras do autor evangélico o que fora dito mais
detalhadamente nos discursos de Jesus. Ninguém duvida que
as parábolas atuais não são mais do que uma breve síntese das
extensas exposições de Jesus, o qual deve ter narrado durante
92
horas as metáforas que hoje lemos em alguns minutos. É
provável que estes relatos atuais conservem pouquíssimas
expressões que respeitem a forma dos ipsissima verba, pro-
nunciados por Jesus. O mesmo pode ser dito das narrações de
milagres. Nestes resumos, compreendem-se facilmente as
diferenças verbais e até mesmo temáticas.
A adaptação às necessidades de tempo e lugar concede
maior liberdade à atividade redacional. O nosso do pai-nosso
revela uma forma litúrgica através da qual a comunidade
recita no plural a oração de Jesus. A parábola da ovelha
perdida, em Mateus, por exemplo, é uma resposta à preocu-
pação com a questão da responsabilidade pastoral de quem
deve cuidar das ovelhas, enquanto Lucas a considera como
uma parábola da misericórdia. As palavras da última ceia-
"isto é o meu sangue, o sangue da aliança" - puderam ser
trocadas na tradição antioquina de Paulo por "este cálice é a
nova aliança do meu sangue". Beber o sangue era uma
expressão muito dura, que podia ser ofensiva à mentalidade
culta dos gregos; por esta razão ela é suavizada pela forma
indireta: o cálice da aliança no sangue. A fórmula trinitária do
batismo em Mt 28,19 corresponde ao uso que a Igreja fazia
dela na época da redação do Evangelho, e não literalmente ao
que Jesus preceituava.

9. Os textos apostólicos

Depois de ter sublinhado que os evangelhos represen-


tam um cânon dentro do Cânon do NT, o n. 20 descreve a
natureza dos demais livros que formam o chamado NT.
Todos eles foram inspirados pelo Espírito Santo, da mesma
forma que os evangelhos. O que os distingue, no entanto, é
a sua funcionalidade. Os evangelhos constituem o testemu-
nho principal sobre a vida e a doutrina de Cristo. Os demais
livros confirmam a realidade de Cristo. Esta funcionalidade
geral dos textos apostólicos reveste-se de formas variadas. A
DV as define deste modo: "Eles (os textos apostólicos)
93
explicam sua doutrina autêntica, proclamam a força salvado-
ra da obra divina de Cristo, narram o começo e a maravilhosa
expansão da Igreja, predizem seu fim glorioso". Poderíamos
crer que o texto conciliar alude a cada bloco diferenciado dos
textos que formam o NT. Contudo, o tom abstrato e sintético
do documento assinala as características - na forma de
gêneros literários - do conjunto dos textos apostólicos, que
podem ser aplicados a partes inteiras como também a unida-
des literárias menores, no interior de cada livro. Em alguns
destes livros predomina a explicação. Trata-se de uma etapa
intelectual posterior à recepção do anúncio evangélico. A fé
busca uma compreensão racional que dá origem à sabedoria
cristã. Os textos deste tipo - especialmente as Cartas -
possuem uma finalidade sapiencial e didática. Estes livros
oferecem também a narração teológica do começo da Igreja.
Tal fato não é exclusivo de Atos; algumas cartas de Paulo
apresentam também uma grande quantidade de material
narrativo sobre a origem e o funcionamento das primeiras
igrejas cristãs. O fim glorioso não é anunciado somente pelo
Apocalipse; também os textos escatológicos de Paulo e das
cartas católicas incluem bastante material referente a esta
realização do Reino de Deus.
Se o NT é a palavra privilegiada de toda a Escritura, a
parte da DV que a ela se refere foi também a que exigiu uma
elaboração mais extensa, trabalhosa e conflitiva. Todavia, o
resultado foi o mais feliz e satisfatório de todos. Um terço de
século depois de sua promulgação, não somente surpreende a
exatidão dos termos usados para expressar a fé na Palavra do
NT, como também suscitam a mais incondicionada admira-
ção as promissoras perspectivas abertas para toda a exegese
futura do NT. Um simples detalhe das sessões conciliares
pode exprimir simbolicamente o lugar ocupado pelos evange-
lhos na vida da Igreja de nossos dias, depois da DV: todas as
sessões começam com a entronização dos evangelhos, levados
em procissão por todo o recinto da Aula Conciliar.

94
Parte

LEITURA DE UM
TEXTO BÍBLICO: MT 19,1-12
Com o pretexto da questão sobre o divórcio no diálogo
de Jesus com os fariseus e com os discípulos, este artigo nos
situa no contexto cultural e no mundo de valores dos evange-
listas Mateus e Marcos, possibilitando-nos uma leitura em
profundidade do Texto de Mt 19,1-12, até suscitar uma nova
visão da mensagem de Jesus em sua proposta original e
escandalosa de um tipo de relações pessoais livres de toda
dependência, subordinação ou domínio, e contrárias a todo
tipo de banalização, manipulação ou abuso. O autêntico
desafio de Jesus consiste em construir um único espaço
compartilhado, também hoje, na relação entre os sexos.
1. o contexto

Antes de começar a trabalhar o texto, é necessano


conhecer alguns dados do meio cultural no qual ele se inscreve
e que formam o contexto de valores e conhecimentos que
fazem parte da realidade do evangelista, constituindo o que é
pressuposto por ele em seus ouvintes e nos receptores de sua
obra, mas que já não são tão familiares aos leitores de hoje.

A família. O pai era o patrão ao qual todos os membros


da família estavam submissos. Ele respondia por esses mem-
bros diante das pessoas. Supunha-se que era obedecido e
respeitado por seus filhos, sua mulher e seus servos, caso os
tivesse, e também que era capaz de defendê-los diante dos
outros. Em parte, sua honra dependia de que este papel fosse
respeitado, tanto no seio de sua família quanto pelos vizinhos.

o casamento e as relações homem-mulher. O casamen-


to era um contrato entre duas famílias, feito sobretudo com
vistas à procriação; seu fim básico era dar continuidade à
descendência da linhagem paterna. A sexualidade era prefe-
rencialmente um assunto de interesse familiar.
A mulher, ao casar-se, deixava a casa de seu pai e
passava à família do marido, ficando de certa forma desampa-
rada (por isso eram preferidos os casamentos com os primos
paternos). Na casa do marido, ela ficava à mercê de suas
cunhadas e sobretudo de sua sogra. Na família do marido, ela
só conseguia ser reconhecida e valorizada caso desse à luz um
filho varão, isto é, quando assegurasse a descendência da
linhagem do marido. Não se procurava um relacionamento de
companheirismo entre marido e mulher, nem havia expectati-
va a esse respeito. De fato, a mulher continuava sentindo-se
muito mais unida a seus irmãos; assim também a relação que
o marido mantinha com suas irmãs e sua mãe era muito mais
importante, forte e duradoura do que a que ele mantinha com
sua esposa, a qual continuava sendo considerada como uma
pessoa de fora, de outra família, de outro sangue. Este tipo de
97
contratos e casamentos patriarcais banalizavam a mulher e a
sexualidade, tornando-as meros objetos.

o divórcio. A lei judaica permitia ao marido separar-se


de sua esposa por várias razões (Dt 24,1-4). Se a mulher não
fosse virgem, o que conseqüentemente poderia trazer dúvidas
sobre a legitimidade da descendência (Dt 22,13-21), ou se ela
fosse estéril, o marido podia separar-se e divorciar-se dela,
dando-lhe um documento e enviando-a de volta à casa pater-
na. Mas o divórcio podia ser solicitado pelo marido (ao
contrário do que ocorria em Roma, na cultura judaica a
mulher nunca podia pedir divórcio) por outras causas que,
dependendo de cada escola de interpretação da Lei, podia ir
desde o fato de ela ter queimado a comida até o de o marido
ter encontrado outra mulher, mais jovem e mais bonita. O
divórcio representava um estigma para a mulher, visto ser
difícil encontrar um varão que quisesse desposá-la, depois de
ela ter pertencido a um outro.

O adultério. Note-se a diferença de punições previstas


pela Lei para o caso de violação e para o caso de adultério (Dt
22,22-29). Quem tivesse relações sexuais com uma mulher
casada ou prometida em casamento (mulheres de outros
homens), devia ser morto juntamente com a mulher. Quem
violasse uma virgem (mulher que não pertencia a nenhum
homem), devia dar uma recompensa ao pai dela e casar-se
com ela. O adultério era a falta mais grave porque constituía
uma ofensa à honra de um varão. Tal ofensa somente podia
ser cometida contra o marido, pois a mulher era considerada
propriedade dele. Outro varão se havia apropriado de algo
que era dele, sua mulher, a qual devia dar-lhe uma descendên-
cia legítima; a mulher havia perdido a vergonha, que era a
parte da honra familiar que a ela competia guardar e que tinha
a ver com o respeito à exclusividade sexual (o véu e a reclusão
eram dois meios para assegurá-la). A mulher que tinha
relações sexuais com outro varão, seja quem fosse, cometia
adultério contra seu marido. Contudo, se o marido tivesse
98
relações sexuais com uma mulher casada cometia adultério
contra o marido dela; caso tivesse relações sexuais com uma
prostituta, ele não cometeria adultério contra sua mulher.
Semelhante diferença entre varão e mulher bem como a idéia
da mulher como propriedade do varão encontram-se também
em códigos legais como o de Hamurábi, e nas leis meso-
assírias (11 milênio a.c.).

Os eunucos. Na sociedade judaica, o eunuco era aquele


varão que não podia possuir uma esposa, nem manter sua
descendência em Israel; portanto, ele era considerado sem
honra. Este varão não representava uma ameaça para os
demais, nem competia com eles, pois não poderia disputar
mulheres - disputa esta que concedia aos homens honra e
status, uma vez que a cultura judaica considerava as mulheres
como objeto (a literatura antiga apresenta inúmeros exem-
plos). Por isso, o status de gênero (o papel social dado a um
varão) de um eunuco era proibido. Ele não tinha poder, nem
honra; era como uma mulher, incapaz de impor-se aos demais
varões ou de manter relações de domínio ou de poder.

2. O texto

Ler de novo o texto e começar a trabalhá-lo, seguindo


os seguintes passos:

a. Estabelecer o contexto no qual o evangelista situou


o texto e enunciar o tema que dá unidade a este
contexto. O contexto deve ser estabelecido através
da leitura do que vem antes e depois, tratando de
encontrar o começo lógico do período, que pode ter
sido introduzido por uma mudança de cenário,
como é o caso do nosso texto (19,1-20,17).
b. Analisar as diferentes cenas (perícopes) e o tema de
cada uma delas. É útil lê-lo todo, procurando dividir
com lógica cada uma das cenas, colocando-lhes
99
título com base na idéia que elas transmitem ou com
base no tema central. Comprovar se poderia tratar-
se de um novo tipo de relações, caracterizadas pela
renúncia à prepotência e ao domínio, pela aposta na
gratuidade e pela atenção ao que é considerado sem
importância (as crianças) ... , atitude baseada na pró-
pria atitude e modo de ser de Deus, tal e qual aparece
na parábola do dono da vinha e os trabalhadores
contratados em diferentes horários, que conclui o
período.
c. Ler o texto de Mt 19,1-12 de forma continuada, sem
se fixar nas possíveis divisões e títulos que possam
existir nas diferentes traduções bíblicas.
d. Ler o texto paralelo de Mt 19,1-12 em Me 10,1-12,
tomando nota das mudanças e dos acréscimos intro-
duzidos por Mateus. Veremoscomoosvv.10-12 são
característicos de Mateus.
e. A resposta de Jesus à ardilosa pergunta dos fariseus
contradiz a Lei, a qual permitia ao marido separar-
se da mulher. A alusão ao Gênesis, no momento em
que parece evidenciar-se a intenção salvadora de
Deus para a criação, faz de sua resposta, mais do que
uma nova Lei, uma proposta de um novo tipo de
relações entre o homem e a mulher, em concordância
com esta vontade, em concordância com os valores
que devem reger as relações de quem aceita o reinado
de Deus. Comprovar isto lendo Gn 1-3, no que diz
respeito à criação do ser humano e às relações
mulher-varão, anotando os aspectos sublinhados
por Jesus e os que não são tratados por ele. Aparece
a procriação (tão essencial ao sistema familiar pa-
triarcal) como único objetivo da relação? E o aspecto
do domínio do varão sobre a mulher, em Gn 3,16?
(A redação de Me 10,12 deixa antever a aplicação da
mensagem para uma comunidade - romana? -
que vive em um meio no qual a mulher também
podia pedir o divórcio.)
100
f. A observação dos discípulos (Mt 19,10) concorda
mais com a linha da mentalidade farisaica ou com a
de Jesus? Para responder a esta pergunta, é impor-
tante ler todos os versículos seguintes, visto que
o v. 10 está intimamente ligado ao anterior e à
proposta de Jesus (v. 9). No v. 11, Jesus concorda
com a observação e com a reclamação "machista"
dos discípulos? Ou está propondo outro tipo de
relações entre o homem e a mulher, sobretudo no
matrimônio? Há Bíblias que dão aos vv. 10-12 o
título de "a castidade perfeita" ... Você também crê
que Jesus está falando de castidade, ou está falando
das relações entre o homem e a mulher, e em especial
no matrimônio, o autêntico desafio para a família e
para a sociedade patriarcal? A sugestão de que não
se casem não significaria a confirmação do que fora
dito no v. 10, como conseqüência da proposta feita
por Jesus nos vv. 4-8?
g. Como sabemos, os eunucos não podiam concorrer
com os outros homens no domínio sobre qualquer
coisa. Por esta razão igualavam-se às mulheres nas
questões de poder e posição. Neste contexto de
relações entre homens e mulheres, o que quer dizer
a escandalosa e desafiadora proposta de Jesus a seus
discípulos varões, segundo a qual eles deveriam
tornar-se eunucos (como eunucos) para viverem
como varões do Reino (v. 12)?
h. Conhecendo os interesses, valores, costumes e insti-
tuições daquela sociedade, torna-se evidente que as
palavras e o tipo de relações pessoais propostas por
Jesus pareceram escandalosas e inconvenientes para
certos interesses. Todavia, não é menos verdade que
seu desafio continua sendo atual, e sua posição
continua sendo uma crítica a muitas posições e
egoísmos dissimulados ou manifestos. Não se trata
de renunciar à relação entre os sexos (incluindo a
101
relação sexual), nem de criar dois mundos diferentes
e separados. O autêntico desafio consiste em cons-
truir um único espaço compartilhado, com outro
tipo de relações, integrando a sexualidade sem
banalizações, subordinações ou dominações de qual-
quer tipo.

102
Parte 111

TESTE DE AUTO-AVALIAÇÃO
PARA OS LEITORES
Neste livro, tivemos a oportunidade de ficarmos mais
informados sobre um tema apaixonante: a formação do Novo
Testamento. Existem teorias, hipóteses e muitas coisas escri-
tas. Procure demonstrar o que ficou claro para você.

1. O método da História das Formas permite que


se conheça a pré-história dos evangelhos, bem
como a história de Jesus e da Igreja primitiva.

2. Segundo a História da Redação, Mateus havia


elaborado seu evangelho com materiais pro-
venientes de Marcos e da chamada Fonte Q e
utilizando materiais próprios.

3. Para todos os estudiosos, as Cartas de Paulo,


possivelmente autênticas, são sete: Romanos,
1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1
Tessalonicenses e a pequena Carta a Filemon.

4. A estrutura comum dos quatro evangelhos é a


seguinte: preparação ao ministério, ministério
na Galiléia, viagem a Jerusalém e Paixão e
Ressurreição.

5. A teoria das duas fontes foi proposta por C. G.


Wilke e C. H. Weisse.

6. Marcião tentou pôr em "ordem" e selecionar


um só evangelho (Lucas) na metade do século 11.

7. O cristianismo não identifica mediador e men-


sagem.

8. Existe um cânon dentro do Cânon do NT: os


evangelhos.
104
9. Tudo indica que o quarto evangelho neotesta-
mentário é obra de um só autor.

~ 10. Se utilizarmos uma sinopse, poderemos sus-


tentar que Me é fonte comum de Mt e Lc.

Número de acertos:
Entre 1 e 3: Obrigado pela participação!
Entre 3 e 5: Releia este livro com mais atenção!
Entre 6 e 8: Parabéns!
Entre 9 e 10: Desfrute seu talento: continue estudando e
não se arrependerál!

1 RESPOSTA: Todas as respostas são verdadeiras, salvo a 4, a 7 e a 9.


105
CANÇÕES
COM DEUS AO FUNDO
RESPIRO. Invade-me ALELUIA!,
a paz indescritível, pois o mundo é redondo
o canto perdido, e não tem arestas.
o azul de ninguém.
Aleluial,
Respiro. Meu peito pois a água não pára
sabe de bondades até na profundidade.
que ignora a mente,
que abrasa a carne. Aleluia!,
pois o homem é de barro
Respiro. E me basta. moldável e terno.
E volto a assombrar-me
deste meu estar vivo, Aleluia!,
dono do instante. pois Deus é o Canto
que nunca aprendemos
ANDAR todos os caminhos, de todo a cantar.
beber em todos os céus,
dormir a paz sob uma árvore Deus é
cujo nome me é desconhecido, Palavra de Amor
deixar um vão na terra que não admite dúvida.
com o calor do meu corpo,
e entregar-me à alegria Deus é
de morrer consciente. Silêncio
que na alma se despoja.
NÃO sei, Senhor, quem me diz
que te diga que te amo ... Deus
explode um rio de cantos sempre fala
e suas ondas me arrastam na língua
sem eu querer nem pensar. .. daquele que escuta.
Não sei, Senhor, o que digo,
quando digo que te amo.

108
BIBLIOGRAFIA

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